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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DECADÊNCIA PELO AMOR / D.H. Lawrence
DECADÊNCIA PELO AMOR / D.H. Lawrence

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Depois de Mulheres Apaixonadas, Canguru, História de uma Jovem, Serpente Emplumada e Filhos e Amantes, de D.H Lawrence, todos publicados no Brasil por cessão dos direitos autorais da Portugália de Lisboa, surge agora um dos maiores best-sellers do grande escritor inglês - Decadência pelo Amor. Nesse romance, como em todos os de Lawrence, um dos principais interesses reside na beleza do estilo. Muitas das suas páginas constituem verdadeiro poema pastoril. O vale de Nethermere é uma região paradisíaca onde o moço George Saxton, lavrador e filho de lavradores, vive a sua adolescência. Solicitado pelo amor de uma mulher de classe superior, sensível e educada, ele não tem coragem de se lhe declarar abertamente, colhido pela indecisão constante que o caracteriza. Ela se casa com um industrial mas não alcança a felicidade e ele, como desforra, faz o mesmo com a parenta, proprietária de um armazém. Privado do sonho que acalentara, aos poucos vai se degradando fisica e moralmente, até se tornar um ser apático, dominado pelo álcool. No entanto, não consegue libertar-se dos laços que o prendem à terra natal e as mesmas florestas, o mesmo céu, as mesmas águas que o viram assistem, desolados, à sua decadência irremediável. Decadência pelo Amor é, portanto, um livro que ser lido o quanto antes, pois prende a atenção do leitor irresistivelmente.

 

 


 

 


Tudo ali parecia ter ficado na contemplação do passado: as árvores antigas, indiferentes à carícia do sol; as ervas que se mantinham espessas e imóveis; a aragem que nem sequer fazia mexer os ramos dos salgueiros; e a água da lagoa sempre plácida e silenciosa. Mas a corrente do moinho denunciava ainda o tumulto de vida que outrora agitara aquele vale, e os peixes alvos, na obscuridade da represa, continuavam a precipitar-se com movimentos rápidos.
Estava observando-os quando uma voz inesperada me sobressaltou e quase me fez cair, do tronco de álamo onde havia me empoleirado.
- Que está vendo aí? perguntou o meu companheiro, rapaz de olhos castanhos, de pele queimada pelo sol e coberta de sarda, um belo tipo de lavrador, solidamente construído. Ao notar o meu susto, riu e olhou para mim, cheio de curiosidade.
- Nada... Penso em como tudo isto é velho e como obriga à meditação.
Recostando-se na margem, ele esboçou um sorriso indulgente e retorquiu:
- Belo lugar para dormir.
- Sua vida é um sono contínuo, respondi. Será uma piada quando alguém o acordar.
George sorriu de novo, passou as mãos pelos olhos para atenuar o brilho da luz, e replicou em voz pausada:
- Por que motivo será assim tão divertido?
- Ora... Você mesmo achará muita graça.
Ficamos calados algum tempo, até que ele, tateando ao acaso a terra, observou com os seus modos indolentes:
- Parece que adivinhei a razão deste zumbido.
Examinou o local e viu que tinha batido com os dedos em um ninho desses lindos insetos que se diria terem mergulhado o corpo em reluzente poeira de âmbar. Excitados, puseram-se a correr em torno dos ovos vazios; alguns provaram as asas num vôo incerto antes de se lançarem abertamente no espaço, George
espiou os que se meteram entre a relva e que andavam para cá e para lá, dominados pela aflição.
- Por aqui, disse ele, aprisionando um entre caules de erva e tentando desprender, com outra haste, as asas unidas onde havia reflexos de anil.
- Não faça maldades, recomendei.
- Isto não o magoa. Quero ver apenas se é por não poder abrir as asas que ele não consegue voar. Olha, lá vai. Não, não é ainda. Vou experimentar noutro.
- Deixe-os em paz, repliquei. Deixe-os gozar o sol. Acabam de vir ao mundo, não os obrigue a cansaços.
George insistiu, apesar de tudo, e quebrou a asa da sua vítima.
- Coitado! exclamou, esmagando o bicho entre os dedos. Em seguida pôs-se a examinar as larvas e os ovos, sem qualquer método científico, perguntando-se
se eu conhecia alguma coisa de insetos. Depois de ter acabado suas observações, lançou tudo aquilo à água, levantou-se e exibiu o relógio, extraindo-o
das profundezas do bolso.
- Bem que eu achava que eram horas de comer, declarou ele, sorrindo para mim. Adivinho sempre a aproximação do meio-dia. Vamos para casa?
- Com todo o gosto, retruquei. Seguimos ao longo da margem e atravessamos a ponte de madeira sobre a comporta. Em frente, o pomar de árvores contorcidas, descia em áspero declive. Em seguida vinha o jardim.
As pedras da casa quase desapareciam debaixo dos ramos de hera e madressilva, e os lilases atravancavam o portão. Passamos sempre, contornando a casa, e fomos, pelo passeio de tijolos, dar à porta dos fundos.
- Feche-a, sim? pediu-me ele, que entrara em primeiro lugar.
Através da copa, um lugar espaçoso, alcançamos a cozinha. Nesse momento a criada tirava a toalha, de dentro de uma gaveta, e a mãe do meu amigo, figurinha delicada, de olhos grandes e castanhos, andava em volta da lareira com um garfo na mão.
- O almoço não está pronto? perguntou George, num tom já ressentido.
- Não, filho, a lenha não queima, replicou ela, desculpando-se. Mas espero terminá-lo em pouco tempo.
George deixou-se cair num sofá e começou a ler um romance. Eu fiquei com vontade de ir embora. Mas a dona da casa insistiu para que eu ficasse.
- Não vá, pediu ela. Emily há de gostar tanto de vê-lo! E o meu marido também. Sente-se, faça favor.
Sentei-me numa cadeira de junco, perto da janela que dava para o pátio. Já que George estava entretido na leitura e a mãe ocupada em diligenciar que a carne e as batatas cozinhassem depressa, era natural que eu me entregasse aos meus próprios pensamentos. Assim foi. O rapaz, esquecido agora das suas reclamações, continuava embebido no romance: de vez em quando puxava o bigodinho, com indolência, sem se
importar que o cão se esfregasse de encontro às polainas e às joelheiras dos calções de montar. Divertido com o bigode e com o livro, nem sequer se lembrava de brincar com as orelhas de Trip; enquanto torcia e retorcia entre os dedos os fios castanhos daquele adorno viam-se se mover levemente, sob a pele clara os músculos do braço nu. Por cima dele, a janelinha quadrada filtrava uma claridade verde, vinda até ali por entre as folhas do castanheiro enorme do pátio: a luz incidia-lhe no cabelo
escuro e espalhava-se no quarto, refletindo-se na louça que Annie tirava da prateleira e no mostrador do relógio de caixa.
Aquela cozinha era bastante ampla, de tal modo que a mesa parecia perdida no meio dela e as cadeiras como que saudosas da vizinhança do sofá. Ao fundo, o buraco da chaminé assemelhava-se a uma caverna negra e os bancos da lareira pareciam formar outro compartimento avermelhado pelo clarão das chamas, onde a mãe de George rondava. Assim a grande cozinha mostrava-se um pouco árida, com as lajes cinzentas à mostra, todas desiguais, a sua escassa mobília, e os recantos excessivamente sombrios. As únicas coisas alegres que se viam ali eram a chita do canapé e as almofadas da poltrona, que davam tons escarlates ao ambiente melancólico. Também o
relógio se destacava pelas cores vivas com que tinham pintado as aves que o adornavam, e isso bastaria para provocar o sorriso de alguém menos contemplativo do que eu: para mim, aquilo só causava admiração.
Daí a pouco ouvimos o pisar de botas pesadas, e o dono da casa entrou. Era homem corpulento, meio calvo, com alguns fios de cabelo encaracolados em volta da cabeça.
Vendo-me, soltou uma exclamação jovial:
- Ora viva, Cyril! Ainda bem que não nos esqueceu. Depois, voltando-se para o filho, acrescentou: E lá na mata, continuam os problemas?
- Acabaram-se, respondeu George, sem desviar os olhos do livro.
- Fico contente em saber. Os coelhos roeram os nabos, explicou o recém-vindo, dirigindo-se à mulher.
- Já contava com isso, observou ela, entretida com as suas caçarolas. As batatas haviam acabado de cozinhar, e ela afastou-se do lume, com a panela fumegante nas mãos.
O jantar foi posto na mesa. O pai começou a trinchar, e o filho, que levantara a vista de cima do livro para verificar a comida, continuou a ler até que lhe enchessem o prato. A criada tinha-se sentado já na sua mesinha, próximo da janela, e começara a comer. Nessa altura sentiram-se no corredor de tijolos os passos de duas pessoas,
e logo a seguir apareceu uma criança seguida da irmã mais velha. A primeira vinha com um chapéu de marinheiro, debaixo do qual surgiam, ariscos, os cabelos compridos e escuros; mas arrancou-o logo e atirou-o para longe, instalando-se à mesa e conversando sem cerimônia com a mãe. A irmã, moça dos seus vinte e um anos, sorriu para mim, lançando-me um clarão dos seus olhos castanhos, e foi lavar as mãos. Voltou depois e sentou-se, olhando com ar desconsolado a carne mal passada que tinha à sua frente.
- Detesto isto assim, declarou ela.
- Faz bem, replicou o irmão, que começara a comer com todo o vagar. Dá-lhe músculos para castigar os alunos.
Contudo, a interessada não aceitou o conselho. Afastou o prato e preferiu comer vegetais. O irmão, pelo contrário, tornou a encher o seu de carne e continuou a mastigar. Então a menina, a quem chamavam Mollie e que tinha doze anos, observou em tom pouco amigável:
- Podia ter-me passado o molho...
- Sem dúvida! E a carne também.
- Isso já não seria da sua vontade...
- Que esperta! comentou o rapaz, ainda com a boca cheia.
- Acha? interveio, irônica, a mais velha, Emily.
- Claro que sim, visto que você a fez à sua imagem e semelhança, quando ela esteve consigo na escola. Mãe, acrescentou George, se me encontrasse uma batata bem cozida...
- Quando provei achei-as boas. Veja esta, que é a mais mole. Cozinharam tanto tempo!
- Não vale a pena apresentar-lhe desculpas e explicações, opinou Emily, irritada.
Sem se dirigir a ninguém em particular, o irmão ponderou muito calmo:
- Esta manhã ela teve muitos alunos endiabrados, com certeza. ..
- E bateu num deles até lhe fazer espirrar o sangue pelo nariz, acudiu Mollie.
- Ah, também você! redarguiu Emily, engolindo com dificuldade. Pois fique sabendo que não me arrependi. São levados da... da...
- Da breca, concluiu George, ajudando-a a completar a frase.
Emily não pareceu satisfeita com o auxílio do irmão. O pai soltou uma gargalhada. E a mãe olhou aflita para a moça, que nesse momento baixou a cabeça, pondo-se a fazer desenhos na toalha, com o dedo.
- São piores do que os do ano passado? perguntou a mãe. A resposta de Emily foi curta:
- Nem por isso,
- O que não impede de lhes bater com força, atalhou George. Dê-me mais açúcar, Annie, pediu ele, olhando para o açucareiro e para o pudim.
A criada levantou-se da sua mesinha, e a mãe, por sua vez, correu aos armários. Emily, ocupada com o almoço, saiu da sua soturnidade para dizer com amargura:
- O que eu queria, George, é que você também fosse professor. Curar-se-ia das suas fanfarronadas.
- Eu? retrucou ele, desdenhoso. Seria capaz de deixar todos pondo sangue pelo nariz.
- Gostaria de ver...
Esta discussão parecia ter feito cócegas à irmã mais nova. De fato, Mollie desatou às gargalhadas, o que assustou a mãe, receosa de que a pequena sufocasse no meio da sua hilaridade.
George, ao ver as contorções de Mollie, observou-lhe:
- Está rindo muito.
Emily é que não pôde agüentar mais o diálogo. Levantou-se e abandonou a mesa. O pai e o filho, daí a pouco, foram ver a plantação de nabos, e eu acompanhei as moças que voltavam à escola.
Enquanto seguíamos pelo passeio ladrilhado, Emily declarou me cheia de convicção:
- George irrita-me com o que faz e com o que diz.
- Às vezes é egoísta, arrisquei.
- Se é! insistiu. Irrita-me deveras com os seus grandes ares de sabichão, com a sua importância... Mamãe, então, humilha-me tanto!
- Vejo que ficou furiosa...
- Furiosa! repetiu ela numa voz que vibrava de cólera e nervosismo. Demos uns passos em silêncio e Emily perguntou-me: Trouxe-me os versos?
- Não... Desculpe... Esqueci-me deles outra vez. Para falar franco: destruí-os.
- Mas tinha prometido!
- Sabe o que são as minhas promessas. Não se pode confiar em mim.
Emily mostrou-se mais carrancuda e desanimada do que seria de esperar. Quando me despedi, numa volta do atalho, senti remorsos pelo meu procedimento. Isso acontecia sempre depois que ela ia embora.
Passei depressa através do regato que saía da lagoa. As pedras, onde eu ia pondo os pés, pareciam brancas sob a claridade do sol; a água deslizava entre elas. Quase indistintas de encontro ao azul do céu, à minha frente voavam duas borboletas, pousando de flor em flor e indicando-me o caminho. Os campos exalavam calor e eu diminui o passo a fim de enveredar pelo bosque onde os carvalhos faziam uma sombra reconfortante. Lá dentro tudo estava silencioso e fresco, e eu tive prazer em demorar
na vereda arborizada, seguindo entre plantas que pareciam estender os braços para mim. O centro da floresta irradiava suavidade; mas fui sempre andando, incitado pelo ataque de um exército de moscas degladiando em torno da minha cabeça - até que, ao chegar aos rododendros do jardim, elas me abandonaram atraídas pelo açúcar que Rebeca punha
debaixo das vasilhas com vinagre.
A casa, baixa e vermelha, com o seu telhado abatido e já sem cor, adormecera ao sol e dormia agora profundamente na sombra que lhe projetavam as árvores enormes que se julgaria terem fugido da selva.
Não encontrei ninguém na sala de jantar, mas escutei o rumor da máquina de costura, vindo do escritório, semelhante ao zumbir de um inseto descomunal, ora mais forte, ora mais atenuado, depois muito regular... Em seguida chegaram-me ao ouvido notas musicais, leves, um tanto puladas, como se uma rã andasse saltando sobre o teclado do piano da sala.
- Deve ser mamãe tirando o pó, disse com meus botões. Desabituado como estava aquele som, não admira que me sobressaltasse por momentos. Aquelas cordas, escondidas atrás da seda verde - virando uma dobra é que se via como o tempo a desbotara - tinham-se tornado, com a idade, secas e afônicas
como as de uma garganta de velha. O decorrer dos anos amarelecera as teclas do piano da minha mãe e carcomira-lhe as pernas delicadas. Pobre objeto sonoro, que mal respondia ao contato dos dedos de Lettie, se esta, por brincadeira, experimentasse
pô-lo a vibrar. Mas a verdade é que ele se conservava sempre fechado, a não ser para consentir na visita do espanador...
E agora, inesperadamente, ei-lo murmurando uma antiga melodia vitoriana. E eu logo imaginei uma figura pequenina de mulher, modesta e recatada, com belos cachos de caracóis de cada lado do rosto, sentada ali a tocar... Essa música despertava-me sensações de outrora sem que a memória, no entanto, me socorresse. Quando eu tentava, a todo o custo, recordar-me, Rebeca entrou na sala de jantar, a fim de tirar a mesa.
- Quem está tocando, Beck? perguntei.
- A sua mãe, Cyril.
- É uma coisa que ela nunca faz! Julguei que não sabia.
- Ah, respondeu Rebeca, esqueceu-se do tempo em que era pequeno, quando brincava junto das saias da sua mãe, e ela cantava para você. Não se lembra, com certeza, de vê-la de caracóis sedosos e castanhos. Sim, não se lembra de quando ela cantava e tocava, antes que Lettie viesse e que o seu pai...
Rebeca deu meia volta e saiu do quarto - e eu fui ver o que se passava na sala. Minha mãe estava sentada defronte do piano: sorria e, com os dedos roliços e pouco ágeis, feria de leve o marfim. Nesse instante Lettie passou correndo a meu lado, dirigiu-se para mamãe e, abraçando-a e beijando-a, disse:
- Meu Deus, não sabia que tocava piano!
- Nem eu, replicou a interpelada, rindo-se e fugindo ao abraço da moça. Quis ver apenas se seria capaz de martelar esta velha melodia. Aprendi-a em pequena, neste mesmo piano, que já estava desmantelado. Mas não tinha outro.
- Toque outra vez, por favor. Lembrou-me o som de cristais do lustre, roçando uns pelos outros. E a sua posição, sentada na banqueta, era tão delicada... Vá, toque mais!
- Não, retorquiu mamãe, esquivando-se à insistência de Lettie. Só mexer nas teclas basta para me tornar sentimental. E vocês não gostariam
de me ver com lágrimas nos olhos, depois de velha...
- Velha! repetiu Lettie, em tom de censura, e voltando a beijá-la. Está ainda muito nova para tocar romanças, sem parecer ridícula. Fale-nos a esse respeito.
- A respeito de quê?
- Do tempo em que tocava piano.
- Antes que os meus cinqüenta e tantos anos me tolhessem os dedos? E tu, Cyril, onde esteve, que não apareceu para o almoço?
- Estive apenas no Strelley Mill, respondi.
- Já calculava, respondeu minha mãe, falando agora com frieza.
- Por que diz que já calculava?
Lettie, nesta altura, interveio com o seguinte comentário:
- E saiu, é claro, logo que Emily voltou para a escola...
- Saí, sim.
Pareciam ambas indispostas comigo. Disfarcei o meu ressentimento e esclareci:
- Convidaram-me para almoçar.
Minha mãe não se dignou pegar a deixa. Foi Lettie quem prosseguiu no interrogatório:
- O ilustre George terá já encontrado alguma namorada?
- Não, declarei logo. Não há nenhuma bastante qualificada para ele.
Minha mãe observou por seu turno:
- Cada vez percebo menos o que é que você aprecia nessa gente.
- Não seja má, respondi um tanto formalizado. Sabe muito bem que gosto deles.
- Sei que gosta dela, atalhou minha mãe, com ar sarcástico. Quanto ao irmão, não passa de um malcriado. Nem se podia esperar outra coisa desde que sua mãe o estragou com tantos mimos. Mas, se tem empenho em corrigi-lo... Dizendo isto, franziu o nariz, desdenhosa.
- Acho-o bem interessante, observou Lettie com um sorriso. Você é que podia fazer dele um homem, disse-lhe eu, curvando-me zombeteiro.
- Não me interessa, replicou ela no mesmo tom de troça. Meneou a cabeça, e todos os cabelos finos, livres de ganchos, ficaram como uma poeira de ouro à luz do sol.
- Que vestido ponho? perguntou ela.
- Sei lá! respondeu minha mãe.
- Acho que vou vestir o verde - embora esta luz possa desbotá-lo, disse ela, pensativa. Era bastante alta e magra, de cabeia louro, com reflexos
acastanhados, lindos olhos e sobrancelhas - o nariz nada tinha de bonito; as mãos é que eram muito belas.
- Onde vai? indaguei. Lettie não me deu resposta.
- A casa do Leslie Tempest, respondi. Ela, porém, não replicou. Não percebo o interesse que você encontra nele, prossegui eu.
- O mesmo que encontro nos outros rapazes, retorquiu Lettie. Interrompeu-se e ambos começamos a rir. Não é que me preocupe com ele, continuou, ruborizada. Vou apenas jogar uma partida de tênis. Quer ir também?
- E se eu aceitasse o convite? perguntei. Lettie sacudiu a cabeça e respondeu:
- Todos nós ficaríamos satisfeitos com a sua presença. Tenho a certeza disso.
- Faço idéia! respondi com ironia.
Ela riu, muito corada, e correu pela escada acima.
Meia hora depois aparecia no escritório, para me dizer adeus - e ver se eu a achava bem. Estava tão linda, com o seu vestido de linho e chapéu florido, que não pude deixar de me sentir orgulhoso. Calculando que eu apareceria à janela, Lettie, já na altura dos rododendros enormes e cor de púrpura, olhou para trás, acenou-me com o lenço de renda e afastou-se como uma flor entre as aveleiras verdes. Encaminhou então seus passos, através da floresta, para o espaço quase despido de árvores que conduz à estrada real e que fica em direção oposta a Strelley Mill.
A estrada corre durante cerca de um quarto de milha junto à margem da nossa lagoa, Nethermere - a mais baixa das três que constituem a série. Do outro lado, numa colina distante, está Highclose, que avistamos ainda por cima das águas. Embora Lettie já estivesse muito longe, conseguia distingui-la na beira da lagoa, de sombrinha aberta, afastando-se como uma vela no horizonte. Em seguida vi-a dobrar a cancela, debaixo dos pinhais, subir a ladeira e misturar-se com a vegetação que cerca Highclose.
Leslie estava estendido numa cadeira de repouso, à sombra de uma árvore, e tinha entre os dedos um charuto aceso. Sob o calor do dia, entretinha-se observando a brasa do charuto, que se transformava em cinza, e ao mesmo tempo sentia pena de Nell Wycherley, a quem acompanhara nessa manha à estação... a fim de que ela não ficasse aborrecida. As moças de agora são tão impertinentes, às vezes, para com os seus companheiros! Contudo, ela não era das piores.
Nesse momento, percebeu uma sombrinha que se movia ao longo da estrada, e Leslie, ato contínuo, mergulhou em sono profundo, deixando no entanto uma fenda ao canto dos olhos para se poder certificar da aproximação de Lettie. Esta, encontrando o seu admirador deselegantemente adormecido, de charuto na boca, quebrou um raminho de lilás, cujos botões ainda estavam fechados e cujo aroma não seria, portanto, capaz de denunciá-la antes que ela tocasse no nariz do dorminhoco. E Leslie, acordando de súbito, exclamou:
- Oh, Lettie, estava a sonhar com beijos!
- Na ponta do nariz? Beijos de quem? retorquiu ela, rindo alto.
- De quem me produziu a comichão, esclareceu, sorrindo.
- As cócegas fazem-no sonhar com isso?
Trocaram ainda outros cumprimentos deste teor. E, como a moça o envolvesse num desses olhares com que as mulheres sabem lisonjear tão habilmente os homens, Leslie caiu em êxtase, afogado de volúpia.

 

CAPÍTULO DOIS

 


Lettie ficou inquieta ao ouvir o barulho prolongado do vento na floresta e o suspirar e gemer das árvores mais próximas da casa; não queria mexer-se, não queria fazer nada - mas acabou por insistir que eu a levasse até à beira da lagoa. Atravessamos, o emaranhado das amanbas e dos framboeseiros bravos que se estendia em frente da nossa casa e descemos o declive cheio de ervas que vai dar a Nethermere. O vento fustigava, rumorejando, a superfície das águas; e a frescura do ar estimulou-nos, lá onde as ondas se quebravam contra os seixos e as hastes dos caniços se curvavam sob o açoite dos elementos.
Na margem, as rainhas-dos-prados estavam em flor, e nós enterramo-nos nelas até aos joelhos enquanto admirávamos as rendas de espuma que corriam sobre as vagas e o prateado dos salgueiros mais distantes, no outro lado. Ali, onde deságua o regato de Strelley, a lagoa é mais estreita, a vertente do bosque mais abrupta e os troncos das árvores quase mergulham dentro de água. Interrompendo o nosso passeio, detivemo-nos a observar, de vez em quando, na terra pantanosa, ninhos abandonados de aves aquáticas; ao mesmo tempo sentíamos o cheiro penetrante da hortelã que os nossos pés esmagavam. À nossa aproximação, vimos algumas aves pernaltas que estendiam o pescoço esbelto, sobressaltados, e que fugiram diante de nós: uns atrás dos outros, voavam guinchando para o âmago da floresta, mas logo regressavam ao ponto de partida para de novo despedirem noutra direção, cheios de espanto e de terror.
- Por que se teriam assustado? perguntou Lettie.
- Não sei. Às vezes fitam-nos sem medo, e noutras ocasiões precipitam-se com esta lamúria como se levassem uma cobra enrolada nas asas.
Ela, no entanto, deu pouca atenção às minhas explicações. Havia-se agarrado a um ramo de salgueiro e, num instante, choveram sobre ela miríades de flores, como migalhas de uma enorme fatia de pão. Segui-a logo a fim de tomar parte naquele banho que a envolvia e do qual emanava um perfume medicinal.
- Oh, Cyril! exclamou Lettie, surpreendida.
Era um gato preto que ela descobrira preso numa armadilha pelas patas traseiras: fora apanhado, sem dúvida, no momento em que ia saltar sobre a vítima. Magro, bravio, o animal havia sido, e com razão, a causa do terror manifestado pelas aves. Ao ver-nos, rosnou baixo e não desfitou o olhar, que brilhava de ferocidade.
- Que mau que ele parece! acrescentou Lettie.
Envolvi as mãos no lenço dela e no meu próprio boné e agachei-me para abrir a ratoeira. O gato rasgou-me o pano das luvas improvisadas, metendo-lhe os dentes convulsivamente; mas, uma vez liberto, deu um pulo para longe e ficou espiando. Tirei o casaco, embrulhei nele o bicho e agarrei-o murmurando:
- Coitada da Nickie Ben! Sempre profetizei este fim.
- Que vai fazer? inquiriu Lettie.
- E uma das gatas de Strelley Mill. Vou levá-la aos donos.
O pobre animal, debatendo-se, procurava fugir, mas eu consegui trazê-la comigo; seguido da minha companheira, apareci na cozinha da casa, em mangas de camisa, e todos se admiraram de me ver entrar assim, levando tão estranho embrulho.
- Trago-lhes a Nickie Ben, declarei, exibindo a minha carga.
- Que patifaria! bradou Emily, estendendo a mão para a gata mas retirando-a no mesmo instante, com pavor igual àquele de que ainda há pouco as aves
tinham dado prova.
- É assim que eles morrem todos, sentenciou a mãe.
- O que eu queria, acudiu Mollie, excitada pela indignação, era que os guardas-florestais estivessem três dias e três noites entalados numa ratoeira dessas.
Pusemos o bicho sobre o tapete do fogão e
dêmos-lhe leite morno; ela, porém, bebeu muito pouco, de assustada que estava. Mollie, no meio da sua cólera, foi buscar o marido de Nickie Ben, que era também preto, a fim de que, ele visse a sua consorte estropiada. O gato olhou, pareceu encolher os ombros finos e afastou-se com passos rápidos. Aquela insensibilidade provocou geral clamor entre as senhoras.
George, que vinha buscar água quente, surgiu à porta nessa' altura. Admirou-se com a nossa presença ali e os olhos cintilaram-lhe.
- Repara na Nickie Ben, disse a irmã mais nova. George ajoelhou no tapete e ergueu as patas feridas da gatinha.
- Estão partidas, participou ele.
- Que horror? exclamou Emily, estremecendo. E foi-se logo embora.
- Ambas? indaguei.
- Só uma. Vê.
- Está a torturá-la, notou Lettie.
- Já não tem cura.
Mollie e a mãe deixaram a cozinha, à pressa, e foram para a sala.
- Que vais fazer? perguntou Lettie.
- Evitar que ela continue a sofrer, respondeu George, pegando no animal. Seguimo-lo até ao celeiro. Uma vez ali, fez ele esta declaração:
- A maneira mais rápida é andar com a gata de roda e bater-lhe com a cabeça contra a parede.
- Está a fazer-me mal aos nervos, observou Lettie.
- Então, vai ser melhor afogar o bicho, replicou ele, sorrindo. Pegou num cordel, preparou um laço numa das pontas e enfiou-o no pescoço do animal, amarrando aí um peso de ferro e deixando solta a outra parte do fio. Feito isso, perguntou se queríamos acompanhá-lo. Lettie olhou para ele, um tanto pálida. - Prevenindo-a de que isto vai lhe esfrangalhar os nervos, acrescentou George. A moça não deu resposta, mas seguiu-o ao jardim, através do pátio. Na margem do reservatório, ele voltou-se outra vez para nós e disse:
- Agora, atenção. Vocês fazem de carpideiras.
Ficávamos ambos calados; ele tornou a sorrir e atirou para a água o pobre animal, que se contorcia com dores.
- Adeus, Nickie Ben! exclamou o algoz, que nos mirou cheio de curiosidade, enquanto esperávamos na margem.
- Cyril, disse Lettie, muito calma, isto é que é crueldade! E horrível!
Não encontrei palavras com que lhe respondesse, mas George acudiu logo:
- Refere-se a mim?
- Não a si especialmente... mas às coisas em geral.
O lavrador fitou-a com os seus olhos escuros e sérios.
- Tive de afogar a gata sem piedade, declarou ele, atando a extremidade livre do cordel a um tronco de freixo. Depois foi buscar uma enxada e, com ela, fez uma cova na terra negra. - Se o cadáver não vier muito desfigurado, ajuntou, dirigindo-se a Lettie, você cobrirá de violetas a sepultura de Nickie Ben. Lançou fora a enxada e puxou o atilho, no fim do qual apareceu a gata e o peso de ferro. - Vá lá, que não tem mau aspecto! Era uma bichana de raça.
- Enterre-a quanto antes, ordenou-lhe a moça.
- Irá ter pesadelos, esta noite?
- Os sonhos não me assustam, respondeu.
Reentramos em casa e fomos até a sala, onde Emily estava sentada junto da janela, pensativa. O aposento era comprido e não muito alto, com uma viga tosca e enorme a atravessar o teto. Na prateleira do fogão e sobre o piano havia folhas e flores distribuídas em quantidade. Pela janela entrava o cheiro e a frescura do bosque.
- Ele levou avante o seu intento? perguntou Emily. E vocês assistiram a isso? Se eu tivesse pressentido semelhante coisa ficaria com ódio de morte.
- Eu também não fiquei muito satisfeita, declarou Lettie.
- A indiferença e brutalidade deste rapaz chegam a ser revoltantes, continuou a outra. Sinto-me repugnada.
- Palavra? volveu Lettie, com um sorriso frio. Dirigiu-se ao piano e acrescentou: Acho-o apenas demasiado saudável. Nunca está doente, creio eu.
Sentou-se e tocou ao acaso, deixando que as notas, entorpecidas, tombassem como folhas mortas do velho móvel sonoro.
Emily e eu conversávamos junto da janela, a respeito de livros e de pessoas conhecidas. A moça mantinha-se bastante séria e eu contagiado, compartilhei sua gravidade.
Daí a pouco, depois de ter mungido e dado de comer às vacas, George veio ter conosco. Lettie estava ainda sentada ao piano, e ele perguntou-lhe por que não tocava qualquer coisa mais leve - o que a fez voltar-se na banqueta e responder-lhe em tom um tanto seco. A aparência dele, contudo, dir-se-ia ser bastante para lhe dispensar as palavras ariscas, como se fossem pássaros assustados... George vinha diretamente da copa, onde fora lavar-se, e ficara atrás de Lettie, distraído, a enxugar os braços, com a camisa aberta no peito e as mangas arregaçadas. Estava de botas, polainas sujas e calções rasgados nos joelhos; ao vê-lo assim, ela sentiu certo embaraço.
- Por que não toca qualquer coisa mais moderna? insistiu ele, esfregando a toalha nos ombros, por baixo da camisa.
Lettie repetiu as palavras que acabara de ouvir, como um eco: a sua atenção ia toda para os movimentos que ele fazia, fascinada pelo vigor daqueles braços e pela brancura e solidez do peito. Depois de ter examinado a transição brusca da pele exposta ao sol para a da garganta, muito alva, encontrou-se, de repente, com o olhar de George e voltou-se no mesmo instante para o piano, enquanto o sangue lhe escaldava as orelhas, cobertas, por felicidade, com uma profusão de caracóis.
- Que devo tocar, então? murmurou ela, passando os dedos pelas teclas, ainda perturbada.
O rapaz foi buscar a uma pilha de músicas um álbum de canções e apresentou-lhe.
Vendo tão perto de si os braços dele, Lettie estremeceu levemente e perguntou:
- Que deseja cantar?
- O que for do seu agrado.
- Uma canção de amor?
- Se gosta... Está bem, uma canção de amor, concordou num tom que denunciava insinuação demasiado evidente, o que fez com que minha irmã se remexesse na banquinha e se conservasse calada. Por fim, Lettie começou a execução da peça escolhida, que era Tit Willow, de Sullivan. A voz de George, baixo sem grande profundidade, podia considerar-se tolerável; o certo é que ele cantava com prazer. Depois da frase bebe-me com os teus olhos, Lettie voltou-se e quis saber se ele gostava da letra. Que lhe parecia um pouco idiota, foi o comentário do cantor; mas disse isto olhando-a com olhos brilhantes, como se estivesse a desafiá-la.
- É que você não tem vinho no olhar, para que possa fazer um brinde com ele, disse a moça, correspondendo ao desafio com a chama azul das suas pupilas. Logo a seguir baixou as pestanas, e George riu muito senhor de si, perguntando como é que ela sabia semelhante coisa.
- Porque, esclareceu Lettie, exprimindo-se devagar e observando-o com fingido desdém, porque seus olhos não se alteram quando os fito. Acho que as pessoas devem falar com os olhos: há quem os tenha tão eloqüentes, tão expressivos! Assim dizendo, continuou a examiná-lo, calculando o lugar em que ele a teria - tanto o rosto como o cabelo, que parecia sempre despedir luz - e a idéia que fazia quanto à sinceridade das palavras agora ouvidas. Mas o rapaz soltou uma gargalhada
breve, mais desajeitada e menos persuasiva ainda que as do costume. Lettie virou-se, então, rindo também.
- Não há nada neste álbum que seja bom para cantar, disse ele, folheando com ar descontente.
Fui buscar outro, e ela cantou Should he upbraid. Tinha bela voz de soprano e a canção agradou bastante a George, que se aproximou dela. Quando terminou, lançou em volta da sala um olhar travesso e cintilante, e viu que o lavrador a contemplava maravilhado.
- Gosto disto, declarou ela, numa certeza cheia de superioridade.
- Gosto, confirmou o rapaz, com ênfase, salientando assim o triunfo da cantora.
Aproveitando a maré, Lettie fez-lhe várias observações acerca do trecho acabado de interpretar, e George, sempre sorridente, não se atreveu logo a responder antes de considerar o significado exato daqueles comentários.
- Você conserva os sentidos meio despertos, meio adormecidos, acrescentou minha irmã.
- Acha que sim?
- Sem dúvida. Você aprecia, em especial, a comida e o conforto. Não é verdade?
- E você não aprecia? retrucou ele, um tanto humilhado.
- Já se sabe! Agora venha virar-me as páginas enquanto toco esta música. Quando estiver na hora, faço-lhe sinal. Traga uma cadeira.
-
Principiou uma romança de Schubert. George inclinou-se sobre o ombro da pianista a fim de poder voltar as páginas; e ela, sentindo o cabelo do rapaz roçar-lhe a face, ergueu a vista para o seu companheiro e presenteou-o com um sorriso, sem deixar de tocar. Atingindo o fim da página, fez o sinal combinado, mas George estava distraído.
- Agora disse ela, já impaciente, enquanto ele tentava, com um gesto brusco, penitenciar-se do esquecimento. Lettie, porém, afastou-lhe a mão, voltou a folha sem ajuda e prosseguiu na música.
- Desculpe, murmurou o rapaz, corando.
- Não faz mal, replicou ela, sem parar e sem o ver. Chegando ao fim, pediu que lhe descrevesse as sensações que experimentara durante a execução da música.
- Ah, fiz triste figura! asseverou ele, atrapalhado.
- Estimo muito saber... mas não era isso que eu perguntava. Diga-me, antes, o que sentiu.
- Não sei... se senti alguma coisa, retorquiu George, medindo as palavras, como de costume.
- Direi por você. Você ficou dormindo ou então é insensível. A música, realmente, não lhe desperta nada lá no íntimo? Que pensa a esse respeito?
George riu mais uma vez, refletiu uns instantes, e voltou a rir.
- Ora! exclamou, evitando confessar os seus verdadeiros sentimentos, penso que você tem bonitas mãos e que deve ser agradável sentir o seu contato, tal como a do seu cabelo na minha cara.
Depois de ter escutado esta declaração, Lettie empurrou-o discretamente e afastou-se dele, sentenciando:
- Você está cada vez pior.
Atravessando a sala, dirigiu-se para o sofá onde eu conversava com Emily e passou-me o braço de roda do pescoço.
- Não serão horas de voltarmos para casa? perguntou.
- Oito e meia... parece-me cedo.
- Pois eu... eu acho que é hora de recolher.
- Não vão ainda, disse George. - Fiquem para cear, pediu Emily.
- Mas eu creio que... Respondeu Lettie, hesitante.
- Que há assuntos mais importantes a tratar, intervim eu, concluindo-lhe a frase.
- Não é isso... Hesitou de novo e, de súbito, bradou furiosa:
- Cyril, não seja aborrecido!
- Vão a algum lugar? indagou George, em tom humilde.
- Que idéia! respondeu Lettie, ruborizada com a pergunta.
- Então fiquem para cear convidou ele por seu turno. Lettie sorriu e condescendeu. Fomos para a cozinha, onde encontramos o Senhor Saxton a ler, tendo aos pés, e fingindo que dormia, o seu enorme bull terrier que dava pelo nome de Trip. No canapé repousava muito sossegado o gato preto, viúvo de Nickie Ben. A Senhora Saxton e Mollie recolhiam-se precisamente nessa ocasião aos seus respectivos quartos. Despedimo-nos delas e sentamo-nos. A criada já se havia ido embora, de modo que foi Emily quem teve do preparar a ceia.
- Ninguém toca tão bem naquele piano como ela, disse o Senhor Saxton, sorrindo para Lettie com admiração e deferência. O dono da casa tinha
muito orgulho naquele móvel antigo e majestoso, e costumava observar que o piano estava cheio de boas músicas para aqueles que as sabiam extrair de lá. Lettie replicou, risonha, que decerto poucas pessoas o haviam experimentado, de maneira que a honra não era muito grande.
- Que tal acha a voz do nosso George? perguntou o pai, um tanto vaidoso, embora terminasse a frase com uma risadinha desconcertante.
- Quando estiver apaixonado há de cantar muito bem, foi a resposta da interpelada.
- Quando estiver apaixonado! repetiu o homem, rindo alto, deveras satisfeito.
- Sim, senhor, no dia em que encontrar a pessoa que ele deseja.
George meditou no caso e soltou, por sua vez, uma gargalhada.
Emily, que punha a mesa, disse então:
- Há pouca água em casa.
- Com os diabos! exclamou o rapaz. Já mudei de botas.
- Não será muito difícil tornar a calçá-las, ponderou a irmã.
- Annie podia tê-la ido buscar. Para que está ela aqui? retrucou ele, indignado.
Emily olhou para nós, abanou a cabeça e voltou as costas ao irmão. O pai apressou-se a oferecer os seus préstimos:
- Depois da ceia, irei eu.
- Depois da ceia? perguntou a moça, admirada e divertida ao mesmo tempo.
George levantou-se e arrastou os pés, contrariado. Precisava de ir ao poço, que ficava num bosque próximo, e desagradava-lhe a idéia, depois de ter se aquecido ao calor da cozinha.
Tínhamos acabado de sentar à mesa quando Trip começou a ladrar à porta.
Fica quieto, intimou-lhe o dono, lembrando-se de que havia gente dormindo a essa hora.
Mas levantou-se e foi atrás do cão. Era Leslie, e queria levar minha irmã para casa, sem demora. Ela se opôs terminantemente, de modo que ele se viu obrigado a entrar e sentar à mesa, onde tomou uma
xícara de café e comeu uma fatia de pão com queijo. Durante esse tempo dirigiu-se sempre a Lettie, falando-lhe de um garden-party que estava programado para a próxima semana, em Highclose.
- A benefício de quê? interrompeu o Senhor Saxton.
- benefício? repetiu Leslie, admirado.
- Sim, dos missionários, ou dos desempregados, ou de quê?
- Trata-se de um garden-party e não de um bazar de caridade, esclareceu Leslie.
- Ah, coisa particular... Julguei que fosse assunto de igreja, pelo qual sua mãe se interessasse. Ele é muito apegada à igreja, não é verdade?
- Decerto, respondeu Leslie, que passou a expor a Lettie o seu plano de um torneio de tênis no qual pretendia que ela tomasse parte. Mas nessa ocasião percebeu que estava a monopolizar a conversa e, voltando-se para George - que tentava tirar com a faca um pedaço de queijo que se prendera aos dentes - perguntou por cortesia:
- Joga tênis, Senhor Saxton? Sua irmã sei que não joga...
- Não, replicou George, ainda às voltas com a faca e o queijo, nunca aprendi habilidade de senhoras.
O visitante voltou-se então para Emily, que empurrava dois pratos a fim de esconder uma nódoa da toalha, e surpreendeu-a com a seguinte declaração:
- Minha mãe gostaria muito que fosse ao garden-party.
- Agradeço reconhecida, mas é impossível. Tenho a escola...
- São muito amáveis, atalhou o pai, sorrindo.

George, nessa altura, mostrou uma expressão desdenhosa.
Terminada a ceia, Leslie olhou para Lettie como que a informá-la de que estava pronto a partir. Ela, contudo, fingiu não entender e pôs-se a discutir animadamente com o Senhor Saxton, que estava encantado. George, a quem o fato lisonjeava, juntou-se à conversa com evidente satisfação. O silêncio amuado de Leslie começou a pesar sobre nós todos. De aí a pouco George disse ao pai:
- Não me admirava nada que a vaca ruiva parisse esta noite.
Ao ouvir isto, Lettie despediu um olhar faiscante, prova de que estava divertidíssima.
- É também a minha impressão, respondeu o dono da casa.
- Tem os sinais todos, continuou o filho, depois de uma pausa.
- George! gritou a irmã.
- Vamo-nos embora, disse Leslie.
Desviando a vista para o lado, George encontrou os olhos de Lettie e sorriu com malícia.
- Empresta-me um xale, Emily? perguntou. Não trouxe nenhum agasalho, e suponho que o vento arrefeceu.
Emily, no entanto, viu-se forçada a lamentar a sua pobreza em matéria de xales, e Lettie não teve remédio senão enfiar um casaco preto por cima do seu vestido de verão. Ficava-lhe tão mal que todos desataram a rir, com o que Leslie não pareceu muito satisfeito: detestava vê-la servir de chacota, e procurou rodeá-la de todas as atenções possíveis, ajudando-a a prender a gola do casaco com o seu alfinete de pérola, da gravata, e recusando o que Emily acabara por descobrir, depois de várias buscas. Por fim saímos.
Leslie ofereceu o braço à minha irmã, afetando um ar de dignidade injuriada. Ela, porém, não o aceitou e ele principiou a queixar-se.
- Esperava que estivesse em casa, conforme prometera...
- Desculpe, mas não prometi nada.
- No entanto, sabia que eu vinha.
- E acabou por me encontrar!
- Sim, encontrei-a... namorando aquele tipo tão ordinário.
- Realmente, ele chama as coisas pelos seus nomes...
- O que lhe agrada, segundo vejo!
- Não me importa nada, replicou ela, com desdenhosa indiferença.
- Pensei que os seus gostos fossem mais requintados, retorquiu ele, sarcástico. Ainda bem que acha isso romântico...
- Muitíssimo!
- Detesto ouvir uma mulher dizer barbaridades, declarou Leslie, que tinha o horror de certas classes.
- E eu gosto tanto! insistiu Lettie, agravando assim a cólera do outro.
Leslie estava furioso.
- Estimo saber que George a diverte! rematou ele.
- Eu não sou difícil de contentar... A paciência do rapaz parecia esgotada.
- Resta-me a consolação, observou com frieza, de saber que não lhe agrado.
- Ora essa! Diverte-me também.
Depois disto, Leslie não falou, preferindo, com certeza, não a divertir.
Minha irmã enfiou o braço no meu e, com a mão livre, segurou a saia para evitar as ervas úmidas. Quando o seu admirador já se havia despedido, no extremo da floresta, ela observou:
- É tão criança!
- Chame-o antes pedaço de asno, respondi.
- Deixa lá... Sempre é mais amável do que o meu Taurus.
- Ah... o teu boi! confirmei eu, soltando uma gargalhada.

 

CAPÍTULO 3

 

No domingo que se seguiu à nossa visita ao moinho Leslie apareceu-nos de manhã em casa, solenemente vestido e afetando um ar não menos solene. Introduzi-o na sala e deixei-o só. Em geral, ele tomava a iniciativa de ir até à escada, sentar-se num degrau, e chamar dali por minha irmã. Mas, nesse dia, conservou-se mais reservado; fui eu quem levou a notícia da sua chegada. Lettie, que estava a acabar de se vestir, perguntou-me:
- E em que estado se encontra ele?
- Não perguntei.
Minha irmã riu-se e foi matando o tempo até serem horas de sair para a igreja. Só então desceu até aonde estava o seu galanteador e cumprimentou-o com uma reverência cheia de dignidade. Leslie ficou perplexo, mas não disse nada. Atravessando a sala, ela dirigiu-se à janela onde havia lindíssimos gerânios.
- Preciso enfeitar-me, declarou.
Era costume de Leslie trazer-lhe flores. Como não o fizera nesse dia, minha irmã sentiu-se magoada. Além disso, sabia ela quanto o visitante embirrava com o cheiro e com a brancura opressiva daqueles gerânios - e foi bastante para que, sorrindo-lhe, prendesse alguns no vestido, sobre o peito, e lhe dissesse:
- São lindos, não são?
Leslie murmurou qualquer coisa que significava concordância. Nessa altura apareceu minha irmã, que o saudou efusivamente e lhe perguntou se não a acompanhava à igreja.
- Se me permite... respondeu o rapaz.
- Está muito discreto hoje...
- Hoje? repetiu ele.
- Acho que a modéstia fica mal a um moço, continuou minha mãe. Vamos, que já é tarde.
Durante todo aquele dia, e até de noite, Lettie usou os gerânios.
À hora do chá convidou Alice Gall e pediu que eu me encarregasse de sora taureau quando o animal terminasse a sua faina da lavoura.
O tempo manteve-se quente e abafadiço. Quando atravessamos o regato, o sol avermelhava-se para as bandas do poente e começavam a exalar-se os aromas da noite, espalhando-se misteriosamente no ar calmo. Um clarão amarelo e oblíquo, do astro que morria, conseguiu furar o espesso dossel de folhas e veio aderir aos cachos das bagas de sorveira. As árvores conservavam-se imóveis, preparando-se para o sono. Pálidas e pensativas, algumas orquídeas cor-de-rosa olhavam, junto da vereda, para a fila rubra das búgulas, cujas derradeiras flores, cintilando no caule verde, ansiavam pela carícia do sol.
Eu e George vagueamos silenciosos, temendo perturbar a tranqüilidade da floresta. Mais perto de casa ouvimos um murmúrio que vinha do meio das árvores, do lugar onde havia um tronco tombado que o musgo rendilhara e no qual poderiam sentar-se dois namorados.
- Apaixonados a discutirem com um poente destes! comentei eu, enquanto prosseguíamos o nosso caminho. Mas, ao chegarmos à árvore caída, não vimos ali nenhuns amantes, - apenas um homem a dormir e a ressonar. A cabeça grisalha, de onde escorregara o
boné, apoiava-se num molho de gerânios que decoravam o tronco musgoso, sua roupa era de boa qualidade, mas amarrotada e suja e a cara do homem indicava, na sua palidez, anos de dissipação e de doença. Ao respirar, a barba cheia de fios brancos subia e baixava, e os lábios desgraciosos moviam-se numa conversa imperceptível. Devia estar lembrando algum episódio de sua vida, contorcendo as feições, gemendo - e falando talvez para uma mulher. Era inegável que o dorminhoco sofria.
Então abriu a boca, numa careta horrível, e mostrou os dentes amarelos. Falava agora mais alto, de modo que se compreendia alguma coisa do seu monólogo, muito pouco amável. Comecei a pensar na maneira de terminar com a cena, quando de súbito, do meio da floresta, nos alcançou o guincho de um coelho apanhado por alguma doninha. O homem acordou com um "Ah!" estridente, olhou em volta, consternado, e, sucumbindo de novo à sua fraqueza, murmurou:
- Sonhei outra vez.
- Não parece que o sonho fosse muito agradável, observou George.
O desconhecido encolheu-se, olhou-nos e perguntou, num tom quase de escárnio:
- Quem são os senhores?
Sem respondermos, esperamos que ele se mexesse. O homem, contudo, permanecia imóvel, espantado para nós.
- Com que então sonhei! exclamou de ai a instantes, com voz fraca. Sonhei, sonhei! Suspirou profundamente e ajuntou, escarninho: Levanto suspeitas?
- Não, disse eu, mas com certeza se enganou no caminho. Que estrada tenciona seguir?
- Quer que eu me vá embora?
Tomei um ar condescendente, sorri e repliquei:
- Não. me interessam os seus sonhos. Mas a verdade é que por aqui não há nenhum caminho.
- Então para onde vai o senhor?
- Eu? Para minha casa, respondi já sério.
- Pertence à família Beardsall.
- Pertenço, volvi eu ainda com maior seriedade. No íntimo, pensava quem poderia ser aquele indivíduo.
O homem ficou olhando-me durante uns momentos. Escurecia em torno do bosque. Então, pegando numa bengala de madeira preta e castão doirado, o desconhecido levantou-se. A bengala chamava atenção, e eu pus-me a examiná-la enquanto o seu possuidor se afastava pela vereda, direto ao portão. Com ele, saímos na estrada; ao chegarmos a um ponto desarborizado, onde os raios do poente nos davam em rosto, o velhote virou-se para trás e observou-nos de perto, abriu a boca tal se quisesse falar e
tornou logo a fechá-la. De aí a pouco disse:
- Adeus.

- Precisa de alguma coisa? perguntei, vendo-o cambalear.
- Não. Adeus.
Seguimos cautelosos na escuridão e vimos, na estrada real, os faróis de um veículo: seguiu-se o estalo de uma portinhola e o matraquear da carruagem que se afastava.
- Quem diabo será ele? comentou George, divertido.
- Parece-me que não fiz boa figura, ajuntei.
- Parece?
Esta observação do meu amigo denotava ao mesmo tempo surpresa e indulgência.
Voltamos resolvidos a não dizer nada do caso às senhoras. Minha mãe, Alice e Lettie esperavam por nós junto da janela.
- Demoraram tanto! exclamou a última. Vimos o pôr do sol, que foi magnífico. Olhem, o alto da colina ainda está ardendo... Que fizeram vocês?
- Aguardamos que o teu querido Taurus acabasse de trabalhar.
- Cala-te, ordenou-me depressa; e, voltando-se para George, minha irmã perguntou:
- Vem disposto a entoar hinos?
- Tudo que quiser.
- Ah, que simpático! interveio Alice, irônica. Era uma moça baixa e roliça, pálida, de olhos atrevidos. A família da mãe - os Wylds - tinha fama de irritar a burguesia tanto pela sua independência como pelo excesso de integridade. Alice, filha de um homem admirável e de uma mulher que amava apaixonadamente o marido, mostrava-se estouvada à superfície mas no fundo era dócil e correta. A mãe dela e a minha estavam ligadas por íntima e segura amizade e Lettie dispensava à filha a maior das simpatias; mas isso não impedia que minha irmã censurasse muitos excessos de Alice, embora às vezes se deliciassem com eles - quando não fossem
presenciados por gente superior. Havia homens que adoravam a sua companhia, embora evitassem ficar a sós com ela.
- Responderia a mim a mesma coisa? inquiriu Alice.
- Depende da conversa... volveu George, bem disposto.
- Que homem tão prudente! Eu prefiro uma pedra no sapato do que um homem cauteloso. Não concordo, Lettie?
- Isso é conforme o passeio que eu tivesse de dar, replicou-lhe a amiga. Mas, se não fosse preciso coxear muito...
Alice afastou-se rapidamente de minha irmã, a quem ela às vezes considerava irritante. E, falando então comigo, notou:
- Acho-o mal humorado, Cyril. Alguém o beijou?
Ri, interpretando pelo pior lado a sua malícia feminina. E retorqui:
- Se assim fosse, eu devia estar contente.
- Então alegre-se! acudiu ela, tocando-me de leve no queixo. Em seguida recomeçou a falar com George: - Como vocês estão solenes! Que aconteceu? Diga alguma coisa, antes que eu comece a sentir-me nervosa.
- Que hei-de-dizer? disse ele, com os cotovelos fincados nos joelhos.
- Meu Deus! gritou Alice, já impaciente.
George, todavia, recusou-se a satisfazer sua curiosidade, limitando-se a sorrir, um pouco inquieto. Para disfarçar, admirou os quadros, a mobília e tudo quanto havia na sala. Como Lettie tivesse levantado para compor as flores na prateleira do fogão, ele aproveitou o ensejo para observá-la de perto. Minha irmã estava vestida
de seda azul, com rendas na garganta e nos punhos. Alta como era, a sua figura tinha esbelteza; e o cabelo, fino e encaracolado, tornava-a mais bonita. George não seria mais alto do que ela, antes parecia baixo a seu lado, devido à robustez do corpo: mas não se podia considerá-lo desprovido de elegância, embora não o ajudasse a posição que tomara na poltrona, um tanto rígida. Os movimentos que fazia é que denotavam garbo.
Momentos depois mamãe chamou para a ceia.
- Venha, disse Lettie a George, conduza-me até a mesa. O rapaz levantou-se, mas sentia-se acanhado.
- Dê-me o seu braço, continuou ela, para arreliar George atendeu corando. Afligia-o aquela pele fresca semi-oculta pela renda, que lhe roçava a manga do casaco.
Quando estávamos sentados, Lettie pegou a colher e perguntou ao seu companheiro o que desejava. Ele hesitou olhando desconfiado para os pratos desconhecidos que via à sua frente; e respondeu que preferia queijo. Insistimos em que provasse dos manjares novos.
- Tenho a certeza de que gosta de outras coisas, notou Alice em tom de mofa. Ele vacilou de novo, não sabia distinguir nada daquilo, sentiu-se confuso; dir-se-ia que perdera o paladar. Alice pediu que se servisse de salada.
- Muito obrigado, não gosto.
- Oh, George! É capaz de me responder assim, quando sou eu que lhe peço?
- Já comi uma vez, tartamudeou ele. Foi alface com vinagre. .. mas não gostei.
- A nossa é doce como mel. Olhe que não tem vinagre nenhum.
- Acredito, replicou, para ser agradável.
- Ora ouçam. O nosso George acreditou em mim. Era isso que eu queria.
George esboçou um sorriso amarelo. Tinha a mão sobre a mesa, com o polegar escondido entre os outros dedos, e apertava-o nervosamente. Por fim o jantar acabou, e ele, apanhando o guardanapo que caíra ao chão, começou a dobrá-lo. Lettie parecia também embaraçada: entretivera-se aborrecendo o seu convidado, mas o acanhamento deste conseguira
torná-la aborrecida. Agora sentia-se triste e com remorsos; para dissipar a melancolia, resolveu ir até ao piano, como era, aliás, seu costume em casos semelhantes. Se estava zangada, tocava fragmentos de Tchaicovski; se se considerava infeliz, executava
Mozart. Nesse momento tocou Handel de uma forma que sugeria castigos do céu nas notas longas e, nos trinados, lembrava alguém valsando na escada de Jacob, como as donzelas dos quadros de Blake.
Quantas vezes eu disse a minha irmã que ela se servia escandalosamente do piano para exaltar os seus sentimentos! Em geral, fingia não me ouvir; mas, nessa noite, surpreendeu-me com um súbito acesso de lágrimas. Em atenção a George, tocou depois a Ave Maria de Gounod, calculando que a melodia daquela música faria bem ao rapaz e o levaria a esquecer os pequenos aborrecimentos. E eu, observando o efeito desse encantamento fácil, não pude deixar de sorrir. Ao terminar, Lettie demorou por um minuto os dedos sobre as teclas; depois girou na banqueta, fitou George diretamente nos olhos e pareceu prometer-lhe um sorriso. Mas baixou logo a vista e disse:
- Está cansado de me ouvir.
- Não, não estou, apressou-se ele a responder, abanando a cabeça.
- Gosta mais de música do que de salada? perguntou ela num assomo repentino de alegria.
George mirou-a, numa expressão embevecida, e não replicou. Quando olhava e sorria de modo inesperado, parecia inundar as pessoas num banho de ternura; contudo, não era belo, e quase sempre conservava um aspecto taciturno.
- Então vou continuar, declarou minha irmã, voltando-se para a frente.
Tocou trechos disto e daquilo, de modo distraído e, num movimento brusco, depois de ter esboçado uma espécie de queixa sentimental, abandonou o piano e foi enterrar-se numa cadeira baixa, junto do fogão. Uma vez ali, procurou George com os olhos; ele teve consciência daquela súplica, mas não se atreveu a ceder e ficou torcendo o bigode.
- Você, no fim de contas, não passa de uma criança, disse-lhe ela então, muito calma. O lavrador perguntou-lhe porque.
- Sim, uma criança, repetiu ela, recostando-se no espaldar da cadeira e sorrindo com ar indolente.
- Nunca tinha me lembrado disso, observou George, com perfeita seriedade.
- Palavra?
- É como digo, confirmou ele, tratando de reunir suas recordações.
Lettie riu-se com vontade e prosseguiu:
- Está em crescimento.
- Como?
- Em crescimento.
- Sou capaz de jurar que nunca fui criança.
- Escute: a sua infantilidade não o impede de ser homem jôrio. Outro qualquer mal se atreveria a tanta simplicidade, com medo de perder o ar digno. Tolices!
O rapaz achou a explicação divertida e, como de costume, pôs-se a matutar no caso.
- Gosta de estampas? perguntou ela de repente, já cansada de olhá-lo.
- Mais do que tudo.
- Menos do que jantar, aquecer, se espreguiçar-se...
Sentindo-se humilhado com aquela apreciação, George mordeu lábios, sem replicar; e Lettie, arrependida, sorriu com doçura.
- Então vou mostrar-lhe algumas.
Dizendo isto, levantou-se e saiu da sala. O rapaz teve, no entanto, a impressão de que se aproximava mais dela. Daí a pouco voltou carregando uma pilha de livros enormes.
- Isso é que é força! exclamou ele.
- Muito amável...
George olhou desconfiado, para ver se ela estaria fazendo troça.
- É tudo quanto sabe me dizer? perguntou Lettie.
O rapaz deu uma resposta vaga, para não se comprometer.
- Conheço, prosseguiu ela, pondo os livros sobre a mesa, quais os pensamentos dos homens pela maneira como me observam. Ajoelhou defronte do lume
e continuou: Alguns olham para o cabelo, outros à minha maneira de respirar, ou reparam no nariz... e outros, mas poucos, fitam-me nos olhos para ler o
que eu penso. Você não pertence a este último grupo. Para você sou um espécime de outra natureza: muito forte! Ah, que homem primitivo!
George pôs-se a entrelaçar os dedos. Ela desconcertava-o.
- Traga a sua cadeira para cá, ordenou ela, sentando-se à mesa e abrindo um dos livros.
Falou depois sobre cada gravura, insistindo em querer saber a opinião dele. Às vezes discordavam e o rapaz parecia pouco convencido; outras vezes Lettie ficava escandalizada com as opiniões que ouvia.
- Se, notou ela, viesse agora um bretão de outros tempos, vestido de peles, para me contrariar como você, não seria justo que o aconselhássemos a não fazer figura de parvo?
- Não sei...
- Pois devia saber! Nunca sabe nada.
- Como é, então? Minha irmã desatou a rir.
- A pergunta foi tão fácil! Olhe, você podia ser mais. .. vivo.
- Muito obrigado, respondeu ele, em tom irônico.
- Ah, julga que é um modelo de perfeições? Fique sabendo que o acho indolente.
- Sim, é um molengão, interveio Alice, que nesse instante reentrava na sala, pronta para partir. Não é capaz de sacudir-lhe Lettie?
- Não me sinto com esse direito.
- Adeus a todos, continuou Alice. Vamos, Cyril, está um luar de primeira ordem. Boa noite.
Acompanhei-a a casa, e os outros dois ficaram olhando as gravuras.
George tinha inclinações românticas, gostava de Copley, Fielding, Cattermole e Birket Foster. Girtin e David Cox não lhe diziam nada. Em certa altura puseram-se a apreciar George Clausen.
- Este é um verdadeiro realista, disse Lettie. Torna belas as coisas vulgares, vê o mistério e a grandeza que nos envolvem ainda quando fazemos
trabalhos subalternos. Se eu montar no campo, a seu lado...
Aquilo era novo para ele e feriu a sua imaginação. A estampa em discussão representava uma aquarela de Clausen intitulada Mondando. Lettie não largou o assunto:
- A cor poente é mesmo assim, e, se olhar para a terra, notará que existe nela como que um oiro quente... Compreenda o colorido, isso leva-lo-á a perceber tudo. Você, por enquanto, está cego, é como um recém-nascido, só deseja dormir, vive muito materialmente: é como um piano que só tivesse as notas mais vulgares. O pôr do sol não significa nada para si, é uma coisa que acontece todos os dias... Não me obrigue a torturá-lo. Se houvesse vindo ao mundo numa casa onde alguma coisa o oprimisse, alguma coisa que não pudesse entender; se jamais acreditasse ou duvidasse... De qualquer destes modos, podia ser um homem e não uma criança. Não, não tem crescido, é como os bulbos que passam todo o verão a inchar, a inchar mas que nunca dão flor. Quanto a mim, a flor já apareceu, mas quer continuar a crescer. O que é demasiadamente alimentado não floresce. Você tem de sofrer antes de desabrochar. Quando a morte se aproxima de uma planta, instiga-a ao amor da floração. Decerto quer saber se a morte me tocou já. Ouça: nesta casa há sempre a sensação da morte. Creio que a minha mãe, antes de eu nascer, odiava o meu pai: havia pois, nas suas veias, uma corrente mortífera. Isso tem sua importância...
George ouvia, de olhos esbugalhados e boca aberta como uma criança que pressente a história que lhe contam mas não compreende as palavras. Ela, por fim, pousou nele o olhar, e começou a rir suavemente. Depois, batendo-lhe de leve na mão, murmurou:
- Desorientei-o? Foi grande amabilidade a sua ter-me escutado. Não há nenhuma intenção nisto tudo... tão fora da realidade!
- Mas... por que o disse?
- Que pergunta! Agora voltemos à vaca fria. Estamos a olhar um para o outro como dois patetas.
Falaram de novo sobre as reproduções de quadros. De súbito, George exclamou:
- Repare!
Era o Idílio de Maurice Griffinhagen.
- Que tem? indagou ela, corando lentamente. Lembrara-se do seu próprio entusiasmo quando vira aquilo pela primeira vez.
- Bonito, não acha? disse ele, mirando com olhos brilhantes a sua interlocutora. O seu sorriso, que não era sinal apenas de satisfação, mostrava-lhe
os dentes muito brancos.
- O quê? volveu Lettie baixando a cabeça, um tanto confundida.
- Aquela mulher... receosa... e apaixonada!
- E natural que sinta certo medo ao ver o bárbaro em todo o seu esplendor, envolto em peles e tudo mais...
- Mas não gosta disto?
Minha irmã encolheu os ombros, replicando:
- Namore a primeira mulher que encontrar. Na altura em que as papoulas avermelharem os campos, já ela estará caída nos seus braços. Haverá necessidade de mais alguma coisa, além de a trazer meio assustada?
Enquanto falava, ia brincando com as folhas do livro, sem olhar para o seu companheiro.
- No entanto... gaguejou ele, de olhos cintilantes, seria... antes...
- Oh, santa inocência!
- Mas, insistiu o rapaz, eu não sei se gostaria de qualquer mulher que eu soubesse que...
- Querido Galaaz, redarguiu Lettie, em voz galhofeira, acariciando o queixo com o dedo. Você devia ter sido monge... ou mártir. Devia ser frade cartuxo.
George riu, sem fazer caso daquele discurso. Experimentava uma sensação nova para ele, como que um fogo a arder no peito e nos músculos dos braços. Ofegante, olhou para os seios de Lettie, e estremeceu.
- Está estudando o seu papel? perguntou ela.
- Não, mas... Tentou fitá-la, mas não o conseguiu. Encolhendo-se todo, deixou pender a cabeça, enquanto ela perguntava, cheia de curiosidade:
- Mas o quê?
Já mais calmo, o lavrador ergueu a vista: e os seus olhos, grandes e expressivos, pareciam queimá-la, como se deles irradiasse uma labareda que atingisse as faces de Lettie. Ela é que, por sua vez, dobrou a cabeça, pondo-se a alisar o vestido.
- Nunca tinha visto esse quadro? inquiriu em voz baixa. E ele, cerrando as pálpebras e retraindo-se envergonhado, murmurou:
- Não, nunca o tinha visto.
- É para admirar. Trata-se de uma obra vulgarizada.
- Ah, sim?
Este pretexto para conversa acabou por se esgotar.
Lettie ergueu de novo o olhar e encontrou o dele. Fitaram-se por um momento antes que baixassem mais uma vez a cabeça. Era, para ambos, verdadeira tortura essa contemplação muda - dor recolhida que eles se obrigaram a suportar nesse instante e que depois lhes encheu as veias de um fluido ígneo, assustador. Lettie, alarmada, procurou dizer qualquer coisa.
- Suponho que o quadro está em Liverpool, foram as suas primeiras palavras.
George não se atreveu a perder a deixa. Tinha consciência da situação e achou necessário replicar:
- Ignorava que houvesse um museu em Liverpool.
- Há, sim, e muito bom.
Os olhares encontraram-se noutro relance, mas ela voltou logo a cara, e ele fez outro tanto. Assim, com a vista desviada, conversaram ainda um pouco. Por fim, Lettie levantou, pegou os livros e levou-os consigo; à porta voltou-se e aproveitou o ensejo para dizer:
- Está admirando a minha força?
A sua atitude não deixava de ser bela. Como levantara muito a cabeça, via-se-lhe a curva da garganta descendo suavemente até o peito, que se entumescera com o esforço dos braços a segurarem os livros. George contemplou-a, e nos lábios de ambos adejou um sorriso. Lettie ergue mais o pescoço, como se estivesse bebendo, e um e outro sentiram o sangue latejando-lhes nas fontes. Então, com um leve tremor, ela virou a cara e desapareceu da sala.
Enquanto minha irmã esteve ausente, George ficou torcendo o bigode. Pouco depois ela chegou; ao atravessar o vestíbulo, viera falando sozinha, em francês. Tendo visto Sarah Bernhardt representar a Dama das Camélias e Adriana Lecouvreur, Lettie aprendera o estranho tom de voz da grande atriz e costumava imitá-la de vez em quando. Nesse momento, dando de cara com o rapaz, riu-se para ele - que lhe ripostou fosse o que fosse - e continuou a pronunciar palavras na mesma língua, com um
sotaque cheio de asperezas. Aquilo soou de forma singular e desconcertante. Notei (como muitas vezes mais tarde) que havia no rosto de George uma perplexidade dolorosa, tal a sensação de qualquer coisa que o magoava e que ele não conseguia entender.
- Devemos parecer loucos uma vez ou outra, disse ela, para mostrar que ainda não envelhecemos.
- Gostava de ter compreendido, disse George, ainda de semblante triste.
- Coitado! exclamou Lettie, divertida. E tão modesto! Já vai embora, realmente? Acho-o tão melancólico... Vão julgar, na sua casa, que não lhe demos ceia.
- Ceei uma quantidade de coisas... retorquiu ele, agora sorridente, querendo aventurar-se a uma frase de efeito. Mas estava excitado em demasia.
- ... de coisas horrorosas, atalhou a moça, rematando-lhe o período. E este final ainda é o pior de tudo.
- Acha?
Fitaram-se por momentos, ambos risonhos.
- Muito pior. Esperaram uns segundos, sem dizer mais nada. George olhou-a de novo.
- Adeus, disse ela, estendendo a mão. A voz denotava, ao mesmo tempo, ternura e rebeldia. George tornou a observá-la, de olhos chamejantes,
e depois agarrou-lhe a mão, demorando-a na sua, apertando-lhe os dedos... Envergonhada de haver sido tão expansiva, Lettie baixou o olhar e, nessa
ocasião, viu que o rapaz tinha um ferimento no polegar.
- Que grande golpe! bradou, enquanto fazia, trêmula, uma pequena pressão no dedo magoado.
George soltou uma risada.
- Não dói? perguntou ela, muito solícita.
Ele tornou a rir. E respondeu naturalmente, como se aquele polegar não lhe merecesse nenhuma consideração:
- Nada...
Trocaram mais um sorriso. Então, com um movimento brusco, George quebrou o encanto, e afastou-se.


CAPÍTULO 4

 

Chegara o Outono. As dálias-vermelhas, que em geral se conservam vivas e luminosas até tão tarde, apareceram com as corolas murchas e apodrecidas.
Uma tarde, quando eu passava defronte da porta do correio, chamaram-me de lá de dentro e entregaram-me uma carta para minha mãe. Observei o sobrescrito, cuja caligrafia tortuosa me causou um mal-estar inexplicável, meti a carta no bolso e depressa me esqueci dela. Em casa, querendo lembrar-me de qualquer coisa que interessava à minha mãe, recordei-me do fato e entreguei a carta. A destinatária reparou também no sobrescrito e começou a rasgá-lo nervosamente. Chegou-se depois mais para a luz e, de olhos semicerrados, pôs-se a esquadrinhar o conteúdo. Fui buscar-lhe os óculos e ela mal me agradeceu. Suas mãos tremiam. Leu a carta num instante, em seguida sentou-se, voltou a ler, e continuou a olhar para o papel.
- Que é, mãe? perguntei-lhe.
Não me respondeu, e ficou na mesma posição. Aproximei-me dela, pus-lhe a mão no ombro, receoso de qualquer má notícia, e ouvi-a murmurar, como se eu não estivesse presente:
- Coitado de ti, Frank.
Frank era o nome de meu pai.
- Que sucedeu, mãe? insisti.
Virou-se ela então, fitou-me como quem olha para um desconhecido, pôs-se de pé e começou a passear na sala. Depois saiu; percebi que se dirigia ao quintal.
O papel escorregara para o chão. Apanhei-o. Toda a caligrafia mostrava o mesmo aspecto desordenado que eu já notara no sobrescrito; a data indicava ter a carta sido escrita dias antes, numa aldeia situada a poucas milhas de distância. E o texto dizia.

"Minha querida Lettice:
Participo que estou quase morrendo: não poderei durar mais de dois dias, com os rins neste estado.
Fui aí um dia; não a vi, mas descobri nossa filha à janela e troquei meia dúzia de palavras com o rapaz. Nem um nem outro me reconheceram. Se soubesse como me sinto só, horrivelmente só, teria pena de mim.
Tenho poupado o mais que posso, para que seja reembolsada. Agrada-me ver chegado o meu fim, que bem mereci. Não podia ser pior.
Adeus, para sempre. Teu marido.
Franfe Beardsall."

Fiquei perplexo com a leitura desta carta. Fiz um esforço para me recordar de meu pai, mas, com grande esforço, só consegui rever a imagem que me deixava na memória certa fotografia antiga, socorrendo-me ao mesmo tempo da descrição feita por minha mãe: homem alto, belo, melancólico, de olhos claros.
Esse casamento fora infeliz. Meu pai era frívolo, de caráter ordinário, se bem que não fosse destituído de atrativos. Mentiroso, sem a mínima noção da honra, desiludira por completo as expectativas da mulher. Umas após outras, descobrira ela todas as irregularidades do homem a quem se ligara; sentia a alma revoltar-se e, como o sortilégio se partira em mil pedaços, afastou-se com a amargura de quem vê o seu romance transformar-se numa farsa imoral. Quando ele a deixou, trocando-a por outros prazeres - Lettie estava com três anos, e eu com cinco - minha mãe não sentiu senão alívio. Depois, só recebera notícias indiretas, que o não reabilitavam embora a sua situação material houvesse prosperado. O caso é que ele nunca lhe escrevera nem a procurara durante dezoito anos.
Entretanto, minha mãe regressou do quintal, e sentou-se numa cadeira, entretendo-se a fazer bainhas na orla do avental.
- A verdade, disse ela, é que Frank tinha direito aos filhos e que eu os guardei todo este tempo.
- Ele podia ter voltado, se quisesse, observei.
- Eduquei vocês contra o pai, mantive a distância - e ele queria tanto aos filhos! Devia estar agora a seu lado; devia tê-lo levado lá há mais tempo.
- Como, se não conhecia o seu paradeiro?
- Ele queria voltar... suspeitei disso nestes últimos anos. Mas conservei-me afastada, bem o reconheço. Coitado! Há-de ter compreendido os seus erros. Eu fui mais cruel...
- Não diga isso. Está falando debaixo da impressão recebida.
- Pressenti ultimamente que ele estava mal. Não sei como, mas adivinhei a sua doença, e tive a suspeita de que queria tornar a ver-nos.
Há três meses, em especial, que eu estava inquieta. Ah, fui bastante cruel!
- Então vamos, sugeri. Vamos lá visitá-lo.
- Amanhã, amanhã, replicou minha mãe, parecendo que só nesse momento reparara em mim. Irei de manhã.
- Vou consigo.
- Sim, de manhã. À Lettie não se diz nada. Ela tem sua festa em Chatsworth.
- Não se diz nada, concordei.
De aí a pouco minha mãe subiu ao andar de cima.
Mais tarde, Lettie chegou de Highclose. Leslie não quis entrar. Na manhã seguinte foram de automóvel para Matloc e Chatsworth. Como andava excitada, minha irmã não reparou em nada.
Depois de eles terem partido, nós saímos também. Quando descíamos do comboio, em Cossethay, a tarde estava calma e dourada, e mamãe insistiu em fazer a pé o percurso de duas milhas, até a aldeia. Fomos devagar, pela estrada, demorando-nos a apreciar as flores rubras que ornavam as sebes. Dir-se-ia que não tínhamos grande desejo de chegar ao nosso destino. Ao avistarmos o campanário cinzento da igreja ouvimos sons de estridente música metálica: dançava-se animadamente numa quinta dos arredores.
Havia cavalos de pau e barcos girando em roda, sob o céu azul transparente. Sentamo-nos sobre os degraus de uma cancela, a observar o carrossel e as várias barracas espalhadas pelo campo. As crianças, em grupos, passavam de um divertimento para outro. Com dois baldes gotejantes nas mãos, um homem atravessou o espaço aberto; às portinholas dos carros espreitavam mulheres e, debaixo dos pés das pessoas, metiam-se constantemente cães magros e preguiçosos. Assim decorria a feira, com todos
os seus ruídos particulares.
A voz masculina e rouca de certa dama convidava as crianças curiosas a olharem pelo estereoscópio. Na tribuna do carrossel estava um homem; e escarranchando-se ali, inclinava-se para trás, assobiando forte com os dedos na boca. Numa barraca imunda via-se um sujeito gordo a gritar aos garotos reunidos à sua volta, intimando-os a desafiarem um rapaz corpulento que, numa atitude impassível, cruzava os braços e mostrava o vigor dos bíceps. Como alguém perguntasse se ele se responsabilizava
pelo desafio, o rapaz fez que sim com a cabeça, o que foi reforçado logo pelo empresário. Mais além, ouvia-se a voz esganiçada dos vendedores. A lamber um sorvete, aproximou-se de nós uma moça; mas não nos achou dignos de interesse, e prosseguiu o seu caminho em busca de outras distrações.
Estávamos tomando coragem para seguir através daquele tumulto quando o sino rachado da igreja dominou o burburinho, lançando ao ar três badaladas. Olhei para minha mãe - e ela afastou-se de mim.
A música do realejo continuava arrastando-se, a mulher de voz rouca fazia novos apelos. Depois houve um momento de calmaria. O empresário do atleta entrou então na barraca para lutar com este, os vendedores ergueram os seus clamores, os cavalos e os barcos recomeçaram a girar.
De súbito, o sino voltou a badalar, agora mais vezes. O barulho, no entanto, crescera à nossa volta. Um dos rapazes, que se atrevera a andar de carrossel, tinha ainda o pé no estribo quando aquilo principiou a girar, com risco de desequilibrar tudo. A moça do sorvete comia agora outro, lambendo-o com igual método. Minha mãe, distinguindo o sino em meio daquele reboliço, gritou-me que a seguisse - e assim nos apressamos através da feira, em direção à igreja.
Passamos depois por um jardim onde flores rubras espreitavam do topo das hastes compridas. Por toda a parte se desgrenhavam crisântemos e murchavam malmequeres. Esse jardim pertencia a uma casa baixa e escura, atrás de um muro de bambu. Fomos direto à entrada principal. As venesianas estavam descidas; mas, numa janela, distinguimos luz mortiça de velas.
- É a Vivendo, do Teixo? perguntou minha mãe a um rapaz.
- Da Senhora May? É aqui, respondeu ele.
- Ela vive só? - inquiri - por meu turno.
- Tinha um hóspede francês, mas ele morreu. É por isso que estão as velas acesas.
Batemos à porta.
- Vêm por causa dele? indagou uma velha curvada, de voz rouca, que nos perscrutava com os seus olhinhos azuis; ao mesmo tempo, meneava a cabeça, coberta com uma touca de veludo, e apontava para um quarto interior.
- Viemos, declarou minha mãe. Recebi uma carta.
- Ah, coitadinho! Lá se foi! volveu a mulher, sempre a abanar a cabeça. Depois inclinou-se mais para nós, cheia de curiosidade, pôs a mão mirrada no braço da minha mãe e cochichou:
- As velas já se apagaram por duas vezes.
- Preciso de entrar e tomar algumas disposições. Sou parenta mais chegada, explicou a mãe, com voz trêmula.
- Sim, senhora; estive dormitando e, quando acordei, já estava escuro. Ah, não preciso agora velar por ele, pobre homem!, como fiz tantas vezes. O que ele padeceu, credo! Levantou as mãos ressequidas e fitou minha mãe com maior atenção, erguendo para elas os olhos intensamente azuis.
- Sabe onde é que ele guardava os seus papéis? perguntamos em seguida.
- Sim, senhora, falei com o Reverendo Burns a respeito de tudo. Devemos rezar por ele, foi o que me disse o padre. Comprei as velas com o meu próprio dinheiro. Era muito esquisito, coitado. Pobre homem! repetiu a dona da casa, sacudindo a cabeça grisalha em ar de condolência.
Minha mãe deu um passo em frente.
- Quer vê-lo? acudiu a velha, um tanto receosa.
- Quero, respondeu a mãe, acompanhando a palavra com um aceno vigoroso. Tinha percebido que a outra era quase surda.
Entramos para a cozinha, que era baixa, comprida e escura, com os vitrôs fechados.
- Sentem-se, disse a velha no momento tom apagado, - como se falasse consigo mesma. Era irmã dele, talvez?
Mamãe abanou a cabeça.
- Ah, sua cunhada! retorquiu a hospedeira. Fizemos sinal negativo.
- São primos? continuou, olhando para nós já suplicante, Não a desmentimos desta vez.
- Esperem um minuto, pediu, saindo da cozinha no seu andar saltitante. Bateu a porta, ouvimo-la tropeçar numa cadeira, mas por fim voltou com
uma garrafa e dois copos, que pôs na mesa, na nossa frente. Mal se julgaria que esse pulso magro seria capaz de segurar uma garrafa cheia.
- Esta é a que ele bebia, explicou logo, enquanto nos incitava a provar. Bebam, para ganhar forças. Afastou-se outra vez e regressou com o açucareiro. Recusamos a bebida.
- Ele é que não tornará a tomar, coitado! E que boa pinga, minha senhora. Só bebia coisas boas. Mas há três dias que não engolia nem uma gota. Vá, não façam cerimônia. Recusamos de novo.
- Está ali, segredou ela, apontando para uma porta fechada, no canto mais sombrio da cozinha. Abri-a, arrisquei uns passos e, tropeçando, fui de encontro à mesa na qual ardia uma vela num castiçal de latão. A vela caiu no soalho e o castiçal rolou com estrépito.
- Oh! Meu Deus! gemeu a hospedeira. Correu, a tremer, para o outro lado da cama e tornou a acender o pavio que ainda fumegava. Nesse momento a luz
deu-lhe em cheio na cara encarquilhada e pôs reflexos nas maçanetas do leito de mogno. No chão, viam-se pingos, e na cama, debaixo da colcha, distinguia-se o contorno de um corpo. A velha ergueu a parte da roupa que cobria o cadáver e recomeçou nos seus lamentos. O coração batia-me com força; evitei o olhar mas não pude. Ali estava o homem que eu vira no bosque, porém já lívido. Senti ao mesmo tempo piedade e terror e uma impressão horrível de
pequenez, de isolamento num grande espaço vazio. Parecia que eu me encontrava para além de mim próprio, como se fosse uma sombra insignificante que se movesse na escuridão. Depois notei que minha mãe havia chegado e que, abraçando meus ombros, murmurava em tom dolorido:
- Filho, filho da minha alma!
Estremeci e voltei a mim. Não havia lágrimas nos olhos dela, apenas uma expressão de súplica.
- Não faz mal, mãe, não faz mal, disse eu, incoerentemente, no meio da minha atrapalhação.
Com as mãos velando-lhe o rosto, minha mãe dirigiu-se à dona da casa e impôs-lhe silêncio. Esta enxugou as faces e aconchegou os fios grisalhos debaixo da touca de veludo.
- Onde estão os haveres dele?
- Heim? perguntou a velha, apurando o ouvido.
- Está aqui tudo quanto lhe pertencia insistiu a mãe, com voz forte.
- Aqui? repetiu a mulher, indicando o quarto com a mão estendida. Havia, além da enorme cama de mogno, sem cortinados, uma escrivaninha, uma cômoda antiga de carvalho e duas ou três cadeiras. Não o pude levar para cima. Está cá pouco mais ou menos há três semanas, acrescentou de aí a instantes.
- Aonde está a chave da escrivaninha? perguntou minha mãe ao ouvido da outra.
- Sim, senhora, é a escrivaninha dele, respondeu, olhando-nos indecisa.
A cena confrângia-me.
- A chave! gritou minha mãe. Onde está a chave?
A velha, perturbada, não fazia outra coisa senão abanar a cabeça. Calculei que ela não soubesse, de fato, o que lhe perguntavam.
- E as roupas? As roupas? inquiri, apontando para o meu paletó. Ela, então, compreendeu e disse:
- Vou buscar.
Perto da cabeceira do leito existia uma portinha que dava para a escada do andar superior. Estávamos dispostos a seguir a hospedeira, que desaparecera a toda pressa por ali, quando ouvimos um passo pesado na cozinha e uma voz gritando.
- Teria a velha ido beber com o diabo? Viva, Senhora. May, venha antes beber comigo!
Sentimos o despejar de um líquido no copo e quase no mesmo instante entrou um homem no quarto, dizendo:
- Sempre quero ver onde está essa velha! Como acontecera comigo, esbarrou também na mesa, mas não derramou nada no chão. Raio de degrau! acrescentou em tom jovial. Devia ser o médico. Vinha de chapéu na cabeça e vagueou pelo aposento com a maior sem-cerimônia. Tinha a cara vermelha e era volumoso de corpo.
- Desculpe, disse ele, reparando em minha mãe, que baixou a cabeça num leve cumprimento. É a Senhora. Beardsall? ajuntou, tirando o chapéu.
Mamãe fez sinal afirmativo.
- Fui eu que pus no correio a carta para a senhora. Também é parente? perguntou a seguir, indicando-me.
- O mais próximo.
- Pobre homem! volveu ele, designando o morto. Conseqüências da vida solitária!
- A carta foi grande surpresa, para mim, disse minha mãe.
- Ele não estava em estado de escrever, tinha passado muito mal ultimamente. Enfim, mais tarde ou mais cedo temos de dar contas a Deus. Queira desculpar.
Houve um momento de silêncio, durante o qual o médico suspirou. Depois começou a assobiar baixinho.
- Será melhor levantar a venesiana, observou ele, deixando entrar no quarto uma nesga de luz. Em todo o caso, não hão-de ter muitas preocupações. Não ficaram dívidas. Creio até que deixou qualquer coisa. Já não está nada mau. Pobre diabo! Andava com a saúde muito ruim. Enfim, mais tarde ou mais cedo... Para onde teria ido o demônio da velha? exclamou de repente, olhando para o teto de vigas, que estremecia com o peso de alguém no quarto de cima.
- Gostava de encontrar a chave da escrivaninha, disse minha mãe.
- Vou procurá-la. E o testamento também. Ele informou-me quanto ao lugar onde tinha isso, e pediu-me que lhe entregasse tudo, quando a senhora viesse. Pensava muito na família, ao que me parece. Podia-lhe ter corrido melhor a vida...
Ouvimos nessa altura os passos da velha descendo a escada. O médico foi ao encontro dela, até aos primeiros degraus.
- Cuidado, cuidado, gritou ele. A pobre mulher fez o que era de esperar: embaraçou-se nos suspensórios de umas calças que trazia de rastos e veio cair nos braços do médico. Este restabeleceu-lhe o equilíbrio, ao mesmo tempo que dizia: - Não se machucou não?
- Ah, doutor, ainda bem que veio. Já viu quem está aí?
- Já, retorquiu ele, com os seus modos rudes mas bondosos. Correu à cozinha, arranjou dois copos de uísque e trouxe-os consigo. Um para si e outro
para mim. Isto dá-lhe forças!
A velha sentou-se numa cadeira junto da porta da escada, com a pilha de roupa caída aos pés. A claridade do dia, entrando pela janela, misturava-se com a dos castiçais e punha tons estranhos tanto na casa da hospedaria como na figura imóvel que estava na cama.
Enquanto a dona da casa segurava o copo com a mão trêmula, o médico deu-nos as chaves e pusemo-nos a vasculhar as gavetas, tirando para fora os papéis. Ele, sem deixar de bebericar o seu uísque ia dando informações acerca do defunto.
- Estava aqui há só dois anos. Começa a sentir-se cansado, disse com os meus botões. Vivera algum tempo no estrangeiro, e por isso é que lhe chamavam francês. Bebeu mais um gole e continuou: - Ah, sempre me pregou cada peça! Sonhava alto, de forma assustadora. Felizmente a velha é surda como uma porta. É horrível, sonhar assim. Um homem arruina-se por completo, quando isso lhe acontece. Bebeu novos goles de uísque, fez outras reflexões e afogou-as com mais bebida. - Mas era um tipo decente, generoso, de mãos largas. As pessoas que não gostavam dele é porque não o compreendiam.
Detesta-se sempre o que não se pode aprofundar. Muito metido consigo, isso é verdade, - exceto quando estava dormindo. Olhou para o copo, suspirou e prosseguiu: - Vamos sentir sua falta. Não é verdade, Senhora May? Fez esta pergunta em voz tão alta que nos sobressaltou; e, por instinto, olhamos furtivamente o leito mortuário.
Entretanto o médico acendera o cachimbo e fumava com sofreguidão, talvez para matar o desejo de beber novos copos de uísque. Mamãe e eu aproveitamos a ocasião para examinar os papéis. Cartas, havia poucas; duas eram endereçadas a pessoas de Paris. Mas encontramos muitas contas, recibos, apontamentos diversos: tudo coisas de negócios.
Em toda aquela desordem a custo se descobriria um traço de vida sentimental. Minha mãe escolheu alguns papéis que lhe pareceram de maior valor. Os outros incluindo as contas, levou-os para a cozinha e jogou-os ao fogo. Parecia ter medo de procurar além de certo ponto.
O médico, entretido com o fumo, voltou a expor os seus pensamentos:
- Há duas maneiras, sim, há duas maneiras.
Pode-se deixar arder a lâmpada com a chama forte, e vê-la brilhar, até que se extingue, e faz fumo, e cheira mal; ou então conservá-la com todo o cuidado sobre a mesa, sujar os dedos arrumá-la de vez em quando: dura mais e cheira menos. Neste momento olhou o copo e notou que estava vazio. Isso chamou-o à realidade: - Posso ser-lhe útil seja no que for, minha senhora?
- Não se incomode, muito obrigada.
- Calculo que não haja muito trabalho nessas arrumações. Nem muitas lágrimas a verter - quando um homem gastou a sua mocidade sabe Deus por onde!
Os que o conheceram moço não hão-de sentir grandemente a sua perda. Teve os seus dias, mas não os gozou muito - sempre a desejar mais e mais. Não há nada como viver casado, com a existência regrada. Depois disto recaiu numa das suas meditações, na qual se manteve todo o tempo em que nós fechamos a escrivaninha, queimamos os papéis inúteis, guardamos os mais importantes - na minha algibeira e na mala da minha mãe - e nos preparamos para sair. Foi só então que ele, olhando admirado para nós, disse de repente: - E a respeito do enterro? Em seguida, notando o ar de fraqueza de minha mãe, deu um pulo, agarrou no chapéu a toda a pressa e acrescentou: - Venha ter com minha mulher, que lhe dará uma xícara de chá. Tenho vegetado tanto no meio destes rústicos que me esqueço às vezes das normas da cortesia. Venham. Minha mulher está só.
Mamãe sorriu e agradeceu-lhe. Voltamo-nos para a porta. No limiar, porém, ela hesitou, dirigiu a vista, rapidamente, para o leito, e por fim decidiu-se a partir.
Ao sentir a frescura da tarde que findava, tive a impressão de que havia sido tudo mentira.
Custava-me a acreditar. Não, não existia realidade naquela face lívida, naquela barba grisalha onde a luz da vela punha nódoas ondulantes e amareladas. O leito de mogno e a velha surda eram simples ilusão dos meus sentidos. A verdade estava só nestes girassóis de cor intensa, nesse relógio do Hospício, na claridade da tarde que nos envolvia e reconfortava. Tive um arrepio, expulsei da memória
o quadro que me afigurava irreal e prossegui o caminho.
A residência do médico ficava num lugar agradável, entre faias. Junto de uma cerca de ferro, em frente do pasto, via-se nesse momento uma senhora acariciando o focinho de uma linda vaca Jersey, a observá-la de muito perto e a falar-lhe com acentuada pronúncia escocesa. Dir-se-ia que essa mulher pequena e rosada estava falando e
brincando com uma filha. Ao virar-se para nós, ficou surpreendida e saudou-nos ainda com um resto de ternura nos olhos.
Uma vez em casa, ofereceu-nos chá, bolos e geleia. Não me fartei de gozar o som da sua voz musical, que lembrava o zumzido de abelhas em torno do açúcar; e, embora não dissesse nada de especial, nós a escutamos com a maior atenção.
O médico era pessoa bondosa e alegre. A mulher lançava-lhe de vez em quando olhares receosos e fazia o possível por não encará-lo. Com os seus modos francos e joviais, o marido troçava, elogiando-a depois com exagero e tornava a
dirigir-lhe gracejos. Em certa altura começou a ser um nadinha enfadonho e eu percebi que a mulher temia
vê-lo embebedar-se deveras. Devia sentir horror ao espetáculo da embriaguez, que não parecia ser muito raro.
Não tinham filhos.
Ao notar a inquietação da mulher, o médico suspendeu as suas brincadeiras. Olhou para ela várias vezes e pareceu constrangido com o fato de a sua cara metade evitá-lo, então começou a ser visível o mal-estar desse homem, e eu percebi que ele queria ir-se embora.
- Talvez fosse preferível irmos agora ao padre, observou daí a pouco. E deixamos aquela sala cujas janelas se abriam para o sul, para as pastagens, aquela sala que revelava toda a história da família, quer nas aguarelas pretensiosas, quer nos tapetinhos bordados das mesas, nas jarras vazias, no piano fechado, nas xícaras desirmanadas, no bico rachado do bule que deixava nódoas na toalha, e nos dois romances de capa suja, vindos de uma livraria de empréstimo.
Fomos encomendar o caixão, e o médico bebeu um novo copo de uísque. Paguei as despesas do funeral, e ele selou o ato com uma gota de aguardente. O cálice de porto, que o padre ofereceu, completou a jovialidade do meu companheiro. Regressamos depois a casa dele.
Desta vez, a inquietação que a mulher mostrou nos olhos não conseguiu dissipar a alegria do doutor: ele tagarelava sem descanso e ela
limitava-se a fazer girar no dedo o anel de casamento. Apesar do ar alarmado que mostramos, o médico insistiu em nos conduzir no seu carro até a estação. A mulher, então tranqüilizou-nos.
- Podem ir com ele sem receio, declarou com sua voz de acento escocês.
Da estação de Eberwich até em casa há uma certa distância. Fizemos o percurso parte em ônibus e o resto a pé. Minha mãe, cansada como estava, sentiu bastante o caminho.
Rebeca esperava-nos junto dos rodondendros; correu cheia de solicitude ao encontro de minha mãe e perguntou se queria chá.
- Já tomei.
- Mas devia tomar outra chávena.
Na sala de jantar, recebeu o chapéu e o casaco de minha mãe e ficou à espera, desejosa de ser esclarecida mas com relutância de fazer qualquer pergunta. Afligiam-na as olheiras de mamãe e o seu ar fatigado.
- Lettie esteve em casa, participou em seguida.
- E foi-se outra vez?
- Veio só mudar de vestido. Levou o de popelina verde. E queria saber para onde tinham ido...
- Que respondeu?
- Disse que não se deviam demorar.
Achei-a alegre como um passarinho.
Depois disto, Rebeca olhou atentamente para minha mãe, que lhe disse:
- Sabe? Ele morreu. Acabo de vê-lo.
- Agora, graças a Deus, a senhora não terá que se aborrecer mais.
- Morreu abandonado, Rebeca.
- Como a senhora tem vivido, nem mais, volveu a criada, em tom áspero.
- Mas eu tive comigo os filhos. Não diga nada à Lettie.
- Não, minha senhora. Rebeca saiu.
- Você e Lettie receberão o dinheiro, disse a mãe, dirigindo-se a mim. Havia cerca de quatro libras, que lhe tinham sido deixadas; e, só no caso da sua morte, é que minha irmã e eu as herdaríamos.
- Pertencem-lhe, mãe, retorqui.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio. Foi ela quem o quebrou, dizendo:
- Podia ter tido um pai...
- Felizmente tivemos mãe. Poupou-nos isso.
- Não diga semelhante coisa!
- Digo e repito. Estamos gratos.
- Se algum dia sentir desprezo por alguém, trata de impedi-lo, e seja generoso, filho.
- Sim, senhora.
- Por agora, basta. Mais tarde ou mais cedo será preciso prevenir Lettie.
Eu o fiz uma semana depois. Minha irmã, insensível, perguntou-me:
- Quem mais sabe?
- Nós, a mãe e Becky.
- Mais ninguém?
- Não.
- Se ele era tão nocivo para a mãe, foi melhor que desaparecesse de vez. Onde está ela?
- Lá em cima.
E Lettie subiu as escadas, a correr.


CAPÍTULO 5

 

A morte do homem que fora nosso pai
modificou-nos bastante a existência: não que experimentássemos grande desgosto, mas porque nos dominou a impressão da vida malograda. Haviam-se alterado em nós os sentimentos e afinidades, criando-se outra percepção das coisas, novos e diferentes cuidados.
Tínhamos vivido sempre entre a água e a floresta - Lettie e eu. Ela, em especial, procurava em tudo as notas mais brilhantes; parecia ouvir as águas gargalharem e as folhas abafarem risos como se fossem meninas; via as árvores sacudirem os ramos, tal se estivessem a dançar, e julgava descobrir maior ternura no simples arrulhar dos pombos.
Mais tarde, todavia, reparara no lamento doloroso do ouriço cacheiro apanhado numa armadilha e percebera a existência de outras ratoeiras às quais serviam de engodo as tripas de um pobre coelho.
Certa ocasião, pouco tempo depois da nossa visita a Cossethay, Lettie foi-se sentar no banquinho da janela. O sol, que a amava e jamais a queria abandonar, apegara-se aos seus cabelos e beijava-os com lábios ardentes, que tinham o colorido das flores que a rodeavam. Minha irmã, olhando por cima de Nethermere, pousava a vista em
Highclose, sombra indecisa naquela névoa de Setembro. Se não fosse o clarão vermelho das suas faces, eu diria que elas estavam tristes e sérias.
Aninhando-se no canto da janela, daí a momentos Lettie apoiou a cabeça no peitoril de madeira, e adormeceu. Parecia a criança adorável de outrora, ali dormindo de lábios entreabertos, como num amuo - e respirando muito devagar. Senti o peso da minha velha responsabilidade: devia protegê-la, tomar conta dela.
Ouvimos passos no areão do passeio. Era Leslie que chegava. Pensando que ela podia vê-lo, tirou o chapéu; mas ficou admirado de que não se mexesse. Aproximando-se mais, percebeu então o motivo; piscou-me o olho e entrou nas pontas dos pés pelo quarto a dentro, a fim de contempla-la. Impressionado com a atitude suave e abandonada
de Lettie, com o ar de mocidade compassivo e submisso, que ela irradiava, ele a beijou nas faces avermelhadas pelos raios do sol.
Lettie despertou com um gritinho infantil. E ele, sentando-se ao seu lado, puxou-a carinhosamente, olhando-a sempre com olhos ternos e sorridentes. Julguei a princípio que minha irmã ia adormecer outra vez, mas as pálpebras tremeram e as pupilas luziram muito vivas.
- Leslie, deixe-me! exclamou, repelindo-o. O rapaz largou-a e levantou-se, fitando-a com severidade. Lettie, compondo o vestido, foi logo ao espelho para arrumar o cabelo.
- É tão atrevido! disse ela, ainda despenteada, cheia de vergonha e de rubor.
- Não se pode parecer bem e estar dormindo ao mesmo tempo, volveu ele, rindo e desculpando-a.
- Não é bonito o que fez! replicou a moça, ainda irritada.
- Por que não havia eu de beijá-lo? Não sou de cerimônias.
- Mas tratava-se de mim e não de você.
- Meu Deus, tanto barulho por uma coisa tão simples...
- Mamãe vem aí, preveniu ela. Minha mãe gostava bastante de Leslie.
- Ora viva, disse ao entrar, parece-me que estão zangados.
- Lettie ralhou comigo por eu a ter beijado quando ela representava o papel de Bela Adormecida.
- E este rapaz teve a presunção de se julgar o Príncipe?
- Infelizmente, sem qualidades dignas da personagem, retificou ele em tom pesaroso.
Lettie deu uma risada e perdoou-o. Era um homem elegante e atraente. Dava gosto vê-lo andar com movimentos vigorosos e elásticos. O rosto, porém, não agradava tanto como o conjunto da sua pessoa: tinha as sobrancelhas muito ralas, o nariz demasiado grosso e uma testa pouco favorecedora, se bem que não fosse curta. A expressão é que o ajudava muito, franca, risonha, saudável.
- Pois eu, disse ele, fitando-a e sorrindo, vinha buscá-la para sair.
- A tarde está deliciosa, interveio minha mãe. Lettie relanceou o seu admirador e respondeu:
- Sinto-me com tanta preguiça!
- Não importa. Despertará lá fora. Vá pôr o chapéu, Parecia impaciente. Minha irmã, observando-o, viu-o sorrir de certa maneira especial, baixou os olhos e saiu da sala.
- Irá, no fim de contas, disse ele, falando consigo próprio, mas em voz alta. Gosta de se fazer de rogada.
Lettie devia tê-lo ouvido, pois, ao reaparecer, já a enfiar as luvas, declarou-me tranqüilamente:
- Você vem também.
Leslie rodou nos calcanhares e encarou-a surpreendido e furioso.
- Preciso de ficar, disse eu, sentindo-me constrangido. Falta acabar esta aguarela.
- Não, não, vem conosco, insistiu ela. Puxou-me da cadeira e tirou-me o pincel da mão.
O sangue afluiu ao rosto de Leslie, que se dirigiu rápido ao vestíbulo, donde voltou com o meu boné.
- Está bem! rematou, ainda colérico. As mulheres têm a mania de que são Napoleões.
- É verdade, Senhor Duque de Ferro, acudiu ela, zombeteira.
Para não perder o assunto que ela sugerira, Leslie replicou ato contínuo:
- O pior é que há sempre Waterloo... Vamo-nos embora, sim?
- Às ordens, volveu ela, tomando-me o braço.
Fomos através do bosque até a estrada real, passando pelos terrenos fronteiriços, de vegetação hirsuta - esses terrenos que podiam constituir um parque mas que permaneciam abandonados, com ervas e montículos erguidos pelas toupeiras; estavam cheios de urzes, sarças, e espinheiros aqui e ali, formando estranhos grupos.
Na estrada, as folhas estalavam debaixo dos nossos pés. As águas conservavam-se calmas e azuis e as medas de cereais pareciam vultos adormecidos.
Trepamos o outeiro por detrás de Highclose e seguimos ao longo do planalto, procurando com a vista as colinas do árido Derbyshire; mas era outono, não podíamos avistá-las. O que descobrimos foram os cabeçotes da mina de Selsby e a respectiva aldeia, de tão feio aspecto, estendendo-se nua e desabrigada pio alto do monte.
Lettie ia bem disposta, rindo e brincando sem cessar. Colhia frutos silvestres e enfeitava com eles o vestido. Como enterrasse num dedo um espinho de silvado, pediu a Leslie que o arrancasse. Assim brincando saímos da estrada e enveredamos pelo caminho apertado que fica à esquerda da floresta, à direita dos campos e dos baldios e defronte das altas colinas de Strelley. Depois de uns momentos de marcha, vimos brilhar uma foice. Lettie correu à beira da vereda, para admirar de mais perto: era George que ceifava as espigas de aveia, pois a segadora mecânica não podia chegar àqueles terrenos declinosos. O pai encarregava-se de fazer os feixes.
Endireitando-se, o Senhor Saxton descobriu-nos e chamou-nos para irmos ajudá-lo. Passamos por uma abertura da sebe e fomos ter com ele.
- Agora tire o casaco, disse-me ele. E, dirigindo-se a Lettie: Não nos trouxe de beber? Mau! Estão passeando, não é verdade? Veja lá o que é uma pessoa engordar! acrescentou, espetando a cara volumosa enquanto se curvava para atar as espigas. Era homem corpulento, vermelho, na força da vida.
- Ensine-me como é. Quero experimentar, pediu Lettie.
- Não, senhora, negou ele brandamente; iria esfolar os seus lindos dedinhos e dar cabo do espartilho. Ouça as minhas mãos, ajuntou, esfregando-as uma na outra; soam como lixa.
George, que estava de costas para nós, ainda não nos tinha visto, e continuava a ceifar. Leslie observava-o.
- Belo exercício, disse ele.
- Tem razão, assentiu o pai dos Saxtons, levantando a cara, muito corada, acima do feixe. O nosso George entretém-se deveras nisto. É bom para desentorpecer.
Caminhamos no meio das espigas ceifadas. Como o sol se tornara mais suave, George havia tirado o chapéu, e o cabelo preto, cheio de suor, enrolava-se em caracóis. Firmemente apoiado à terra, mexia o resto do corpo, da cintura para cima, com movimentos de grande beleza rítmica. À altura da anca, no cinto dos calções, pendia-lhe o passador da foice. A camisa desbotada, quase branca, mostrava um rasgão na cintura e deixava ver através dele os músculos das costas agitando-se como sobre a água de um regato. Aquele corpo elástico e harmonioso tinha qualquer coisa que atraía o olhar.
Falei-lhe, e George voltou-se, fitando logo minha irmã com um sorriso espontâneo e denunciador. Estava, nesse instante, realmente belo. Tentou dirigir-nos palavras de saudação; mas, não tendo conseguido formulá-las, agachou-se, apanhou um braçado de aveia e pôs-se a atá-lo sem cerimônia.
Lettie não achava também nada que dissesse. Foi Leslie quem quebrou o silêncio:
- Não há dúvida que isso é ótima ginástica.
- É, sim, confirmou o interpelado, continuando a trabalhar. Vendo que Leslie pegava na foice, acrescentou: - Vai transpirar e dar cabo das mãos.
O outro abanou a cabeça, tirou o casaco e perguntou: - Como se faz?
E, sem esperar resposta, começou a cortar as hastes mais próximas. George não respondeu, mas voltou-se para Lettie.
- Está pitoresco, disse ela, um pouco timidamente. A calhar para um Idílio.
- E você? inquiriu ele.
Minha irmã encolheu os ombros, riu e foi apanhar uma flor vermelha. Só então falou, indagando:
- Como é que se amarra isso?
Pegando numas poucas de hastes, George limpou-as e mostrou como se atavam. Em vez de dar atenção a isso, Lettie olhou para as mãos dele, grandes e vigorosas, enrubescidas pelo cabo da foice.
- Bem, me parece que não serei capaz, declarou ela.
- Não, confirmou o rapaz, com a maior naturalidade, enquanto espiava o trabalho de Leslie. Este, que estava sempre pronto para tudo, fazia
obra asseada, sem conseguir, todavia, os movimentos majestosos do lavrador.
- Aposto que vai ficar suado, disse George.
- Você não fica? perguntou Lettie.
- Um pouco, mas não estou vestido de ponto em branco. De repente, Lettie fez esta observação:
- Sabe uma coisa? Os seus braços dão-me tentações de lhes tocar. Têm uma cor morena, tão bonita! E parecem tão rijos!
George exibiu-lhe um braço. Ela hesitou; mas, de súbito, pôs as pontas dos dedos na pele morena, deixou-as correr um instante ao longo do bíceps e, retirando a mão de repente, escondeu-a na prega da blusa. O rubor subira-lhe ao rosto.
A gargalhada que ele soltou, lenta e retumbante, acariciou e exasperou ao mesmo tempo os ouvidos dos que a escutaram.
- Não desgostaria de trabalhar aqui, disse ela, espalhando a vista pelo cereal ceifado e pelo bosque envolto numa névoa azul. George seguiu seu olhar, e
tornou a rir devagar, com indulgência, com assentimento.
- É verdade! repetiu Lettie, exagerando a nota.
- Para você, volveu ele, enfiando a mão no peito da camisa e esfregando brandamente a ilharga, trabalhar ou estar quieta ê sempre um motivo de prazer.
A moça contemplou-o corno se esse homem, latejante de vida, fosse a mais bela criação da Natureza.
Nesse momento chegou Leslie enxugando a testa.
- Caramba! Fiquei suando.
George levantou-lhe o casaco, abandonado no chão, e, entregando-lhe, recomendou:
- Veja lá não se resfrie.
- Não há dúvida, respondeu o outro, que isto é um exercício de primeira ordem. Você deve ter a pele muito dura, acrescentou, ao ver o companheiro abrir um canivete e tirar com ele um espinho enterrado na mão.
Lettie não disse nada, mas recuou uns passos.
Saxton, contente com o pretexto que se oferecia de descansar e conversar, aproximou-se do grupo.
Cansou-se depressa, notou ele, rindo, a Leslie.
Mas George, nessa ocasião, deixou escapar um grito. Todos nos voltamos e vimos um coelho que irrompera de baixo dos feixes e que enfiava para a sebe, correndo e esquivando-se o melhor que podia. A seara ainda de pé, naquela encosta, ocupava cerca de cinqüenta passos de comprimento e uns dez de largura.
- Não esperava que houvesse algum aqui, declarou Saxton, lançando mão de um ancinho e brandindo com ele para o lado da vedação. Seguimo-lo sem demora. Ele, porém, recomendou que esperássemos, a fim de ver se as espigas mexiam.
Espalhamo-nos, então, em torno.
- Atenção, ali! bradou o lavrador, excitadíssimo. No mesmo instante apareceu outro coelho.
- Agarra, agarra! foi o grito geral. Todos nos pusemos em perseguição do fugitivo, que parecia desnorteado. Querendo escapar-se ao ataque de Leslie, que estava mais perto dele, o animal, mudando de rumo, esgueirou-se para a banda da colina, atravessando em ziguezagues o labirinto dos feixes colocados no terreno.
Cedo lhe faltaram as forças e George foi-lhe no encalço. O coelho ainda conseguiu meter-se entre umas palhas; o rapaz, contudo, não o perdera de
vista e, de aí a pouco, trazia-o na mão, pendurado pelas orelhas.
Regressávamos, transpirando e ofegando, ao limite da seara quando ouvimos Lettie chamar e vimos Emily e os dois irmãozinhos que se aproximavam de nós, vindos da escola.
- Outro! gritou Leslie.
As espigas ondularam. "Aqui, aqui!" exclamei eu. O animal saltou e despediu para a sebe. George e Leslie, que estavam nesse canto, arremeteram contra ele e fizeram-no mudar de curso. Eu o fiz encaminhar-se então para o lado de Saxton, que ainda o seguiu mas que era excessivamente pesado para a empresa. O coelho atirou-se para a cancela! Molie, com o chapéu na mão, veio sobre ele e conseguiu obrigá-lo a recuar.
Já cansado, o coelho enveredou no meio dos feixes, fugindo ao meu avanço. Se eu tivesse caído sobre a vítima, tê-la-ia apanhado, mas não pude fazê-lo a tempo, e o animal escapou-se por um buraco da sebe. George atirou-se e quase lhe punha a mão em cima. Mas era tarde. Estendido no chão, arquejante, George fitou-me com olhos em que se via a excitação e o esgotamento lutarem como um combate de luz e claridade. Quando pôde falar, perguntou-me:
- Por que você não se lançou em cima dele?
- Foi impossível, respondi.
Retrocedemos. As duas crianças espiavam agora também por entre as espigas não ovadas. A nossa impressão era de que não havia mais caça. George recomeçou na sega, e eu continuei a andar ao acaso: foi então que descobri um coelho emboscando-se num ponto afastado do terreno. As orelhas dele pareciam coladas ao dorso e a sua palpitação era tão agitada que se via a pele castanha subir e baixar; os olhos, muito vivos, fitavam-me cintilando. Embora o animal não me inspirasse compaixão, a verdade é que me encontrava desarmado e fiz sinal a Saxton, que logo acorreu e o atingiu com o ancinho. Ouviu-se um guincho que me impressionou como se eu próprio
tivesse sido atingido. O coelho, no entanto, escapuliu e, esquecido do grito lancinante, dei-me a perseguir a vítima, que parecia ferida.
Meus dedos, enrijecidos, negavam-se a tocá-lo. Leslie acudiu nesse momento, ansioso por matar.
Olhei para cima. As moças estavam na porteira, prontas a partir.
- Não há mais nenhum, sentenciou o lavrador. Mollie, naquele instante, deu novo alarma:
- Há um na toca!
Era buraco muito pequeno para que George metesse a mão, de forma que pusemos a cavar com o cabo do ancinho. O pau conseguiu alargá-lo suficientemente; aos nossos ouvidos chegou um guincho que nos sobressaltou.
- São ratos, disse George, ao mesmo tempo que o bicho se escapava. Alguém o atingiu logo com uma pancada - e, por toda a parte pularam filhotes.
Matamos a ninhada como quem mata insetos: contamos nove, ali estatelados no chão.
- Coitada! comentou o meu amigo, olhando para a ratazana. Teve tanto trabalho em criá-los!
Pegamos-lhe pelo rabo, observando-a curiosos e condoídos.
Aquele dia admirável começava a declinar. Para o lado do oeste o nevoeiro tornara-se mais azul, e o zumbido rítmico das máquinas, na mina distante, quebrava o silêncio do ar. Era a hora de largar o trabalho. Ao passarmos pelos campos, sentimos o mato zunindo como o murmúrio de uma cascata. Da terra elevava-se suavemente o cheiro das searas. E o último grito dos faisões veio da floresta, acompanhado do esvoaçar das derradeiras nuvens de pássaros. Peguei uma foice e, cansado mas satisfeito, desci com os outros em direção à granja. As crianças tinham partido à frente, levando consigo os coelhos mortos. Quando chegamos ao moinho, as moças levantavam-se da mesa. Emily começou a retirar os pratos e a lavá-los para nos servirem o jantar. Mal olhou para os recém-vindos e o cumprimento que nos dirigiu foi de simples cortesia. Lettie agarrou num livro que estava no assento da lareira e foi com ele para a janela. George deixou-se tombar numa cadeira, depois de haver tirado o casaco, e alisou o cabelo para trás; ficou depois silencioso, com os braços morenos estendidos sobre a mesa. De aí
a pouco esfregou a mão nos olhos e disse-me:
- Correr desta maneira cansa mais do que uma semana inteira de trabalho. Não seria capaz de repetir a proeza.
- O esporte é excitante enquanto dura, opinou Leslie.
- Isto faz mais mal, interveio a Senhora Saxton, do que o proveito que nos trouxeram os coelhos.
- Talvez não, mãe. Olhe que valem um par de xelins, retorquiu o rapaz.
- E um par de dias da tua existência.
- Que vale isso? disse ele, dando uma dentada num pedaço de pão com manteiga. Dá-nos chá, ajuntou, dirigindo-se à irmã.
- Não sei o que se pode esperar de gente bruta, murmurou Emily compadecida, trazendo o bule na mão.
- Ah, replicou George, comendo mais pão com manteiga, desta vez fui acompanhado nas minhas selvagerias.
- Os homens são todos selvagens, acudiu Lettie em tom fogoso, sem desviar a atenção do livro.
- Compete a vocês amansar-nos, observou Leslie, que estava de bom humor.
Minha irmã não respondeu. Foi George quem falou, numa entoação tão de conselheiro que enfureceu as senhoras:
- E as mulheres não fazem mal aos bichinhos mas gostam de utilizar suas peles nos vestidos.
Emily afastou-se, indignada. Lettie abriu a boca para responder, mas acabou por ficar silenciosa.
- O caso é que isso de matar sempre é desagradável, respondeu Leslie.
- Quando nos metemos nisto, retrucou George, é para ir até ao fim. Depois de sentir o cheiro do sangue, ninguém tem domínio de si...
- Parece-me horrível, declarou Lettie, andar atrás de um coelho a torturá-lo.
- Oxalá não tome gosto...
- Não há dúvida de que os homens são cruéis, disse Leslie, olhando de esguelha para minha irmã. São cruéis à sua maneira, repetiu, com outra olhadela e um sorriso irônico.
George voltou à carga:
- Para que vamos ficar com rodeios? Se nos agrada fazer uma coisa, havemos de pô-la em prática.
- Exceto se faltar a coragem, interveio Emily, cheia de amargura.
O rapaz ergueu os olhos para ela, subitamente encolerizado.
- Mas, disse Lettie, que não pôde resistir a fazer a pergunta, não acha que é coisa brutal - agora que você pensa dessa forma - correr atrás desses animais indefesos? Pareceu-me ato degradante, dos mais vis...
- Talvez seja, replicou ele, mas não o foi ainda há uma hora.
- Não tem sentimentos, concluiu minha irmã, desiludida. George riu, sem responder; mas o seu riso assemelhava-se a uma súplica.
Acabamos o chá em silêncio, minha irmã lendo e Emily andando na sala, de um lado para outro. George levantou-se e saiu. Minutos depois o ouvimos passar no pátio, com os baldes de leite cantando Alameda dos Freixos.
- Nada o faz ficar quieto, opinou Emily, cada vez mais desgostosa. Lettie olhou para o pátio, através da janela, pensativa. Parecia mal humorada.
Daí a instantes saímos também, antes que a luz de todo abandonasse o tanque. Emily levou-nos até ao quintal para colher algumas ameixas maduras. O terreno era baixo e escuro, coberto de ervas. As árvores estendiam os ramos sobre os passeios. Pouco mais produzia o quintal, a não ser alcachofras moles e abóboras balofas. Mas no fundo, onde se erguiam as construções da propriedade, altas e cinzentas, havia aquela ameixoeira encostada ao muro - a qual já rompera a escravidão e se expandia livremente; entre os seus ramos escondiam-se agora esplêndidos globos rubros, verdadeiros tesouros. Abanei o tronco velho e gasto, onde escorria seiva, e os frutos tombaram pesados, batendo nas largas folhas de ruibarbo que estavam por baixo.
Riram as moças, e nós dividimos o saque, com o que voltamos ao pátio. Depois descemos ao limite do jardim, que confina com o tanque. Este era rodeado de ervas enormes entremeadas de caniços grossos. Conforme nos prevenira Saxton, havia lá grande quantidades de ratazanas. Na margem fronteira, as árvores frutíferas desciam até a água, que vinha do tanque mais alto, através de um túnel.
À nossa aproximação, fugiram dois ratos para dentro da passagem subterrânea. Sentamo-nos, observando, sobre umas pedras musgosas. Então eles reapareceram, andaram um pouco, pararam, correram outra vez, puseram-se à escuta, tranqüilizaram-se, - e, emergindo em plena liberdade, meteram-se em toda a parte, arrastando as caudas peladas e compridas. Daí a pouco havia já seis ou sete, dos maiores, entretidos na boca do túnel, onde estava mais escuro. Muito calmos, esfregavam os focinhos aguçados e alisavam os bigodes. De repente, um deles, excitado, saltou verticalmente, torcendo-se no ar, e em seguida fugiu para dentro do buraco; outro lançou-se à água, com um mergulho pouco elegante, e nadou para o lado onde nos encontrávamos: parecia um diabinho, com a venta ponteaguda à superfície e os olhitos vivos faiscando. Lettie estremeceu, e eu atirei uma pedra ao tanque, assustando assim toda a súcia de roedores. Mas nós estávamos ainda mais assustados, de maneira que resolvemos partir. Em poucos instantes chegamos ao pátio.
Leslie acolheu-nos intrigado. Durante esse tempo, visitara as provisões de Saxton, acompanhado pelo proprietário.
- Fugiram de mim? inquiriu ele.
- Não, replicou minha irmã. Fui buscar ameixas. Olhe! E mostrou-lhe duas, no mesmo raminho.
- São bonitas de mais para comer.
- É que você ainda não provou.
- Vamos, retorquiu Leslie, oferecendo-lhe o braço. Vamos até à lagoa.
Lettie aceitou o convite.
A noite estava esplêndida, e as águas tranqüilas tinham reflexos amarelos, quase espessos. A pedido de minha irmã, Leslie sentou-se num ramo baixo de salgueiro, e encostou a cabeça nos joelhos. Emily e eu continuamos a passear; mas a voz de Leslie
chegava-me aos ouvidos, num murmúrio. Lettie respondeu na sua toada carinhosa.
- Não... fiquemos sossegados... está tudo tão calmo... É o que mais aprecio agora.
Conversando, Emily e eu sentamo-nos por fim no tronco dos alamos, um pouco mais além. Depois de umas horas de excitação, à noite - e em especial pelo Outono - somos inclinados à melancolia, ao sentimentalismo. A pequena distância, sussurrava a fala de Lettie e aquilo era como o rumor de um inseto voando. Longe, no pátio, George começou a cantar a velha canção "Espalha a semente do amor".
Isto interrompeu a voz alada de minha irmã. Com a aproximação do cantor, acabou de todo esse som de palavras em tom de confidencia. Fomos ao encontro de George. Leslie endireitou a cabeça, ergueu os joelhos, mas não falou. O filho dos Saxtons estava defronte de nós e dizia:
- A lua não está nascendo.
- Ajude-me a saltar daqui, pediu minha irmã a Leslie, estendendo as mãos para ele segurá-la. O interpelado levantou-se; mas, fazendo-se desentendido, passou-lhe os dedos debaixo dos braços e arrumou-a melhor no assento, como se ela fosse uma criança; mostrava-se ressentido com aquela intrusão do lavrador.
- Julgava encontrá-los todos juntos, notou George, sem se exaltar.
Lettie achou necessário dar logo uma explicação:
- E estamos, na verdade. Agora somos cinco. É ali que a lua vai aparecer?
- Ali mesmo, confirmou Emily. Gosto tanto de a ver surgir, acima da floresta! Ergue-se devagar, e olha para nós: penso sempre que ela quer qualquer coisa e que eu tenho uma resposta para lhe dar. O pior é que não sei qual seja...
A leste, onde o céu estava mais pálido, sobre os confins do bosque, apareceu a ponta de uma lua amarelada.
Admiramos em silêncio, e o disco tornou-se cheio, perfeito, mergulhando-nos num banho de luar. Lettie agitava-se de contentamento; Emily perturbava-se de melancolia, abrindo os lábios, num rogo... Leslie franzia a testa, distraído; George refletia, e os raios de luz enredavam-se-lhe na imaginação. Por fim, Leslie chamou-nos à realidade:
- Vamos. E tomou o braço de minha irmã.
Lettie deixou-se conduzir ao longo da margem e depois sobre a ponte de madeira.
Quando descíamos cautelosamente a escarpa íngreme do pomar, ouvimos a voz de minha irmã:
- Sinto vontade de rir e de dançar, de fazer escândalo...
- Esperamos que não o faça, acudiu o seu admirador, aborrecido.
- Sim, sim, vou atirá-lo à água!
- Sossegue! intimou ele, agarrando-a pelas costas.
Ao chegar à porta que dá para o relvado, acrescentou umas palavras em voz baixa e empurrou a cancela. Suponho que lhe fez propostas definitivas, esperando obrigá-la a tomar um compromisso. Mas ela libertou-se e, vendo a extensão da relva onde a lua punha sombras largas, exclamou:
- Uma polca! Com a erva assim macia e curta pode-se dançar uma polca. Não importa que haja folhas de árvores pelo chão. Que bom, que bom!
Estendeu a mão a Leslie; foi, todavia, muito brusca a mudança para que ele aceitasse. De modo que chamou por mim, com um tom de ansiedade em que se notava o seu receio de ser apanhada nas malhas do sentimento, com uma noite daquelas...
- Cyril, dance comigo. Leslie detesta a polca.
Dancei com minha irmã. Esses passos eram instintivos em mim, como coisa inata. Voamos em redor do campo, levantando as folhas mortas. A noite, a lua tão próxima, o firmamento, os ramos das árvores, tudo nos envolvia de sobrenatural. Ninguém seria capaz de extenuar Lettie quando ela dançava: seus pés
dirse-iam asas batendo no ar. Quando por fim parei, ela riu-se, mais fresca do que nunca, e pôs-se a endireitar o cabelo.
- É delicioso! disse, satisfeita, falando agora com Leslie. Venha experimentar.
- A polca, não, respondeu ele com acento triste, achando que esses compassos frenéticos não estavam de acordo com a poesia dos seus sentimentos.
- Mas na relva úmida não se pode dançar outra coisa, demais a mais com estas folhas caídas... E você, George?
- Diz Emily que eu pulo demais.
- Não faz mal.
Num abrir e fechar de olhos, Lettie e George principiaram a polcar em desmedida velocidade, o que fez com que tombassem ambos no chão. O rapaz ergueu-se logo, levantou-a e recomeçaram num giro irresistível e tremendo. Emily e eu juntamo-nos ao baile. De vez em quando eu tinha a sensação de algo muito branco a flutuar perto de mim, com um rumor de saias alvoroçadas. Já estávamos cansados, e eles ainda se mantinham em plena dança. Quando terminaram, George apareceu com ar de triunfo, nervoso, forte - e ela divertida como uma bacante. Compreendera que, por essa noite, se encontrava livre do pedido de casamento.
- Já pôs ponto final? inquiriu Leslie.
- Já, respondeu Lettie, arquejando. Devia ter dançado também. Agora faça favor de me passar o chapéu. Por que está assim tão macambúzio?
- Macambúzio? repetiu ele.
- Ou, pelo menos, solene. Que sucedeu?
- Pergunta-me o que sucedeu?
- Isso é da lua. Veja: tenho o chapéu bem colocado? Mas olhe para mim! Então endireite-o. Mais. Ah, que mãos frias! As minhas, pelo contrário, estão quentíssimas. Desculpe todas estas travessuras. Estou pronta. Já reparou como estes crisântemos têm um cheiro tão fúnebre? Olhe a lua
a rir e a piscar os olhos através daqueles ramos. Que tem ela a ver com a tristeza dos crisântemos? Agarrou num punhado de pétalas e atirou-as ao ar
-Girem! Não quero melancolias. Gosto dos seres alegres, rudes, impetuosos!

 

CAPÍTULO 6

 

Como já disse, Strelley Mill fica no extremo norte do extenso vale de Nethermere; na encosta dessa banda jazem os seus terrenos aráveis e os seus pastos. O baldio, agora recinto fechado - visto pertencer à propriedade - ocupa a vertente ocidental. A terra cultivada confina com o curso impetuoso do ribeiro, depois com a linha das matas e finalmente com o tanque superior. Para além, a leste, ergue-se o aclive bravio, salpicado de ervas, de árvores antigas e dos espinheiros que fazem de
sebe. Ao longo da orla das colinas, a começar pelo nordeste, estão os bosques sombrios, que descrevem uma curva pelo sul e leste e descem sem governo até a margem de Nethermere, circulando a nossa casa. Da crista do monte oriental, olhando em frente, vê-se a agulha da torre na igreja de Selsby, alguns telhados e torres da mina de carvão.
O proprietário da fazenda, vasto domínio feudal, descendia de uma família antiga, outrora ilustre, mas atualmente decaída do seu esplendor. Ao contrário dos bens, que haviam diminuído, a árvore genealógica ramificara-se de maneira espantosa: já não era um simples roble inglês,
mas uma figueira-da-índia. Como haveria o bom
do homem de alimentar tanta gente com tão magros rendimentos, sem prejuízo do seu nome e das suas tradições? Quis o destino que os inúmeros coelhos, de que havia tocas por toda a propriedade, lhe indicassem a forma de subsistência; vendendo cada animal por cerca de um xelim, em Nottingham, estaria resolvido o magno problema.
Aqueles roedores espalhavam-se por toda a granja. Os cereais e a erva desapareciam da face da terra. O gado emagrecia, sem pasto onde se alimentar. Sem mugidos de vacas nem ladrar de cães, a herdade ficou transformada num ermo silencioso, por onde errava Halkett, o guarda-florestal.
Mas o dono adorava os coelhos e defendia-os contra os estratagemas do seu arrendatário, que andava desesperado. Protegia-os com a sua autoridade e com ameaças de despejo, e regozijava-se ao ver a chusma parda daqueles bichos daninhos movendo-se pelas encostas da colina.
O guarda sorria, flemático. E o fidalgo e um seu amigo apreciador do esporte percorriam de manhã as terras, ambos de espingarda na mão. Estava estabelecido que mais ninguém poderia usar ali armas de fogo.
Entretanto, Strelley Mill começava a mostrar as conseqüências daquela praga. Saxton queixou-se e o senhorio respondia que ele lhe arrendara tudo aquilo por uma ninharia. A soma recebida era absurda - portanto, deixasse os coelhos comerem à vontade! Discutiram, ingerindo whisky e o fidalgo acabou a conferência prometendo que teria uma conversa com Halkelt, para ver se arranjavam solução para o caso.
Nasci em setembro, e tenho uma ternura especial por este mês. Não há calor, nem confusão, nem sede, nem cansaço no corte das searas como sucede no tempo do feno. Se as colheitas se fazem tardiamente, como é comum entre nós, só em meado de setembro é que ficam prontas as medas. Amanhece devagar. A terra é como uma mulher casada que desperta cheia de languidez; não se levanta de um pulo aos primeiros beijos da alvorada, mas lentamente, sossegadamente, vendo chegar sem alvoroço cada novo dia da sua vida. As névoas azuis, como as reminiscências nos olhos da esposa preguiçosa, nunca se erguem da colina arborizada, e só ao meio-dia se afastam,
arrastando-se, das sebes mais próximas. Não há pássaros que façam soltar trinados da garganta da manhã; e, durante o dia, a única voz de ave que se escuta é a do corvo. Sente-se, é claro, a respiração regular e tranqüila das foices e o sussurro impertinente de segadora mecânica; mas, no dia seguinte, às primeiras horas, tudo está outra vez
silencioso. As espigas aparecem úmidas e, quando as amarramos e as erguemos para formar as moreias, aquelas paveias aconchegam-se macias e ficam melancolicamente pendidas.
Enquanto eu trabalhava com o meu amigo, naquelas manhãs calmas, conversava com ele e ensinava-lhe tudo quanto sabia a respeito de química, botânica, psicologia. alava-lhe da vida, do sexo e da origem dos seres, de Schopenhauer e de William James, do que aprendera com os meus professores. Companheiros de longa data, estávamos habituados um ao outro, e ele ouvia-me com atenção. O outono estreitava mais ainda a nossa intimidade. Desta vez levantei o assunto da poesia e ministrei-lhe rudimentos
de metafísica. George era bom terreno para as sementes que eu lançava. Não tinha dogmas, exceto no que respeitava a fazer as coisas a seu modo. A religião não o interessava. De modo que ouvia as minhas lições com espírito desempoeirado, compreendendo tudo rapidamente. Depressa as minhas idéias se tornaram suas também.
Regressávamos para almoçar em mangas de camisa: a tepidez da atmosfera constituía o nosso único abafo. Nesses momentos é coisa grata gozar-se uma camaradagem como aquela. Em tudo o outono punha a sua marca, desde os frutos, que amadureciam nas árvores, até as conversas que se estabeleciam à mesa e em que as vozes eram mais suaves e mais saudosas do que as da época do feno.
A tarde é morna e dourada. Os feixes de aveia parecem leves e, ao cair uns sobre os outros,
dir-se-ia que murmuraram segredos. O restolho fica a tinir quando os pés o sacodem. Ao levantarmos os molhos, soltam-se raminhos de silva que haviam ficado presos debaixo daqueles, e reparamos
que, nos caules dilacerados das dedaleiras, pendem ainda as últimas campânulas.
Falamos do povo, das nossas esperanças, do futuro - e do Canadá, onde o trabalho é inumano; onde as planícies são extensas e a gente não vive entalada num vale como um fruto que tomba num pomar exíguo.
A névoa insinua-se na languidez da tarde. Os feixes estão já atados e só falta erguê-los em medas. No poente, o sol descai entre um clarão de ouro; o ouro torna-se vermelho o vermelho escurece como um fogo a consumir-se rasteiro. Por fim tudo desaparece por trás de uma coluna de nevoeiro leitoso e purpureado como a flor pálida
das ameixoeiras.
Visto o casaco e volto para minha casa.

À noite, depois de ordenhadas as vacas, íamos espreitar as armadilhas colocadas aqui e ali. Atravessávamos o ribeiro e subíamos a vertente do monte, roçando as botas nas manchas negras das escabiosas e ladeando as cardos, cuja penugem cintilava ao luar, e tropeçando sobre montículos de terra levantados pelas toupeiras, entre a erva úmida e grossa. As colinas e os bosques estendiam as suas sombras; os lagos de névoa, no fundo dos vales, absorviam a luz trêmula e fria dos astros.
Alcançamos uma vez a velha quinta que se ostenta no cume do monte. As árvores haviam-na abandonado, deixando uma clareira enorme onde outrora existira um jardim. A minha admiração foi atraída para as janelas, onde não se descobria nenhuma luz, embora passasse pouco das oito horas. Reparando melhor no frontispício extenso e imponente, verifiquei que algumas dessas janelas tinham sido entaipadas, o que dava a desagradável impressão de um rosto cego. No meio daquela escuridão pareciam ainda mais negros os sítios onde a argamassa caíra.
Empurramos o portão e seguimos pelo passeio repleto de ervas e de plantas secas. Espiamos um quarto, que tinha também janela para o outro lado, através da qual o luar punha faixas brancas no chão lajeado, sujo de papéis e de feixes de palha. O fogão sobressaía à claridade, vendo-se montes de cinzas, restos de jornais queimados e uma boneca sem cabeça, em grande parte reduzida a carvão. A um canto via-se um boné de peles, que devia ter pertencido a um guarda de caça. Lastimei que o luar
devassasse o aposento: só a escuridão seria digna de reinar ali. Como tudo isso me entristeceu! - o fogão, as rosinhas no papel da parede...
Levado pelo seu instinto de lavrador, George foi visitar as dependências. O pátio surpreendeu-me, tão coberto estava de urtigas, altas como eu nunca vira, e o ar que se respirava denunciava-as imediatamente. Segui o meu amigo pelo estreito passeio de tijolos, e continuei a sentir arrepios. Dentro, porém, as construções apareceram-nos razoáveis em matéria de conservação: é que haviam sido restauradas várias vezes. Tinham bons vigamentos, eram confortáveis e apresentavam-se mais ou menos limpas. Aqui e ali encontramos penas de galinha e restos de um esqueleto de gato, conforme examinamos à luz de um fósforo. Ao entrarmos no estábulo, ouvimos ruído e logo avançaram, ameaçadoras, três enormes ratazanas. Recuei, tremendo, e tropecei num balde esburacado e enferrujado, de onde espreitavam ervas.
Depois houve um silêncio horrível, quebrado apenas pelo rumor que faziam os ratos e alguns morcegos a voar. Não dei com vestígios de cereais, palha ou feno: só ervas em pleno desenvolvimento... Depois de me encontrar em liberdade, no pomar, o meu tremor ainda continuava. Entre nós e o céu não se interpunham frutos: os pássaros os derrubaram e os coelhos os devoraram. Ou alguém procedera a uma colheita deles, por sua conta e risco.
- Nisto, murmurou George, com amargura, nisto é que o moinho há de se transformar.
- Depois da tua morte, retifiquei.
- Nunca chegarei a dirigir a fazenda. E meu pai pouco agüentará nela, com estes coelhos todos e outras complicações. O que fazemos não chega
a ser lavoura, dependente de tantas coisas atualmente, somos um misto de agricultores, de leiteiros, de hortelões, de transportadores. Tristes ocupações...
- Precisa viver, retorqui.
- De acordo, mas é estúpido. E o pai não se mexe, não transforma os seus métodos!
- E você?
- Eu? Para que hei de mudar? Estou bem em casa e, quanto ao futuro, deixo-o entregue a si mesmo enquanto ninguém precisar de mim.
- Laissez faire... rematei, sorrindo.
- Não é laissez faire, replicou ele, olhando em volta, é puxar o leite das tetas e deixá-lo correr. Repara!
Através do véu diáfano do luar que deslizava sobre a encosta podia-se ver vários exércitos de coelhos, ora avançando ora parando para comer desaforadamente.
Demos uns passos em direção à colina e eles espalharam-se logo. Aproximamo-nos da valeta que limita os campos do moinho. Então George soltou um grito e correu. Segui-o, e nessa altura descobri o vulto escuro de um homem que se levantava da sebe. Era o guarda. Fingia estar examinando a espingarda e, na ocasião em que chegamos junto dele, saudou-nos com voz calma: "Boa noite!"
George pôs-se a investigar a abertura existente na sebe, e disse:
- Está preocupado com aquele buraco...
- Sim, gostaria de saber o que pretendem, volveu o homem, que era corpulento e mal-encarado.
- Pode ver com os seus olhos... Tire a armadilha... e o coelho, respondeu George, de mau humor.
- Coelho? repetiu o guarda, voltando-se para mim com ar trocista.
- Sabe muito bem... Pode tirar... e então...
- Então o quê? Olhe que não me assusta!
George deu um passo em frente e cresceu para o homem, já fora de si.
- Cuidado! continuou o outro, medindo o meu amigo de alto a baixo. É melhor retirar-se... retiraram-se ambos. Não consinto que toquem na armadilha nem no coelho.
George fez um movimento súbito para agarrar o homem pelo casaco. Mas caiu logo de costas, derrubado com uma pancada forte junto da orelha esquerda.
- Grande besta! exclamei, quebrando o punho no queixo do agressor.
Quando dei por mim estava também por terra, e, com a vista ofuscada, ainda vi os calções de veludinho do guarda girando-me em torno da cabeça.
O homem desaparecera. Levantei-me, e levei a mão ao peito, ao lugar onde me doía. George ficara estirado junto da sebe. Dirigi-me a ele e esfreguei-lhe as fontes com ervas molhadas. O meu amigo abriu os olhos, fitando-me com ar esgazeado; depois, respirando com dificuldade, passou a mão pela testa.
- Aturdiu-me, não há dúvida!
- Inferno! bradei.
- Não esperava isto... Ele é que me atirou ao chão?
- E a mim também.
Por algum tempo, George conservou-se silencioso. Em seguida, tateando a cabeça, murmurou: - Ainda me dói. Tentou pôr-se de pé, sem o conseguir. - Meu Deus, ser reduzido a este estado por um reles guarda!
- Vamos retorqui. Experimentemos voltar para casa. O meu amigo acudiu logo:
- Convém que não saibam nada do que se passou.
Por meu lado, pensava na dor que sentia no peito e procurava recordar-me do murro que atirara ao queixo do vigia. - Se quebrei os dedos, disse com os meus botões, não dou por mal empregado o gesto. Levantei-me e ajudei George. A princípio, ele pendeu sobre mim. Depois já foi capaz de andar, mas com passos desencontrados.
- Estou enlameado? perguntou-me.
- Não muito, respondi, impressionado com o tom de pudor ofendido com que ele me falava.
- Limpe-me as costas.
Fiz o melhor que pude. Durante algum tempo seguimos através dos campos, tristes e calados.
- Mais tarde, já à beira da lagoa, fomos sobressaltados por umas enormes sombras sibilantes que passavam por cima da nossa cabeça. Eram os cisnes que procuravam abrigo, pois o vento frio começara a agitar Nethermore. Por cima das águas abaixavam-se e subiam continuamente, despedaçando o luar, e o ar repercutia o som daquelas asas que haviam desfeito o silêncio da noite. Ao entrarem na sombra, os cisnes ficavam tenebrosos como espectros.
O vento punha-nos arrepios em todo o corpo.
- Não dizes nada do que se passou?
- Não.
- A ninguém?
- A ninguém.
- Boa-noite.

Pelos fins de Setembro a nossa região foi alarmada: cães, vindos não se sabe de onde, começaram a devastar os rebanhos!
Certa manhã, um proprietário local, ao dar uma volta pelas suas terras, encontrou, cheio de horror, duas das suas ovelhas mortas, com o corpo dilacerado, junto de uma sebe. Os restantes animais haviam-se agrupado num canto, transidos de medo. Alguns tinham manchas de sangue na lã. Durante dias o proprietário andou amargurado com o desgosto que isso lhe causara.
Houve quem dissesse ter visto dois cães escuros, de aspecto feroz. O guarda do Doutor Collins ouvira uivos por volta da alvorada. Quando o pastor foi ver o rebanho encontrou três ovelhas banhadas em sangue.
Os lavradores deram então rebate. O dono da granja de White House tinha resolvido guardar o gado no redil, com os cães à porta. Mas, como era sábado, os pastores foram ver o teatro ambulante que fizera paragem em Westwold. Enquanto eles assistiam, boquiabertos, ao espetáculo, vendo as personagens morrer com muitas convulsões, a quererem falar sem conseguir articular palavra - seis das ovelhas daquela propriedade eram chacinadas no campo.
Indagou-se por toda a parte se havia ficado algum cão fora nessa noite. Ninguém respondeu afirmativamente.
Saxton possuía trinta ovelhas no terreno baldio, e George pensou que o mais simples e fácil seria dormir lá. Para esse fim construímos, ele e eu, um abrigo de canas entrelaçadas de ramos de silva, que durante a tarde, enchemos de braçados de grama. George dormiu ali naquela semana, com grande aflição da mãe - que ia esperá-lo de madrugada, no frio, com o avental cobrindo a cabeça. Não podia admitir a idéia de que o filho passasse a noite naquele lugar.
Por isso, no sábado, trouxe ele os cobertores para casa e levou Gyp para a cabana, a fim de o substituir na vigia. Acompanhei-o nessa ocasião e estivemos uns momentos a admirar as estrelas, que cintilavam sobre a escuridão da colina. De vez em quando uma ovelha balia, ou era um coelho que passava entre o matagal - e Gyp logo dava alarma.
O novoeiro arrastava-se pelas urzes e pelas sarças, onde as teias de aranha pareciam de prata. George, sentado fora do abrigo, disse-me então:
- Vi passar hoje dois tipos, com sacos e cordas.
- Deviam ser caçadores furtivos, disse. Falou com eles?
- Não. Não me viram. Eu estava dormindo quando um coelho entrou pelo cobertor, fugindo a um cão que o perseguia e a quem dei uma pancada que o fez ganir. O coelho ficou muito tempo junto comigo e depois fugiu.
- Que parece isto tudo?
- Não sei nem me importa.
Papai poderá arranjar-se sem mim e mamãe tem os outros filhos. O meu desejo é emigrar.
- Por que não foi?
- Ora, há tantas coisas que nos retêm em casa! Além disso, na pátria, sempre se é alguém, ao passo que no estrangeiro...
- No entanto, quer partir.
- Como é possível ficar? O vale está tornando-se bravio. Não produz nada. Por outro lado, não pode se dizer o que quer, e tudo continua sempre na mesma. É impossível fazer qualquer mudança: para qualquer parte onde se olhe, perde-se a vontade de pensar em coisas novas. Que há aí que mereça a pena?
De que vale a minha vida?
- O aconchego do lar não é nada que se despreze. George não respondeu.
- Que o leva a abandonar o ninho?
- Ao certo, não sei. Desde aquela questão com o guarda que não me sinto como era. Até Lettie me disse: Aqui não pode viver à sua vontade. É como um dos mosaicos de mármore do vestíbulo, tem que jogar certo com os outros. O pior é que você não deseja ser nenhum mosaico; pelo contrário, quer imiscuir-se na vida, fundir-se nela... Acredite sua irmã falava muito sério.
- O que ela diz não se escreve. Quando é que a encontrou?
- Veio na quarta-feira, de manhã, quando eu estava apanhando maçãs. Subiu comigo na árvore. Como soprava muito vento - e por isso é que resolvi apanhar os frutos - os ramos balançavam muito. Eu subi ao mais alto e Lettie ficou um pouco abaixo, segurando o cabaz. Como lhe perguntasse qual achava ser a melhor espécie de liberdade, é que ela me deu aquela resposta.
- Devia tê-la contrariado.
- Achei que era verdade.
- Que diabo! Parece-me esquisito.
- Não, sua irmã viu bem. Considera-me, ao que parece, uma espécie de pastelão...
- Mostrou-lhe que não era assim.
- Para quê? Sou isso mesmo.
- Dá a impressão de que está apaixonado. George riu-se, e declarou:
- Não, isso não. Mas é uma tristeza verificar que não tenho nada de que me orgulhe.
- Não conheço essa linguagem.
Arrancando punhados de ervas, com ar meditativo, o meu amigo respondeu assim à pergunta que fiz em seguida, quanto à época da sua partida:
- Ainda não sei. Por enquanto não disse nada à mamãe. Nunca será antes da primavera.
- Acontecerá qualquer coisa antes...
- O quê?
- Qualquer coisa decisiva.
- Não adivinho o que possa acontecer, exceto um despejo por parte do senhorio.
- Está na sua mão provocar os acontecimentos.
- Não brinque comigo, Cyril.
Gyp deu um pulo nesse momento, puxando a corrente com força para ver se conseguia acompanhar-nos. No mato, as ovelhas conservavam-se em repouso e eram manchas brancas no escuro da colina. Junto do chão arrastava-se a névoa fria.
- Apesar disso, Cyril, ter uma mulher que nos sorria à mesa; ouvi-la cantar enquanto arruma a casa, e à noite, antes de nos lavarmos... quando o
fogão está quente e nós estamos cansados ... Vê-la assim de perto, no aconchego do lar, falando com doçura...
- Castelos, George.
Sem fazer caso do meu comentário, ele tornou a rir-se e acrescentou:
- Sabe? Quando eu estava colocando os feixes e abraçando os maços, tive a impressão de que abraçava uma mulher. Foi uma sensação inesperada.
- Cuidado não vá se perder na rede dos sonhos. Sempre risonho, sem ligar as respostas, George continuou:
- Sonhando, o tempo voa. As manhãs passam num abrir e fechar de olhos.
- Meu Deus! Por que não esquece tudo isso em vez de insistir em tantas fantasias?
- Se o sonho é belo, por que não o havemos de prolongar? Com isso, terminou suas confissões. E eu voltei para casa. Fiquei na janela, a olhar para a paisagem procurando tirar o caso a limpo. O nevoeiro pousava nas águas de Nethermere; dir-se-ia uma dança de fantasmas sobre a lagoa. Antevi o tempo que meu amigo não estaria mais seguindo a grade da lavoura
ao longo do vale, e que a porta do quarto de Lettie estaria fechada para esconder a tristeza da sua desolação, e senti calafrios ao pensar nesse vácuo ameaçador que pesava sobre nós. Como poderia eu suportar tamanho isolamento? Que faria minha irmã?
Levantei-me cedo no dia seguinte, quando a claridade penetrava trêmulamente na floresta. A lua ainda era visível nas bandas de oeste. Saí. Morriam os últimos restos do verão e o mundo parecia diminuído desde aquela manhã. Já o cheiro do outono caía pesado e úmido das árvores. As folhas secas obstruíam os passeios.
Ao aproximar-me da herdade ouvi latidos; e, correndo, alcancei o baldio, onde encontrei o rebanho dividido em grupos e qualquer coisa que saltava pelo meio deles.
George apareceu também correndo. Repercutiu o tiro de uma espingarda. Peguei uma pedra e continuei correndo. À minha frente fugiam três ovelhas espavoridas: à luz indecisa do alvorecer, ainda vi as suas sombras alvacentas perderem-se no meio das urzes. Pulou um cão nesse momento e eu atirei-lhe a pedra com quanta força tinha. Atingi-o, porque o animal soltou um ganido lancinante; como ele escapava, fui no seu encalço, esquivando-me das sarças e saltando por cima das plantas rasteiras.
Os tiros continuavam; ouviam-se também gritos de homens excitados. O cão perdera-se de vista, mas eu segui sempre, descendo a colina. Num campo adiante notei alguém correndo. Galguei a sebe, que era baixa, e reconheci o vulto de Emily que dava largas passadas sobre a erva úmida. Mais tiros e mais gritos. Emily olhou em volta, deu comigo e disse, arquejante:
- É na pedreira.
Caminhamos para lá, sem dizer uma palavra. Ladeamos o bosque, acompanhamos o curso do rio e chegamos por fim ao local.
Havia agora árvore no lugar das antigas escavações; e as paredes escarpadas, de grande profundidade em alguns pontos, tinham desmoronado, sendo muitas das pedras arrastadas. Descemos a margem e entramos na pedreira pelo leito do rio. Junto aos troncos dos freixos e dos carvalhos brilhavam primaveras pálidas, pendendo frouxas
para as águas que corriam ocultas. Emily encontrou vestígios de sangue num belo renque de bons dias amarelos. Seguimos esses traços até onde o ribeiro deságua em fundo áspero e rochoso e o chão da pedreira não é mais do que um emaranhado de sarças e madressilvas.
- Arranje uma pedra, aconselhei, enquanto nos comprimíamos na passagem estreita e a água deslizava silenciosa debaixo dos ramos dos arbustos e dos cabelos desgrenhados das ervas. Pesquisamos todo aquele abrigo, quase até a estrada. Palpitava-me que o cão estivesse ali: ouvi como que um rosnar, seguido de gemidos. Quebrei uni galho de sorveira e, avançando sempre, fomos ter no lugar dos velhos fornos de cal.
Na boca de um desses fornos, Emily caiu, ficando ajoelhada junto de um cão. Os movimentos que o animal fazia eram os espasmos da morte; revirava os olhos e mostrava os dentes, nas vascas dá agonia. Emily, segurando-o pela garganta, puxou-lhe â cabeça para trás.
- Morreu! exclamei. Chegou a feri-la? Empurrei-a para um lado e ela estremeceu, como se tivesse horror de si mesma.
- Não, não, respondeu, olhando para os braços e para a saia, onde havia marcas de sangue.
A minha pedrada atingira o cão, e Emily, ajoelhando, sujara-se na ferida.
- Mordeu-a? insisti, ansioso.
- Não. Limitei-me a observá-lo e ele ainda se levantou. Bati-lhe então com a pedra, mas perdi o equilíbrio e caí.
- Deixe-me lavar-lhe o braço.
- E horrível, não acha?
- O quê? perguntei, ocupado já a procurar-lhe água no ribeiro.
- Toda esta história...
- Devia-se queimar isto, sugeri, olhando para o ferimento que lhe encontrei no braço.
- Este arranhão? Não é nada! Veja agora se consegue limpar-me a saia. Sinto-me repugnada.
Com o lenço molhado lavei-lhe o melhor que pude, insistindo:
- Deixe-me queimar-lhe essa ferida. Podemos ir às valas. Consinta nisso... é o seu dever... Doutra maneira não fico descansado.
- Acha que sim? retorquiu ela erguendo a vista para mim com um sorriso a esboçar-se nos belos olhos negros.
- Sim... vamos lá.
- Ah! Ah! riu ela. Que ar tão grave!
Toquei-lhe no ombro e impeli-a para diante. Emily enfiou o braço no meu e inclinou-se para mim.
- Tal qual Lorna Doone, disse ela com expressão divertida.
- Sim, mas deixe-me fazer-lhe o que pedi, repliquei eu, referindo-me à cauterização.
- Está bem; mas vai-me doer... Ui! Nem quero pensar nisso. Dê-me algumas dessas flores.
Apanhei um cacho de flores de viburno, com bagas rubras e translúcidas. Emily chegou-as às faces e aos lábios, acariciando-as. E murmurou:
- Sempre desejei pôr flores vermelhas no cabelo.
Tinha o xale sobre os ombros e a cabeça descoberta. Os cabelos, pretos, macios, curtos, envolviam-na caprichosamente. Não seria fácil segurar aí, durante muito tempo, os frutos carnudos do viburno, embora ela enfiasse os pezinhos deles nos dentes das travessas.
Já com os cachos a cintilarem-lhe entre os caracóis, ela fitou-me, de olhos muito abertos. Correspondi ao seu olhar, è vi que ela esboçava um sorriso triunfante. Então, puxando da sebe um galho de bons-dias, arranquei-o e torci-o em forma de grinalda.
- Vou coroá-la, disse eu. Ela, rindo, desviou a cabeça.
- O quê! retorquiu, pondo na exclamação toda a temeridade da sua alma ansiosa.
- Não será Cloé nem Bacante. A sua alma reflete-se nos olhos, ardente e perturbada.
O riso esmoreceu de súbito e ela mirou-me outra vez séria e suplicante.
- É antes como uma donzela de Burne-Jones. Nos seus olhos acumulam-se sombras e você não as expulsa. Você pensa que a polpa da maçã não é nada e só se preocupa com as sementes. Por que não a morde e a come, deitando-as fora?
Emily observou-me com ar triste, sem compreender, mas crendo que eu, na minha sabedoria, falava verdade, como achava sempre que se transviava no labirinto das minhas palavras. Inclinou a cabeça, caiu-lhe a grinalda e só ficou um cacho de bagas. Em redor de nós, no chão, espalhavam-se castanhas de faia, de envolta com folhas secas de tons de ouro. Emily apanhou alguns desses frutos.
- Gosto disto, declarou ela, mas faz-me lembrar tanto a infância que sinto vontade de chorar. Ir buscar castanhas antes do almoço, enfiá-las num colar... fazer inveja às outras pequenas, na escola! Sentia tanto gosto em possuir um colar desses como hoje sinto prazer com o Outono - com a diferença de não haver tristezas à mistura. Depois de se crescer já não se experimentam alegrias puras.
Enquanto falava, Emily ia apanhando mais frutos, curvada para o chão.
- São apenas ouriços ou têm dentro alguma coisa? perguntei.
- Duas ou três completas. Tome-as. Não quero para mim.
Despi o invólucro espinhoso de uma delas e devolvi-a. Emily abriu a boca para comer, sem deixar de me olhar. Há pessoas que, em vez de se acompanharem de esplendores, arrastam consigo nuvens de tristeza. Possuem o condão de ver tudo negro, e proclamam que só o pesar é que é real. Anjos sombrios para quem a dor é bela e constitui a suprema felicidade. Isso mesmo se lê nos seus olhos,
se depreende das suas vozes. Emily era assim. Fascinava-me e ao mesmo tempo fazia-me sentir revoltado.
Seguimos o caminho sombreado de faias antigas. Adiante descia a encosta coberta de cardos e de ervas ásperas. Depressa tivemos vista do lugar das valas, que foi teatro de tanta animação no tempo de Lord Byron e agora estava deserto, rodeado de espesso matagal. As vidraças da casa desapareciam sob o pó acumulado: já não havia necessidade de protegê-las contra o gado, os cães ou os homens. Uma das três casas era habitada. Fora, junto da porta, caía água límpida sobre uma pedra enorme, gotejando de uma bica.
- Espere, disse eu a Emily, deixe-me abotoar-lhe as costas do vestido.
- Abriu? disse ela rapidamente, olhando por cima do ombro e corando.
Enquanto eu desempenhava esse trabalho, saiu do prédio uma moça que trazia nas mãos uma chaleira e uma xícara. Ficou tão admirada de me ver naquela ocupação que se esqueceu do que ia fazer e parou boquiaberta.
- Sara Ann! gritou uma voz, do interior da casa. Vem fechar a porta.
A moça, com a xícara, encheu a chaleira. Em seguida pousou tanto uma coisa como outra e cruzou os braços para aquecê-los. A sua roupa consistia num corpete cinzento e saia vermelha de flanela, tudo muito rasgado. Os cabelos pendiam despenteados pelos ombros abaixo.
- Precisamos entrar, disse eu, aproximando-me dela, que, assustada, lançou mão da xícara e correu para dentro, chamando:
- Mãe!
Do interior da residência saiu uma mulher. Trazia um seio de fora, o que tombava sobre a blusa - como esta cala solta por cima da saia. O cabelo, de um tom ruivo desvanecido, estava em desordem, denotando que ela se levantara nesse momento da cama. Às pregas da saia agarrava-se um garoto magro, de camisa escandalosamente curta: tinha olhos muito grandes, com que nos olhava cheio de espanto, e a cara quase toda suja de gema de ovo. A mulher fitou-nos com ar lânguido e inquiridor.
Disse-lhe o que queríamos,
- Entrem, entrem, convidou ela. Mas não reparem na casa. Os meninos ainda não levantaram. Vem aqui Billy.
Entramos, e eu levei comigo a chaleira que a jovem esquecera junto da bica. A cozinha, espaçosa, era escassamente mobilada: as crianças, porém, bastavam a enchê-la. A mais velha, com seus treze anos, assava um pedaço de toucinho com uma das mãos, e na outra segurava a camisola. Como a queimasse o calor da chama, passou o toucinho para a outra mão e lambeu os dedos a fim de atenuar o ardor. Feito isto, voltou à posição primitiva. O cabelo castanho claro pendia-lhe em pesadas melenas pelas costas abaixo. Sentando no guarda-fogo de aço estava um rapazinho a molhar um pedaço de pão na gordura que ia escorrendo do toucinho. "Um dois, três, quatro, cinco, seis pingos." E, depressa, o pequeno deu uma dentada no pedaço engordurado e continuou a sua tarefa com a outra mão. Quando nós entramos, o garoto tentou puxar a camisa até os joelhos, gesto que desperdiçou alguns pingos do toucinho. Sobre uma almofada via-se um nenê corado e gorducho - que, evidentemente, acabara de mamar; agora esperneava enquanto outro rapaz dava-lhe pão com manteiga pela boca dentro. A mãe correu para o diva, tirou o pão da boca da criança, introduziu-lhe o dedo na garganta, levantou-a, bateu-lhe nas costas, e ficou muito aliviada quando o filho começou a chorar. Depois administrou palmadas sonoras nas nádegas despidas do autor da proeza. Este começou a gritar, mas calou-se de súbito quando nos viu rir. No pano, que serviu de tapete junto da lareira, estava uma linda criança entretida lavando com chá a cara de uma boneca de pau e enxugando-a na camisola. À mesa, numa cadeira alta, outro menino sugava um pedaço de toucinho, cuja gordura escorria, através dos dedos, pelos braços escuros. Instalado numa poltrona ampla, um rapaz maior ocupava-se em despejar numa vasilha de leite os resíduos de chá que estavam nas chávenas. A mãe, ainda com o bebê ao colo, afastou a vasilha e precipitou-se para o garoto.
- A minha vontade era dar cabo de você! disse ela. Mas ele escapuliu para baixo da mesa e ali ficou sereno e indiferente.
- Poderia emprestar-me uma agulha de malha? perguntei eu à mulher, depois de esta recomeçar a amamentar a criança.
- Sara Ann! Onde estão tuas agulhas? indagou ela, encolhendo-se ao mesmo tempo e pondo a mão na boca do nenê que chupava o peito. Vendo que eu a fitava, explicou então:
- Não calcula como ele morde. Só tem dois dentes, mas parecem seis lancetas. Carregou o sobrolho e apertou os lábios, enquanto falava à criança: - Feio menino! Não tem vergonha de morder assim sua mãe?
A atenção da criançada estava agora dividida entre seus interesses particulares e a nossa presença - com exceção do garoto que sugava o toucinho com o mesmo afinco e imobilidade de sempre.
- Onde está o meu trabalho de malha, Sam?
Pegou-o? inquiriu Sara Ann, depois de uma busca breve.
- Não peguei, respondeu Sam do seu esconderijo.
- Pegou, sim, interveio a mãe, dando um pontapé ao acaso, por baixo da mesa.
- Não peguei, não, senhora, insistiu o moleque.
A mulher sugeriu diversos lugares onde poderiam encontrar o que procuravam, e, por fim, o objeto das pesquisas foi achado na gaveta da mesa, entre garfos e velhos espetos de pau. A mãe dirigiu então algumas censuras à filha, em tom amigável, mas Sara Ann não deu atenção; estava preocupada com o seu trabalho de malha, - um regalo de lã encarnada, que serviria para o próximo Inverno. Na parte já feita haviam-lhe espetado um sacarrolhas, e o novelo tinha espetos de pau atravessados.
- Foi você, Sam, queixou-se a pequena. Não há dúvida de que foi você.
O acusado replicou de baixo da mesa com uns versos chocarreiros, e a mãe estremeceu toda com a gargalhada que soltou.
- Foi o pai que lhe ensinou aquilo, explicou-lhe, ela, envaidecida.
Depois de mais uma troca de palavras, levaram a agulha ao fogo. As crianças observavam muito interessada.
- Quer você mesmo fazê-lo? perguntei a Emily.
- Eu? exclamou ela, arregalando os olhos e abanando a cabeça.
- Então serei eu.
Peguei na agulha, segurando-a com o lenço. Depois segurei sua mão e examinei a ferida. Emily, porém, quando viu o clarão do metal quente, puxou o braço, olhando sempre e rindo histericamente, cheia de medo e da vergonha de ter medo. Conservei-me sério, sem ceder, e ela acabou por estender outra vez a mão, enquanto mordia os lábios imaginando a dor que iria suportar.
O meu olhar infundiu-lhe, no entanto, coragem; mas, quando desviei a vista para a operação, Emily soltou um grito que terminou em risada, levou as mãos atrás das costas e fitou-me de novo, trêmula, apreensiva, envergonhada, sempre sufocada por um riso que era já suplicante.
Uma das crianças começou a chorar.
- Para que serve isso? disse-lhe eu, atirando para a lareira a agulha já fria.
Dei às mulheres todo o dinheiro em cobre que levava. A Sam, que permanecia debaixo da mesa, ofereci uma moeda de prata e ao outro pequeno um canivete que encontrei no bolso. Por causa de uma diabrura daquele, ficaram todos em desordem, e nós saímos no meio da grande confusão. Emily, contudo, mal reparava no que se passava: os seus pensamentos giravam em volta de si mesma - e em torno de mim.
- Sou tão covarde! murmurou ela, com ar humilde. Mas isto é mais forte do que eu... acrescentou, quase num rogo,
- Não se importe, repliquei. -' É impossível evitar, insistiu.
- O que tem graça é que, nada conseguiu distrair a atenção do menor.
- É verdade, assentiu ela, mordendo a ponta do dedo, pensativa.
Nossa conversa foi interrompida pela algazarra que vinha da casa. Sam corria agora atrás de nós, brincando. As perninhas tremiam-lhe, a camisa flutuava-lhe à brisa da manhã. Por fim pisou um cardo ou outra coisa espinhosa, porque o vimos parado e silencioso, com uma perna no ar e segurando o pé com ambas as mãos.

CONTINUA

Depois de Mulheres Apaixonadas, Canguru, História de uma Jovem, Serpente Emplumada e Filhos e Amantes, de D.H Lawrence, todos publicados no Brasil por cessão dos direitos autorais da Portugália de Lisboa, surge agora um dos maiores best-sellers do grande escritor inglês - Decadência pelo Amor. Nesse romance, como em todos os de Lawrence, um dos principais interesses reside na beleza do estilo. Muitas das suas páginas constituem verdadeiro poema pastoril. O vale de Nethermere é uma região paradisíaca onde o moço George Saxton, lavrador e filho de lavradores, vive a sua adolescência. Solicitado pelo amor de uma mulher de classe superior, sensível e educada, ele não tem coragem de se lhe declarar abertamente, colhido pela indecisão constante que o caracteriza. Ela se casa com um industrial mas não alcança a felicidade e ele, como desforra, faz o mesmo com a parenta, proprietária de um armazém. Privado do sonho que acalentara, aos poucos vai se degradando fisica e moralmente, até se tornar um ser apático, dominado pelo álcool. No entanto, não consegue libertar-se dos laços que o prendem à terra natal e as mesmas florestas, o mesmo céu, as mesmas águas que o viram assistem, desolados, à sua decadência irremediável. Decadência pelo Amor é, portanto, um livro que ser lido o quanto antes, pois prende a atenção do leitor irresistivelmente.


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Tudo ali parecia ter ficado na contemplação do passado: as árvores antigas, indiferentes à carícia do sol; as ervas que se mantinham espessas e imóveis; a aragem que nem sequer fazia mexer os ramos dos salgueiros; e a água da lagoa sempre plácida e silenciosa. Mas a corrente do moinho denunciava ainda o tumulto de vida que outrora agitara aquele vale, e os peixes alvos, na obscuridade da represa, continuavam a precipitar-se com movimentos rápidos.
Estava observando-os quando uma voz inesperada me sobressaltou e quase me fez cair, do tronco de álamo onde havia me empoleirado.
- Que está vendo aí? perguntou o meu companheiro, rapaz de olhos castanhos, de pele queimada pelo sol e coberta de sarda, um belo tipo de lavrador, solidamente construído. Ao notar o meu susto, riu e olhou para mim, cheio de curiosidade.
- Nada... Penso em como tudo isto é velho e como obriga à meditação.
Recostando-se na margem, ele esboçou um sorriso indulgente e retorquiu:
- Belo lugar para dormir.
- Sua vida é um sono contínuo, respondi. Será uma piada quando alguém o acordar.
George sorriu de novo, passou as mãos pelos olhos para atenuar o brilho da luz, e replicou em voz pausada:
- Por que motivo será assim tão divertido?
- Ora... Você mesmo achará muita graça.
Ficamos calados algum tempo, até que ele, tateando ao acaso a terra, observou com os seus modos indolentes:
- Parece que adivinhei a razão deste zumbido.
Examinou o local e viu que tinha batido com os dedos em um ninho desses lindos insetos que se diria terem mergulhado o corpo em reluzente poeira de âmbar. Excitados, puseram-se a correr em torno dos ovos vazios; alguns provaram as asas num vôo incerto antes de se lançarem abertamente no espaço, George
espiou os que se meteram entre a relva e que andavam para cá e para lá, dominados pela aflição.
- Por aqui, disse ele, aprisionando um entre caules de erva e tentando desprender, com outra haste, as asas unidas onde havia reflexos de anil.
- Não faça maldades, recomendei.
- Isto não o magoa. Quero ver apenas se é por não poder abrir as asas que ele não consegue voar. Olha, lá vai. Não, não é ainda. Vou experimentar noutro.
- Deixe-os em paz, repliquei. Deixe-os gozar o sol. Acabam de vir ao mundo, não os obrigue a cansaços.
George insistiu, apesar de tudo, e quebrou a asa da sua vítima.
- Coitado! exclamou, esmagando o bicho entre os dedos. Em seguida pôs-se a examinar as larvas e os ovos, sem qualquer método científico, perguntando-se
se eu conhecia alguma coisa de insetos. Depois de ter acabado suas observações, lançou tudo aquilo à água, levantou-se e exibiu o relógio, extraindo-o
das profundezas do bolso.
- Bem que eu achava que eram horas de comer, declarou ele, sorrindo para mim. Adivinho sempre a aproximação do meio-dia. Vamos para casa?
- Com todo o gosto, retruquei. Seguimos ao longo da margem e atravessamos a ponte de madeira sobre a comporta. Em frente, o pomar de árvores contorcidas, descia em áspero declive. Em seguida vinha o jardim.
As pedras da casa quase desapareciam debaixo dos ramos de hera e madressilva, e os lilases atravancavam o portão. Passamos sempre, contornando a casa, e fomos, pelo passeio de tijolos, dar à porta dos fundos.
- Feche-a, sim? pediu-me ele, que entrara em primeiro lugar.
Através da copa, um lugar espaçoso, alcançamos a cozinha. Nesse momento a criada tirava a toalha, de dentro de uma gaveta, e a mãe do meu amigo, figurinha delicada, de olhos grandes e castanhos, andava em volta da lareira com um garfo na mão.
- O almoço não está pronto? perguntou George, num tom já ressentido.
- Não, filho, a lenha não queima, replicou ela, desculpando-se. Mas espero terminá-lo em pouco tempo.
George deixou-se cair num sofá e começou a ler um romance. Eu fiquei com vontade de ir embora. Mas a dona da casa insistiu para que eu ficasse.
- Não vá, pediu ela. Emily há de gostar tanto de vê-lo! E o meu marido também. Sente-se, faça favor.
Sentei-me numa cadeira de junco, perto da janela que dava para o pátio. Já que George estava entretido na leitura e a mãe ocupada em diligenciar que a carne e as batatas cozinhassem depressa, era natural que eu me entregasse aos meus próprios pensamentos. Assim foi. O rapaz, esquecido agora das suas reclamações, continuava embebido no romance: de vez em quando puxava o bigodinho, com indolência, sem se
importar que o cão se esfregasse de encontro às polainas e às joelheiras dos calções de montar. Divertido com o bigode e com o livro, nem sequer se lembrava de brincar com as orelhas de Trip; enquanto torcia e retorcia entre os dedos os fios castanhos daquele adorno viam-se se mover levemente, sob a pele clara os músculos do braço nu. Por cima dele, a janelinha quadrada filtrava uma claridade verde, vinda até ali por entre as folhas do castanheiro enorme do pátio: a luz incidia-lhe no cabelo
escuro e espalhava-se no quarto, refletindo-se na louça que Annie tirava da prateleira e no mostrador do relógio de caixa.
Aquela cozinha era bastante ampla, de tal modo que a mesa parecia perdida no meio dela e as cadeiras como que saudosas da vizinhança do sofá. Ao fundo, o buraco da chaminé assemelhava-se a uma caverna negra e os bancos da lareira pareciam formar outro compartimento avermelhado pelo clarão das chamas, onde a mãe de George rondava. Assim a grande cozinha mostrava-se um pouco árida, com as lajes cinzentas à mostra, todas desiguais, a sua escassa mobília, e os recantos excessivamente sombrios. As únicas coisas alegres que se viam ali eram a chita do canapé e as almofadas da poltrona, que davam tons escarlates ao ambiente melancólico. Também o
relógio se destacava pelas cores vivas com que tinham pintado as aves que o adornavam, e isso bastaria para provocar o sorriso de alguém menos contemplativo do que eu: para mim, aquilo só causava admiração.
Daí a pouco ouvimos o pisar de botas pesadas, e o dono da casa entrou. Era homem corpulento, meio calvo, com alguns fios de cabelo encaracolados em volta da cabeça.
Vendo-me, soltou uma exclamação jovial:
- Ora viva, Cyril! Ainda bem que não nos esqueceu. Depois, voltando-se para o filho, acrescentou: E lá na mata, continuam os problemas?
- Acabaram-se, respondeu George, sem desviar os olhos do livro.
- Fico contente em saber. Os coelhos roeram os nabos, explicou o recém-vindo, dirigindo-se à mulher.
- Já contava com isso, observou ela, entretida com as suas caçarolas. As batatas haviam acabado de cozinhar, e ela afastou-se do lume, com a panela fumegante nas mãos.
O jantar foi posto na mesa. O pai começou a trinchar, e o filho, que levantara a vista de cima do livro para verificar a comida, continuou a ler até que lhe enchessem o prato. A criada tinha-se sentado já na sua mesinha, próximo da janela, e começara a comer. Nessa altura sentiram-se no corredor de tijolos os passos de duas pessoas,
e logo a seguir apareceu uma criança seguida da irmã mais velha. A primeira vinha com um chapéu de marinheiro, debaixo do qual surgiam, ariscos, os cabelos compridos e escuros; mas arrancou-o logo e atirou-o para longe, instalando-se à mesa e conversando sem cerimônia com a mãe. A irmã, moça dos seus vinte e um anos, sorriu para mim, lançando-me um clarão dos seus olhos castanhos, e foi lavar as mãos. Voltou depois e sentou-se, olhando com ar desconsolado a carne mal passada que tinha à sua frente.
- Detesto isto assim, declarou ela.
- Faz bem, replicou o irmão, que começara a comer com todo o vagar. Dá-lhe músculos para castigar os alunos.
Contudo, a interessada não aceitou o conselho. Afastou o prato e preferiu comer vegetais. O irmão, pelo contrário, tornou a encher o seu de carne e continuou a mastigar. Então a menina, a quem chamavam Mollie e que tinha doze anos, observou em tom pouco amigável:
- Podia ter-me passado o molho...
- Sem dúvida! E a carne também.
- Isso já não seria da sua vontade...
- Que esperta! comentou o rapaz, ainda com a boca cheia.
- Acha? interveio, irônica, a mais velha, Emily.
- Claro que sim, visto que você a fez à sua imagem e semelhança, quando ela esteve consigo na escola. Mãe, acrescentou George, se me encontrasse uma batata bem cozida...
- Quando provei achei-as boas. Veja esta, que é a mais mole. Cozinharam tanto tempo!
- Não vale a pena apresentar-lhe desculpas e explicações, opinou Emily, irritada.
Sem se dirigir a ninguém em particular, o irmão ponderou muito calmo:
- Esta manhã ela teve muitos alunos endiabrados, com certeza. ..
- E bateu num deles até lhe fazer espirrar o sangue pelo nariz, acudiu Mollie.
- Ah, também você! redarguiu Emily, engolindo com dificuldade. Pois fique sabendo que não me arrependi. São levados da... da...
- Da breca, concluiu George, ajudando-a a completar a frase.
Emily não pareceu satisfeita com o auxílio do irmão. O pai soltou uma gargalhada. E a mãe olhou aflita para a moça, que nesse momento baixou a cabeça, pondo-se a fazer desenhos na toalha, com o dedo.
- São piores do que os do ano passado? perguntou a mãe. A resposta de Emily foi curta:
- Nem por isso,
- O que não impede de lhes bater com força, atalhou George. Dê-me mais açúcar, Annie, pediu ele, olhando para o açucareiro e para o pudim.
A criada levantou-se da sua mesinha, e a mãe, por sua vez, correu aos armários. Emily, ocupada com o almoço, saiu da sua soturnidade para dizer com amargura:
- O que eu queria, George, é que você também fosse professor. Curar-se-ia das suas fanfarronadas.
- Eu? retrucou ele, desdenhoso. Seria capaz de deixar todos pondo sangue pelo nariz.
- Gostaria de ver...
Esta discussão parecia ter feito cócegas à irmã mais nova. De fato, Mollie desatou às gargalhadas, o que assustou a mãe, receosa de que a pequena sufocasse no meio da sua hilaridade.
George, ao ver as contorções de Mollie, observou-lhe:
- Está rindo muito.
Emily é que não pôde agüentar mais o diálogo. Levantou-se e abandonou a mesa. O pai e o filho, daí a pouco, foram ver a plantação de nabos, e eu acompanhei as moças que voltavam à escola.
Enquanto seguíamos pelo passeio ladrilhado, Emily declarou me cheia de convicção:
- George irrita-me com o que faz e com o que diz.
- Às vezes é egoísta, arrisquei.
- Se é! insistiu. Irrita-me deveras com os seus grandes ares de sabichão, com a sua importância... Mamãe, então, humilha-me tanto!
- Vejo que ficou furiosa...
- Furiosa! repetiu ela numa voz que vibrava de cólera e nervosismo. Demos uns passos em silêncio e Emily perguntou-me: Trouxe-me os versos?
- Não... Desculpe... Esqueci-me deles outra vez. Para falar franco: destruí-os.
- Mas tinha prometido!
- Sabe o que são as minhas promessas. Não se pode confiar em mim.
Emily mostrou-se mais carrancuda e desanimada do que seria de esperar. Quando me despedi, numa volta do atalho, senti remorsos pelo meu procedimento. Isso acontecia sempre depois que ela ia embora.
Passei depressa através do regato que saía da lagoa. As pedras, onde eu ia pondo os pés, pareciam brancas sob a claridade do sol; a água deslizava entre elas. Quase indistintas de encontro ao azul do céu, à minha frente voavam duas borboletas, pousando de flor em flor e indicando-me o caminho. Os campos exalavam calor e eu diminui o passo a fim de enveredar pelo bosque onde os carvalhos faziam uma sombra reconfortante. Lá dentro tudo estava silencioso e fresco, e eu tive prazer em demorar
na vereda arborizada, seguindo entre plantas que pareciam estender os braços para mim. O centro da floresta irradiava suavidade; mas fui sempre andando, incitado pelo ataque de um exército de moscas degladiando em torno da minha cabeça - até que, ao chegar aos rododendros do jardim, elas me abandonaram atraídas pelo açúcar que Rebeca punha
debaixo das vasilhas com vinagre.
A casa, baixa e vermelha, com o seu telhado abatido e já sem cor, adormecera ao sol e dormia agora profundamente na sombra que lhe projetavam as árvores enormes que se julgaria terem fugido da selva.
Não encontrei ninguém na sala de jantar, mas escutei o rumor da máquina de costura, vindo do escritório, semelhante ao zumbir de um inseto descomunal, ora mais forte, ora mais atenuado, depois muito regular... Em seguida chegaram-me ao ouvido notas musicais, leves, um tanto puladas, como se uma rã andasse saltando sobre o teclado do piano da sala.
- Deve ser mamãe tirando o pó, disse com meus botões. Desabituado como estava aquele som, não admira que me sobressaltasse por momentos. Aquelas cordas, escondidas atrás da seda verde - virando uma dobra é que se via como o tempo a desbotara - tinham-se tornado, com a idade, secas e afônicas
como as de uma garganta de velha. O decorrer dos anos amarelecera as teclas do piano da minha mãe e carcomira-lhe as pernas delicadas. Pobre objeto sonoro, que mal respondia ao contato dos dedos de Lettie, se esta, por brincadeira, experimentasse
pô-lo a vibrar. Mas a verdade é que ele se conservava sempre fechado, a não ser para consentir na visita do espanador...
E agora, inesperadamente, ei-lo murmurando uma antiga melodia vitoriana. E eu logo imaginei uma figura pequenina de mulher, modesta e recatada, com belos cachos de caracóis de cada lado do rosto, sentada ali a tocar... Essa música despertava-me sensações de outrora sem que a memória, no entanto, me socorresse. Quando eu tentava, a todo o custo, recordar-me, Rebeca entrou na sala de jantar, a fim de tirar a mesa.
- Quem está tocando, Beck? perguntei.
- A sua mãe, Cyril.
- É uma coisa que ela nunca faz! Julguei que não sabia.
- Ah, respondeu Rebeca, esqueceu-se do tempo em que era pequeno, quando brincava junto das saias da sua mãe, e ela cantava para você. Não se lembra, com certeza, de vê-la de caracóis sedosos e castanhos. Sim, não se lembra de quando ela cantava e tocava, antes que Lettie viesse e que o seu pai...
Rebeca deu meia volta e saiu do quarto - e eu fui ver o que se passava na sala. Minha mãe estava sentada defronte do piano: sorria e, com os dedos roliços e pouco ágeis, feria de leve o marfim. Nesse instante Lettie passou correndo a meu lado, dirigiu-se para mamãe e, abraçando-a e beijando-a, disse:
- Meu Deus, não sabia que tocava piano!
- Nem eu, replicou a interpelada, rindo-se e fugindo ao abraço da moça. Quis ver apenas se seria capaz de martelar esta velha melodia. Aprendi-a em pequena, neste mesmo piano, que já estava desmantelado. Mas não tinha outro.
- Toque outra vez, por favor. Lembrou-me o som de cristais do lustre, roçando uns pelos outros. E a sua posição, sentada na banqueta, era tão delicada... Vá, toque mais!
- Não, retorquiu mamãe, esquivando-se à insistência de Lettie. Só mexer nas teclas basta para me tornar sentimental. E vocês não gostariam
de me ver com lágrimas nos olhos, depois de velha...
- Velha! repetiu Lettie, em tom de censura, e voltando a beijá-la. Está ainda muito nova para tocar romanças, sem parecer ridícula. Fale-nos a esse respeito.
- A respeito de quê?
- Do tempo em que tocava piano.
- Antes que os meus cinqüenta e tantos anos me tolhessem os dedos? E tu, Cyril, onde esteve, que não apareceu para o almoço?
- Estive apenas no Strelley Mill, respondi.
- Já calculava, respondeu minha mãe, falando agora com frieza.
- Por que diz que já calculava?
Lettie, nesta altura, interveio com o seguinte comentário:
- E saiu, é claro, logo que Emily voltou para a escola...
- Saí, sim.
Pareciam ambas indispostas comigo. Disfarcei o meu ressentimento e esclareci:
- Convidaram-me para almoçar.
Minha mãe não se dignou pegar a deixa. Foi Lettie quem prosseguiu no interrogatório:
- O ilustre George terá já encontrado alguma namorada?
- Não, declarei logo. Não há nenhuma bastante qualificada para ele.
Minha mãe observou por seu turno:
- Cada vez percebo menos o que é que você aprecia nessa gente.
- Não seja má, respondi um tanto formalizado. Sabe muito bem que gosto deles.
- Sei que gosta dela, atalhou minha mãe, com ar sarcástico. Quanto ao irmão, não passa de um malcriado. Nem se podia esperar outra coisa desde que sua mãe o estragou com tantos mimos. Mas, se tem empenho em corrigi-lo... Dizendo isto, franziu o nariz, desdenhosa.
- Acho-o bem interessante, observou Lettie com um sorriso. Você é que podia fazer dele um homem, disse-lhe eu, curvando-me zombeteiro.
- Não me interessa, replicou ela no mesmo tom de troça. Meneou a cabeça, e todos os cabelos finos, livres de ganchos, ficaram como uma poeira de ouro à luz do sol.
- Que vestido ponho? perguntou ela.
- Sei lá! respondeu minha mãe.
- Acho que vou vestir o verde - embora esta luz possa desbotá-lo, disse ela, pensativa. Era bastante alta e magra, de cabeia louro, com reflexos
acastanhados, lindos olhos e sobrancelhas - o nariz nada tinha de bonito; as mãos é que eram muito belas.
- Onde vai? indaguei. Lettie não me deu resposta.
- A casa do Leslie Tempest, respondi. Ela, porém, não replicou. Não percebo o interesse que você encontra nele, prossegui eu.
- O mesmo que encontro nos outros rapazes, retorquiu Lettie. Interrompeu-se e ambos começamos a rir. Não é que me preocupe com ele, continuou, ruborizada. Vou apenas jogar uma partida de tênis. Quer ir também?
- E se eu aceitasse o convite? perguntei. Lettie sacudiu a cabeça e respondeu:
- Todos nós ficaríamos satisfeitos com a sua presença. Tenho a certeza disso.
- Faço idéia! respondi com ironia.
Ela riu, muito corada, e correu pela escada acima.
Meia hora depois aparecia no escritório, para me dizer adeus - e ver se eu a achava bem. Estava tão linda, com o seu vestido de linho e chapéu florido, que não pude deixar de me sentir orgulhoso. Calculando que eu apareceria à janela, Lettie, já na altura dos rododendros enormes e cor de púrpura, olhou para trás, acenou-me com o lenço de renda e afastou-se como uma flor entre as aveleiras verdes. Encaminhou então seus passos, através da floresta, para o espaço quase despido de árvores que conduz à estrada real e que fica em direção oposta a Strelley Mill.
A estrada corre durante cerca de um quarto de milha junto à margem da nossa lagoa, Nethermere - a mais baixa das três que constituem a série. Do outro lado, numa colina distante, está Highclose, que avistamos ainda por cima das águas. Embora Lettie já estivesse muito longe, conseguia distingui-la na beira da lagoa, de sombrinha aberta, afastando-se como uma vela no horizonte. Em seguida vi-a dobrar a cancela, debaixo dos pinhais, subir a ladeira e misturar-se com a vegetação que cerca Highclose.
Leslie estava estendido numa cadeira de repouso, à sombra de uma árvore, e tinha entre os dedos um charuto aceso. Sob o calor do dia, entretinha-se observando a brasa do charuto, que se transformava em cinza, e ao mesmo tempo sentia pena de Nell Wycherley, a quem acompanhara nessa manha à estação... a fim de que ela não ficasse aborrecida. As moças de agora são tão impertinentes, às vezes, para com os seus companheiros! Contudo, ela não era das piores.
Nesse momento, percebeu uma sombrinha que se movia ao longo da estrada, e Leslie, ato contínuo, mergulhou em sono profundo, deixando no entanto uma fenda ao canto dos olhos para se poder certificar da aproximação de Lettie. Esta, encontrando o seu admirador deselegantemente adormecido, de charuto na boca, quebrou um raminho de lilás, cujos botões ainda estavam fechados e cujo aroma não seria, portanto, capaz de denunciá-la antes que ela tocasse no nariz do dorminhoco. E Leslie, acordando de súbito, exclamou:
- Oh, Lettie, estava a sonhar com beijos!
- Na ponta do nariz? Beijos de quem? retorquiu ela, rindo alto.
- De quem me produziu a comichão, esclareceu, sorrindo.
- As cócegas fazem-no sonhar com isso?
Trocaram ainda outros cumprimentos deste teor. E, como a moça o envolvesse num desses olhares com que as mulheres sabem lisonjear tão habilmente os homens, Leslie caiu em êxtase, afogado de volúpia.

 

CAPÍTULO DOIS

 


Lettie ficou inquieta ao ouvir o barulho prolongado do vento na floresta e o suspirar e gemer das árvores mais próximas da casa; não queria mexer-se, não queria fazer nada - mas acabou por insistir que eu a levasse até à beira da lagoa. Atravessamos, o emaranhado das amanbas e dos framboeseiros bravos que se estendia em frente da nossa casa e descemos o declive cheio de ervas que vai dar a Nethermere. O vento fustigava, rumorejando, a superfície das águas; e a frescura do ar estimulou-nos, lá onde as ondas se quebravam contra os seixos e as hastes dos caniços se curvavam sob o açoite dos elementos.
Na margem, as rainhas-dos-prados estavam em flor, e nós enterramo-nos nelas até aos joelhos enquanto admirávamos as rendas de espuma que corriam sobre as vagas e o prateado dos salgueiros mais distantes, no outro lado. Ali, onde deságua o regato de Strelley, a lagoa é mais estreita, a vertente do bosque mais abrupta e os troncos das árvores quase mergulham dentro de água. Interrompendo o nosso passeio, detivemo-nos a observar, de vez em quando, na terra pantanosa, ninhos abandonados de aves aquáticas; ao mesmo tempo sentíamos o cheiro penetrante da hortelã que os nossos pés esmagavam. À nossa aproximação, vimos algumas aves pernaltas que estendiam o pescoço esbelto, sobressaltados, e que fugiram diante de nós: uns atrás dos outros, voavam guinchando para o âmago da floresta, mas logo regressavam ao ponto de partida para de novo despedirem noutra direção, cheios de espanto e de terror.
- Por que se teriam assustado? perguntou Lettie.
- Não sei. Às vezes fitam-nos sem medo, e noutras ocasiões precipitam-se com esta lamúria como se levassem uma cobra enrolada nas asas.
Ela, no entanto, deu pouca atenção às minhas explicações. Havia-se agarrado a um ramo de salgueiro e, num instante, choveram sobre ela miríades de flores, como migalhas de uma enorme fatia de pão. Segui-a logo a fim de tomar parte naquele banho que a envolvia e do qual emanava um perfume medicinal.
- Oh, Cyril! exclamou Lettie, surpreendida.
Era um gato preto que ela descobrira preso numa armadilha pelas patas traseiras: fora apanhado, sem dúvida, no momento em que ia saltar sobre a vítima. Magro, bravio, o animal havia sido, e com razão, a causa do terror manifestado pelas aves. Ao ver-nos, rosnou baixo e não desfitou o olhar, que brilhava de ferocidade.
- Que mau que ele parece! acrescentou Lettie.
Envolvi as mãos no lenço dela e no meu próprio boné e agachei-me para abrir a ratoeira. O gato rasgou-me o pano das luvas improvisadas, metendo-lhe os dentes convulsivamente; mas, uma vez liberto, deu um pulo para longe e ficou espiando. Tirei o casaco, embrulhei nele o bicho e agarrei-o murmurando:
- Coitada da Nickie Ben! Sempre profetizei este fim.
- Que vai fazer? inquiriu Lettie.
- E uma das gatas de Strelley Mill. Vou levá-la aos donos.
O pobre animal, debatendo-se, procurava fugir, mas eu consegui trazê-la comigo; seguido da minha companheira, apareci na cozinha da casa, em mangas de camisa, e todos se admiraram de me ver entrar assim, levando tão estranho embrulho.
- Trago-lhes a Nickie Ben, declarei, exibindo a minha carga.
- Que patifaria! bradou Emily, estendendo a mão para a gata mas retirando-a no mesmo instante, com pavor igual àquele de que ainda há pouco as aves
tinham dado prova.
- É assim que eles morrem todos, sentenciou a mãe.
- O que eu queria, acudiu Mollie, excitada pela indignação, era que os guardas-florestais estivessem três dias e três noites entalados numa ratoeira dessas.
Pusemos o bicho sobre o tapete do fogão e
dêmos-lhe leite morno; ela, porém, bebeu muito pouco, de assustada que estava. Mollie, no meio da sua cólera, foi buscar o marido de Nickie Ben, que era também preto, a fim de que, ele visse a sua consorte estropiada. O gato olhou, pareceu encolher os ombros finos e afastou-se com passos rápidos. Aquela insensibilidade provocou geral clamor entre as senhoras.
George, que vinha buscar água quente, surgiu à porta nessa' altura. Admirou-se com a nossa presença ali e os olhos cintilaram-lhe.
- Repara na Nickie Ben, disse a irmã mais nova. George ajoelhou no tapete e ergueu as patas feridas da gatinha.
- Estão partidas, participou ele.
- Que horror? exclamou Emily, estremecendo. E foi-se logo embora.
- Ambas? indaguei.
- Só uma. Vê.
- Está a torturá-la, notou Lettie.
- Já não tem cura.
Mollie e a mãe deixaram a cozinha, à pressa, e foram para a sala.
- Que vais fazer? perguntou Lettie.
- Evitar que ela continue a sofrer, respondeu George, pegando no animal. Seguimo-lo até ao celeiro. Uma vez ali, fez ele esta declaração:
- A maneira mais rápida é andar com a gata de roda e bater-lhe com a cabeça contra a parede.
- Está a fazer-me mal aos nervos, observou Lettie.
- Então, vai ser melhor afogar o bicho, replicou ele, sorrindo. Pegou num cordel, preparou um laço numa das pontas e enfiou-o no pescoço do animal, amarrando aí um peso de ferro e deixando solta a outra parte do fio. Feito isso, perguntou se queríamos acompanhá-lo. Lettie olhou para ele, um tanto pálida. - Prevenindo-a de que isto vai lhe esfrangalhar os nervos, acrescentou George. A moça não deu resposta, mas seguiu-o ao jardim, através do pátio. Na margem do reservatório, ele voltou-se outra vez para nós e disse:
- Agora, atenção. Vocês fazem de carpideiras.
Ficávamos ambos calados; ele tornou a sorrir e atirou para a água o pobre animal, que se contorcia com dores.
- Adeus, Nickie Ben! exclamou o algoz, que nos mirou cheio de curiosidade, enquanto esperávamos na margem.
- Cyril, disse Lettie, muito calma, isto é que é crueldade! E horrível!
Não encontrei palavras com que lhe respondesse, mas George acudiu logo:
- Refere-se a mim?
- Não a si especialmente... mas às coisas em geral.
O lavrador fitou-a com os seus olhos escuros e sérios.
- Tive de afogar a gata sem piedade, declarou ele, atando a extremidade livre do cordel a um tronco de freixo. Depois foi buscar uma enxada e, com ela, fez uma cova na terra negra. - Se o cadáver não vier muito desfigurado, ajuntou, dirigindo-se a Lettie, você cobrirá de violetas a sepultura de Nickie Ben. Lançou fora a enxada e puxou o atilho, no fim do qual apareceu a gata e o peso de ferro. - Vá lá, que não tem mau aspecto! Era uma bichana de raça.
- Enterre-a quanto antes, ordenou-lhe a moça.
- Irá ter pesadelos, esta noite?
- Os sonhos não me assustam, respondeu.
Reentramos em casa e fomos até a sala, onde Emily estava sentada junto da janela, pensativa. O aposento era comprido e não muito alto, com uma viga tosca e enorme a atravessar o teto. Na prateleira do fogão e sobre o piano havia folhas e flores distribuídas em quantidade. Pela janela entrava o cheiro e a frescura do bosque.
- Ele levou avante o seu intento? perguntou Emily. E vocês assistiram a isso? Se eu tivesse pressentido semelhante coisa ficaria com ódio de morte.
- Eu também não fiquei muito satisfeita, declarou Lettie.
- A indiferença e brutalidade deste rapaz chegam a ser revoltantes, continuou a outra. Sinto-me repugnada.
- Palavra? volveu Lettie, com um sorriso frio. Dirigiu-se ao piano e acrescentou: Acho-o apenas demasiado saudável. Nunca está doente, creio eu.
Sentou-se e tocou ao acaso, deixando que as notas, entorpecidas, tombassem como folhas mortas do velho móvel sonoro.
Emily e eu conversávamos junto da janela, a respeito de livros e de pessoas conhecidas. A moça mantinha-se bastante séria e eu contagiado, compartilhei sua gravidade.
Daí a pouco, depois de ter mungido e dado de comer às vacas, George veio ter conosco. Lettie estava ainda sentada ao piano, e ele perguntou-lhe por que não tocava qualquer coisa mais leve - o que a fez voltar-se na banqueta e responder-lhe em tom um tanto seco. A aparência dele, contudo, dir-se-ia ser bastante para lhe dispensar as palavras ariscas, como se fossem pássaros assustados... George vinha diretamente da copa, onde fora lavar-se, e ficara atrás de Lettie, distraído, a enxugar os braços, com a camisa aberta no peito e as mangas arregaçadas. Estava de botas, polainas sujas e calções rasgados nos joelhos; ao vê-lo assim, ela sentiu certo embaraço.
- Por que não toca qualquer coisa mais moderna? insistiu ele, esfregando a toalha nos ombros, por baixo da camisa.
Lettie repetiu as palavras que acabara de ouvir, como um eco: a sua atenção ia toda para os movimentos que ele fazia, fascinada pelo vigor daqueles braços e pela brancura e solidez do peito. Depois de ter examinado a transição brusca da pele exposta ao sol para a da garganta, muito alva, encontrou-se, de repente, com o olhar de George e voltou-se no mesmo instante para o piano, enquanto o sangue lhe escaldava as orelhas, cobertas, por felicidade, com uma profusão de caracóis.
- Que devo tocar, então? murmurou ela, passando os dedos pelas teclas, ainda perturbada.
O rapaz foi buscar a uma pilha de músicas um álbum de canções e apresentou-lhe.
Vendo tão perto de si os braços dele, Lettie estremeceu levemente e perguntou:
- Que deseja cantar?
- O que for do seu agrado.
- Uma canção de amor?
- Se gosta... Está bem, uma canção de amor, concordou num tom que denunciava insinuação demasiado evidente, o que fez com que minha irmã se remexesse na banquinha e se conservasse calada. Por fim, Lettie começou a execução da peça escolhida, que era Tit Willow, de Sullivan. A voz de George, baixo sem grande profundidade, podia considerar-se tolerável; o certo é que ele cantava com prazer. Depois da frase bebe-me com os teus olhos, Lettie voltou-se e quis saber se ele gostava da letra. Que lhe parecia um pouco idiota, foi o comentário do cantor; mas disse isto olhando-a com olhos brilhantes, como se estivesse a desafiá-la.
- É que você não tem vinho no olhar, para que possa fazer um brinde com ele, disse a moça, correspondendo ao desafio com a chama azul das suas pupilas. Logo a seguir baixou as pestanas, e George riu muito senhor de si, perguntando como é que ela sabia semelhante coisa.
- Porque, esclareceu Lettie, exprimindo-se devagar e observando-o com fingido desdém, porque seus olhos não se alteram quando os fito. Acho que as pessoas devem falar com os olhos: há quem os tenha tão eloqüentes, tão expressivos! Assim dizendo, continuou a examiná-lo, calculando o lugar em que ele a teria - tanto o rosto como o cabelo, que parecia sempre despedir luz - e a idéia que fazia quanto à sinceridade das palavras agora ouvidas. Mas o rapaz soltou uma gargalhada
breve, mais desajeitada e menos persuasiva ainda que as do costume. Lettie virou-se, então, rindo também.
- Não há nada neste álbum que seja bom para cantar, disse ele, folheando com ar descontente.
Fui buscar outro, e ela cantou Should he upbraid. Tinha bela voz de soprano e a canção agradou bastante a George, que se aproximou dela. Quando terminou, lançou em volta da sala um olhar travesso e cintilante, e viu que o lavrador a contemplava maravilhado.
- Gosto disto, declarou ela, numa certeza cheia de superioridade.
- Gosto, confirmou o rapaz, com ênfase, salientando assim o triunfo da cantora.
Aproveitando a maré, Lettie fez-lhe várias observações acerca do trecho acabado de interpretar, e George, sempre sorridente, não se atreveu logo a responder antes de considerar o significado exato daqueles comentários.
- Você conserva os sentidos meio despertos, meio adormecidos, acrescentou minha irmã.
- Acha que sim?
- Sem dúvida. Você aprecia, em especial, a comida e o conforto. Não é verdade?
- E você não aprecia? retrucou ele, um tanto humilhado.
- Já se sabe! Agora venha virar-me as páginas enquanto toco esta música. Quando estiver na hora, faço-lhe sinal. Traga uma cadeira.
-
Principiou uma romança de Schubert. George inclinou-se sobre o ombro da pianista a fim de poder voltar as páginas; e ela, sentindo o cabelo do rapaz roçar-lhe a face, ergueu a vista para o seu companheiro e presenteou-o com um sorriso, sem deixar de tocar. Atingindo o fim da página, fez o sinal combinado, mas George estava distraído.
- Agora disse ela, já impaciente, enquanto ele tentava, com um gesto brusco, penitenciar-se do esquecimento. Lettie, porém, afastou-lhe a mão, voltou a folha sem ajuda e prosseguiu na música.
- Desculpe, murmurou o rapaz, corando.
- Não faz mal, replicou ela, sem parar e sem o ver. Chegando ao fim, pediu que lhe descrevesse as sensações que experimentara durante a execução da música.
- Ah, fiz triste figura! asseverou ele, atrapalhado.
- Estimo muito saber... mas não era isso que eu perguntava. Diga-me, antes, o que sentiu.
- Não sei... se senti alguma coisa, retorquiu George, medindo as palavras, como de costume.
- Direi por você. Você ficou dormindo ou então é insensível. A música, realmente, não lhe desperta nada lá no íntimo? Que pensa a esse respeito?
George riu mais uma vez, refletiu uns instantes, e voltou a rir.
- Ora! exclamou, evitando confessar os seus verdadeiros sentimentos, penso que você tem bonitas mãos e que deve ser agradável sentir o seu contato, tal como a do seu cabelo na minha cara.
Depois de ter escutado esta declaração, Lettie empurrou-o discretamente e afastou-se dele, sentenciando:
- Você está cada vez pior.
Atravessando a sala, dirigiu-se para o sofá onde eu conversava com Emily e passou-me o braço de roda do pescoço.
- Não serão horas de voltarmos para casa? perguntou.
- Oito e meia... parece-me cedo.
- Pois eu... eu acho que é hora de recolher.
- Não vão ainda, disse George. - Fiquem para cear, pediu Emily.
- Mas eu creio que... Respondeu Lettie, hesitante.
- Que há assuntos mais importantes a tratar, intervim eu, concluindo-lhe a frase.
- Não é isso... Hesitou de novo e, de súbito, bradou furiosa:
- Cyril, não seja aborrecido!
- Vão a algum lugar? indagou George, em tom humilde.
- Que idéia! respondeu Lettie, ruborizada com a pergunta.
- Então fiquem para cear convidou ele por seu turno. Lettie sorriu e condescendeu. Fomos para a cozinha, onde encontramos o Senhor Saxton a ler, tendo aos pés, e fingindo que dormia, o seu enorme bull terrier que dava pelo nome de Trip. No canapé repousava muito sossegado o gato preto, viúvo de Nickie Ben. A Senhora Saxton e Mollie recolhiam-se precisamente nessa ocasião aos seus respectivos quartos. Despedimo-nos delas e sentamo-nos. A criada já se havia ido embora, de modo que foi Emily quem teve do preparar a ceia.
- Ninguém toca tão bem naquele piano como ela, disse o Senhor Saxton, sorrindo para Lettie com admiração e deferência. O dono da casa tinha
muito orgulho naquele móvel antigo e majestoso, e costumava observar que o piano estava cheio de boas músicas para aqueles que as sabiam extrair de lá. Lettie replicou, risonha, que decerto poucas pessoas o haviam experimentado, de maneira que a honra não era muito grande.
- Que tal acha a voz do nosso George? perguntou o pai, um tanto vaidoso, embora terminasse a frase com uma risadinha desconcertante.
- Quando estiver apaixonado há de cantar muito bem, foi a resposta da interpelada.
- Quando estiver apaixonado! repetiu o homem, rindo alto, deveras satisfeito.
- Sim, senhor, no dia em que encontrar a pessoa que ele deseja.
George meditou no caso e soltou, por sua vez, uma gargalhada.
Emily, que punha a mesa, disse então:
- Há pouca água em casa.
- Com os diabos! exclamou o rapaz. Já mudei de botas.
- Não será muito difícil tornar a calçá-las, ponderou a irmã.
- Annie podia tê-la ido buscar. Para que está ela aqui? retrucou ele, indignado.
Emily olhou para nós, abanou a cabeça e voltou as costas ao irmão. O pai apressou-se a oferecer os seus préstimos:
- Depois da ceia, irei eu.
- Depois da ceia? perguntou a moça, admirada e divertida ao mesmo tempo.
George levantou-se e arrastou os pés, contrariado. Precisava de ir ao poço, que ficava num bosque próximo, e desagradava-lhe a idéia, depois de ter se aquecido ao calor da cozinha.
Tínhamos acabado de sentar à mesa quando Trip começou a ladrar à porta.
Fica quieto, intimou-lhe o dono, lembrando-se de que havia gente dormindo a essa hora.
Mas levantou-se e foi atrás do cão. Era Leslie, e queria levar minha irmã para casa, sem demora. Ela se opôs terminantemente, de modo que ele se viu obrigado a entrar e sentar à mesa, onde tomou uma
xícara de café e comeu uma fatia de pão com queijo. Durante esse tempo dirigiu-se sempre a Lettie, falando-lhe de um garden-party que estava programado para a próxima semana, em Highclose.
- A benefício de quê? interrompeu o Senhor Saxton.
- benefício? repetiu Leslie, admirado.
- Sim, dos missionários, ou dos desempregados, ou de quê?
- Trata-se de um garden-party e não de um bazar de caridade, esclareceu Leslie.
- Ah, coisa particular... Julguei que fosse assunto de igreja, pelo qual sua mãe se interessasse. Ele é muito apegada à igreja, não é verdade?
- Decerto, respondeu Leslie, que passou a expor a Lettie o seu plano de um torneio de tênis no qual pretendia que ela tomasse parte. Mas nessa ocasião percebeu que estava a monopolizar a conversa e, voltando-se para George - que tentava tirar com a faca um pedaço de queijo que se prendera aos dentes - perguntou por cortesia:
- Joga tênis, Senhor Saxton? Sua irmã sei que não joga...
- Não, replicou George, ainda às voltas com a faca e o queijo, nunca aprendi habilidade de senhoras.
O visitante voltou-se então para Emily, que empurrava dois pratos a fim de esconder uma nódoa da toalha, e surpreendeu-a com a seguinte declaração:
- Minha mãe gostaria muito que fosse ao garden-party.
- Agradeço reconhecida, mas é impossível. Tenho a escola...
- São muito amáveis, atalhou o pai, sorrindo.

George, nessa altura, mostrou uma expressão desdenhosa.
Terminada a ceia, Leslie olhou para Lettie como que a informá-la de que estava pronto a partir. Ela, contudo, fingiu não entender e pôs-se a discutir animadamente com o Senhor Saxton, que estava encantado. George, a quem o fato lisonjeava, juntou-se à conversa com evidente satisfação. O silêncio amuado de Leslie começou a pesar sobre nós todos. De aí a pouco George disse ao pai:
- Não me admirava nada que a vaca ruiva parisse esta noite.
Ao ouvir isto, Lettie despediu um olhar faiscante, prova de que estava divertidíssima.
- É também a minha impressão, respondeu o dono da casa.
- Tem os sinais todos, continuou o filho, depois de uma pausa.
- George! gritou a irmã.
- Vamo-nos embora, disse Leslie.
Desviando a vista para o lado, George encontrou os olhos de Lettie e sorriu com malícia.
- Empresta-me um xale, Emily? perguntou. Não trouxe nenhum agasalho, e suponho que o vento arrefeceu.
Emily, no entanto, viu-se forçada a lamentar a sua pobreza em matéria de xales, e Lettie não teve remédio senão enfiar um casaco preto por cima do seu vestido de verão. Ficava-lhe tão mal que todos desataram a rir, com o que Leslie não pareceu muito satisfeito: detestava vê-la servir de chacota, e procurou rodeá-la de todas as atenções possíveis, ajudando-a a prender a gola do casaco com o seu alfinete de pérola, da gravata, e recusando o que Emily acabara por descobrir, depois de várias buscas. Por fim saímos.
Leslie ofereceu o braço à minha irmã, afetando um ar de dignidade injuriada. Ela, porém, não o aceitou e ele principiou a queixar-se.
- Esperava que estivesse em casa, conforme prometera...
- Desculpe, mas não prometi nada.
- No entanto, sabia que eu vinha.
- E acabou por me encontrar!
- Sim, encontrei-a... namorando aquele tipo tão ordinário.
- Realmente, ele chama as coisas pelos seus nomes...
- O que lhe agrada, segundo vejo!
- Não me importa nada, replicou ela, com desdenhosa indiferença.
- Pensei que os seus gostos fossem mais requintados, retorquiu ele, sarcástico. Ainda bem que acha isso romântico...
- Muitíssimo!
- Detesto ouvir uma mulher dizer barbaridades, declarou Leslie, que tinha o horror de certas classes.
- E eu gosto tanto! insistiu Lettie, agravando assim a cólera do outro.
Leslie estava furioso.
- Estimo saber que George a diverte! rematou ele.
- Eu não sou difícil de contentar... A paciência do rapaz parecia esgotada.
- Resta-me a consolação, observou com frieza, de saber que não lhe agrado.
- Ora essa! Diverte-me também.
Depois disto, Leslie não falou, preferindo, com certeza, não a divertir.
Minha irmã enfiou o braço no meu e, com a mão livre, segurou a saia para evitar as ervas úmidas. Quando o seu admirador já se havia despedido, no extremo da floresta, ela observou:
- É tão criança!
- Chame-o antes pedaço de asno, respondi.
- Deixa lá... Sempre é mais amável do que o meu Taurus.
- Ah... o teu boi! confirmei eu, soltando uma gargalhada.

 

CAPÍTULO 3

 

No domingo que se seguiu à nossa visita ao moinho Leslie apareceu-nos de manhã em casa, solenemente vestido e afetando um ar não menos solene. Introduzi-o na sala e deixei-o só. Em geral, ele tomava a iniciativa de ir até à escada, sentar-se num degrau, e chamar dali por minha irmã. Mas, nesse dia, conservou-se mais reservado; fui eu quem levou a notícia da sua chegada. Lettie, que estava a acabar de se vestir, perguntou-me:
- E em que estado se encontra ele?
- Não perguntei.
Minha irmã riu-se e foi matando o tempo até serem horas de sair para a igreja. Só então desceu até aonde estava o seu galanteador e cumprimentou-o com uma reverência cheia de dignidade. Leslie ficou perplexo, mas não disse nada. Atravessando a sala, ela dirigiu-se à janela onde havia lindíssimos gerânios.
- Preciso enfeitar-me, declarou.
Era costume de Leslie trazer-lhe flores. Como não o fizera nesse dia, minha irmã sentiu-se magoada. Além disso, sabia ela quanto o visitante embirrava com o cheiro e com a brancura opressiva daqueles gerânios - e foi bastante para que, sorrindo-lhe, prendesse alguns no vestido, sobre o peito, e lhe dissesse:
- São lindos, não são?
Leslie murmurou qualquer coisa que significava concordância. Nessa altura apareceu minha irmã, que o saudou efusivamente e lhe perguntou se não a acompanhava à igreja.
- Se me permite... respondeu o rapaz.
- Está muito discreto hoje...
- Hoje? repetiu ele.
- Acho que a modéstia fica mal a um moço, continuou minha mãe. Vamos, que já é tarde.
Durante todo aquele dia, e até de noite, Lettie usou os gerânios.
À hora do chá convidou Alice Gall e pediu que eu me encarregasse de sora taureau quando o animal terminasse a sua faina da lavoura.
O tempo manteve-se quente e abafadiço. Quando atravessamos o regato, o sol avermelhava-se para as bandas do poente e começavam a exalar-se os aromas da noite, espalhando-se misteriosamente no ar calmo. Um clarão amarelo e oblíquo, do astro que morria, conseguiu furar o espesso dossel de folhas e veio aderir aos cachos das bagas de sorveira. As árvores conservavam-se imóveis, preparando-se para o sono. Pálidas e pensativas, algumas orquídeas cor-de-rosa olhavam, junto da vereda, para a fila rubra das búgulas, cujas derradeiras flores, cintilando no caule verde, ansiavam pela carícia do sol.
Eu e George vagueamos silenciosos, temendo perturbar a tranqüilidade da floresta. Mais perto de casa ouvimos um murmúrio que vinha do meio das árvores, do lugar onde havia um tronco tombado que o musgo rendilhara e no qual poderiam sentar-se dois namorados.
- Apaixonados a discutirem com um poente destes! comentei eu, enquanto prosseguíamos o nosso caminho. Mas, ao chegarmos à árvore caída, não vimos ali nenhuns amantes, - apenas um homem a dormir e a ressonar. A cabeça grisalha, de onde escorregara o
boné, apoiava-se num molho de gerânios que decoravam o tronco musgoso, sua roupa era de boa qualidade, mas amarrotada e suja e a cara do homem indicava, na sua palidez, anos de dissipação e de doença. Ao respirar, a barba cheia de fios brancos subia e baixava, e os lábios desgraciosos moviam-se numa conversa imperceptível. Devia estar lembrando algum episódio de sua vida, contorcendo as feições, gemendo - e falando talvez para uma mulher. Era inegável que o dorminhoco sofria.
Então abriu a boca, numa careta horrível, e mostrou os dentes amarelos. Falava agora mais alto, de modo que se compreendia alguma coisa do seu monólogo, muito pouco amável. Comecei a pensar na maneira de terminar com a cena, quando de súbito, do meio da floresta, nos alcançou o guincho de um coelho apanhado por alguma doninha. O homem acordou com um "Ah!" estridente, olhou em volta, consternado, e, sucumbindo de novo à sua fraqueza, murmurou:
- Sonhei outra vez.
- Não parece que o sonho fosse muito agradável, observou George.
O desconhecido encolheu-se, olhou-nos e perguntou, num tom quase de escárnio:
- Quem são os senhores?
Sem respondermos, esperamos que ele se mexesse. O homem, contudo, permanecia imóvel, espantado para nós.
- Com que então sonhei! exclamou de ai a instantes, com voz fraca. Sonhei, sonhei! Suspirou profundamente e ajuntou, escarninho: Levanto suspeitas?
- Não, disse eu, mas com certeza se enganou no caminho. Que estrada tenciona seguir?
- Quer que eu me vá embora?
Tomei um ar condescendente, sorri e repliquei:
- Não. me interessam os seus sonhos. Mas a verdade é que por aqui não há nenhum caminho.
- Então para onde vai o senhor?
- Eu? Para minha casa, respondi já sério.
- Pertence à família Beardsall.
- Pertenço, volvi eu ainda com maior seriedade. No íntimo, pensava quem poderia ser aquele indivíduo.
O homem ficou olhando-me durante uns momentos. Escurecia em torno do bosque. Então, pegando numa bengala de madeira preta e castão doirado, o desconhecido levantou-se. A bengala chamava atenção, e eu pus-me a examiná-la enquanto o seu possuidor se afastava pela vereda, direto ao portão. Com ele, saímos na estrada; ao chegarmos a um ponto desarborizado, onde os raios do poente nos davam em rosto, o velhote virou-se para trás e observou-nos de perto, abriu a boca tal se quisesse falar e
tornou logo a fechá-la. De aí a pouco disse:
- Adeus.

- Precisa de alguma coisa? perguntei, vendo-o cambalear.
- Não. Adeus.
Seguimos cautelosos na escuridão e vimos, na estrada real, os faróis de um veículo: seguiu-se o estalo de uma portinhola e o matraquear da carruagem que se afastava.
- Quem diabo será ele? comentou George, divertido.
- Parece-me que não fiz boa figura, ajuntei.
- Parece?
Esta observação do meu amigo denotava ao mesmo tempo surpresa e indulgência.
Voltamos resolvidos a não dizer nada do caso às senhoras. Minha mãe, Alice e Lettie esperavam por nós junto da janela.
- Demoraram tanto! exclamou a última. Vimos o pôr do sol, que foi magnífico. Olhem, o alto da colina ainda está ardendo... Que fizeram vocês?
- Aguardamos que o teu querido Taurus acabasse de trabalhar.
- Cala-te, ordenou-me depressa; e, voltando-se para George, minha irmã perguntou:
- Vem disposto a entoar hinos?
- Tudo que quiser.
- Ah, que simpático! interveio Alice, irônica. Era uma moça baixa e roliça, pálida, de olhos atrevidos. A família da mãe - os Wylds - tinha fama de irritar a burguesia tanto pela sua independência como pelo excesso de integridade. Alice, filha de um homem admirável e de uma mulher que amava apaixonadamente o marido, mostrava-se estouvada à superfície mas no fundo era dócil e correta. A mãe dela e a minha estavam ligadas por íntima e segura amizade e Lettie dispensava à filha a maior das simpatias; mas isso não impedia que minha irmã censurasse muitos excessos de Alice, embora às vezes se deliciassem com eles - quando não fossem
presenciados por gente superior. Havia homens que adoravam a sua companhia, embora evitassem ficar a sós com ela.
- Responderia a mim a mesma coisa? inquiriu Alice.
- Depende da conversa... volveu George, bem disposto.
- Que homem tão prudente! Eu prefiro uma pedra no sapato do que um homem cauteloso. Não concordo, Lettie?
- Isso é conforme o passeio que eu tivesse de dar, replicou-lhe a amiga. Mas, se não fosse preciso coxear muito...
Alice afastou-se rapidamente de minha irmã, a quem ela às vezes considerava irritante. E, falando então comigo, notou:
- Acho-o mal humorado, Cyril. Alguém o beijou?
Ri, interpretando pelo pior lado a sua malícia feminina. E retorqui:
- Se assim fosse, eu devia estar contente.
- Então alegre-se! acudiu ela, tocando-me de leve no queixo. Em seguida recomeçou a falar com George: - Como vocês estão solenes! Que aconteceu? Diga alguma coisa, antes que eu comece a sentir-me nervosa.
- Que hei-de-dizer? disse ele, com os cotovelos fincados nos joelhos.
- Meu Deus! gritou Alice, já impaciente.
George, todavia, recusou-se a satisfazer sua curiosidade, limitando-se a sorrir, um pouco inquieto. Para disfarçar, admirou os quadros, a mobília e tudo quanto havia na sala. Como Lettie tivesse levantado para compor as flores na prateleira do fogão, ele aproveitou o ensejo para observá-la de perto. Minha irmã estava vestida
de seda azul, com rendas na garganta e nos punhos. Alta como era, a sua figura tinha esbelteza; e o cabelo, fino e encaracolado, tornava-a mais bonita. George não seria mais alto do que ela, antes parecia baixo a seu lado, devido à robustez do corpo: mas não se podia considerá-lo desprovido de elegância, embora não o ajudasse a posição que tomara na poltrona, um tanto rígida. Os movimentos que fazia é que denotavam garbo.
Momentos depois mamãe chamou para a ceia.
- Venha, disse Lettie a George, conduza-me até a mesa. O rapaz levantou-se, mas sentia-se acanhado.
- Dê-me o seu braço, continuou ela, para arreliar George atendeu corando. Afligia-o aquela pele fresca semi-oculta pela renda, que lhe roçava a manga do casaco.
Quando estávamos sentados, Lettie pegou a colher e perguntou ao seu companheiro o que desejava. Ele hesitou olhando desconfiado para os pratos desconhecidos que via à sua frente; e respondeu que preferia queijo. Insistimos em que provasse dos manjares novos.
- Tenho a certeza de que gosta de outras coisas, notou Alice em tom de mofa. Ele vacilou de novo, não sabia distinguir nada daquilo, sentiu-se confuso; dir-se-ia que perdera o paladar. Alice pediu que se servisse de salada.
- Muito obrigado, não gosto.
- Oh, George! É capaz de me responder assim, quando sou eu que lhe peço?
- Já comi uma vez, tartamudeou ele. Foi alface com vinagre. .. mas não gostei.
- A nossa é doce como mel. Olhe que não tem vinagre nenhum.
- Acredito, replicou, para ser agradável.
- Ora ouçam. O nosso George acreditou em mim. Era isso que eu queria.
George esboçou um sorriso amarelo. Tinha a mão sobre a mesa, com o polegar escondido entre os outros dedos, e apertava-o nervosamente. Por fim o jantar acabou, e ele, apanhando o guardanapo que caíra ao chão, começou a dobrá-lo. Lettie parecia também embaraçada: entretivera-se aborrecendo o seu convidado, mas o acanhamento deste conseguira
torná-la aborrecida. Agora sentia-se triste e com remorsos; para dissipar a melancolia, resolveu ir até ao piano, como era, aliás, seu costume em casos semelhantes. Se estava zangada, tocava fragmentos de Tchaicovski; se se considerava infeliz, executava
Mozart. Nesse momento tocou Handel de uma forma que sugeria castigos do céu nas notas longas e, nos trinados, lembrava alguém valsando na escada de Jacob, como as donzelas dos quadros de Blake.
Quantas vezes eu disse a minha irmã que ela se servia escandalosamente do piano para exaltar os seus sentimentos! Em geral, fingia não me ouvir; mas, nessa noite, surpreendeu-me com um súbito acesso de lágrimas. Em atenção a George, tocou depois a Ave Maria de Gounod, calculando que a melodia daquela música faria bem ao rapaz e o levaria a esquecer os pequenos aborrecimentos. E eu, observando o efeito desse encantamento fácil, não pude deixar de sorrir. Ao terminar, Lettie demorou por um minuto os dedos sobre as teclas; depois girou na banqueta, fitou George diretamente nos olhos e pareceu prometer-lhe um sorriso. Mas baixou logo a vista e disse:
- Está cansado de me ouvir.
- Não, não estou, apressou-se ele a responder, abanando a cabeça.
- Gosta mais de música do que de salada? perguntou ela num assomo repentino de alegria.
George mirou-a, numa expressão embevecida, e não replicou. Quando olhava e sorria de modo inesperado, parecia inundar as pessoas num banho de ternura; contudo, não era belo, e quase sempre conservava um aspecto taciturno.
- Então vou continuar, declarou minha irmã, voltando-se para a frente.
Tocou trechos disto e daquilo, de modo distraído e, num movimento brusco, depois de ter esboçado uma espécie de queixa sentimental, abandonou o piano e foi enterrar-se numa cadeira baixa, junto do fogão. Uma vez ali, procurou George com os olhos; ele teve consciência daquela súplica, mas não se atreveu a ceder e ficou torcendo o bigode.
- Você, no fim de contas, não passa de uma criança, disse-lhe ela então, muito calma. O lavrador perguntou-lhe porque.
- Sim, uma criança, repetiu ela, recostando-se no espaldar da cadeira e sorrindo com ar indolente.
- Nunca tinha me lembrado disso, observou George, com perfeita seriedade.
- Palavra?
- É como digo, confirmou ele, tratando de reunir suas recordações.
Lettie riu-se com vontade e prosseguiu:
- Está em crescimento.
- Como?
- Em crescimento.
- Sou capaz de jurar que nunca fui criança.
- Escute: a sua infantilidade não o impede de ser homem jôrio. Outro qualquer mal se atreveria a tanta simplicidade, com medo de perder o ar digno. Tolices!
O rapaz achou a explicação divertida e, como de costume, pôs-se a matutar no caso.
- Gosta de estampas? perguntou ela de repente, já cansada de olhá-lo.
- Mais do que tudo.
- Menos do que jantar, aquecer, se espreguiçar-se...
Sentindo-se humilhado com aquela apreciação, George mordeu lábios, sem replicar; e Lettie, arrependida, sorriu com doçura.
- Então vou mostrar-lhe algumas.
Dizendo isto, levantou-se e saiu da sala. O rapaz teve, no entanto, a impressão de que se aproximava mais dela. Daí a pouco voltou carregando uma pilha de livros enormes.
- Isso é que é força! exclamou ele.
- Muito amável...
George olhou desconfiado, para ver se ela estaria fazendo troça.
- É tudo quanto sabe me dizer? perguntou Lettie.
O rapaz deu uma resposta vaga, para não se comprometer.
- Conheço, prosseguiu ela, pondo os livros sobre a mesa, quais os pensamentos dos homens pela maneira como me observam. Ajoelhou defronte do lume
e continuou: Alguns olham para o cabelo, outros à minha maneira de respirar, ou reparam no nariz... e outros, mas poucos, fitam-me nos olhos para ler o
que eu penso. Você não pertence a este último grupo. Para você sou um espécime de outra natureza: muito forte! Ah, que homem primitivo!
George pôs-se a entrelaçar os dedos. Ela desconcertava-o.
- Traga a sua cadeira para cá, ordenou ela, sentando-se à mesa e abrindo um dos livros.
Falou depois sobre cada gravura, insistindo em querer saber a opinião dele. Às vezes discordavam e o rapaz parecia pouco convencido; outras vezes Lettie ficava escandalizada com as opiniões que ouvia.
- Se, notou ela, viesse agora um bretão de outros tempos, vestido de peles, para me contrariar como você, não seria justo que o aconselhássemos a não fazer figura de parvo?
- Não sei...
- Pois devia saber! Nunca sabe nada.
- Como é, então? Minha irmã desatou a rir.
- A pergunta foi tão fácil! Olhe, você podia ser mais. .. vivo.
- Muito obrigado, respondeu ele, em tom irônico.
- Ah, julga que é um modelo de perfeições? Fique sabendo que o acho indolente.
- Sim, é um molengão, interveio Alice, que nesse instante reentrava na sala, pronta para partir. Não é capaz de sacudir-lhe Lettie?
- Não me sinto com esse direito.
- Adeus a todos, continuou Alice. Vamos, Cyril, está um luar de primeira ordem. Boa noite.
Acompanhei-a a casa, e os outros dois ficaram olhando as gravuras.
George tinha inclinações românticas, gostava de Copley, Fielding, Cattermole e Birket Foster. Girtin e David Cox não lhe diziam nada. Em certa altura puseram-se a apreciar George Clausen.
- Este é um verdadeiro realista, disse Lettie. Torna belas as coisas vulgares, vê o mistério e a grandeza que nos envolvem ainda quando fazemos
trabalhos subalternos. Se eu montar no campo, a seu lado...
Aquilo era novo para ele e feriu a sua imaginação. A estampa em discussão representava uma aquarela de Clausen intitulada Mondando. Lettie não largou o assunto:
- A cor poente é mesmo assim, e, se olhar para a terra, notará que existe nela como que um oiro quente... Compreenda o colorido, isso leva-lo-á a perceber tudo. Você, por enquanto, está cego, é como um recém-nascido, só deseja dormir, vive muito materialmente: é como um piano que só tivesse as notas mais vulgares. O pôr do sol não significa nada para si, é uma coisa que acontece todos os dias... Não me obrigue a torturá-lo. Se houvesse vindo ao mundo numa casa onde alguma coisa o oprimisse, alguma coisa que não pudesse entender; se jamais acreditasse ou duvidasse... De qualquer destes modos, podia ser um homem e não uma criança. Não, não tem crescido, é como os bulbos que passam todo o verão a inchar, a inchar mas que nunca dão flor. Quanto a mim, a flor já apareceu, mas quer continuar a crescer. O que é demasiadamente alimentado não floresce. Você tem de sofrer antes de desabrochar. Quando a morte se aproxima de uma planta, instiga-a ao amor da floração. Decerto quer saber se a morte me tocou já. Ouça: nesta casa há sempre a sensação da morte. Creio que a minha mãe, antes de eu nascer, odiava o meu pai: havia pois, nas suas veias, uma corrente mortífera. Isso tem sua importância...
George ouvia, de olhos esbugalhados e boca aberta como uma criança que pressente a história que lhe contam mas não compreende as palavras. Ela, por fim, pousou nele o olhar, e começou a rir suavemente. Depois, batendo-lhe de leve na mão, murmurou:
- Desorientei-o? Foi grande amabilidade a sua ter-me escutado. Não há nenhuma intenção nisto tudo... tão fora da realidade!
- Mas... por que o disse?
- Que pergunta! Agora voltemos à vaca fria. Estamos a olhar um para o outro como dois patetas.
Falaram de novo sobre as reproduções de quadros. De súbito, George exclamou:
- Repare!
Era o Idílio de Maurice Griffinhagen.
- Que tem? indagou ela, corando lentamente. Lembrara-se do seu próprio entusiasmo quando vira aquilo pela primeira vez.
- Bonito, não acha? disse ele, mirando com olhos brilhantes a sua interlocutora. O seu sorriso, que não era sinal apenas de satisfação, mostrava-lhe
os dentes muito brancos.
- O quê? volveu Lettie baixando a cabeça, um tanto confundida.
- Aquela mulher... receosa... e apaixonada!
- E natural que sinta certo medo ao ver o bárbaro em todo o seu esplendor, envolto em peles e tudo mais...
- Mas não gosta disto?
Minha irmã encolheu os ombros, replicando:
- Namore a primeira mulher que encontrar. Na altura em que as papoulas avermelharem os campos, já ela estará caída nos seus braços. Haverá necessidade de mais alguma coisa, além de a trazer meio assustada?
Enquanto falava, ia brincando com as folhas do livro, sem olhar para o seu companheiro.
- No entanto... gaguejou ele, de olhos cintilantes, seria... antes...
- Oh, santa inocência!
- Mas, insistiu o rapaz, eu não sei se gostaria de qualquer mulher que eu soubesse que...
- Querido Galaaz, redarguiu Lettie, em voz galhofeira, acariciando o queixo com o dedo. Você devia ter sido monge... ou mártir. Devia ser frade cartuxo.
George riu, sem fazer caso daquele discurso. Experimentava uma sensação nova para ele, como que um fogo a arder no peito e nos músculos dos braços. Ofegante, olhou para os seios de Lettie, e estremeceu.
- Está estudando o seu papel? perguntou ela.
- Não, mas... Tentou fitá-la, mas não o conseguiu. Encolhendo-se todo, deixou pender a cabeça, enquanto ela perguntava, cheia de curiosidade:
- Mas o quê?
Já mais calmo, o lavrador ergueu a vista: e os seus olhos, grandes e expressivos, pareciam queimá-la, como se deles irradiasse uma labareda que atingisse as faces de Lettie. Ela é que, por sua vez, dobrou a cabeça, pondo-se a alisar o vestido.
- Nunca tinha visto esse quadro? inquiriu em voz baixa. E ele, cerrando as pálpebras e retraindo-se envergonhado, murmurou:
- Não, nunca o tinha visto.
- É para admirar. Trata-se de uma obra vulgarizada.
- Ah, sim?
Este pretexto para conversa acabou por se esgotar.
Lettie ergueu de novo o olhar e encontrou o dele. Fitaram-se por um momento antes que baixassem mais uma vez a cabeça. Era, para ambos, verdadeira tortura essa contemplação muda - dor recolhida que eles se obrigaram a suportar nesse instante e que depois lhes encheu as veias de um fluido ígneo, assustador. Lettie, alarmada, procurou dizer qualquer coisa.
- Suponho que o quadro está em Liverpool, foram as suas primeiras palavras.
George não se atreveu a perder a deixa. Tinha consciência da situação e achou necessário replicar:
- Ignorava que houvesse um museu em Liverpool.
- Há, sim, e muito bom.
Os olhares encontraram-se noutro relance, mas ela voltou logo a cara, e ele fez outro tanto. Assim, com a vista desviada, conversaram ainda um pouco. Por fim, Lettie levantou, pegou os livros e levou-os consigo; à porta voltou-se e aproveitou o ensejo para dizer:
- Está admirando a minha força?
A sua atitude não deixava de ser bela. Como levantara muito a cabeça, via-se-lhe a curva da garganta descendo suavemente até o peito, que se entumescera com o esforço dos braços a segurarem os livros. George contemplou-a, e nos lábios de ambos adejou um sorriso. Lettie ergue mais o pescoço, como se estivesse bebendo, e um e outro sentiram o sangue latejando-lhes nas fontes. Então, com um leve tremor, ela virou a cara e desapareceu da sala.
Enquanto minha irmã esteve ausente, George ficou torcendo o bigode. Pouco depois ela chegou; ao atravessar o vestíbulo, viera falando sozinha, em francês. Tendo visto Sarah Bernhardt representar a Dama das Camélias e Adriana Lecouvreur, Lettie aprendera o estranho tom de voz da grande atriz e costumava imitá-la de vez em quando. Nesse momento, dando de cara com o rapaz, riu-se para ele - que lhe ripostou fosse o que fosse - e continuou a pronunciar palavras na mesma língua, com um
sotaque cheio de asperezas. Aquilo soou de forma singular e desconcertante. Notei (como muitas vezes mais tarde) que havia no rosto de George uma perplexidade dolorosa, tal a sensação de qualquer coisa que o magoava e que ele não conseguia entender.
- Devemos parecer loucos uma vez ou outra, disse ela, para mostrar que ainda não envelhecemos.
- Gostava de ter compreendido, disse George, ainda de semblante triste.
- Coitado! exclamou Lettie, divertida. E tão modesto! Já vai embora, realmente? Acho-o tão melancólico... Vão julgar, na sua casa, que não lhe demos ceia.
- Ceei uma quantidade de coisas... retorquiu ele, agora sorridente, querendo aventurar-se a uma frase de efeito. Mas estava excitado em demasia.
- ... de coisas horrorosas, atalhou a moça, rematando-lhe o período. E este final ainda é o pior de tudo.
- Acha?
Fitaram-se por momentos, ambos risonhos.
- Muito pior. Esperaram uns segundos, sem dizer mais nada. George olhou-a de novo.
- Adeus, disse ela, estendendo a mão. A voz denotava, ao mesmo tempo, ternura e rebeldia. George tornou a observá-la, de olhos chamejantes,
e depois agarrou-lhe a mão, demorando-a na sua, apertando-lhe os dedos... Envergonhada de haver sido tão expansiva, Lettie baixou o olhar e, nessa
ocasião, viu que o rapaz tinha um ferimento no polegar.
- Que grande golpe! bradou, enquanto fazia, trêmula, uma pequena pressão no dedo magoado.
George soltou uma risada.
- Não dói? perguntou ela, muito solícita.
Ele tornou a rir. E respondeu naturalmente, como se aquele polegar não lhe merecesse nenhuma consideração:
- Nada...
Trocaram mais um sorriso. Então, com um movimento brusco, George quebrou o encanto, e afastou-se.


CAPÍTULO 4

 

Chegara o Outono. As dálias-vermelhas, que em geral se conservam vivas e luminosas até tão tarde, apareceram com as corolas murchas e apodrecidas.
Uma tarde, quando eu passava defronte da porta do correio, chamaram-me de lá de dentro e entregaram-me uma carta para minha mãe. Observei o sobrescrito, cuja caligrafia tortuosa me causou um mal-estar inexplicável, meti a carta no bolso e depressa me esqueci dela. Em casa, querendo lembrar-me de qualquer coisa que interessava à minha mãe, recordei-me do fato e entreguei a carta. A destinatária reparou também no sobrescrito e começou a rasgá-lo nervosamente. Chegou-se depois mais para a luz e, de olhos semicerrados, pôs-se a esquadrinhar o conteúdo. Fui buscar-lhe os óculos e ela mal me agradeceu. Suas mãos tremiam. Leu a carta num instante, em seguida sentou-se, voltou a ler, e continuou a olhar para o papel.
- Que é, mãe? perguntei-lhe.
Não me respondeu, e ficou na mesma posição. Aproximei-me dela, pus-lhe a mão no ombro, receoso de qualquer má notícia, e ouvi-a murmurar, como se eu não estivesse presente:
- Coitado de ti, Frank.
Frank era o nome de meu pai.
- Que sucedeu, mãe? insisti.
Virou-se ela então, fitou-me como quem olha para um desconhecido, pôs-se de pé e começou a passear na sala. Depois saiu; percebi que se dirigia ao quintal.
O papel escorregara para o chão. Apanhei-o. Toda a caligrafia mostrava o mesmo aspecto desordenado que eu já notara no sobrescrito; a data indicava ter a carta sido escrita dias antes, numa aldeia situada a poucas milhas de distância. E o texto dizia.

"Minha querida Lettice:
Participo que estou quase morrendo: não poderei durar mais de dois dias, com os rins neste estado.
Fui aí um dia; não a vi, mas descobri nossa filha à janela e troquei meia dúzia de palavras com o rapaz. Nem um nem outro me reconheceram. Se soubesse como me sinto só, horrivelmente só, teria pena de mim.
Tenho poupado o mais que posso, para que seja reembolsada. Agrada-me ver chegado o meu fim, que bem mereci. Não podia ser pior.
Adeus, para sempre. Teu marido.
Franfe Beardsall."

Fiquei perplexo com a leitura desta carta. Fiz um esforço para me recordar de meu pai, mas, com grande esforço, só consegui rever a imagem que me deixava na memória certa fotografia antiga, socorrendo-me ao mesmo tempo da descrição feita por minha mãe: homem alto, belo, melancólico, de olhos claros.
Esse casamento fora infeliz. Meu pai era frívolo, de caráter ordinário, se bem que não fosse destituído de atrativos. Mentiroso, sem a mínima noção da honra, desiludira por completo as expectativas da mulher. Umas após outras, descobrira ela todas as irregularidades do homem a quem se ligara; sentia a alma revoltar-se e, como o sortilégio se partira em mil pedaços, afastou-se com a amargura de quem vê o seu romance transformar-se numa farsa imoral. Quando ele a deixou, trocando-a por outros prazeres - Lettie estava com três anos, e eu com cinco - minha mãe não sentiu senão alívio. Depois, só recebera notícias indiretas, que o não reabilitavam embora a sua situação material houvesse prosperado. O caso é que ele nunca lhe escrevera nem a procurara durante dezoito anos.
Entretanto, minha mãe regressou do quintal, e sentou-se numa cadeira, entretendo-se a fazer bainhas na orla do avental.
- A verdade, disse ela, é que Frank tinha direito aos filhos e que eu os guardei todo este tempo.
- Ele podia ter voltado, se quisesse, observei.
- Eduquei vocês contra o pai, mantive a distância - e ele queria tanto aos filhos! Devia estar agora a seu lado; devia tê-lo levado lá há mais tempo.
- Como, se não conhecia o seu paradeiro?
- Ele queria voltar... suspeitei disso nestes últimos anos. Mas conservei-me afastada, bem o reconheço. Coitado! Há-de ter compreendido os seus erros. Eu fui mais cruel...
- Não diga isso. Está falando debaixo da impressão recebida.
- Pressenti ultimamente que ele estava mal. Não sei como, mas adivinhei a sua doença, e tive a suspeita de que queria tornar a ver-nos.
Há três meses, em especial, que eu estava inquieta. Ah, fui bastante cruel!
- Então vamos, sugeri. Vamos lá visitá-lo.
- Amanhã, amanhã, replicou minha mãe, parecendo que só nesse momento reparara em mim. Irei de manhã.
- Vou consigo.
- Sim, de manhã. À Lettie não se diz nada. Ela tem sua festa em Chatsworth.
- Não se diz nada, concordei.
De aí a pouco minha mãe subiu ao andar de cima.
Mais tarde, Lettie chegou de Highclose. Leslie não quis entrar. Na manhã seguinte foram de automóvel para Matloc e Chatsworth. Como andava excitada, minha irmã não reparou em nada.
Depois de eles terem partido, nós saímos também. Quando descíamos do comboio, em Cossethay, a tarde estava calma e dourada, e mamãe insistiu em fazer a pé o percurso de duas milhas, até a aldeia. Fomos devagar, pela estrada, demorando-nos a apreciar as flores rubras que ornavam as sebes. Dir-se-ia que não tínhamos grande desejo de chegar ao nosso destino. Ao avistarmos o campanário cinzento da igreja ouvimos sons de estridente música metálica: dançava-se animadamente numa quinta dos arredores.
Havia cavalos de pau e barcos girando em roda, sob o céu azul transparente. Sentamo-nos sobre os degraus de uma cancela, a observar o carrossel e as várias barracas espalhadas pelo campo. As crianças, em grupos, passavam de um divertimento para outro. Com dois baldes gotejantes nas mãos, um homem atravessou o espaço aberto; às portinholas dos carros espreitavam mulheres e, debaixo dos pés das pessoas, metiam-se constantemente cães magros e preguiçosos. Assim decorria a feira, com todos
os seus ruídos particulares.
A voz masculina e rouca de certa dama convidava as crianças curiosas a olharem pelo estereoscópio. Na tribuna do carrossel estava um homem; e escarranchando-se ali, inclinava-se para trás, assobiando forte com os dedos na boca. Numa barraca imunda via-se um sujeito gordo a gritar aos garotos reunidos à sua volta, intimando-os a desafiarem um rapaz corpulento que, numa atitude impassível, cruzava os braços e mostrava o vigor dos bíceps. Como alguém perguntasse se ele se responsabilizava
pelo desafio, o rapaz fez que sim com a cabeça, o que foi reforçado logo pelo empresário. Mais além, ouvia-se a voz esganiçada dos vendedores. A lamber um sorvete, aproximou-se de nós uma moça; mas não nos achou dignos de interesse, e prosseguiu o seu caminho em busca de outras distrações.
Estávamos tomando coragem para seguir através daquele tumulto quando o sino rachado da igreja dominou o burburinho, lançando ao ar três badaladas. Olhei para minha mãe - e ela afastou-se de mim.
A música do realejo continuava arrastando-se, a mulher de voz rouca fazia novos apelos. Depois houve um momento de calmaria. O empresário do atleta entrou então na barraca para lutar com este, os vendedores ergueram os seus clamores, os cavalos e os barcos recomeçaram a girar.
De súbito, o sino voltou a badalar, agora mais vezes. O barulho, no entanto, crescera à nossa volta. Um dos rapazes, que se atrevera a andar de carrossel, tinha ainda o pé no estribo quando aquilo principiou a girar, com risco de desequilibrar tudo. A moça do sorvete comia agora outro, lambendo-o com igual método. Minha mãe, distinguindo o sino em meio daquele reboliço, gritou-me que a seguisse - e assim nos apressamos através da feira, em direção à igreja.
Passamos depois por um jardim onde flores rubras espreitavam do topo das hastes compridas. Por toda a parte se desgrenhavam crisântemos e murchavam malmequeres. Esse jardim pertencia a uma casa baixa e escura, atrás de um muro de bambu. Fomos direto à entrada principal. As venesianas estavam descidas; mas, numa janela, distinguimos luz mortiça de velas.
- É a Vivendo, do Teixo? perguntou minha mãe a um rapaz.
- Da Senhora May? É aqui, respondeu ele.
- Ela vive só? - inquiri - por meu turno.
- Tinha um hóspede francês, mas ele morreu. É por isso que estão as velas acesas.
Batemos à porta.
- Vêm por causa dele? indagou uma velha curvada, de voz rouca, que nos perscrutava com os seus olhinhos azuis; ao mesmo tempo, meneava a cabeça, coberta com uma touca de veludo, e apontava para um quarto interior.
- Viemos, declarou minha mãe. Recebi uma carta.
- Ah, coitadinho! Lá se foi! volveu a mulher, sempre a abanar a cabeça. Depois inclinou-se mais para nós, cheia de curiosidade, pôs a mão mirrada no braço da minha mãe e cochichou:
- As velas já se apagaram por duas vezes.
- Preciso de entrar e tomar algumas disposições. Sou parenta mais chegada, explicou a mãe, com voz trêmula.
- Sim, senhora; estive dormitando e, quando acordei, já estava escuro. Ah, não preciso agora velar por ele, pobre homem!, como fiz tantas vezes. O que ele padeceu, credo! Levantou as mãos ressequidas e fitou minha mãe com maior atenção, erguendo para elas os olhos intensamente azuis.
- Sabe onde é que ele guardava os seus papéis? perguntamos em seguida.
- Sim, senhora, falei com o Reverendo Burns a respeito de tudo. Devemos rezar por ele, foi o que me disse o padre. Comprei as velas com o meu próprio dinheiro. Era muito esquisito, coitado. Pobre homem! repetiu a dona da casa, sacudindo a cabeça grisalha em ar de condolência.
Minha mãe deu um passo em frente.
- Quer vê-lo? acudiu a velha, um tanto receosa.
- Quero, respondeu a mãe, acompanhando a palavra com um aceno vigoroso. Tinha percebido que a outra era quase surda.
Entramos para a cozinha, que era baixa, comprida e escura, com os vitrôs fechados.
- Sentem-se, disse a velha no momento tom apagado, - como se falasse consigo mesma. Era irmã dele, talvez?
Mamãe abanou a cabeça.
- Ah, sua cunhada! retorquiu a hospedeira. Fizemos sinal negativo.
- São primos? continuou, olhando para nós já suplicante, Não a desmentimos desta vez.
- Esperem um minuto, pediu, saindo da cozinha no seu andar saltitante. Bateu a porta, ouvimo-la tropeçar numa cadeira, mas por fim voltou com
uma garrafa e dois copos, que pôs na mesa, na nossa frente. Mal se julgaria que esse pulso magro seria capaz de segurar uma garrafa cheia.
- Esta é a que ele bebia, explicou logo, enquanto nos incitava a provar. Bebam, para ganhar forças. Afastou-se outra vez e regressou com o açucareiro. Recusamos a bebida.
- Ele é que não tornará a tomar, coitado! E que boa pinga, minha senhora. Só bebia coisas boas. Mas há três dias que não engolia nem uma gota. Vá, não façam cerimônia. Recusamos de novo.
- Está ali, segredou ela, apontando para uma porta fechada, no canto mais sombrio da cozinha. Abri-a, arrisquei uns passos e, tropeçando, fui de encontro à mesa na qual ardia uma vela num castiçal de latão. A vela caiu no soalho e o castiçal rolou com estrépito.
- Oh! Meu Deus! gemeu a hospedeira. Correu, a tremer, para o outro lado da cama e tornou a acender o pavio que ainda fumegava. Nesse momento a luz
deu-lhe em cheio na cara encarquilhada e pôs reflexos nas maçanetas do leito de mogno. No chão, viam-se pingos, e na cama, debaixo da colcha, distinguia-se o contorno de um corpo. A velha ergueu a parte da roupa que cobria o cadáver e recomeçou nos seus lamentos. O coração batia-me com força; evitei o olhar mas não pude. Ali estava o homem que eu vira no bosque, porém já lívido. Senti ao mesmo tempo piedade e terror e uma impressão horrível de
pequenez, de isolamento num grande espaço vazio. Parecia que eu me encontrava para além de mim próprio, como se fosse uma sombra insignificante que se movesse na escuridão. Depois notei que minha mãe havia chegado e que, abraçando meus ombros, murmurava em tom dolorido:
- Filho, filho da minha alma!
Estremeci e voltei a mim. Não havia lágrimas nos olhos dela, apenas uma expressão de súplica.
- Não faz mal, mãe, não faz mal, disse eu, incoerentemente, no meio da minha atrapalhação.
Com as mãos velando-lhe o rosto, minha mãe dirigiu-se à dona da casa e impôs-lhe silêncio. Esta enxugou as faces e aconchegou os fios grisalhos debaixo da touca de veludo.
- Onde estão os haveres dele?
- Heim? perguntou a velha, apurando o ouvido.
- Está aqui tudo quanto lhe pertencia insistiu a mãe, com voz forte.
- Aqui? repetiu a mulher, indicando o quarto com a mão estendida. Havia, além da enorme cama de mogno, sem cortinados, uma escrivaninha, uma cômoda antiga de carvalho e duas ou três cadeiras. Não o pude levar para cima. Está cá pouco mais ou menos há três semanas, acrescentou de aí a instantes.
- Aonde está a chave da escrivaninha? perguntou minha mãe ao ouvido da outra.
- Sim, senhora, é a escrivaninha dele, respondeu, olhando-nos indecisa.
A cena confrângia-me.
- A chave! gritou minha mãe. Onde está a chave?
A velha, perturbada, não fazia outra coisa senão abanar a cabeça. Calculei que ela não soubesse, de fato, o que lhe perguntavam.
- E as roupas? As roupas? inquiri, apontando para o meu paletó. Ela, então, compreendeu e disse:
- Vou buscar.
Perto da cabeceira do leito existia uma portinha que dava para a escada do andar superior. Estávamos dispostos a seguir a hospedeira, que desaparecera a toda pressa por ali, quando ouvimos um passo pesado na cozinha e uma voz gritando.
- Teria a velha ido beber com o diabo? Viva, Senhora. May, venha antes beber comigo!
Sentimos o despejar de um líquido no copo e quase no mesmo instante entrou um homem no quarto, dizendo:
- Sempre quero ver onde está essa velha! Como acontecera comigo, esbarrou também na mesa, mas não derramou nada no chão. Raio de degrau! acrescentou em tom jovial. Devia ser o médico. Vinha de chapéu na cabeça e vagueou pelo aposento com a maior sem-cerimônia. Tinha a cara vermelha e era volumoso de corpo.
- Desculpe, disse ele, reparando em minha mãe, que baixou a cabeça num leve cumprimento. É a Senhora. Beardsall? ajuntou, tirando o chapéu.
Mamãe fez sinal afirmativo.
- Fui eu que pus no correio a carta para a senhora. Também é parente? perguntou a seguir, indicando-me.
- O mais próximo.
- Pobre homem! volveu ele, designando o morto. Conseqüências da vida solitária!
- A carta foi grande surpresa, para mim, disse minha mãe.
- Ele não estava em estado de escrever, tinha passado muito mal ultimamente. Enfim, mais tarde ou mais cedo temos de dar contas a Deus. Queira desculpar.
Houve um momento de silêncio, durante o qual o médico suspirou. Depois começou a assobiar baixinho.
- Será melhor levantar a venesiana, observou ele, deixando entrar no quarto uma nesga de luz. Em todo o caso, não hão-de ter muitas preocupações. Não ficaram dívidas. Creio até que deixou qualquer coisa. Já não está nada mau. Pobre diabo! Andava com a saúde muito ruim. Enfim, mais tarde ou mais cedo... Para onde teria ido o demônio da velha? exclamou de repente, olhando para o teto de vigas, que estremecia com o peso de alguém no quarto de cima.
- Gostava de encontrar a chave da escrivaninha, disse minha mãe.
- Vou procurá-la. E o testamento também. Ele informou-me quanto ao lugar onde tinha isso, e pediu-me que lhe entregasse tudo, quando a senhora viesse. Pensava muito na família, ao que me parece. Podia-lhe ter corrido melhor a vida...
Ouvimos nessa altura os passos da velha descendo a escada. O médico foi ao encontro dela, até aos primeiros degraus.
- Cuidado, cuidado, gritou ele. A pobre mulher fez o que era de esperar: embaraçou-se nos suspensórios de umas calças que trazia de rastos e veio cair nos braços do médico. Este restabeleceu-lhe o equilíbrio, ao mesmo tempo que dizia: - Não se machucou não?
- Ah, doutor, ainda bem que veio. Já viu quem está aí?
- Já, retorquiu ele, com os seus modos rudes mas bondosos. Correu à cozinha, arranjou dois copos de uísque e trouxe-os consigo. Um para si e outro
para mim. Isto dá-lhe forças!
A velha sentou-se numa cadeira junto da porta da escada, com a pilha de roupa caída aos pés. A claridade do dia, entrando pela janela, misturava-se com a dos castiçais e punha tons estranhos tanto na casa da hospedaria como na figura imóvel que estava na cama.
Enquanto a dona da casa segurava o copo com a mão trêmula, o médico deu-nos as chaves e pusemo-nos a vasculhar as gavetas, tirando para fora os papéis. Ele, sem deixar de bebericar o seu uísque ia dando informações acerca do defunto.
- Estava aqui há só dois anos. Começa a sentir-se cansado, disse com os meus botões. Vivera algum tempo no estrangeiro, e por isso é que lhe chamavam francês. Bebeu mais um gole e continuou: - Ah, sempre me pregou cada peça! Sonhava alto, de forma assustadora. Felizmente a velha é surda como uma porta. É horrível, sonhar assim. Um homem arruina-se por completo, quando isso lhe acontece. Bebeu novos goles de uísque, fez outras reflexões e afogou-as com mais bebida. - Mas era um tipo decente, generoso, de mãos largas. As pessoas que não gostavam dele é porque não o compreendiam.
Detesta-se sempre o que não se pode aprofundar. Muito metido consigo, isso é verdade, - exceto quando estava dormindo. Olhou para o copo, suspirou e prosseguiu: - Vamos sentir sua falta. Não é verdade, Senhora May? Fez esta pergunta em voz tão alta que nos sobressaltou; e, por instinto, olhamos furtivamente o leito mortuário.
Entretanto o médico acendera o cachimbo e fumava com sofreguidão, talvez para matar o desejo de beber novos copos de uísque. Mamãe e eu aproveitamos a ocasião para examinar os papéis. Cartas, havia poucas; duas eram endereçadas a pessoas de Paris. Mas encontramos muitas contas, recibos, apontamentos diversos: tudo coisas de negócios.
Em toda aquela desordem a custo se descobriria um traço de vida sentimental. Minha mãe escolheu alguns papéis que lhe pareceram de maior valor. Os outros incluindo as contas, levou-os para a cozinha e jogou-os ao fogo. Parecia ter medo de procurar além de certo ponto.
O médico, entretido com o fumo, voltou a expor os seus pensamentos:
- Há duas maneiras, sim, há duas maneiras.
Pode-se deixar arder a lâmpada com a chama forte, e vê-la brilhar, até que se extingue, e faz fumo, e cheira mal; ou então conservá-la com todo o cuidado sobre a mesa, sujar os dedos arrumá-la de vez em quando: dura mais e cheira menos. Neste momento olhou o copo e notou que estava vazio. Isso chamou-o à realidade: - Posso ser-lhe útil seja no que for, minha senhora?
- Não se incomode, muito obrigada.
- Calculo que não haja muito trabalho nessas arrumações. Nem muitas lágrimas a verter - quando um homem gastou a sua mocidade sabe Deus por onde!
Os que o conheceram moço não hão-de sentir grandemente a sua perda. Teve os seus dias, mas não os gozou muito - sempre a desejar mais e mais. Não há nada como viver casado, com a existência regrada. Depois disto recaiu numa das suas meditações, na qual se manteve todo o tempo em que nós fechamos a escrivaninha, queimamos os papéis inúteis, guardamos os mais importantes - na minha algibeira e na mala da minha mãe - e nos preparamos para sair. Foi só então que ele, olhando admirado para nós, disse de repente: - E a respeito do enterro? Em seguida, notando o ar de fraqueza de minha mãe, deu um pulo, agarrou no chapéu a toda a pressa e acrescentou: - Venha ter com minha mulher, que lhe dará uma xícara de chá. Tenho vegetado tanto no meio destes rústicos que me esqueço às vezes das normas da cortesia. Venham. Minha mulher está só.
Mamãe sorriu e agradeceu-lhe. Voltamo-nos para a porta. No limiar, porém, ela hesitou, dirigiu a vista, rapidamente, para o leito, e por fim decidiu-se a partir.
Ao sentir a frescura da tarde que findava, tive a impressão de que havia sido tudo mentira.
Custava-me a acreditar. Não, não existia realidade naquela face lívida, naquela barba grisalha onde a luz da vela punha nódoas ondulantes e amareladas. O leito de mogno e a velha surda eram simples ilusão dos meus sentidos. A verdade estava só nestes girassóis de cor intensa, nesse relógio do Hospício, na claridade da tarde que nos envolvia e reconfortava. Tive um arrepio, expulsei da memória
o quadro que me afigurava irreal e prossegui o caminho.
A residência do médico ficava num lugar agradável, entre faias. Junto de uma cerca de ferro, em frente do pasto, via-se nesse momento uma senhora acariciando o focinho de uma linda vaca Jersey, a observá-la de muito perto e a falar-lhe com acentuada pronúncia escocesa. Dir-se-ia que essa mulher pequena e rosada estava falando e
brincando com uma filha. Ao virar-se para nós, ficou surpreendida e saudou-nos ainda com um resto de ternura nos olhos.
Uma vez em casa, ofereceu-nos chá, bolos e geleia. Não me fartei de gozar o som da sua voz musical, que lembrava o zumzido de abelhas em torno do açúcar; e, embora não dissesse nada de especial, nós a escutamos com a maior atenção.
O médico era pessoa bondosa e alegre. A mulher lançava-lhe de vez em quando olhares receosos e fazia o possível por não encará-lo. Com os seus modos francos e joviais, o marido troçava, elogiando-a depois com exagero e tornava a
dirigir-lhe gracejos. Em certa altura começou a ser um nadinha enfadonho e eu percebi que a mulher temia
vê-lo embebedar-se deveras. Devia sentir horror ao espetáculo da embriaguez, que não parecia ser muito raro.
Não tinham filhos.
Ao notar a inquietação da mulher, o médico suspendeu as suas brincadeiras. Olhou para ela várias vezes e pareceu constrangido com o fato de a sua cara metade evitá-lo, então começou a ser visível o mal-estar desse homem, e eu percebi que ele queria ir-se embora.
- Talvez fosse preferível irmos agora ao padre, observou daí a pouco. E deixamos aquela sala cujas janelas se abriam para o sul, para as pastagens, aquela sala que revelava toda a história da família, quer nas aguarelas pretensiosas, quer nos tapetinhos bordados das mesas, nas jarras vazias, no piano fechado, nas xícaras desirmanadas, no bico rachado do bule que deixava nódoas na toalha, e nos dois romances de capa suja, vindos de uma livraria de empréstimo.
Fomos encomendar o caixão, e o médico bebeu um novo copo de uísque. Paguei as despesas do funeral, e ele selou o ato com uma gota de aguardente. O cálice de porto, que o padre ofereceu, completou a jovialidade do meu companheiro. Regressamos depois a casa dele.
Desta vez, a inquietação que a mulher mostrou nos olhos não conseguiu dissipar a alegria do doutor: ele tagarelava sem descanso e ela
limitava-se a fazer girar no dedo o anel de casamento. Apesar do ar alarmado que mostramos, o médico insistiu em nos conduzir no seu carro até a estação. A mulher, então tranqüilizou-nos.
- Podem ir com ele sem receio, declarou com sua voz de acento escocês.
Da estação de Eberwich até em casa há uma certa distância. Fizemos o percurso parte em ônibus e o resto a pé. Minha mãe, cansada como estava, sentiu bastante o caminho.
Rebeca esperava-nos junto dos rodondendros; correu cheia de solicitude ao encontro de minha mãe e perguntou se queria chá.
- Já tomei.
- Mas devia tomar outra chávena.
Na sala de jantar, recebeu o chapéu e o casaco de minha mãe e ficou à espera, desejosa de ser esclarecida mas com relutância de fazer qualquer pergunta. Afligiam-na as olheiras de mamãe e o seu ar fatigado.
- Lettie esteve em casa, participou em seguida.
- E foi-se outra vez?
- Veio só mudar de vestido. Levou o de popelina verde. E queria saber para onde tinham ido...
- Que respondeu?
- Disse que não se deviam demorar.
Achei-a alegre como um passarinho.
Depois disto, Rebeca olhou atentamente para minha mãe, que lhe disse:
- Sabe? Ele morreu. Acabo de vê-lo.
- Agora, graças a Deus, a senhora não terá que se aborrecer mais.
- Morreu abandonado, Rebeca.
- Como a senhora tem vivido, nem mais, volveu a criada, em tom áspero.
- Mas eu tive comigo os filhos. Não diga nada à Lettie.
- Não, minha senhora. Rebeca saiu.
- Você e Lettie receberão o dinheiro, disse a mãe, dirigindo-se a mim. Havia cerca de quatro libras, que lhe tinham sido deixadas; e, só no caso da sua morte, é que minha irmã e eu as herdaríamos.
- Pertencem-lhe, mãe, retorqui.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio. Foi ela quem o quebrou, dizendo:
- Podia ter tido um pai...
- Felizmente tivemos mãe. Poupou-nos isso.
- Não diga semelhante coisa!
- Digo e repito. Estamos gratos.
- Se algum dia sentir desprezo por alguém, trata de impedi-lo, e seja generoso, filho.
- Sim, senhora.
- Por agora, basta. Mais tarde ou mais cedo será preciso prevenir Lettie.
Eu o fiz uma semana depois. Minha irmã, insensível, perguntou-me:
- Quem mais sabe?
- Nós, a mãe e Becky.
- Mais ninguém?
- Não.
- Se ele era tão nocivo para a mãe, foi melhor que desaparecesse de vez. Onde está ela?
- Lá em cima.
E Lettie subiu as escadas, a correr.


CAPÍTULO 5

 

A morte do homem que fora nosso pai
modificou-nos bastante a existência: não que experimentássemos grande desgosto, mas porque nos dominou a impressão da vida malograda. Haviam-se alterado em nós os sentimentos e afinidades, criando-se outra percepção das coisas, novos e diferentes cuidados.
Tínhamos vivido sempre entre a água e a floresta - Lettie e eu. Ela, em especial, procurava em tudo as notas mais brilhantes; parecia ouvir as águas gargalharem e as folhas abafarem risos como se fossem meninas; via as árvores sacudirem os ramos, tal se estivessem a dançar, e julgava descobrir maior ternura no simples arrulhar dos pombos.
Mais tarde, todavia, reparara no lamento doloroso do ouriço cacheiro apanhado numa armadilha e percebera a existência de outras ratoeiras às quais serviam de engodo as tripas de um pobre coelho.
Certa ocasião, pouco tempo depois da nossa visita a Cossethay, Lettie foi-se sentar no banquinho da janela. O sol, que a amava e jamais a queria abandonar, apegara-se aos seus cabelos e beijava-os com lábios ardentes, que tinham o colorido das flores que a rodeavam. Minha irmã, olhando por cima de Nethermere, pousava a vista em
Highclose, sombra indecisa naquela névoa de Setembro. Se não fosse o clarão vermelho das suas faces, eu diria que elas estavam tristes e sérias.
Aninhando-se no canto da janela, daí a momentos Lettie apoiou a cabeça no peitoril de madeira, e adormeceu. Parecia a criança adorável de outrora, ali dormindo de lábios entreabertos, como num amuo - e respirando muito devagar. Senti o peso da minha velha responsabilidade: devia protegê-la, tomar conta dela.
Ouvimos passos no areão do passeio. Era Leslie que chegava. Pensando que ela podia vê-lo, tirou o chapéu; mas ficou admirado de que não se mexesse. Aproximando-se mais, percebeu então o motivo; piscou-me o olho e entrou nas pontas dos pés pelo quarto a dentro, a fim de contempla-la. Impressionado com a atitude suave e abandonada
de Lettie, com o ar de mocidade compassivo e submisso, que ela irradiava, ele a beijou nas faces avermelhadas pelos raios do sol.
Lettie despertou com um gritinho infantil. E ele, sentando-se ao seu lado, puxou-a carinhosamente, olhando-a sempre com olhos ternos e sorridentes. Julguei a princípio que minha irmã ia adormecer outra vez, mas as pálpebras tremeram e as pupilas luziram muito vivas.
- Leslie, deixe-me! exclamou, repelindo-o. O rapaz largou-a e levantou-se, fitando-a com severidade. Lettie, compondo o vestido, foi logo ao espelho para arrumar o cabelo.
- É tão atrevido! disse ela, ainda despenteada, cheia de vergonha e de rubor.
- Não se pode parecer bem e estar dormindo ao mesmo tempo, volveu ele, rindo e desculpando-a.
- Não é bonito o que fez! replicou a moça, ainda irritada.
- Por que não havia eu de beijá-lo? Não sou de cerimônias.
- Mas tratava-se de mim e não de você.
- Meu Deus, tanto barulho por uma coisa tão simples...
- Mamãe vem aí, preveniu ela. Minha mãe gostava bastante de Leslie.
- Ora viva, disse ao entrar, parece-me que estão zangados.
- Lettie ralhou comigo por eu a ter beijado quando ela representava o papel de Bela Adormecida.
- E este rapaz teve a presunção de se julgar o Príncipe?
- Infelizmente, sem qualidades dignas da personagem, retificou ele em tom pesaroso.
Lettie deu uma risada e perdoou-o. Era um homem elegante e atraente. Dava gosto vê-lo andar com movimentos vigorosos e elásticos. O rosto, porém, não agradava tanto como o conjunto da sua pessoa: tinha as sobrancelhas muito ralas, o nariz demasiado grosso e uma testa pouco favorecedora, se bem que não fosse curta. A expressão é que o ajudava muito, franca, risonha, saudável.
- Pois eu, disse ele, fitando-a e sorrindo, vinha buscá-la para sair.
- A tarde está deliciosa, interveio minha mãe. Lettie relanceou o seu admirador e respondeu:
- Sinto-me com tanta preguiça!
- Não importa. Despertará lá fora. Vá pôr o chapéu, Parecia impaciente. Minha irmã, observando-o, viu-o sorrir de certa maneira especial, baixou os olhos e saiu da sala.
- Irá, no fim de contas, disse ele, falando consigo próprio, mas em voz alta. Gosta de se fazer de rogada.
Lettie devia tê-lo ouvido, pois, ao reaparecer, já a enfiar as luvas, declarou-me tranqüilamente:
- Você vem também.
Leslie rodou nos calcanhares e encarou-a surpreendido e furioso.
- Preciso de ficar, disse eu, sentindo-me constrangido. Falta acabar esta aguarela.
- Não, não, vem conosco, insistiu ela. Puxou-me da cadeira e tirou-me o pincel da mão.
O sangue afluiu ao rosto de Leslie, que se dirigiu rápido ao vestíbulo, donde voltou com o meu boné.
- Está bem! rematou, ainda colérico. As mulheres têm a mania de que são Napoleões.
- É verdade, Senhor Duque de Ferro, acudiu ela, zombeteira.
Para não perder o assunto que ela sugerira, Leslie replicou ato contínuo:
- O pior é que há sempre Waterloo... Vamo-nos embora, sim?
- Às ordens, volveu ela, tomando-me o braço.
Fomos através do bosque até a estrada real, passando pelos terrenos fronteiriços, de vegetação hirsuta - esses terrenos que podiam constituir um parque mas que permaneciam abandonados, com ervas e montículos erguidos pelas toupeiras; estavam cheios de urzes, sarças, e espinheiros aqui e ali, formando estranhos grupos.
Na estrada, as folhas estalavam debaixo dos nossos pés. As águas conservavam-se calmas e azuis e as medas de cereais pareciam vultos adormecidos.
Trepamos o outeiro por detrás de Highclose e seguimos ao longo do planalto, procurando com a vista as colinas do árido Derbyshire; mas era outono, não podíamos avistá-las. O que descobrimos foram os cabeçotes da mina de Selsby e a respectiva aldeia, de tão feio aspecto, estendendo-se nua e desabrigada pio alto do monte.
Lettie ia bem disposta, rindo e brincando sem cessar. Colhia frutos silvestres e enfeitava com eles o vestido. Como enterrasse num dedo um espinho de silvado, pediu a Leslie que o arrancasse. Assim brincando saímos da estrada e enveredamos pelo caminho apertado que fica à esquerda da floresta, à direita dos campos e dos baldios e defronte das altas colinas de Strelley. Depois de uns momentos de marcha, vimos brilhar uma foice. Lettie correu à beira da vereda, para admirar de mais perto: era George que ceifava as espigas de aveia, pois a segadora mecânica não podia chegar àqueles terrenos declinosos. O pai encarregava-se de fazer os feixes.
Endireitando-se, o Senhor Saxton descobriu-nos e chamou-nos para irmos ajudá-lo. Passamos por uma abertura da sebe e fomos ter com ele.
- Agora tire o casaco, disse-me ele. E, dirigindo-se a Lettie: Não nos trouxe de beber? Mau! Estão passeando, não é verdade? Veja lá o que é uma pessoa engordar! acrescentou, espetando a cara volumosa enquanto se curvava para atar as espigas. Era homem corpulento, vermelho, na força da vida.
- Ensine-me como é. Quero experimentar, pediu Lettie.
- Não, senhora, negou ele brandamente; iria esfolar os seus lindos dedinhos e dar cabo do espartilho. Ouça as minhas mãos, ajuntou, esfregando-as uma na outra; soam como lixa.
George, que estava de costas para nós, ainda não nos tinha visto, e continuava a ceifar. Leslie observava-o.
- Belo exercício, disse ele.
- Tem razão, assentiu o pai dos Saxtons, levantando a cara, muito corada, acima do feixe. O nosso George entretém-se deveras nisto. É bom para desentorpecer.
Caminhamos no meio das espigas ceifadas. Como o sol se tornara mais suave, George havia tirado o chapéu, e o cabelo preto, cheio de suor, enrolava-se em caracóis. Firmemente apoiado à terra, mexia o resto do corpo, da cintura para cima, com movimentos de grande beleza rítmica. À altura da anca, no cinto dos calções, pendia-lhe o passador da foice. A camisa desbotada, quase branca, mostrava um rasgão na cintura e deixava ver através dele os músculos das costas agitando-se como sobre a água de um regato. Aquele corpo elástico e harmonioso tinha qualquer coisa que atraía o olhar.
Falei-lhe, e George voltou-se, fitando logo minha irmã com um sorriso espontâneo e denunciador. Estava, nesse instante, realmente belo. Tentou dirigir-nos palavras de saudação; mas, não tendo conseguido formulá-las, agachou-se, apanhou um braçado de aveia e pôs-se a atá-lo sem cerimônia.
Lettie não achava também nada que dissesse. Foi Leslie quem quebrou o silêncio:
- Não há dúvida que isso é ótima ginástica.
- É, sim, confirmou o interpelado, continuando a trabalhar. Vendo que Leslie pegava na foice, acrescentou: - Vai transpirar e dar cabo das mãos.
O outro abanou a cabeça, tirou o casaco e perguntou: - Como se faz?
E, sem esperar resposta, começou a cortar as hastes mais próximas. George não respondeu, mas voltou-se para Lettie.
- Está pitoresco, disse ela, um pouco timidamente. A calhar para um Idílio.
- E você? inquiriu ele.
Minha irmã encolheu os ombros, riu e foi apanhar uma flor vermelha. Só então falou, indagando:
- Como é que se amarra isso?
Pegando numas poucas de hastes, George limpou-as e mostrou como se atavam. Em vez de dar atenção a isso, Lettie olhou para as mãos dele, grandes e vigorosas, enrubescidas pelo cabo da foice.
- Bem, me parece que não serei capaz, declarou ela.
- Não, confirmou o rapaz, com a maior naturalidade, enquanto espiava o trabalho de Leslie. Este, que estava sempre pronto para tudo, fazia
obra asseada, sem conseguir, todavia, os movimentos majestosos do lavrador.
- Aposto que vai ficar suado, disse George.
- Você não fica? perguntou Lettie.
- Um pouco, mas não estou vestido de ponto em branco. De repente, Lettie fez esta observação:
- Sabe uma coisa? Os seus braços dão-me tentações de lhes tocar. Têm uma cor morena, tão bonita! E parecem tão rijos!
George exibiu-lhe um braço. Ela hesitou; mas, de súbito, pôs as pontas dos dedos na pele morena, deixou-as correr um instante ao longo do bíceps e, retirando a mão de repente, escondeu-a na prega da blusa. O rubor subira-lhe ao rosto.
A gargalhada que ele soltou, lenta e retumbante, acariciou e exasperou ao mesmo tempo os ouvidos dos que a escutaram.
- Não desgostaria de trabalhar aqui, disse ela, espalhando a vista pelo cereal ceifado e pelo bosque envolto numa névoa azul. George seguiu seu olhar, e
tornou a rir devagar, com indulgência, com assentimento.
- É verdade! repetiu Lettie, exagerando a nota.
- Para você, volveu ele, enfiando a mão no peito da camisa e esfregando brandamente a ilharga, trabalhar ou estar quieta ê sempre um motivo de prazer.
A moça contemplou-o corno se esse homem, latejante de vida, fosse a mais bela criação da Natureza.
Nesse momento chegou Leslie enxugando a testa.
- Caramba! Fiquei suando.
George levantou-lhe o casaco, abandonado no chão, e, entregando-lhe, recomendou:
- Veja lá não se resfrie.
- Não há dúvida, respondeu o outro, que isto é um exercício de primeira ordem. Você deve ter a pele muito dura, acrescentou, ao ver o companheiro abrir um canivete e tirar com ele um espinho enterrado na mão.
Lettie não disse nada, mas recuou uns passos.
Saxton, contente com o pretexto que se oferecia de descansar e conversar, aproximou-se do grupo.
Cansou-se depressa, notou ele, rindo, a Leslie.
Mas George, nessa ocasião, deixou escapar um grito. Todos nos voltamos e vimos um coelho que irrompera de baixo dos feixes e que enfiava para a sebe, correndo e esquivando-se o melhor que podia. A seara ainda de pé, naquela encosta, ocupava cerca de cinqüenta passos de comprimento e uns dez de largura.
- Não esperava que houvesse algum aqui, declarou Saxton, lançando mão de um ancinho e brandindo com ele para o lado da vedação. Seguimo-lo sem demora. Ele, porém, recomendou que esperássemos, a fim de ver se as espigas mexiam.
Espalhamo-nos, então, em torno.
- Atenção, ali! bradou o lavrador, excitadíssimo. No mesmo instante apareceu outro coelho.
- Agarra, agarra! foi o grito geral. Todos nos pusemos em perseguição do fugitivo, que parecia desnorteado. Querendo escapar-se ao ataque de Leslie, que estava mais perto dele, o animal, mudando de rumo, esgueirou-se para a banda da colina, atravessando em ziguezagues o labirinto dos feixes colocados no terreno.
Cedo lhe faltaram as forças e George foi-lhe no encalço. O coelho ainda conseguiu meter-se entre umas palhas; o rapaz, contudo, não o perdera de
vista e, de aí a pouco, trazia-o na mão, pendurado pelas orelhas.
Regressávamos, transpirando e ofegando, ao limite da seara quando ouvimos Lettie chamar e vimos Emily e os dois irmãozinhos que se aproximavam de nós, vindos da escola.
- Outro! gritou Leslie.
As espigas ondularam. "Aqui, aqui!" exclamei eu. O animal saltou e despediu para a sebe. George e Leslie, que estavam nesse canto, arremeteram contra ele e fizeram-no mudar de curso. Eu o fiz encaminhar-se então para o lado de Saxton, que ainda o seguiu mas que era excessivamente pesado para a empresa. O coelho atirou-se para a cancela! Molie, com o chapéu na mão, veio sobre ele e conseguiu obrigá-lo a recuar.
Já cansado, o coelho enveredou no meio dos feixes, fugindo ao meu avanço. Se eu tivesse caído sobre a vítima, tê-la-ia apanhado, mas não pude fazê-lo a tempo, e o animal escapou-se por um buraco da sebe. George atirou-se e quase lhe punha a mão em cima. Mas era tarde. Estendido no chão, arquejante, George fitou-me com olhos em que se via a excitação e o esgotamento lutarem como um combate de luz e claridade. Quando pôde falar, perguntou-me:
- Por que você não se lançou em cima dele?
- Foi impossível, respondi.
Retrocedemos. As duas crianças espiavam agora também por entre as espigas não ovadas. A nossa impressão era de que não havia mais caça. George recomeçou na sega, e eu continuei a andar ao acaso: foi então que descobri um coelho emboscando-se num ponto afastado do terreno. As orelhas dele pareciam coladas ao dorso e a sua palpitação era tão agitada que se via a pele castanha subir e baixar; os olhos, muito vivos, fitavam-me cintilando. Embora o animal não me inspirasse compaixão, a verdade é que me encontrava desarmado e fiz sinal a Saxton, que logo acorreu e o atingiu com o ancinho. Ouviu-se um guincho que me impressionou como se eu próprio
tivesse sido atingido. O coelho, no entanto, escapuliu e, esquecido do grito lancinante, dei-me a perseguir a vítima, que parecia ferida.
Meus dedos, enrijecidos, negavam-se a tocá-lo. Leslie acudiu nesse momento, ansioso por matar.
Olhei para cima. As moças estavam na porteira, prontas a partir.
- Não há mais nenhum, sentenciou o lavrador. Mollie, naquele instante, deu novo alarma:
- Há um na toca!
Era buraco muito pequeno para que George metesse a mão, de forma que pusemos a cavar com o cabo do ancinho. O pau conseguiu alargá-lo suficientemente; aos nossos ouvidos chegou um guincho que nos sobressaltou.
- São ratos, disse George, ao mesmo tempo que o bicho se escapava. Alguém o atingiu logo com uma pancada - e, por toda a parte pularam filhotes.
Matamos a ninhada como quem mata insetos: contamos nove, ali estatelados no chão.
- Coitada! comentou o meu amigo, olhando para a ratazana. Teve tanto trabalho em criá-los!
Pegamos-lhe pelo rabo, observando-a curiosos e condoídos.
Aquele dia admirável começava a declinar. Para o lado do oeste o nevoeiro tornara-se mais azul, e o zumbido rítmico das máquinas, na mina distante, quebrava o silêncio do ar. Era a hora de largar o trabalho. Ao passarmos pelos campos, sentimos o mato zunindo como o murmúrio de uma cascata. Da terra elevava-se suavemente o cheiro das searas. E o último grito dos faisões veio da floresta, acompanhado do esvoaçar das derradeiras nuvens de pássaros. Peguei uma foice e, cansado mas satisfeito, desci com os outros em direção à granja. As crianças tinham partido à frente, levando consigo os coelhos mortos. Quando chegamos ao moinho, as moças levantavam-se da mesa. Emily começou a retirar os pratos e a lavá-los para nos servirem o jantar. Mal olhou para os recém-vindos e o cumprimento que nos dirigiu foi de simples cortesia. Lettie agarrou num livro que estava no assento da lareira e foi com ele para a janela. George deixou-se tombar numa cadeira, depois de haver tirado o casaco, e alisou o cabelo para trás; ficou depois silencioso, com os braços morenos estendidos sobre a mesa. De aí
a pouco esfregou a mão nos olhos e disse-me:
- Correr desta maneira cansa mais do que uma semana inteira de trabalho. Não seria capaz de repetir a proeza.
- O esporte é excitante enquanto dura, opinou Leslie.
- Isto faz mais mal, interveio a Senhora Saxton, do que o proveito que nos trouxeram os coelhos.
- Talvez não, mãe. Olhe que valem um par de xelins, retorquiu o rapaz.
- E um par de dias da tua existência.
- Que vale isso? disse ele, dando uma dentada num pedaço de pão com manteiga. Dá-nos chá, ajuntou, dirigindo-se à irmã.
- Não sei o que se pode esperar de gente bruta, murmurou Emily compadecida, trazendo o bule na mão.
- Ah, replicou George, comendo mais pão com manteiga, desta vez fui acompanhado nas minhas selvagerias.
- Os homens são todos selvagens, acudiu Lettie em tom fogoso, sem desviar a atenção do livro.
- Compete a vocês amansar-nos, observou Leslie, que estava de bom humor.
Minha irmã não respondeu. Foi George quem falou, numa entoação tão de conselheiro que enfureceu as senhoras:
- E as mulheres não fazem mal aos bichinhos mas gostam de utilizar suas peles nos vestidos.
Emily afastou-se, indignada. Lettie abriu a boca para responder, mas acabou por ficar silenciosa.
- O caso é que isso de matar sempre é desagradável, respondeu Leslie.
- Quando nos metemos nisto, retrucou George, é para ir até ao fim. Depois de sentir o cheiro do sangue, ninguém tem domínio de si...
- Parece-me horrível, declarou Lettie, andar atrás de um coelho a torturá-lo.
- Oxalá não tome gosto...
- Não há dúvida de que os homens são cruéis, disse Leslie, olhando de esguelha para minha irmã. São cruéis à sua maneira, repetiu, com outra olhadela e um sorriso irônico.
George voltou à carga:
- Para que vamos ficar com rodeios? Se nos agrada fazer uma coisa, havemos de pô-la em prática.
- Exceto se faltar a coragem, interveio Emily, cheia de amargura.
O rapaz ergueu os olhos para ela, subitamente encolerizado.
- Mas, disse Lettie, que não pôde resistir a fazer a pergunta, não acha que é coisa brutal - agora que você pensa dessa forma - correr atrás desses animais indefesos? Pareceu-me ato degradante, dos mais vis...
- Talvez seja, replicou ele, mas não o foi ainda há uma hora.
- Não tem sentimentos, concluiu minha irmã, desiludida. George riu, sem responder; mas o seu riso assemelhava-se a uma súplica.
Acabamos o chá em silêncio, minha irmã lendo e Emily andando na sala, de um lado para outro. George levantou-se e saiu. Minutos depois o ouvimos passar no pátio, com os baldes de leite cantando Alameda dos Freixos.
- Nada o faz ficar quieto, opinou Emily, cada vez mais desgostosa. Lettie olhou para o pátio, através da janela, pensativa. Parecia mal humorada.
Daí a instantes saímos também, antes que a luz de todo abandonasse o tanque. Emily levou-nos até ao quintal para colher algumas ameixas maduras. O terreno era baixo e escuro, coberto de ervas. As árvores estendiam os ramos sobre os passeios. Pouco mais produzia o quintal, a não ser alcachofras moles e abóboras balofas. Mas no fundo, onde se erguiam as construções da propriedade, altas e cinzentas, havia aquela ameixoeira encostada ao muro - a qual já rompera a escravidão e se expandia livremente; entre os seus ramos escondiam-se agora esplêndidos globos rubros, verdadeiros tesouros. Abanei o tronco velho e gasto, onde escorria seiva, e os frutos tombaram pesados, batendo nas largas folhas de ruibarbo que estavam por baixo.
Riram as moças, e nós dividimos o saque, com o que voltamos ao pátio. Depois descemos ao limite do jardim, que confina com o tanque. Este era rodeado de ervas enormes entremeadas de caniços grossos. Conforme nos prevenira Saxton, havia lá grande quantidades de ratazanas. Na margem fronteira, as árvores frutíferas desciam até a água, que vinha do tanque mais alto, através de um túnel.
À nossa aproximação, fugiram dois ratos para dentro da passagem subterrânea. Sentamo-nos, observando, sobre umas pedras musgosas. Então eles reapareceram, andaram um pouco, pararam, correram outra vez, puseram-se à escuta, tranqüilizaram-se, - e, emergindo em plena liberdade, meteram-se em toda a parte, arrastando as caudas peladas e compridas. Daí a pouco havia já seis ou sete, dos maiores, entretidos na boca do túnel, onde estava mais escuro. Muito calmos, esfregavam os focinhos aguçados e alisavam os bigodes. De repente, um deles, excitado, saltou verticalmente, torcendo-se no ar, e em seguida fugiu para dentro do buraco; outro lançou-se à água, com um mergulho pouco elegante, e nadou para o lado onde nos encontrávamos: parecia um diabinho, com a venta ponteaguda à superfície e os olhitos vivos faiscando. Lettie estremeceu, e eu atirei uma pedra ao tanque, assustando assim toda a súcia de roedores. Mas nós estávamos ainda mais assustados, de maneira que resolvemos partir. Em poucos instantes chegamos ao pátio.
Leslie acolheu-nos intrigado. Durante esse tempo, visitara as provisões de Saxton, acompanhado pelo proprietário.
- Fugiram de mim? inquiriu ele.
- Não, replicou minha irmã. Fui buscar ameixas. Olhe! E mostrou-lhe duas, no mesmo raminho.
- São bonitas de mais para comer.
- É que você ainda não provou.
- Vamos, retorquiu Leslie, oferecendo-lhe o braço. Vamos até à lagoa.
Lettie aceitou o convite.
A noite estava esplêndida, e as águas tranqüilas tinham reflexos amarelos, quase espessos. A pedido de minha irmã, Leslie sentou-se num ramo baixo de salgueiro, e encostou a cabeça nos joelhos. Emily e eu continuamos a passear; mas a voz de Leslie
chegava-me aos ouvidos, num murmúrio. Lettie respondeu na sua toada carinhosa.
- Não... fiquemos sossegados... está tudo tão calmo... É o que mais aprecio agora.
Conversando, Emily e eu sentamo-nos por fim no tronco dos alamos, um pouco mais além. Depois de umas horas de excitação, à noite - e em especial pelo Outono - somos inclinados à melancolia, ao sentimentalismo. A pequena distância, sussurrava a fala de Lettie e aquilo era como o rumor de um inseto voando. Longe, no pátio, George começou a cantar a velha canção "Espalha a semente do amor".
Isto interrompeu a voz alada de minha irmã. Com a aproximação do cantor, acabou de todo esse som de palavras em tom de confidencia. Fomos ao encontro de George. Leslie endireitou a cabeça, ergueu os joelhos, mas não falou. O filho dos Saxtons estava defronte de nós e dizia:
- A lua não está nascendo.
- Ajude-me a saltar daqui, pediu minha irmã a Leslie, estendendo as mãos para ele segurá-la. O interpelado levantou-se; mas, fazendo-se desentendido, passou-lhe os dedos debaixo dos braços e arrumou-a melhor no assento, como se ela fosse uma criança; mostrava-se ressentido com aquela intrusão do lavrador.
- Julgava encontrá-los todos juntos, notou George, sem se exaltar.
Lettie achou necessário dar logo uma explicação:
- E estamos, na verdade. Agora somos cinco. É ali que a lua vai aparecer?
- Ali mesmo, confirmou Emily. Gosto tanto de a ver surgir, acima da floresta! Ergue-se devagar, e olha para nós: penso sempre que ela quer qualquer coisa e que eu tenho uma resposta para lhe dar. O pior é que não sei qual seja...
A leste, onde o céu estava mais pálido, sobre os confins do bosque, apareceu a ponta de uma lua amarelada.
Admiramos em silêncio, e o disco tornou-se cheio, perfeito, mergulhando-nos num banho de luar. Lettie agitava-se de contentamento; Emily perturbava-se de melancolia, abrindo os lábios, num rogo... Leslie franzia a testa, distraído; George refletia, e os raios de luz enredavam-se-lhe na imaginação. Por fim, Leslie chamou-nos à realidade:
- Vamos. E tomou o braço de minha irmã.
Lettie deixou-se conduzir ao longo da margem e depois sobre a ponte de madeira.
Quando descíamos cautelosamente a escarpa íngreme do pomar, ouvimos a voz de minha irmã:
- Sinto vontade de rir e de dançar, de fazer escândalo...
- Esperamos que não o faça, acudiu o seu admirador, aborrecido.
- Sim, sim, vou atirá-lo à água!
- Sossegue! intimou ele, agarrando-a pelas costas.
Ao chegar à porta que dá para o relvado, acrescentou umas palavras em voz baixa e empurrou a cancela. Suponho que lhe fez propostas definitivas, esperando obrigá-la a tomar um compromisso. Mas ela libertou-se e, vendo a extensão da relva onde a lua punha sombras largas, exclamou:
- Uma polca! Com a erva assim macia e curta pode-se dançar uma polca. Não importa que haja folhas de árvores pelo chão. Que bom, que bom!
Estendeu a mão a Leslie; foi, todavia, muito brusca a mudança para que ele aceitasse. De modo que chamou por mim, com um tom de ansiedade em que se notava o seu receio de ser apanhada nas malhas do sentimento, com uma noite daquelas...
- Cyril, dance comigo. Leslie detesta a polca.
Dancei com minha irmã. Esses passos eram instintivos em mim, como coisa inata. Voamos em redor do campo, levantando as folhas mortas. A noite, a lua tão próxima, o firmamento, os ramos das árvores, tudo nos envolvia de sobrenatural. Ninguém seria capaz de extenuar Lettie quando ela dançava: seus pés
dirse-iam asas batendo no ar. Quando por fim parei, ela riu-se, mais fresca do que nunca, e pôs-se a endireitar o cabelo.
- É delicioso! disse, satisfeita, falando agora com Leslie. Venha experimentar.
- A polca, não, respondeu ele com acento triste, achando que esses compassos frenéticos não estavam de acordo com a poesia dos seus sentimentos.
- Mas na relva úmida não se pode dançar outra coisa, demais a mais com estas folhas caídas... E você, George?
- Diz Emily que eu pulo demais.
- Não faz mal.
Num abrir e fechar de olhos, Lettie e George principiaram a polcar em desmedida velocidade, o que fez com que tombassem ambos no chão. O rapaz ergueu-se logo, levantou-a e recomeçaram num giro irresistível e tremendo. Emily e eu juntamo-nos ao baile. De vez em quando eu tinha a sensação de algo muito branco a flutuar perto de mim, com um rumor de saias alvoroçadas. Já estávamos cansados, e eles ainda se mantinham em plena dança. Quando terminaram, George apareceu com ar de triunfo, nervoso, forte - e ela divertida como uma bacante. Compreendera que, por essa noite, se encontrava livre do pedido de casamento.
- Já pôs ponto final? inquiriu Leslie.
- Já, respondeu Lettie, arquejando. Devia ter dançado também. Agora faça favor de me passar o chapéu. Por que está assim tão macambúzio?
- Macambúzio? repetiu ele.
- Ou, pelo menos, solene. Que sucedeu?
- Pergunta-me o que sucedeu?
- Isso é da lua. Veja: tenho o chapéu bem colocado? Mas olhe para mim! Então endireite-o. Mais. Ah, que mãos frias! As minhas, pelo contrário, estão quentíssimas. Desculpe todas estas travessuras. Estou pronta. Já reparou como estes crisântemos têm um cheiro tão fúnebre? Olhe a lua
a rir e a piscar os olhos através daqueles ramos. Que tem ela a ver com a tristeza dos crisântemos? Agarrou num punhado de pétalas e atirou-as ao ar
-Girem! Não quero melancolias. Gosto dos seres alegres, rudes, impetuosos!

 

CAPÍTULO 6

 

Como já disse, Strelley Mill fica no extremo norte do extenso vale de Nethermere; na encosta dessa banda jazem os seus terrenos aráveis e os seus pastos. O baldio, agora recinto fechado - visto pertencer à propriedade - ocupa a vertente ocidental. A terra cultivada confina com o curso impetuoso do ribeiro, depois com a linha das matas e finalmente com o tanque superior. Para além, a leste, ergue-se o aclive bravio, salpicado de ervas, de árvores antigas e dos espinheiros que fazem de
sebe. Ao longo da orla das colinas, a começar pelo nordeste, estão os bosques sombrios, que descrevem uma curva pelo sul e leste e descem sem governo até a margem de Nethermere, circulando a nossa casa. Da crista do monte oriental, olhando em frente, vê-se a agulha da torre na igreja de Selsby, alguns telhados e torres da mina de carvão.
O proprietário da fazenda, vasto domínio feudal, descendia de uma família antiga, outrora ilustre, mas atualmente decaída do seu esplendor. Ao contrário dos bens, que haviam diminuído, a árvore genealógica ramificara-se de maneira espantosa: já não era um simples roble inglês,
mas uma figueira-da-índia. Como haveria o bom
do homem de alimentar tanta gente com tão magros rendimentos, sem prejuízo do seu nome e das suas tradições? Quis o destino que os inúmeros coelhos, de que havia tocas por toda a propriedade, lhe indicassem a forma de subsistência; vendendo cada animal por cerca de um xelim, em Nottingham, estaria resolvido o magno problema.
Aqueles roedores espalhavam-se por toda a granja. Os cereais e a erva desapareciam da face da terra. O gado emagrecia, sem pasto onde se alimentar. Sem mugidos de vacas nem ladrar de cães, a herdade ficou transformada num ermo silencioso, por onde errava Halkett, o guarda-florestal.
Mas o dono adorava os coelhos e defendia-os contra os estratagemas do seu arrendatário, que andava desesperado. Protegia-os com a sua autoridade e com ameaças de despejo, e regozijava-se ao ver a chusma parda daqueles bichos daninhos movendo-se pelas encostas da colina.
O guarda sorria, flemático. E o fidalgo e um seu amigo apreciador do esporte percorriam de manhã as terras, ambos de espingarda na mão. Estava estabelecido que mais ninguém poderia usar ali armas de fogo.
Entretanto, Strelley Mill começava a mostrar as conseqüências daquela praga. Saxton queixou-se e o senhorio respondia que ele lhe arrendara tudo aquilo por uma ninharia. A soma recebida era absurda - portanto, deixasse os coelhos comerem à vontade! Discutiram, ingerindo whisky e o fidalgo acabou a conferência prometendo que teria uma conversa com Halkelt, para ver se arranjavam solução para o caso.
Nasci em setembro, e tenho uma ternura especial por este mês. Não há calor, nem confusão, nem sede, nem cansaço no corte das searas como sucede no tempo do feno. Se as colheitas se fazem tardiamente, como é comum entre nós, só em meado de setembro é que ficam prontas as medas. Amanhece devagar. A terra é como uma mulher casada que desperta cheia de languidez; não se levanta de um pulo aos primeiros beijos da alvorada, mas lentamente, sossegadamente, vendo chegar sem alvoroço cada novo dia da sua vida. As névoas azuis, como as reminiscências nos olhos da esposa preguiçosa, nunca se erguem da colina arborizada, e só ao meio-dia se afastam,
arrastando-se, das sebes mais próximas. Não há pássaros que façam soltar trinados da garganta da manhã; e, durante o dia, a única voz de ave que se escuta é a do corvo. Sente-se, é claro, a respiração regular e tranqüila das foices e o sussurro impertinente de segadora mecânica; mas, no dia seguinte, às primeiras horas, tudo está outra vez
silencioso. As espigas aparecem úmidas e, quando as amarramos e as erguemos para formar as moreias, aquelas paveias aconchegam-se macias e ficam melancolicamente pendidas.
Enquanto eu trabalhava com o meu amigo, naquelas manhãs calmas, conversava com ele e ensinava-lhe tudo quanto sabia a respeito de química, botânica, psicologia. alava-lhe da vida, do sexo e da origem dos seres, de Schopenhauer e de William James, do que aprendera com os meus professores. Companheiros de longa data, estávamos habituados um ao outro, e ele ouvia-me com atenção. O outono estreitava mais ainda a nossa intimidade. Desta vez levantei o assunto da poesia e ministrei-lhe rudimentos
de metafísica. George era bom terreno para as sementes que eu lançava. Não tinha dogmas, exceto no que respeitava a fazer as coisas a seu modo. A religião não o interessava. De modo que ouvia as minhas lições com espírito desempoeirado, compreendendo tudo rapidamente. Depressa as minhas idéias se tornaram suas também.
Regressávamos para almoçar em mangas de camisa: a tepidez da atmosfera constituía o nosso único abafo. Nesses momentos é coisa grata gozar-se uma camaradagem como aquela. Em tudo o outono punha a sua marca, desde os frutos, que amadureciam nas árvores, até as conversas que se estabeleciam à mesa e em que as vozes eram mais suaves e mais saudosas do que as da época do feno.
A tarde é morna e dourada. Os feixes de aveia parecem leves e, ao cair uns sobre os outros,
dir-se-ia que murmuraram segredos. O restolho fica a tinir quando os pés o sacodem. Ao levantarmos os molhos, soltam-se raminhos de silva que haviam ficado presos debaixo daqueles, e reparamos
que, nos caules dilacerados das dedaleiras, pendem ainda as últimas campânulas.
Falamos do povo, das nossas esperanças, do futuro - e do Canadá, onde o trabalho é inumano; onde as planícies são extensas e a gente não vive entalada num vale como um fruto que tomba num pomar exíguo.
A névoa insinua-se na languidez da tarde. Os feixes estão já atados e só falta erguê-los em medas. No poente, o sol descai entre um clarão de ouro; o ouro torna-se vermelho o vermelho escurece como um fogo a consumir-se rasteiro. Por fim tudo desaparece por trás de uma coluna de nevoeiro leitoso e purpureado como a flor pálida
das ameixoeiras.
Visto o casaco e volto para minha casa.

À noite, depois de ordenhadas as vacas, íamos espreitar as armadilhas colocadas aqui e ali. Atravessávamos o ribeiro e subíamos a vertente do monte, roçando as botas nas manchas negras das escabiosas e ladeando as cardos, cuja penugem cintilava ao luar, e tropeçando sobre montículos de terra levantados pelas toupeiras, entre a erva úmida e grossa. As colinas e os bosques estendiam as suas sombras; os lagos de névoa, no fundo dos vales, absorviam a luz trêmula e fria dos astros.
Alcançamos uma vez a velha quinta que se ostenta no cume do monte. As árvores haviam-na abandonado, deixando uma clareira enorme onde outrora existira um jardim. A minha admiração foi atraída para as janelas, onde não se descobria nenhuma luz, embora passasse pouco das oito horas. Reparando melhor no frontispício extenso e imponente, verifiquei que algumas dessas janelas tinham sido entaipadas, o que dava a desagradável impressão de um rosto cego. No meio daquela escuridão pareciam ainda mais negros os sítios onde a argamassa caíra.
Empurramos o portão e seguimos pelo passeio repleto de ervas e de plantas secas. Espiamos um quarto, que tinha também janela para o outro lado, através da qual o luar punha faixas brancas no chão lajeado, sujo de papéis e de feixes de palha. O fogão sobressaía à claridade, vendo-se montes de cinzas, restos de jornais queimados e uma boneca sem cabeça, em grande parte reduzida a carvão. A um canto via-se um boné de peles, que devia ter pertencido a um guarda de caça. Lastimei que o luar
devassasse o aposento: só a escuridão seria digna de reinar ali. Como tudo isso me entristeceu! - o fogão, as rosinhas no papel da parede...
Levado pelo seu instinto de lavrador, George foi visitar as dependências. O pátio surpreendeu-me, tão coberto estava de urtigas, altas como eu nunca vira, e o ar que se respirava denunciava-as imediatamente. Segui o meu amigo pelo estreito passeio de tijolos, e continuei a sentir arrepios. Dentro, porém, as construções apareceram-nos razoáveis em matéria de conservação: é que haviam sido restauradas várias vezes. Tinham bons vigamentos, eram confortáveis e apresentavam-se mais ou menos limpas. Aqui e ali encontramos penas de galinha e restos de um esqueleto de gato, conforme examinamos à luz de um fósforo. Ao entrarmos no estábulo, ouvimos ruído e logo avançaram, ameaçadoras, três enormes ratazanas. Recuei, tremendo, e tropecei num balde esburacado e enferrujado, de onde espreitavam ervas.
Depois houve um silêncio horrível, quebrado apenas pelo rumor que faziam os ratos e alguns morcegos a voar. Não dei com vestígios de cereais, palha ou feno: só ervas em pleno desenvolvimento... Depois de me encontrar em liberdade, no pomar, o meu tremor ainda continuava. Entre nós e o céu não se interpunham frutos: os pássaros os derrubaram e os coelhos os devoraram. Ou alguém procedera a uma colheita deles, por sua conta e risco.
- Nisto, murmurou George, com amargura, nisto é que o moinho há de se transformar.
- Depois da tua morte, retifiquei.
- Nunca chegarei a dirigir a fazenda. E meu pai pouco agüentará nela, com estes coelhos todos e outras complicações. O que fazemos não chega
a ser lavoura, dependente de tantas coisas atualmente, somos um misto de agricultores, de leiteiros, de hortelões, de transportadores. Tristes ocupações...
- Precisa viver, retorqui.
- De acordo, mas é estúpido. E o pai não se mexe, não transforma os seus métodos!
- E você?
- Eu? Para que hei de mudar? Estou bem em casa e, quanto ao futuro, deixo-o entregue a si mesmo enquanto ninguém precisar de mim.
- Laissez faire... rematei, sorrindo.
- Não é laissez faire, replicou ele, olhando em volta, é puxar o leite das tetas e deixá-lo correr. Repara!
Através do véu diáfano do luar que deslizava sobre a encosta podia-se ver vários exércitos de coelhos, ora avançando ora parando para comer desaforadamente.
Demos uns passos em direção à colina e eles espalharam-se logo. Aproximamo-nos da valeta que limita os campos do moinho. Então George soltou um grito e correu. Segui-o, e nessa altura descobri o vulto escuro de um homem que se levantava da sebe. Era o guarda. Fingia estar examinando a espingarda e, na ocasião em que chegamos junto dele, saudou-nos com voz calma: "Boa noite!"
George pôs-se a investigar a abertura existente na sebe, e disse:
- Está preocupado com aquele buraco...
- Sim, gostaria de saber o que pretendem, volveu o homem, que era corpulento e mal-encarado.
- Pode ver com os seus olhos... Tire a armadilha... e o coelho, respondeu George, de mau humor.
- Coelho? repetiu o guarda, voltando-se para mim com ar trocista.
- Sabe muito bem... Pode tirar... e então...
- Então o quê? Olhe que não me assusta!
George deu um passo em frente e cresceu para o homem, já fora de si.
- Cuidado! continuou o outro, medindo o meu amigo de alto a baixo. É melhor retirar-se... retiraram-se ambos. Não consinto que toquem na armadilha nem no coelho.
George fez um movimento súbito para agarrar o homem pelo casaco. Mas caiu logo de costas, derrubado com uma pancada forte junto da orelha esquerda.
- Grande besta! exclamei, quebrando o punho no queixo do agressor.
Quando dei por mim estava também por terra, e, com a vista ofuscada, ainda vi os calções de veludinho do guarda girando-me em torno da cabeça.
O homem desaparecera. Levantei-me, e levei a mão ao peito, ao lugar onde me doía. George ficara estirado junto da sebe. Dirigi-me a ele e esfreguei-lhe as fontes com ervas molhadas. O meu amigo abriu os olhos, fitando-me com ar esgazeado; depois, respirando com dificuldade, passou a mão pela testa.
- Aturdiu-me, não há dúvida!
- Inferno! bradei.
- Não esperava isto... Ele é que me atirou ao chão?
- E a mim também.
Por algum tempo, George conservou-se silencioso. Em seguida, tateando a cabeça, murmurou: - Ainda me dói. Tentou pôr-se de pé, sem o conseguir. - Meu Deus, ser reduzido a este estado por um reles guarda!
- Vamos retorqui. Experimentemos voltar para casa. O meu amigo acudiu logo:
- Convém que não saibam nada do que se passou.
Por meu lado, pensava na dor que sentia no peito e procurava recordar-me do murro que atirara ao queixo do vigia. - Se quebrei os dedos, disse com os meus botões, não dou por mal empregado o gesto. Levantei-me e ajudei George. A princípio, ele pendeu sobre mim. Depois já foi capaz de andar, mas com passos desencontrados.
- Estou enlameado? perguntou-me.
- Não muito, respondi, impressionado com o tom de pudor ofendido com que ele me falava.
- Limpe-me as costas.
Fiz o melhor que pude. Durante algum tempo seguimos através dos campos, tristes e calados.
- Mais tarde, já à beira da lagoa, fomos sobressaltados por umas enormes sombras sibilantes que passavam por cima da nossa cabeça. Eram os cisnes que procuravam abrigo, pois o vento frio começara a agitar Nethermore. Por cima das águas abaixavam-se e subiam continuamente, despedaçando o luar, e o ar repercutia o som daquelas asas que haviam desfeito o silêncio da noite. Ao entrarem na sombra, os cisnes ficavam tenebrosos como espectros.
O vento punha-nos arrepios em todo o corpo.
- Não dizes nada do que se passou?
- Não.
- A ninguém?
- A ninguém.
- Boa-noite.

Pelos fins de Setembro a nossa região foi alarmada: cães, vindos não se sabe de onde, começaram a devastar os rebanhos!
Certa manhã, um proprietário local, ao dar uma volta pelas suas terras, encontrou, cheio de horror, duas das suas ovelhas mortas, com o corpo dilacerado, junto de uma sebe. Os restantes animais haviam-se agrupado num canto, transidos de medo. Alguns tinham manchas de sangue na lã. Durante dias o proprietário andou amargurado com o desgosto que isso lhe causara.
Houve quem dissesse ter visto dois cães escuros, de aspecto feroz. O guarda do Doutor Collins ouvira uivos por volta da alvorada. Quando o pastor foi ver o rebanho encontrou três ovelhas banhadas em sangue.
Os lavradores deram então rebate. O dono da granja de White House tinha resolvido guardar o gado no redil, com os cães à porta. Mas, como era sábado, os pastores foram ver o teatro ambulante que fizera paragem em Westwold. Enquanto eles assistiam, boquiabertos, ao espetáculo, vendo as personagens morrer com muitas convulsões, a quererem falar sem conseguir articular palavra - seis das ovelhas daquela propriedade eram chacinadas no campo.
Indagou-se por toda a parte se havia ficado algum cão fora nessa noite. Ninguém respondeu afirmativamente.
Saxton possuía trinta ovelhas no terreno baldio, e George pensou que o mais simples e fácil seria dormir lá. Para esse fim construímos, ele e eu, um abrigo de canas entrelaçadas de ramos de silva, que durante a tarde, enchemos de braçados de grama. George dormiu ali naquela semana, com grande aflição da mãe - que ia esperá-lo de madrugada, no frio, com o avental cobrindo a cabeça. Não podia admitir a idéia de que o filho passasse a noite naquele lugar.
Por isso, no sábado, trouxe ele os cobertores para casa e levou Gyp para a cabana, a fim de o substituir na vigia. Acompanhei-o nessa ocasião e estivemos uns momentos a admirar as estrelas, que cintilavam sobre a escuridão da colina. De vez em quando uma ovelha balia, ou era um coelho que passava entre o matagal - e Gyp logo dava alarma.
O novoeiro arrastava-se pelas urzes e pelas sarças, onde as teias de aranha pareciam de prata. George, sentado fora do abrigo, disse-me então:
- Vi passar hoje dois tipos, com sacos e cordas.
- Deviam ser caçadores furtivos, disse. Falou com eles?
- Não. Não me viram. Eu estava dormindo quando um coelho entrou pelo cobertor, fugindo a um cão que o perseguia e a quem dei uma pancada que o fez ganir. O coelho ficou muito tempo junto comigo e depois fugiu.
- Que parece isto tudo?
- Não sei nem me importa.
Papai poderá arranjar-se sem mim e mamãe tem os outros filhos. O meu desejo é emigrar.
- Por que não foi?
- Ora, há tantas coisas que nos retêm em casa! Além disso, na pátria, sempre se é alguém, ao passo que no estrangeiro...
- No entanto, quer partir.
- Como é possível ficar? O vale está tornando-se bravio. Não produz nada. Por outro lado, não pode se dizer o que quer, e tudo continua sempre na mesma. É impossível fazer qualquer mudança: para qualquer parte onde se olhe, perde-se a vontade de pensar em coisas novas. Que há aí que mereça a pena?
De que vale a minha vida?
- O aconchego do lar não é nada que se despreze. George não respondeu.
- Que o leva a abandonar o ninho?
- Ao certo, não sei. Desde aquela questão com o guarda que não me sinto como era. Até Lettie me disse: Aqui não pode viver à sua vontade. É como um dos mosaicos de mármore do vestíbulo, tem que jogar certo com os outros. O pior é que você não deseja ser nenhum mosaico; pelo contrário, quer imiscuir-se na vida, fundir-se nela... Acredite sua irmã falava muito sério.
- O que ela diz não se escreve. Quando é que a encontrou?
- Veio na quarta-feira, de manhã, quando eu estava apanhando maçãs. Subiu comigo na árvore. Como soprava muito vento - e por isso é que resolvi apanhar os frutos - os ramos balançavam muito. Eu subi ao mais alto e Lettie ficou um pouco abaixo, segurando o cabaz. Como lhe perguntasse qual achava ser a melhor espécie de liberdade, é que ela me deu aquela resposta.
- Devia tê-la contrariado.
- Achei que era verdade.
- Que diabo! Parece-me esquisito.
- Não, sua irmã viu bem. Considera-me, ao que parece, uma espécie de pastelão...
- Mostrou-lhe que não era assim.
- Para quê? Sou isso mesmo.
- Dá a impressão de que está apaixonado. George riu-se, e declarou:
- Não, isso não. Mas é uma tristeza verificar que não tenho nada de que me orgulhe.
- Não conheço essa linguagem.
Arrancando punhados de ervas, com ar meditativo, o meu amigo respondeu assim à pergunta que fiz em seguida, quanto à época da sua partida:
- Ainda não sei. Por enquanto não disse nada à mamãe. Nunca será antes da primavera.
- Acontecerá qualquer coisa antes...
- O quê?
- Qualquer coisa decisiva.
- Não adivinho o que possa acontecer, exceto um despejo por parte do senhorio.
- Está na sua mão provocar os acontecimentos.
- Não brinque comigo, Cyril.
Gyp deu um pulo nesse momento, puxando a corrente com força para ver se conseguia acompanhar-nos. No mato, as ovelhas conservavam-se em repouso e eram manchas brancas no escuro da colina. Junto do chão arrastava-se a névoa fria.
- Apesar disso, Cyril, ter uma mulher que nos sorria à mesa; ouvi-la cantar enquanto arruma a casa, e à noite, antes de nos lavarmos... quando o
fogão está quente e nós estamos cansados ... Vê-la assim de perto, no aconchego do lar, falando com doçura...
- Castelos, George.
Sem fazer caso do meu comentário, ele tornou a rir-se e acrescentou:
- Sabe? Quando eu estava colocando os feixes e abraçando os maços, tive a impressão de que abraçava uma mulher. Foi uma sensação inesperada.
- Cuidado não vá se perder na rede dos sonhos. Sempre risonho, sem ligar as respostas, George continuou:
- Sonhando, o tempo voa. As manhãs passam num abrir e fechar de olhos.
- Meu Deus! Por que não esquece tudo isso em vez de insistir em tantas fantasias?
- Se o sonho é belo, por que não o havemos de prolongar? Com isso, terminou suas confissões. E eu voltei para casa. Fiquei na janela, a olhar para a paisagem procurando tirar o caso a limpo. O nevoeiro pousava nas águas de Nethermere; dir-se-ia uma dança de fantasmas sobre a lagoa. Antevi o tempo que meu amigo não estaria mais seguindo a grade da lavoura
ao longo do vale, e que a porta do quarto de Lettie estaria fechada para esconder a tristeza da sua desolação, e senti calafrios ao pensar nesse vácuo ameaçador que pesava sobre nós. Como poderia eu suportar tamanho isolamento? Que faria minha irmã?
Levantei-me cedo no dia seguinte, quando a claridade penetrava trêmulamente na floresta. A lua ainda era visível nas bandas de oeste. Saí. Morriam os últimos restos do verão e o mundo parecia diminuído desde aquela manhã. Já o cheiro do outono caía pesado e úmido das árvores. As folhas secas obstruíam os passeios.
Ao aproximar-me da herdade ouvi latidos; e, correndo, alcancei o baldio, onde encontrei o rebanho dividido em grupos e qualquer coisa que saltava pelo meio deles.
George apareceu também correndo. Repercutiu o tiro de uma espingarda. Peguei uma pedra e continuei correndo. À minha frente fugiam três ovelhas espavoridas: à luz indecisa do alvorecer, ainda vi as suas sombras alvacentas perderem-se no meio das urzes. Pulou um cão nesse momento e eu atirei-lhe a pedra com quanta força tinha. Atingi-o, porque o animal soltou um ganido lancinante; como ele escapava, fui no seu encalço, esquivando-me das sarças e saltando por cima das plantas rasteiras.
Os tiros continuavam; ouviam-se também gritos de homens excitados. O cão perdera-se de vista, mas eu segui sempre, descendo a colina. Num campo adiante notei alguém correndo. Galguei a sebe, que era baixa, e reconheci o vulto de Emily que dava largas passadas sobre a erva úmida. Mais tiros e mais gritos. Emily olhou em volta, deu comigo e disse, arquejante:
- É na pedreira.
Caminhamos para lá, sem dizer uma palavra. Ladeamos o bosque, acompanhamos o curso do rio e chegamos por fim ao local.
Havia agora árvore no lugar das antigas escavações; e as paredes escarpadas, de grande profundidade em alguns pontos, tinham desmoronado, sendo muitas das pedras arrastadas. Descemos a margem e entramos na pedreira pelo leito do rio. Junto aos troncos dos freixos e dos carvalhos brilhavam primaveras pálidas, pendendo frouxas
para as águas que corriam ocultas. Emily encontrou vestígios de sangue num belo renque de bons dias amarelos. Seguimos esses traços até onde o ribeiro deságua em fundo áspero e rochoso e o chão da pedreira não é mais do que um emaranhado de sarças e madressilvas.
- Arranje uma pedra, aconselhei, enquanto nos comprimíamos na passagem estreita e a água deslizava silenciosa debaixo dos ramos dos arbustos e dos cabelos desgrenhados das ervas. Pesquisamos todo aquele abrigo, quase até a estrada. Palpitava-me que o cão estivesse ali: ouvi como que um rosnar, seguido de gemidos. Quebrei uni galho de sorveira e, avançando sempre, fomos ter no lugar dos velhos fornos de cal.
Na boca de um desses fornos, Emily caiu, ficando ajoelhada junto de um cão. Os movimentos que o animal fazia eram os espasmos da morte; revirava os olhos e mostrava os dentes, nas vascas dá agonia. Emily, segurando-o pela garganta, puxou-lhe â cabeça para trás.
- Morreu! exclamei. Chegou a feri-la? Empurrei-a para um lado e ela estremeceu, como se tivesse horror de si mesma.
- Não, não, respondeu, olhando para os braços e para a saia, onde havia marcas de sangue.
A minha pedrada atingira o cão, e Emily, ajoelhando, sujara-se na ferida.
- Mordeu-a? insisti, ansioso.
- Não. Limitei-me a observá-lo e ele ainda se levantou. Bati-lhe então com a pedra, mas perdi o equilíbrio e caí.
- Deixe-me lavar-lhe o braço.
- E horrível, não acha?
- O quê? perguntei, ocupado já a procurar-lhe água no ribeiro.
- Toda esta história...
- Devia-se queimar isto, sugeri, olhando para o ferimento que lhe encontrei no braço.
- Este arranhão? Não é nada! Veja agora se consegue limpar-me a saia. Sinto-me repugnada.
Com o lenço molhado lavei-lhe o melhor que pude, insistindo:
- Deixe-me queimar-lhe essa ferida. Podemos ir às valas. Consinta nisso... é o seu dever... Doutra maneira não fico descansado.
- Acha que sim? retorquiu ela erguendo a vista para mim com um sorriso a esboçar-se nos belos olhos negros.
- Sim... vamos lá.
- Ah! Ah! riu ela. Que ar tão grave!
Toquei-lhe no ombro e impeli-a para diante. Emily enfiou o braço no meu e inclinou-se para mim.
- Tal qual Lorna Doone, disse ela com expressão divertida.
- Sim, mas deixe-me fazer-lhe o que pedi, repliquei eu, referindo-me à cauterização.
- Está bem; mas vai-me doer... Ui! Nem quero pensar nisso. Dê-me algumas dessas flores.
Apanhei um cacho de flores de viburno, com bagas rubras e translúcidas. Emily chegou-as às faces e aos lábios, acariciando-as. E murmurou:
- Sempre desejei pôr flores vermelhas no cabelo.
Tinha o xale sobre os ombros e a cabeça descoberta. Os cabelos, pretos, macios, curtos, envolviam-na caprichosamente. Não seria fácil segurar aí, durante muito tempo, os frutos carnudos do viburno, embora ela enfiasse os pezinhos deles nos dentes das travessas.
Já com os cachos a cintilarem-lhe entre os caracóis, ela fitou-me, de olhos muito abertos. Correspondi ao seu olhar, è vi que ela esboçava um sorriso triunfante. Então, puxando da sebe um galho de bons-dias, arranquei-o e torci-o em forma de grinalda.
- Vou coroá-la, disse eu. Ela, rindo, desviou a cabeça.
- O quê! retorquiu, pondo na exclamação toda a temeridade da sua alma ansiosa.
- Não será Cloé nem Bacante. A sua alma reflete-se nos olhos, ardente e perturbada.
O riso esmoreceu de súbito e ela mirou-me outra vez séria e suplicante.
- É antes como uma donzela de Burne-Jones. Nos seus olhos acumulam-se sombras e você não as expulsa. Você pensa que a polpa da maçã não é nada e só se preocupa com as sementes. Por que não a morde e a come, deitando-as fora?
Emily observou-me com ar triste, sem compreender, mas crendo que eu, na minha sabedoria, falava verdade, como achava sempre que se transviava no labirinto das minhas palavras. Inclinou a cabeça, caiu-lhe a grinalda e só ficou um cacho de bagas. Em redor de nós, no chão, espalhavam-se castanhas de faia, de envolta com folhas secas de tons de ouro. Emily apanhou alguns desses frutos.
- Gosto disto, declarou ela, mas faz-me lembrar tanto a infância que sinto vontade de chorar. Ir buscar castanhas antes do almoço, enfiá-las num colar... fazer inveja às outras pequenas, na escola! Sentia tanto gosto em possuir um colar desses como hoje sinto prazer com o Outono - com a diferença de não haver tristezas à mistura. Depois de se crescer já não se experimentam alegrias puras.
Enquanto falava, Emily ia apanhando mais frutos, curvada para o chão.
- São apenas ouriços ou têm dentro alguma coisa? perguntei.
- Duas ou três completas. Tome-as. Não quero para mim.
Despi o invólucro espinhoso de uma delas e devolvi-a. Emily abriu a boca para comer, sem deixar de me olhar. Há pessoas que, em vez de se acompanharem de esplendores, arrastam consigo nuvens de tristeza. Possuem o condão de ver tudo negro, e proclamam que só o pesar é que é real. Anjos sombrios para quem a dor é bela e constitui a suprema felicidade. Isso mesmo se lê nos seus olhos,
se depreende das suas vozes. Emily era assim. Fascinava-me e ao mesmo tempo fazia-me sentir revoltado.
Seguimos o caminho sombreado de faias antigas. Adiante descia a encosta coberta de cardos e de ervas ásperas. Depressa tivemos vista do lugar das valas, que foi teatro de tanta animação no tempo de Lord Byron e agora estava deserto, rodeado de espesso matagal. As vidraças da casa desapareciam sob o pó acumulado: já não havia necessidade de protegê-las contra o gado, os cães ou os homens. Uma das três casas era habitada. Fora, junto da porta, caía água límpida sobre uma pedra enorme, gotejando de uma bica.
- Espere, disse eu a Emily, deixe-me abotoar-lhe as costas do vestido.
- Abriu? disse ela rapidamente, olhando por cima do ombro e corando.
Enquanto eu desempenhava esse trabalho, saiu do prédio uma moça que trazia nas mãos uma chaleira e uma xícara. Ficou tão admirada de me ver naquela ocupação que se esqueceu do que ia fazer e parou boquiaberta.
- Sara Ann! gritou uma voz, do interior da casa. Vem fechar a porta.
A moça, com a xícara, encheu a chaleira. Em seguida pousou tanto uma coisa como outra e cruzou os braços para aquecê-los. A sua roupa consistia num corpete cinzento e saia vermelha de flanela, tudo muito rasgado. Os cabelos pendiam despenteados pelos ombros abaixo.
- Precisamos entrar, disse eu, aproximando-me dela, que, assustada, lançou mão da xícara e correu para dentro, chamando:
- Mãe!
Do interior da residência saiu uma mulher. Trazia um seio de fora, o que tombava sobre a blusa - como esta cala solta por cima da saia. O cabelo, de um tom ruivo desvanecido, estava em desordem, denotando que ela se levantara nesse momento da cama. Às pregas da saia agarrava-se um garoto magro, de camisa escandalosamente curta: tinha olhos muito grandes, com que nos olhava cheio de espanto, e a cara quase toda suja de gema de ovo. A mulher fitou-nos com ar lânguido e inquiridor.
Disse-lhe o que queríamos,
- Entrem, entrem, convidou ela. Mas não reparem na casa. Os meninos ainda não levantaram. Vem aqui Billy.
Entramos, e eu levei comigo a chaleira que a jovem esquecera junto da bica. A cozinha, espaçosa, era escassamente mobilada: as crianças, porém, bastavam a enchê-la. A mais velha, com seus treze anos, assava um pedaço de toucinho com uma das mãos, e na outra segurava a camisola. Como a queimasse o calor da chama, passou o toucinho para a outra mão e lambeu os dedos a fim de atenuar o ardor. Feito isto, voltou à posição primitiva. O cabelo castanho claro pendia-lhe em pesadas melenas pelas costas abaixo. Sentando no guarda-fogo de aço estava um rapazinho a molhar um pedaço de pão na gordura que ia escorrendo do toucinho. "Um dois, três, quatro, cinco, seis pingos." E, depressa, o pequeno deu uma dentada no pedaço engordurado e continuou a sua tarefa com a outra mão. Quando nós entramos, o garoto tentou puxar a camisa até os joelhos, gesto que desperdiçou alguns pingos do toucinho. Sobre uma almofada via-se um nenê corado e gorducho - que, evidentemente, acabara de mamar; agora esperneava enquanto outro rapaz dava-lhe pão com manteiga pela boca dentro. A mãe correu para o diva, tirou o pão da boca da criança, introduziu-lhe o dedo na garganta, levantou-a, bateu-lhe nas costas, e ficou muito aliviada quando o filho começou a chorar. Depois administrou palmadas sonoras nas nádegas despidas do autor da proeza. Este começou a gritar, mas calou-se de súbito quando nos viu rir. No pano, que serviu de tapete junto da lareira, estava uma linda criança entretida lavando com chá a cara de uma boneca de pau e enxugando-a na camisola. À mesa, numa cadeira alta, outro menino sugava um pedaço de toucinho, cuja gordura escorria, através dos dedos, pelos braços escuros. Instalado numa poltrona ampla, um rapaz maior ocupava-se em despejar numa vasilha de leite os resíduos de chá que estavam nas chávenas. A mãe, ainda com o bebê ao colo, afastou a vasilha e precipitou-se para o garoto.
- A minha vontade era dar cabo de você! disse ela. Mas ele escapuliu para baixo da mesa e ali ficou sereno e indiferente.
- Poderia emprestar-me uma agulha de malha? perguntei eu à mulher, depois de esta recomeçar a amamentar a criança.
- Sara Ann! Onde estão tuas agulhas? indagou ela, encolhendo-se ao mesmo tempo e pondo a mão na boca do nenê que chupava o peito. Vendo que eu a fitava, explicou então:
- Não calcula como ele morde. Só tem dois dentes, mas parecem seis lancetas. Carregou o sobrolho e apertou os lábios, enquanto falava à criança: - Feio menino! Não tem vergonha de morder assim sua mãe?
A atenção da criançada estava agora dividida entre seus interesses particulares e a nossa presença - com exceção do garoto que sugava o toucinho com o mesmo afinco e imobilidade de sempre.
- Onde está o meu trabalho de malha, Sam?
Pegou-o? inquiriu Sara Ann, depois de uma busca breve.
- Não peguei, respondeu Sam do seu esconderijo.
- Pegou, sim, interveio a mãe, dando um pontapé ao acaso, por baixo da mesa.
- Não peguei, não, senhora, insistiu o moleque.
A mulher sugeriu diversos lugares onde poderiam encontrar o que procuravam, e, por fim, o objeto das pesquisas foi achado na gaveta da mesa, entre garfos e velhos espetos de pau. A mãe dirigiu então algumas censuras à filha, em tom amigável, mas Sara Ann não deu atenção; estava preocupada com o seu trabalho de malha, - um regalo de lã encarnada, que serviria para o próximo Inverno. Na parte já feita haviam-lhe espetado um sacarrolhas, e o novelo tinha espetos de pau atravessados.
- Foi você, Sam, queixou-se a pequena. Não há dúvida de que foi você.
O acusado replicou de baixo da mesa com uns versos chocarreiros, e a mãe estremeceu toda com a gargalhada que soltou.
- Foi o pai que lhe ensinou aquilo, explicou-lhe, ela, envaidecida.
Depois de mais uma troca de palavras, levaram a agulha ao fogo. As crianças observavam muito interessada.
- Quer você mesmo fazê-lo? perguntei a Emily.
- Eu? exclamou ela, arregalando os olhos e abanando a cabeça.
- Então serei eu.
Peguei na agulha, segurando-a com o lenço. Depois segurei sua mão e examinei a ferida. Emily, porém, quando viu o clarão do metal quente, puxou o braço, olhando sempre e rindo histericamente, cheia de medo e da vergonha de ter medo. Conservei-me sério, sem ceder, e ela acabou por estender outra vez a mão, enquanto mordia os lábios imaginando a dor que iria suportar.
O meu olhar infundiu-lhe, no entanto, coragem; mas, quando desviei a vista para a operação, Emily soltou um grito que terminou em risada, levou as mãos atrás das costas e fitou-me de novo, trêmula, apreensiva, envergonhada, sempre sufocada por um riso que era já suplicante.
Uma das crianças começou a chorar.
- Para que serve isso? disse-lhe eu, atirando para a lareira a agulha já fria.
Dei às mulheres todo o dinheiro em cobre que levava. A Sam, que permanecia debaixo da mesa, ofereci uma moeda de prata e ao outro pequeno um canivete que encontrei no bolso. Por causa de uma diabrura daquele, ficaram todos em desordem, e nós saímos no meio da grande confusão. Emily, contudo, mal reparava no que se passava: os seus pensamentos giravam em volta de si mesma - e em torno de mim.
- Sou tão covarde! murmurou ela, com ar humilde. Mas isto é mais forte do que eu... acrescentou, quase num rogo,
- Não se importe, repliquei. -' É impossível evitar, insistiu.
- O que tem graça é que, nada conseguiu distrair a atenção do menor.
- É verdade, assentiu ela, mordendo a ponta do dedo, pensativa.
Nossa conversa foi interrompida pela algazarra que vinha da casa. Sam corria agora atrás de nós, brincando. As perninhas tremiam-lhe, a camisa flutuava-lhe à brisa da manhã. Por fim pisou um cardo ou outra coisa espinhosa, porque o vimos parado e silencioso, com uma perna no ar e segurando o pé com ambas as mãos.

CONTINUA

Depois de Mulheres Apaixonadas, Canguru, História de uma Jovem, Serpente Emplumada e Filhos e Amantes, de D.H Lawrence, todos publicados no Brasil por cessão dos direitos autorais da Portugália de Lisboa, surge agora um dos maiores best-sellers do grande escritor inglês - Decadência pelo Amor. Nesse romance, como em todos os de Lawrence, um dos principais interesses reside na beleza do estilo. Muitas das suas páginas constituem verdadeiro poema pastoril. O vale de Nethermere é uma região paradisíaca onde o moço George Saxton, lavrador e filho de lavradores, vive a sua adolescência. Solicitado pelo amor de uma mulher de classe superior, sensível e educada, ele não tem coragem de se lhe declarar abertamente, colhido pela indecisão constante que o caracteriza. Ela se casa com um industrial mas não alcança a felicidade e ele, como desforra, faz o mesmo com a parenta, proprietária de um armazém. Privado do sonho que acalentara, aos poucos vai se degradando fisica e moralmente, até se tornar um ser apático, dominado pelo álcool. No entanto, não consegue libertar-se dos laços que o prendem à terra natal e as mesmas florestas, o mesmo céu, as mesmas águas que o viram assistem, desolados, à sua decadência irremediável. Decadência pelo Amor é, portanto, um livro que ser lido o quanto antes, pois prende a atenção do leitor irresistivelmente.


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Tudo ali parecia ter ficado na contemplação do passado: as árvores antigas, indiferentes à carícia do sol; as ervas que se mantinham espessas e imóveis; a aragem que nem sequer fazia mexer os ramos dos salgueiros; e a água da lagoa sempre plácida e silenciosa. Mas a corrente do moinho denunciava ainda o tumulto de vida que outrora agitara aquele vale, e os peixes alvos, na obscuridade da represa, continuavam a precipitar-se com movimentos rápidos.
Estava observando-os quando uma voz inesperada me sobressaltou e quase me fez cair, do tronco de álamo onde havia me empoleirado.
- Que está vendo aí? perguntou o meu companheiro, rapaz de olhos castanhos, de pele queimada pelo sol e coberta de sarda, um belo tipo de lavrador, solidamente construído. Ao notar o meu susto, riu e olhou para mim, cheio de curiosidade.
- Nada... Penso em como tudo isto é velho e como obriga à meditação.
Recostando-se na margem, ele esboçou um sorriso indulgente e retorquiu:
- Belo lugar para dormir.
- Sua vida é um sono contínuo, respondi. Será uma piada quando alguém o acordar.
George sorriu de novo, passou as mãos pelos olhos para atenuar o brilho da luz, e replicou em voz pausada:
- Por que motivo será assim tão divertido?
- Ora... Você mesmo achará muita graça.
Ficamos calados algum tempo, até que ele, tateando ao acaso a terra, observou com os seus modos indolentes:
- Parece que adivinhei a razão deste zumbido.
Examinou o local e viu que tinha batido com os dedos em um ninho desses lindos insetos que se diria terem mergulhado o corpo em reluzente poeira de âmbar. Excitados, puseram-se a correr em torno dos ovos vazios; alguns provaram as asas num vôo incerto antes de se lançarem abertamente no espaço, George
espiou os que se meteram entre a relva e que andavam para cá e para lá, dominados pela aflição.
- Por aqui, disse ele, aprisionando um entre caules de erva e tentando desprender, com outra haste, as asas unidas onde havia reflexos de anil.
- Não faça maldades, recomendei.
- Isto não o magoa. Quero ver apenas se é por não poder abrir as asas que ele não consegue voar. Olha, lá vai. Não, não é ainda. Vou experimentar noutro.
- Deixe-os em paz, repliquei. Deixe-os gozar o sol. Acabam de vir ao mundo, não os obrigue a cansaços.
George insistiu, apesar de tudo, e quebrou a asa da sua vítima.
- Coitado! exclamou, esmagando o bicho entre os dedos. Em seguida pôs-se a examinar as larvas e os ovos, sem qualquer método científico, perguntando-se
se eu conhecia alguma coisa de insetos. Depois de ter acabado suas observações, lançou tudo aquilo à água, levantou-se e exibiu o relógio, extraindo-o
das profundezas do bolso.
- Bem que eu achava que eram horas de comer, declarou ele, sorrindo para mim. Adivinho sempre a aproximação do meio-dia. Vamos para casa?
- Com todo o gosto, retruquei. Seguimos ao longo da margem e atravessamos a ponte de madeira sobre a comporta. Em frente, o pomar de árvores contorcidas, descia em áspero declive. Em seguida vinha o jardim.
As pedras da casa quase desapareciam debaixo dos ramos de hera e madressilva, e os lilases atravancavam o portão. Passamos sempre, contornando a casa, e fomos, pelo passeio de tijolos, dar à porta dos fundos.
- Feche-a, sim? pediu-me ele, que entrara em primeiro lugar.
Através da copa, um lugar espaçoso, alcançamos a cozinha. Nesse momento a criada tirava a toalha, de dentro de uma gaveta, e a mãe do meu amigo, figurinha delicada, de olhos grandes e castanhos, andava em volta da lareira com um garfo na mão.
- O almoço não está pronto? perguntou George, num tom já ressentido.
- Não, filho, a lenha não queima, replicou ela, desculpando-se. Mas espero terminá-lo em pouco tempo.
George deixou-se cair num sofá e começou a ler um romance. Eu fiquei com vontade de ir embora. Mas a dona da casa insistiu para que eu ficasse.
- Não vá, pediu ela. Emily há de gostar tanto de vê-lo! E o meu marido também. Sente-se, faça favor.
Sentei-me numa cadeira de junco, perto da janela que dava para o pátio. Já que George estava entretido na leitura e a mãe ocupada em diligenciar que a carne e as batatas cozinhassem depressa, era natural que eu me entregasse aos meus próprios pensamentos. Assim foi. O rapaz, esquecido agora das suas reclamações, continuava embebido no romance: de vez em quando puxava o bigodinho, com indolência, sem se
importar que o cão se esfregasse de encontro às polainas e às joelheiras dos calções de montar. Divertido com o bigode e com o livro, nem sequer se lembrava de brincar com as orelhas de Trip; enquanto torcia e retorcia entre os dedos os fios castanhos daquele adorno viam-se se mover levemente, sob a pele clara os músculos do braço nu. Por cima dele, a janelinha quadrada filtrava uma claridade verde, vinda até ali por entre as folhas do castanheiro enorme do pátio: a luz incidia-lhe no cabelo
escuro e espalhava-se no quarto, refletindo-se na louça que Annie tirava da prateleira e no mostrador do relógio de caixa.
Aquela cozinha era bastante ampla, de tal modo que a mesa parecia perdida no meio dela e as cadeiras como que saudosas da vizinhança do sofá. Ao fundo, o buraco da chaminé assemelhava-se a uma caverna negra e os bancos da lareira pareciam formar outro compartimento avermelhado pelo clarão das chamas, onde a mãe de George rondava. Assim a grande cozinha mostrava-se um pouco árida, com as lajes cinzentas à mostra, todas desiguais, a sua escassa mobília, e os recantos excessivamente sombrios. As únicas coisas alegres que se viam ali eram a chita do canapé e as almofadas da poltrona, que davam tons escarlates ao ambiente melancólico. Também o
relógio se destacava pelas cores vivas com que tinham pintado as aves que o adornavam, e isso bastaria para provocar o sorriso de alguém menos contemplativo do que eu: para mim, aquilo só causava admiração.
Daí a pouco ouvimos o pisar de botas pesadas, e o dono da casa entrou. Era homem corpulento, meio calvo, com alguns fios de cabelo encaracolados em volta da cabeça.
Vendo-me, soltou uma exclamação jovial:
- Ora viva, Cyril! Ainda bem que não nos esqueceu. Depois, voltando-se para o filho, acrescentou: E lá na mata, continuam os problemas?
- Acabaram-se, respondeu George, sem desviar os olhos do livro.
- Fico contente em saber. Os coelhos roeram os nabos, explicou o recém-vindo, dirigindo-se à mulher.
- Já contava com isso, observou ela, entretida com as suas caçarolas. As batatas haviam acabado de cozinhar, e ela afastou-se do lume, com a panela fumegante nas mãos.
O jantar foi posto na mesa. O pai começou a trinchar, e o filho, que levantara a vista de cima do livro para verificar a comida, continuou a ler até que lhe enchessem o prato. A criada tinha-se sentado já na sua mesinha, próximo da janela, e começara a comer. Nessa altura sentiram-se no corredor de tijolos os passos de duas pessoas,
e logo a seguir apareceu uma criança seguida da irmã mais velha. A primeira vinha com um chapéu de marinheiro, debaixo do qual surgiam, ariscos, os cabelos compridos e escuros; mas arrancou-o logo e atirou-o para longe, instalando-se à mesa e conversando sem cerimônia com a mãe. A irmã, moça dos seus vinte e um anos, sorriu para mim, lançando-me um clarão dos seus olhos castanhos, e foi lavar as mãos. Voltou depois e sentou-se, olhando com ar desconsolado a carne mal passada que tinha à sua frente.
- Detesto isto assim, declarou ela.
- Faz bem, replicou o irmão, que começara a comer com todo o vagar. Dá-lhe músculos para castigar os alunos.
Contudo, a interessada não aceitou o conselho. Afastou o prato e preferiu comer vegetais. O irmão, pelo contrário, tornou a encher o seu de carne e continuou a mastigar. Então a menina, a quem chamavam Mollie e que tinha doze anos, observou em tom pouco amigável:
- Podia ter-me passado o molho...
- Sem dúvida! E a carne também.
- Isso já não seria da sua vontade...
- Que esperta! comentou o rapaz, ainda com a boca cheia.
- Acha? interveio, irônica, a mais velha, Emily.
- Claro que sim, visto que você a fez à sua imagem e semelhança, quando ela esteve consigo na escola. Mãe, acrescentou George, se me encontrasse uma batata bem cozida...
- Quando provei achei-as boas. Veja esta, que é a mais mole. Cozinharam tanto tempo!
- Não vale a pena apresentar-lhe desculpas e explicações, opinou Emily, irritada.
Sem se dirigir a ninguém em particular, o irmão ponderou muito calmo:
- Esta manhã ela teve muitos alunos endiabrados, com certeza. ..
- E bateu num deles até lhe fazer espirrar o sangue pelo nariz, acudiu Mollie.
- Ah, também você! redarguiu Emily, engolindo com dificuldade. Pois fique sabendo que não me arrependi. São levados da... da...
- Da breca, concluiu George, ajudando-a a completar a frase.
Emily não pareceu satisfeita com o auxílio do irmão. O pai soltou uma gargalhada. E a mãe olhou aflita para a moça, que nesse momento baixou a cabeça, pondo-se a fazer desenhos na toalha, com o dedo.
- São piores do que os do ano passado? perguntou a mãe. A resposta de Emily foi curta:
- Nem por isso,
- O que não impede de lhes bater com força, atalhou George. Dê-me mais açúcar, Annie, pediu ele, olhando para o açucareiro e para o pudim.
A criada levantou-se da sua mesinha, e a mãe, por sua vez, correu aos armários. Emily, ocupada com o almoço, saiu da sua soturnidade para dizer com amargura:
- O que eu queria, George, é que você também fosse professor. Curar-se-ia das suas fanfarronadas.
- Eu? retrucou ele, desdenhoso. Seria capaz de deixar todos pondo sangue pelo nariz.
- Gostaria de ver...
Esta discussão parecia ter feito cócegas à irmã mais nova. De fato, Mollie desatou às gargalhadas, o que assustou a mãe, receosa de que a pequena sufocasse no meio da sua hilaridade.
George, ao ver as contorções de Mollie, observou-lhe:
- Está rindo muito.
Emily é que não pôde agüentar mais o diálogo. Levantou-se e abandonou a mesa. O pai e o filho, daí a pouco, foram ver a plantação de nabos, e eu acompanhei as moças que voltavam à escola.
Enquanto seguíamos pelo passeio ladrilhado, Emily declarou me cheia de convicção:
- George irrita-me com o que faz e com o que diz.
- Às vezes é egoísta, arrisquei.
- Se é! insistiu. Irrita-me deveras com os seus grandes ares de sabichão, com a sua importância... Mamãe, então, humilha-me tanto!
- Vejo que ficou furiosa...
- Furiosa! repetiu ela numa voz que vibrava de cólera e nervosismo. Demos uns passos em silêncio e Emily perguntou-me: Trouxe-me os versos?
- Não... Desculpe... Esqueci-me deles outra vez. Para falar franco: destruí-os.
- Mas tinha prometido!
- Sabe o que são as minhas promessas. Não se pode confiar em mim.
Emily mostrou-se mais carrancuda e desanimada do que seria de esperar. Quando me despedi, numa volta do atalho, senti remorsos pelo meu procedimento. Isso acontecia sempre depois que ela ia embora.
Passei depressa através do regato que saía da lagoa. As pedras, onde eu ia pondo os pés, pareciam brancas sob a claridade do sol; a água deslizava entre elas. Quase indistintas de encontro ao azul do céu, à minha frente voavam duas borboletas, pousando de flor em flor e indicando-me o caminho. Os campos exalavam calor e eu diminui o passo a fim de enveredar pelo bosque onde os carvalhos faziam uma sombra reconfortante. Lá dentro tudo estava silencioso e fresco, e eu tive prazer em demorar
na vereda arborizada, seguindo entre plantas que pareciam estender os braços para mim. O centro da floresta irradiava suavidade; mas fui sempre andando, incitado pelo ataque de um exército de moscas degladiando em torno da minha cabeça - até que, ao chegar aos rododendros do jardim, elas me abandonaram atraídas pelo açúcar que Rebeca punha
debaixo das vasilhas com vinagre.
A casa, baixa e vermelha, com o seu telhado abatido e já sem cor, adormecera ao sol e dormia agora profundamente na sombra que lhe projetavam as árvores enormes que se julgaria terem fugido da selva.
Não encontrei ninguém na sala de jantar, mas escutei o rumor da máquina de costura, vindo do escritório, semelhante ao zumbir de um inseto descomunal, ora mais forte, ora mais atenuado, depois muito regular... Em seguida chegaram-me ao ouvido notas musicais, leves, um tanto puladas, como se uma rã andasse saltando sobre o teclado do piano da sala.
- Deve ser mamãe tirando o pó, disse com meus botões. Desabituado como estava aquele som, não admira que me sobressaltasse por momentos. Aquelas cordas, escondidas atrás da seda verde - virando uma dobra é que se via como o tempo a desbotara - tinham-se tornado, com a idade, secas e afônicas
como as de uma garganta de velha. O decorrer dos anos amarelecera as teclas do piano da minha mãe e carcomira-lhe as pernas delicadas. Pobre objeto sonoro, que mal respondia ao contato dos dedos de Lettie, se esta, por brincadeira, experimentasse
pô-lo a vibrar. Mas a verdade é que ele se conservava sempre fechado, a não ser para consentir na visita do espanador...
E agora, inesperadamente, ei-lo murmurando uma antiga melodia vitoriana. E eu logo imaginei uma figura pequenina de mulher, modesta e recatada, com belos cachos de caracóis de cada lado do rosto, sentada ali a tocar... Essa música despertava-me sensações de outrora sem que a memória, no entanto, me socorresse. Quando eu tentava, a todo o custo, recordar-me, Rebeca entrou na sala de jantar, a fim de tirar a mesa.
- Quem está tocando, Beck? perguntei.
- A sua mãe, Cyril.
- É uma coisa que ela nunca faz! Julguei que não sabia.
- Ah, respondeu Rebeca, esqueceu-se do tempo em que era pequeno, quando brincava junto das saias da sua mãe, e ela cantava para você. Não se lembra, com certeza, de vê-la de caracóis sedosos e castanhos. Sim, não se lembra de quando ela cantava e tocava, antes que Lettie viesse e que o seu pai...
Rebeca deu meia volta e saiu do quarto - e eu fui ver o que se passava na sala. Minha mãe estava sentada defronte do piano: sorria e, com os dedos roliços e pouco ágeis, feria de leve o marfim. Nesse instante Lettie passou correndo a meu lado, dirigiu-se para mamãe e, abraçando-a e beijando-a, disse:
- Meu Deus, não sabia que tocava piano!
- Nem eu, replicou a interpelada, rindo-se e fugindo ao abraço da moça. Quis ver apenas se seria capaz de martelar esta velha melodia. Aprendi-a em pequena, neste mesmo piano, que já estava desmantelado. Mas não tinha outro.
- Toque outra vez, por favor. Lembrou-me o som de cristais do lustre, roçando uns pelos outros. E a sua posição, sentada na banqueta, era tão delicada... Vá, toque mais!
- Não, retorquiu mamãe, esquivando-se à insistência de Lettie. Só mexer nas teclas basta para me tornar sentimental. E vocês não gostariam
de me ver com lágrimas nos olhos, depois de velha...
- Velha! repetiu Lettie, em tom de censura, e voltando a beijá-la. Está ainda muito nova para tocar romanças, sem parecer ridícula. Fale-nos a esse respeito.
- A respeito de quê?
- Do tempo em que tocava piano.
- Antes que os meus cinqüenta e tantos anos me tolhessem os dedos? E tu, Cyril, onde esteve, que não apareceu para o almoço?
- Estive apenas no Strelley Mill, respondi.
- Já calculava, respondeu minha mãe, falando agora com frieza.
- Por que diz que já calculava?
Lettie, nesta altura, interveio com o seguinte comentário:
- E saiu, é claro, logo que Emily voltou para a escola...
- Saí, sim.
Pareciam ambas indispostas comigo. Disfarcei o meu ressentimento e esclareci:
- Convidaram-me para almoçar.
Minha mãe não se dignou pegar a deixa. Foi Lettie quem prosseguiu no interrogatório:
- O ilustre George terá já encontrado alguma namorada?
- Não, declarei logo. Não há nenhuma bastante qualificada para ele.
Minha mãe observou por seu turno:
- Cada vez percebo menos o que é que você aprecia nessa gente.
- Não seja má, respondi um tanto formalizado. Sabe muito bem que gosto deles.
- Sei que gosta dela, atalhou minha mãe, com ar sarcástico. Quanto ao irmão, não passa de um malcriado. Nem se podia esperar outra coisa desde que sua mãe o estragou com tantos mimos. Mas, se tem empenho em corrigi-lo... Dizendo isto, franziu o nariz, desdenhosa.
- Acho-o bem interessante, observou Lettie com um sorriso. Você é que podia fazer dele um homem, disse-lhe eu, curvando-me zombeteiro.
- Não me interessa, replicou ela no mesmo tom de troça. Meneou a cabeça, e todos os cabelos finos, livres de ganchos, ficaram como uma poeira de ouro à luz do sol.
- Que vestido ponho? perguntou ela.
- Sei lá! respondeu minha mãe.
- Acho que vou vestir o verde - embora esta luz possa desbotá-lo, disse ela, pensativa. Era bastante alta e magra, de cabeia louro, com reflexos
acastanhados, lindos olhos e sobrancelhas - o nariz nada tinha de bonito; as mãos é que eram muito belas.
- Onde vai? indaguei. Lettie não me deu resposta.
- A casa do Leslie Tempest, respondi. Ela, porém, não replicou. Não percebo o interesse que você encontra nele, prossegui eu.
- O mesmo que encontro nos outros rapazes, retorquiu Lettie. Interrompeu-se e ambos começamos a rir. Não é que me preocupe com ele, continuou, ruborizada. Vou apenas jogar uma partida de tênis. Quer ir também?
- E se eu aceitasse o convite? perguntei. Lettie sacudiu a cabeça e respondeu:
- Todos nós ficaríamos satisfeitos com a sua presença. Tenho a certeza disso.
- Faço idéia! respondi com ironia.
Ela riu, muito corada, e correu pela escada acima.
Meia hora depois aparecia no escritório, para me dizer adeus - e ver se eu a achava bem. Estava tão linda, com o seu vestido de linho e chapéu florido, que não pude deixar de me sentir orgulhoso. Calculando que eu apareceria à janela, Lettie, já na altura dos rododendros enormes e cor de púrpura, olhou para trás, acenou-me com o lenço de renda e afastou-se como uma flor entre as aveleiras verdes. Encaminhou então seus passos, através da floresta, para o espaço quase despido de árvores que conduz à estrada real e que fica em direção oposta a Strelley Mill.
A estrada corre durante cerca de um quarto de milha junto à margem da nossa lagoa, Nethermere - a mais baixa das três que constituem a série. Do outro lado, numa colina distante, está Highclose, que avistamos ainda por cima das águas. Embora Lettie já estivesse muito longe, conseguia distingui-la na beira da lagoa, de sombrinha aberta, afastando-se como uma vela no horizonte. Em seguida vi-a dobrar a cancela, debaixo dos pinhais, subir a ladeira e misturar-se com a vegetação que cerca Highclose.
Leslie estava estendido numa cadeira de repouso, à sombra de uma árvore, e tinha entre os dedos um charuto aceso. Sob o calor do dia, entretinha-se observando a brasa do charuto, que se transformava em cinza, e ao mesmo tempo sentia pena de Nell Wycherley, a quem acompanhara nessa manha à estação... a fim de que ela não ficasse aborrecida. As moças de agora são tão impertinentes, às vezes, para com os seus companheiros! Contudo, ela não era das piores.
Nesse momento, percebeu uma sombrinha que se movia ao longo da estrada, e Leslie, ato contínuo, mergulhou em sono profundo, deixando no entanto uma fenda ao canto dos olhos para se poder certificar da aproximação de Lettie. Esta, encontrando o seu admirador deselegantemente adormecido, de charuto na boca, quebrou um raminho de lilás, cujos botões ainda estavam fechados e cujo aroma não seria, portanto, capaz de denunciá-la antes que ela tocasse no nariz do dorminhoco. E Leslie, acordando de súbito, exclamou:
- Oh, Lettie, estava a sonhar com beijos!
- Na ponta do nariz? Beijos de quem? retorquiu ela, rindo alto.
- De quem me produziu a comichão, esclareceu, sorrindo.
- As cócegas fazem-no sonhar com isso?
Trocaram ainda outros cumprimentos deste teor. E, como a moça o envolvesse num desses olhares com que as mulheres sabem lisonjear tão habilmente os homens, Leslie caiu em êxtase, afogado de volúpia.

 

CAPÍTULO DOIS

 


Lettie ficou inquieta ao ouvir o barulho prolongado do vento na floresta e o suspirar e gemer das árvores mais próximas da casa; não queria mexer-se, não queria fazer nada - mas acabou por insistir que eu a levasse até à beira da lagoa. Atravessamos, o emaranhado das amanbas e dos framboeseiros bravos que se estendia em frente da nossa casa e descemos o declive cheio de ervas que vai dar a Nethermere. O vento fustigava, rumorejando, a superfície das águas; e a frescura do ar estimulou-nos, lá onde as ondas se quebravam contra os seixos e as hastes dos caniços se curvavam sob o açoite dos elementos.
Na margem, as rainhas-dos-prados estavam em flor, e nós enterramo-nos nelas até aos joelhos enquanto admirávamos as rendas de espuma que corriam sobre as vagas e o prateado dos salgueiros mais distantes, no outro lado. Ali, onde deságua o regato de Strelley, a lagoa é mais estreita, a vertente do bosque mais abrupta e os troncos das árvores quase mergulham dentro de água. Interrompendo o nosso passeio, detivemo-nos a observar, de vez em quando, na terra pantanosa, ninhos abandonados de aves aquáticas; ao mesmo tempo sentíamos o cheiro penetrante da hortelã que os nossos pés esmagavam. À nossa aproximação, vimos algumas aves pernaltas que estendiam o pescoço esbelto, sobressaltados, e que fugiram diante de nós: uns atrás dos outros, voavam guinchando para o âmago da floresta, mas logo regressavam ao ponto de partida para de novo despedirem noutra direção, cheios de espanto e de terror.
- Por que se teriam assustado? perguntou Lettie.
- Não sei. Às vezes fitam-nos sem medo, e noutras ocasiões precipitam-se com esta lamúria como se levassem uma cobra enrolada nas asas.
Ela, no entanto, deu pouca atenção às minhas explicações. Havia-se agarrado a um ramo de salgueiro e, num instante, choveram sobre ela miríades de flores, como migalhas de uma enorme fatia de pão. Segui-a logo a fim de tomar parte naquele banho que a envolvia e do qual emanava um perfume medicinal.
- Oh, Cyril! exclamou Lettie, surpreendida.
Era um gato preto que ela descobrira preso numa armadilha pelas patas traseiras: fora apanhado, sem dúvida, no momento em que ia saltar sobre a vítima. Magro, bravio, o animal havia sido, e com razão, a causa do terror manifestado pelas aves. Ao ver-nos, rosnou baixo e não desfitou o olhar, que brilhava de ferocidade.
- Que mau que ele parece! acrescentou Lettie.
Envolvi as mãos no lenço dela e no meu próprio boné e agachei-me para abrir a ratoeira. O gato rasgou-me o pano das luvas improvisadas, metendo-lhe os dentes convulsivamente; mas, uma vez liberto, deu um pulo para longe e ficou espiando. Tirei o casaco, embrulhei nele o bicho e agarrei-o murmurando:
- Coitada da Nickie Ben! Sempre profetizei este fim.
- Que vai fazer? inquiriu Lettie.
- E uma das gatas de Strelley Mill. Vou levá-la aos donos.
O pobre animal, debatendo-se, procurava fugir, mas eu consegui trazê-la comigo; seguido da minha companheira, apareci na cozinha da casa, em mangas de camisa, e todos se admiraram de me ver entrar assim, levando tão estranho embrulho.
- Trago-lhes a Nickie Ben, declarei, exibindo a minha carga.
- Que patifaria! bradou Emily, estendendo a mão para a gata mas retirando-a no mesmo instante, com pavor igual àquele de que ainda há pouco as aves
tinham dado prova.
- É assim que eles morrem todos, sentenciou a mãe.
- O que eu queria, acudiu Mollie, excitada pela indignação, era que os guardas-florestais estivessem três dias e três noites entalados numa ratoeira dessas.
Pusemos o bicho sobre o tapete do fogão e
dêmos-lhe leite morno; ela, porém, bebeu muito pouco, de assustada que estava. Mollie, no meio da sua cólera, foi buscar o marido de Nickie Ben, que era também preto, a fim de que, ele visse a sua consorte estropiada. O gato olhou, pareceu encolher os ombros finos e afastou-se com passos rápidos. Aquela insensibilidade provocou geral clamor entre as senhoras.
George, que vinha buscar água quente, surgiu à porta nessa' altura. Admirou-se com a nossa presença ali e os olhos cintilaram-lhe.
- Repara na Nickie Ben, disse a irmã mais nova. George ajoelhou no tapete e ergueu as patas feridas da gatinha.
- Estão partidas, participou ele.
- Que horror? exclamou Emily, estremecendo. E foi-se logo embora.
- Ambas? indaguei.
- Só uma. Vê.
- Está a torturá-la, notou Lettie.
- Já não tem cura.
Mollie e a mãe deixaram a cozinha, à pressa, e foram para a sala.
- Que vais fazer? perguntou Lettie.
- Evitar que ela continue a sofrer, respondeu George, pegando no animal. Seguimo-lo até ao celeiro. Uma vez ali, fez ele esta declaração:
- A maneira mais rápida é andar com a gata de roda e bater-lhe com a cabeça contra a parede.
- Está a fazer-me mal aos nervos, observou Lettie.
- Então, vai ser melhor afogar o bicho, replicou ele, sorrindo. Pegou num cordel, preparou um laço numa das pontas e enfiou-o no pescoço do animal, amarrando aí um peso de ferro e deixando solta a outra parte do fio. Feito isso, perguntou se queríamos acompanhá-lo. Lettie olhou para ele, um tanto pálida. - Prevenindo-a de que isto vai lhe esfrangalhar os nervos, acrescentou George. A moça não deu resposta, mas seguiu-o ao jardim, através do pátio. Na margem do reservatório, ele voltou-se outra vez para nós e disse:
- Agora, atenção. Vocês fazem de carpideiras.
Ficávamos ambos calados; ele tornou a sorrir e atirou para a água o pobre animal, que se contorcia com dores.
- Adeus, Nickie Ben! exclamou o algoz, que nos mirou cheio de curiosidade, enquanto esperávamos na margem.
- Cyril, disse Lettie, muito calma, isto é que é crueldade! E horrível!
Não encontrei palavras com que lhe respondesse, mas George acudiu logo:
- Refere-se a mim?
- Não a si especialmente... mas às coisas em geral.
O lavrador fitou-a com os seus olhos escuros e sérios.
- Tive de afogar a gata sem piedade, declarou ele, atando a extremidade livre do cordel a um tronco de freixo. Depois foi buscar uma enxada e, com ela, fez uma cova na terra negra. - Se o cadáver não vier muito desfigurado, ajuntou, dirigindo-se a Lettie, você cobrirá de violetas a sepultura de Nickie Ben. Lançou fora a enxada e puxou o atilho, no fim do qual apareceu a gata e o peso de ferro. - Vá lá, que não tem mau aspecto! Era uma bichana de raça.
- Enterre-a quanto antes, ordenou-lhe a moça.
- Irá ter pesadelos, esta noite?
- Os sonhos não me assustam, respondeu.
Reentramos em casa e fomos até a sala, onde Emily estava sentada junto da janela, pensativa. O aposento era comprido e não muito alto, com uma viga tosca e enorme a atravessar o teto. Na prateleira do fogão e sobre o piano havia folhas e flores distribuídas em quantidade. Pela janela entrava o cheiro e a frescura do bosque.
- Ele levou avante o seu intento? perguntou Emily. E vocês assistiram a isso? Se eu tivesse pressentido semelhante coisa ficaria com ódio de morte.
- Eu também não fiquei muito satisfeita, declarou Lettie.
- A indiferença e brutalidade deste rapaz chegam a ser revoltantes, continuou a outra. Sinto-me repugnada.
- Palavra? volveu Lettie, com um sorriso frio. Dirigiu-se ao piano e acrescentou: Acho-o apenas demasiado saudável. Nunca está doente, creio eu.
Sentou-se e tocou ao acaso, deixando que as notas, entorpecidas, tombassem como folhas mortas do velho móvel sonoro.
Emily e eu conversávamos junto da janela, a respeito de livros e de pessoas conhecidas. A moça mantinha-se bastante séria e eu contagiado, compartilhei sua gravidade.
Daí a pouco, depois de ter mungido e dado de comer às vacas, George veio ter conosco. Lettie estava ainda sentada ao piano, e ele perguntou-lhe por que não tocava qualquer coisa mais leve - o que a fez voltar-se na banqueta e responder-lhe em tom um tanto seco. A aparência dele, contudo, dir-se-ia ser bastante para lhe dispensar as palavras ariscas, como se fossem pássaros assustados... George vinha diretamente da copa, onde fora lavar-se, e ficara atrás de Lettie, distraído, a enxugar os braços, com a camisa aberta no peito e as mangas arregaçadas. Estava de botas, polainas sujas e calções rasgados nos joelhos; ao vê-lo assim, ela sentiu certo embaraço.
- Por que não toca qualquer coisa mais moderna? insistiu ele, esfregando a toalha nos ombros, por baixo da camisa.
Lettie repetiu as palavras que acabara de ouvir, como um eco: a sua atenção ia toda para os movimentos que ele fazia, fascinada pelo vigor daqueles braços e pela brancura e solidez do peito. Depois de ter examinado a transição brusca da pele exposta ao sol para a da garganta, muito alva, encontrou-se, de repente, com o olhar de George e voltou-se no mesmo instante para o piano, enquanto o sangue lhe escaldava as orelhas, cobertas, por felicidade, com uma profusão de caracóis.
- Que devo tocar, então? murmurou ela, passando os dedos pelas teclas, ainda perturbada.
O rapaz foi buscar a uma pilha de músicas um álbum de canções e apresentou-lhe.
Vendo tão perto de si os braços dele, Lettie estremeceu levemente e perguntou:
- Que deseja cantar?
- O que for do seu agrado.
- Uma canção de amor?
- Se gosta... Está bem, uma canção de amor, concordou num tom que denunciava insinuação demasiado evidente, o que fez com que minha irmã se remexesse na banquinha e se conservasse calada. Por fim, Lettie começou a execução da peça escolhida, que era Tit Willow, de Sullivan. A voz de George, baixo sem grande profundidade, podia considerar-se tolerável; o certo é que ele cantava com prazer. Depois da frase bebe-me com os teus olhos, Lettie voltou-se e quis saber se ele gostava da letra. Que lhe parecia um pouco idiota, foi o comentário do cantor; mas disse isto olhando-a com olhos brilhantes, como se estivesse a desafiá-la.
- É que você não tem vinho no olhar, para que possa fazer um brinde com ele, disse a moça, correspondendo ao desafio com a chama azul das suas pupilas. Logo a seguir baixou as pestanas, e George riu muito senhor de si, perguntando como é que ela sabia semelhante coisa.
- Porque, esclareceu Lettie, exprimindo-se devagar e observando-o com fingido desdém, porque seus olhos não se alteram quando os fito. Acho que as pessoas devem falar com os olhos: há quem os tenha tão eloqüentes, tão expressivos! Assim dizendo, continuou a examiná-lo, calculando o lugar em que ele a teria - tanto o rosto como o cabelo, que parecia sempre despedir luz - e a idéia que fazia quanto à sinceridade das palavras agora ouvidas. Mas o rapaz soltou uma gargalhada
breve, mais desajeitada e menos persuasiva ainda que as do costume. Lettie virou-se, então, rindo também.
- Não há nada neste álbum que seja bom para cantar, disse ele, folheando com ar descontente.
Fui buscar outro, e ela cantou Should he upbraid. Tinha bela voz de soprano e a canção agradou bastante a George, que se aproximou dela. Quando terminou, lançou em volta da sala um olhar travesso e cintilante, e viu que o lavrador a contemplava maravilhado.
- Gosto disto, declarou ela, numa certeza cheia de superioridade.
- Gosto, confirmou o rapaz, com ênfase, salientando assim o triunfo da cantora.
Aproveitando a maré, Lettie fez-lhe várias observações acerca do trecho acabado de interpretar, e George, sempre sorridente, não se atreveu logo a responder antes de considerar o significado exato daqueles comentários.
- Você conserva os sentidos meio despertos, meio adormecidos, acrescentou minha irmã.
- Acha que sim?
- Sem dúvida. Você aprecia, em especial, a comida e o conforto. Não é verdade?
- E você não aprecia? retrucou ele, um tanto humilhado.
- Já se sabe! Agora venha virar-me as páginas enquanto toco esta música. Quando estiver na hora, faço-lhe sinal. Traga uma cadeira.
-
Principiou uma romança de Schubert. George inclinou-se sobre o ombro da pianista a fim de poder voltar as páginas; e ela, sentindo o cabelo do rapaz roçar-lhe a face, ergueu a vista para o seu companheiro e presenteou-o com um sorriso, sem deixar de tocar. Atingindo o fim da página, fez o sinal combinado, mas George estava distraído.
- Agora disse ela, já impaciente, enquanto ele tentava, com um gesto brusco, penitenciar-se do esquecimento. Lettie, porém, afastou-lhe a mão, voltou a folha sem ajuda e prosseguiu na música.
- Desculpe, murmurou o rapaz, corando.
- Não faz mal, replicou ela, sem parar e sem o ver. Chegando ao fim, pediu que lhe descrevesse as sensações que experimentara durante a execução da música.
- Ah, fiz triste figura! asseverou ele, atrapalhado.
- Estimo muito saber... mas não era isso que eu perguntava. Diga-me, antes, o que sentiu.
- Não sei... se senti alguma coisa, retorquiu George, medindo as palavras, como de costume.
- Direi por você. Você ficou dormindo ou então é insensível. A música, realmente, não lhe desperta nada lá no íntimo? Que pensa a esse respeito?
George riu mais uma vez, refletiu uns instantes, e voltou a rir.
- Ora! exclamou, evitando confessar os seus verdadeiros sentimentos, penso que você tem bonitas mãos e que deve ser agradável sentir o seu contato, tal como a do seu cabelo na minha cara.
Depois de ter escutado esta declaração, Lettie empurrou-o discretamente e afastou-se dele, sentenciando:
- Você está cada vez pior.
Atravessando a sala, dirigiu-se para o sofá onde eu conversava com Emily e passou-me o braço de roda do pescoço.
- Não serão horas de voltarmos para casa? perguntou.
- Oito e meia... parece-me cedo.
- Pois eu... eu acho que é hora de recolher.
- Não vão ainda, disse George. - Fiquem para cear, pediu Emily.
- Mas eu creio que... Respondeu Lettie, hesitante.
- Que há assuntos mais importantes a tratar, intervim eu, concluindo-lhe a frase.
- Não é isso... Hesitou de novo e, de súbito, bradou furiosa:
- Cyril, não seja aborrecido!
- Vão a algum lugar? indagou George, em tom humilde.
- Que idéia! respondeu Lettie, ruborizada com a pergunta.
- Então fiquem para cear convidou ele por seu turno. Lettie sorriu e condescendeu. Fomos para a cozinha, onde encontramos o Senhor Saxton a ler, tendo aos pés, e fingindo que dormia, o seu enorme bull terrier que dava pelo nome de Trip. No canapé repousava muito sossegado o gato preto, viúvo de Nickie Ben. A Senhora Saxton e Mollie recolhiam-se precisamente nessa ocasião aos seus respectivos quartos. Despedimo-nos delas e sentamo-nos. A criada já se havia ido embora, de modo que foi Emily quem teve do preparar a ceia.
- Ninguém toca tão bem naquele piano como ela, disse o Senhor Saxton, sorrindo para Lettie com admiração e deferência. O dono da casa tinha
muito orgulho naquele móvel antigo e majestoso, e costumava observar que o piano estava cheio de boas músicas para aqueles que as sabiam extrair de lá. Lettie replicou, risonha, que decerto poucas pessoas o haviam experimentado, de maneira que a honra não era muito grande.
- Que tal acha a voz do nosso George? perguntou o pai, um tanto vaidoso, embora terminasse a frase com uma risadinha desconcertante.
- Quando estiver apaixonado há de cantar muito bem, foi a resposta da interpelada.
- Quando estiver apaixonado! repetiu o homem, rindo alto, deveras satisfeito.
- Sim, senhor, no dia em que encontrar a pessoa que ele deseja.
George meditou no caso e soltou, por sua vez, uma gargalhada.
Emily, que punha a mesa, disse então:
- Há pouca água em casa.
- Com os diabos! exclamou o rapaz. Já mudei de botas.
- Não será muito difícil tornar a calçá-las, ponderou a irmã.
- Annie podia tê-la ido buscar. Para que está ela aqui? retrucou ele, indignado.
Emily olhou para nós, abanou a cabeça e voltou as costas ao irmão. O pai apressou-se a oferecer os seus préstimos:
- Depois da ceia, irei eu.
- Depois da ceia? perguntou a moça, admirada e divertida ao mesmo tempo.
George levantou-se e arrastou os pés, contrariado. Precisava de ir ao poço, que ficava num bosque próximo, e desagradava-lhe a idéia, depois de ter se aquecido ao calor da cozinha.
Tínhamos acabado de sentar à mesa quando Trip começou a ladrar à porta.
Fica quieto, intimou-lhe o dono, lembrando-se de que havia gente dormindo a essa hora.
Mas levantou-se e foi atrás do cão. Era Leslie, e queria levar minha irmã para casa, sem demora. Ela se opôs terminantemente, de modo que ele se viu obrigado a entrar e sentar à mesa, onde tomou uma
xícara de café e comeu uma fatia de pão com queijo. Durante esse tempo dirigiu-se sempre a Lettie, falando-lhe de um garden-party que estava programado para a próxima semana, em Highclose.
- A benefício de quê? interrompeu o Senhor Saxton.
- benefício? repetiu Leslie, admirado.
- Sim, dos missionários, ou dos desempregados, ou de quê?
- Trata-se de um garden-party e não de um bazar de caridade, esclareceu Leslie.
- Ah, coisa particular... Julguei que fosse assunto de igreja, pelo qual sua mãe se interessasse. Ele é muito apegada à igreja, não é verdade?
- Decerto, respondeu Leslie, que passou a expor a Lettie o seu plano de um torneio de tênis no qual pretendia que ela tomasse parte. Mas nessa ocasião percebeu que estava a monopolizar a conversa e, voltando-se para George - que tentava tirar com a faca um pedaço de queijo que se prendera aos dentes - perguntou por cortesia:
- Joga tênis, Senhor Saxton? Sua irmã sei que não joga...
- Não, replicou George, ainda às voltas com a faca e o queijo, nunca aprendi habilidade de senhoras.
O visitante voltou-se então para Emily, que empurrava dois pratos a fim de esconder uma nódoa da toalha, e surpreendeu-a com a seguinte declaração:
- Minha mãe gostaria muito que fosse ao garden-party.
- Agradeço reconhecida, mas é impossível. Tenho a escola...
- São muito amáveis, atalhou o pai, sorrindo.

George, nessa altura, mostrou uma expressão desdenhosa.
Terminada a ceia, Leslie olhou para Lettie como que a informá-la de que estava pronto a partir. Ela, contudo, fingiu não entender e pôs-se a discutir animadamente com o Senhor Saxton, que estava encantado. George, a quem o fato lisonjeava, juntou-se à conversa com evidente satisfação. O silêncio amuado de Leslie começou a pesar sobre nós todos. De aí a pouco George disse ao pai:
- Não me admirava nada que a vaca ruiva parisse esta noite.
Ao ouvir isto, Lettie despediu um olhar faiscante, prova de que estava divertidíssima.
- É também a minha impressão, respondeu o dono da casa.
- Tem os sinais todos, continuou o filho, depois de uma pausa.
- George! gritou a irmã.
- Vamo-nos embora, disse Leslie.
Desviando a vista para o lado, George encontrou os olhos de Lettie e sorriu com malícia.
- Empresta-me um xale, Emily? perguntou. Não trouxe nenhum agasalho, e suponho que o vento arrefeceu.
Emily, no entanto, viu-se forçada a lamentar a sua pobreza em matéria de xales, e Lettie não teve remédio senão enfiar um casaco preto por cima do seu vestido de verão. Ficava-lhe tão mal que todos desataram a rir, com o que Leslie não pareceu muito satisfeito: detestava vê-la servir de chacota, e procurou rodeá-la de todas as atenções possíveis, ajudando-a a prender a gola do casaco com o seu alfinete de pérola, da gravata, e recusando o que Emily acabara por descobrir, depois de várias buscas. Por fim saímos.
Leslie ofereceu o braço à minha irmã, afetando um ar de dignidade injuriada. Ela, porém, não o aceitou e ele principiou a queixar-se.
- Esperava que estivesse em casa, conforme prometera...
- Desculpe, mas não prometi nada.
- No entanto, sabia que eu vinha.
- E acabou por me encontrar!
- Sim, encontrei-a... namorando aquele tipo tão ordinário.
- Realmente, ele chama as coisas pelos seus nomes...
- O que lhe agrada, segundo vejo!
- Não me importa nada, replicou ela, com desdenhosa indiferença.
- Pensei que os seus gostos fossem mais requintados, retorquiu ele, sarcástico. Ainda bem que acha isso romântico...
- Muitíssimo!
- Detesto ouvir uma mulher dizer barbaridades, declarou Leslie, que tinha o horror de certas classes.
- E eu gosto tanto! insistiu Lettie, agravando assim a cólera do outro.
Leslie estava furioso.
- Estimo saber que George a diverte! rematou ele.
- Eu não sou difícil de contentar... A paciência do rapaz parecia esgotada.
- Resta-me a consolação, observou com frieza, de saber que não lhe agrado.
- Ora essa! Diverte-me também.
Depois disto, Leslie não falou, preferindo, com certeza, não a divertir.
Minha irmã enfiou o braço no meu e, com a mão livre, segurou a saia para evitar as ervas úmidas. Quando o seu admirador já se havia despedido, no extremo da floresta, ela observou:
- É tão criança!
- Chame-o antes pedaço de asno, respondi.
- Deixa lá... Sempre é mais amável do que o meu Taurus.
- Ah... o teu boi! confirmei eu, soltando uma gargalhada.

 

CAPÍTULO 3

 

No domingo que se seguiu à nossa visita ao moinho Leslie apareceu-nos de manhã em casa, solenemente vestido e afetando um ar não menos solene. Introduzi-o na sala e deixei-o só. Em geral, ele tomava a iniciativa de ir até à escada, sentar-se num degrau, e chamar dali por minha irmã. Mas, nesse dia, conservou-se mais reservado; fui eu quem levou a notícia da sua chegada. Lettie, que estava a acabar de se vestir, perguntou-me:
- E em que estado se encontra ele?
- Não perguntei.
Minha irmã riu-se e foi matando o tempo até serem horas de sair para a igreja. Só então desceu até aonde estava o seu galanteador e cumprimentou-o com uma reverência cheia de dignidade. Leslie ficou perplexo, mas não disse nada. Atravessando a sala, ela dirigiu-se à janela onde havia lindíssimos gerânios.
- Preciso enfeitar-me, declarou.
Era costume de Leslie trazer-lhe flores. Como não o fizera nesse dia, minha irmã sentiu-se magoada. Além disso, sabia ela quanto o visitante embirrava com o cheiro e com a brancura opressiva daqueles gerânios - e foi bastante para que, sorrindo-lhe, prendesse alguns no vestido, sobre o peito, e lhe dissesse:
- São lindos, não são?
Leslie murmurou qualquer coisa que significava concordância. Nessa altura apareceu minha irmã, que o saudou efusivamente e lhe perguntou se não a acompanhava à igreja.
- Se me permite... respondeu o rapaz.
- Está muito discreto hoje...
- Hoje? repetiu ele.
- Acho que a modéstia fica mal a um moço, continuou minha mãe. Vamos, que já é tarde.
Durante todo aquele dia, e até de noite, Lettie usou os gerânios.
À hora do chá convidou Alice Gall e pediu que eu me encarregasse de sora taureau quando o animal terminasse a sua faina da lavoura.
O tempo manteve-se quente e abafadiço. Quando atravessamos o regato, o sol avermelhava-se para as bandas do poente e começavam a exalar-se os aromas da noite, espalhando-se misteriosamente no ar calmo. Um clarão amarelo e oblíquo, do astro que morria, conseguiu furar o espesso dossel de folhas e veio aderir aos cachos das bagas de sorveira. As árvores conservavam-se imóveis, preparando-se para o sono. Pálidas e pensativas, algumas orquídeas cor-de-rosa olhavam, junto da vereda, para a fila rubra das búgulas, cujas derradeiras flores, cintilando no caule verde, ansiavam pela carícia do sol.
Eu e George vagueamos silenciosos, temendo perturbar a tranqüilidade da floresta. Mais perto de casa ouvimos um murmúrio que vinha do meio das árvores, do lugar onde havia um tronco tombado que o musgo rendilhara e no qual poderiam sentar-se dois namorados.
- Apaixonados a discutirem com um poente destes! comentei eu, enquanto prosseguíamos o nosso caminho. Mas, ao chegarmos à árvore caída, não vimos ali nenhuns amantes, - apenas um homem a dormir e a ressonar. A cabeça grisalha, de onde escorregara o
boné, apoiava-se num molho de gerânios que decoravam o tronco musgoso, sua roupa era de boa qualidade, mas amarrotada e suja e a cara do homem indicava, na sua palidez, anos de dissipação e de doença. Ao respirar, a barba cheia de fios brancos subia e baixava, e os lábios desgraciosos moviam-se numa conversa imperceptível. Devia estar lembrando algum episódio de sua vida, contorcendo as feições, gemendo - e falando talvez para uma mulher. Era inegável que o dorminhoco sofria.
Então abriu a boca, numa careta horrível, e mostrou os dentes amarelos. Falava agora mais alto, de modo que se compreendia alguma coisa do seu monólogo, muito pouco amável. Comecei a pensar na maneira de terminar com a cena, quando de súbito, do meio da floresta, nos alcançou o guincho de um coelho apanhado por alguma doninha. O homem acordou com um "Ah!" estridente, olhou em volta, consternado, e, sucumbindo de novo à sua fraqueza, murmurou:
- Sonhei outra vez.
- Não parece que o sonho fosse muito agradável, observou George.
O desconhecido encolheu-se, olhou-nos e perguntou, num tom quase de escárnio:
- Quem são os senhores?
Sem respondermos, esperamos que ele se mexesse. O homem, contudo, permanecia imóvel, espantado para nós.
- Com que então sonhei! exclamou de ai a instantes, com voz fraca. Sonhei, sonhei! Suspirou profundamente e ajuntou, escarninho: Levanto suspeitas?
- Não, disse eu, mas com certeza se enganou no caminho. Que estrada tenciona seguir?
- Quer que eu me vá embora?
Tomei um ar condescendente, sorri e repliquei:
- Não. me interessam os seus sonhos. Mas a verdade é que por aqui não há nenhum caminho.
- Então para onde vai o senhor?
- Eu? Para minha casa, respondi já sério.
- Pertence à família Beardsall.
- Pertenço, volvi eu ainda com maior seriedade. No íntimo, pensava quem poderia ser aquele indivíduo.
O homem ficou olhando-me durante uns momentos. Escurecia em torno do bosque. Então, pegando numa bengala de madeira preta e castão doirado, o desconhecido levantou-se. A bengala chamava atenção, e eu pus-me a examiná-la enquanto o seu possuidor se afastava pela vereda, direto ao portão. Com ele, saímos na estrada; ao chegarmos a um ponto desarborizado, onde os raios do poente nos davam em rosto, o velhote virou-se para trás e observou-nos de perto, abriu a boca tal se quisesse falar e
tornou logo a fechá-la. De aí a pouco disse:
- Adeus.

- Precisa de alguma coisa? perguntei, vendo-o cambalear.
- Não. Adeus.
Seguimos cautelosos na escuridão e vimos, na estrada real, os faróis de um veículo: seguiu-se o estalo de uma portinhola e o matraquear da carruagem que se afastava.
- Quem diabo será ele? comentou George, divertido.
- Parece-me que não fiz boa figura, ajuntei.
- Parece?
Esta observação do meu amigo denotava ao mesmo tempo surpresa e indulgência.
Voltamos resolvidos a não dizer nada do caso às senhoras. Minha mãe, Alice e Lettie esperavam por nós junto da janela.
- Demoraram tanto! exclamou a última. Vimos o pôr do sol, que foi magnífico. Olhem, o alto da colina ainda está ardendo... Que fizeram vocês?
- Aguardamos que o teu querido Taurus acabasse de trabalhar.
- Cala-te, ordenou-me depressa; e, voltando-se para George, minha irmã perguntou:
- Vem disposto a entoar hinos?
- Tudo que quiser.
- Ah, que simpático! interveio Alice, irônica. Era uma moça baixa e roliça, pálida, de olhos atrevidos. A família da mãe - os Wylds - tinha fama de irritar a burguesia tanto pela sua independência como pelo excesso de integridade. Alice, filha de um homem admirável e de uma mulher que amava apaixonadamente o marido, mostrava-se estouvada à superfície mas no fundo era dócil e correta. A mãe dela e a minha estavam ligadas por íntima e segura amizade e Lettie dispensava à filha a maior das simpatias; mas isso não impedia que minha irmã censurasse muitos excessos de Alice, embora às vezes se deliciassem com eles - quando não fossem
presenciados por gente superior. Havia homens que adoravam a sua companhia, embora evitassem ficar a sós com ela.
- Responderia a mim a mesma coisa? inquiriu Alice.
- Depende da conversa... volveu George, bem disposto.
- Que homem tão prudente! Eu prefiro uma pedra no sapato do que um homem cauteloso. Não concordo, Lettie?
- Isso é conforme o passeio que eu tivesse de dar, replicou-lhe a amiga. Mas, se não fosse preciso coxear muito...
Alice afastou-se rapidamente de minha irmã, a quem ela às vezes considerava irritante. E, falando então comigo, notou:
- Acho-o mal humorado, Cyril. Alguém o beijou?
Ri, interpretando pelo pior lado a sua malícia feminina. E retorqui:
- Se assim fosse, eu devia estar contente.
- Então alegre-se! acudiu ela, tocando-me de leve no queixo. Em seguida recomeçou a falar com George: - Como vocês estão solenes! Que aconteceu? Diga alguma coisa, antes que eu comece a sentir-me nervosa.
- Que hei-de-dizer? disse ele, com os cotovelos fincados nos joelhos.
- Meu Deus! gritou Alice, já impaciente.
George, todavia, recusou-se a satisfazer sua curiosidade, limitando-se a sorrir, um pouco inquieto. Para disfarçar, admirou os quadros, a mobília e tudo quanto havia na sala. Como Lettie tivesse levantado para compor as flores na prateleira do fogão, ele aproveitou o ensejo para observá-la de perto. Minha irmã estava vestida
de seda azul, com rendas na garganta e nos punhos. Alta como era, a sua figura tinha esbelteza; e o cabelo, fino e encaracolado, tornava-a mais bonita. George não seria mais alto do que ela, antes parecia baixo a seu lado, devido à robustez do corpo: mas não se podia considerá-lo desprovido de elegância, embora não o ajudasse a posição que tomara na poltrona, um tanto rígida. Os movimentos que fazia é que denotavam garbo.
Momentos depois mamãe chamou para a ceia.
- Venha, disse Lettie a George, conduza-me até a mesa. O rapaz levantou-se, mas sentia-se acanhado.
- Dê-me o seu braço, continuou ela, para arreliar George atendeu corando. Afligia-o aquela pele fresca semi-oculta pela renda, que lhe roçava a manga do casaco.
Quando estávamos sentados, Lettie pegou a colher e perguntou ao seu companheiro o que desejava. Ele hesitou olhando desconfiado para os pratos desconhecidos que via à sua frente; e respondeu que preferia queijo. Insistimos em que provasse dos manjares novos.
- Tenho a certeza de que gosta de outras coisas, notou Alice em tom de mofa. Ele vacilou de novo, não sabia distinguir nada daquilo, sentiu-se confuso; dir-se-ia que perdera o paladar. Alice pediu que se servisse de salada.
- Muito obrigado, não gosto.
- Oh, George! É capaz de me responder assim, quando sou eu que lhe peço?
- Já comi uma vez, tartamudeou ele. Foi alface com vinagre. .. mas não gostei.
- A nossa é doce como mel. Olhe que não tem vinagre nenhum.
- Acredito, replicou, para ser agradável.
- Ora ouçam. O nosso George acreditou em mim. Era isso que eu queria.
George esboçou um sorriso amarelo. Tinha a mão sobre a mesa, com o polegar escondido entre os outros dedos, e apertava-o nervosamente. Por fim o jantar acabou, e ele, apanhando o guardanapo que caíra ao chão, começou a dobrá-lo. Lettie parecia também embaraçada: entretivera-se aborrecendo o seu convidado, mas o acanhamento deste conseguira
torná-la aborrecida. Agora sentia-se triste e com remorsos; para dissipar a melancolia, resolveu ir até ao piano, como era, aliás, seu costume em casos semelhantes. Se estava zangada, tocava fragmentos de Tchaicovski; se se considerava infeliz, executava
Mozart. Nesse momento tocou Handel de uma forma que sugeria castigos do céu nas notas longas e, nos trinados, lembrava alguém valsando na escada de Jacob, como as donzelas dos quadros de Blake.
Quantas vezes eu disse a minha irmã que ela se servia escandalosamente do piano para exaltar os seus sentimentos! Em geral, fingia não me ouvir; mas, nessa noite, surpreendeu-me com um súbito acesso de lágrimas. Em atenção a George, tocou depois a Ave Maria de Gounod, calculando que a melodia daquela música faria bem ao rapaz e o levaria a esquecer os pequenos aborrecimentos. E eu, observando o efeito desse encantamento fácil, não pude deixar de sorrir. Ao terminar, Lettie demorou por um minuto os dedos sobre as teclas; depois girou na banqueta, fitou George diretamente nos olhos e pareceu prometer-lhe um sorriso. Mas baixou logo a vista e disse:
- Está cansado de me ouvir.
- Não, não estou, apressou-se ele a responder, abanando a cabeça.
- Gosta mais de música do que de salada? perguntou ela num assomo repentino de alegria.
George mirou-a, numa expressão embevecida, e não replicou. Quando olhava e sorria de modo inesperado, parecia inundar as pessoas num banho de ternura; contudo, não era belo, e quase sempre conservava um aspecto taciturno.
- Então vou continuar, declarou minha irmã, voltando-se para a frente.
Tocou trechos disto e daquilo, de modo distraído e, num movimento brusco, depois de ter esboçado uma espécie de queixa sentimental, abandonou o piano e foi enterrar-se numa cadeira baixa, junto do fogão. Uma vez ali, procurou George com os olhos; ele teve consciência daquela súplica, mas não se atreveu a ceder e ficou torcendo o bigode.
- Você, no fim de contas, não passa de uma criança, disse-lhe ela então, muito calma. O lavrador perguntou-lhe porque.
- Sim, uma criança, repetiu ela, recostando-se no espaldar da cadeira e sorrindo com ar indolente.
- Nunca tinha me lembrado disso, observou George, com perfeita seriedade.
- Palavra?
- É como digo, confirmou ele, tratando de reunir suas recordações.
Lettie riu-se com vontade e prosseguiu:
- Está em crescimento.
- Como?
- Em crescimento.
- Sou capaz de jurar que nunca fui criança.
- Escute: a sua infantilidade não o impede de ser homem jôrio. Outro qualquer mal se atreveria a tanta simplicidade, com medo de perder o ar digno. Tolices!
O rapaz achou a explicação divertida e, como de costume, pôs-se a matutar no caso.
- Gosta de estampas? perguntou ela de repente, já cansada de olhá-lo.
- Mais do que tudo.
- Menos do que jantar, aquecer, se espreguiçar-se...
Sentindo-se humilhado com aquela apreciação, George mordeu lábios, sem replicar; e Lettie, arrependida, sorriu com doçura.
- Então vou mostrar-lhe algumas.
Dizendo isto, levantou-se e saiu da sala. O rapaz teve, no entanto, a impressão de que se aproximava mais dela. Daí a pouco voltou carregando uma pilha de livros enormes.
- Isso é que é força! exclamou ele.
- Muito amável...
George olhou desconfiado, para ver se ela estaria fazendo troça.
- É tudo quanto sabe me dizer? perguntou Lettie.
O rapaz deu uma resposta vaga, para não se comprometer.
- Conheço, prosseguiu ela, pondo os livros sobre a mesa, quais os pensamentos dos homens pela maneira como me observam. Ajoelhou defronte do lume
e continuou: Alguns olham para o cabelo, outros à minha maneira de respirar, ou reparam no nariz... e outros, mas poucos, fitam-me nos olhos para ler o
que eu penso. Você não pertence a este último grupo. Para você sou um espécime de outra natureza: muito forte! Ah, que homem primitivo!
George pôs-se a entrelaçar os dedos. Ela desconcertava-o.
- Traga a sua cadeira para cá, ordenou ela, sentando-se à mesa e abrindo um dos livros.
Falou depois sobre cada gravura, insistindo em querer saber a opinião dele. Às vezes discordavam e o rapaz parecia pouco convencido; outras vezes Lettie ficava escandalizada com as opiniões que ouvia.
- Se, notou ela, viesse agora um bretão de outros tempos, vestido de peles, para me contrariar como você, não seria justo que o aconselhássemos a não fazer figura de parvo?
- Não sei...
- Pois devia saber! Nunca sabe nada.
- Como é, então? Minha irmã desatou a rir.
- A pergunta foi tão fácil! Olhe, você podia ser mais. .. vivo.
- Muito obrigado, respondeu ele, em tom irônico.
- Ah, julga que é um modelo de perfeições? Fique sabendo que o acho indolente.
- Sim, é um molengão, interveio Alice, que nesse instante reentrava na sala, pronta para partir. Não é capaz de sacudir-lhe Lettie?
- Não me sinto com esse direito.
- Adeus a todos, continuou Alice. Vamos, Cyril, está um luar de primeira ordem. Boa noite.
Acompanhei-a a casa, e os outros dois ficaram olhando as gravuras.
George tinha inclinações românticas, gostava de Copley, Fielding, Cattermole e Birket Foster. Girtin e David Cox não lhe diziam nada. Em certa altura puseram-se a apreciar George Clausen.
- Este é um verdadeiro realista, disse Lettie. Torna belas as coisas vulgares, vê o mistério e a grandeza que nos envolvem ainda quando fazemos
trabalhos subalternos. Se eu montar no campo, a seu lado...
Aquilo era novo para ele e feriu a sua imaginação. A estampa em discussão representava uma aquarela de Clausen intitulada Mondando. Lettie não largou o assunto:
- A cor poente é mesmo assim, e, se olhar para a terra, notará que existe nela como que um oiro quente... Compreenda o colorido, isso leva-lo-á a perceber tudo. Você, por enquanto, está cego, é como um recém-nascido, só deseja dormir, vive muito materialmente: é como um piano que só tivesse as notas mais vulgares. O pôr do sol não significa nada para si, é uma coisa que acontece todos os dias... Não me obrigue a torturá-lo. Se houvesse vindo ao mundo numa casa onde alguma coisa o oprimisse, alguma coisa que não pudesse entender; se jamais acreditasse ou duvidasse... De qualquer destes modos, podia ser um homem e não uma criança. Não, não tem crescido, é como os bulbos que passam todo o verão a inchar, a inchar mas que nunca dão flor. Quanto a mim, a flor já apareceu, mas quer continuar a crescer. O que é demasiadamente alimentado não floresce. Você tem de sofrer antes de desabrochar. Quando a morte se aproxima de uma planta, instiga-a ao amor da floração. Decerto quer saber se a morte me tocou já. Ouça: nesta casa há sempre a sensação da morte. Creio que a minha mãe, antes de eu nascer, odiava o meu pai: havia pois, nas suas veias, uma corrente mortífera. Isso tem sua importância...
George ouvia, de olhos esbugalhados e boca aberta como uma criança que pressente a história que lhe contam mas não compreende as palavras. Ela, por fim, pousou nele o olhar, e começou a rir suavemente. Depois, batendo-lhe de leve na mão, murmurou:
- Desorientei-o? Foi grande amabilidade a sua ter-me escutado. Não há nenhuma intenção nisto tudo... tão fora da realidade!
- Mas... por que o disse?
- Que pergunta! Agora voltemos à vaca fria. Estamos a olhar um para o outro como dois patetas.
Falaram de novo sobre as reproduções de quadros. De súbito, George exclamou:
- Repare!
Era o Idílio de Maurice Griffinhagen.
- Que tem? indagou ela, corando lentamente. Lembrara-se do seu próprio entusiasmo quando vira aquilo pela primeira vez.
- Bonito, não acha? disse ele, mirando com olhos brilhantes a sua interlocutora. O seu sorriso, que não era sinal apenas de satisfação, mostrava-lhe
os dentes muito brancos.
- O quê? volveu Lettie baixando a cabeça, um tanto confundida.
- Aquela mulher... receosa... e apaixonada!
- E natural que sinta certo medo ao ver o bárbaro em todo o seu esplendor, envolto em peles e tudo mais...
- Mas não gosta disto?
Minha irmã encolheu os ombros, replicando:
- Namore a primeira mulher que encontrar. Na altura em que as papoulas avermelharem os campos, já ela estará caída nos seus braços. Haverá necessidade de mais alguma coisa, além de a trazer meio assustada?
Enquanto falava, ia brincando com as folhas do livro, sem olhar para o seu companheiro.
- No entanto... gaguejou ele, de olhos cintilantes, seria... antes...
- Oh, santa inocência!
- Mas, insistiu o rapaz, eu não sei se gostaria de qualquer mulher que eu soubesse que...
- Querido Galaaz, redarguiu Lettie, em voz galhofeira, acariciando o queixo com o dedo. Você devia ter sido monge... ou mártir. Devia ser frade cartuxo.
George riu, sem fazer caso daquele discurso. Experimentava uma sensação nova para ele, como que um fogo a arder no peito e nos músculos dos braços. Ofegante, olhou para os seios de Lettie, e estremeceu.
- Está estudando o seu papel? perguntou ela.
- Não, mas... Tentou fitá-la, mas não o conseguiu. Encolhendo-se todo, deixou pender a cabeça, enquanto ela perguntava, cheia de curiosidade:
- Mas o quê?
Já mais calmo, o lavrador ergueu a vista: e os seus olhos, grandes e expressivos, pareciam queimá-la, como se deles irradiasse uma labareda que atingisse as faces de Lettie. Ela é que, por sua vez, dobrou a cabeça, pondo-se a alisar o vestido.
- Nunca tinha visto esse quadro? inquiriu em voz baixa. E ele, cerrando as pálpebras e retraindo-se envergonhado, murmurou:
- Não, nunca o tinha visto.
- É para admirar. Trata-se de uma obra vulgarizada.
- Ah, sim?
Este pretexto para conversa acabou por se esgotar.
Lettie ergueu de novo o olhar e encontrou o dele. Fitaram-se por um momento antes que baixassem mais uma vez a cabeça. Era, para ambos, verdadeira tortura essa contemplação muda - dor recolhida que eles se obrigaram a suportar nesse instante e que depois lhes encheu as veias de um fluido ígneo, assustador. Lettie, alarmada, procurou dizer qualquer coisa.
- Suponho que o quadro está em Liverpool, foram as suas primeiras palavras.
George não se atreveu a perder a deixa. Tinha consciência da situação e achou necessário replicar:
- Ignorava que houvesse um museu em Liverpool.
- Há, sim, e muito bom.
Os olhares encontraram-se noutro relance, mas ela voltou logo a cara, e ele fez outro tanto. Assim, com a vista desviada, conversaram ainda um pouco. Por fim, Lettie levantou, pegou os livros e levou-os consigo; à porta voltou-se e aproveitou o ensejo para dizer:
- Está admirando a minha força?
A sua atitude não deixava de ser bela. Como levantara muito a cabeça, via-se-lhe a curva da garganta descendo suavemente até o peito, que se entumescera com o esforço dos braços a segurarem os livros. George contemplou-a, e nos lábios de ambos adejou um sorriso. Lettie ergue mais o pescoço, como se estivesse bebendo, e um e outro sentiram o sangue latejando-lhes nas fontes. Então, com um leve tremor, ela virou a cara e desapareceu da sala.
Enquanto minha irmã esteve ausente, George ficou torcendo o bigode. Pouco depois ela chegou; ao atravessar o vestíbulo, viera falando sozinha, em francês. Tendo visto Sarah Bernhardt representar a Dama das Camélias e Adriana Lecouvreur, Lettie aprendera o estranho tom de voz da grande atriz e costumava imitá-la de vez em quando. Nesse momento, dando de cara com o rapaz, riu-se para ele - que lhe ripostou fosse o que fosse - e continuou a pronunciar palavras na mesma língua, com um
sotaque cheio de asperezas. Aquilo soou de forma singular e desconcertante. Notei (como muitas vezes mais tarde) que havia no rosto de George uma perplexidade dolorosa, tal a sensação de qualquer coisa que o magoava e que ele não conseguia entender.
- Devemos parecer loucos uma vez ou outra, disse ela, para mostrar que ainda não envelhecemos.
- Gostava de ter compreendido, disse George, ainda de semblante triste.
- Coitado! exclamou Lettie, divertida. E tão modesto! Já vai embora, realmente? Acho-o tão melancólico... Vão julgar, na sua casa, que não lhe demos ceia.
- Ceei uma quantidade de coisas... retorquiu ele, agora sorridente, querendo aventurar-se a uma frase de efeito. Mas estava excitado em demasia.
- ... de coisas horrorosas, atalhou a moça, rematando-lhe o período. E este final ainda é o pior de tudo.
- Acha?
Fitaram-se por momentos, ambos risonhos.
- Muito pior. Esperaram uns segundos, sem dizer mais nada. George olhou-a de novo.
- Adeus, disse ela, estendendo a mão. A voz denotava, ao mesmo tempo, ternura e rebeldia. George tornou a observá-la, de olhos chamejantes,
e depois agarrou-lhe a mão, demorando-a na sua, apertando-lhe os dedos... Envergonhada de haver sido tão expansiva, Lettie baixou o olhar e, nessa
ocasião, viu que o rapaz tinha um ferimento no polegar.
- Que grande golpe! bradou, enquanto fazia, trêmula, uma pequena pressão no dedo magoado.
George soltou uma risada.
- Não dói? perguntou ela, muito solícita.
Ele tornou a rir. E respondeu naturalmente, como se aquele polegar não lhe merecesse nenhuma consideração:
- Nada...
Trocaram mais um sorriso. Então, com um movimento brusco, George quebrou o encanto, e afastou-se.


CAPÍTULO 4

 

Chegara o Outono. As dálias-vermelhas, que em geral se conservam vivas e luminosas até tão tarde, apareceram com as corolas murchas e apodrecidas.
Uma tarde, quando eu passava defronte da porta do correio, chamaram-me de lá de dentro e entregaram-me uma carta para minha mãe. Observei o sobrescrito, cuja caligrafia tortuosa me causou um mal-estar inexplicável, meti a carta no bolso e depressa me esqueci dela. Em casa, querendo lembrar-me de qualquer coisa que interessava à minha mãe, recordei-me do fato e entreguei a carta. A destinatária reparou também no sobrescrito e começou a rasgá-lo nervosamente. Chegou-se depois mais para a luz e, de olhos semicerrados, pôs-se a esquadrinhar o conteúdo. Fui buscar-lhe os óculos e ela mal me agradeceu. Suas mãos tremiam. Leu a carta num instante, em seguida sentou-se, voltou a ler, e continuou a olhar para o papel.
- Que é, mãe? perguntei-lhe.
Não me respondeu, e ficou na mesma posição. Aproximei-me dela, pus-lhe a mão no ombro, receoso de qualquer má notícia, e ouvi-a murmurar, como se eu não estivesse presente:
- Coitado de ti, Frank.
Frank era o nome de meu pai.
- Que sucedeu, mãe? insisti.
Virou-se ela então, fitou-me como quem olha para um desconhecido, pôs-se de pé e começou a passear na sala. Depois saiu; percebi que se dirigia ao quintal.
O papel escorregara para o chão. Apanhei-o. Toda a caligrafia mostrava o mesmo aspecto desordenado que eu já notara no sobrescrito; a data indicava ter a carta sido escrita dias antes, numa aldeia situada a poucas milhas de distância. E o texto dizia.

"Minha querida Lettice:
Participo que estou quase morrendo: não poderei durar mais de dois dias, com os rins neste estado.
Fui aí um dia; não a vi, mas descobri nossa filha à janela e troquei meia dúzia de palavras com o rapaz. Nem um nem outro me reconheceram. Se soubesse como me sinto só, horrivelmente só, teria pena de mim.
Tenho poupado o mais que posso, para que seja reembolsada. Agrada-me ver chegado o meu fim, que bem mereci. Não podia ser pior.
Adeus, para sempre. Teu marido.
Franfe Beardsall."

Fiquei perplexo com a leitura desta carta. Fiz um esforço para me recordar de meu pai, mas, com grande esforço, só consegui rever a imagem que me deixava na memória certa fotografia antiga, socorrendo-me ao mesmo tempo da descrição feita por minha mãe: homem alto, belo, melancólico, de olhos claros.
Esse casamento fora infeliz. Meu pai era frívolo, de caráter ordinário, se bem que não fosse destituído de atrativos. Mentiroso, sem a mínima noção da honra, desiludira por completo as expectativas da mulher. Umas após outras, descobrira ela todas as irregularidades do homem a quem se ligara; sentia a alma revoltar-se e, como o sortilégio se partira em mil pedaços, afastou-se com a amargura de quem vê o seu romance transformar-se numa farsa imoral. Quando ele a deixou, trocando-a por outros prazeres - Lettie estava com três anos, e eu com cinco - minha mãe não sentiu senão alívio. Depois, só recebera notícias indiretas, que o não reabilitavam embora a sua situação material houvesse prosperado. O caso é que ele nunca lhe escrevera nem a procurara durante dezoito anos.
Entretanto, minha mãe regressou do quintal, e sentou-se numa cadeira, entretendo-se a fazer bainhas na orla do avental.
- A verdade, disse ela, é que Frank tinha direito aos filhos e que eu os guardei todo este tempo.
- Ele podia ter voltado, se quisesse, observei.
- Eduquei vocês contra o pai, mantive a distância - e ele queria tanto aos filhos! Devia estar agora a seu lado; devia tê-lo levado lá há mais tempo.
- Como, se não conhecia o seu paradeiro?
- Ele queria voltar... suspeitei disso nestes últimos anos. Mas conservei-me afastada, bem o reconheço. Coitado! Há-de ter compreendido os seus erros. Eu fui mais cruel...
- Não diga isso. Está falando debaixo da impressão recebida.
- Pressenti ultimamente que ele estava mal. Não sei como, mas adivinhei a sua doença, e tive a suspeita de que queria tornar a ver-nos.
Há três meses, em especial, que eu estava inquieta. Ah, fui bastante cruel!
- Então vamos, sugeri. Vamos lá visitá-lo.
- Amanhã, amanhã, replicou minha mãe, parecendo que só nesse momento reparara em mim. Irei de manhã.
- Vou consigo.
- Sim, de manhã. À Lettie não se diz nada. Ela tem sua festa em Chatsworth.
- Não se diz nada, concordei.
De aí a pouco minha mãe subiu ao andar de cima.
Mais tarde, Lettie chegou de Highclose. Leslie não quis entrar. Na manhã seguinte foram de automóvel para Matloc e Chatsworth. Como andava excitada, minha irmã não reparou em nada.
Depois de eles terem partido, nós saímos também. Quando descíamos do comboio, em Cossethay, a tarde estava calma e dourada, e mamãe insistiu em fazer a pé o percurso de duas milhas, até a aldeia. Fomos devagar, pela estrada, demorando-nos a apreciar as flores rubras que ornavam as sebes. Dir-se-ia que não tínhamos grande desejo de chegar ao nosso destino. Ao avistarmos o campanário cinzento da igreja ouvimos sons de estridente música metálica: dançava-se animadamente numa quinta dos arredores.
Havia cavalos de pau e barcos girando em roda, sob o céu azul transparente. Sentamo-nos sobre os degraus de uma cancela, a observar o carrossel e as várias barracas espalhadas pelo campo. As crianças, em grupos, passavam de um divertimento para outro. Com dois baldes gotejantes nas mãos, um homem atravessou o espaço aberto; às portinholas dos carros espreitavam mulheres e, debaixo dos pés das pessoas, metiam-se constantemente cães magros e preguiçosos. Assim decorria a feira, com todos
os seus ruídos particulares.
A voz masculina e rouca de certa dama convidava as crianças curiosas a olharem pelo estereoscópio. Na tribuna do carrossel estava um homem; e escarranchando-se ali, inclinava-se para trás, assobiando forte com os dedos na boca. Numa barraca imunda via-se um sujeito gordo a gritar aos garotos reunidos à sua volta, intimando-os a desafiarem um rapaz corpulento que, numa atitude impassível, cruzava os braços e mostrava o vigor dos bíceps. Como alguém perguntasse se ele se responsabilizava
pelo desafio, o rapaz fez que sim com a cabeça, o que foi reforçado logo pelo empresário. Mais além, ouvia-se a voz esganiçada dos vendedores. A lamber um sorvete, aproximou-se de nós uma moça; mas não nos achou dignos de interesse, e prosseguiu o seu caminho em busca de outras distrações.
Estávamos tomando coragem para seguir através daquele tumulto quando o sino rachado da igreja dominou o burburinho, lançando ao ar três badaladas. Olhei para minha mãe - e ela afastou-se de mim.
A música do realejo continuava arrastando-se, a mulher de voz rouca fazia novos apelos. Depois houve um momento de calmaria. O empresário do atleta entrou então na barraca para lutar com este, os vendedores ergueram os seus clamores, os cavalos e os barcos recomeçaram a girar.
De súbito, o sino voltou a badalar, agora mais vezes. O barulho, no entanto, crescera à nossa volta. Um dos rapazes, que se atrevera a andar de carrossel, tinha ainda o pé no estribo quando aquilo principiou a girar, com risco de desequilibrar tudo. A moça do sorvete comia agora outro, lambendo-o com igual método. Minha mãe, distinguindo o sino em meio daquele reboliço, gritou-me que a seguisse - e assim nos apressamos através da feira, em direção à igreja.
Passamos depois por um jardim onde flores rubras espreitavam do topo das hastes compridas. Por toda a parte se desgrenhavam crisântemos e murchavam malmequeres. Esse jardim pertencia a uma casa baixa e escura, atrás de um muro de bambu. Fomos direto à entrada principal. As venesianas estavam descidas; mas, numa janela, distinguimos luz mortiça de velas.
- É a Vivendo, do Teixo? perguntou minha mãe a um rapaz.
- Da Senhora May? É aqui, respondeu ele.
- Ela vive só? - inquiri - por meu turno.
- Tinha um hóspede francês, mas ele morreu. É por isso que estão as velas acesas.
Batemos à porta.
- Vêm por causa dele? indagou uma velha curvada, de voz rouca, que nos perscrutava com os seus olhinhos azuis; ao mesmo tempo, meneava a cabeça, coberta com uma touca de veludo, e apontava para um quarto interior.
- Viemos, declarou minha mãe. Recebi uma carta.
- Ah, coitadinho! Lá se foi! volveu a mulher, sempre a abanar a cabeça. Depois inclinou-se mais para nós, cheia de curiosidade, pôs a mão mirrada no braço da minha mãe e cochichou:
- As velas já se apagaram por duas vezes.
- Preciso de entrar e tomar algumas disposições. Sou parenta mais chegada, explicou a mãe, com voz trêmula.
- Sim, senhora; estive dormitando e, quando acordei, já estava escuro. Ah, não preciso agora velar por ele, pobre homem!, como fiz tantas vezes. O que ele padeceu, credo! Levantou as mãos ressequidas e fitou minha mãe com maior atenção, erguendo para elas os olhos intensamente azuis.
- Sabe onde é que ele guardava os seus papéis? perguntamos em seguida.
- Sim, senhora, falei com o Reverendo Burns a respeito de tudo. Devemos rezar por ele, foi o que me disse o padre. Comprei as velas com o meu próprio dinheiro. Era muito esquisito, coitado. Pobre homem! repetiu a dona da casa, sacudindo a cabeça grisalha em ar de condolência.
Minha mãe deu um passo em frente.
- Quer vê-lo? acudiu a velha, um tanto receosa.
- Quero, respondeu a mãe, acompanhando a palavra com um aceno vigoroso. Tinha percebido que a outra era quase surda.
Entramos para a cozinha, que era baixa, comprida e escura, com os vitrôs fechados.
- Sentem-se, disse a velha no momento tom apagado, - como se falasse consigo mesma. Era irmã dele, talvez?
Mamãe abanou a cabeça.
- Ah, sua cunhada! retorquiu a hospedeira. Fizemos sinal negativo.
- São primos? continuou, olhando para nós já suplicante, Não a desmentimos desta vez.
- Esperem um minuto, pediu, saindo da cozinha no seu andar saltitante. Bateu a porta, ouvimo-la tropeçar numa cadeira, mas por fim voltou com
uma garrafa e dois copos, que pôs na mesa, na nossa frente. Mal se julgaria que esse pulso magro seria capaz de segurar uma garrafa cheia.
- Esta é a que ele bebia, explicou logo, enquanto nos incitava a provar. Bebam, para ganhar forças. Afastou-se outra vez e regressou com o açucareiro. Recusamos a bebida.
- Ele é que não tornará a tomar, coitado! E que boa pinga, minha senhora. Só bebia coisas boas. Mas há três dias que não engolia nem uma gota. Vá, não façam cerimônia. Recusamos de novo.
- Está ali, segredou ela, apontando para uma porta fechada, no canto mais sombrio da cozinha. Abri-a, arrisquei uns passos e, tropeçando, fui de encontro à mesa na qual ardia uma vela num castiçal de latão. A vela caiu no soalho e o castiçal rolou com estrépito.
- Oh! Meu Deus! gemeu a hospedeira. Correu, a tremer, para o outro lado da cama e tornou a acender o pavio que ainda fumegava. Nesse momento a luz
deu-lhe em cheio na cara encarquilhada e pôs reflexos nas maçanetas do leito de mogno. No chão, viam-se pingos, e na cama, debaixo da colcha, distinguia-se o contorno de um corpo. A velha ergueu a parte da roupa que cobria o cadáver e recomeçou nos seus lamentos. O coração batia-me com força; evitei o olhar mas não pude. Ali estava o homem que eu vira no bosque, porém já lívido. Senti ao mesmo tempo piedade e terror e uma impressão horrível de
pequenez, de isolamento num grande espaço vazio. Parecia que eu me encontrava para além de mim próprio, como se fosse uma sombra insignificante que se movesse na escuridão. Depois notei que minha mãe havia chegado e que, abraçando meus ombros, murmurava em tom dolorido:
- Filho, filho da minha alma!
Estremeci e voltei a mim. Não havia lágrimas nos olhos dela, apenas uma expressão de súplica.
- Não faz mal, mãe, não faz mal, disse eu, incoerentemente, no meio da minha atrapalhação.
Com as mãos velando-lhe o rosto, minha mãe dirigiu-se à dona da casa e impôs-lhe silêncio. Esta enxugou as faces e aconchegou os fios grisalhos debaixo da touca de veludo.
- Onde estão os haveres dele?
- Heim? perguntou a velha, apurando o ouvido.
- Está aqui tudo quanto lhe pertencia insistiu a mãe, com voz forte.
- Aqui? repetiu a mulher, indicando o quarto com a mão estendida. Havia, além da enorme cama de mogno, sem cortinados, uma escrivaninha, uma cômoda antiga de carvalho e duas ou três cadeiras. Não o pude levar para cima. Está cá pouco mais ou menos há três semanas, acrescentou de aí a instantes.
- Aonde está a chave da escrivaninha? perguntou minha mãe ao ouvido da outra.
- Sim, senhora, é a escrivaninha dele, respondeu, olhando-nos indecisa.
A cena confrângia-me.
- A chave! gritou minha mãe. Onde está a chave?
A velha, perturbada, não fazia outra coisa senão abanar a cabeça. Calculei que ela não soubesse, de fato, o que lhe perguntavam.
- E as roupas? As roupas? inquiri, apontando para o meu paletó. Ela, então, compreendeu e disse:
- Vou buscar.
Perto da cabeceira do leito existia uma portinha que dava para a escada do andar superior. Estávamos dispostos a seguir a hospedeira, que desaparecera a toda pressa por ali, quando ouvimos um passo pesado na cozinha e uma voz gritando.
- Teria a velha ido beber com o diabo? Viva, Senhora. May, venha antes beber comigo!
Sentimos o despejar de um líquido no copo e quase no mesmo instante entrou um homem no quarto, dizendo:
- Sempre quero ver onde está essa velha! Como acontecera comigo, esbarrou também na mesa, mas não derramou nada no chão. Raio de degrau! acrescentou em tom jovial. Devia ser o médico. Vinha de chapéu na cabeça e vagueou pelo aposento com a maior sem-cerimônia. Tinha a cara vermelha e era volumoso de corpo.
- Desculpe, disse ele, reparando em minha mãe, que baixou a cabeça num leve cumprimento. É a Senhora. Beardsall? ajuntou, tirando o chapéu.
Mamãe fez sinal afirmativo.
- Fui eu que pus no correio a carta para a senhora. Também é parente? perguntou a seguir, indicando-me.
- O mais próximo.
- Pobre homem! volveu ele, designando o morto. Conseqüências da vida solitária!
- A carta foi grande surpresa, para mim, disse minha mãe.
- Ele não estava em estado de escrever, tinha passado muito mal ultimamente. Enfim, mais tarde ou mais cedo temos de dar contas a Deus. Queira desculpar.
Houve um momento de silêncio, durante o qual o médico suspirou. Depois começou a assobiar baixinho.
- Será melhor levantar a venesiana, observou ele, deixando entrar no quarto uma nesga de luz. Em todo o caso, não hão-de ter muitas preocupações. Não ficaram dívidas. Creio até que deixou qualquer coisa. Já não está nada mau. Pobre diabo! Andava com a saúde muito ruim. Enfim, mais tarde ou mais cedo... Para onde teria ido o demônio da velha? exclamou de repente, olhando para o teto de vigas, que estremecia com o peso de alguém no quarto de cima.
- Gostava de encontrar a chave da escrivaninha, disse minha mãe.
- Vou procurá-la. E o testamento também. Ele informou-me quanto ao lugar onde tinha isso, e pediu-me que lhe entregasse tudo, quando a senhora viesse. Pensava muito na família, ao que me parece. Podia-lhe ter corrido melhor a vida...
Ouvimos nessa altura os passos da velha descendo a escada. O médico foi ao encontro dela, até aos primeiros degraus.
- Cuidado, cuidado, gritou ele. A pobre mulher fez o que era de esperar: embaraçou-se nos suspensórios de umas calças que trazia de rastos e veio cair nos braços do médico. Este restabeleceu-lhe o equilíbrio, ao mesmo tempo que dizia: - Não se machucou não?
- Ah, doutor, ainda bem que veio. Já viu quem está aí?
- Já, retorquiu ele, com os seus modos rudes mas bondosos. Correu à cozinha, arranjou dois copos de uísque e trouxe-os consigo. Um para si e outro
para mim. Isto dá-lhe forças!
A velha sentou-se numa cadeira junto da porta da escada, com a pilha de roupa caída aos pés. A claridade do dia, entrando pela janela, misturava-se com a dos castiçais e punha tons estranhos tanto na casa da hospedaria como na figura imóvel que estava na cama.
Enquanto a dona da casa segurava o copo com a mão trêmula, o médico deu-nos as chaves e pusemo-nos a vasculhar as gavetas, tirando para fora os papéis. Ele, sem deixar de bebericar o seu uísque ia dando informações acerca do defunto.
- Estava aqui há só dois anos. Começa a sentir-se cansado, disse com os meus botões. Vivera algum tempo no estrangeiro, e por isso é que lhe chamavam francês. Bebeu mais um gole e continuou: - Ah, sempre me pregou cada peça! Sonhava alto, de forma assustadora. Felizmente a velha é surda como uma porta. É horrível, sonhar assim. Um homem arruina-se por completo, quando isso lhe acontece. Bebeu novos goles de uísque, fez outras reflexões e afogou-as com mais bebida. - Mas era um tipo decente, generoso, de mãos largas. As pessoas que não gostavam dele é porque não o compreendiam.
Detesta-se sempre o que não se pode aprofundar. Muito metido consigo, isso é verdade, - exceto quando estava dormindo. Olhou para o copo, suspirou e prosseguiu: - Vamos sentir sua falta. Não é verdade, Senhora May? Fez esta pergunta em voz tão alta que nos sobressaltou; e, por instinto, olhamos furtivamente o leito mortuário.
Entretanto o médico acendera o cachimbo e fumava com sofreguidão, talvez para matar o desejo de beber novos copos de uísque. Mamãe e eu aproveitamos a ocasião para examinar os papéis. Cartas, havia poucas; duas eram endereçadas a pessoas de Paris. Mas encontramos muitas contas, recibos, apontamentos diversos: tudo coisas de negócios.
Em toda aquela desordem a custo se descobriria um traço de vida sentimental. Minha mãe escolheu alguns papéis que lhe pareceram de maior valor. Os outros incluindo as contas, levou-os para a cozinha e jogou-os ao fogo. Parecia ter medo de procurar além de certo ponto.
O médico, entretido com o fumo, voltou a expor os seus pensamentos:
- Há duas maneiras, sim, há duas maneiras.
Pode-se deixar arder a lâmpada com a chama forte, e vê-la brilhar, até que se extingue, e faz fumo, e cheira mal; ou então conservá-la com todo o cuidado sobre a mesa, sujar os dedos arrumá-la de vez em quando: dura mais e cheira menos. Neste momento olhou o copo e notou que estava vazio. Isso chamou-o à realidade: - Posso ser-lhe útil seja no que for, minha senhora?
- Não se incomode, muito obrigada.
- Calculo que não haja muito trabalho nessas arrumações. Nem muitas lágrimas a verter - quando um homem gastou a sua mocidade sabe Deus por onde!
Os que o conheceram moço não hão-de sentir grandemente a sua perda. Teve os seus dias, mas não os gozou muito - sempre a desejar mais e mais. Não há nada como viver casado, com a existência regrada. Depois disto recaiu numa das suas meditações, na qual se manteve todo o tempo em que nós fechamos a escrivaninha, queimamos os papéis inúteis, guardamos os mais importantes - na minha algibeira e na mala da minha mãe - e nos preparamos para sair. Foi só então que ele, olhando admirado para nós, disse de repente: - E a respeito do enterro? Em seguida, notando o ar de fraqueza de minha mãe, deu um pulo, agarrou no chapéu a toda a pressa e acrescentou: - Venha ter com minha mulher, que lhe dará uma xícara de chá. Tenho vegetado tanto no meio destes rústicos que me esqueço às vezes das normas da cortesia. Venham. Minha mulher está só.
Mamãe sorriu e agradeceu-lhe. Voltamo-nos para a porta. No limiar, porém, ela hesitou, dirigiu a vista, rapidamente, para o leito, e por fim decidiu-se a partir.
Ao sentir a frescura da tarde que findava, tive a impressão de que havia sido tudo mentira.
Custava-me a acreditar. Não, não existia realidade naquela face lívida, naquela barba grisalha onde a luz da vela punha nódoas ondulantes e amareladas. O leito de mogno e a velha surda eram simples ilusão dos meus sentidos. A verdade estava só nestes girassóis de cor intensa, nesse relógio do Hospício, na claridade da tarde que nos envolvia e reconfortava. Tive um arrepio, expulsei da memória
o quadro que me afigurava irreal e prossegui o caminho.
A residência do médico ficava num lugar agradável, entre faias. Junto de uma cerca de ferro, em frente do pasto, via-se nesse momento uma senhora acariciando o focinho de uma linda vaca Jersey, a observá-la de muito perto e a falar-lhe com acentuada pronúncia escocesa. Dir-se-ia que essa mulher pequena e rosada estava falando e
brincando com uma filha. Ao virar-se para nós, ficou surpreendida e saudou-nos ainda com um resto de ternura nos olhos.
Uma vez em casa, ofereceu-nos chá, bolos e geleia. Não me fartei de gozar o som da sua voz musical, que lembrava o zumzido de abelhas em torno do açúcar; e, embora não dissesse nada de especial, nós a escutamos com a maior atenção.
O médico era pessoa bondosa e alegre. A mulher lançava-lhe de vez em quando olhares receosos e fazia o possível por não encará-lo. Com os seus modos francos e joviais, o marido troçava, elogiando-a depois com exagero e tornava a
dirigir-lhe gracejos. Em certa altura começou a ser um nadinha enfadonho e eu percebi que a mulher temia
vê-lo embebedar-se deveras. Devia sentir horror ao espetáculo da embriaguez, que não parecia ser muito raro.
Não tinham filhos.
Ao notar a inquietação da mulher, o médico suspendeu as suas brincadeiras. Olhou para ela várias vezes e pareceu constrangido com o fato de a sua cara metade evitá-lo, então começou a ser visível o mal-estar desse homem, e eu percebi que ele queria ir-se embora.
- Talvez fosse preferível irmos agora ao padre, observou daí a pouco. E deixamos aquela sala cujas janelas se abriam para o sul, para as pastagens, aquela sala que revelava toda a história da família, quer nas aguarelas pretensiosas, quer nos tapetinhos bordados das mesas, nas jarras vazias, no piano fechado, nas xícaras desirmanadas, no bico rachado do bule que deixava nódoas na toalha, e nos dois romances de capa suja, vindos de uma livraria de empréstimo.
Fomos encomendar o caixão, e o médico bebeu um novo copo de uísque. Paguei as despesas do funeral, e ele selou o ato com uma gota de aguardente. O cálice de porto, que o padre ofereceu, completou a jovialidade do meu companheiro. Regressamos depois a casa dele.
Desta vez, a inquietação que a mulher mostrou nos olhos não conseguiu dissipar a alegria do doutor: ele tagarelava sem descanso e ela
limitava-se a fazer girar no dedo o anel de casamento. Apesar do ar alarmado que mostramos, o médico insistiu em nos conduzir no seu carro até a estação. A mulher, então tranqüilizou-nos.
- Podem ir com ele sem receio, declarou com sua voz de acento escocês.
Da estação de Eberwich até em casa há uma certa distância. Fizemos o percurso parte em ônibus e o resto a pé. Minha mãe, cansada como estava, sentiu bastante o caminho.
Rebeca esperava-nos junto dos rodondendros; correu cheia de solicitude ao encontro de minha mãe e perguntou se queria chá.
- Já tomei.
- Mas devia tomar outra chávena.
Na sala de jantar, recebeu o chapéu e o casaco de minha mãe e ficou à espera, desejosa de ser esclarecida mas com relutância de fazer qualquer pergunta. Afligiam-na as olheiras de mamãe e o seu ar fatigado.
- Lettie esteve em casa, participou em seguida.
- E foi-se outra vez?
- Veio só mudar de vestido. Levou o de popelina verde. E queria saber para onde tinham ido...
- Que respondeu?
- Disse que não se deviam demorar.
Achei-a alegre como um passarinho.
Depois disto, Rebeca olhou atentamente para minha mãe, que lhe disse:
- Sabe? Ele morreu. Acabo de vê-lo.
- Agora, graças a Deus, a senhora não terá que se aborrecer mais.
- Morreu abandonado, Rebeca.
- Como a senhora tem vivido, nem mais, volveu a criada, em tom áspero.
- Mas eu tive comigo os filhos. Não diga nada à Lettie.
- Não, minha senhora. Rebeca saiu.
- Você e Lettie receberão o dinheiro, disse a mãe, dirigindo-se a mim. Havia cerca de quatro libras, que lhe tinham sido deixadas; e, só no caso da sua morte, é que minha irmã e eu as herdaríamos.
- Pertencem-lhe, mãe, retorqui.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio. Foi ela quem o quebrou, dizendo:
- Podia ter tido um pai...
- Felizmente tivemos mãe. Poupou-nos isso.
- Não diga semelhante coisa!
- Digo e repito. Estamos gratos.
- Se algum dia sentir desprezo por alguém, trata de impedi-lo, e seja generoso, filho.
- Sim, senhora.
- Por agora, basta. Mais tarde ou mais cedo será preciso prevenir Lettie.
Eu o fiz uma semana depois. Minha irmã, insensível, perguntou-me:
- Quem mais sabe?
- Nós, a mãe e Becky.
- Mais ninguém?
- Não.
- Se ele era tão nocivo para a mãe, foi melhor que desaparecesse de vez. Onde está ela?
- Lá em cima.
E Lettie subiu as escadas, a correr.


CAPÍTULO 5

 

A morte do homem que fora nosso pai
modificou-nos bastante a existência: não que experimentássemos grande desgosto, mas porque nos dominou a impressão da vida malograda. Haviam-se alterado em nós os sentimentos e afinidades, criando-se outra percepção das coisas, novos e diferentes cuidados.
Tínhamos vivido sempre entre a água e a floresta - Lettie e eu. Ela, em especial, procurava em tudo as notas mais brilhantes; parecia ouvir as águas gargalharem e as folhas abafarem risos como se fossem meninas; via as árvores sacudirem os ramos, tal se estivessem a dançar, e julgava descobrir maior ternura no simples arrulhar dos pombos.
Mais tarde, todavia, reparara no lamento doloroso do ouriço cacheiro apanhado numa armadilha e percebera a existência de outras ratoeiras às quais serviam de engodo as tripas de um pobre coelho.
Certa ocasião, pouco tempo depois da nossa visita a Cossethay, Lettie foi-se sentar no banquinho da janela. O sol, que a amava e jamais a queria abandonar, apegara-se aos seus cabelos e beijava-os com lábios ardentes, que tinham o colorido das flores que a rodeavam. Minha irmã, olhando por cima de Nethermere, pousava a vista em
Highclose, sombra indecisa naquela névoa de Setembro. Se não fosse o clarão vermelho das suas faces, eu diria que elas estavam tristes e sérias.
Aninhando-se no canto da janela, daí a momentos Lettie apoiou a cabeça no peitoril de madeira, e adormeceu. Parecia a criança adorável de outrora, ali dormindo de lábios entreabertos, como num amuo - e respirando muito devagar. Senti o peso da minha velha responsabilidade: devia protegê-la, tomar conta dela.
Ouvimos passos no areão do passeio. Era Leslie que chegava. Pensando que ela podia vê-lo, tirou o chapéu; mas ficou admirado de que não se mexesse. Aproximando-se mais, percebeu então o motivo; piscou-me o olho e entrou nas pontas dos pés pelo quarto a dentro, a fim de contempla-la. Impressionado com a atitude suave e abandonada
de Lettie, com o ar de mocidade compassivo e submisso, que ela irradiava, ele a beijou nas faces avermelhadas pelos raios do sol.
Lettie despertou com um gritinho infantil. E ele, sentando-se ao seu lado, puxou-a carinhosamente, olhando-a sempre com olhos ternos e sorridentes. Julguei a princípio que minha irmã ia adormecer outra vez, mas as pálpebras tremeram e as pupilas luziram muito vivas.
- Leslie, deixe-me! exclamou, repelindo-o. O rapaz largou-a e levantou-se, fitando-a com severidade. Lettie, compondo o vestido, foi logo ao espelho para arrumar o cabelo.
- É tão atrevido! disse ela, ainda despenteada, cheia de vergonha e de rubor.
- Não se pode parecer bem e estar dormindo ao mesmo tempo, volveu ele, rindo e desculpando-a.
- Não é bonito o que fez! replicou a moça, ainda irritada.
- Por que não havia eu de beijá-lo? Não sou de cerimônias.
- Mas tratava-se de mim e não de você.
- Meu Deus, tanto barulho por uma coisa tão simples...
- Mamãe vem aí, preveniu ela. Minha mãe gostava bastante de Leslie.
- Ora viva, disse ao entrar, parece-me que estão zangados.
- Lettie ralhou comigo por eu a ter beijado quando ela representava o papel de Bela Adormecida.
- E este rapaz teve a presunção de se julgar o Príncipe?
- Infelizmente, sem qualidades dignas da personagem, retificou ele em tom pesaroso.
Lettie deu uma risada e perdoou-o. Era um homem elegante e atraente. Dava gosto vê-lo andar com movimentos vigorosos e elásticos. O rosto, porém, não agradava tanto como o conjunto da sua pessoa: tinha as sobrancelhas muito ralas, o nariz demasiado grosso e uma testa pouco favorecedora, se bem que não fosse curta. A expressão é que o ajudava muito, franca, risonha, saudável.
- Pois eu, disse ele, fitando-a e sorrindo, vinha buscá-la para sair.
- A tarde está deliciosa, interveio minha mãe. Lettie relanceou o seu admirador e respondeu:
- Sinto-me com tanta preguiça!
- Não importa. Despertará lá fora. Vá pôr o chapéu, Parecia impaciente. Minha irmã, observando-o, viu-o sorrir de certa maneira especial, baixou os olhos e saiu da sala.
- Irá, no fim de contas, disse ele, falando consigo próprio, mas em voz alta. Gosta de se fazer de rogada.
Lettie devia tê-lo ouvido, pois, ao reaparecer, já a enfiar as luvas, declarou-me tranqüilamente:
- Você vem também.
Leslie rodou nos calcanhares e encarou-a surpreendido e furioso.
- Preciso de ficar, disse eu, sentindo-me constrangido. Falta acabar esta aguarela.
- Não, não, vem conosco, insistiu ela. Puxou-me da cadeira e tirou-me o pincel da mão.
O sangue afluiu ao rosto de Leslie, que se dirigiu rápido ao vestíbulo, donde voltou com o meu boné.
- Está bem! rematou, ainda colérico. As mulheres têm a mania de que são Napoleões.
- É verdade, Senhor Duque de Ferro, acudiu ela, zombeteira.
Para não perder o assunto que ela sugerira, Leslie replicou ato contínuo:
- O pior é que há sempre Waterloo... Vamo-nos embora, sim?
- Às ordens, volveu ela, tomando-me o braço.
Fomos através do bosque até a estrada real, passando pelos terrenos fronteiriços, de vegetação hirsuta - esses terrenos que podiam constituir um parque mas que permaneciam abandonados, com ervas e montículos erguidos pelas toupeiras; estavam cheios de urzes, sarças, e espinheiros aqui e ali, formando estranhos grupos.
Na estrada, as folhas estalavam debaixo dos nossos pés. As águas conservavam-se calmas e azuis e as medas de cereais pareciam vultos adormecidos.
Trepamos o outeiro por detrás de Highclose e seguimos ao longo do planalto, procurando com a vista as colinas do árido Derbyshire; mas era outono, não podíamos avistá-las. O que descobrimos foram os cabeçotes da mina de Selsby e a respectiva aldeia, de tão feio aspecto, estendendo-se nua e desabrigada pio alto do monte.
Lettie ia bem disposta, rindo e brincando sem cessar. Colhia frutos silvestres e enfeitava com eles o vestido. Como enterrasse num dedo um espinho de silvado, pediu a Leslie que o arrancasse. Assim brincando saímos da estrada e enveredamos pelo caminho apertado que fica à esquerda da floresta, à direita dos campos e dos baldios e defronte das altas colinas de Strelley. Depois de uns momentos de marcha, vimos brilhar uma foice. Lettie correu à beira da vereda, para admirar de mais perto: era George que ceifava as espigas de aveia, pois a segadora mecânica não podia chegar àqueles terrenos declinosos. O pai encarregava-se de fazer os feixes.
Endireitando-se, o Senhor Saxton descobriu-nos e chamou-nos para irmos ajudá-lo. Passamos por uma abertura da sebe e fomos ter com ele.
- Agora tire o casaco, disse-me ele. E, dirigindo-se a Lettie: Não nos trouxe de beber? Mau! Estão passeando, não é verdade? Veja lá o que é uma pessoa engordar! acrescentou, espetando a cara volumosa enquanto se curvava para atar as espigas. Era homem corpulento, vermelho, na força da vida.
- Ensine-me como é. Quero experimentar, pediu Lettie.
- Não, senhora, negou ele brandamente; iria esfolar os seus lindos dedinhos e dar cabo do espartilho. Ouça as minhas mãos, ajuntou, esfregando-as uma na outra; soam como lixa.
George, que estava de costas para nós, ainda não nos tinha visto, e continuava a ceifar. Leslie observava-o.
- Belo exercício, disse ele.
- Tem razão, assentiu o pai dos Saxtons, levantando a cara, muito corada, acima do feixe. O nosso George entretém-se deveras nisto. É bom para desentorpecer.
Caminhamos no meio das espigas ceifadas. Como o sol se tornara mais suave, George havia tirado o chapéu, e o cabelo preto, cheio de suor, enrolava-se em caracóis. Firmemente apoiado à terra, mexia o resto do corpo, da cintura para cima, com movimentos de grande beleza rítmica. À altura da anca, no cinto dos calções, pendia-lhe o passador da foice. A camisa desbotada, quase branca, mostrava um rasgão na cintura e deixava ver através dele os músculos das costas agitando-se como sobre a água de um regato. Aquele corpo elástico e harmonioso tinha qualquer coisa que atraía o olhar.
Falei-lhe, e George voltou-se, fitando logo minha irmã com um sorriso espontâneo e denunciador. Estava, nesse instante, realmente belo. Tentou dirigir-nos palavras de saudação; mas, não tendo conseguido formulá-las, agachou-se, apanhou um braçado de aveia e pôs-se a atá-lo sem cerimônia.
Lettie não achava também nada que dissesse. Foi Leslie quem quebrou o silêncio:
- Não há dúvida que isso é ótima ginástica.
- É, sim, confirmou o interpelado, continuando a trabalhar. Vendo que Leslie pegava na foice, acrescentou: - Vai transpirar e dar cabo das mãos.
O outro abanou a cabeça, tirou o casaco e perguntou: - Como se faz?
E, sem esperar resposta, começou a cortar as hastes mais próximas. George não respondeu, mas voltou-se para Lettie.
- Está pitoresco, disse ela, um pouco timidamente. A calhar para um Idílio.
- E você? inquiriu ele.
Minha irmã encolheu os ombros, riu e foi apanhar uma flor vermelha. Só então falou, indagando:
- Como é que se amarra isso?
Pegando numas poucas de hastes, George limpou-as e mostrou como se atavam. Em vez de dar atenção a isso, Lettie olhou para as mãos dele, grandes e vigorosas, enrubescidas pelo cabo da foice.
- Bem, me parece que não serei capaz, declarou ela.
- Não, confirmou o rapaz, com a maior naturalidade, enquanto espiava o trabalho de Leslie. Este, que estava sempre pronto para tudo, fazia
obra asseada, sem conseguir, todavia, os movimentos majestosos do lavrador.
- Aposto que vai ficar suado, disse George.
- Você não fica? perguntou Lettie.
- Um pouco, mas não estou vestido de ponto em branco. De repente, Lettie fez esta observação:
- Sabe uma coisa? Os seus braços dão-me tentações de lhes tocar. Têm uma cor morena, tão bonita! E parecem tão rijos!
George exibiu-lhe um braço. Ela hesitou; mas, de súbito, pôs as pontas dos dedos na pele morena, deixou-as correr um instante ao longo do bíceps e, retirando a mão de repente, escondeu-a na prega da blusa. O rubor subira-lhe ao rosto.
A gargalhada que ele soltou, lenta e retumbante, acariciou e exasperou ao mesmo tempo os ouvidos dos que a escutaram.
- Não desgostaria de trabalhar aqui, disse ela, espalhando a vista pelo cereal ceifado e pelo bosque envolto numa névoa azul. George seguiu seu olhar, e
tornou a rir devagar, com indulgência, com assentimento.
- É verdade! repetiu Lettie, exagerando a nota.
- Para você, volveu ele, enfiando a mão no peito da camisa e esfregando brandamente a ilharga, trabalhar ou estar quieta ê sempre um motivo de prazer.
A moça contemplou-o corno se esse homem, latejante de vida, fosse a mais bela criação da Natureza.
Nesse momento chegou Leslie enxugando a testa.
- Caramba! Fiquei suando.
George levantou-lhe o casaco, abandonado no chão, e, entregando-lhe, recomendou:
- Veja lá não se resfrie.
- Não há dúvida, respondeu o outro, que isto é um exercício de primeira ordem. Você deve ter a pele muito dura, acrescentou, ao ver o companheiro abrir um canivete e tirar com ele um espinho enterrado na mão.
Lettie não disse nada, mas recuou uns passos.
Saxton, contente com o pretexto que se oferecia de descansar e conversar, aproximou-se do grupo.
Cansou-se depressa, notou ele, rindo, a Leslie.
Mas George, nessa ocasião, deixou escapar um grito. Todos nos voltamos e vimos um coelho que irrompera de baixo dos feixes e que enfiava para a sebe, correndo e esquivando-se o melhor que podia. A seara ainda de pé, naquela encosta, ocupava cerca de cinqüenta passos de comprimento e uns dez de largura.
- Não esperava que houvesse algum aqui, declarou Saxton, lançando mão de um ancinho e brandindo com ele para o lado da vedação. Seguimo-lo sem demora. Ele, porém, recomendou que esperássemos, a fim de ver se as espigas mexiam.
Espalhamo-nos, então, em torno.
- Atenção, ali! bradou o lavrador, excitadíssimo. No mesmo instante apareceu outro coelho.
- Agarra, agarra! foi o grito geral. Todos nos pusemos em perseguição do fugitivo, que parecia desnorteado. Querendo escapar-se ao ataque de Leslie, que estava mais perto dele, o animal, mudando de rumo, esgueirou-se para a banda da colina, atravessando em ziguezagues o labirinto dos feixes colocados no terreno.
Cedo lhe faltaram as forças e George foi-lhe no encalço. O coelho ainda conseguiu meter-se entre umas palhas; o rapaz, contudo, não o perdera de
vista e, de aí a pouco, trazia-o na mão, pendurado pelas orelhas.
Regressávamos, transpirando e ofegando, ao limite da seara quando ouvimos Lettie chamar e vimos Emily e os dois irmãozinhos que se aproximavam de nós, vindos da escola.
- Outro! gritou Leslie.
As espigas ondularam. "Aqui, aqui!" exclamei eu. O animal saltou e despediu para a sebe. George e Leslie, que estavam nesse canto, arremeteram contra ele e fizeram-no mudar de curso. Eu o fiz encaminhar-se então para o lado de Saxton, que ainda o seguiu mas que era excessivamente pesado para a empresa. O coelho atirou-se para a cancela! Molie, com o chapéu na mão, veio sobre ele e conseguiu obrigá-lo a recuar.
Já cansado, o coelho enveredou no meio dos feixes, fugindo ao meu avanço. Se eu tivesse caído sobre a vítima, tê-la-ia apanhado, mas não pude fazê-lo a tempo, e o animal escapou-se por um buraco da sebe. George atirou-se e quase lhe punha a mão em cima. Mas era tarde. Estendido no chão, arquejante, George fitou-me com olhos em que se via a excitação e o esgotamento lutarem como um combate de luz e claridade. Quando pôde falar, perguntou-me:
- Por que você não se lançou em cima dele?
- Foi impossível, respondi.
Retrocedemos. As duas crianças espiavam agora também por entre as espigas não ovadas. A nossa impressão era de que não havia mais caça. George recomeçou na sega, e eu continuei a andar ao acaso: foi então que descobri um coelho emboscando-se num ponto afastado do terreno. As orelhas dele pareciam coladas ao dorso e a sua palpitação era tão agitada que se via a pele castanha subir e baixar; os olhos, muito vivos, fitavam-me cintilando. Embora o animal não me inspirasse compaixão, a verdade é que me encontrava desarmado e fiz sinal a Saxton, que logo acorreu e o atingiu com o ancinho. Ouviu-se um guincho que me impressionou como se eu próprio
tivesse sido atingido. O coelho, no entanto, escapuliu e, esquecido do grito lancinante, dei-me a perseguir a vítima, que parecia ferida.
Meus dedos, enrijecidos, negavam-se a tocá-lo. Leslie acudiu nesse momento, ansioso por matar.
Olhei para cima. As moças estavam na porteira, prontas a partir.
- Não há mais nenhum, sentenciou o lavrador. Mollie, naquele instante, deu novo alarma:
- Há um na toca!
Era buraco muito pequeno para que George metesse a mão, de forma que pusemos a cavar com o cabo do ancinho. O pau conseguiu alargá-lo suficientemente; aos nossos ouvidos chegou um guincho que nos sobressaltou.
- São ratos, disse George, ao mesmo tempo que o bicho se escapava. Alguém o atingiu logo com uma pancada - e, por toda a parte pularam filhotes.
Matamos a ninhada como quem mata insetos: contamos nove, ali estatelados no chão.
- Coitada! comentou o meu amigo, olhando para a ratazana. Teve tanto trabalho em criá-los!
Pegamos-lhe pelo rabo, observando-a curiosos e condoídos.
Aquele dia admirável começava a declinar. Para o lado do oeste o nevoeiro tornara-se mais azul, e o zumbido rítmico das máquinas, na mina distante, quebrava o silêncio do ar. Era a hora de largar o trabalho. Ao passarmos pelos campos, sentimos o mato zunindo como o murmúrio de uma cascata. Da terra elevava-se suavemente o cheiro das searas. E o último grito dos faisões veio da floresta, acompanhado do esvoaçar das derradeiras nuvens de pássaros. Peguei uma foice e, cansado mas satisfeito, desci com os outros em direção à granja. As crianças tinham partido à frente, levando consigo os coelhos mortos. Quando chegamos ao moinho, as moças levantavam-se da mesa. Emily começou a retirar os pratos e a lavá-los para nos servirem o jantar. Mal olhou para os recém-vindos e o cumprimento que nos dirigiu foi de simples cortesia. Lettie agarrou num livro que estava no assento da lareira e foi com ele para a janela. George deixou-se tombar numa cadeira, depois de haver tirado o casaco, e alisou o cabelo para trás; ficou depois silencioso, com os braços morenos estendidos sobre a mesa. De aí
a pouco esfregou a mão nos olhos e disse-me:
- Correr desta maneira cansa mais do que uma semana inteira de trabalho. Não seria capaz de repetir a proeza.
- O esporte é excitante enquanto dura, opinou Leslie.
- Isto faz mais mal, interveio a Senhora Saxton, do que o proveito que nos trouxeram os coelhos.
- Talvez não, mãe. Olhe que valem um par de xelins, retorquiu o rapaz.
- E um par de dias da tua existência.
- Que vale isso? disse ele, dando uma dentada num pedaço de pão com manteiga. Dá-nos chá, ajuntou, dirigindo-se à irmã.
- Não sei o que se pode esperar de gente bruta, murmurou Emily compadecida, trazendo o bule na mão.
- Ah, replicou George, comendo mais pão com manteiga, desta vez fui acompanhado nas minhas selvagerias.
- Os homens são todos selvagens, acudiu Lettie em tom fogoso, sem desviar a atenção do livro.
- Compete a vocês amansar-nos, observou Leslie, que estava de bom humor.
Minha irmã não respondeu. Foi George quem falou, numa entoação tão de conselheiro que enfureceu as senhoras:
- E as mulheres não fazem mal aos bichinhos mas gostam de utilizar suas peles nos vestidos.
Emily afastou-se, indignada. Lettie abriu a boca para responder, mas acabou por ficar silenciosa.
- O caso é que isso de matar sempre é desagradável, respondeu Leslie.
- Quando nos metemos nisto, retrucou George, é para ir até ao fim. Depois de sentir o cheiro do sangue, ninguém tem domínio de si...
- Parece-me horrível, declarou Lettie, andar atrás de um coelho a torturá-lo.
- Oxalá não tome gosto...
- Não há dúvida de que os homens são cruéis, disse Leslie, olhando de esguelha para minha irmã. São cruéis à sua maneira, repetiu, com outra olhadela e um sorriso irônico.
George voltou à carga:
- Para que vamos ficar com rodeios? Se nos agrada fazer uma coisa, havemos de pô-la em prática.
- Exceto se faltar a coragem, interveio Emily, cheia de amargura.
O rapaz ergueu os olhos para ela, subitamente encolerizado.
- Mas, disse Lettie, que não pôde resistir a fazer a pergunta, não acha que é coisa brutal - agora que você pensa dessa forma - correr atrás desses animais indefesos? Pareceu-me ato degradante, dos mais vis...
- Talvez seja, replicou ele, mas não o foi ainda há uma hora.
- Não tem sentimentos, concluiu minha irmã, desiludida. George riu, sem responder; mas o seu riso assemelhava-se a uma súplica.
Acabamos o chá em silêncio, minha irmã lendo e Emily andando na sala, de um lado para outro. George levantou-se e saiu. Minutos depois o ouvimos passar no pátio, com os baldes de leite cantando Alameda dos Freixos.
- Nada o faz ficar quieto, opinou Emily, cada vez mais desgostosa. Lettie olhou para o pátio, através da janela, pensativa. Parecia mal humorada.
Daí a instantes saímos também, antes que a luz de todo abandonasse o tanque. Emily levou-nos até ao quintal para colher algumas ameixas maduras. O terreno era baixo e escuro, coberto de ervas. As árvores estendiam os ramos sobre os passeios. Pouco mais produzia o quintal, a não ser alcachofras moles e abóboras balofas. Mas no fundo, onde se erguiam as construções da propriedade, altas e cinzentas, havia aquela ameixoeira encostada ao muro - a qual já rompera a escravidão e se expandia livremente; entre os seus ramos escondiam-se agora esplêndidos globos rubros, verdadeiros tesouros. Abanei o tronco velho e gasto, onde escorria seiva, e os frutos tombaram pesados, batendo nas largas folhas de ruibarbo que estavam por baixo.
Riram as moças, e nós dividimos o saque, com o que voltamos ao pátio. Depois descemos ao limite do jardim, que confina com o tanque. Este era rodeado de ervas enormes entremeadas de caniços grossos. Conforme nos prevenira Saxton, havia lá grande quantidades de ratazanas. Na margem fronteira, as árvores frutíferas desciam até a água, que vinha do tanque mais alto, através de um túnel.
À nossa aproximação, fugiram dois ratos para dentro da passagem subterrânea. Sentamo-nos, observando, sobre umas pedras musgosas. Então eles reapareceram, andaram um pouco, pararam, correram outra vez, puseram-se à escuta, tranqüilizaram-se, - e, emergindo em plena liberdade, meteram-se em toda a parte, arrastando as caudas peladas e compridas. Daí a pouco havia já seis ou sete, dos maiores, entretidos na boca do túnel, onde estava mais escuro. Muito calmos, esfregavam os focinhos aguçados e alisavam os bigodes. De repente, um deles, excitado, saltou verticalmente, torcendo-se no ar, e em seguida fugiu para dentro do buraco; outro lançou-se à água, com um mergulho pouco elegante, e nadou para o lado onde nos encontrávamos: parecia um diabinho, com a venta ponteaguda à superfície e os olhitos vivos faiscando. Lettie estremeceu, e eu atirei uma pedra ao tanque, assustando assim toda a súcia de roedores. Mas nós estávamos ainda mais assustados, de maneira que resolvemos partir. Em poucos instantes chegamos ao pátio.
Leslie acolheu-nos intrigado. Durante esse tempo, visitara as provisões de Saxton, acompanhado pelo proprietário.
- Fugiram de mim? inquiriu ele.
- Não, replicou minha irmã. Fui buscar ameixas. Olhe! E mostrou-lhe duas, no mesmo raminho.
- São bonitas de mais para comer.
- É que você ainda não provou.
- Vamos, retorquiu Leslie, oferecendo-lhe o braço. Vamos até à lagoa.
Lettie aceitou o convite.
A noite estava esplêndida, e as águas tranqüilas tinham reflexos amarelos, quase espessos. A pedido de minha irmã, Leslie sentou-se num ramo baixo de salgueiro, e encostou a cabeça nos joelhos. Emily e eu continuamos a passear; mas a voz de Leslie
chegava-me aos ouvidos, num murmúrio. Lettie respondeu na sua toada carinhosa.
- Não... fiquemos sossegados... está tudo tão calmo... É o que mais aprecio agora.
Conversando, Emily e eu sentamo-nos por fim no tronco dos alamos, um pouco mais além. Depois de umas horas de excitação, à noite - e em especial pelo Outono - somos inclinados à melancolia, ao sentimentalismo. A pequena distância, sussurrava a fala de Lettie e aquilo era como o rumor de um inseto voando. Longe, no pátio, George começou a cantar a velha canção "Espalha a semente do amor".
Isto interrompeu a voz alada de minha irmã. Com a aproximação do cantor, acabou de todo esse som de palavras em tom de confidencia. Fomos ao encontro de George. Leslie endireitou a cabeça, ergueu os joelhos, mas não falou. O filho dos Saxtons estava defronte de nós e dizia:
- A lua não está nascendo.
- Ajude-me a saltar daqui, pediu minha irmã a Leslie, estendendo as mãos para ele segurá-la. O interpelado levantou-se; mas, fazendo-se desentendido, passou-lhe os dedos debaixo dos braços e arrumou-a melhor no assento, como se ela fosse uma criança; mostrava-se ressentido com aquela intrusão do lavrador.
- Julgava encontrá-los todos juntos, notou George, sem se exaltar.
Lettie achou necessário dar logo uma explicação:
- E estamos, na verdade. Agora somos cinco. É ali que a lua vai aparecer?
- Ali mesmo, confirmou Emily. Gosto tanto de a ver surgir, acima da floresta! Ergue-se devagar, e olha para nós: penso sempre que ela quer qualquer coisa e que eu tenho uma resposta para lhe dar. O pior é que não sei qual seja...
A leste, onde o céu estava mais pálido, sobre os confins do bosque, apareceu a ponta de uma lua amarelada.
Admiramos em silêncio, e o disco tornou-se cheio, perfeito, mergulhando-nos num banho de luar. Lettie agitava-se de contentamento; Emily perturbava-se de melancolia, abrindo os lábios, num rogo... Leslie franzia a testa, distraído; George refletia, e os raios de luz enredavam-se-lhe na imaginação. Por fim, Leslie chamou-nos à realidade:
- Vamos. E tomou o braço de minha irmã.
Lettie deixou-se conduzir ao longo da margem e depois sobre a ponte de madeira.
Quando descíamos cautelosamente a escarpa íngreme do pomar, ouvimos a voz de minha irmã:
- Sinto vontade de rir e de dançar, de fazer escândalo...
- Esperamos que não o faça, acudiu o seu admirador, aborrecido.
- Sim, sim, vou atirá-lo à água!
- Sossegue! intimou ele, agarrando-a pelas costas.
Ao chegar à porta que dá para o relvado, acrescentou umas palavras em voz baixa e empurrou a cancela. Suponho que lhe fez propostas definitivas, esperando obrigá-la a tomar um compromisso. Mas ela libertou-se e, vendo a extensão da relva onde a lua punha sombras largas, exclamou:
- Uma polca! Com a erva assim macia e curta pode-se dançar uma polca. Não importa que haja folhas de árvores pelo chão. Que bom, que bom!
Estendeu a mão a Leslie; foi, todavia, muito brusca a mudança para que ele aceitasse. De modo que chamou por mim, com um tom de ansiedade em que se notava o seu receio de ser apanhada nas malhas do sentimento, com uma noite daquelas...
- Cyril, dance comigo. Leslie detesta a polca.
Dancei com minha irmã. Esses passos eram instintivos em mim, como coisa inata. Voamos em redor do campo, levantando as folhas mortas. A noite, a lua tão próxima, o firmamento, os ramos das árvores, tudo nos envolvia de sobrenatural. Ninguém seria capaz de extenuar Lettie quando ela dançava: seus pés
dirse-iam asas batendo no ar. Quando por fim parei, ela riu-se, mais fresca do que nunca, e pôs-se a endireitar o cabelo.
- É delicioso! disse, satisfeita, falando agora com Leslie. Venha experimentar.
- A polca, não, respondeu ele com acento triste, achando que esses compassos frenéticos não estavam de acordo com a poesia dos seus sentimentos.
- Mas na relva úmida não se pode dançar outra coisa, demais a mais com estas folhas caídas... E você, George?
- Diz Emily que eu pulo demais.
- Não faz mal.
Num abrir e fechar de olhos, Lettie e George principiaram a polcar em desmedida velocidade, o que fez com que tombassem ambos no chão. O rapaz ergueu-se logo, levantou-a e recomeçaram num giro irresistível e tremendo. Emily e eu juntamo-nos ao baile. De vez em quando eu tinha a sensação de algo muito branco a flutuar perto de mim, com um rumor de saias alvoroçadas. Já estávamos cansados, e eles ainda se mantinham em plena dança. Quando terminaram, George apareceu com ar de triunfo, nervoso, forte - e ela divertida como uma bacante. Compreendera que, por essa noite, se encontrava livre do pedido de casamento.
- Já pôs ponto final? inquiriu Leslie.
- Já, respondeu Lettie, arquejando. Devia ter dançado também. Agora faça favor de me passar o chapéu. Por que está assim tão macambúzio?
- Macambúzio? repetiu ele.
- Ou, pelo menos, solene. Que sucedeu?
- Pergunta-me o que sucedeu?
- Isso é da lua. Veja: tenho o chapéu bem colocado? Mas olhe para mim! Então endireite-o. Mais. Ah, que mãos frias! As minhas, pelo contrário, estão quentíssimas. Desculpe todas estas travessuras. Estou pronta. Já reparou como estes crisântemos têm um cheiro tão fúnebre? Olhe a lua
a rir e a piscar os olhos através daqueles ramos. Que tem ela a ver com a tristeza dos crisântemos? Agarrou num punhado de pétalas e atirou-as ao ar
-Girem! Não quero melancolias. Gosto dos seres alegres, rudes, impetuosos!

 

CAPÍTULO 6

 

Como já disse, Strelley Mill fica no extremo norte do extenso vale de Nethermere; na encosta dessa banda jazem os seus terrenos aráveis e os seus pastos. O baldio, agora recinto fechado - visto pertencer à propriedade - ocupa a vertente ocidental. A terra cultivada confina com o curso impetuoso do ribeiro, depois com a linha das matas e finalmente com o tanque superior. Para além, a leste, ergue-se o aclive bravio, salpicado de ervas, de árvores antigas e dos espinheiros que fazem de
sebe. Ao longo da orla das colinas, a começar pelo nordeste, estão os bosques sombrios, que descrevem uma curva pelo sul e leste e descem sem governo até a margem de Nethermere, circulando a nossa casa. Da crista do monte oriental, olhando em frente, vê-se a agulha da torre na igreja de Selsby, alguns telhados e torres da mina de carvão.
O proprietário da fazenda, vasto domínio feudal, descendia de uma família antiga, outrora ilustre, mas atualmente decaída do seu esplendor. Ao contrário dos bens, que haviam diminuído, a árvore genealógica ramificara-se de maneira espantosa: já não era um simples roble inglês,
mas uma figueira-da-índia. Como haveria o bom
do homem de alimentar tanta gente com tão magros rendimentos, sem prejuízo do seu nome e das suas tradições? Quis o destino que os inúmeros coelhos, de que havia tocas por toda a propriedade, lhe indicassem a forma de subsistência; vendendo cada animal por cerca de um xelim, em Nottingham, estaria resolvido o magno problema.
Aqueles roedores espalhavam-se por toda a granja. Os cereais e a erva desapareciam da face da terra. O gado emagrecia, sem pasto onde se alimentar. Sem mugidos de vacas nem ladrar de cães, a herdade ficou transformada num ermo silencioso, por onde errava Halkett, o guarda-florestal.
Mas o dono adorava os coelhos e defendia-os contra os estratagemas do seu arrendatário, que andava desesperado. Protegia-os com a sua autoridade e com ameaças de despejo, e regozijava-se ao ver a chusma parda daqueles bichos daninhos movendo-se pelas encostas da colina.
O guarda sorria, flemático. E o fidalgo e um seu amigo apreciador do esporte percorriam de manhã as terras, ambos de espingarda na mão. Estava estabelecido que mais ninguém poderia usar ali armas de fogo.
Entretanto, Strelley Mill começava a mostrar as conseqüências daquela praga. Saxton queixou-se e o senhorio respondia que ele lhe arrendara tudo aquilo por uma ninharia. A soma recebida era absurda - portanto, deixasse os coelhos comerem à vontade! Discutiram, ingerindo whisky e o fidalgo acabou a conferência prometendo que teria uma conversa com Halkelt, para ver se arranjavam solução para o caso.
Nasci em setembro, e tenho uma ternura especial por este mês. Não há calor, nem confusão, nem sede, nem cansaço no corte das searas como sucede no tempo do feno. Se as colheitas se fazem tardiamente, como é comum entre nós, só em meado de setembro é que ficam prontas as medas. Amanhece devagar. A terra é como uma mulher casada que desperta cheia de languidez; não se levanta de um pulo aos primeiros beijos da alvorada, mas lentamente, sossegadamente, vendo chegar sem alvoroço cada novo dia da sua vida. As névoas azuis, como as reminiscências nos olhos da esposa preguiçosa, nunca se erguem da colina arborizada, e só ao meio-dia se afastam,
arrastando-se, das sebes mais próximas. Não há pássaros que façam soltar trinados da garganta da manhã; e, durante o dia, a única voz de ave que se escuta é a do corvo. Sente-se, é claro, a respiração regular e tranqüila das foices e o sussurro impertinente de segadora mecânica; mas, no dia seguinte, às primeiras horas, tudo está outra vez
silencioso. As espigas aparecem úmidas e, quando as amarramos e as erguemos para formar as moreias, aquelas paveias aconchegam-se macias e ficam melancolicamente pendidas.
Enquanto eu trabalhava com o meu amigo, naquelas manhãs calmas, conversava com ele e ensinava-lhe tudo quanto sabia a respeito de química, botânica, psicologia. alava-lhe da vida, do sexo e da origem dos seres, de Schopenhauer e de William James, do que aprendera com os meus professores. Companheiros de longa data, estávamos habituados um ao outro, e ele ouvia-me com atenção. O outono estreitava mais ainda a nossa intimidade. Desta vez levantei o assunto da poesia e ministrei-lhe rudimentos
de metafísica. George era bom terreno para as sementes que eu lançava. Não tinha dogmas, exceto no que respeitava a fazer as coisas a seu modo. A religião não o interessava. De modo que ouvia as minhas lições com espírito desempoeirado, compreendendo tudo rapidamente. Depressa as minhas idéias se tornaram suas também.
Regressávamos para almoçar em mangas de camisa: a tepidez da atmosfera constituía o nosso único abafo. Nesses momentos é coisa grata gozar-se uma camaradagem como aquela. Em tudo o outono punha a sua marca, desde os frutos, que amadureciam nas árvores, até as conversas que se estabeleciam à mesa e em que as vozes eram mais suaves e mais saudosas do que as da época do feno.
A tarde é morna e dourada. Os feixes de aveia parecem leves e, ao cair uns sobre os outros,
dir-se-ia que murmuraram segredos. O restolho fica a tinir quando os pés o sacodem. Ao levantarmos os molhos, soltam-se raminhos de silva que haviam ficado presos debaixo daqueles, e reparamos
que, nos caules dilacerados das dedaleiras, pendem ainda as últimas campânulas.
Falamos do povo, das nossas esperanças, do futuro - e do Canadá, onde o trabalho é inumano; onde as planícies são extensas e a gente não vive entalada num vale como um fruto que tomba num pomar exíguo.
A névoa insinua-se na languidez da tarde. Os feixes estão já atados e só falta erguê-los em medas. No poente, o sol descai entre um clarão de ouro; o ouro torna-se vermelho o vermelho escurece como um fogo a consumir-se rasteiro. Por fim tudo desaparece por trás de uma coluna de nevoeiro leitoso e purpureado como a flor pálida
das ameixoeiras.
Visto o casaco e volto para minha casa.

À noite, depois de ordenhadas as vacas, íamos espreitar as armadilhas colocadas aqui e ali. Atravessávamos o ribeiro e subíamos a vertente do monte, roçando as botas nas manchas negras das escabiosas e ladeando as cardos, cuja penugem cintilava ao luar, e tropeçando sobre montículos de terra levantados pelas toupeiras, entre a erva úmida e grossa. As colinas e os bosques estendiam as suas sombras; os lagos de névoa, no fundo dos vales, absorviam a luz trêmula e fria dos astros.
Alcançamos uma vez a velha quinta que se ostenta no cume do monte. As árvores haviam-na abandonado, deixando uma clareira enorme onde outrora existira um jardim. A minha admiração foi atraída para as janelas, onde não se descobria nenhuma luz, embora passasse pouco das oito horas. Reparando melhor no frontispício extenso e imponente, verifiquei que algumas dessas janelas tinham sido entaipadas, o que dava a desagradável impressão de um rosto cego. No meio daquela escuridão pareciam ainda mais negros os sítios onde a argamassa caíra.
Empurramos o portão e seguimos pelo passeio repleto de ervas e de plantas secas. Espiamos um quarto, que tinha também janela para o outro lado, através da qual o luar punha faixas brancas no chão lajeado, sujo de papéis e de feixes de palha. O fogão sobressaía à claridade, vendo-se montes de cinzas, restos de jornais queimados e uma boneca sem cabeça, em grande parte reduzida a carvão. A um canto via-se um boné de peles, que devia ter pertencido a um guarda de caça. Lastimei que o luar
devassasse o aposento: só a escuridão seria digna de reinar ali. Como tudo isso me entristeceu! - o fogão, as rosinhas no papel da parede...
Levado pelo seu instinto de lavrador, George foi visitar as dependências. O pátio surpreendeu-me, tão coberto estava de urtigas, altas como eu nunca vira, e o ar que se respirava denunciava-as imediatamente. Segui o meu amigo pelo estreito passeio de tijolos, e continuei a sentir arrepios. Dentro, porém, as construções apareceram-nos razoáveis em matéria de conservação: é que haviam sido restauradas várias vezes. Tinham bons vigamentos, eram confortáveis e apresentavam-se mais ou menos limpas. Aqui e ali encontramos penas de galinha e restos de um esqueleto de gato, conforme examinamos à luz de um fósforo. Ao entrarmos no estábulo, ouvimos ruído e logo avançaram, ameaçadoras, três enormes ratazanas. Recuei, tremendo, e tropecei num balde esburacado e enferrujado, de onde espreitavam ervas.
Depois houve um silêncio horrível, quebrado apenas pelo rumor que faziam os ratos e alguns morcegos a voar. Não dei com vestígios de cereais, palha ou feno: só ervas em pleno desenvolvimento... Depois de me encontrar em liberdade, no pomar, o meu tremor ainda continuava. Entre nós e o céu não se interpunham frutos: os pássaros os derrubaram e os coelhos os devoraram. Ou alguém procedera a uma colheita deles, por sua conta e risco.
- Nisto, murmurou George, com amargura, nisto é que o moinho há de se transformar.
- Depois da tua morte, retifiquei.
- Nunca chegarei a dirigir a fazenda. E meu pai pouco agüentará nela, com estes coelhos todos e outras complicações. O que fazemos não chega
a ser lavoura, dependente de tantas coisas atualmente, somos um misto de agricultores, de leiteiros, de hortelões, de transportadores. Tristes ocupações...
- Precisa viver, retorqui.
- De acordo, mas é estúpido. E o pai não se mexe, não transforma os seus métodos!
- E você?
- Eu? Para que hei de mudar? Estou bem em casa e, quanto ao futuro, deixo-o entregue a si mesmo enquanto ninguém precisar de mim.
- Laissez faire... rematei, sorrindo.
- Não é laissez faire, replicou ele, olhando em volta, é puxar o leite das tetas e deixá-lo correr. Repara!
Através do véu diáfano do luar que deslizava sobre a encosta podia-se ver vários exércitos de coelhos, ora avançando ora parando para comer desaforadamente.
Demos uns passos em direção à colina e eles espalharam-se logo. Aproximamo-nos da valeta que limita os campos do moinho. Então George soltou um grito e correu. Segui-o, e nessa altura descobri o vulto escuro de um homem que se levantava da sebe. Era o guarda. Fingia estar examinando a espingarda e, na ocasião em que chegamos junto dele, saudou-nos com voz calma: "Boa noite!"
George pôs-se a investigar a abertura existente na sebe, e disse:
- Está preocupado com aquele buraco...
- Sim, gostaria de saber o que pretendem, volveu o homem, que era corpulento e mal-encarado.
- Pode ver com os seus olhos... Tire a armadilha... e o coelho, respondeu George, de mau humor.
- Coelho? repetiu o guarda, voltando-se para mim com ar trocista.
- Sabe muito bem... Pode tirar... e então...
- Então o quê? Olhe que não me assusta!
George deu um passo em frente e cresceu para o homem, já fora de si.
- Cuidado! continuou o outro, medindo o meu amigo de alto a baixo. É melhor retirar-se... retiraram-se ambos. Não consinto que toquem na armadilha nem no coelho.
George fez um movimento súbito para agarrar o homem pelo casaco. Mas caiu logo de costas, derrubado com uma pancada forte junto da orelha esquerda.
- Grande besta! exclamei, quebrando o punho no queixo do agressor.
Quando dei por mim estava também por terra, e, com a vista ofuscada, ainda vi os calções de veludinho do guarda girando-me em torno da cabeça.
O homem desaparecera. Levantei-me, e levei a mão ao peito, ao lugar onde me doía. George ficara estirado junto da sebe. Dirigi-me a ele e esfreguei-lhe as fontes com ervas molhadas. O meu amigo abriu os olhos, fitando-me com ar esgazeado; depois, respirando com dificuldade, passou a mão pela testa.
- Aturdiu-me, não há dúvida!
- Inferno! bradei.
- Não esperava isto... Ele é que me atirou ao chão?
- E a mim também.
Por algum tempo, George conservou-se silencioso. Em seguida, tateando a cabeça, murmurou: - Ainda me dói. Tentou pôr-se de pé, sem o conseguir. - Meu Deus, ser reduzido a este estado por um reles guarda!
- Vamos retorqui. Experimentemos voltar para casa. O meu amigo acudiu logo:
- Convém que não saibam nada do que se passou.
Por meu lado, pensava na dor que sentia no peito e procurava recordar-me do murro que atirara ao queixo do vigia. - Se quebrei os dedos, disse com os meus botões, não dou por mal empregado o gesto. Levantei-me e ajudei George. A princípio, ele pendeu sobre mim. Depois já foi capaz de andar, mas com passos desencontrados.
- Estou enlameado? perguntou-me.
- Não muito, respondi, impressionado com o tom de pudor ofendido com que ele me falava.
- Limpe-me as costas.
Fiz o melhor que pude. Durante algum tempo seguimos através dos campos, tristes e calados.
- Mais tarde, já à beira da lagoa, fomos sobressaltados por umas enormes sombras sibilantes que passavam por cima da nossa cabeça. Eram os cisnes que procuravam abrigo, pois o vento frio começara a agitar Nethermore. Por cima das águas abaixavam-se e subiam continuamente, despedaçando o luar, e o ar repercutia o som daquelas asas que haviam desfeito o silêncio da noite. Ao entrarem na sombra, os cisnes ficavam tenebrosos como espectros.
O vento punha-nos arrepios em todo o corpo.
- Não dizes nada do que se passou?
- Não.
- A ninguém?
- A ninguém.
- Boa-noite.

Pelos fins de Setembro a nossa região foi alarmada: cães, vindos não se sabe de onde, começaram a devastar os rebanhos!
Certa manhã, um proprietário local, ao dar uma volta pelas suas terras, encontrou, cheio de horror, duas das suas ovelhas mortas, com o corpo dilacerado, junto de uma sebe. Os restantes animais haviam-se agrupado num canto, transidos de medo. Alguns tinham manchas de sangue na lã. Durante dias o proprietário andou amargurado com o desgosto que isso lhe causara.
Houve quem dissesse ter visto dois cães escuros, de aspecto feroz. O guarda do Doutor Collins ouvira uivos por volta da alvorada. Quando o pastor foi ver o rebanho encontrou três ovelhas banhadas em sangue.
Os lavradores deram então rebate. O dono da granja de White House tinha resolvido guardar o gado no redil, com os cães à porta. Mas, como era sábado, os pastores foram ver o teatro ambulante que fizera paragem em Westwold. Enquanto eles assistiam, boquiabertos, ao espetáculo, vendo as personagens morrer com muitas convulsões, a quererem falar sem conseguir articular palavra - seis das ovelhas daquela propriedade eram chacinadas no campo.
Indagou-se por toda a parte se havia ficado algum cão fora nessa noite. Ninguém respondeu afirmativamente.
Saxton possuía trinta ovelhas no terreno baldio, e George pensou que o mais simples e fácil seria dormir lá. Para esse fim construímos, ele e eu, um abrigo de canas entrelaçadas de ramos de silva, que durante a tarde, enchemos de braçados de grama. George dormiu ali naquela semana, com grande aflição da mãe - que ia esperá-lo de madrugada, no frio, com o avental cobrindo a cabeça. Não podia admitir a idéia de que o filho passasse a noite naquele lugar.
Por isso, no sábado, trouxe ele os cobertores para casa e levou Gyp para a cabana, a fim de o substituir na vigia. Acompanhei-o nessa ocasião e estivemos uns momentos a admirar as estrelas, que cintilavam sobre a escuridão da colina. De vez em quando uma ovelha balia, ou era um coelho que passava entre o matagal - e Gyp logo dava alarma.
O novoeiro arrastava-se pelas urzes e pelas sarças, onde as teias de aranha pareciam de prata. George, sentado fora do abrigo, disse-me então:
- Vi passar hoje dois tipos, com sacos e cordas.
- Deviam ser caçadores furtivos, disse. Falou com eles?
- Não. Não me viram. Eu estava dormindo quando um coelho entrou pelo cobertor, fugindo a um cão que o perseguia e a quem dei uma pancada que o fez ganir. O coelho ficou muito tempo junto comigo e depois fugiu.
- Que parece isto tudo?
- Não sei nem me importa.
Papai poderá arranjar-se sem mim e mamãe tem os outros filhos. O meu desejo é emigrar.
- Por que não foi?
- Ora, há tantas coisas que nos retêm em casa! Além disso, na pátria, sempre se é alguém, ao passo que no estrangeiro...
- No entanto, quer partir.
- Como é possível ficar? O vale está tornando-se bravio. Não produz nada. Por outro lado, não pode se dizer o que quer, e tudo continua sempre na mesma. É impossível fazer qualquer mudança: para qualquer parte onde se olhe, perde-se a vontade de pensar em coisas novas. Que há aí que mereça a pena?
De que vale a minha vida?
- O aconchego do lar não é nada que se despreze. George não respondeu.
- Que o leva a abandonar o ninho?
- Ao certo, não sei. Desde aquela questão com o guarda que não me sinto como era. Até Lettie me disse: Aqui não pode viver à sua vontade. É como um dos mosaicos de mármore do vestíbulo, tem que jogar certo com os outros. O pior é que você não deseja ser nenhum mosaico; pelo contrário, quer imiscuir-se na vida, fundir-se nela... Acredite sua irmã falava muito sério.
- O que ela diz não se escreve. Quando é que a encontrou?
- Veio na quarta-feira, de manhã, quando eu estava apanhando maçãs. Subiu comigo na árvore. Como soprava muito vento - e por isso é que resolvi apanhar os frutos - os ramos balançavam muito. Eu subi ao mais alto e Lettie ficou um pouco abaixo, segurando o cabaz. Como lhe perguntasse qual achava ser a melhor espécie de liberdade, é que ela me deu aquela resposta.
- Devia tê-la contrariado.
- Achei que era verdade.
- Que diabo! Parece-me esquisito.
- Não, sua irmã viu bem. Considera-me, ao que parece, uma espécie de pastelão...
- Mostrou-lhe que não era assim.
- Para quê? Sou isso mesmo.
- Dá a impressão de que está apaixonado. George riu-se, e declarou:
- Não, isso não. Mas é uma tristeza verificar que não tenho nada de que me orgulhe.
- Não conheço essa linguagem.
Arrancando punhados de ervas, com ar meditativo, o meu amigo respondeu assim à pergunta que fiz em seguida, quanto à época da sua partida:
- Ainda não sei. Por enquanto não disse nada à mamãe. Nunca será antes da primavera.
- Acontecerá qualquer coisa antes...
- O quê?
- Qualquer coisa decisiva.
- Não adivinho o que possa acontecer, exceto um despejo por parte do senhorio.
- Está na sua mão provocar os acontecimentos.
- Não brinque comigo, Cyril.
Gyp deu um pulo nesse momento, puxando a corrente com força para ver se conseguia acompanhar-nos. No mato, as ovelhas conservavam-se em repouso e eram manchas brancas no escuro da colina. Junto do chão arrastava-se a névoa fria.
- Apesar disso, Cyril, ter uma mulher que nos sorria à mesa; ouvi-la cantar enquanto arruma a casa, e à noite, antes de nos lavarmos... quando o
fogão está quente e nós estamos cansados ... Vê-la assim de perto, no aconchego do lar, falando com doçura...
- Castelos, George.
Sem fazer caso do meu comentário, ele tornou a rir-se e acrescentou:
- Sabe? Quando eu estava colocando os feixes e abraçando os maços, tive a impressão de que abraçava uma mulher. Foi uma sensação inesperada.
- Cuidado não vá se perder na rede dos sonhos. Sempre risonho, sem ligar as respostas, George continuou:
- Sonhando, o tempo voa. As manhãs passam num abrir e fechar de olhos.
- Meu Deus! Por que não esquece tudo isso em vez de insistir em tantas fantasias?
- Se o sonho é belo, por que não o havemos de prolongar? Com isso, terminou suas confissões. E eu voltei para casa. Fiquei na janela, a olhar para a paisagem procurando tirar o caso a limpo. O nevoeiro pousava nas águas de Nethermere; dir-se-ia uma dança de fantasmas sobre a lagoa. Antevi o tempo que meu amigo não estaria mais seguindo a grade da lavoura
ao longo do vale, e que a porta do quarto de Lettie estaria fechada para esconder a tristeza da sua desolação, e senti calafrios ao pensar nesse vácuo ameaçador que pesava sobre nós. Como poderia eu suportar tamanho isolamento? Que faria minha irmã?
Levantei-me cedo no dia seguinte, quando a claridade penetrava trêmulamente na floresta. A lua ainda era visível nas bandas de oeste. Saí. Morriam os últimos restos do verão e o mundo parecia diminuído desde aquela manhã. Já o cheiro do outono caía pesado e úmido das árvores. As folhas secas obstruíam os passeios.
Ao aproximar-me da herdade ouvi latidos; e, correndo, alcancei o baldio, onde encontrei o rebanho dividido em grupos e qualquer coisa que saltava pelo meio deles.
George apareceu também correndo. Repercutiu o tiro de uma espingarda. Peguei uma pedra e continuei correndo. À minha frente fugiam três ovelhas espavoridas: à luz indecisa do alvorecer, ainda vi as suas sombras alvacentas perderem-se no meio das urzes. Pulou um cão nesse momento e eu atirei-lhe a pedra com quanta força tinha. Atingi-o, porque o animal soltou um ganido lancinante; como ele escapava, fui no seu encalço, esquivando-me das sarças e saltando por cima das plantas rasteiras.
Os tiros continuavam; ouviam-se também gritos de homens excitados. O cão perdera-se de vista, mas eu segui sempre, descendo a colina. Num campo adiante notei alguém correndo. Galguei a sebe, que era baixa, e reconheci o vulto de Emily que dava largas passadas sobre a erva úmida. Mais tiros e mais gritos. Emily olhou em volta, deu comigo e disse, arquejante:
- É na pedreira.
Caminhamos para lá, sem dizer uma palavra. Ladeamos o bosque, acompanhamos o curso do rio e chegamos por fim ao local.
Havia agora árvore no lugar das antigas escavações; e as paredes escarpadas, de grande profundidade em alguns pontos, tinham desmoronado, sendo muitas das pedras arrastadas. Descemos a margem e entramos na pedreira pelo leito do rio. Junto aos troncos dos freixos e dos carvalhos brilhavam primaveras pálidas, pendendo frouxas
para as águas que corriam ocultas. Emily encontrou vestígios de sangue num belo renque de bons dias amarelos. Seguimos esses traços até onde o ribeiro deságua em fundo áspero e rochoso e o chão da pedreira não é mais do que um emaranhado de sarças e madressilvas.
- Arranje uma pedra, aconselhei, enquanto nos comprimíamos na passagem estreita e a água deslizava silenciosa debaixo dos ramos dos arbustos e dos cabelos desgrenhados das ervas. Pesquisamos todo aquele abrigo, quase até a estrada. Palpitava-me que o cão estivesse ali: ouvi como que um rosnar, seguido de gemidos. Quebrei uni galho de sorveira e, avançando sempre, fomos ter no lugar dos velhos fornos de cal.
Na boca de um desses fornos, Emily caiu, ficando ajoelhada junto de um cão. Os movimentos que o animal fazia eram os espasmos da morte; revirava os olhos e mostrava os dentes, nas vascas dá agonia. Emily, segurando-o pela garganta, puxou-lhe â cabeça para trás.
- Morreu! exclamei. Chegou a feri-la? Empurrei-a para um lado e ela estremeceu, como se tivesse horror de si mesma.
- Não, não, respondeu, olhando para os braços e para a saia, onde havia marcas de sangue.
A minha pedrada atingira o cão, e Emily, ajoelhando, sujara-se na ferida.
- Mordeu-a? insisti, ansioso.
- Não. Limitei-me a observá-lo e ele ainda se levantou. Bati-lhe então com a pedra, mas perdi o equilíbrio e caí.
- Deixe-me lavar-lhe o braço.
- E horrível, não acha?
- O quê? perguntei, ocupado já a procurar-lhe água no ribeiro.
- Toda esta história...
- Devia-se queimar isto, sugeri, olhando para o ferimento que lhe encontrei no braço.
- Este arranhão? Não é nada! Veja agora se consegue limpar-me a saia. Sinto-me repugnada.
Com o lenço molhado lavei-lhe o melhor que pude, insistindo:
- Deixe-me queimar-lhe essa ferida. Podemos ir às valas. Consinta nisso... é o seu dever... Doutra maneira não fico descansado.
- Acha que sim? retorquiu ela erguendo a vista para mim com um sorriso a esboçar-se nos belos olhos negros.
- Sim... vamos lá.
- Ah! Ah! riu ela. Que ar tão grave!
Toquei-lhe no ombro e impeli-a para diante. Emily enfiou o braço no meu e inclinou-se para mim.
- Tal qual Lorna Doone, disse ela com expressão divertida.
- Sim, mas deixe-me fazer-lhe o que pedi, repliquei eu, referindo-me à cauterização.
- Está bem; mas vai-me doer... Ui! Nem quero pensar nisso. Dê-me algumas dessas flores.
Apanhei um cacho de flores de viburno, com bagas rubras e translúcidas. Emily chegou-as às faces e aos lábios, acariciando-as. E murmurou:
- Sempre desejei pôr flores vermelhas no cabelo.
Tinha o xale sobre os ombros e a cabeça descoberta. Os cabelos, pretos, macios, curtos, envolviam-na caprichosamente. Não seria fácil segurar aí, durante muito tempo, os frutos carnudos do viburno, embora ela enfiasse os pezinhos deles nos dentes das travessas.
Já com os cachos a cintilarem-lhe entre os caracóis, ela fitou-me, de olhos muito abertos. Correspondi ao seu olhar, è vi que ela esboçava um sorriso triunfante. Então, puxando da sebe um galho de bons-dias, arranquei-o e torci-o em forma de grinalda.
- Vou coroá-la, disse eu. Ela, rindo, desviou a cabeça.
- O quê! retorquiu, pondo na exclamação toda a temeridade da sua alma ansiosa.
- Não será Cloé nem Bacante. A sua alma reflete-se nos olhos, ardente e perturbada.
O riso esmoreceu de súbito e ela mirou-me outra vez séria e suplicante.
- É antes como uma donzela de Burne-Jones. Nos seus olhos acumulam-se sombras e você não as expulsa. Você pensa que a polpa da maçã não é nada e só se preocupa com as sementes. Por que não a morde e a come, deitando-as fora?
Emily observou-me com ar triste, sem compreender, mas crendo que eu, na minha sabedoria, falava verdade, como achava sempre que se transviava no labirinto das minhas palavras. Inclinou a cabeça, caiu-lhe a grinalda e só ficou um cacho de bagas. Em redor de nós, no chão, espalhavam-se castanhas de faia, de envolta com folhas secas de tons de ouro. Emily apanhou alguns desses frutos.
- Gosto disto, declarou ela, mas faz-me lembrar tanto a infância que sinto vontade de chorar. Ir buscar castanhas antes do almoço, enfiá-las num colar... fazer inveja às outras pequenas, na escola! Sentia tanto gosto em possuir um colar desses como hoje sinto prazer com o Outono - com a diferença de não haver tristezas à mistura. Depois de se crescer já não se experimentam alegrias puras.
Enquanto falava, Emily ia apanhando mais frutos, curvada para o chão.
- São apenas ouriços ou têm dentro alguma coisa? perguntei.
- Duas ou três completas. Tome-as. Não quero para mim.
Despi o invólucro espinhoso de uma delas e devolvi-a. Emily abriu a boca para comer, sem deixar de me olhar. Há pessoas que, em vez de se acompanharem de esplendores, arrastam consigo nuvens de tristeza. Possuem o condão de ver tudo negro, e proclamam que só o pesar é que é real. Anjos sombrios para quem a dor é bela e constitui a suprema felicidade. Isso mesmo se lê nos seus olhos,
se depreende das suas vozes. Emily era assim. Fascinava-me e ao mesmo tempo fazia-me sentir revoltado.
Seguimos o caminho sombreado de faias antigas. Adiante descia a encosta coberta de cardos e de ervas ásperas. Depressa tivemos vista do lugar das valas, que foi teatro de tanta animação no tempo de Lord Byron e agora estava deserto, rodeado de espesso matagal. As vidraças da casa desapareciam sob o pó acumulado: já não havia necessidade de protegê-las contra o gado, os cães ou os homens. Uma das três casas era habitada. Fora, junto da porta, caía água límpida sobre uma pedra enorme, gotejando de uma bica.
- Espere, disse eu a Emily, deixe-me abotoar-lhe as costas do vestido.
- Abriu? disse ela rapidamente, olhando por cima do ombro e corando.
Enquanto eu desempenhava esse trabalho, saiu do prédio uma moça que trazia nas mãos uma chaleira e uma xícara. Ficou tão admirada de me ver naquela ocupação que se esqueceu do que ia fazer e parou boquiaberta.
- Sara Ann! gritou uma voz, do interior da casa. Vem fechar a porta.
A moça, com a xícara, encheu a chaleira. Em seguida pousou tanto uma coisa como outra e cruzou os braços para aquecê-los. A sua roupa consistia num corpete cinzento e saia vermelha de flanela, tudo muito rasgado. Os cabelos pendiam despenteados pelos ombros abaixo.
- Precisamos entrar, disse eu, aproximando-me dela, que, assustada, lançou mão da xícara e correu para dentro, chamando:
- Mãe!
Do interior da residência saiu uma mulher. Trazia um seio de fora, o que tombava sobre a blusa - como esta cala solta por cima da saia. O cabelo, de um tom ruivo desvanecido, estava em desordem, denotando que ela se levantara nesse momento da cama. Às pregas da saia agarrava-se um garoto magro, de camisa escandalosamente curta: tinha olhos muito grandes, com que nos olhava cheio de espanto, e a cara quase toda suja de gema de ovo. A mulher fitou-nos com ar lânguido e inquiridor.
Disse-lhe o que queríamos,
- Entrem, entrem, convidou ela. Mas não reparem na casa. Os meninos ainda não levantaram. Vem aqui Billy.
Entramos, e eu levei comigo a chaleira que a jovem esquecera junto da bica. A cozinha, espaçosa, era escassamente mobilada: as crianças, porém, bastavam a enchê-la. A mais velha, com seus treze anos, assava um pedaço de toucinho com uma das mãos, e na outra segurava a camisola. Como a queimasse o calor da chama, passou o toucinho para a outra mão e lambeu os dedos a fim de atenuar o ardor. Feito isto, voltou à posição primitiva. O cabelo castanho claro pendia-lhe em pesadas melenas pelas costas abaixo. Sentando no guarda-fogo de aço estava um rapazinho a molhar um pedaço de pão na gordura que ia escorrendo do toucinho. "Um dois, três, quatro, cinco, seis pingos." E, depressa, o pequeno deu uma dentada no pedaço engordurado e continuou a sua tarefa com a outra mão. Quando nós entramos, o garoto tentou puxar a camisa até os joelhos, gesto que desperdiçou alguns pingos do toucinho. Sobre uma almofada via-se um nenê corado e gorducho - que, evidentemente, acabara de mamar; agora esperneava enquanto outro rapaz dava-lhe pão com manteiga pela boca dentro. A mãe correu para o diva, tirou o pão da boca da criança, introduziu-lhe o dedo na garganta, levantou-a, bateu-lhe nas costas, e ficou muito aliviada quando o filho começou a chorar. Depois administrou palmadas sonoras nas nádegas despidas do autor da proeza. Este começou a gritar, mas calou-se de súbito quando nos viu rir. No pano, que serviu de tapete junto da lareira, estava uma linda criança entretida lavando com chá a cara de uma boneca de pau e enxugando-a na camisola. À mesa, numa cadeira alta, outro menino sugava um pedaço de toucinho, cuja gordura escorria, através dos dedos, pelos braços escuros. Instalado numa poltrona ampla, um rapaz maior ocupava-se em despejar numa vasilha de leite os resíduos de chá que estavam nas chávenas. A mãe, ainda com o bebê ao colo, afastou a vasilha e precipitou-se para o garoto.
- A minha vontade era dar cabo de você! disse ela. Mas ele escapuliu para baixo da mesa e ali ficou sereno e indiferente.
- Poderia emprestar-me uma agulha de malha? perguntei eu à mulher, depois de esta recomeçar a amamentar a criança.
- Sara Ann! Onde estão tuas agulhas? indagou ela, encolhendo-se ao mesmo tempo e pondo a mão na boca do nenê que chupava o peito. Vendo que eu a fitava, explicou então:
- Não calcula como ele morde. Só tem dois dentes, mas parecem seis lancetas. Carregou o sobrolho e apertou os lábios, enquanto falava à criança: - Feio menino! Não tem vergonha de morder assim sua mãe?
A atenção da criançada estava agora dividida entre seus interesses particulares e a nossa presença - com exceção do garoto que sugava o toucinho com o mesmo afinco e imobilidade de sempre.
- Onde está o meu trabalho de malha, Sam?
Pegou-o? inquiriu Sara Ann, depois de uma busca breve.
- Não peguei, respondeu Sam do seu esconderijo.
- Pegou, sim, interveio a mãe, dando um pontapé ao acaso, por baixo da mesa.
- Não peguei, não, senhora, insistiu o moleque.
A mulher sugeriu diversos lugares onde poderiam encontrar o que procuravam, e, por fim, o objeto das pesquisas foi achado na gaveta da mesa, entre garfos e velhos espetos de pau. A mãe dirigiu então algumas censuras à filha, em tom amigável, mas Sara Ann não deu atenção; estava preocupada com o seu trabalho de malha, - um regalo de lã encarnada, que serviria para o próximo Inverno. Na parte já feita haviam-lhe espetado um sacarrolhas, e o novelo tinha espetos de pau atravessados.
- Foi você, Sam, queixou-se a pequena. Não há dúvida de que foi você.
O acusado replicou de baixo da mesa com uns versos chocarreiros, e a mãe estremeceu toda com a gargalhada que soltou.
- Foi o pai que lhe ensinou aquilo, explicou-lhe, ela, envaidecida.
Depois de mais uma troca de palavras, levaram a agulha ao fogo. As crianças observavam muito interessada.
- Quer você mesmo fazê-lo? perguntei a Emily.
- Eu? exclamou ela, arregalando os olhos e abanando a cabeça.
- Então serei eu.
Peguei na agulha, segurando-a com o lenço. Depois segurei sua mão e examinei a ferida. Emily, porém, quando viu o clarão do metal quente, puxou o braço, olhando sempre e rindo histericamente, cheia de medo e da vergonha de ter medo. Conservei-me sério, sem ceder, e ela acabou por estender outra vez a mão, enquanto mordia os lábios imaginando a dor que iria suportar.
O meu olhar infundiu-lhe, no entanto, coragem; mas, quando desviei a vista para a operação, Emily soltou um grito que terminou em risada, levou as mãos atrás das costas e fitou-me de novo, trêmula, apreensiva, envergonhada, sempre sufocada por um riso que era já suplicante.
Uma das crianças começou a chorar.
- Para que serve isso? disse-lhe eu, atirando para a lareira a agulha já fria.
Dei às mulheres todo o dinheiro em cobre que levava. A Sam, que permanecia debaixo da mesa, ofereci uma moeda de prata e ao outro pequeno um canivete que encontrei no bolso. Por causa de uma diabrura daquele, ficaram todos em desordem, e nós saímos no meio da grande confusão. Emily, contudo, mal reparava no que se passava: os seus pensamentos giravam em volta de si mesma - e em torno de mim.
- Sou tão covarde! murmurou ela, com ar humilde. Mas isto é mais forte do que eu... acrescentou, quase num rogo,
- Não se importe, repliquei. -' É impossível evitar, insistiu.
- O que tem graça é que, nada conseguiu distrair a atenção do menor.
- É verdade, assentiu ela, mordendo a ponta do dedo, pensativa.
Nossa conversa foi interrompida pela algazarra que vinha da casa. Sam corria agora atrás de nós, brincando. As perninhas tremiam-lhe, a camisa flutuava-lhe à brisa da manhã. Por fim pisou um cardo ou outra coisa espinhosa, porque o vimos parado e silencioso, com uma perna no ar e segurando o pé com ambas as mãos.

CONTINUA

Depois de Mulheres Apaixonadas, Canguru, História de uma Jovem, Serpente Emplumada e Filhos e Amantes, de D.H Lawrence, todos publicados no Brasil por cessão dos direitos autorais da Portugália de Lisboa, surge agora um dos maiores best-sellers do grande escritor inglês - Decadência pelo Amor. Nesse romance, como em todos os de Lawrence, um dos principais interesses reside na beleza do estilo. Muitas das suas páginas constituem verdadeiro poema pastoril. O vale de Nethermere é uma região paradisíaca onde o moço George Saxton, lavrador e filho de lavradores, vive a sua adolescência. Solicitado pelo amor de uma mulher de classe superior, sensível e educada, ele não tem coragem de se lhe declarar abertamente, colhido pela indecisão constante que o caracteriza. Ela se casa com um industrial mas não alcança a felicidade e ele, como desforra, faz o mesmo com a parenta, proprietária de um armazém. Privado do sonho que acalentara, aos poucos vai se degradando fisica e moralmente, até se tornar um ser apático, dominado pelo álcool. No entanto, não consegue libertar-se dos laços que o prendem à terra natal e as mesmas florestas, o mesmo céu, as mesmas águas que o viram assistem, desolados, à sua decadência irremediável. Decadência pelo Amor é, portanto, um livro que ser lido o quanto antes, pois prende a atenção do leitor irresistivelmente.


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Tudo ali parecia ter ficado na contemplação do passado: as árvores antigas, indiferentes à carícia do sol; as ervas que se mantinham espessas e imóveis; a aragem que nem sequer fazia mexer os ramos dos salgueiros; e a água da lagoa sempre plácida e silenciosa. Mas a corrente do moinho denunciava ainda o tumulto de vida que outrora agitara aquele vale, e os peixes alvos, na obscuridade da represa, continuavam a precipitar-se com movimentos rápidos.
Estava observando-os quando uma voz inesperada me sobressaltou e quase me fez cair, do tronco de álamo onde havia me empoleirado.
- Que está vendo aí? perguntou o meu companheiro, rapaz de olhos castanhos, de pele queimada pelo sol e coberta de sarda, um belo tipo de lavrador, solidamente construído. Ao notar o meu susto, riu e olhou para mim, cheio de curiosidade.
- Nada... Penso em como tudo isto é velho e como obriga à meditação.
Recostando-se na margem, ele esboçou um sorriso indulgente e retorquiu:
- Belo lugar para dormir.
- Sua vida é um sono contínuo, respondi. Será uma piada quando alguém o acordar.
George sorriu de novo, passou as mãos pelos olhos para atenuar o brilho da luz, e replicou em voz pausada:
- Por que motivo será assim tão divertido?
- Ora... Você mesmo achará muita graça.
Ficamos calados algum tempo, até que ele, tateando ao acaso a terra, observou com os seus modos indolentes:
- Parece que adivinhei a razão deste zumbido.
Examinou o local e viu que tinha batido com os dedos em um ninho desses lindos insetos que se diria terem mergulhado o corpo em reluzente poeira de âmbar. Excitados, puseram-se a correr em torno dos ovos vazios; alguns provaram as asas num vôo incerto antes de se lançarem abertamente no espaço, George
espiou os que se meteram entre a relva e que andavam para cá e para lá, dominados pela aflição.
- Por aqui, disse ele, aprisionando um entre caules de erva e tentando desprender, com outra haste, as asas unidas onde havia reflexos de anil.
- Não faça maldades, recomendei.
- Isto não o magoa. Quero ver apenas se é por não poder abrir as asas que ele não consegue voar. Olha, lá vai. Não, não é ainda. Vou experimentar noutro.
- Deixe-os em paz, repliquei. Deixe-os gozar o sol. Acabam de vir ao mundo, não os obrigue a cansaços.
George insistiu, apesar de tudo, e quebrou a asa da sua vítima.
- Coitado! exclamou, esmagando o bicho entre os dedos. Em seguida pôs-se a examinar as larvas e os ovos, sem qualquer método científico, perguntando-se
se eu conhecia alguma coisa de insetos. Depois de ter acabado suas observações, lançou tudo aquilo à água, levantou-se e exibiu o relógio, extraindo-o
das profundezas do bolso.
- Bem que eu achava que eram horas de comer, declarou ele, sorrindo para mim. Adivinho sempre a aproximação do meio-dia. Vamos para casa?
- Com todo o gosto, retruquei. Seguimos ao longo da margem e atravessamos a ponte de madeira sobre a comporta. Em frente, o pomar de árvores contorcidas, descia em áspero declive. Em seguida vinha o jardim.
As pedras da casa quase desapareciam debaixo dos ramos de hera e madressilva, e os lilases atravancavam o portão. Passamos sempre, contornando a casa, e fomos, pelo passeio de tijolos, dar à porta dos fundos.
- Feche-a, sim? pediu-me ele, que entrara em primeiro lugar.
Através da copa, um lugar espaçoso, alcançamos a cozinha. Nesse momento a criada tirava a toalha, de dentro de uma gaveta, e a mãe do meu amigo, figurinha delicada, de olhos grandes e castanhos, andava em volta da lareira com um garfo na mão.
- O almoço não está pronto? perguntou George, num tom já ressentido.
- Não, filho, a lenha não queima, replicou ela, desculpando-se. Mas espero terminá-lo em pouco tempo.
George deixou-se cair num sofá e começou a ler um romance. Eu fiquei com vontade de ir embora. Mas a dona da casa insistiu para que eu ficasse.
- Não vá, pediu ela. Emily há de gostar tanto de vê-lo! E o meu marido também. Sente-se, faça favor.
Sentei-me numa cadeira de junco, perto da janela que dava para o pátio. Já que George estava entretido na leitura e a mãe ocupada em diligenciar que a carne e as batatas cozinhassem depressa, era natural que eu me entregasse aos meus próprios pensamentos. Assim foi. O rapaz, esquecido agora das suas reclamações, continuava embebido no romance: de vez em quando puxava o bigodinho, com indolência, sem se
importar que o cão se esfregasse de encontro às polainas e às joelheiras dos calções de montar. Divertido com o bigode e com o livro, nem sequer se lembrava de brincar com as orelhas de Trip; enquanto torcia e retorcia entre os dedos os fios castanhos daquele adorno viam-se se mover levemente, sob a pele clara os músculos do braço nu. Por cima dele, a janelinha quadrada filtrava uma claridade verde, vinda até ali por entre as folhas do castanheiro enorme do pátio: a luz incidia-lhe no cabelo
escuro e espalhava-se no quarto, refletindo-se na louça que Annie tirava da prateleira e no mostrador do relógio de caixa.
Aquela cozinha era bastante ampla, de tal modo que a mesa parecia perdida no meio dela e as cadeiras como que saudosas da vizinhança do sofá. Ao fundo, o buraco da chaminé assemelhava-se a uma caverna negra e os bancos da lareira pareciam formar outro compartimento avermelhado pelo clarão das chamas, onde a mãe de George rondava. Assim a grande cozinha mostrava-se um pouco árida, com as lajes cinzentas à mostra, todas desiguais, a sua escassa mobília, e os recantos excessivamente sombrios. As únicas coisas alegres que se viam ali eram a chita do canapé e as almofadas da poltrona, que davam tons escarlates ao ambiente melancólico. Também o
relógio se destacava pelas cores vivas com que tinham pintado as aves que o adornavam, e isso bastaria para provocar o sorriso de alguém menos contemplativo do que eu: para mim, aquilo só causava admiração.
Daí a pouco ouvimos o pisar de botas pesadas, e o dono da casa entrou. Era homem corpulento, meio calvo, com alguns fios de cabelo encaracolados em volta da cabeça.
Vendo-me, soltou uma exclamação jovial:
- Ora viva, Cyril! Ainda bem que não nos esqueceu. Depois, voltando-se para o filho, acrescentou: E lá na mata, continuam os problemas?
- Acabaram-se, respondeu George, sem desviar os olhos do livro.
- Fico contente em saber. Os coelhos roeram os nabos, explicou o recém-vindo, dirigindo-se à mulher.
- Já contava com isso, observou ela, entretida com as suas caçarolas. As batatas haviam acabado de cozinhar, e ela afastou-se do lume, com a panela fumegante nas mãos.
O jantar foi posto na mesa. O pai começou a trinchar, e o filho, que levantara a vista de cima do livro para verificar a comida, continuou a ler até que lhe enchessem o prato. A criada tinha-se sentado já na sua mesinha, próximo da janela, e começara a comer. Nessa altura sentiram-se no corredor de tijolos os passos de duas pessoas,
e logo a seguir apareceu uma criança seguida da irmã mais velha. A primeira vinha com um chapéu de marinheiro, debaixo do qual surgiam, ariscos, os cabelos compridos e escuros; mas arrancou-o logo e atirou-o para longe, instalando-se à mesa e conversando sem cerimônia com a mãe. A irmã, moça dos seus vinte e um anos, sorriu para mim, lançando-me um clarão dos seus olhos castanhos, e foi lavar as mãos. Voltou depois e sentou-se, olhando com ar desconsolado a carne mal passada que tinha à sua frente.
- Detesto isto assim, declarou ela.
- Faz bem, replicou o irmão, que começara a comer com todo o vagar. Dá-lhe músculos para castigar os alunos.
Contudo, a interessada não aceitou o conselho. Afastou o prato e preferiu comer vegetais. O irmão, pelo contrário, tornou a encher o seu de carne e continuou a mastigar. Então a menina, a quem chamavam Mollie e que tinha doze anos, observou em tom pouco amigável:
- Podia ter-me passado o molho...
- Sem dúvida! E a carne também.
- Isso já não seria da sua vontade...
- Que esperta! comentou o rapaz, ainda com a boca cheia.
- Acha? interveio, irônica, a mais velha, Emily.
- Claro que sim, visto que você a fez à sua imagem e semelhança, quando ela esteve consigo na escola. Mãe, acrescentou George, se me encontrasse uma batata bem cozida...
- Quando provei achei-as boas. Veja esta, que é a mais mole. Cozinharam tanto tempo!
- Não vale a pena apresentar-lhe desculpas e explicações, opinou Emily, irritada.
Sem se dirigir a ninguém em particular, o irmão ponderou muito calmo:
- Esta manhã ela teve muitos alunos endiabrados, com certeza. ..
- E bateu num deles até lhe fazer espirrar o sangue pelo nariz, acudiu Mollie.
- Ah, também você! redarguiu Emily, engolindo com dificuldade. Pois fique sabendo que não me arrependi. São levados da... da...
- Da breca, concluiu George, ajudando-a a completar a frase.
Emily não pareceu satisfeita com o auxílio do irmão. O pai soltou uma gargalhada. E a mãe olhou aflita para a moça, que nesse momento baixou a cabeça, pondo-se a fazer desenhos na toalha, com o dedo.
- São piores do que os do ano passado? perguntou a mãe. A resposta de Emily foi curta:
- Nem por isso,
- O que não impede de lhes bater com força, atalhou George. Dê-me mais açúcar, Annie, pediu ele, olhando para o açucareiro e para o pudim.
A criada levantou-se da sua mesinha, e a mãe, por sua vez, correu aos armários. Emily, ocupada com o almoço, saiu da sua soturnidade para dizer com amargura:
- O que eu queria, George, é que você também fosse professor. Curar-se-ia das suas fanfarronadas.
- Eu? retrucou ele, desdenhoso. Seria capaz de deixar todos pondo sangue pelo nariz.
- Gostaria de ver...
Esta discussão parecia ter feito cócegas à irmã mais nova. De fato, Mollie desatou às gargalhadas, o que assustou a mãe, receosa de que a pequena sufocasse no meio da sua hilaridade.
George, ao ver as contorções de Mollie, observou-lhe:
- Está rindo muito.
Emily é que não pôde agüentar mais o diálogo. Levantou-se e abandonou a mesa. O pai e o filho, daí a pouco, foram ver a plantação de nabos, e eu acompanhei as moças que voltavam à escola.
Enquanto seguíamos pelo passeio ladrilhado, Emily declarou me cheia de convicção:
- George irrita-me com o que faz e com o que diz.
- Às vezes é egoísta, arrisquei.
- Se é! insistiu. Irrita-me deveras com os seus grandes ares de sabichão, com a sua importância... Mamãe, então, humilha-me tanto!
- Vejo que ficou furiosa...
- Furiosa! repetiu ela numa voz que vibrava de cólera e nervosismo. Demos uns passos em silêncio e Emily perguntou-me: Trouxe-me os versos?
- Não... Desculpe... Esqueci-me deles outra vez. Para falar franco: destruí-os.
- Mas tinha prometido!
- Sabe o que são as minhas promessas. Não se pode confiar em mim.
Emily mostrou-se mais carrancuda e desanimada do que seria de esperar. Quando me despedi, numa volta do atalho, senti remorsos pelo meu procedimento. Isso acontecia sempre depois que ela ia embora.
Passei depressa através do regato que saía da lagoa. As pedras, onde eu ia pondo os pés, pareciam brancas sob a claridade do sol; a água deslizava entre elas. Quase indistintas de encontro ao azul do céu, à minha frente voavam duas borboletas, pousando de flor em flor e indicando-me o caminho. Os campos exalavam calor e eu diminui o passo a fim de enveredar pelo bosque onde os carvalhos faziam uma sombra reconfortante. Lá dentro tudo estava silencioso e fresco, e eu tive prazer em demorar
na vereda arborizada, seguindo entre plantas que pareciam estender os braços para mim. O centro da floresta irradiava suavidade; mas fui sempre andando, incitado pelo ataque de um exército de moscas degladiando em torno da minha cabeça - até que, ao chegar aos rododendros do jardim, elas me abandonaram atraídas pelo açúcar que Rebeca punha
debaixo das vasilhas com vinagre.
A casa, baixa e vermelha, com o seu telhado abatido e já sem cor, adormecera ao sol e dormia agora profundamente na sombra que lhe projetavam as árvores enormes que se julgaria terem fugido da selva.
Não encontrei ninguém na sala de jantar, mas escutei o rumor da máquina de costura, vindo do escritório, semelhante ao zumbir de um inseto descomunal, ora mais forte, ora mais atenuado, depois muito regular... Em seguida chegaram-me ao ouvido notas musicais, leves, um tanto puladas, como se uma rã andasse saltando sobre o teclado do piano da sala.
- Deve ser mamãe tirando o pó, disse com meus botões. Desabituado como estava aquele som, não admira que me sobressaltasse por momentos. Aquelas cordas, escondidas atrás da seda verde - virando uma dobra é que se via como o tempo a desbotara - tinham-se tornado, com a idade, secas e afônicas
como as de uma garganta de velha. O decorrer dos anos amarelecera as teclas do piano da minha mãe e carcomira-lhe as pernas delicadas. Pobre objeto sonoro, que mal respondia ao contato dos dedos de Lettie, se esta, por brincadeira, experimentasse
pô-lo a vibrar. Mas a verdade é que ele se conservava sempre fechado, a não ser para consentir na visita do espanador...
E agora, inesperadamente, ei-lo murmurando uma antiga melodia vitoriana. E eu logo imaginei uma figura pequenina de mulher, modesta e recatada, com belos cachos de caracóis de cada lado do rosto, sentada ali a tocar... Essa música despertava-me sensações de outrora sem que a memória, no entanto, me socorresse. Quando eu tentava, a todo o custo, recordar-me, Rebeca entrou na sala de jantar, a fim de tirar a mesa.
- Quem está tocando, Beck? perguntei.
- A sua mãe, Cyril.
- É uma coisa que ela nunca faz! Julguei que não sabia.
- Ah, respondeu Rebeca, esqueceu-se do tempo em que era pequeno, quando brincava junto das saias da sua mãe, e ela cantava para você. Não se lembra, com certeza, de vê-la de caracóis sedosos e castanhos. Sim, não se lembra de quando ela cantava e tocava, antes que Lettie viesse e que o seu pai...
Rebeca deu meia volta e saiu do quarto - e eu fui ver o que se passava na sala. Minha mãe estava sentada defronte do piano: sorria e, com os dedos roliços e pouco ágeis, feria de leve o marfim. Nesse instante Lettie passou correndo a meu lado, dirigiu-se para mamãe e, abraçando-a e beijando-a, disse:
- Meu Deus, não sabia que tocava piano!
- Nem eu, replicou a interpelada, rindo-se e fugindo ao abraço da moça. Quis ver apenas se seria capaz de martelar esta velha melodia. Aprendi-a em pequena, neste mesmo piano, que já estava desmantelado. Mas não tinha outro.
- Toque outra vez, por favor. Lembrou-me o som de cristais do lustre, roçando uns pelos outros. E a sua posição, sentada na banqueta, era tão delicada... Vá, toque mais!
- Não, retorquiu mamãe, esquivando-se à insistência de Lettie. Só mexer nas teclas basta para me tornar sentimental. E vocês não gostariam
de me ver com lágrimas nos olhos, depois de velha...
- Velha! repetiu Lettie, em tom de censura, e voltando a beijá-la. Está ainda muito nova para tocar romanças, sem parecer ridícula. Fale-nos a esse respeito.
- A respeito de quê?
- Do tempo em que tocava piano.
- Antes que os meus cinqüenta e tantos anos me tolhessem os dedos? E tu, Cyril, onde esteve, que não apareceu para o almoço?
- Estive apenas no Strelley Mill, respondi.
- Já calculava, respondeu minha mãe, falando agora com frieza.
- Por que diz que já calculava?
Lettie, nesta altura, interveio com o seguinte comentário:
- E saiu, é claro, logo que Emily voltou para a escola...
- Saí, sim.
Pareciam ambas indispostas comigo. Disfarcei o meu ressentimento e esclareci:
- Convidaram-me para almoçar.
Minha mãe não se dignou pegar a deixa. Foi Lettie quem prosseguiu no interrogatório:
- O ilustre George terá já encontrado alguma namorada?
- Não, declarei logo. Não há nenhuma bastante qualificada para ele.
Minha mãe observou por seu turno:
- Cada vez percebo menos o que é que você aprecia nessa gente.
- Não seja má, respondi um tanto formalizado. Sabe muito bem que gosto deles.
- Sei que gosta dela, atalhou minha mãe, com ar sarcástico. Quanto ao irmão, não passa de um malcriado. Nem se podia esperar outra coisa desde que sua mãe o estragou com tantos mimos. Mas, se tem empenho em corrigi-lo... Dizendo isto, franziu o nariz, desdenhosa.
- Acho-o bem interessante, observou Lettie com um sorriso. Você é que podia fazer dele um homem, disse-lhe eu, curvando-me zombeteiro.
- Não me interessa, replicou ela no mesmo tom de troça. Meneou a cabeça, e todos os cabelos finos, livres de ganchos, ficaram como uma poeira de ouro à luz do sol.
- Que vestido ponho? perguntou ela.
- Sei lá! respondeu minha mãe.
- Acho que vou vestir o verde - embora esta luz possa desbotá-lo, disse ela, pensativa. Era bastante alta e magra, de cabeia louro, com reflexos
acastanhados, lindos olhos e sobrancelhas - o nariz nada tinha de bonito; as mãos é que eram muito belas.
- Onde vai? indaguei. Lettie não me deu resposta.
- A casa do Leslie Tempest, respondi. Ela, porém, não replicou. Não percebo o interesse que você encontra nele, prossegui eu.
- O mesmo que encontro nos outros rapazes, retorquiu Lettie. Interrompeu-se e ambos começamos a rir. Não é que me preocupe com ele, continuou, ruborizada. Vou apenas jogar uma partida de tênis. Quer ir também?
- E se eu aceitasse o convite? perguntei. Lettie sacudiu a cabeça e respondeu:
- Todos nós ficaríamos satisfeitos com a sua presença. Tenho a certeza disso.
- Faço idéia! respondi com ironia.
Ela riu, muito corada, e correu pela escada acima.
Meia hora depois aparecia no escritório, para me dizer adeus - e ver se eu a achava bem. Estava tão linda, com o seu vestido de linho e chapéu florido, que não pude deixar de me sentir orgulhoso. Calculando que eu apareceria à janela, Lettie, já na altura dos rododendros enormes e cor de púrpura, olhou para trás, acenou-me com o lenço de renda e afastou-se como uma flor entre as aveleiras verdes. Encaminhou então seus passos, através da floresta, para o espaço quase despido de árvores que conduz à estrada real e que fica em direção oposta a Strelley Mill.
A estrada corre durante cerca de um quarto de milha junto à margem da nossa lagoa, Nethermere - a mais baixa das três que constituem a série. Do outro lado, numa colina distante, está Highclose, que avistamos ainda por cima das águas. Embora Lettie já estivesse muito longe, conseguia distingui-la na beira da lagoa, de sombrinha aberta, afastando-se como uma vela no horizonte. Em seguida vi-a dobrar a cancela, debaixo dos pinhais, subir a ladeira e misturar-se com a vegetação que cerca Highclose.
Leslie estava estendido numa cadeira de repouso, à sombra de uma árvore, e tinha entre os dedos um charuto aceso. Sob o calor do dia, entretinha-se observando a brasa do charuto, que se transformava em cinza, e ao mesmo tempo sentia pena de Nell Wycherley, a quem acompanhara nessa manha à estação... a fim de que ela não ficasse aborrecida. As moças de agora são tão impertinentes, às vezes, para com os seus companheiros! Contudo, ela não era das piores.
Nesse momento, percebeu uma sombrinha que se movia ao longo da estrada, e Leslie, ato contínuo, mergulhou em sono profundo, deixando no entanto uma fenda ao canto dos olhos para se poder certificar da aproximação de Lettie. Esta, encontrando o seu admirador deselegantemente adormecido, de charuto na boca, quebrou um raminho de lilás, cujos botões ainda estavam fechados e cujo aroma não seria, portanto, capaz de denunciá-la antes que ela tocasse no nariz do dorminhoco. E Leslie, acordando de súbito, exclamou:
- Oh, Lettie, estava a sonhar com beijos!
- Na ponta do nariz? Beijos de quem? retorquiu ela, rindo alto.
- De quem me produziu a comichão, esclareceu, sorrindo.
- As cócegas fazem-no sonhar com isso?
Trocaram ainda outros cumprimentos deste teor. E, como a moça o envolvesse num desses olhares com que as mulheres sabem lisonjear tão habilmente os homens, Leslie caiu em êxtase, afogado de volúpia.

 

CAPÍTULO DOIS

 


Lettie ficou inquieta ao ouvir o barulho prolongado do vento na floresta e o suspirar e gemer das árvores mais próximas da casa; não queria mexer-se, não queria fazer nada - mas acabou por insistir que eu a levasse até à beira da lagoa. Atravessamos, o emaranhado das amanbas e dos framboeseiros bravos que se estendia em frente da nossa casa e descemos o declive cheio de ervas que vai dar a Nethermere. O vento fustigava, rumorejando, a superfície das águas; e a frescura do ar estimulou-nos, lá onde as ondas se quebravam contra os seixos e as hastes dos caniços se curvavam sob o açoite dos elementos.
Na margem, as rainhas-dos-prados estavam em flor, e nós enterramo-nos nelas até aos joelhos enquanto admirávamos as rendas de espuma que corriam sobre as vagas e o prateado dos salgueiros mais distantes, no outro lado. Ali, onde deságua o regato de Strelley, a lagoa é mais estreita, a vertente do bosque mais abrupta e os troncos das árvores quase mergulham dentro de água. Interrompendo o nosso passeio, detivemo-nos a observar, de vez em quando, na terra pantanosa, ninhos abandonados de aves aquáticas; ao mesmo tempo sentíamos o cheiro penetrante da hortelã que os nossos pés esmagavam. À nossa aproximação, vimos algumas aves pernaltas que estendiam o pescoço esbelto, sobressaltados, e que fugiram diante de nós: uns atrás dos outros, voavam guinchando para o âmago da floresta, mas logo regressavam ao ponto de partida para de novo despedirem noutra direção, cheios de espanto e de terror.
- Por que se teriam assustado? perguntou Lettie.
- Não sei. Às vezes fitam-nos sem medo, e noutras ocasiões precipitam-se com esta lamúria como se levassem uma cobra enrolada nas asas.
Ela, no entanto, deu pouca atenção às minhas explicações. Havia-se agarrado a um ramo de salgueiro e, num instante, choveram sobre ela miríades de flores, como migalhas de uma enorme fatia de pão. Segui-a logo a fim de tomar parte naquele banho que a envolvia e do qual emanava um perfume medicinal.
- Oh, Cyril! exclamou Lettie, surpreendida.
Era um gato preto que ela descobrira preso numa armadilha pelas patas traseiras: fora apanhado, sem dúvida, no momento em que ia saltar sobre a vítima. Magro, bravio, o animal havia sido, e com razão, a causa do terror manifestado pelas aves. Ao ver-nos, rosnou baixo e não desfitou o olhar, que brilhava de ferocidade.
- Que mau que ele parece! acrescentou Lettie.
Envolvi as mãos no lenço dela e no meu próprio boné e agachei-me para abrir a ratoeira. O gato rasgou-me o pano das luvas improvisadas, metendo-lhe os dentes convulsivamente; mas, uma vez liberto, deu um pulo para longe e ficou espiando. Tirei o casaco, embrulhei nele o bicho e agarrei-o murmurando:
- Coitada da Nickie Ben! Sempre profetizei este fim.
- Que vai fazer? inquiriu Lettie.
- E uma das gatas de Strelley Mill. Vou levá-la aos donos.
O pobre animal, debatendo-se, procurava fugir, mas eu consegui trazê-la comigo; seguido da minha companheira, apareci na cozinha da casa, em mangas de camisa, e todos se admiraram de me ver entrar assim, levando tão estranho embrulho.
- Trago-lhes a Nickie Ben, declarei, exibindo a minha carga.
- Que patifaria! bradou Emily, estendendo a mão para a gata mas retirando-a no mesmo instante, com pavor igual àquele de que ainda há pouco as aves
tinham dado prova.
- É assim que eles morrem todos, sentenciou a mãe.
- O que eu queria, acudiu Mollie, excitada pela indignação, era que os guardas-florestais estivessem três dias e três noites entalados numa ratoeira dessas.
Pusemos o bicho sobre o tapete do fogão e
dêmos-lhe leite morno; ela, porém, bebeu muito pouco, de assustada que estava. Mollie, no meio da sua cólera, foi buscar o marido de Nickie Ben, que era também preto, a fim de que, ele visse a sua consorte estropiada. O gato olhou, pareceu encolher os ombros finos e afastou-se com passos rápidos. Aquela insensibilidade provocou geral clamor entre as senhoras.
George, que vinha buscar água quente, surgiu à porta nessa' altura. Admirou-se com a nossa presença ali e os olhos cintilaram-lhe.
- Repara na Nickie Ben, disse a irmã mais nova. George ajoelhou no tapete e ergueu as patas feridas da gatinha.
- Estão partidas, participou ele.
- Que horror? exclamou Emily, estremecendo. E foi-se logo embora.
- Ambas? indaguei.
- Só uma. Vê.
- Está a torturá-la, notou Lettie.
- Já não tem cura.
Mollie e a mãe deixaram a cozinha, à pressa, e foram para a sala.
- Que vais fazer? perguntou Lettie.
- Evitar que ela continue a sofrer, respondeu George, pegando no animal. Seguimo-lo até ao celeiro. Uma vez ali, fez ele esta declaração:
- A maneira mais rápida é andar com a gata de roda e bater-lhe com a cabeça contra a parede.
- Está a fazer-me mal aos nervos, observou Lettie.
- Então, vai ser melhor afogar o bicho, replicou ele, sorrindo. Pegou num cordel, preparou um laço numa das pontas e enfiou-o no pescoço do animal, amarrando aí um peso de ferro e deixando solta a outra parte do fio. Feito isso, perguntou se queríamos acompanhá-lo. Lettie olhou para ele, um tanto pálida. - Prevenindo-a de que isto vai lhe esfrangalhar os nervos, acrescentou George. A moça não deu resposta, mas seguiu-o ao jardim, através do pátio. Na margem do reservatório, ele voltou-se outra vez para nós e disse:
- Agora, atenção. Vocês fazem de carpideiras.
Ficávamos ambos calados; ele tornou a sorrir e atirou para a água o pobre animal, que se contorcia com dores.
- Adeus, Nickie Ben! exclamou o algoz, que nos mirou cheio de curiosidade, enquanto esperávamos na margem.
- Cyril, disse Lettie, muito calma, isto é que é crueldade! E horrível!
Não encontrei palavras com que lhe respondesse, mas George acudiu logo:
- Refere-se a mim?
- Não a si especialmente... mas às coisas em geral.
O lavrador fitou-a com os seus olhos escuros e sérios.
- Tive de afogar a gata sem piedade, declarou ele, atando a extremidade livre do cordel a um tronco de freixo. Depois foi buscar uma enxada e, com ela, fez uma cova na terra negra. - Se o cadáver não vier muito desfigurado, ajuntou, dirigindo-se a Lettie, você cobrirá de violetas a sepultura de Nickie Ben. Lançou fora a enxada e puxou o atilho, no fim do qual apareceu a gata e o peso de ferro. - Vá lá, que não tem mau aspecto! Era uma bichana de raça.
- Enterre-a quanto antes, ordenou-lhe a moça.
- Irá ter pesadelos, esta noite?
- Os sonhos não me assustam, respondeu.
Reentramos em casa e fomos até a sala, onde Emily estava sentada junto da janela, pensativa. O aposento era comprido e não muito alto, com uma viga tosca e enorme a atravessar o teto. Na prateleira do fogão e sobre o piano havia folhas e flores distribuídas em quantidade. Pela janela entrava o cheiro e a frescura do bosque.
- Ele levou avante o seu intento? perguntou Emily. E vocês assistiram a isso? Se eu tivesse pressentido semelhante coisa ficaria com ódio de morte.
- Eu também não fiquei muito satisfeita, declarou Lettie.
- A indiferença e brutalidade deste rapaz chegam a ser revoltantes, continuou a outra. Sinto-me repugnada.
- Palavra? volveu Lettie, com um sorriso frio. Dirigiu-se ao piano e acrescentou: Acho-o apenas demasiado saudável. Nunca está doente, creio eu.
Sentou-se e tocou ao acaso, deixando que as notas, entorpecidas, tombassem como folhas mortas do velho móvel sonoro.
Emily e eu conversávamos junto da janela, a respeito de livros e de pessoas conhecidas. A moça mantinha-se bastante séria e eu contagiado, compartilhei sua gravidade.
Daí a pouco, depois de ter mungido e dado de comer às vacas, George veio ter conosco. Lettie estava ainda sentada ao piano, e ele perguntou-lhe por que não tocava qualquer coisa mais leve - o que a fez voltar-se na banqueta e responder-lhe em tom um tanto seco. A aparência dele, contudo, dir-se-ia ser bastante para lhe dispensar as palavras ariscas, como se fossem pássaros assustados... George vinha diretamente da copa, onde fora lavar-se, e ficara atrás de Lettie, distraído, a enxugar os braços, com a camisa aberta no peito e as mangas arregaçadas. Estava de botas, polainas sujas e calções rasgados nos joelhos; ao vê-lo assim, ela sentiu certo embaraço.
- Por que não toca qualquer coisa mais moderna? insistiu ele, esfregando a toalha nos ombros, por baixo da camisa.
Lettie repetiu as palavras que acabara de ouvir, como um eco: a sua atenção ia toda para os movimentos que ele fazia, fascinada pelo vigor daqueles braços e pela brancura e solidez do peito. Depois de ter examinado a transição brusca da pele exposta ao sol para a da garganta, muito alva, encontrou-se, de repente, com o olhar de George e voltou-se no mesmo instante para o piano, enquanto o sangue lhe escaldava as orelhas, cobertas, por felicidade, com uma profusão de caracóis.
- Que devo tocar, então? murmurou ela, passando os dedos pelas teclas, ainda perturbada.
O rapaz foi buscar a uma pilha de músicas um álbum de canções e apresentou-lhe.
Vendo tão perto de si os braços dele, Lettie estremeceu levemente e perguntou:
- Que deseja cantar?
- O que for do seu agrado.
- Uma canção de amor?
- Se gosta... Está bem, uma canção de amor, concordou num tom que denunciava insinuação demasiado evidente, o que fez com que minha irmã se remexesse na banquinha e se conservasse calada. Por fim, Lettie começou a execução da peça escolhida, que era Tit Willow, de Sullivan. A voz de George, baixo sem grande profundidade, podia considerar-se tolerável; o certo é que ele cantava com prazer. Depois da frase bebe-me com os teus olhos, Lettie voltou-se e quis saber se ele gostava da letra. Que lhe parecia um pouco idiota, foi o comentário do cantor; mas disse isto olhando-a com olhos brilhantes, como se estivesse a desafiá-la.
- É que você não tem vinho no olhar, para que possa fazer um brinde com ele, disse a moça, correspondendo ao desafio com a chama azul das suas pupilas. Logo a seguir baixou as pestanas, e George riu muito senhor de si, perguntando como é que ela sabia semelhante coisa.
- Porque, esclareceu Lettie, exprimindo-se devagar e observando-o com fingido desdém, porque seus olhos não se alteram quando os fito. Acho que as pessoas devem falar com os olhos: há quem os tenha tão eloqüentes, tão expressivos! Assim dizendo, continuou a examiná-lo, calculando o lugar em que ele a teria - tanto o rosto como o cabelo, que parecia sempre despedir luz - e a idéia que fazia quanto à sinceridade das palavras agora ouvidas. Mas o rapaz soltou uma gargalhada
breve, mais desajeitada e menos persuasiva ainda que as do costume. Lettie virou-se, então, rindo também.
- Não há nada neste álbum que seja bom para cantar, disse ele, folheando com ar descontente.
Fui buscar outro, e ela cantou Should he upbraid. Tinha bela voz de soprano e a canção agradou bastante a George, que se aproximou dela. Quando terminou, lançou em volta da sala um olhar travesso e cintilante, e viu que o lavrador a contemplava maravilhado.
- Gosto disto, declarou ela, numa certeza cheia de superioridade.
- Gosto, confirmou o rapaz, com ênfase, salientando assim o triunfo da cantora.
Aproveitando a maré, Lettie fez-lhe várias observações acerca do trecho acabado de interpretar, e George, sempre sorridente, não se atreveu logo a responder antes de considerar o significado exato daqueles comentários.
- Você conserva os sentidos meio despertos, meio adormecidos, acrescentou minha irmã.
- Acha que sim?
- Sem dúvida. Você aprecia, em especial, a comida e o conforto. Não é verdade?
- E você não aprecia? retrucou ele, um tanto humilhado.
- Já se sabe! Agora venha virar-me as páginas enquanto toco esta música. Quando estiver na hora, faço-lhe sinal. Traga uma cadeira.
-
Principiou uma romança de Schubert. George inclinou-se sobre o ombro da pianista a fim de poder voltar as páginas; e ela, sentindo o cabelo do rapaz roçar-lhe a face, ergueu a vista para o seu companheiro e presenteou-o com um sorriso, sem deixar de tocar. Atingindo o fim da página, fez o sinal combinado, mas George estava distraído.
- Agora disse ela, já impaciente, enquanto ele tentava, com um gesto brusco, penitenciar-se do esquecimento. Lettie, porém, afastou-lhe a mão, voltou a folha sem ajuda e prosseguiu na música.
- Desculpe, murmurou o rapaz, corando.
- Não faz mal, replicou ela, sem parar e sem o ver. Chegando ao fim, pediu que lhe descrevesse as sensações que experimentara durante a execução da música.
- Ah, fiz triste figura! asseverou ele, atrapalhado.
- Estimo muito saber... mas não era isso que eu perguntava. Diga-me, antes, o que sentiu.
- Não sei... se senti alguma coisa, retorquiu George, medindo as palavras, como de costume.
- Direi por você. Você ficou dormindo ou então é insensível. A música, realmente, não lhe desperta nada lá no íntimo? Que pensa a esse respeito?
George riu mais uma vez, refletiu uns instantes, e voltou a rir.
- Ora! exclamou, evitando confessar os seus verdadeiros sentimentos, penso que você tem bonitas mãos e que deve ser agradável sentir o seu contato, tal como a do seu cabelo na minha cara.
Depois de ter escutado esta declaração, Lettie empurrou-o discretamente e afastou-se dele, sentenciando:
- Você está cada vez pior.
Atravessando a sala, dirigiu-se para o sofá onde eu conversava com Emily e passou-me o braço de roda do pescoço.
- Não serão horas de voltarmos para casa? perguntou.
- Oito e meia... parece-me cedo.
- Pois eu... eu acho que é hora de recolher.
- Não vão ainda, disse George. - Fiquem para cear, pediu Emily.
- Mas eu creio que... Respondeu Lettie, hesitante.
- Que há assuntos mais importantes a tratar, intervim eu, concluindo-lhe a frase.
- Não é isso... Hesitou de novo e, de súbito, bradou furiosa:
- Cyril, não seja aborrecido!
- Vão a algum lugar? indagou George, em tom humilde.
- Que idéia! respondeu Lettie, ruborizada com a pergunta.
- Então fiquem para cear convidou ele por seu turno. Lettie sorriu e condescendeu. Fomos para a cozinha, onde encontramos o Senhor Saxton a ler, tendo aos pés, e fingindo que dormia, o seu enorme bull terrier que dava pelo nome de Trip. No canapé repousava muito sossegado o gato preto, viúvo de Nickie Ben. A Senhora Saxton e Mollie recolhiam-se precisamente nessa ocasião aos seus respectivos quartos. Despedimo-nos delas e sentamo-nos. A criada já se havia ido embora, de modo que foi Emily quem teve do preparar a ceia.
- Ninguém toca tão bem naquele piano como ela, disse o Senhor Saxton, sorrindo para Lettie com admiração e deferência. O dono da casa tinha
muito orgulho naquele móvel antigo e majestoso, e costumava observar que o piano estava cheio de boas músicas para aqueles que as sabiam extrair de lá. Lettie replicou, risonha, que decerto poucas pessoas o haviam experimentado, de maneira que a honra não era muito grande.
- Que tal acha a voz do nosso George? perguntou o pai, um tanto vaidoso, embora terminasse a frase com uma risadinha desconcertante.
- Quando estiver apaixonado há de cantar muito bem, foi a resposta da interpelada.
- Quando estiver apaixonado! repetiu o homem, rindo alto, deveras satisfeito.
- Sim, senhor, no dia em que encontrar a pessoa que ele deseja.
George meditou no caso e soltou, por sua vez, uma gargalhada.
Emily, que punha a mesa, disse então:
- Há pouca água em casa.
- Com os diabos! exclamou o rapaz. Já mudei de botas.
- Não será muito difícil tornar a calçá-las, ponderou a irmã.
- Annie podia tê-la ido buscar. Para que está ela aqui? retrucou ele, indignado.
Emily olhou para nós, abanou a cabeça e voltou as costas ao irmão. O pai apressou-se a oferecer os seus préstimos:
- Depois da ceia, irei eu.
- Depois da ceia? perguntou a moça, admirada e divertida ao mesmo tempo.
George levantou-se e arrastou os pés, contrariado. Precisava de ir ao poço, que ficava num bosque próximo, e desagradava-lhe a idéia, depois de ter se aquecido ao calor da cozinha.
Tínhamos acabado de sentar à mesa quando Trip começou a ladrar à porta.
Fica quieto, intimou-lhe o dono, lembrando-se de que havia gente dormindo a essa hora.
Mas levantou-se e foi atrás do cão. Era Leslie, e queria levar minha irmã para casa, sem demora. Ela se opôs terminantemente, de modo que ele se viu obrigado a entrar e sentar à mesa, onde tomou uma
xícara de café e comeu uma fatia de pão com queijo. Durante esse tempo dirigiu-se sempre a Lettie, falando-lhe de um garden-party que estava programado para a próxima semana, em Highclose.
- A benefício de quê? interrompeu o Senhor Saxton.
- benefício? repetiu Leslie, admirado.
- Sim, dos missionários, ou dos desempregados, ou de quê?
- Trata-se de um garden-party e não de um bazar de caridade, esclareceu Leslie.
- Ah, coisa particular... Julguei que fosse assunto de igreja, pelo qual sua mãe se interessasse. Ele é muito apegada à igreja, não é verdade?
- Decerto, respondeu Leslie, que passou a expor a Lettie o seu plano de um torneio de tênis no qual pretendia que ela tomasse parte. Mas nessa ocasião percebeu que estava a monopolizar a conversa e, voltando-se para George - que tentava tirar com a faca um pedaço de queijo que se prendera aos dentes - perguntou por cortesia:
- Joga tênis, Senhor Saxton? Sua irmã sei que não joga...
- Não, replicou George, ainda às voltas com a faca e o queijo, nunca aprendi habilidade de senhoras.
O visitante voltou-se então para Emily, que empurrava dois pratos a fim de esconder uma nódoa da toalha, e surpreendeu-a com a seguinte declaração:
- Minha mãe gostaria muito que fosse ao garden-party.
- Agradeço reconhecida, mas é impossível. Tenho a escola...
- São muito amáveis, atalhou o pai, sorrindo.

George, nessa altura, mostrou uma expressão desdenhosa.
Terminada a ceia, Leslie olhou para Lettie como que a informá-la de que estava pronto a partir. Ela, contudo, fingiu não entender e pôs-se a discutir animadamente com o Senhor Saxton, que estava encantado. George, a quem o fato lisonjeava, juntou-se à conversa com evidente satisfação. O silêncio amuado de Leslie começou a pesar sobre nós todos. De aí a pouco George disse ao pai:
- Não me admirava nada que a vaca ruiva parisse esta noite.
Ao ouvir isto, Lettie despediu um olhar faiscante, prova de que estava divertidíssima.
- É também a minha impressão, respondeu o dono da casa.
- Tem os sinais todos, continuou o filho, depois de uma pausa.
- George! gritou a irmã.
- Vamo-nos embora, disse Leslie.
Desviando a vista para o lado, George encontrou os olhos de Lettie e sorriu com malícia.
- Empresta-me um xale, Emily? perguntou. Não trouxe nenhum agasalho, e suponho que o vento arrefeceu.
Emily, no entanto, viu-se forçada a lamentar a sua pobreza em matéria de xales, e Lettie não teve remédio senão enfiar um casaco preto por cima do seu vestido de verão. Ficava-lhe tão mal que todos desataram a rir, com o que Leslie não pareceu muito satisfeito: detestava vê-la servir de chacota, e procurou rodeá-la de todas as atenções possíveis, ajudando-a a prender a gola do casaco com o seu alfinete de pérola, da gravata, e recusando o que Emily acabara por descobrir, depois de várias buscas. Por fim saímos.
Leslie ofereceu o braço à minha irmã, afetando um ar de dignidade injuriada. Ela, porém, não o aceitou e ele principiou a queixar-se.
- Esperava que estivesse em casa, conforme prometera...
- Desculpe, mas não prometi nada.
- No entanto, sabia que eu vinha.
- E acabou por me encontrar!
- Sim, encontrei-a... namorando aquele tipo tão ordinário.
- Realmente, ele chama as coisas pelos seus nomes...
- O que lhe agrada, segundo vejo!
- Não me importa nada, replicou ela, com desdenhosa indiferença.
- Pensei que os seus gostos fossem mais requintados, retorquiu ele, sarcástico. Ainda bem que acha isso romântico...
- Muitíssimo!
- Detesto ouvir uma mulher dizer barbaridades, declarou Leslie, que tinha o horror de certas classes.
- E eu gosto tanto! insistiu Lettie, agravando assim a cólera do outro.
Leslie estava furioso.
- Estimo saber que George a diverte! rematou ele.
- Eu não sou difícil de contentar... A paciência do rapaz parecia esgotada.
- Resta-me a consolação, observou com frieza, de saber que não lhe agrado.
- Ora essa! Diverte-me também.
Depois disto, Leslie não falou, preferindo, com certeza, não a divertir.
Minha irmã enfiou o braço no meu e, com a mão livre, segurou a saia para evitar as ervas úmidas. Quando o seu admirador já se havia despedido, no extremo da floresta, ela observou:
- É tão criança!
- Chame-o antes pedaço de asno, respondi.
- Deixa lá... Sempre é mais amável do que o meu Taurus.
- Ah... o teu boi! confirmei eu, soltando uma gargalhada.

 

CAPÍTULO 3

 

No domingo que se seguiu à nossa visita ao moinho Leslie apareceu-nos de manhã em casa, solenemente vestido e afetando um ar não menos solene. Introduzi-o na sala e deixei-o só. Em geral, ele tomava a iniciativa de ir até à escada, sentar-se num degrau, e chamar dali por minha irmã. Mas, nesse dia, conservou-se mais reservado; fui eu quem levou a notícia da sua chegada. Lettie, que estava a acabar de se vestir, perguntou-me:
- E em que estado se encontra ele?
- Não perguntei.
Minha irmã riu-se e foi matando o tempo até serem horas de sair para a igreja. Só então desceu até aonde estava o seu galanteador e cumprimentou-o com uma reverência cheia de dignidade. Leslie ficou perplexo, mas não disse nada. Atravessando a sala, ela dirigiu-se à janela onde havia lindíssimos gerânios.
- Preciso enfeitar-me, declarou.
Era costume de Leslie trazer-lhe flores. Como não o fizera nesse dia, minha irmã sentiu-se magoada. Além disso, sabia ela quanto o visitante embirrava com o cheiro e com a brancura opressiva daqueles gerânios - e foi bastante para que, sorrindo-lhe, prendesse alguns no vestido, sobre o peito, e lhe dissesse:
- São lindos, não são?
Leslie murmurou qualquer coisa que significava concordância. Nessa altura apareceu minha irmã, que o saudou efusivamente e lhe perguntou se não a acompanhava à igreja.
- Se me permite... respondeu o rapaz.
- Está muito discreto hoje...
- Hoje? repetiu ele.
- Acho que a modéstia fica mal a um moço, continuou minha mãe. Vamos, que já é tarde.
Durante todo aquele dia, e até de noite, Lettie usou os gerânios.
À hora do chá convidou Alice Gall e pediu que eu me encarregasse de sora taureau quando o animal terminasse a sua faina da lavoura.
O tempo manteve-se quente e abafadiço. Quando atravessamos o regato, o sol avermelhava-se para as bandas do poente e começavam a exalar-se os aromas da noite, espalhando-se misteriosamente no ar calmo. Um clarão amarelo e oblíquo, do astro que morria, conseguiu furar o espesso dossel de folhas e veio aderir aos cachos das bagas de sorveira. As árvores conservavam-se imóveis, preparando-se para o sono. Pálidas e pensativas, algumas orquídeas cor-de-rosa olhavam, junto da vereda, para a fila rubra das búgulas, cujas derradeiras flores, cintilando no caule verde, ansiavam pela carícia do sol.
Eu e George vagueamos silenciosos, temendo perturbar a tranqüilidade da floresta. Mais perto de casa ouvimos um murmúrio que vinha do meio das árvores, do lugar onde havia um tronco tombado que o musgo rendilhara e no qual poderiam sentar-se dois namorados.
- Apaixonados a discutirem com um poente destes! comentei eu, enquanto prosseguíamos o nosso caminho. Mas, ao chegarmos à árvore caída, não vimos ali nenhuns amantes, - apenas um homem a dormir e a ressonar. A cabeça grisalha, de onde escorregara o
boné, apoiava-se num molho de gerânios que decoravam o tronco musgoso, sua roupa era de boa qualidade, mas amarrotada e suja e a cara do homem indicava, na sua palidez, anos de dissipação e de doença. Ao respirar, a barba cheia de fios brancos subia e baixava, e os lábios desgraciosos moviam-se numa conversa imperceptível. Devia estar lembrando algum episódio de sua vida, contorcendo as feições, gemendo - e falando talvez para uma mulher. Era inegável que o dorminhoco sofria.
Então abriu a boca, numa careta horrível, e mostrou os dentes amarelos. Falava agora mais alto, de modo que se compreendia alguma coisa do seu monólogo, muito pouco amável. Comecei a pensar na maneira de terminar com a cena, quando de súbito, do meio da floresta, nos alcançou o guincho de um coelho apanhado por alguma doninha. O homem acordou com um "Ah!" estridente, olhou em volta, consternado, e, sucumbindo de novo à sua fraqueza, murmurou:
- Sonhei outra vez.
- Não parece que o sonho fosse muito agradável, observou George.
O desconhecido encolheu-se, olhou-nos e perguntou, num tom quase de escárnio:
- Quem são os senhores?
Sem respondermos, esperamos que ele se mexesse. O homem, contudo, permanecia imóvel, espantado para nós.
- Com que então sonhei! exclamou de ai a instantes, com voz fraca. Sonhei, sonhei! Suspirou profundamente e ajuntou, escarninho: Levanto suspeitas?
- Não, disse eu, mas com certeza se enganou no caminho. Que estrada tenciona seguir?
- Quer que eu me vá embora?
Tomei um ar condescendente, sorri e repliquei:
- Não. me interessam os seus sonhos. Mas a verdade é que por aqui não há nenhum caminho.
- Então para onde vai o senhor?
- Eu? Para minha casa, respondi já sério.
- Pertence à família Beardsall.
- Pertenço, volvi eu ainda com maior seriedade. No íntimo, pensava quem poderia ser aquele indivíduo.
O homem ficou olhando-me durante uns momentos. Escurecia em torno do bosque. Então, pegando numa bengala de madeira preta e castão doirado, o desconhecido levantou-se. A bengala chamava atenção, e eu pus-me a examiná-la enquanto o seu possuidor se afastava pela vereda, direto ao portão. Com ele, saímos na estrada; ao chegarmos a um ponto desarborizado, onde os raios do poente nos davam em rosto, o velhote virou-se para trás e observou-nos de perto, abriu a boca tal se quisesse falar e
tornou logo a fechá-la. De aí a pouco disse:
- Adeus.

- Precisa de alguma coisa? perguntei, vendo-o cambalear.
- Não. Adeus.
Seguimos cautelosos na escuridão e vimos, na estrada real, os faróis de um veículo: seguiu-se o estalo de uma portinhola e o matraquear da carruagem que se afastava.
- Quem diabo será ele? comentou George, divertido.
- Parece-me que não fiz boa figura, ajuntei.
- Parece?
Esta observação do meu amigo denotava ao mesmo tempo surpresa e indulgência.
Voltamos resolvidos a não dizer nada do caso às senhoras. Minha mãe, Alice e Lettie esperavam por nós junto da janela.
- Demoraram tanto! exclamou a última. Vimos o pôr do sol, que foi magnífico. Olhem, o alto da colina ainda está ardendo... Que fizeram vocês?
- Aguardamos que o teu querido Taurus acabasse de trabalhar.
- Cala-te, ordenou-me depressa; e, voltando-se para George, minha irmã perguntou:
- Vem disposto a entoar hinos?
- Tudo que quiser.
- Ah, que simpático! interveio Alice, irônica. Era uma moça baixa e roliça, pálida, de olhos atrevidos. A família da mãe - os Wylds - tinha fama de irritar a burguesia tanto pela sua independência como pelo excesso de integridade. Alice, filha de um homem admirável e de uma mulher que amava apaixonadamente o marido, mostrava-se estouvada à superfície mas no fundo era dócil e correta. A mãe dela e a minha estavam ligadas por íntima e segura amizade e Lettie dispensava à filha a maior das simpatias; mas isso não impedia que minha irmã censurasse muitos excessos de Alice, embora às vezes se deliciassem com eles - quando não fossem
presenciados por gente superior. Havia homens que adoravam a sua companhia, embora evitassem ficar a sós com ela.
- Responderia a mim a mesma coisa? inquiriu Alice.
- Depende da conversa... volveu George, bem disposto.
- Que homem tão prudente! Eu prefiro uma pedra no sapato do que um homem cauteloso. Não concordo, Lettie?
- Isso é conforme o passeio que eu tivesse de dar, replicou-lhe a amiga. Mas, se não fosse preciso coxear muito...
Alice afastou-se rapidamente de minha irmã, a quem ela às vezes considerava irritante. E, falando então comigo, notou:
- Acho-o mal humorado, Cyril. Alguém o beijou?
Ri, interpretando pelo pior lado a sua malícia feminina. E retorqui:
- Se assim fosse, eu devia estar contente.
- Então alegre-se! acudiu ela, tocando-me de leve no queixo. Em seguida recomeçou a falar com George: - Como vocês estão solenes! Que aconteceu? Diga alguma coisa, antes que eu comece a sentir-me nervosa.
- Que hei-de-dizer? disse ele, com os cotovelos fincados nos joelhos.
- Meu Deus! gritou Alice, já impaciente.
George, todavia, recusou-se a satisfazer sua curiosidade, limitando-se a sorrir, um pouco inquieto. Para disfarçar, admirou os quadros, a mobília e tudo quanto havia na sala. Como Lettie tivesse levantado para compor as flores na prateleira do fogão, ele aproveitou o ensejo para observá-la de perto. Minha irmã estava vestida
de seda azul, com rendas na garganta e nos punhos. Alta como era, a sua figura tinha esbelteza; e o cabelo, fino e encaracolado, tornava-a mais bonita. George não seria mais alto do que ela, antes parecia baixo a seu lado, devido à robustez do corpo: mas não se podia considerá-lo desprovido de elegância, embora não o ajudasse a posição que tomara na poltrona, um tanto rígida. Os movimentos que fazia é que denotavam garbo.
Momentos depois mamãe chamou para a ceia.
- Venha, disse Lettie a George, conduza-me até a mesa. O rapaz levantou-se, mas sentia-se acanhado.
- Dê-me o seu braço, continuou ela, para arreliar George atendeu corando. Afligia-o aquela pele fresca semi-oculta pela renda, que lhe roçava a manga do casaco.
Quando estávamos sentados, Lettie pegou a colher e perguntou ao seu companheiro o que desejava. Ele hesitou olhando desconfiado para os pratos desconhecidos que via à sua frente; e respondeu que preferia queijo. Insistimos em que provasse dos manjares novos.
- Tenho a certeza de que gosta de outras coisas, notou Alice em tom de mofa. Ele vacilou de novo, não sabia distinguir nada daquilo, sentiu-se confuso; dir-se-ia que perdera o paladar. Alice pediu que se servisse de salada.
- Muito obrigado, não gosto.
- Oh, George! É capaz de me responder assim, quando sou eu que lhe peço?
- Já comi uma vez, tartamudeou ele. Foi alface com vinagre. .. mas não gostei.
- A nossa é doce como mel. Olhe que não tem vinagre nenhum.
- Acredito, replicou, para ser agradável.
- Ora ouçam. O nosso George acreditou em mim. Era isso que eu queria.
George esboçou um sorriso amarelo. Tinha a mão sobre a mesa, com o polegar escondido entre os outros dedos, e apertava-o nervosamente. Por fim o jantar acabou, e ele, apanhando o guardanapo que caíra ao chão, começou a dobrá-lo. Lettie parecia também embaraçada: entretivera-se aborrecendo o seu convidado, mas o acanhamento deste conseguira
torná-la aborrecida. Agora sentia-se triste e com remorsos; para dissipar a melancolia, resolveu ir até ao piano, como era, aliás, seu costume em casos semelhantes. Se estava zangada, tocava fragmentos de Tchaicovski; se se considerava infeliz, executava
Mozart. Nesse momento tocou Handel de uma forma que sugeria castigos do céu nas notas longas e, nos trinados, lembrava alguém valsando na escada de Jacob, como as donzelas dos quadros de Blake.
Quantas vezes eu disse a minha irmã que ela se servia escandalosamente do piano para exaltar os seus sentimentos! Em geral, fingia não me ouvir; mas, nessa noite, surpreendeu-me com um súbito acesso de lágrimas. Em atenção a George, tocou depois a Ave Maria de Gounod, calculando que a melodia daquela música faria bem ao rapaz e o levaria a esquecer os pequenos aborrecimentos. E eu, observando o efeito desse encantamento fácil, não pude deixar de sorrir. Ao terminar, Lettie demorou por um minuto os dedos sobre as teclas; depois girou na banqueta, fitou George diretamente nos olhos e pareceu prometer-lhe um sorriso. Mas baixou logo a vista e disse:
- Está cansado de me ouvir.
- Não, não estou, apressou-se ele a responder, abanando a cabeça.
- Gosta mais de música do que de salada? perguntou ela num assomo repentino de alegria.
George mirou-a, numa expressão embevecida, e não replicou. Quando olhava e sorria de modo inesperado, parecia inundar as pessoas num banho de ternura; contudo, não era belo, e quase sempre conservava um aspecto taciturno.
- Então vou continuar, declarou minha irmã, voltando-se para a frente.
Tocou trechos disto e daquilo, de modo distraído e, num movimento brusco, depois de ter esboçado uma espécie de queixa sentimental, abandonou o piano e foi enterrar-se numa cadeira baixa, junto do fogão. Uma vez ali, procurou George com os olhos; ele teve consciência daquela súplica, mas não se atreveu a ceder e ficou torcendo o bigode.
- Você, no fim de contas, não passa de uma criança, disse-lhe ela então, muito calma. O lavrador perguntou-lhe porque.
- Sim, uma criança, repetiu ela, recostando-se no espaldar da cadeira e sorrindo com ar indolente.
- Nunca tinha me lembrado disso, observou George, com perfeita seriedade.
- Palavra?
- É como digo, confirmou ele, tratando de reunir suas recordações.
Lettie riu-se com vontade e prosseguiu:
- Está em crescimento.
- Como?
- Em crescimento.
- Sou capaz de jurar que nunca fui criança.
- Escute: a sua infantilidade não o impede de ser homem jôrio. Outro qualquer mal se atreveria a tanta simplicidade, com medo de perder o ar digno. Tolices!
O rapaz achou a explicação divertida e, como de costume, pôs-se a matutar no caso.
- Gosta de estampas? perguntou ela de repente, já cansada de olhá-lo.
- Mais do que tudo.
- Menos do que jantar, aquecer, se espreguiçar-se...
Sentindo-se humilhado com aquela apreciação, George mordeu lábios, sem replicar; e Lettie, arrependida, sorriu com doçura.
- Então vou mostrar-lhe algumas.
Dizendo isto, levantou-se e saiu da sala. O rapaz teve, no entanto, a impressão de que se aproximava mais dela. Daí a pouco voltou carregando uma pilha de livros enormes.
- Isso é que é força! exclamou ele.
- Muito amável...
George olhou desconfiado, para ver se ela estaria fazendo troça.
- É tudo quanto sabe me dizer? perguntou Lettie.
O rapaz deu uma resposta vaga, para não se comprometer.
- Conheço, prosseguiu ela, pondo os livros sobre a mesa, quais os pensamentos dos homens pela maneira como me observam. Ajoelhou defronte do lume
e continuou: Alguns olham para o cabelo, outros à minha maneira de respirar, ou reparam no nariz... e outros, mas poucos, fitam-me nos olhos para ler o
que eu penso. Você não pertence a este último grupo. Para você sou um espécime de outra natureza: muito forte! Ah, que homem primitivo!
George pôs-se a entrelaçar os dedos. Ela desconcertava-o.
- Traga a sua cadeira para cá, ordenou ela, sentando-se à mesa e abrindo um dos livros.
Falou depois sobre cada gravura, insistindo em querer saber a opinião dele. Às vezes discordavam e o rapaz parecia pouco convencido; outras vezes Lettie ficava escandalizada com as opiniões que ouvia.
- Se, notou ela, viesse agora um bretão de outros tempos, vestido de peles, para me contrariar como você, não seria justo que o aconselhássemos a não fazer figura de parvo?
- Não sei...
- Pois devia saber! Nunca sabe nada.
- Como é, então? Minha irmã desatou a rir.
- A pergunta foi tão fácil! Olhe, você podia ser mais. .. vivo.
- Muito obrigado, respondeu ele, em tom irônico.
- Ah, julga que é um modelo de perfeições? Fique sabendo que o acho indolente.
- Sim, é um molengão, interveio Alice, que nesse instante reentrava na sala, pronta para partir. Não é capaz de sacudir-lhe Lettie?
- Não me sinto com esse direito.
- Adeus a todos, continuou Alice. Vamos, Cyril, está um luar de primeira ordem. Boa noite.
Acompanhei-a a casa, e os outros dois ficaram olhando as gravuras.
George tinha inclinações românticas, gostava de Copley, Fielding, Cattermole e Birket Foster. Girtin e David Cox não lhe diziam nada. Em certa altura puseram-se a apreciar George Clausen.
- Este é um verdadeiro realista, disse Lettie. Torna belas as coisas vulgares, vê o mistério e a grandeza que nos envolvem ainda quando fazemos
trabalhos subalternos. Se eu montar no campo, a seu lado...
Aquilo era novo para ele e feriu a sua imaginação. A estampa em discussão representava uma aquarela de Clausen intitulada Mondando. Lettie não largou o assunto:
- A cor poente é mesmo assim, e, se olhar para a terra, notará que existe nela como que um oiro quente... Compreenda o colorido, isso leva-lo-á a perceber tudo. Você, por enquanto, está cego, é como um recém-nascido, só deseja dormir, vive muito materialmente: é como um piano que só tivesse as notas mais vulgares. O pôr do sol não significa nada para si, é uma coisa que acontece todos os dias... Não me obrigue a torturá-lo. Se houvesse vindo ao mundo numa casa onde alguma coisa o oprimisse, alguma coisa que não pudesse entender; se jamais acreditasse ou duvidasse... De qualquer destes modos, podia ser um homem e não uma criança. Não, não tem crescido, é como os bulbos que passam todo o verão a inchar, a inchar mas que nunca dão flor. Quanto a mim, a flor já apareceu, mas quer continuar a crescer. O que é demasiadamente alimentado não floresce. Você tem de sofrer antes de desabrochar. Quando a morte se aproxima de uma planta, instiga-a ao amor da floração. Decerto quer saber se a morte me tocou já. Ouça: nesta casa há sempre a sensação da morte. Creio que a minha mãe, antes de eu nascer, odiava o meu pai: havia pois, nas suas veias, uma corrente mortífera. Isso tem sua importância...
George ouvia, de olhos esbugalhados e boca aberta como uma criança que pressente a história que lhe contam mas não compreende as palavras. Ela, por fim, pousou nele o olhar, e começou a rir suavemente. Depois, batendo-lhe de leve na mão, murmurou:
- Desorientei-o? Foi grande amabilidade a sua ter-me escutado. Não há nenhuma intenção nisto tudo... tão fora da realidade!
- Mas... por que o disse?
- Que pergunta! Agora voltemos à vaca fria. Estamos a olhar um para o outro como dois patetas.
Falaram de novo sobre as reproduções de quadros. De súbito, George exclamou:
- Repare!
Era o Idílio de Maurice Griffinhagen.
- Que tem? indagou ela, corando lentamente. Lembrara-se do seu próprio entusiasmo quando vira aquilo pela primeira vez.
- Bonito, não acha? disse ele, mirando com olhos brilhantes a sua interlocutora. O seu sorriso, que não era sinal apenas de satisfação, mostrava-lhe
os dentes muito brancos.
- O quê? volveu Lettie baixando a cabeça, um tanto confundida.
- Aquela mulher... receosa... e apaixonada!
- E natural que sinta certo medo ao ver o bárbaro em todo o seu esplendor, envolto em peles e tudo mais...
- Mas não gosta disto?
Minha irmã encolheu os ombros, replicando:
- Namore a primeira mulher que encontrar. Na altura em que as papoulas avermelharem os campos, já ela estará caída nos seus braços. Haverá necessidade de mais alguma coisa, além de a trazer meio assustada?
Enquanto falava, ia brincando com as folhas do livro, sem olhar para o seu companheiro.
- No entanto... gaguejou ele, de olhos cintilantes, seria... antes...
- Oh, santa inocência!
- Mas, insistiu o rapaz, eu não sei se gostaria de qualquer mulher que eu soubesse que...
- Querido Galaaz, redarguiu Lettie, em voz galhofeira, acariciando o queixo com o dedo. Você devia ter sido monge... ou mártir. Devia ser frade cartuxo.
George riu, sem fazer caso daquele discurso. Experimentava uma sensação nova para ele, como que um fogo a arder no peito e nos músculos dos braços. Ofegante, olhou para os seios de Lettie, e estremeceu.
- Está estudando o seu papel? perguntou ela.
- Não, mas... Tentou fitá-la, mas não o conseguiu. Encolhendo-se todo, deixou pender a cabeça, enquanto ela perguntava, cheia de curiosidade:
- Mas o quê?
Já mais calmo, o lavrador ergueu a vista: e os seus olhos, grandes e expressivos, pareciam queimá-la, como se deles irradiasse uma labareda que atingisse as faces de Lettie. Ela é que, por sua vez, dobrou a cabeça, pondo-se a alisar o vestido.
- Nunca tinha visto esse quadro? inquiriu em voz baixa. E ele, cerrando as pálpebras e retraindo-se envergonhado, murmurou:
- Não, nunca o tinha visto.
- É para admirar. Trata-se de uma obra vulgarizada.
- Ah, sim?
Este pretexto para conversa acabou por se esgotar.
Lettie ergueu de novo o olhar e encontrou o dele. Fitaram-se por um momento antes que baixassem mais uma vez a cabeça. Era, para ambos, verdadeira tortura essa contemplação muda - dor recolhida que eles se obrigaram a suportar nesse instante e que depois lhes encheu as veias de um fluido ígneo, assustador. Lettie, alarmada, procurou dizer qualquer coisa.
- Suponho que o quadro está em Liverpool, foram as suas primeiras palavras.
George não se atreveu a perder a deixa. Tinha consciência da situação e achou necessário replicar:
- Ignorava que houvesse um museu em Liverpool.
- Há, sim, e muito bom.
Os olhares encontraram-se noutro relance, mas ela voltou logo a cara, e ele fez outro tanto. Assim, com a vista desviada, conversaram ainda um pouco. Por fim, Lettie levantou, pegou os livros e levou-os consigo; à porta voltou-se e aproveitou o ensejo para dizer:
- Está admirando a minha força?
A sua atitude não deixava de ser bela. Como levantara muito a cabeça, via-se-lhe a curva da garganta descendo suavemente até o peito, que se entumescera com o esforço dos braços a segurarem os livros. George contemplou-a, e nos lábios de ambos adejou um sorriso. Lettie ergue mais o pescoço, como se estivesse bebendo, e um e outro sentiram o sangue latejando-lhes nas fontes. Então, com um leve tremor, ela virou a cara e desapareceu da sala.
Enquanto minha irmã esteve ausente, George ficou torcendo o bigode. Pouco depois ela chegou; ao atravessar o vestíbulo, viera falando sozinha, em francês. Tendo visto Sarah Bernhardt representar a Dama das Camélias e Adriana Lecouvreur, Lettie aprendera o estranho tom de voz da grande atriz e costumava imitá-la de vez em quando. Nesse momento, dando de cara com o rapaz, riu-se para ele - que lhe ripostou fosse o que fosse - e continuou a pronunciar palavras na mesma língua, com um
sotaque cheio de asperezas. Aquilo soou de forma singular e desconcertante. Notei (como muitas vezes mais tarde) que havia no rosto de George uma perplexidade dolorosa, tal a sensação de qualquer coisa que o magoava e que ele não conseguia entender.
- Devemos parecer loucos uma vez ou outra, disse ela, para mostrar que ainda não envelhecemos.
- Gostava de ter compreendido, disse George, ainda de semblante triste.
- Coitado! exclamou Lettie, divertida. E tão modesto! Já vai embora, realmente? Acho-o tão melancólico... Vão julgar, na sua casa, que não lhe demos ceia.
- Ceei uma quantidade de coisas... retorquiu ele, agora sorridente, querendo aventurar-se a uma frase de efeito. Mas estava excitado em demasia.
- ... de coisas horrorosas, atalhou a moça, rematando-lhe o período. E este final ainda é o pior de tudo.
- Acha?
Fitaram-se por momentos, ambos risonhos.
- Muito pior. Esperaram uns segundos, sem dizer mais nada. George olhou-a de novo.
- Adeus, disse ela, estendendo a mão. A voz denotava, ao mesmo tempo, ternura e rebeldia. George tornou a observá-la, de olhos chamejantes,
e depois agarrou-lhe a mão, demorando-a na sua, apertando-lhe os dedos... Envergonhada de haver sido tão expansiva, Lettie baixou o olhar e, nessa
ocasião, viu que o rapaz tinha um ferimento no polegar.
- Que grande golpe! bradou, enquanto fazia, trêmula, uma pequena pressão no dedo magoado.
George soltou uma risada.
- Não dói? perguntou ela, muito solícita.
Ele tornou a rir. E respondeu naturalmente, como se aquele polegar não lhe merecesse nenhuma consideração:
- Nada...
Trocaram mais um sorriso. Então, com um movimento brusco, George quebrou o encanto, e afastou-se.


CAPÍTULO 4

 

Chegara o Outono. As dálias-vermelhas, que em geral se conservam vivas e luminosas até tão tarde, apareceram com as corolas murchas e apodrecidas.
Uma tarde, quando eu passava defronte da porta do correio, chamaram-me de lá de dentro e entregaram-me uma carta para minha mãe. Observei o sobrescrito, cuja caligrafia tortuosa me causou um mal-estar inexplicável, meti a carta no bolso e depressa me esqueci dela. Em casa, querendo lembrar-me de qualquer coisa que interessava à minha mãe, recordei-me do fato e entreguei a carta. A destinatária reparou também no sobrescrito e começou a rasgá-lo nervosamente. Chegou-se depois mais para a luz e, de olhos semicerrados, pôs-se a esquadrinhar o conteúdo. Fui buscar-lhe os óculos e ela mal me agradeceu. Suas mãos tremiam. Leu a carta num instante, em seguida sentou-se, voltou a ler, e continuou a olhar para o papel.
- Que é, mãe? perguntei-lhe.
Não me respondeu, e ficou na mesma posição. Aproximei-me dela, pus-lhe a mão no ombro, receoso de qualquer má notícia, e ouvi-a murmurar, como se eu não estivesse presente:
- Coitado de ti, Frank.
Frank era o nome de meu pai.
- Que sucedeu, mãe? insisti.
Virou-se ela então, fitou-me como quem olha para um desconhecido, pôs-se de pé e começou a passear na sala. Depois saiu; percebi que se dirigia ao quintal.
O papel escorregara para o chão. Apanhei-o. Toda a caligrafia mostrava o mesmo aspecto desordenado que eu já notara no sobrescrito; a data indicava ter a carta sido escrita dias antes, numa aldeia situada a poucas milhas de distância. E o texto dizia.

"Minha querida Lettice:
Participo que estou quase morrendo: não poderei durar mais de dois dias, com os rins neste estado.
Fui aí um dia; não a vi, mas descobri nossa filha à janela e troquei meia dúzia de palavras com o rapaz. Nem um nem outro me reconheceram. Se soubesse como me sinto só, horrivelmente só, teria pena de mim.
Tenho poupado o mais que posso, para que seja reembolsada. Agrada-me ver chegado o meu fim, que bem mereci. Não podia ser pior.
Adeus, para sempre. Teu marido.
Franfe Beardsall."

Fiquei perplexo com a leitura desta carta. Fiz um esforço para me recordar de meu pai, mas, com grande esforço, só consegui rever a imagem que me deixava na memória certa fotografia antiga, socorrendo-me ao mesmo tempo da descrição feita por minha mãe: homem alto, belo, melancólico, de olhos claros.
Esse casamento fora infeliz. Meu pai era frívolo, de caráter ordinário, se bem que não fosse destituído de atrativos. Mentiroso, sem a mínima noção da honra, desiludira por completo as expectativas da mulher. Umas após outras, descobrira ela todas as irregularidades do homem a quem se ligara; sentia a alma revoltar-se e, como o sortilégio se partira em mil pedaços, afastou-se com a amargura de quem vê o seu romance transformar-se numa farsa imoral. Quando ele a deixou, trocando-a por outros prazeres - Lettie estava com três anos, e eu com cinco - minha mãe não sentiu senão alívio. Depois, só recebera notícias indiretas, que o não reabilitavam embora a sua situação material houvesse prosperado. O caso é que ele nunca lhe escrevera nem a procurara durante dezoito anos.
Entretanto, minha mãe regressou do quintal, e sentou-se numa cadeira, entretendo-se a fazer bainhas na orla do avental.
- A verdade, disse ela, é que Frank tinha direito aos filhos e que eu os guardei todo este tempo.
- Ele podia ter voltado, se quisesse, observei.
- Eduquei vocês contra o pai, mantive a distância - e ele queria tanto aos filhos! Devia estar agora a seu lado; devia tê-lo levado lá há mais tempo.
- Como, se não conhecia o seu paradeiro?
- Ele queria voltar... suspeitei disso nestes últimos anos. Mas conservei-me afastada, bem o reconheço. Coitado! Há-de ter compreendido os seus erros. Eu fui mais cruel...
- Não diga isso. Está falando debaixo da impressão recebida.
- Pressenti ultimamente que ele estava mal. Não sei como, mas adivinhei a sua doença, e tive a suspeita de que queria tornar a ver-nos.
Há três meses, em especial, que eu estava inquieta. Ah, fui bastante cruel!
- Então vamos, sugeri. Vamos lá visitá-lo.
- Amanhã, amanhã, replicou minha mãe, parecendo que só nesse momento reparara em mim. Irei de manhã.
- Vou consigo.
- Sim, de manhã. À Lettie não se diz nada. Ela tem sua festa em Chatsworth.
- Não se diz nada, concordei.
De aí a pouco minha mãe subiu ao andar de cima.
Mais tarde, Lettie chegou de Highclose. Leslie não quis entrar. Na manhã seguinte foram de automóvel para Matloc e Chatsworth. Como andava excitada, minha irmã não reparou em nada.
Depois de eles terem partido, nós saímos também. Quando descíamos do comboio, em Cossethay, a tarde estava calma e dourada, e mamãe insistiu em fazer a pé o percurso de duas milhas, até a aldeia. Fomos devagar, pela estrada, demorando-nos a apreciar as flores rubras que ornavam as sebes. Dir-se-ia que não tínhamos grande desejo de chegar ao nosso destino. Ao avistarmos o campanário cinzento da igreja ouvimos sons de estridente música metálica: dançava-se animadamente numa quinta dos arredores.
Havia cavalos de pau e barcos girando em roda, sob o céu azul transparente. Sentamo-nos sobre os degraus de uma cancela, a observar o carrossel e as várias barracas espalhadas pelo campo. As crianças, em grupos, passavam de um divertimento para outro. Com dois baldes gotejantes nas mãos, um homem atravessou o espaço aberto; às portinholas dos carros espreitavam mulheres e, debaixo dos pés das pessoas, metiam-se constantemente cães magros e preguiçosos. Assim decorria a feira, com todos
os seus ruídos particulares.
A voz masculina e rouca de certa dama convidava as crianças curiosas a olharem pelo estereoscópio. Na tribuna do carrossel estava um homem; e escarranchando-se ali, inclinava-se para trás, assobiando forte com os dedos na boca. Numa barraca imunda via-se um sujeito gordo a gritar aos garotos reunidos à sua volta, intimando-os a desafiarem um rapaz corpulento que, numa atitude impassível, cruzava os braços e mostrava o vigor dos bíceps. Como alguém perguntasse se ele se responsabilizava
pelo desafio, o rapaz fez que sim com a cabeça, o que foi reforçado logo pelo empresário. Mais além, ouvia-se a voz esganiçada dos vendedores. A lamber um sorvete, aproximou-se de nós uma moça; mas não nos achou dignos de interesse, e prosseguiu o seu caminho em busca de outras distrações.
Estávamos tomando coragem para seguir através daquele tumulto quando o sino rachado da igreja dominou o burburinho, lançando ao ar três badaladas. Olhei para minha mãe - e ela afastou-se de mim.
A música do realejo continuava arrastando-se, a mulher de voz rouca fazia novos apelos. Depois houve um momento de calmaria. O empresário do atleta entrou então na barraca para lutar com este, os vendedores ergueram os seus clamores, os cavalos e os barcos recomeçaram a girar.
De súbito, o sino voltou a badalar, agora mais vezes. O barulho, no entanto, crescera à nossa volta. Um dos rapazes, que se atrevera a andar de carrossel, tinha ainda o pé no estribo quando aquilo principiou a girar, com risco de desequilibrar tudo. A moça do sorvete comia agora outro, lambendo-o com igual método. Minha mãe, distinguindo o sino em meio daquele reboliço, gritou-me que a seguisse - e assim nos apressamos através da feira, em direção à igreja.
Passamos depois por um jardim onde flores rubras espreitavam do topo das hastes compridas. Por toda a parte se desgrenhavam crisântemos e murchavam malmequeres. Esse jardim pertencia a uma casa baixa e escura, atrás de um muro de bambu. Fomos direto à entrada principal. As venesianas estavam descidas; mas, numa janela, distinguimos luz mortiça de velas.
- É a Vivendo, do Teixo? perguntou minha mãe a um rapaz.
- Da Senhora May? É aqui, respondeu ele.
- Ela vive só? - inquiri - por meu turno.
- Tinha um hóspede francês, mas ele morreu. É por isso que estão as velas acesas.
Batemos à porta.
- Vêm por causa dele? indagou uma velha curvada, de voz rouca, que nos perscrutava com os seus olhinhos azuis; ao mesmo tempo, meneava a cabeça, coberta com uma touca de veludo, e apontava para um quarto interior.
- Viemos, declarou minha mãe. Recebi uma carta.
- Ah, coitadinho! Lá se foi! volveu a mulher, sempre a abanar a cabeça. Depois inclinou-se mais para nós, cheia de curiosidade, pôs a mão mirrada no braço da minha mãe e cochichou:
- As velas já se apagaram por duas vezes.
- Preciso de entrar e tomar algumas disposições. Sou parenta mais chegada, explicou a mãe, com voz trêmula.
- Sim, senhora; estive dormitando e, quando acordei, já estava escuro. Ah, não preciso agora velar por ele, pobre homem!, como fiz tantas vezes. O que ele padeceu, credo! Levantou as mãos ressequidas e fitou minha mãe com maior atenção, erguendo para elas os olhos intensamente azuis.
- Sabe onde é que ele guardava os seus papéis? perguntamos em seguida.
- Sim, senhora, falei com o Reverendo Burns a respeito de tudo. Devemos rezar por ele, foi o que me disse o padre. Comprei as velas com o meu próprio dinheiro. Era muito esquisito, coitado. Pobre homem! repetiu a dona da casa, sacudindo a cabeça grisalha em ar de condolência.
Minha mãe deu um passo em frente.
- Quer vê-lo? acudiu a velha, um tanto receosa.
- Quero, respondeu a mãe, acompanhando a palavra com um aceno vigoroso. Tinha percebido que a outra era quase surda.
Entramos para a cozinha, que era baixa, comprida e escura, com os vitrôs fechados.
- Sentem-se, disse a velha no momento tom apagado, - como se falasse consigo mesma. Era irmã dele, talvez?
Mamãe abanou a cabeça.
- Ah, sua cunhada! retorquiu a hospedeira. Fizemos sinal negativo.
- São primos? continuou, olhando para nós já suplicante, Não a desmentimos desta vez.
- Esperem um minuto, pediu, saindo da cozinha no seu andar saltitante. Bateu a porta, ouvimo-la tropeçar numa cadeira, mas por fim voltou com
uma garrafa e dois copos, que pôs na mesa, na nossa frente. Mal se julgaria que esse pulso magro seria capaz de segurar uma garrafa cheia.
- Esta é a que ele bebia, explicou logo, enquanto nos incitava a provar. Bebam, para ganhar forças. Afastou-se outra vez e regressou com o açucareiro. Recusamos a bebida.
- Ele é que não tornará a tomar, coitado! E que boa pinga, minha senhora. Só bebia coisas boas. Mas há três dias que não engolia nem uma gota. Vá, não façam cerimônia. Recusamos de novo.
- Está ali, segredou ela, apontando para uma porta fechada, no canto mais sombrio da cozinha. Abri-a, arrisquei uns passos e, tropeçando, fui de encontro à mesa na qual ardia uma vela num castiçal de latão. A vela caiu no soalho e o castiçal rolou com estrépito.
- Oh! Meu Deus! gemeu a hospedeira. Correu, a tremer, para o outro lado da cama e tornou a acender o pavio que ainda fumegava. Nesse momento a luz
deu-lhe em cheio na cara encarquilhada e pôs reflexos nas maçanetas do leito de mogno. No chão, viam-se pingos, e na cama, debaixo da colcha, distinguia-se o contorno de um corpo. A velha ergueu a parte da roupa que cobria o cadáver e recomeçou nos seus lamentos. O coração batia-me com força; evitei o olhar mas não pude. Ali estava o homem que eu vira no bosque, porém já lívido. Senti ao mesmo tempo piedade e terror e uma impressão horrível de
pequenez, de isolamento num grande espaço vazio. Parecia que eu me encontrava para além de mim próprio, como se fosse uma sombra insignificante que se movesse na escuridão. Depois notei que minha mãe havia chegado e que, abraçando meus ombros, murmurava em tom dolorido:
- Filho, filho da minha alma!
Estremeci e voltei a mim. Não havia lágrimas nos olhos dela, apenas uma expressão de súplica.
- Não faz mal, mãe, não faz mal, disse eu, incoerentemente, no meio da minha atrapalhação.
Com as mãos velando-lhe o rosto, minha mãe dirigiu-se à dona da casa e impôs-lhe silêncio. Esta enxugou as faces e aconchegou os fios grisalhos debaixo da touca de veludo.
- Onde estão os haveres dele?
- Heim? perguntou a velha, apurando o ouvido.
- Está aqui tudo quanto lhe pertencia insistiu a mãe, com voz forte.
- Aqui? repetiu a mulher, indicando o quarto com a mão estendida. Havia, além da enorme cama de mogno, sem cortinados, uma escrivaninha, uma cômoda antiga de carvalho e duas ou três cadeiras. Não o pude levar para cima. Está cá pouco mais ou menos há três semanas, acrescentou de aí a instantes.
- Aonde está a chave da escrivaninha? perguntou minha mãe ao ouvido da outra.
- Sim, senhora, é a escrivaninha dele, respondeu, olhando-nos indecisa.
A cena confrângia-me.
- A chave! gritou minha mãe. Onde está a chave?
A velha, perturbada, não fazia outra coisa senão abanar a cabeça. Calculei que ela não soubesse, de fato, o que lhe perguntavam.
- E as roupas? As roupas? inquiri, apontando para o meu paletó. Ela, então, compreendeu e disse:
- Vou buscar.
Perto da cabeceira do leito existia uma portinha que dava para a escada do andar superior. Estávamos dispostos a seguir a hospedeira, que desaparecera a toda pressa por ali, quando ouvimos um passo pesado na cozinha e uma voz gritando.
- Teria a velha ido beber com o diabo? Viva, Senhora. May, venha antes beber comigo!
Sentimos o despejar de um líquido no copo e quase no mesmo instante entrou um homem no quarto, dizendo:
- Sempre quero ver onde está essa velha! Como acontecera comigo, esbarrou também na mesa, mas não derramou nada no chão. Raio de degrau! acrescentou em tom jovial. Devia ser o médico. Vinha de chapéu na cabeça e vagueou pelo aposento com a maior sem-cerimônia. Tinha a cara vermelha e era volumoso de corpo.
- Desculpe, disse ele, reparando em minha mãe, que baixou a cabeça num leve cumprimento. É a Senhora. Beardsall? ajuntou, tirando o chapéu.
Mamãe fez sinal afirmativo.
- Fui eu que pus no correio a carta para a senhora. Também é parente? perguntou a seguir, indicando-me.
- O mais próximo.
- Pobre homem! volveu ele, designando o morto. Conseqüências da vida solitária!
- A carta foi grande surpresa, para mim, disse minha mãe.
- Ele não estava em estado de escrever, tinha passado muito mal ultimamente. Enfim, mais tarde ou mais cedo temos de dar contas a Deus. Queira desculpar.
Houve um momento de silêncio, durante o qual o médico suspirou. Depois começou a assobiar baixinho.
- Será melhor levantar a venesiana, observou ele, deixando entrar no quarto uma nesga de luz. Em todo o caso, não hão-de ter muitas preocupações. Não ficaram dívidas. Creio até que deixou qualquer coisa. Já não está nada mau. Pobre diabo! Andava com a saúde muito ruim. Enfim, mais tarde ou mais cedo... Para onde teria ido o demônio da velha? exclamou de repente, olhando para o teto de vigas, que estremecia com o peso de alguém no quarto de cima.
- Gostava de encontrar a chave da escrivaninha, disse minha mãe.
- Vou procurá-la. E o testamento também. Ele informou-me quanto ao lugar onde tinha isso, e pediu-me que lhe entregasse tudo, quando a senhora viesse. Pensava muito na família, ao que me parece. Podia-lhe ter corrido melhor a vida...
Ouvimos nessa altura os passos da velha descendo a escada. O médico foi ao encontro dela, até aos primeiros degraus.
- Cuidado, cuidado, gritou ele. A pobre mulher fez o que era de esperar: embaraçou-se nos suspensórios de umas calças que trazia de rastos e veio cair nos braços do médico. Este restabeleceu-lhe o equilíbrio, ao mesmo tempo que dizia: - Não se machucou não?
- Ah, doutor, ainda bem que veio. Já viu quem está aí?
- Já, retorquiu ele, com os seus modos rudes mas bondosos. Correu à cozinha, arranjou dois copos de uísque e trouxe-os consigo. Um para si e outro
para mim. Isto dá-lhe forças!
A velha sentou-se numa cadeira junto da porta da escada, com a pilha de roupa caída aos pés. A claridade do dia, entrando pela janela, misturava-se com a dos castiçais e punha tons estranhos tanto na casa da hospedaria como na figura imóvel que estava na cama.
Enquanto a dona da casa segurava o copo com a mão trêmula, o médico deu-nos as chaves e pusemo-nos a vasculhar as gavetas, tirando para fora os papéis. Ele, sem deixar de bebericar o seu uísque ia dando informações acerca do defunto.
- Estava aqui há só dois anos. Começa a sentir-se cansado, disse com os meus botões. Vivera algum tempo no estrangeiro, e por isso é que lhe chamavam francês. Bebeu mais um gole e continuou: - Ah, sempre me pregou cada peça! Sonhava alto, de forma assustadora. Felizmente a velha é surda como uma porta. É horrível, sonhar assim. Um homem arruina-se por completo, quando isso lhe acontece. Bebeu novos goles de uísque, fez outras reflexões e afogou-as com mais bebida. - Mas era um tipo decente, generoso, de mãos largas. As pessoas que não gostavam dele é porque não o compreendiam.
Detesta-se sempre o que não se pode aprofundar. Muito metido consigo, isso é verdade, - exceto quando estava dormindo. Olhou para o copo, suspirou e prosseguiu: - Vamos sentir sua falta. Não é verdade, Senhora May? Fez esta pergunta em voz tão alta que nos sobressaltou; e, por instinto, olhamos furtivamente o leito mortuário.
Entretanto o médico acendera o cachimbo e fumava com sofreguidão, talvez para matar o desejo de beber novos copos de uísque. Mamãe e eu aproveitamos a ocasião para examinar os papéis. Cartas, havia poucas; duas eram endereçadas a pessoas de Paris. Mas encontramos muitas contas, recibos, apontamentos diversos: tudo coisas de negócios.
Em toda aquela desordem a custo se descobriria um traço de vida sentimental. Minha mãe escolheu alguns papéis que lhe pareceram de maior valor. Os outros incluindo as contas, levou-os para a cozinha e jogou-os ao fogo. Parecia ter medo de procurar além de certo ponto.
O médico, entretido com o fumo, voltou a expor os seus pensamentos:
- Há duas maneiras, sim, há duas maneiras.
Pode-se deixar arder a lâmpada com a chama forte, e vê-la brilhar, até que se extingue, e faz fumo, e cheira mal; ou então conservá-la com todo o cuidado sobre a mesa, sujar os dedos arrumá-la de vez em quando: dura mais e cheira menos. Neste momento olhou o copo e notou que estava vazio. Isso chamou-o à realidade: - Posso ser-lhe útil seja no que for, minha senhora?
- Não se incomode, muito obrigada.
- Calculo que não haja muito trabalho nessas arrumações. Nem muitas lágrimas a verter - quando um homem gastou a sua mocidade sabe Deus por onde!
Os que o conheceram moço não hão-de sentir grandemente a sua perda. Teve os seus dias, mas não os gozou muito - sempre a desejar mais e mais. Não há nada como viver casado, com a existência regrada. Depois disto recaiu numa das suas meditações, na qual se manteve todo o tempo em que nós fechamos a escrivaninha, queimamos os papéis inúteis, guardamos os mais importantes - na minha algibeira e na mala da minha mãe - e nos preparamos para sair. Foi só então que ele, olhando admirado para nós, disse de repente: - E a respeito do enterro? Em seguida, notando o ar de fraqueza de minha mãe, deu um pulo, agarrou no chapéu a toda a pressa e acrescentou: - Venha ter com minha mulher, que lhe dará uma xícara de chá. Tenho vegetado tanto no meio destes rústicos que me esqueço às vezes das normas da cortesia. Venham. Minha mulher está só.
Mamãe sorriu e agradeceu-lhe. Voltamo-nos para a porta. No limiar, porém, ela hesitou, dirigiu a vista, rapidamente, para o leito, e por fim decidiu-se a partir.
Ao sentir a frescura da tarde que findava, tive a impressão de que havia sido tudo mentira.
Custava-me a acreditar. Não, não existia realidade naquela face lívida, naquela barba grisalha onde a luz da vela punha nódoas ondulantes e amareladas. O leito de mogno e a velha surda eram simples ilusão dos meus sentidos. A verdade estava só nestes girassóis de cor intensa, nesse relógio do Hospício, na claridade da tarde que nos envolvia e reconfortava. Tive um arrepio, expulsei da memória
o quadro que me afigurava irreal e prossegui o caminho.
A residência do médico ficava num lugar agradável, entre faias. Junto de uma cerca de ferro, em frente do pasto, via-se nesse momento uma senhora acariciando o focinho de uma linda vaca Jersey, a observá-la de muito perto e a falar-lhe com acentuada pronúncia escocesa. Dir-se-ia que essa mulher pequena e rosada estava falando e
brincando com uma filha. Ao virar-se para nós, ficou surpreendida e saudou-nos ainda com um resto de ternura nos olhos.
Uma vez em casa, ofereceu-nos chá, bolos e geleia. Não me fartei de gozar o som da sua voz musical, que lembrava o zumzido de abelhas em torno do açúcar; e, embora não dissesse nada de especial, nós a escutamos com a maior atenção.
O médico era pessoa bondosa e alegre. A mulher lançava-lhe de vez em quando olhares receosos e fazia o possível por não encará-lo. Com os seus modos francos e joviais, o marido troçava, elogiando-a depois com exagero e tornava a
dirigir-lhe gracejos. Em certa altura começou a ser um nadinha enfadonho e eu percebi que a mulher temia
vê-lo embebedar-se deveras. Devia sentir horror ao espetáculo da embriaguez, que não parecia ser muito raro.
Não tinham filhos.
Ao notar a inquietação da mulher, o médico suspendeu as suas brincadeiras. Olhou para ela várias vezes e pareceu constrangido com o fato de a sua cara metade evitá-lo, então começou a ser visível o mal-estar desse homem, e eu percebi que ele queria ir-se embora.
- Talvez fosse preferível irmos agora ao padre, observou daí a pouco. E deixamos aquela sala cujas janelas se abriam para o sul, para as pastagens, aquela sala que revelava toda a história da família, quer nas aguarelas pretensiosas, quer nos tapetinhos bordados das mesas, nas jarras vazias, no piano fechado, nas xícaras desirmanadas, no bico rachado do bule que deixava nódoas na toalha, e nos dois romances de capa suja, vindos de uma livraria de empréstimo.
Fomos encomendar o caixão, e o médico bebeu um novo copo de uísque. Paguei as despesas do funeral, e ele selou o ato com uma gota de aguardente. O cálice de porto, que o padre ofereceu, completou a jovialidade do meu companheiro. Regressamos depois a casa dele.
Desta vez, a inquietação que a mulher mostrou nos olhos não conseguiu dissipar a alegria do doutor: ele tagarelava sem descanso e ela
limitava-se a fazer girar no dedo o anel de casamento. Apesar do ar alarmado que mostramos, o médico insistiu em nos conduzir no seu carro até a estação. A mulher, então tranqüilizou-nos.
- Podem ir com ele sem receio, declarou com sua voz de acento escocês.
Da estação de Eberwich até em casa há uma certa distância. Fizemos o percurso parte em ônibus e o resto a pé. Minha mãe, cansada como estava, sentiu bastante o caminho.
Rebeca esperava-nos junto dos rodondendros; correu cheia de solicitude ao encontro de minha mãe e perguntou se queria chá.
- Já tomei.
- Mas devia tomar outra chávena.
Na sala de jantar, recebeu o chapéu e o casaco de minha mãe e ficou à espera, desejosa de ser esclarecida mas com relutância de fazer qualquer pergunta. Afligiam-na as olheiras de mamãe e o seu ar fatigado.
- Lettie esteve em casa, participou em seguida.
- E foi-se outra vez?
- Veio só mudar de vestido. Levou o de popelina verde. E queria saber para onde tinham ido...
- Que respondeu?
- Disse que não se deviam demorar.
Achei-a alegre como um passarinho.
Depois disto, Rebeca olhou atentamente para minha mãe, que lhe disse:
- Sabe? Ele morreu. Acabo de vê-lo.
- Agora, graças a Deus, a senhora não terá que se aborrecer mais.
- Morreu abandonado, Rebeca.
- Como a senhora tem vivido, nem mais, volveu a criada, em tom áspero.
- Mas eu tive comigo os filhos. Não diga nada à Lettie.
- Não, minha senhora. Rebeca saiu.
- Você e Lettie receberão o dinheiro, disse a mãe, dirigindo-se a mim. Havia cerca de quatro libras, que lhe tinham sido deixadas; e, só no caso da sua morte, é que minha irmã e eu as herdaríamos.
- Pertencem-lhe, mãe, retorqui.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio. Foi ela quem o quebrou, dizendo:
- Podia ter tido um pai...
- Felizmente tivemos mãe. Poupou-nos isso.
- Não diga semelhante coisa!
- Digo e repito. Estamos gratos.
- Se algum dia sentir desprezo por alguém, trata de impedi-lo, e seja generoso, filho.
- Sim, senhora.
- Por agora, basta. Mais tarde ou mais cedo será preciso prevenir Lettie.
Eu o fiz uma semana depois. Minha irmã, insensível, perguntou-me:
- Quem mais sabe?
- Nós, a mãe e Becky.
- Mais ninguém?
- Não.
- Se ele era tão nocivo para a mãe, foi melhor que desaparecesse de vez. Onde está ela?
- Lá em cima.
E Lettie subiu as escadas, a correr.


CAPÍTULO 5

 

A morte do homem que fora nosso pai
modificou-nos bastante a existência: não que experimentássemos grande desgosto, mas porque nos dominou a impressão da vida malograda. Haviam-se alterado em nós os sentimentos e afinidades, criando-se outra percepção das coisas, novos e diferentes cuidados.
Tínhamos vivido sempre entre a água e a floresta - Lettie e eu. Ela, em especial, procurava em tudo as notas mais brilhantes; parecia ouvir as águas gargalharem e as folhas abafarem risos como se fossem meninas; via as árvores sacudirem os ramos, tal se estivessem a dançar, e julgava descobrir maior ternura no simples arrulhar dos pombos.
Mais tarde, todavia, reparara no lamento doloroso do ouriço cacheiro apanhado numa armadilha e percebera a existência de outras ratoeiras às quais serviam de engodo as tripas de um pobre coelho.
Certa ocasião, pouco tempo depois da nossa visita a Cossethay, Lettie foi-se sentar no banquinho da janela. O sol, que a amava e jamais a queria abandonar, apegara-se aos seus cabelos e beijava-os com lábios ardentes, que tinham o colorido das flores que a rodeavam. Minha irmã, olhando por cima de Nethermere, pousava a vista em
Highclose, sombra indecisa naquela névoa de Setembro. Se não fosse o clarão vermelho das suas faces, eu diria que elas estavam tristes e sérias.
Aninhando-se no canto da janela, daí a momentos Lettie apoiou a cabeça no peitoril de madeira, e adormeceu. Parecia a criança adorável de outrora, ali dormindo de lábios entreabertos, como num amuo - e respirando muito devagar. Senti o peso da minha velha responsabilidade: devia protegê-la, tomar conta dela.
Ouvimos passos no areão do passeio. Era Leslie que chegava. Pensando que ela podia vê-lo, tirou o chapéu; mas ficou admirado de que não se mexesse. Aproximando-se mais, percebeu então o motivo; piscou-me o olho e entrou nas pontas dos pés pelo quarto a dentro, a fim de contempla-la. Impressionado com a atitude suave e abandonada
de Lettie, com o ar de mocidade compassivo e submisso, que ela irradiava, ele a beijou nas faces avermelhadas pelos raios do sol.
Lettie despertou com um gritinho infantil. E ele, sentando-se ao seu lado, puxou-a carinhosamente, olhando-a sempre com olhos ternos e sorridentes. Julguei a princípio que minha irmã ia adormecer outra vez, mas as pálpebras tremeram e as pupilas luziram muito vivas.
- Leslie, deixe-me! exclamou, repelindo-o. O rapaz largou-a e levantou-se, fitando-a com severidade. Lettie, compondo o vestido, foi logo ao espelho para arrumar o cabelo.
- É tão atrevido! disse ela, ainda despenteada, cheia de vergonha e de rubor.
- Não se pode parecer bem e estar dormindo ao mesmo tempo, volveu ele, rindo e desculpando-a.
- Não é bonito o que fez! replicou a moça, ainda irritada.
- Por que não havia eu de beijá-lo? Não sou de cerimônias.
- Mas tratava-se de mim e não de você.
- Meu Deus, tanto barulho por uma coisa tão simples...
- Mamãe vem aí, preveniu ela. Minha mãe gostava bastante de Leslie.
- Ora viva, disse ao entrar, parece-me que estão zangados.
- Lettie ralhou comigo por eu a ter beijado quando ela representava o papel de Bela Adormecida.
- E este rapaz teve a presunção de se julgar o Príncipe?
- Infelizmente, sem qualidades dignas da personagem, retificou ele em tom pesaroso.
Lettie deu uma risada e perdoou-o. Era um homem elegante e atraente. Dava gosto vê-lo andar com movimentos vigorosos e elásticos. O rosto, porém, não agradava tanto como o conjunto da sua pessoa: tinha as sobrancelhas muito ralas, o nariz demasiado grosso e uma testa pouco favorecedora, se bem que não fosse curta. A expressão é que o ajudava muito, franca, risonha, saudável.
- Pois eu, disse ele, fitando-a e sorrindo, vinha buscá-la para sair.
- A tarde está deliciosa, interveio minha mãe. Lettie relanceou o seu admirador e respondeu:
- Sinto-me com tanta preguiça!
- Não importa. Despertará lá fora. Vá pôr o chapéu, Parecia impaciente. Minha irmã, observando-o, viu-o sorrir de certa maneira especial, baixou os olhos e saiu da sala.
- Irá, no fim de contas, disse ele, falando consigo próprio, mas em voz alta. Gosta de se fazer de rogada.
Lettie devia tê-lo ouvido, pois, ao reaparecer, já a enfiar as luvas, declarou-me tranqüilamente:
- Você vem também.
Leslie rodou nos calcanhares e encarou-a surpreendido e furioso.
- Preciso de ficar, disse eu, sentindo-me constrangido. Falta acabar esta aguarela.
- Não, não, vem conosco, insistiu ela. Puxou-me da cadeira e tirou-me o pincel da mão.
O sangue afluiu ao rosto de Leslie, que se dirigiu rápido ao vestíbulo, donde voltou com o meu boné.
- Está bem! rematou, ainda colérico. As mulheres têm a mania de que são Napoleões.
- É verdade, Senhor Duque de Ferro, acudiu ela, zombeteira.
Para não perder o assunto que ela sugerira, Leslie replicou ato contínuo:
- O pior é que há sempre Waterloo... Vamo-nos embora, sim?
- Às ordens, volveu ela, tomando-me o braço.
Fomos através do bosque até a estrada real, passando pelos terrenos fronteiriços, de vegetação hirsuta - esses terrenos que podiam constituir um parque mas que permaneciam abandonados, com ervas e montículos erguidos pelas toupeiras; estavam cheios de urzes, sarças, e espinheiros aqui e ali, formando estranhos grupos.
Na estrada, as folhas estalavam debaixo dos nossos pés. As águas conservavam-se calmas e azuis e as medas de cereais pareciam vultos adormecidos.
Trepamos o outeiro por detrás de Highclose e seguimos ao longo do planalto, procurando com a vista as colinas do árido Derbyshire; mas era outono, não podíamos avistá-las. O que descobrimos foram os cabeçotes da mina de Selsby e a respectiva aldeia, de tão feio aspecto, estendendo-se nua e desabrigada pio alto do monte.
Lettie ia bem disposta, rindo e brincando sem cessar. Colhia frutos silvestres e enfeitava com eles o vestido. Como enterrasse num dedo um espinho de silvado, pediu a Leslie que o arrancasse. Assim brincando saímos da estrada e enveredamos pelo caminho apertado que fica à esquerda da floresta, à direita dos campos e dos baldios e defronte das altas colinas de Strelley. Depois de uns momentos de marcha, vimos brilhar uma foice. Lettie correu à beira da vereda, para admirar de mais perto: era George que ceifava as espigas de aveia, pois a segadora mecânica não podia chegar àqueles terrenos declinosos. O pai encarregava-se de fazer os feixes.
Endireitando-se, o Senhor Saxton descobriu-nos e chamou-nos para irmos ajudá-lo. Passamos por uma abertura da sebe e fomos ter com ele.
- Agora tire o casaco, disse-me ele. E, dirigindo-se a Lettie: Não nos trouxe de beber? Mau! Estão passeando, não é verdade? Veja lá o que é uma pessoa engordar! acrescentou, espetando a cara volumosa enquanto se curvava para atar as espigas. Era homem corpulento, vermelho, na força da vida.
- Ensine-me como é. Quero experimentar, pediu Lettie.
- Não, senhora, negou ele brandamente; iria esfolar os seus lindos dedinhos e dar cabo do espartilho. Ouça as minhas mãos, ajuntou, esfregando-as uma na outra; soam como lixa.
George, que estava de costas para nós, ainda não nos tinha visto, e continuava a ceifar. Leslie observava-o.
- Belo exercício, disse ele.
- Tem razão, assentiu o pai dos Saxtons, levantando a cara, muito corada, acima do feixe. O nosso George entretém-se deveras nisto. É bom para desentorpecer.
Caminhamos no meio das espigas ceifadas. Como o sol se tornara mais suave, George havia tirado o chapéu, e o cabelo preto, cheio de suor, enrolava-se em caracóis. Firmemente apoiado à terra, mexia o resto do corpo, da cintura para cima, com movimentos de grande beleza rítmica. À altura da anca, no cinto dos calções, pendia-lhe o passador da foice. A camisa desbotada, quase branca, mostrava um rasgão na cintura e deixava ver através dele os músculos das costas agitando-se como sobre a água de um regato. Aquele corpo elástico e harmonioso tinha qualquer coisa que atraía o olhar.
Falei-lhe, e George voltou-se, fitando logo minha irmã com um sorriso espontâneo e denunciador. Estava, nesse instante, realmente belo. Tentou dirigir-nos palavras de saudação; mas, não tendo conseguido formulá-las, agachou-se, apanhou um braçado de aveia e pôs-se a atá-lo sem cerimônia.
Lettie não achava também nada que dissesse. Foi Leslie quem quebrou o silêncio:
- Não há dúvida que isso é ótima ginástica.
- É, sim, confirmou o interpelado, continuando a trabalhar. Vendo que Leslie pegava na foice, acrescentou: - Vai transpirar e dar cabo das mãos.
O outro abanou a cabeça, tirou o casaco e perguntou: - Como se faz?
E, sem esperar resposta, começou a cortar as hastes mais próximas. George não respondeu, mas voltou-se para Lettie.
- Está pitoresco, disse ela, um pouco timidamente. A calhar para um Idílio.
- E você? inquiriu ele.
Minha irmã encolheu os ombros, riu e foi apanhar uma flor vermelha. Só então falou, indagando:
- Como é que se amarra isso?
Pegando numas poucas de hastes, George limpou-as e mostrou como se atavam. Em vez de dar atenção a isso, Lettie olhou para as mãos dele, grandes e vigorosas, enrubescidas pelo cabo da foice.
- Bem, me parece que não serei capaz, declarou ela.
- Não, confirmou o rapaz, com a maior naturalidade, enquanto espiava o trabalho de Leslie. Este, que estava sempre pronto para tudo, fazia
obra asseada, sem conseguir, todavia, os movimentos majestosos do lavrador.
- Aposto que vai ficar suado, disse George.
- Você não fica? perguntou Lettie.
- Um pouco, mas não estou vestido de ponto em branco. De repente, Lettie fez esta observação:
- Sabe uma coisa? Os seus braços dão-me tentações de lhes tocar. Têm uma cor morena, tão bonita! E parecem tão rijos!
George exibiu-lhe um braço. Ela hesitou; mas, de súbito, pôs as pontas dos dedos na pele morena, deixou-as correr um instante ao longo do bíceps e, retirando a mão de repente, escondeu-a na prega da blusa. O rubor subira-lhe ao rosto.
A gargalhada que ele soltou, lenta e retumbante, acariciou e exasperou ao mesmo tempo os ouvidos dos que a escutaram.
- Não desgostaria de trabalhar aqui, disse ela, espalhando a vista pelo cereal ceifado e pelo bosque envolto numa névoa azul. George seguiu seu olhar, e
tornou a rir devagar, com indulgência, com assentimento.
- É verdade! repetiu Lettie, exagerando a nota.
- Para você, volveu ele, enfiando a mão no peito da camisa e esfregando brandamente a ilharga, trabalhar ou estar quieta ê sempre um motivo de prazer.
A moça contemplou-o corno se esse homem, latejante de vida, fosse a mais bela criação da Natureza.
Nesse momento chegou Leslie enxugando a testa.
- Caramba! Fiquei suando.
George levantou-lhe o casaco, abandonado no chão, e, entregando-lhe, recomendou:
- Veja lá não se resfrie.
- Não há dúvida, respondeu o outro, que isto é um exercício de primeira ordem. Você deve ter a pele muito dura, acrescentou, ao ver o companheiro abrir um canivete e tirar com ele um espinho enterrado na mão.
Lettie não disse nada, mas recuou uns passos.
Saxton, contente com o pretexto que se oferecia de descansar e conversar, aproximou-se do grupo.
Cansou-se depressa, notou ele, rindo, a Leslie.
Mas George, nessa ocasião, deixou escapar um grito. Todos nos voltamos e vimos um coelho que irrompera de baixo dos feixes e que enfiava para a sebe, correndo e esquivando-se o melhor que podia. A seara ainda de pé, naquela encosta, ocupava cerca de cinqüenta passos de comprimento e uns dez de largura.
- Não esperava que houvesse algum aqui, declarou Saxton, lançando mão de um ancinho e brandindo com ele para o lado da vedação. Seguimo-lo sem demora. Ele, porém, recomendou que esperássemos, a fim de ver se as espigas mexiam.
Espalhamo-nos, então, em torno.
- Atenção, ali! bradou o lavrador, excitadíssimo. No mesmo instante apareceu outro coelho.
- Agarra, agarra! foi o grito geral. Todos nos pusemos em perseguição do fugitivo, que parecia desnorteado. Querendo escapar-se ao ataque de Leslie, que estava mais perto dele, o animal, mudando de rumo, esgueirou-se para a banda da colina, atravessando em ziguezagues o labirinto dos feixes colocados no terreno.
Cedo lhe faltaram as forças e George foi-lhe no encalço. O coelho ainda conseguiu meter-se entre umas palhas; o rapaz, contudo, não o perdera de
vista e, de aí a pouco, trazia-o na mão, pendurado pelas orelhas.
Regressávamos, transpirando e ofegando, ao limite da seara quando ouvimos Lettie chamar e vimos Emily e os dois irmãozinhos que se aproximavam de nós, vindos da escola.
- Outro! gritou Leslie.
As espigas ondularam. "Aqui, aqui!" exclamei eu. O animal saltou e despediu para a sebe. George e Leslie, que estavam nesse canto, arremeteram contra ele e fizeram-no mudar de curso. Eu o fiz encaminhar-se então para o lado de Saxton, que ainda o seguiu mas que era excessivamente pesado para a empresa. O coelho atirou-se para a cancela! Molie, com o chapéu na mão, veio sobre ele e conseguiu obrigá-lo a recuar.
Já cansado, o coelho enveredou no meio dos feixes, fugindo ao meu avanço. Se eu tivesse caído sobre a vítima, tê-la-ia apanhado, mas não pude fazê-lo a tempo, e o animal escapou-se por um buraco da sebe. George atirou-se e quase lhe punha a mão em cima. Mas era tarde. Estendido no chão, arquejante, George fitou-me com olhos em que se via a excitação e o esgotamento lutarem como um combate de luz e claridade. Quando pôde falar, perguntou-me:
- Por que você não se lançou em cima dele?
- Foi impossível, respondi.
Retrocedemos. As duas crianças espiavam agora também por entre as espigas não ovadas. A nossa impressão era de que não havia mais caça. George recomeçou na sega, e eu continuei a andar ao acaso: foi então que descobri um coelho emboscando-se num ponto afastado do terreno. As orelhas dele pareciam coladas ao dorso e a sua palpitação era tão agitada que se via a pele castanha subir e baixar; os olhos, muito vivos, fitavam-me cintilando. Embora o animal não me inspirasse compaixão, a verdade é que me encontrava desarmado e fiz sinal a Saxton, que logo acorreu e o atingiu com o ancinho. Ouviu-se um guincho que me impressionou como se eu próprio
tivesse sido atingido. O coelho, no entanto, escapuliu e, esquecido do grito lancinante, dei-me a perseguir a vítima, que parecia ferida.
Meus dedos, enrijecidos, negavam-se a tocá-lo. Leslie acudiu nesse momento, ansioso por matar.
Olhei para cima. As moças estavam na porteira, prontas a partir.
- Não há mais nenhum, sentenciou o lavrador. Mollie, naquele instante, deu novo alarma:
- Há um na toca!
Era buraco muito pequeno para que George metesse a mão, de forma que pusemos a cavar com o cabo do ancinho. O pau conseguiu alargá-lo suficientemente; aos nossos ouvidos chegou um guincho que nos sobressaltou.
- São ratos, disse George, ao mesmo tempo que o bicho se escapava. Alguém o atingiu logo com uma pancada - e, por toda a parte pularam filhotes.
Matamos a ninhada como quem mata insetos: contamos nove, ali estatelados no chão.
- Coitada! comentou o meu amigo, olhando para a ratazana. Teve tanto trabalho em criá-los!
Pegamos-lhe pelo rabo, observando-a curiosos e condoídos.
Aquele dia admirável começava a declinar. Para o lado do oeste o nevoeiro tornara-se mais azul, e o zumbido rítmico das máquinas, na mina distante, quebrava o silêncio do ar. Era a hora de largar o trabalho. Ao passarmos pelos campos, sentimos o mato zunindo como o murmúrio de uma cascata. Da terra elevava-se suavemente o cheiro das searas. E o último grito dos faisões veio da floresta, acompanhado do esvoaçar das derradeiras nuvens de pássaros. Peguei uma foice e, cansado mas satisfeito, desci com os outros em direção à granja. As crianças tinham partido à frente, levando consigo os coelhos mortos. Quando chegamos ao moinho, as moças levantavam-se da mesa. Emily começou a retirar os pratos e a lavá-los para nos servirem o jantar. Mal olhou para os recém-vindos e o cumprimento que nos dirigiu foi de simples cortesia. Lettie agarrou num livro que estava no assento da lareira e foi com ele para a janela. George deixou-se tombar numa cadeira, depois de haver tirado o casaco, e alisou o cabelo para trás; ficou depois silencioso, com os braços morenos estendidos sobre a mesa. De aí
a pouco esfregou a mão nos olhos e disse-me:
- Correr desta maneira cansa mais do que uma semana inteira de trabalho. Não seria capaz de repetir a proeza.
- O esporte é excitante enquanto dura, opinou Leslie.
- Isto faz mais mal, interveio a Senhora Saxton, do que o proveito que nos trouxeram os coelhos.
- Talvez não, mãe. Olhe que valem um par de xelins, retorquiu o rapaz.
- E um par de dias da tua existência.
- Que vale isso? disse ele, dando uma dentada num pedaço de pão com manteiga. Dá-nos chá, ajuntou, dirigindo-se à irmã.
- Não sei o que se pode esperar de gente bruta, murmurou Emily compadecida, trazendo o bule na mão.
- Ah, replicou George, comendo mais pão com manteiga, desta vez fui acompanhado nas minhas selvagerias.
- Os homens são todos selvagens, acudiu Lettie em tom fogoso, sem desviar a atenção do livro.
- Compete a vocês amansar-nos, observou Leslie, que estava de bom humor.
Minha irmã não respondeu. Foi George quem falou, numa entoação tão de conselheiro que enfureceu as senhoras:
- E as mulheres não fazem mal aos bichinhos mas gostam de utilizar suas peles nos vestidos.
Emily afastou-se, indignada. Lettie abriu a boca para responder, mas acabou por ficar silenciosa.
- O caso é que isso de matar sempre é desagradável, respondeu Leslie.
- Quando nos metemos nisto, retrucou George, é para ir até ao fim. Depois de sentir o cheiro do sangue, ninguém tem domínio de si...
- Parece-me horrível, declarou Lettie, andar atrás de um coelho a torturá-lo.
- Oxalá não tome gosto...
- Não há dúvida de que os homens são cruéis, disse Leslie, olhando de esguelha para minha irmã. São cruéis à sua maneira, repetiu, com outra olhadela e um sorriso irônico.
George voltou à carga:
- Para que vamos ficar com rodeios? Se nos agrada fazer uma coisa, havemos de pô-la em prática.
- Exceto se faltar a coragem, interveio Emily, cheia de amargura.
O rapaz ergueu os olhos para ela, subitamente encolerizado.
- Mas, disse Lettie, que não pôde resistir a fazer a pergunta, não acha que é coisa brutal - agora que você pensa dessa forma - correr atrás desses animais indefesos? Pareceu-me ato degradante, dos mais vis...
- Talvez seja, replicou ele, mas não o foi ainda há uma hora.
- Não tem sentimentos, concluiu minha irmã, desiludida. George riu, sem responder; mas o seu riso assemelhava-se a uma súplica.
Acabamos o chá em silêncio, minha irmã lendo e Emily andando na sala, de um lado para outro. George levantou-se e saiu. Minutos depois o ouvimos passar no pátio, com os baldes de leite cantando Alameda dos Freixos.
- Nada o faz ficar quieto, opinou Emily, cada vez mais desgostosa. Lettie olhou para o pátio, através da janela, pensativa. Parecia mal humorada.
Daí a instantes saímos também, antes que a luz de todo abandonasse o tanque. Emily levou-nos até ao quintal para colher algumas ameixas maduras. O terreno era baixo e escuro, coberto de ervas. As árvores estendiam os ramos sobre os passeios. Pouco mais produzia o quintal, a não ser alcachofras moles e abóboras balofas. Mas no fundo, onde se erguiam as construções da propriedade, altas e cinzentas, havia aquela ameixoeira encostada ao muro - a qual já rompera a escravidão e se expandia livremente; entre os seus ramos escondiam-se agora esplêndidos globos rubros, verdadeiros tesouros. Abanei o tronco velho e gasto, onde escorria seiva, e os frutos tombaram pesados, batendo nas largas folhas de ruibarbo que estavam por baixo.
Riram as moças, e nós dividimos o saque, com o que voltamos ao pátio. Depois descemos ao limite do jardim, que confina com o tanque. Este era rodeado de ervas enormes entremeadas de caniços grossos. Conforme nos prevenira Saxton, havia lá grande quantidades de ratazanas. Na margem fronteira, as árvores frutíferas desciam até a água, que vinha do tanque mais alto, através de um túnel.
À nossa aproximação, fugiram dois ratos para dentro da passagem subterrânea. Sentamo-nos, observando, sobre umas pedras musgosas. Então eles reapareceram, andaram um pouco, pararam, correram outra vez, puseram-se à escuta, tranqüilizaram-se, - e, emergindo em plena liberdade, meteram-se em toda a parte, arrastando as caudas peladas e compridas. Daí a pouco havia já seis ou sete, dos maiores, entretidos na boca do túnel, onde estava mais escuro. Muito calmos, esfregavam os focinhos aguçados e alisavam os bigodes. De repente, um deles, excitado, saltou verticalmente, torcendo-se no ar, e em seguida fugiu para dentro do buraco; outro lançou-se à água, com um mergulho pouco elegante, e nadou para o lado onde nos encontrávamos: parecia um diabinho, com a venta ponteaguda à superfície e os olhitos vivos faiscando. Lettie estremeceu, e eu atirei uma pedra ao tanque, assustando assim toda a súcia de roedores. Mas nós estávamos ainda mais assustados, de maneira que resolvemos partir. Em poucos instantes chegamos ao pátio.
Leslie acolheu-nos intrigado. Durante esse tempo, visitara as provisões de Saxton, acompanhado pelo proprietário.
- Fugiram de mim? inquiriu ele.
- Não, replicou minha irmã. Fui buscar ameixas. Olhe! E mostrou-lhe duas, no mesmo raminho.
- São bonitas de mais para comer.
- É que você ainda não provou.
- Vamos, retorquiu Leslie, oferecendo-lhe o braço. Vamos até à lagoa.
Lettie aceitou o convite.
A noite estava esplêndida, e as águas tranqüilas tinham reflexos amarelos, quase espessos. A pedido de minha irmã, Leslie sentou-se num ramo baixo de salgueiro, e encostou a cabeça nos joelhos. Emily e eu continuamos a passear; mas a voz de Leslie
chegava-me aos ouvidos, num murmúrio. Lettie respondeu na sua toada carinhosa.
- Não... fiquemos sossegados... está tudo tão calmo... É o que mais aprecio agora.
Conversando, Emily e eu sentamo-nos por fim no tronco dos alamos, um pouco mais além. Depois de umas horas de excitação, à noite - e em especial pelo Outono - somos inclinados à melancolia, ao sentimentalismo. A pequena distância, sussurrava a fala de Lettie e aquilo era como o rumor de um inseto voando. Longe, no pátio, George começou a cantar a velha canção "Espalha a semente do amor".
Isto interrompeu a voz alada de minha irmã. Com a aproximação do cantor, acabou de todo esse som de palavras em tom de confidencia. Fomos ao encontro de George. Leslie endireitou a cabeça, ergueu os joelhos, mas não falou. O filho dos Saxtons estava defronte de nós e dizia:
- A lua não está nascendo.
- Ajude-me a saltar daqui, pediu minha irmã a Leslie, estendendo as mãos para ele segurá-la. O interpelado levantou-se; mas, fazendo-se desentendido, passou-lhe os dedos debaixo dos braços e arrumou-a melhor no assento, como se ela fosse uma criança; mostrava-se ressentido com aquela intrusão do lavrador.
- Julgava encontrá-los todos juntos, notou George, sem se exaltar.
Lettie achou necessário dar logo uma explicação:
- E estamos, na verdade. Agora somos cinco. É ali que a lua vai aparecer?
- Ali mesmo, confirmou Emily. Gosto tanto de a ver surgir, acima da floresta! Ergue-se devagar, e olha para nós: penso sempre que ela quer qualquer coisa e que eu tenho uma resposta para lhe dar. O pior é que não sei qual seja...
A leste, onde o céu estava mais pálido, sobre os confins do bosque, apareceu a ponta de uma lua amarelada.
Admiramos em silêncio, e o disco tornou-se cheio, perfeito, mergulhando-nos num banho de luar. Lettie agitava-se de contentamento; Emily perturbava-se de melancolia, abrindo os lábios, num rogo... Leslie franzia a testa, distraído; George refletia, e os raios de luz enredavam-se-lhe na imaginação. Por fim, Leslie chamou-nos à realidade:
- Vamos. E tomou o braço de minha irmã.
Lettie deixou-se conduzir ao longo da margem e depois sobre a ponte de madeira.
Quando descíamos cautelosamente a escarpa íngreme do pomar, ouvimos a voz de minha irmã:
- Sinto vontade de rir e de dançar, de fazer escândalo...
- Esperamos que não o faça, acudiu o seu admirador, aborrecido.
- Sim, sim, vou atirá-lo à água!
- Sossegue! intimou ele, agarrando-a pelas costas.
Ao chegar à porta que dá para o relvado, acrescentou umas palavras em voz baixa e empurrou a cancela. Suponho que lhe fez propostas definitivas, esperando obrigá-la a tomar um compromisso. Mas ela libertou-se e, vendo a extensão da relva onde a lua punha sombras largas, exclamou:
- Uma polca! Com a erva assim macia e curta pode-se dançar uma polca. Não importa que haja folhas de árvores pelo chão. Que bom, que bom!
Estendeu a mão a Leslie; foi, todavia, muito brusca a mudança para que ele aceitasse. De modo que chamou por mim, com um tom de ansiedade em que se notava o seu receio de ser apanhada nas malhas do sentimento, com uma noite daquelas...
- Cyril, dance comigo. Leslie detesta a polca.
Dancei com minha irmã. Esses passos eram instintivos em mim, como coisa inata. Voamos em redor do campo, levantando as folhas mortas. A noite, a lua tão próxima, o firmamento, os ramos das árvores, tudo nos envolvia de sobrenatural. Ninguém seria capaz de extenuar Lettie quando ela dançava: seus pés
dirse-iam asas batendo no ar. Quando por fim parei, ela riu-se, mais fresca do que nunca, e pôs-se a endireitar o cabelo.
- É delicioso! disse, satisfeita, falando agora com Leslie. Venha experimentar.
- A polca, não, respondeu ele com acento triste, achando que esses compassos frenéticos não estavam de acordo com a poesia dos seus sentimentos.
- Mas na relva úmida não se pode dançar outra coisa, demais a mais com estas folhas caídas... E você, George?
- Diz Emily que eu pulo demais.
- Não faz mal.
Num abrir e fechar de olhos, Lettie e George principiaram a polcar em desmedida velocidade, o que fez com que tombassem ambos no chão. O rapaz ergueu-se logo, levantou-a e recomeçaram num giro irresistível e tremendo. Emily e eu juntamo-nos ao baile. De vez em quando eu tinha a sensação de algo muito branco a flutuar perto de mim, com um rumor de saias alvoroçadas. Já estávamos cansados, e eles ainda se mantinham em plena dança. Quando terminaram, George apareceu com ar de triunfo, nervoso, forte - e ela divertida como uma bacante. Compreendera que, por essa noite, se encontrava livre do pedido de casamento.
- Já pôs ponto final? inquiriu Leslie.
- Já, respondeu Lettie, arquejando. Devia ter dançado também. Agora faça favor de me passar o chapéu. Por que está assim tão macambúzio?
- Macambúzio? repetiu ele.
- Ou, pelo menos, solene. Que sucedeu?
- Pergunta-me o que sucedeu?
- Isso é da lua. Veja: tenho o chapéu bem colocado? Mas olhe para mim! Então endireite-o. Mais. Ah, que mãos frias! As minhas, pelo contrário, estão quentíssimas. Desculpe todas estas travessuras. Estou pronta. Já reparou como estes crisântemos têm um cheiro tão fúnebre? Olhe a lua
a rir e a piscar os olhos através daqueles ramos. Que tem ela a ver com a tristeza dos crisântemos? Agarrou num punhado de pétalas e atirou-as ao ar
-Girem! Não quero melancolias. Gosto dos seres alegres, rudes, impetuosos!

 

CAPÍTULO 6

 

Como já disse, Strelley Mill fica no extremo norte do extenso vale de Nethermere; na encosta dessa banda jazem os seus terrenos aráveis e os seus pastos. O baldio, agora recinto fechado - visto pertencer à propriedade - ocupa a vertente ocidental. A terra cultivada confina com o curso impetuoso do ribeiro, depois com a linha das matas e finalmente com o tanque superior. Para além, a leste, ergue-se o aclive bravio, salpicado de ervas, de árvores antigas e dos espinheiros que fazem de
sebe. Ao longo da orla das colinas, a começar pelo nordeste, estão os bosques sombrios, que descrevem uma curva pelo sul e leste e descem sem governo até a margem de Nethermere, circulando a nossa casa. Da crista do monte oriental, olhando em frente, vê-se a agulha da torre na igreja de Selsby, alguns telhados e torres da mina de carvão.
O proprietário da fazenda, vasto domínio feudal, descendia de uma família antiga, outrora ilustre, mas atualmente decaída do seu esplendor. Ao contrário dos bens, que haviam diminuído, a árvore genealógica ramificara-se de maneira espantosa: já não era um simples roble inglês,
mas uma figueira-da-índia. Como haveria o bom
do homem de alimentar tanta gente com tão magros rendimentos, sem prejuízo do seu nome e das suas tradições? Quis o destino que os inúmeros coelhos, de que havia tocas por toda a propriedade, lhe indicassem a forma de subsistência; vendendo cada animal por cerca de um xelim, em Nottingham, estaria resolvido o magno problema.
Aqueles roedores espalhavam-se por toda a granja. Os cereais e a erva desapareciam da face da terra. O gado emagrecia, sem pasto onde se alimentar. Sem mugidos de vacas nem ladrar de cães, a herdade ficou transformada num ermo silencioso, por onde errava Halkett, o guarda-florestal.
Mas o dono adorava os coelhos e defendia-os contra os estratagemas do seu arrendatário, que andava desesperado. Protegia-os com a sua autoridade e com ameaças de despejo, e regozijava-se ao ver a chusma parda daqueles bichos daninhos movendo-se pelas encostas da colina.
O guarda sorria, flemático. E o fidalgo e um seu amigo apreciador do esporte percorriam de manhã as terras, ambos de espingarda na mão. Estava estabelecido que mais ninguém poderia usar ali armas de fogo.
Entretanto, Strelley Mill começava a mostrar as conseqüências daquela praga. Saxton queixou-se e o senhorio respondia que ele lhe arrendara tudo aquilo por uma ninharia. A soma recebida era absurda - portanto, deixasse os coelhos comerem à vontade! Discutiram, ingerindo whisky e o fidalgo acabou a conferência prometendo que teria uma conversa com Halkelt, para ver se arranjavam solução para o caso.
Nasci em setembro, e tenho uma ternura especial por este mês. Não há calor, nem confusão, nem sede, nem cansaço no corte das searas como sucede no tempo do feno. Se as colheitas se fazem tardiamente, como é comum entre nós, só em meado de setembro é que ficam prontas as medas. Amanhece devagar. A terra é como uma mulher casada que desperta cheia de languidez; não se levanta de um pulo aos primeiros beijos da alvorada, mas lentamente, sossegadamente, vendo chegar sem alvoroço cada novo dia da sua vida. As névoas azuis, como as reminiscências nos olhos da esposa preguiçosa, nunca se erguem da colina arborizada, e só ao meio-dia se afastam,
arrastando-se, das sebes mais próximas. Não há pássaros que façam soltar trinados da garganta da manhã; e, durante o dia, a única voz de ave que se escuta é a do corvo. Sente-se, é claro, a respiração regular e tranqüila das foices e o sussurro impertinente de segadora mecânica; mas, no dia seguinte, às primeiras horas, tudo está outra vez
silencioso. As espigas aparecem úmidas e, quando as amarramos e as erguemos para formar as moreias, aquelas paveias aconchegam-se macias e ficam melancolicamente pendidas.
Enquanto eu trabalhava com o meu amigo, naquelas manhãs calmas, conversava com ele e ensinava-lhe tudo quanto sabia a respeito de química, botânica, psicologia. alava-lhe da vida, do sexo e da origem dos seres, de Schopenhauer e de William James, do que aprendera com os meus professores. Companheiros de longa data, estávamos habituados um ao outro, e ele ouvia-me com atenção. O outono estreitava mais ainda a nossa intimidade. Desta vez levantei o assunto da poesia e ministrei-lhe rudimentos
de metafísica. George era bom terreno para as sementes que eu lançava. Não tinha dogmas, exceto no que respeitava a fazer as coisas a seu modo. A religião não o interessava. De modo que ouvia as minhas lições com espírito desempoeirado, compreendendo tudo rapidamente. Depressa as minhas idéias se tornaram suas também.
Regressávamos para almoçar em mangas de camisa: a tepidez da atmosfera constituía o nosso único abafo. Nesses momentos é coisa grata gozar-se uma camaradagem como aquela. Em tudo o outono punha a sua marca, desde os frutos, que amadureciam nas árvores, até as conversas que se estabeleciam à mesa e em que as vozes eram mais suaves e mais saudosas do que as da época do feno.
A tarde é morna e dourada. Os feixes de aveia parecem leves e, ao cair uns sobre os outros,
dir-se-ia que murmuraram segredos. O restolho fica a tinir quando os pés o sacodem. Ao levantarmos os molhos, soltam-se raminhos de silva que haviam ficado presos debaixo daqueles, e reparamos
que, nos caules dilacerados das dedaleiras, pendem ainda as últimas campânulas.
Falamos do povo, das nossas esperanças, do futuro - e do Canadá, onde o trabalho é inumano; onde as planícies são extensas e a gente não vive entalada num vale como um fruto que tomba num pomar exíguo.
A névoa insinua-se na languidez da tarde. Os feixes estão já atados e só falta erguê-los em medas. No poente, o sol descai entre um clarão de ouro; o ouro torna-se vermelho o vermelho escurece como um fogo a consumir-se rasteiro. Por fim tudo desaparece por trás de uma coluna de nevoeiro leitoso e purpureado como a flor pálida
das ameixoeiras.
Visto o casaco e volto para minha casa.

À noite, depois de ordenhadas as vacas, íamos espreitar as armadilhas colocadas aqui e ali. Atravessávamos o ribeiro e subíamos a vertente do monte, roçando as botas nas manchas negras das escabiosas e ladeando as cardos, cuja penugem cintilava ao luar, e tropeçando sobre montículos de terra levantados pelas toupeiras, entre a erva úmida e grossa. As colinas e os bosques estendiam as suas sombras; os lagos de névoa, no fundo dos vales, absorviam a luz trêmula e fria dos astros.
Alcançamos uma vez a velha quinta que se ostenta no cume do monte. As árvores haviam-na abandonado, deixando uma clareira enorme onde outrora existira um jardim. A minha admiração foi atraída para as janelas, onde não se descobria nenhuma luz, embora passasse pouco das oito horas. Reparando melhor no frontispício extenso e imponente, verifiquei que algumas dessas janelas tinham sido entaipadas, o que dava a desagradável impressão de um rosto cego. No meio daquela escuridão pareciam ainda mais negros os sítios onde a argamassa caíra.
Empurramos o portão e seguimos pelo passeio repleto de ervas e de plantas secas. Espiamos um quarto, que tinha também janela para o outro lado, através da qual o luar punha faixas brancas no chão lajeado, sujo de papéis e de feixes de palha. O fogão sobressaía à claridade, vendo-se montes de cinzas, restos de jornais queimados e uma boneca sem cabeça, em grande parte reduzida a carvão. A um canto via-se um boné de peles, que devia ter pertencido a um guarda de caça. Lastimei que o luar
devassasse o aposento: só a escuridão seria digna de reinar ali. Como tudo isso me entristeceu! - o fogão, as rosinhas no papel da parede...
Levado pelo seu instinto de lavrador, George foi visitar as dependências. O pátio surpreendeu-me, tão coberto estava de urtigas, altas como eu nunca vira, e o ar que se respirava denunciava-as imediatamente. Segui o meu amigo pelo estreito passeio de tijolos, e continuei a sentir arrepios. Dentro, porém, as construções apareceram-nos razoáveis em matéria de conservação: é que haviam sido restauradas várias vezes. Tinham bons vigamentos, eram confortáveis e apresentavam-se mais ou menos limpas. Aqui e ali encontramos penas de galinha e restos de um esqueleto de gato, conforme examinamos à luz de um fósforo. Ao entrarmos no estábulo, ouvimos ruído e logo avançaram, ameaçadoras, três enormes ratazanas. Recuei, tremendo, e tropecei num balde esburacado e enferrujado, de onde espreitavam ervas.
Depois houve um silêncio horrível, quebrado apenas pelo rumor que faziam os ratos e alguns morcegos a voar. Não dei com vestígios de cereais, palha ou feno: só ervas em pleno desenvolvimento... Depois de me encontrar em liberdade, no pomar, o meu tremor ainda continuava. Entre nós e o céu não se interpunham frutos: os pássaros os derrubaram e os coelhos os devoraram. Ou alguém procedera a uma colheita deles, por sua conta e risco.
- Nisto, murmurou George, com amargura, nisto é que o moinho há de se transformar.
- Depois da tua morte, retifiquei.
- Nunca chegarei a dirigir a fazenda. E meu pai pouco agüentará nela, com estes coelhos todos e outras complicações. O que fazemos não chega
a ser lavoura, dependente de tantas coisas atualmente, somos um misto de agricultores, de leiteiros, de hortelões, de transportadores. Tristes ocupações...
- Precisa viver, retorqui.
- De acordo, mas é estúpido. E o pai não se mexe, não transforma os seus métodos!
- E você?
- Eu? Para que hei de mudar? Estou bem em casa e, quanto ao futuro, deixo-o entregue a si mesmo enquanto ninguém precisar de mim.
- Laissez faire... rematei, sorrindo.
- Não é laissez faire, replicou ele, olhando em volta, é puxar o leite das tetas e deixá-lo correr. Repara!
Através do véu diáfano do luar que deslizava sobre a encosta podia-se ver vários exércitos de coelhos, ora avançando ora parando para comer desaforadamente.
Demos uns passos em direção à colina e eles espalharam-se logo. Aproximamo-nos da valeta que limita os campos do moinho. Então George soltou um grito e correu. Segui-o, e nessa altura descobri o vulto escuro de um homem que se levantava da sebe. Era o guarda. Fingia estar examinando a espingarda e, na ocasião em que chegamos junto dele, saudou-nos com voz calma: "Boa noite!"
George pôs-se a investigar a abertura existente na sebe, e disse:
- Está preocupado com aquele buraco...
- Sim, gostaria de saber o que pretendem, volveu o homem, que era corpulento e mal-encarado.
- Pode ver com os seus olhos... Tire a armadilha... e o coelho, respondeu George, de mau humor.
- Coelho? repetiu o guarda, voltando-se para mim com ar trocista.
- Sabe muito bem... Pode tirar... e então...
- Então o quê? Olhe que não me assusta!
George deu um passo em frente e cresceu para o homem, já fora de si.
- Cuidado! continuou o outro, medindo o meu amigo de alto a baixo. É melhor retirar-se... retiraram-se ambos. Não consinto que toquem na armadilha nem no coelho.
George fez um movimento súbito para agarrar o homem pelo casaco. Mas caiu logo de costas, derrubado com uma pancada forte junto da orelha esquerda.
- Grande besta! exclamei, quebrando o punho no queixo do agressor.
Quando dei por mim estava também por terra, e, com a vista ofuscada, ainda vi os calções de veludinho do guarda girando-me em torno da cabeça.
O homem desaparecera. Levantei-me, e levei a mão ao peito, ao lugar onde me doía. George ficara estirado junto da sebe. Dirigi-me a ele e esfreguei-lhe as fontes com ervas molhadas. O meu amigo abriu os olhos, fitando-me com ar esgazeado; depois, respirando com dificuldade, passou a mão pela testa.
- Aturdiu-me, não há dúvida!
- Inferno! bradei.
- Não esperava isto... Ele é que me atirou ao chão?
- E a mim também.
Por algum tempo, George conservou-se silencioso. Em seguida, tateando a cabeça, murmurou: - Ainda me dói. Tentou pôr-se de pé, sem o conseguir. - Meu Deus, ser reduzido a este estado por um reles guarda!
- Vamos retorqui. Experimentemos voltar para casa. O meu amigo acudiu logo:
- Convém que não saibam nada do que se passou.
Por meu lado, pensava na dor que sentia no peito e procurava recordar-me do murro que atirara ao queixo do vigia. - Se quebrei os dedos, disse com os meus botões, não dou por mal empregado o gesto. Levantei-me e ajudei George. A princípio, ele pendeu sobre mim. Depois já foi capaz de andar, mas com passos desencontrados.
- Estou enlameado? perguntou-me.
- Não muito, respondi, impressionado com o tom de pudor ofendido com que ele me falava.
- Limpe-me as costas.
Fiz o melhor que pude. Durante algum tempo seguimos através dos campos, tristes e calados.
- Mais tarde, já à beira da lagoa, fomos sobressaltados por umas enormes sombras sibilantes que passavam por cima da nossa cabeça. Eram os cisnes que procuravam abrigo, pois o vento frio começara a agitar Nethermore. Por cima das águas abaixavam-se e subiam continuamente, despedaçando o luar, e o ar repercutia o som daquelas asas que haviam desfeito o silêncio da noite. Ao entrarem na sombra, os cisnes ficavam tenebrosos como espectros.
O vento punha-nos arrepios em todo o corpo.
- Não dizes nada do que se passou?
- Não.
- A ninguém?
- A ninguém.
- Boa-noite.

Pelos fins de Setembro a nossa região foi alarmada: cães, vindos não se sabe de onde, começaram a devastar os rebanhos!
Certa manhã, um proprietário local, ao dar uma volta pelas suas terras, encontrou, cheio de horror, duas das suas ovelhas mortas, com o corpo dilacerado, junto de uma sebe. Os restantes animais haviam-se agrupado num canto, transidos de medo. Alguns tinham manchas de sangue na lã. Durante dias o proprietário andou amargurado com o desgosto que isso lhe causara.
Houve quem dissesse ter visto dois cães escuros, de aspecto feroz. O guarda do Doutor Collins ouvira uivos por volta da alvorada. Quando o pastor foi ver o rebanho encontrou três ovelhas banhadas em sangue.
Os lavradores deram então rebate. O dono da granja de White House tinha resolvido guardar o gado no redil, com os cães à porta. Mas, como era sábado, os pastores foram ver o teatro ambulante que fizera paragem em Westwold. Enquanto eles assistiam, boquiabertos, ao espetáculo, vendo as personagens morrer com muitas convulsões, a quererem falar sem conseguir articular palavra - seis das ovelhas daquela propriedade eram chacinadas no campo.
Indagou-se por toda a parte se havia ficado algum cão fora nessa noite. Ninguém respondeu afirmativamente.
Saxton possuía trinta ovelhas no terreno baldio, e George pensou que o mais simples e fácil seria dormir lá. Para esse fim construímos, ele e eu, um abrigo de canas entrelaçadas de ramos de silva, que durante a tarde, enchemos de braçados de grama. George dormiu ali naquela semana, com grande aflição da mãe - que ia esperá-lo de madrugada, no frio, com o avental cobrindo a cabeça. Não podia admitir a idéia de que o filho passasse a noite naquele lugar.
Por isso, no sábado, trouxe ele os cobertores para casa e levou Gyp para a cabana, a fim de o substituir na vigia. Acompanhei-o nessa ocasião e estivemos uns momentos a admirar as estrelas, que cintilavam sobre a escuridão da colina. De vez em quando uma ovelha balia, ou era um coelho que passava entre o matagal - e Gyp logo dava alarma.
O novoeiro arrastava-se pelas urzes e pelas sarças, onde as teias de aranha pareciam de prata. George, sentado fora do abrigo, disse-me então:
- Vi passar hoje dois tipos, com sacos e cordas.
- Deviam ser caçadores furtivos, disse. Falou com eles?
- Não. Não me viram. Eu estava dormindo quando um coelho entrou pelo cobertor, fugindo a um cão que o perseguia e a quem dei uma pancada que o fez ganir. O coelho ficou muito tempo junto comigo e depois fugiu.
- Que parece isto tudo?
- Não sei nem me importa.
Papai poderá arranjar-se sem mim e mamãe tem os outros filhos. O meu desejo é emigrar.
- Por que não foi?
- Ora, há tantas coisas que nos retêm em casa! Além disso, na pátria, sempre se é alguém, ao passo que no estrangeiro...
- No entanto, quer partir.
- Como é possível ficar? O vale está tornando-se bravio. Não produz nada. Por outro lado, não pode se dizer o que quer, e tudo continua sempre na mesma. É impossível fazer qualquer mudança: para qualquer parte onde se olhe, perde-se a vontade de pensar em coisas novas. Que há aí que mereça a pena?
De que vale a minha vida?
- O aconchego do lar não é nada que se despreze. George não respondeu.
- Que o leva a abandonar o ninho?
- Ao certo, não sei. Desde aquela questão com o guarda que não me sinto como era. Até Lettie me disse: Aqui não pode viver à sua vontade. É como um dos mosaicos de mármore do vestíbulo, tem que jogar certo com os outros. O pior é que você não deseja ser nenhum mosaico; pelo contrário, quer imiscuir-se na vida, fundir-se nela... Acredite sua irmã falava muito sério.
- O que ela diz não se escreve. Quando é que a encontrou?
- Veio na quarta-feira, de manhã, quando eu estava apanhando maçãs. Subiu comigo na árvore. Como soprava muito vento - e por isso é que resolvi apanhar os frutos - os ramos balançavam muito. Eu subi ao mais alto e Lettie ficou um pouco abaixo, segurando o cabaz. Como lhe perguntasse qual achava ser a melhor espécie de liberdade, é que ela me deu aquela resposta.
- Devia tê-la contrariado.
- Achei que era verdade.
- Que diabo! Parece-me esquisito.
- Não, sua irmã viu bem. Considera-me, ao que parece, uma espécie de pastelão...
- Mostrou-lhe que não era assim.
- Para quê? Sou isso mesmo.
- Dá a impressão de que está apaixonado. George riu-se, e declarou:
- Não, isso não. Mas é uma tristeza verificar que não tenho nada de que me orgulhe.
- Não conheço essa linguagem.
Arrancando punhados de ervas, com ar meditativo, o meu amigo respondeu assim à pergunta que fiz em seguida, quanto à época da sua partida:
- Ainda não sei. Por enquanto não disse nada à mamãe. Nunca será antes da primavera.
- Acontecerá qualquer coisa antes...
- O quê?
- Qualquer coisa decisiva.
- Não adivinho o que possa acontecer, exceto um despejo por parte do senhorio.
- Está na sua mão provocar os acontecimentos.
- Não brinque comigo, Cyril.
Gyp deu um pulo nesse momento, puxando a corrente com força para ver se conseguia acompanhar-nos. No mato, as ovelhas conservavam-se em repouso e eram manchas brancas no escuro da colina. Junto do chão arrastava-se a névoa fria.
- Apesar disso, Cyril, ter uma mulher que nos sorria à mesa; ouvi-la cantar enquanto arruma a casa, e à noite, antes de nos lavarmos... quando o
fogão está quente e nós estamos cansados ... Vê-la assim de perto, no aconchego do lar, falando com doçura...
- Castelos, George.
Sem fazer caso do meu comentário, ele tornou a rir-se e acrescentou:
- Sabe? Quando eu estava colocando os feixes e abraçando os maços, tive a impressão de que abraçava uma mulher. Foi uma sensação inesperada.
- Cuidado não vá se perder na rede dos sonhos. Sempre risonho, sem ligar as respostas, George continuou:
- Sonhando, o tempo voa. As manhãs passam num abrir e fechar de olhos.
- Meu Deus! Por que não esquece tudo isso em vez de insistir em tantas fantasias?
- Se o sonho é belo, por que não o havemos de prolongar? Com isso, terminou suas confissões. E eu voltei para casa. Fiquei na janela, a olhar para a paisagem procurando tirar o caso a limpo. O nevoeiro pousava nas águas de Nethermere; dir-se-ia uma dança de fantasmas sobre a lagoa. Antevi o tempo que meu amigo não estaria mais seguindo a grade da lavoura
ao longo do vale, e que a porta do quarto de Lettie estaria fechada para esconder a tristeza da sua desolação, e senti calafrios ao pensar nesse vácuo ameaçador que pesava sobre nós. Como poderia eu suportar tamanho isolamento? Que faria minha irmã?
Levantei-me cedo no dia seguinte, quando a claridade penetrava trêmulamente na floresta. A lua ainda era visível nas bandas de oeste. Saí. Morriam os últimos restos do verão e o mundo parecia diminuído desde aquela manhã. Já o cheiro do outono caía pesado e úmido das árvores. As folhas secas obstruíam os passeios.
Ao aproximar-me da herdade ouvi latidos; e, correndo, alcancei o baldio, onde encontrei o rebanho dividido em grupos e qualquer coisa que saltava pelo meio deles.
George apareceu também correndo. Repercutiu o tiro de uma espingarda. Peguei uma pedra e continuei correndo. À minha frente fugiam três ovelhas espavoridas: à luz indecisa do alvorecer, ainda vi as suas sombras alvacentas perderem-se no meio das urzes. Pulou um cão nesse momento e eu atirei-lhe a pedra com quanta força tinha. Atingi-o, porque o animal soltou um ganido lancinante; como ele escapava, fui no seu encalço, esquivando-me das sarças e saltando por cima das plantas rasteiras.
Os tiros continuavam; ouviam-se também gritos de homens excitados. O cão perdera-se de vista, mas eu segui sempre, descendo a colina. Num campo adiante notei alguém correndo. Galguei a sebe, que era baixa, e reconheci o vulto de Emily que dava largas passadas sobre a erva úmida. Mais tiros e mais gritos. Emily olhou em volta, deu comigo e disse, arquejante:
- É na pedreira.
Caminhamos para lá, sem dizer uma palavra. Ladeamos o bosque, acompanhamos o curso do rio e chegamos por fim ao local.
Havia agora árvore no lugar das antigas escavações; e as paredes escarpadas, de grande profundidade em alguns pontos, tinham desmoronado, sendo muitas das pedras arrastadas. Descemos a margem e entramos na pedreira pelo leito do rio. Junto aos troncos dos freixos e dos carvalhos brilhavam primaveras pálidas, pendendo frouxas
para as águas que corriam ocultas. Emily encontrou vestígios de sangue num belo renque de bons dias amarelos. Seguimos esses traços até onde o ribeiro deságua em fundo áspero e rochoso e o chão da pedreira não é mais do que um emaranhado de sarças e madressilvas.
- Arranje uma pedra, aconselhei, enquanto nos comprimíamos na passagem estreita e a água deslizava silenciosa debaixo dos ramos dos arbustos e dos cabelos desgrenhados das ervas. Pesquisamos todo aquele abrigo, quase até a estrada. Palpitava-me que o cão estivesse ali: ouvi como que um rosnar, seguido de gemidos. Quebrei uni galho de sorveira e, avançando sempre, fomos ter no lugar dos velhos fornos de cal.
Na boca de um desses fornos, Emily caiu, ficando ajoelhada junto de um cão. Os movimentos que o animal fazia eram os espasmos da morte; revirava os olhos e mostrava os dentes, nas vascas dá agonia. Emily, segurando-o pela garganta, puxou-lhe â cabeça para trás.
- Morreu! exclamei. Chegou a feri-la? Empurrei-a para um lado e ela estremeceu, como se tivesse horror de si mesma.
- Não, não, respondeu, olhando para os braços e para a saia, onde havia marcas de sangue.
A minha pedrada atingira o cão, e Emily, ajoelhando, sujara-se na ferida.
- Mordeu-a? insisti, ansioso.
- Não. Limitei-me a observá-lo e ele ainda se levantou. Bati-lhe então com a pedra, mas perdi o equilíbrio e caí.
- Deixe-me lavar-lhe o braço.
- E horrível, não acha?
- O quê? perguntei, ocupado já a procurar-lhe água no ribeiro.
- Toda esta história...
- Devia-se queimar isto, sugeri, olhando para o ferimento que lhe encontrei no braço.
- Este arranhão? Não é nada! Veja agora se consegue limpar-me a saia. Sinto-me repugnada.
Com o lenço molhado lavei-lhe o melhor que pude, insistindo:
- Deixe-me queimar-lhe essa ferida. Podemos ir às valas. Consinta nisso... é o seu dever... Doutra maneira não fico descansado.
- Acha que sim? retorquiu ela erguendo a vista para mim com um sorriso a esboçar-se nos belos olhos negros.
- Sim... vamos lá.
- Ah! Ah! riu ela. Que ar tão grave!
Toquei-lhe no ombro e impeli-a para diante. Emily enfiou o braço no meu e inclinou-se para mim.
- Tal qual Lorna Doone, disse ela com expressão divertida.
- Sim, mas deixe-me fazer-lhe o que pedi, repliquei eu, referindo-me à cauterização.
- Está bem; mas vai-me doer... Ui! Nem quero pensar nisso. Dê-me algumas dessas flores.
Apanhei um cacho de flores de viburno, com bagas rubras e translúcidas. Emily chegou-as às faces e aos lábios, acariciando-as. E murmurou:
- Sempre desejei pôr flores vermelhas no cabelo.
Tinha o xale sobre os ombros e a cabeça descoberta. Os cabelos, pretos, macios, curtos, envolviam-na caprichosamente. Não seria fácil segurar aí, durante muito tempo, os frutos carnudos do viburno, embora ela enfiasse os pezinhos deles nos dentes das travessas.
Já com os cachos a cintilarem-lhe entre os caracóis, ela fitou-me, de olhos muito abertos. Correspondi ao seu olhar, è vi que ela esboçava um sorriso triunfante. Então, puxando da sebe um galho de bons-dias, arranquei-o e torci-o em forma de grinalda.
- Vou coroá-la, disse eu. Ela, rindo, desviou a cabeça.
- O quê! retorquiu, pondo na exclamação toda a temeridade da sua alma ansiosa.
- Não será Cloé nem Bacante. A sua alma reflete-se nos olhos, ardente e perturbada.
O riso esmoreceu de súbito e ela mirou-me outra vez séria e suplicante.
- É antes como uma donzela de Burne-Jones. Nos seus olhos acumulam-se sombras e você não as expulsa. Você pensa que a polpa da maçã não é nada e só se preocupa com as sementes. Por que não a morde e a come, deitando-as fora?
Emily observou-me com ar triste, sem compreender, mas crendo que eu, na minha sabedoria, falava verdade, como achava sempre que se transviava no labirinto das minhas palavras. Inclinou a cabeça, caiu-lhe a grinalda e só ficou um cacho de bagas. Em redor de nós, no chão, espalhavam-se castanhas de faia, de envolta com folhas secas de tons de ouro. Emily apanhou alguns desses frutos.
- Gosto disto, declarou ela, mas faz-me lembrar tanto a infância que sinto vontade de chorar. Ir buscar castanhas antes do almoço, enfiá-las num colar... fazer inveja às outras pequenas, na escola! Sentia tanto gosto em possuir um colar desses como hoje sinto prazer com o Outono - com a diferença de não haver tristezas à mistura. Depois de se crescer já não se experimentam alegrias puras.
Enquanto falava, Emily ia apanhando mais frutos, curvada para o chão.
- São apenas ouriços ou têm dentro alguma coisa? perguntei.
- Duas ou três completas. Tome-as. Não quero para mim.
Despi o invólucro espinhoso de uma delas e devolvi-a. Emily abriu a boca para comer, sem deixar de me olhar. Há pessoas que, em vez de se acompanharem de esplendores, arrastam consigo nuvens de tristeza. Possuem o condão de ver tudo negro, e proclamam que só o pesar é que é real. Anjos sombrios para quem a dor é bela e constitui a suprema felicidade. Isso mesmo se lê nos seus olhos,
se depreende das suas vozes. Emily era assim. Fascinava-me e ao mesmo tempo fazia-me sentir revoltado.
Seguimos o caminho sombreado de faias antigas. Adiante descia a encosta coberta de cardos e de ervas ásperas. Depressa tivemos vista do lugar das valas, que foi teatro de tanta animação no tempo de Lord Byron e agora estava deserto, rodeado de espesso matagal. As vidraças da casa desapareciam sob o pó acumulado: já não havia necessidade de protegê-las contra o gado, os cães ou os homens. Uma das três casas era habitada. Fora, junto da porta, caía água límpida sobre uma pedra enorme, gotejando de uma bica.
- Espere, disse eu a Emily, deixe-me abotoar-lhe as costas do vestido.
- Abriu? disse ela rapidamente, olhando por cima do ombro e corando.
Enquanto eu desempenhava esse trabalho, saiu do prédio uma moça que trazia nas mãos uma chaleira e uma xícara. Ficou tão admirada de me ver naquela ocupação que se esqueceu do que ia fazer e parou boquiaberta.
- Sara Ann! gritou uma voz, do interior da casa. Vem fechar a porta.
A moça, com a xícara, encheu a chaleira. Em seguida pousou tanto uma coisa como outra e cruzou os braços para aquecê-los. A sua roupa consistia num corpete cinzento e saia vermelha de flanela, tudo muito rasgado. Os cabelos pendiam despenteados pelos ombros abaixo.
- Precisamos entrar, disse eu, aproximando-me dela, que, assustada, lançou mão da xícara e correu para dentro, chamando:
- Mãe!
Do interior da residência saiu uma mulher. Trazia um seio de fora, o que tombava sobre a blusa - como esta cala solta por cima da saia. O cabelo, de um tom ruivo desvanecido, estava em desordem, denotando que ela se levantara nesse momento da cama. Às pregas da saia agarrava-se um garoto magro, de camisa escandalosamente curta: tinha olhos muito grandes, com que nos olhava cheio de espanto, e a cara quase toda suja de gema de ovo. A mulher fitou-nos com ar lânguido e inquiridor.
Disse-lhe o que queríamos,
- Entrem, entrem, convidou ela. Mas não reparem na casa. Os meninos ainda não levantaram. Vem aqui Billy.
Entramos, e eu levei comigo a chaleira que a jovem esquecera junto da bica. A cozinha, espaçosa, era escassamente mobilada: as crianças, porém, bastavam a enchê-la. A mais velha, com seus treze anos, assava um pedaço de toucinho com uma das mãos, e na outra segurava a camisola. Como a queimasse o calor da chama, passou o toucinho para a outra mão e lambeu os dedos a fim de atenuar o ardor. Feito isto, voltou à posição primitiva. O cabelo castanho claro pendia-lhe em pesadas melenas pelas costas abaixo. Sentando no guarda-fogo de aço estava um rapazinho a molhar um pedaço de pão na gordura que ia escorrendo do toucinho. "Um dois, três, quatro, cinco, seis pingos." E, depressa, o pequeno deu uma dentada no pedaço engordurado e continuou a sua tarefa com a outra mão. Quando nós entramos, o garoto tentou puxar a camisa até os joelhos, gesto que desperdiçou alguns pingos do toucinho. Sobre uma almofada via-se um nenê corado e gorducho - que, evidentemente, acabara de mamar; agora esperneava enquanto outro rapaz dava-lhe pão com manteiga pela boca dentro. A mãe correu para o diva, tirou o pão da boca da criança, introduziu-lhe o dedo na garganta, levantou-a, bateu-lhe nas costas, e ficou muito aliviada quando o filho começou a chorar. Depois administrou palmadas sonoras nas nádegas despidas do autor da proeza. Este começou a gritar, mas calou-se de súbito quando nos viu rir. No pano, que serviu de tapete junto da lareira, estava uma linda criança entretida lavando com chá a cara de uma boneca de pau e enxugando-a na camisola. À mesa, numa cadeira alta, outro menino sugava um pedaço de toucinho, cuja gordura escorria, através dos dedos, pelos braços escuros. Instalado numa poltrona ampla, um rapaz maior ocupava-se em despejar numa vasilha de leite os resíduos de chá que estavam nas chávenas. A mãe, ainda com o bebê ao colo, afastou a vasilha e precipitou-se para o garoto.
- A minha vontade era dar cabo de você! disse ela. Mas ele escapuliu para baixo da mesa e ali ficou sereno e indiferente.
- Poderia emprestar-me uma agulha de malha? perguntei eu à mulher, depois de esta recomeçar a amamentar a criança.
- Sara Ann! Onde estão tuas agulhas? indagou ela, encolhendo-se ao mesmo tempo e pondo a mão na boca do nenê que chupava o peito. Vendo que eu a fitava, explicou então:
- Não calcula como ele morde. Só tem dois dentes, mas parecem seis lancetas. Carregou o sobrolho e apertou os lábios, enquanto falava à criança: - Feio menino! Não tem vergonha de morder assim sua mãe?
A atenção da criançada estava agora dividida entre seus interesses particulares e a nossa presença - com exceção do garoto que sugava o toucinho com o mesmo afinco e imobilidade de sempre.
- Onde está o meu trabalho de malha, Sam?
Pegou-o? inquiriu Sara Ann, depois de uma busca breve.
- Não peguei, respondeu Sam do seu esconderijo.
- Pegou, sim, interveio a mãe, dando um pontapé ao acaso, por baixo da mesa.
- Não peguei, não, senhora, insistiu o moleque.
A mulher sugeriu diversos lugares onde poderiam encontrar o que procuravam, e, por fim, o objeto das pesquisas foi achado na gaveta da mesa, entre garfos e velhos espetos de pau. A mãe dirigiu então algumas censuras à filha, em tom amigável, mas Sara Ann não deu atenção; estava preocupada com o seu trabalho de malha, - um regalo de lã encarnada, que serviria para o próximo Inverno. Na parte já feita haviam-lhe espetado um sacarrolhas, e o novelo tinha espetos de pau atravessados.
- Foi você, Sam, queixou-se a pequena. Não há dúvida de que foi você.
O acusado replicou de baixo da mesa com uns versos chocarreiros, e a mãe estremeceu toda com a gargalhada que soltou.
- Foi o pai que lhe ensinou aquilo, explicou-lhe, ela, envaidecida.
Depois de mais uma troca de palavras, levaram a agulha ao fogo. As crianças observavam muito interessada.
- Quer você mesmo fazê-lo? perguntei a Emily.
- Eu? exclamou ela, arregalando os olhos e abanando a cabeça.
- Então serei eu.
Peguei na agulha, segurando-a com o lenço. Depois segurei sua mão e examinei a ferida. Emily, porém, quando viu o clarão do metal quente, puxou o braço, olhando sempre e rindo histericamente, cheia de medo e da vergonha de ter medo. Conservei-me sério, sem ceder, e ela acabou por estender outra vez a mão, enquanto mordia os lábios imaginando a dor que iria suportar.
O meu olhar infundiu-lhe, no entanto, coragem; mas, quando desviei a vista para a operação, Emily soltou um grito que terminou em risada, levou as mãos atrás das costas e fitou-me de novo, trêmula, apreensiva, envergonhada, sempre sufocada por um riso que era já suplicante.
Uma das crianças começou a chorar.
- Para que serve isso? disse-lhe eu, atirando para a lareira a agulha já fria.
Dei às mulheres todo o dinheiro em cobre que levava. A Sam, que permanecia debaixo da mesa, ofereci uma moeda de prata e ao outro pequeno um canivete que encontrei no bolso. Por causa de uma diabrura daquele, ficaram todos em desordem, e nós saímos no meio da grande confusão. Emily, contudo, mal reparava no que se passava: os seus pensamentos giravam em volta de si mesma - e em torno de mim.
- Sou tão covarde! murmurou ela, com ar humilde. Mas isto é mais forte do que eu... acrescentou, quase num rogo,
- Não se importe, repliquei. -' É impossível evitar, insistiu.
- O que tem graça é que, nada conseguiu distrair a atenção do menor.
- É verdade, assentiu ela, mordendo a ponta do dedo, pensativa.
Nossa conversa foi interrompida pela algazarra que vinha da casa. Sam corria agora atrás de nós, brincando. As perninhas tremiam-lhe, a camisa flutuava-lhe à brisa da manhã. Por fim pisou um cardo ou outra coisa espinhosa, porque o vimos parado e silencioso, com uma perna no ar e segurando o pé com ambas as mãos.

CONTINUA

Depois de Mulheres Apaixonadas, Canguru, História de uma Jovem, Serpente Emplumada e Filhos e Amantes, de D.H Lawrence, todos publicados no Brasil por cessão dos direitos autorais da Portugália de Lisboa, surge agora um dos maiores best-sellers do grande escritor inglês - Decadência pelo Amor. Nesse romance, como em todos os de Lawrence, um dos principais interesses reside na beleza do estilo. Muitas das suas páginas constituem verdadeiro poema pastoril. O vale de Nethermere é uma região paradisíaca onde o moço George Saxton, lavrador e filho de lavradores, vive a sua adolescência. Solicitado pelo amor de uma mulher de classe superior, sensível e educada, ele não tem coragem de se lhe declarar abertamente, colhido pela indecisão constante que o caracteriza. Ela se casa com um industrial mas não alcança a felicidade e ele, como desforra, faz o mesmo com a parenta, proprietária de um armazém. Privado do sonho que acalentara, aos poucos vai se degradando fisica e moralmente, até se tornar um ser apático, dominado pelo álcool. No entanto, não consegue libertar-se dos laços que o prendem à terra natal e as mesmas florestas, o mesmo céu, as mesmas águas que o viram assistem, desolados, à sua decadência irremediável. Decadência pelo Amor é, portanto, um livro que ser lido o quanto antes, pois prende a atenção do leitor irresistivelmente.


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Tudo ali parecia ter ficado na contemplação do passado: as árvores antigas, indiferentes à carícia do sol; as ervas que se mantinham espessas e imóveis; a aragem que nem sequer fazia mexer os ramos dos salgueiros; e a água da lagoa sempre plácida e silenciosa. Mas a corrente do moinho denunciava ainda o tumulto de vida que outrora agitara aquele vale, e os peixes alvos, na obscuridade da represa, continuavam a precipitar-se com movimentos rápidos.
Estava observando-os quando uma voz inesperada me sobressaltou e quase me fez cair, do tronco de álamo onde havia me empoleirado.
- Que está vendo aí? perguntou o meu companheiro, rapaz de olhos castanhos, de pele queimada pelo sol e coberta de sarda, um belo tipo de lavrador, solidamente construído. Ao notar o meu susto, riu e olhou para mim, cheio de curiosidade.
- Nada... Penso em como tudo isto é velho e como obriga à meditação.
Recostando-se na margem, ele esboçou um sorriso indulgente e retorquiu:
- Belo lugar para dormir.
- Sua vida é um sono contínuo, respondi. Será uma piada quando alguém o acordar.
George sorriu de novo, passou as mãos pelos olhos para atenuar o brilho da luz, e replicou em voz pausada:
- Por que motivo será assim tão divertido?
- Ora... Você mesmo achará muita graça.
Ficamos calados algum tempo, até que ele, tateando ao acaso a terra, observou com os seus modos indolentes:
- Parece que adivinhei a razão deste zumbido.
Examinou o local e viu que tinha batido com os dedos em um ninho desses lindos insetos que se diria terem mergulhado o corpo em reluzente poeira de âmbar. Excitados, puseram-se a correr em torno dos ovos vazios; alguns provaram as asas num vôo incerto antes de se lançarem abertamente no espaço, George
espiou os que se meteram entre a relva e que andavam para cá e para lá, dominados pela aflição.
- Por aqui, disse ele, aprisionando um entre caules de erva e tentando desprender, com outra haste, as asas unidas onde havia reflexos de anil.
- Não faça maldades, recomendei.
- Isto não o magoa. Quero ver apenas se é por não poder abrir as asas que ele não consegue voar. Olha, lá vai. Não, não é ainda. Vou experimentar noutro.
- Deixe-os em paz, repliquei. Deixe-os gozar o sol. Acabam de vir ao mundo, não os obrigue a cansaços.
George insistiu, apesar de tudo, e quebrou a asa da sua vítima.
- Coitado! exclamou, esmagando o bicho entre os dedos. Em seguida pôs-se a examinar as larvas e os ovos, sem qualquer método científico, perguntando-se
se eu conhecia alguma coisa de insetos. Depois de ter acabado suas observações, lançou tudo aquilo à água, levantou-se e exibiu o relógio, extraindo-o
das profundezas do bolso.
- Bem que eu achava que eram horas de comer, declarou ele, sorrindo para mim. Adivinho sempre a aproximação do meio-dia. Vamos para casa?
- Com todo o gosto, retruquei. Seguimos ao longo da margem e atravessamos a ponte de madeira sobre a comporta. Em frente, o pomar de árvores contorcidas, descia em áspero declive. Em seguida vinha o jardim.
As pedras da casa quase desapareciam debaixo dos ramos de hera e madressilva, e os lilases atravancavam o portão. Passamos sempre, contornando a casa, e fomos, pelo passeio de tijolos, dar à porta dos fundos.
- Feche-a, sim? pediu-me ele, que entrara em primeiro lugar.
Através da copa, um lugar espaçoso, alcançamos a cozinha. Nesse momento a criada tirava a toalha, de dentro de uma gaveta, e a mãe do meu amigo, figurinha delicada, de olhos grandes e castanhos, andava em volta da lareira com um garfo na mão.
- O almoço não está pronto? perguntou George, num tom já ressentido.
- Não, filho, a lenha não queima, replicou ela, desculpando-se. Mas espero terminá-lo em pouco tempo.
George deixou-se cair num sofá e começou a ler um romance. Eu fiquei com vontade de ir embora. Mas a dona da casa insistiu para que eu ficasse.
- Não vá, pediu ela. Emily há de gostar tanto de vê-lo! E o meu marido também. Sente-se, faça favor.
Sentei-me numa cadeira de junco, perto da janela que dava para o pátio. Já que George estava entretido na leitura e a mãe ocupada em diligenciar que a carne e as batatas cozinhassem depressa, era natural que eu me entregasse aos meus próprios pensamentos. Assim foi. O rapaz, esquecido agora das suas reclamações, continuava embebido no romance: de vez em quando puxava o bigodinho, com indolência, sem se
importar que o cão se esfregasse de encontro às polainas e às joelheiras dos calções de montar. Divertido com o bigode e com o livro, nem sequer se lembrava de brincar com as orelhas de Trip; enquanto torcia e retorcia entre os dedos os fios castanhos daquele adorno viam-se se mover levemente, sob a pele clara os músculos do braço nu. Por cima dele, a janelinha quadrada filtrava uma claridade verde, vinda até ali por entre as folhas do castanheiro enorme do pátio: a luz incidia-lhe no cabelo
escuro e espalhava-se no quarto, refletindo-se na louça que Annie tirava da prateleira e no mostrador do relógio de caixa.
Aquela cozinha era bastante ampla, de tal modo que a mesa parecia perdida no meio dela e as cadeiras como que saudosas da vizinhança do sofá. Ao fundo, o buraco da chaminé assemelhava-se a uma caverna negra e os bancos da lareira pareciam formar outro compartimento avermelhado pelo clarão das chamas, onde a mãe de George rondava. Assim a grande cozinha mostrava-se um pouco árida, com as lajes cinzentas à mostra, todas desiguais, a sua escassa mobília, e os recantos excessivamente sombrios. As únicas coisas alegres que se viam ali eram a chita do canapé e as almofadas da poltrona, que davam tons escarlates ao ambiente melancólico. Também o
relógio se destacava pelas cores vivas com que tinham pintado as aves que o adornavam, e isso bastaria para provocar o sorriso de alguém menos contemplativo do que eu: para mim, aquilo só causava admiração.
Daí a pouco ouvimos o pisar de botas pesadas, e o dono da casa entrou. Era homem corpulento, meio calvo, com alguns fios de cabelo encaracolados em volta da cabeça.
Vendo-me, soltou uma exclamação jovial:
- Ora viva, Cyril! Ainda bem que não nos esqueceu. Depois, voltando-se para o filho, acrescentou: E lá na mata, continuam os problemas?
- Acabaram-se, respondeu George, sem desviar os olhos do livro.
- Fico contente em saber. Os coelhos roeram os nabos, explicou o recém-vindo, dirigindo-se à mulher.
- Já contava com isso, observou ela, entretida com as suas caçarolas. As batatas haviam acabado de cozinhar, e ela afastou-se do lume, com a panela fumegante nas mãos.
O jantar foi posto na mesa. O pai começou a trinchar, e o filho, que levantara a vista de cima do livro para verificar a comida, continuou a ler até que lhe enchessem o prato. A criada tinha-se sentado já na sua mesinha, próximo da janela, e começara a comer. Nessa altura sentiram-se no corredor de tijolos os passos de duas pessoas,
e logo a seguir apareceu uma criança seguida da irmã mais velha. A primeira vinha com um chapéu de marinheiro, debaixo do qual surgiam, ariscos, os cabelos compridos e escuros; mas arrancou-o logo e atirou-o para longe, instalando-se à mesa e conversando sem cerimônia com a mãe. A irmã, moça dos seus vinte e um anos, sorriu para mim, lançando-me um clarão dos seus olhos castanhos, e foi lavar as mãos. Voltou depois e sentou-se, olhando com ar desconsolado a carne mal passada que tinha à sua frente.
- Detesto isto assim, declarou ela.
- Faz bem, replicou o irmão, que começara a comer com todo o vagar. Dá-lhe músculos para castigar os alunos.
Contudo, a interessada não aceitou o conselho. Afastou o prato e preferiu comer vegetais. O irmão, pelo contrário, tornou a encher o seu de carne e continuou a mastigar. Então a menina, a quem chamavam Mollie e que tinha doze anos, observou em tom pouco amigável:
- Podia ter-me passado o molho...
- Sem dúvida! E a carne também.
- Isso já não seria da sua vontade...
- Que esperta! comentou o rapaz, ainda com a boca cheia.
- Acha? interveio, irônica, a mais velha, Emily.
- Claro que sim, visto que você a fez à sua imagem e semelhança, quando ela esteve consigo na escola. Mãe, acrescentou George, se me encontrasse uma batata bem cozida...
- Quando provei achei-as boas. Veja esta, que é a mais mole. Cozinharam tanto tempo!
- Não vale a pena apresentar-lhe desculpas e explicações, opinou Emily, irritada.
Sem se dirigir a ninguém em particular, o irmão ponderou muito calmo:
- Esta manhã ela teve muitos alunos endiabrados, com certeza. ..
- E bateu num deles até lhe fazer espirrar o sangue pelo nariz, acudiu Mollie.
- Ah, também você! redarguiu Emily, engolindo com dificuldade. Pois fique sabendo que não me arrependi. São levados da... da...
- Da breca, concluiu George, ajudando-a a completar a frase.
Emily não pareceu satisfeita com o auxílio do irmão. O pai soltou uma gargalhada. E a mãe olhou aflita para a moça, que nesse momento baixou a cabeça, pondo-se a fazer desenhos na toalha, com o dedo.
- São piores do que os do ano passado? perguntou a mãe. A resposta de Emily foi curta:
- Nem por isso,
- O que não impede de lhes bater com força, atalhou George. Dê-me mais açúcar, Annie, pediu ele, olhando para o açucareiro e para o pudim.
A criada levantou-se da sua mesinha, e a mãe, por sua vez, correu aos armários. Emily, ocupada com o almoço, saiu da sua soturnidade para dizer com amargura:
- O que eu queria, George, é que você também fosse professor. Curar-se-ia das suas fanfarronadas.
- Eu? retrucou ele, desdenhoso. Seria capaz de deixar todos pondo sangue pelo nariz.
- Gostaria de ver...
Esta discussão parecia ter feito cócegas à irmã mais nova. De fato, Mollie desatou às gargalhadas, o que assustou a mãe, receosa de que a pequena sufocasse no meio da sua hilaridade.
George, ao ver as contorções de Mollie, observou-lhe:
- Está rindo muito.
Emily é que não pôde agüentar mais o diálogo. Levantou-se e abandonou a mesa. O pai e o filho, daí a pouco, foram ver a plantação de nabos, e eu acompanhei as moças que voltavam à escola.
Enquanto seguíamos pelo passeio ladrilhado, Emily declarou me cheia de convicção:
- George irrita-me com o que faz e com o que diz.
- Às vezes é egoísta, arrisquei.
- Se é! insistiu. Irrita-me deveras com os seus grandes ares de sabichão, com a sua importância... Mamãe, então, humilha-me tanto!
- Vejo que ficou furiosa...
- Furiosa! repetiu ela numa voz que vibrava de cólera e nervosismo. Demos uns passos em silêncio e Emily perguntou-me: Trouxe-me os versos?
- Não... Desculpe... Esqueci-me deles outra vez. Para falar franco: destruí-os.
- Mas tinha prometido!
- Sabe o que são as minhas promessas. Não se pode confiar em mim.
Emily mostrou-se mais carrancuda e desanimada do que seria de esperar. Quando me despedi, numa volta do atalho, senti remorsos pelo meu procedimento. Isso acontecia sempre depois que ela ia embora.
Passei depressa através do regato que saía da lagoa. As pedras, onde eu ia pondo os pés, pareciam brancas sob a claridade do sol; a água deslizava entre elas. Quase indistintas de encontro ao azul do céu, à minha frente voavam duas borboletas, pousando de flor em flor e indicando-me o caminho. Os campos exalavam calor e eu diminui o passo a fim de enveredar pelo bosque onde os carvalhos faziam uma sombra reconfortante. Lá dentro tudo estava silencioso e fresco, e eu tive prazer em demorar
na vereda arborizada, seguindo entre plantas que pareciam estender os braços para mim. O centro da floresta irradiava suavidade; mas fui sempre andando, incitado pelo ataque de um exército de moscas degladiando em torno da minha cabeça - até que, ao chegar aos rododendros do jardim, elas me abandonaram atraídas pelo açúcar que Rebeca punha
debaixo das vasilhas com vinagre.
A casa, baixa e vermelha, com o seu telhado abatido e já sem cor, adormecera ao sol e dormia agora profundamente na sombra que lhe projetavam as árvores enormes que se julgaria terem fugido da selva.
Não encontrei ninguém na sala de jantar, mas escutei o rumor da máquina de costura, vindo do escritório, semelhante ao zumbir de um inseto descomunal, ora mais forte, ora mais atenuado, depois muito regular... Em seguida chegaram-me ao ouvido notas musicais, leves, um tanto puladas, como se uma rã andasse saltando sobre o teclado do piano da sala.
- Deve ser mamãe tirando o pó, disse com meus botões. Desabituado como estava aquele som, não admira que me sobressaltasse por momentos. Aquelas cordas, escondidas atrás da seda verde - virando uma dobra é que se via como o tempo a desbotara - tinham-se tornado, com a idade, secas e afônicas
como as de uma garganta de velha. O decorrer dos anos amarelecera as teclas do piano da minha mãe e carcomira-lhe as pernas delicadas. Pobre objeto sonoro, que mal respondia ao contato dos dedos de Lettie, se esta, por brincadeira, experimentasse
pô-lo a vibrar. Mas a verdade é que ele se conservava sempre fechado, a não ser para consentir na visita do espanador...
E agora, inesperadamente, ei-lo murmurando uma antiga melodia vitoriana. E eu logo imaginei uma figura pequenina de mulher, modesta e recatada, com belos cachos de caracóis de cada lado do rosto, sentada ali a tocar... Essa música despertava-me sensações de outrora sem que a memória, no entanto, me socorresse. Quando eu tentava, a todo o custo, recordar-me, Rebeca entrou na sala de jantar, a fim de tirar a mesa.
- Quem está tocando, Beck? perguntei.
- A sua mãe, Cyril.
- É uma coisa que ela nunca faz! Julguei que não sabia.
- Ah, respondeu Rebeca, esqueceu-se do tempo em que era pequeno, quando brincava junto das saias da sua mãe, e ela cantava para você. Não se lembra, com certeza, de vê-la de caracóis sedosos e castanhos. Sim, não se lembra de quando ela cantava e tocava, antes que Lettie viesse e que o seu pai...
Rebeca deu meia volta e saiu do quarto - e eu fui ver o que se passava na sala. Minha mãe estava sentada defronte do piano: sorria e, com os dedos roliços e pouco ágeis, feria de leve o marfim. Nesse instante Lettie passou correndo a meu lado, dirigiu-se para mamãe e, abraçando-a e beijando-a, disse:
- Meu Deus, não sabia que tocava piano!
- Nem eu, replicou a interpelada, rindo-se e fugindo ao abraço da moça. Quis ver apenas se seria capaz de martelar esta velha melodia. Aprendi-a em pequena, neste mesmo piano, que já estava desmantelado. Mas não tinha outro.
- Toque outra vez, por favor. Lembrou-me o som de cristais do lustre, roçando uns pelos outros. E a sua posição, sentada na banqueta, era tão delicada... Vá, toque mais!
- Não, retorquiu mamãe, esquivando-se à insistência de Lettie. Só mexer nas teclas basta para me tornar sentimental. E vocês não gostariam
de me ver com lágrimas nos olhos, depois de velha...
- Velha! repetiu Lettie, em tom de censura, e voltando a beijá-la. Está ainda muito nova para tocar romanças, sem parecer ridícula. Fale-nos a esse respeito.
- A respeito de quê?
- Do tempo em que tocava piano.
- Antes que os meus cinqüenta e tantos anos me tolhessem os dedos? E tu, Cyril, onde esteve, que não apareceu para o almoço?
- Estive apenas no Strelley Mill, respondi.
- Já calculava, respondeu minha mãe, falando agora com frieza.
- Por que diz que já calculava?
Lettie, nesta altura, interveio com o seguinte comentário:
- E saiu, é claro, logo que Emily voltou para a escola...
- Saí, sim.
Pareciam ambas indispostas comigo. Disfarcei o meu ressentimento e esclareci:
- Convidaram-me para almoçar.
Minha mãe não se dignou pegar a deixa. Foi Lettie quem prosseguiu no interrogatório:
- O ilustre George terá já encontrado alguma namorada?
- Não, declarei logo. Não há nenhuma bastante qualificada para ele.
Minha mãe observou por seu turno:
- Cada vez percebo menos o que é que você aprecia nessa gente.
- Não seja má, respondi um tanto formalizado. Sabe muito bem que gosto deles.
- Sei que gosta dela, atalhou minha mãe, com ar sarcástico. Quanto ao irmão, não passa de um malcriado. Nem se podia esperar outra coisa desde que sua mãe o estragou com tantos mimos. Mas, se tem empenho em corrigi-lo... Dizendo isto, franziu o nariz, desdenhosa.
- Acho-o bem interessante, observou Lettie com um sorriso. Você é que podia fazer dele um homem, disse-lhe eu, curvando-me zombeteiro.
- Não me interessa, replicou ela no mesmo tom de troça. Meneou a cabeça, e todos os cabelos finos, livres de ganchos, ficaram como uma poeira de ouro à luz do sol.
- Que vestido ponho? perguntou ela.
- Sei lá! respondeu minha mãe.
- Acho que vou vestir o verde - embora esta luz possa desbotá-lo, disse ela, pensativa. Era bastante alta e magra, de cabeia louro, com reflexos
acastanhados, lindos olhos e sobrancelhas - o nariz nada tinha de bonito; as mãos é que eram muito belas.
- Onde vai? indaguei. Lettie não me deu resposta.
- A casa do Leslie Tempest, respondi. Ela, porém, não replicou. Não percebo o interesse que você encontra nele, prossegui eu.
- O mesmo que encontro nos outros rapazes, retorquiu Lettie. Interrompeu-se e ambos começamos a rir. Não é que me preocupe com ele, continuou, ruborizada. Vou apenas jogar uma partida de tênis. Quer ir também?
- E se eu aceitasse o convite? perguntei. Lettie sacudiu a cabeça e respondeu:
- Todos nós ficaríamos satisfeitos com a sua presença. Tenho a certeza disso.
- Faço idéia! respondi com ironia.
Ela riu, muito corada, e correu pela escada acima.
Meia hora depois aparecia no escritório, para me dizer adeus - e ver se eu a achava bem. Estava tão linda, com o seu vestido de linho e chapéu florido, que não pude deixar de me sentir orgulhoso. Calculando que eu apareceria à janela, Lettie, já na altura dos rododendros enormes e cor de púrpura, olhou para trás, acenou-me com o lenço de renda e afastou-se como uma flor entre as aveleiras verdes. Encaminhou então seus passos, através da floresta, para o espaço quase despido de árvores que conduz à estrada real e que fica em direção oposta a Strelley Mill.
A estrada corre durante cerca de um quarto de milha junto à margem da nossa lagoa, Nethermere - a mais baixa das três que constituem a série. Do outro lado, numa colina distante, está Highclose, que avistamos ainda por cima das águas. Embora Lettie já estivesse muito longe, conseguia distingui-la na beira da lagoa, de sombrinha aberta, afastando-se como uma vela no horizonte. Em seguida vi-a dobrar a cancela, debaixo dos pinhais, subir a ladeira e misturar-se com a vegetação que cerca Highclose.
Leslie estava estendido numa cadeira de repouso, à sombra de uma árvore, e tinha entre os dedos um charuto aceso. Sob o calor do dia, entretinha-se observando a brasa do charuto, que se transformava em cinza, e ao mesmo tempo sentia pena de Nell Wycherley, a quem acompanhara nessa manha à estação... a fim de que ela não ficasse aborrecida. As moças de agora são tão impertinentes, às vezes, para com os seus companheiros! Contudo, ela não era das piores.
Nesse momento, percebeu uma sombrinha que se movia ao longo da estrada, e Leslie, ato contínuo, mergulhou em sono profundo, deixando no entanto uma fenda ao canto dos olhos para se poder certificar da aproximação de Lettie. Esta, encontrando o seu admirador deselegantemente adormecido, de charuto na boca, quebrou um raminho de lilás, cujos botões ainda estavam fechados e cujo aroma não seria, portanto, capaz de denunciá-la antes que ela tocasse no nariz do dorminhoco. E Leslie, acordando de súbito, exclamou:
- Oh, Lettie, estava a sonhar com beijos!
- Na ponta do nariz? Beijos de quem? retorquiu ela, rindo alto.
- De quem me produziu a comichão, esclareceu, sorrindo.
- As cócegas fazem-no sonhar com isso?
Trocaram ainda outros cumprimentos deste teor. E, como a moça o envolvesse num desses olhares com que as mulheres sabem lisonjear tão habilmente os homens, Leslie caiu em êxtase, afogado de volúpia.

 

CAPÍTULO DOIS

 


Lettie ficou inquieta ao ouvir o barulho prolongado do vento na floresta e o suspirar e gemer das árvores mais próximas da casa; não queria mexer-se, não queria fazer nada - mas acabou por insistir que eu a levasse até à beira da lagoa. Atravessamos, o emaranhado das amanbas e dos framboeseiros bravos que se estendia em frente da nossa casa e descemos o declive cheio de ervas que vai dar a Nethermere. O vento fustigava, rumorejando, a superfície das águas; e a frescura do ar estimulou-nos, lá onde as ondas se quebravam contra os seixos e as hastes dos caniços se curvavam sob o açoite dos elementos.
Na margem, as rainhas-dos-prados estavam em flor, e nós enterramo-nos nelas até aos joelhos enquanto admirávamos as rendas de espuma que corriam sobre as vagas e o prateado dos salgueiros mais distantes, no outro lado. Ali, onde deságua o regato de Strelley, a lagoa é mais estreita, a vertente do bosque mais abrupta e os troncos das árvores quase mergulham dentro de água. Interrompendo o nosso passeio, detivemo-nos a observar, de vez em quando, na terra pantanosa, ninhos abandonados de aves aquáticas; ao mesmo tempo sentíamos o cheiro penetrante da hortelã que os nossos pés esmagavam. À nossa aproximação, vimos algumas aves pernaltas que estendiam o pescoço esbelto, sobressaltados, e que fugiram diante de nós: uns atrás dos outros, voavam guinchando para o âmago da floresta, mas logo regressavam ao ponto de partida para de novo despedirem noutra direção, cheios de espanto e de terror.
- Por que se teriam assustado? perguntou Lettie.
- Não sei. Às vezes fitam-nos sem medo, e noutras ocasiões precipitam-se com esta lamúria como se levassem uma cobra enrolada nas asas.
Ela, no entanto, deu pouca atenção às minhas explicações. Havia-se agarrado a um ramo de salgueiro e, num instante, choveram sobre ela miríades de flores, como migalhas de uma enorme fatia de pão. Segui-a logo a fim de tomar parte naquele banho que a envolvia e do qual emanava um perfume medicinal.
- Oh, Cyril! exclamou Lettie, surpreendida.
Era um gato preto que ela descobrira preso numa armadilha pelas patas traseiras: fora apanhado, sem dúvida, no momento em que ia saltar sobre a vítima. Magro, bravio, o animal havia sido, e com razão, a causa do terror manifestado pelas aves. Ao ver-nos, rosnou baixo e não desfitou o olhar, que brilhava de ferocidade.
- Que mau que ele parece! acrescentou Lettie.
Envolvi as mãos no lenço dela e no meu próprio boné e agachei-me para abrir a ratoeira. O gato rasgou-me o pano das luvas improvisadas, metendo-lhe os dentes convulsivamente; mas, uma vez liberto, deu um pulo para longe e ficou espiando. Tirei o casaco, embrulhei nele o bicho e agarrei-o murmurando:
- Coitada da Nickie Ben! Sempre profetizei este fim.
- Que vai fazer? inquiriu Lettie.
- E uma das gatas de Strelley Mill. Vou levá-la aos donos.
O pobre animal, debatendo-se, procurava fugir, mas eu consegui trazê-la comigo; seguido da minha companheira, apareci na cozinha da casa, em mangas de camisa, e todos se admiraram de me ver entrar assim, levando tão estranho embrulho.
- Trago-lhes a Nickie Ben, declarei, exibindo a minha carga.
- Que patifaria! bradou Emily, estendendo a mão para a gata mas retirando-a no mesmo instante, com pavor igual àquele de que ainda há pouco as aves
tinham dado prova.
- É assim que eles morrem todos, sentenciou a mãe.
- O que eu queria, acudiu Mollie, excitada pela indignação, era que os guardas-florestais estivessem três dias e três noites entalados numa ratoeira dessas.
Pusemos o bicho sobre o tapete do fogão e
dêmos-lhe leite morno; ela, porém, bebeu muito pouco, de assustada que estava. Mollie, no meio da sua cólera, foi buscar o marido de Nickie Ben, que era também preto, a fim de que, ele visse a sua consorte estropiada. O gato olhou, pareceu encolher os ombros finos e afastou-se com passos rápidos. Aquela insensibilidade provocou geral clamor entre as senhoras.
George, que vinha buscar água quente, surgiu à porta nessa' altura. Admirou-se com a nossa presença ali e os olhos cintilaram-lhe.
- Repara na Nickie Ben, disse a irmã mais nova. George ajoelhou no tapete e ergueu as patas feridas da gatinha.
- Estão partidas, participou ele.
- Que horror? exclamou Emily, estremecendo. E foi-se logo embora.
- Ambas? indaguei.
- Só uma. Vê.
- Está a torturá-la, notou Lettie.
- Já não tem cura.
Mollie e a mãe deixaram a cozinha, à pressa, e foram para a sala.
- Que vais fazer? perguntou Lettie.
- Evitar que ela continue a sofrer, respondeu George, pegando no animal. Seguimo-lo até ao celeiro. Uma vez ali, fez ele esta declaração:
- A maneira mais rápida é andar com a gata de roda e bater-lhe com a cabeça contra a parede.
- Está a fazer-me mal aos nervos, observou Lettie.
- Então, vai ser melhor afogar o bicho, replicou ele, sorrindo. Pegou num cordel, preparou um laço numa das pontas e enfiou-o no pescoço do animal, amarrando aí um peso de ferro e deixando solta a outra parte do fio. Feito isso, perguntou se queríamos acompanhá-lo. Lettie olhou para ele, um tanto pálida. - Prevenindo-a de que isto vai lhe esfrangalhar os nervos, acrescentou George. A moça não deu resposta, mas seguiu-o ao jardim, através do pátio. Na margem do reservatório, ele voltou-se outra vez para nós e disse:
- Agora, atenção. Vocês fazem de carpideiras.
Ficávamos ambos calados; ele tornou a sorrir e atirou para a água o pobre animal, que se contorcia com dores.
- Adeus, Nickie Ben! exclamou o algoz, que nos mirou cheio de curiosidade, enquanto esperávamos na margem.
- Cyril, disse Lettie, muito calma, isto é que é crueldade! E horrível!
Não encontrei palavras com que lhe respondesse, mas George acudiu logo:
- Refere-se a mim?
- Não a si especialmente... mas às coisas em geral.
O lavrador fitou-a com os seus olhos escuros e sérios.
- Tive de afogar a gata sem piedade, declarou ele, atando a extremidade livre do cordel a um tronco de freixo. Depois foi buscar uma enxada e, com ela, fez uma cova na terra negra. - Se o cadáver não vier muito desfigurado, ajuntou, dirigindo-se a Lettie, você cobrirá de violetas a sepultura de Nickie Ben. Lançou fora a enxada e puxou o atilho, no fim do qual apareceu a gata e o peso de ferro. - Vá lá, que não tem mau aspecto! Era uma bichana de raça.
- Enterre-a quanto antes, ordenou-lhe a moça.
- Irá ter pesadelos, esta noite?
- Os sonhos não me assustam, respondeu.
Reentramos em casa e fomos até a sala, onde Emily estava sentada junto da janela, pensativa. O aposento era comprido e não muito alto, com uma viga tosca e enorme a atravessar o teto. Na prateleira do fogão e sobre o piano havia folhas e flores distribuídas em quantidade. Pela janela entrava o cheiro e a frescura do bosque.
- Ele levou avante o seu intento? perguntou Emily. E vocês assistiram a isso? Se eu tivesse pressentido semelhante coisa ficaria com ódio de morte.
- Eu também não fiquei muito satisfeita, declarou Lettie.
- A indiferença e brutalidade deste rapaz chegam a ser revoltantes, continuou a outra. Sinto-me repugnada.
- Palavra? volveu Lettie, com um sorriso frio. Dirigiu-se ao piano e acrescentou: Acho-o apenas demasiado saudável. Nunca está doente, creio eu.
Sentou-se e tocou ao acaso, deixando que as notas, entorpecidas, tombassem como folhas mortas do velho móvel sonoro.
Emily e eu conversávamos junto da janela, a respeito de livros e de pessoas conhecidas. A moça mantinha-se bastante séria e eu contagiado, compartilhei sua gravidade.
Daí a pouco, depois de ter mungido e dado de comer às vacas, George veio ter conosco. Lettie estava ainda sentada ao piano, e ele perguntou-lhe por que não tocava qualquer coisa mais leve - o que a fez voltar-se na banqueta e responder-lhe em tom um tanto seco. A aparência dele, contudo, dir-se-ia ser bastante para lhe dispensar as palavras ariscas, como se fossem pássaros assustados... George vinha diretamente da copa, onde fora lavar-se, e ficara atrás de Lettie, distraído, a enxugar os braços, com a camisa aberta no peito e as mangas arregaçadas. Estava de botas, polainas sujas e calções rasgados nos joelhos; ao vê-lo assim, ela sentiu certo embaraço.
- Por que não toca qualquer coisa mais moderna? insistiu ele, esfregando a toalha nos ombros, por baixo da camisa.
Lettie repetiu as palavras que acabara de ouvir, como um eco: a sua atenção ia toda para os movimentos que ele fazia, fascinada pelo vigor daqueles braços e pela brancura e solidez do peito. Depois de ter examinado a transição brusca da pele exposta ao sol para a da garganta, muito alva, encontrou-se, de repente, com o olhar de George e voltou-se no mesmo instante para o piano, enquanto o sangue lhe escaldava as orelhas, cobertas, por felicidade, com uma profusão de caracóis.
- Que devo tocar, então? murmurou ela, passando os dedos pelas teclas, ainda perturbada.
O rapaz foi buscar a uma pilha de músicas um álbum de canções e apresentou-lhe.
Vendo tão perto de si os braços dele, Lettie estremeceu levemente e perguntou:
- Que deseja cantar?
- O que for do seu agrado.
- Uma canção de amor?
- Se gosta... Está bem, uma canção de amor, concordou num tom que denunciava insinuação demasiado evidente, o que fez com que minha irmã se remexesse na banquinha e se conservasse calada. Por fim, Lettie começou a execução da peça escolhida, que era Tit Willow, de Sullivan. A voz de George, baixo sem grande profundidade, podia considerar-se tolerável; o certo é que ele cantava com prazer. Depois da frase bebe-me com os teus olhos, Lettie voltou-se e quis saber se ele gostava da letra. Que lhe parecia um pouco idiota, foi o comentário do cantor; mas disse isto olhando-a com olhos brilhantes, como se estivesse a desafiá-la.
- É que você não tem vinho no olhar, para que possa fazer um brinde com ele, disse a moça, correspondendo ao desafio com a chama azul das suas pupilas. Logo a seguir baixou as pestanas, e George riu muito senhor de si, perguntando como é que ela sabia semelhante coisa.
- Porque, esclareceu Lettie, exprimindo-se devagar e observando-o com fingido desdém, porque seus olhos não se alteram quando os fito. Acho que as pessoas devem falar com os olhos: há quem os tenha tão eloqüentes, tão expressivos! Assim dizendo, continuou a examiná-lo, calculando o lugar em que ele a teria - tanto o rosto como o cabelo, que parecia sempre despedir luz - e a idéia que fazia quanto à sinceridade das palavras agora ouvidas. Mas o rapaz soltou uma gargalhada
breve, mais desajeitada e menos persuasiva ainda que as do costume. Lettie virou-se, então, rindo também.
- Não há nada neste álbum que seja bom para cantar, disse ele, folheando com ar descontente.
Fui buscar outro, e ela cantou Should he upbraid. Tinha bela voz de soprano e a canção agradou bastante a George, que se aproximou dela. Quando terminou, lançou em volta da sala um olhar travesso e cintilante, e viu que o lavrador a contemplava maravilhado.
- Gosto disto, declarou ela, numa certeza cheia de superioridade.
- Gosto, confirmou o rapaz, com ênfase, salientando assim o triunfo da cantora.
Aproveitando a maré, Lettie fez-lhe várias observações acerca do trecho acabado de interpretar, e George, sempre sorridente, não se atreveu logo a responder antes de considerar o significado exato daqueles comentários.
- Você conserva os sentidos meio despertos, meio adormecidos, acrescentou minha irmã.
- Acha que sim?
- Sem dúvida. Você aprecia, em especial, a comida e o conforto. Não é verdade?
- E você não aprecia? retrucou ele, um tanto humilhado.
- Já se sabe! Agora venha virar-me as páginas enquanto toco esta música. Quando estiver na hora, faço-lhe sinal. Traga uma cadeira.
-
Principiou uma romança de Schubert. George inclinou-se sobre o ombro da pianista a fim de poder voltar as páginas; e ela, sentindo o cabelo do rapaz roçar-lhe a face, ergueu a vista para o seu companheiro e presenteou-o com um sorriso, sem deixar de tocar. Atingindo o fim da página, fez o sinal combinado, mas George estava distraído.
- Agora disse ela, já impaciente, enquanto ele tentava, com um gesto brusco, penitenciar-se do esquecimento. Lettie, porém, afastou-lhe a mão, voltou a folha sem ajuda e prosseguiu na música.
- Desculpe, murmurou o rapaz, corando.
- Não faz mal, replicou ela, sem parar e sem o ver. Chegando ao fim, pediu que lhe descrevesse as sensações que experimentara durante a execução da música.
- Ah, fiz triste figura! asseverou ele, atrapalhado.
- Estimo muito saber... mas não era isso que eu perguntava. Diga-me, antes, o que sentiu.
- Não sei... se senti alguma coisa, retorquiu George, medindo as palavras, como de costume.
- Direi por você. Você ficou dormindo ou então é insensível. A música, realmente, não lhe desperta nada lá no íntimo? Que pensa a esse respeito?
George riu mais uma vez, refletiu uns instantes, e voltou a rir.
- Ora! exclamou, evitando confessar os seus verdadeiros sentimentos, penso que você tem bonitas mãos e que deve ser agradável sentir o seu contato, tal como a do seu cabelo na minha cara.
Depois de ter escutado esta declaração, Lettie empurrou-o discretamente e afastou-se dele, sentenciando:
- Você está cada vez pior.
Atravessando a sala, dirigiu-se para o sofá onde eu conversava com Emily e passou-me o braço de roda do pescoço.
- Não serão horas de voltarmos para casa? perguntou.
- Oito e meia... parece-me cedo.
- Pois eu... eu acho que é hora de recolher.
- Não vão ainda, disse George. - Fiquem para cear, pediu Emily.
- Mas eu creio que... Respondeu Lettie, hesitante.
- Que há assuntos mais importantes a tratar, intervim eu, concluindo-lhe a frase.
- Não é isso... Hesitou de novo e, de súbito, bradou furiosa:
- Cyril, não seja aborrecido!
- Vão a algum lugar? indagou George, em tom humilde.
- Que idéia! respondeu Lettie, ruborizada com a pergunta.
- Então fiquem para cear convidou ele por seu turno. Lettie sorriu e condescendeu. Fomos para a cozinha, onde encontramos o Senhor Saxton a ler, tendo aos pés, e fingindo que dormia, o seu enorme bull terrier que dava pelo nome de Trip. No canapé repousava muito sossegado o gato preto, viúvo de Nickie Ben. A Senhora Saxton e Mollie recolhiam-se precisamente nessa ocasião aos seus respectivos quartos. Despedimo-nos delas e sentamo-nos. A criada já se havia ido embora, de modo que foi Emily quem teve do preparar a ceia.
- Ninguém toca tão bem naquele piano como ela, disse o Senhor Saxton, sorrindo para Lettie com admiração e deferência. O dono da casa tinha
muito orgulho naquele móvel antigo e majestoso, e costumava observar que o piano estava cheio de boas músicas para aqueles que as sabiam extrair de lá. Lettie replicou, risonha, que decerto poucas pessoas o haviam experimentado, de maneira que a honra não era muito grande.
- Que tal acha a voz do nosso George? perguntou o pai, um tanto vaidoso, embora terminasse a frase com uma risadinha desconcertante.
- Quando estiver apaixonado há de cantar muito bem, foi a resposta da interpelada.
- Quando estiver apaixonado! repetiu o homem, rindo alto, deveras satisfeito.
- Sim, senhor, no dia em que encontrar a pessoa que ele deseja.
George meditou no caso e soltou, por sua vez, uma gargalhada.
Emily, que punha a mesa, disse então:
- Há pouca água em casa.
- Com os diabos! exclamou o rapaz. Já mudei de botas.
- Não será muito difícil tornar a calçá-las, ponderou a irmã.
- Annie podia tê-la ido buscar. Para que está ela aqui? retrucou ele, indignado.
Emily olhou para nós, abanou a cabeça e voltou as costas ao irmão. O pai apressou-se a oferecer os seus préstimos:
- Depois da ceia, irei eu.
- Depois da ceia? perguntou a moça, admirada e divertida ao mesmo tempo.
George levantou-se e arrastou os pés, contrariado. Precisava de ir ao poço, que ficava num bosque próximo, e desagradava-lhe a idéia, depois de ter se aquecido ao calor da cozinha.
Tínhamos acabado de sentar à mesa quando Trip começou a ladrar à porta.
Fica quieto, intimou-lhe o dono, lembrando-se de que havia gente dormindo a essa hora.
Mas levantou-se e foi atrás do cão. Era Leslie, e queria levar minha irmã para casa, sem demora. Ela se opôs terminantemente, de modo que ele se viu obrigado a entrar e sentar à mesa, onde tomou uma
xícara de café e comeu uma fatia de pão com queijo. Durante esse tempo dirigiu-se sempre a Lettie, falando-lhe de um garden-party que estava programado para a próxima semana, em Highclose.
- A benefício de quê? interrompeu o Senhor Saxton.
- benefício? repetiu Leslie, admirado.
- Sim, dos missionários, ou dos desempregados, ou de quê?
- Trata-se de um garden-party e não de um bazar de caridade, esclareceu Leslie.
- Ah, coisa particular... Julguei que fosse assunto de igreja, pelo qual sua mãe se interessasse. Ele é muito apegada à igreja, não é verdade?
- Decerto, respondeu Leslie, que passou a expor a Lettie o seu plano de um torneio de tênis no qual pretendia que ela tomasse parte. Mas nessa ocasião percebeu que estava a monopolizar a conversa e, voltando-se para George - que tentava tirar com a faca um pedaço de queijo que se prendera aos dentes - perguntou por cortesia:
- Joga tênis, Senhor Saxton? Sua irmã sei que não joga...
- Não, replicou George, ainda às voltas com a faca e o queijo, nunca aprendi habilidade de senhoras.
O visitante voltou-se então para Emily, que empurrava dois pratos a fim de esconder uma nódoa da toalha, e surpreendeu-a com a seguinte declaração:
- Minha mãe gostaria muito que fosse ao garden-party.
- Agradeço reconhecida, mas é impossível. Tenho a escola...
- São muito amáveis, atalhou o pai, sorrindo.

George, nessa altura, mostrou uma expressão desdenhosa.
Terminada a ceia, Leslie olhou para Lettie como que a informá-la de que estava pronto a partir. Ela, contudo, fingiu não entender e pôs-se a discutir animadamente com o Senhor Saxton, que estava encantado. George, a quem o fato lisonjeava, juntou-se à conversa com evidente satisfação. O silêncio amuado de Leslie começou a pesar sobre nós todos. De aí a pouco George disse ao pai:
- Não me admirava nada que a vaca ruiva parisse esta noite.
Ao ouvir isto, Lettie despediu um olhar faiscante, prova de que estava divertidíssima.
- É também a minha impressão, respondeu o dono da casa.
- Tem os sinais todos, continuou o filho, depois de uma pausa.
- George! gritou a irmã.
- Vamo-nos embora, disse Leslie.
Desviando a vista para o lado, George encontrou os olhos de Lettie e sorriu com malícia.
- Empresta-me um xale, Emily? perguntou. Não trouxe nenhum agasalho, e suponho que o vento arrefeceu.
Emily, no entanto, viu-se forçada a lamentar a sua pobreza em matéria de xales, e Lettie não teve remédio senão enfiar um casaco preto por cima do seu vestido de verão. Ficava-lhe tão mal que todos desataram a rir, com o que Leslie não pareceu muito satisfeito: detestava vê-la servir de chacota, e procurou rodeá-la de todas as atenções possíveis, ajudando-a a prender a gola do casaco com o seu alfinete de pérola, da gravata, e recusando o que Emily acabara por descobrir, depois de várias buscas. Por fim saímos.
Leslie ofereceu o braço à minha irmã, afetando um ar de dignidade injuriada. Ela, porém, não o aceitou e ele principiou a queixar-se.
- Esperava que estivesse em casa, conforme prometera...
- Desculpe, mas não prometi nada.
- No entanto, sabia que eu vinha.
- E acabou por me encontrar!
- Sim, encontrei-a... namorando aquele tipo tão ordinário.
- Realmente, ele chama as coisas pelos seus nomes...
- O que lhe agrada, segundo vejo!
- Não me importa nada, replicou ela, com desdenhosa indiferença.
- Pensei que os seus gostos fossem mais requintados, retorquiu ele, sarcástico. Ainda bem que acha isso romântico...
- Muitíssimo!
- Detesto ouvir uma mulher dizer barbaridades, declarou Leslie, que tinha o horror de certas classes.
- E eu gosto tanto! insistiu Lettie, agravando assim a cólera do outro.
Leslie estava furioso.
- Estimo saber que George a diverte! rematou ele.
- Eu não sou difícil de contentar... A paciência do rapaz parecia esgotada.
- Resta-me a consolação, observou com frieza, de saber que não lhe agrado.
- Ora essa! Diverte-me também.
Depois disto, Leslie não falou, preferindo, com certeza, não a divertir.
Minha irmã enfiou o braço no meu e, com a mão livre, segurou a saia para evitar as ervas úmidas. Quando o seu admirador já se havia despedido, no extremo da floresta, ela observou:
- É tão criança!
- Chame-o antes pedaço de asno, respondi.
- Deixa lá... Sempre é mais amável do que o meu Taurus.
- Ah... o teu boi! confirmei eu, soltando uma gargalhada.

 

CAPÍTULO 3

 

No domingo que se seguiu à nossa visita ao moinho Leslie apareceu-nos de manhã em casa, solenemente vestido e afetando um ar não menos solene. Introduzi-o na sala e deixei-o só. Em geral, ele tomava a iniciativa de ir até à escada, sentar-se num degrau, e chamar dali por minha irmã. Mas, nesse dia, conservou-se mais reservado; fui eu quem levou a notícia da sua chegada. Lettie, que estava a acabar de se vestir, perguntou-me:
- E em que estado se encontra ele?
- Não perguntei.
Minha irmã riu-se e foi matando o tempo até serem horas de sair para a igreja. Só então desceu até aonde estava o seu galanteador e cumprimentou-o com uma reverência cheia de dignidade. Leslie ficou perplexo, mas não disse nada. Atravessando a sala, ela dirigiu-se à janela onde havia lindíssimos gerânios.
- Preciso enfeitar-me, declarou.
Era costume de Leslie trazer-lhe flores. Como não o fizera nesse dia, minha irmã sentiu-se magoada. Além disso, sabia ela quanto o visitante embirrava com o cheiro e com a brancura opressiva daqueles gerânios - e foi bastante para que, sorrindo-lhe, prendesse alguns no vestido, sobre o peito, e lhe dissesse:
- São lindos, não são?
Leslie murmurou qualquer coisa que significava concordância. Nessa altura apareceu minha irmã, que o saudou efusivamente e lhe perguntou se não a acompanhava à igreja.
- Se me permite... respondeu o rapaz.
- Está muito discreto hoje...
- Hoje? repetiu ele.
- Acho que a modéstia fica mal a um moço, continuou minha mãe. Vamos, que já é tarde.
Durante todo aquele dia, e até de noite, Lettie usou os gerânios.
À hora do chá convidou Alice Gall e pediu que eu me encarregasse de sora taureau quando o animal terminasse a sua faina da lavoura.
O tempo manteve-se quente e abafadiço. Quando atravessamos o regato, o sol avermelhava-se para as bandas do poente e começavam a exalar-se os aromas da noite, espalhando-se misteriosamente no ar calmo. Um clarão amarelo e oblíquo, do astro que morria, conseguiu furar o espesso dossel de folhas e veio aderir aos cachos das bagas de sorveira. As árvores conservavam-se imóveis, preparando-se para o sono. Pálidas e pensativas, algumas orquídeas cor-de-rosa olhavam, junto da vereda, para a fila rubra das búgulas, cujas derradeiras flores, cintilando no caule verde, ansiavam pela carícia do sol.
Eu e George vagueamos silenciosos, temendo perturbar a tranqüilidade da floresta. Mais perto de casa ouvimos um murmúrio que vinha do meio das árvores, do lugar onde havia um tronco tombado que o musgo rendilhara e no qual poderiam sentar-se dois namorados.
- Apaixonados a discutirem com um poente destes! comentei eu, enquanto prosseguíamos o nosso caminho. Mas, ao chegarmos à árvore caída, não vimos ali nenhuns amantes, - apenas um homem a dormir e a ressonar. A cabeça grisalha, de onde escorregara o
boné, apoiava-se num molho de gerânios que decoravam o tronco musgoso, sua roupa era de boa qualidade, mas amarrotada e suja e a cara do homem indicava, na sua palidez, anos de dissipação e de doença. Ao respirar, a barba cheia de fios brancos subia e baixava, e os lábios desgraciosos moviam-se numa conversa imperceptível. Devia estar lembrando algum episódio de sua vida, contorcendo as feições, gemendo - e falando talvez para uma mulher. Era inegável que o dorminhoco sofria.
Então abriu a boca, numa careta horrível, e mostrou os dentes amarelos. Falava agora mais alto, de modo que se compreendia alguma coisa do seu monólogo, muito pouco amável. Comecei a pensar na maneira de terminar com a cena, quando de súbito, do meio da floresta, nos alcançou o guincho de um coelho apanhado por alguma doninha. O homem acordou com um "Ah!" estridente, olhou em volta, consternado, e, sucumbindo de novo à sua fraqueza, murmurou:
- Sonhei outra vez.
- Não parece que o sonho fosse muito agradável, observou George.
O desconhecido encolheu-se, olhou-nos e perguntou, num tom quase de escárnio:
- Quem são os senhores?
Sem respondermos, esperamos que ele se mexesse. O homem, contudo, permanecia imóvel, espantado para nós.
- Com que então sonhei! exclamou de ai a instantes, com voz fraca. Sonhei, sonhei! Suspirou profundamente e ajuntou, escarninho: Levanto suspeitas?
- Não, disse eu, mas com certeza se enganou no caminho. Que estrada tenciona seguir?
- Quer que eu me vá embora?
Tomei um ar condescendente, sorri e repliquei:
- Não. me interessam os seus sonhos. Mas a verdade é que por aqui não há nenhum caminho.
- Então para onde vai o senhor?
- Eu? Para minha casa, respondi já sério.
- Pertence à família Beardsall.
- Pertenço, volvi eu ainda com maior seriedade. No íntimo, pensava quem poderia ser aquele indivíduo.
O homem ficou olhando-me durante uns momentos. Escurecia em torno do bosque. Então, pegando numa bengala de madeira preta e castão doirado, o desconhecido levantou-se. A bengala chamava atenção, e eu pus-me a examiná-la enquanto o seu possuidor se afastava pela vereda, direto ao portão. Com ele, saímos na estrada; ao chegarmos a um ponto desarborizado, onde os raios do poente nos davam em rosto, o velhote virou-se para trás e observou-nos de perto, abriu a boca tal se quisesse falar e
tornou logo a fechá-la. De aí a pouco disse:
- Adeus.

- Precisa de alguma coisa? perguntei, vendo-o cambalear.
- Não. Adeus.
Seguimos cautelosos na escuridão e vimos, na estrada real, os faróis de um veículo: seguiu-se o estalo de uma portinhola e o matraquear da carruagem que se afastava.
- Quem diabo será ele? comentou George, divertido.
- Parece-me que não fiz boa figura, ajuntei.
- Parece?
Esta observação do meu amigo denotava ao mesmo tempo surpresa e indulgência.
Voltamos resolvidos a não dizer nada do caso às senhoras. Minha mãe, Alice e Lettie esperavam por nós junto da janela.
- Demoraram tanto! exclamou a última. Vimos o pôr do sol, que foi magnífico. Olhem, o alto da colina ainda está ardendo... Que fizeram vocês?
- Aguardamos que o teu querido Taurus acabasse de trabalhar.
- Cala-te, ordenou-me depressa; e, voltando-se para George, minha irmã perguntou:
- Vem disposto a entoar hinos?
- Tudo que quiser.
- Ah, que simpático! interveio Alice, irônica. Era uma moça baixa e roliça, pálida, de olhos atrevidos. A família da mãe - os Wylds - tinha fama de irritar a burguesia tanto pela sua independência como pelo excesso de integridade. Alice, filha de um homem admirável e de uma mulher que amava apaixonadamente o marido, mostrava-se estouvada à superfície mas no fundo era dócil e correta. A mãe dela e a minha estavam ligadas por íntima e segura amizade e Lettie dispensava à filha a maior das simpatias; mas isso não impedia que minha irmã censurasse muitos excessos de Alice, embora às vezes se deliciassem com eles - quando não fossem
presenciados por gente superior. Havia homens que adoravam a sua companhia, embora evitassem ficar a sós com ela.
- Responderia a mim a mesma coisa? inquiriu Alice.
- Depende da conversa... volveu George, bem disposto.
- Que homem tão prudente! Eu prefiro uma pedra no sapato do que um homem cauteloso. Não concordo, Lettie?
- Isso é conforme o passeio que eu tivesse de dar, replicou-lhe a amiga. Mas, se não fosse preciso coxear muito...
Alice afastou-se rapidamente de minha irmã, a quem ela às vezes considerava irritante. E, falando então comigo, notou:
- Acho-o mal humorado, Cyril. Alguém o beijou?
Ri, interpretando pelo pior lado a sua malícia feminina. E retorqui:
- Se assim fosse, eu devia estar contente.
- Então alegre-se! acudiu ela, tocando-me de leve no queixo. Em seguida recomeçou a falar com George: - Como vocês estão solenes! Que aconteceu? Diga alguma coisa, antes que eu comece a sentir-me nervosa.
- Que hei-de-dizer? disse ele, com os cotovelos fincados nos joelhos.
- Meu Deus! gritou Alice, já impaciente.
George, todavia, recusou-se a satisfazer sua curiosidade, limitando-se a sorrir, um pouco inquieto. Para disfarçar, admirou os quadros, a mobília e tudo quanto havia na sala. Como Lettie tivesse levantado para compor as flores na prateleira do fogão, ele aproveitou o ensejo para observá-la de perto. Minha irmã estava vestida
de seda azul, com rendas na garganta e nos punhos. Alta como era, a sua figura tinha esbelteza; e o cabelo, fino e encaracolado, tornava-a mais bonita. George não seria mais alto do que ela, antes parecia baixo a seu lado, devido à robustez do corpo: mas não se podia considerá-lo desprovido de elegância, embora não o ajudasse a posição que tomara na poltrona, um tanto rígida. Os movimentos que fazia é que denotavam garbo.
Momentos depois mamãe chamou para a ceia.
- Venha, disse Lettie a George, conduza-me até a mesa. O rapaz levantou-se, mas sentia-se acanhado.
- Dê-me o seu braço, continuou ela, para arreliar George atendeu corando. Afligia-o aquela pele fresca semi-oculta pela renda, que lhe roçava a manga do casaco.
Quando estávamos sentados, Lettie pegou a colher e perguntou ao seu companheiro o que desejava. Ele hesitou olhando desconfiado para os pratos desconhecidos que via à sua frente; e respondeu que preferia queijo. Insistimos em que provasse dos manjares novos.
- Tenho a certeza de que gosta de outras coisas, notou Alice em tom de mofa. Ele vacilou de novo, não sabia distinguir nada daquilo, sentiu-se confuso; dir-se-ia que perdera o paladar. Alice pediu que se servisse de salada.
- Muito obrigado, não gosto.
- Oh, George! É capaz de me responder assim, quando sou eu que lhe peço?
- Já comi uma vez, tartamudeou ele. Foi alface com vinagre. .. mas não gostei.
- A nossa é doce como mel. Olhe que não tem vinagre nenhum.
- Acredito, replicou, para ser agradável.
- Ora ouçam. O nosso George acreditou em mim. Era isso que eu queria.
George esboçou um sorriso amarelo. Tinha a mão sobre a mesa, com o polegar escondido entre os outros dedos, e apertava-o nervosamente. Por fim o jantar acabou, e ele, apanhando o guardanapo que caíra ao chão, começou a dobrá-lo. Lettie parecia também embaraçada: entretivera-se aborrecendo o seu convidado, mas o acanhamento deste conseguira
torná-la aborrecida. Agora sentia-se triste e com remorsos; para dissipar a melancolia, resolveu ir até ao piano, como era, aliás, seu costume em casos semelhantes. Se estava zangada, tocava fragmentos de Tchaicovski; se se considerava infeliz, executava
Mozart. Nesse momento tocou Handel de uma forma que sugeria castigos do céu nas notas longas e, nos trinados, lembrava alguém valsando na escada de Jacob, como as donzelas dos quadros de Blake.
Quantas vezes eu disse a minha irmã que ela se servia escandalosamente do piano para exaltar os seus sentimentos! Em geral, fingia não me ouvir; mas, nessa noite, surpreendeu-me com um súbito acesso de lágrimas. Em atenção a George, tocou depois a Ave Maria de Gounod, calculando que a melodia daquela música faria bem ao rapaz e o levaria a esquecer os pequenos aborrecimentos. E eu, observando o efeito desse encantamento fácil, não pude deixar de sorrir. Ao terminar, Lettie demorou por um minuto os dedos sobre as teclas; depois girou na banqueta, fitou George diretamente nos olhos e pareceu prometer-lhe um sorriso. Mas baixou logo a vista e disse:
- Está cansado de me ouvir.
- Não, não estou, apressou-se ele a responder, abanando a cabeça.
- Gosta mais de música do que de salada? perguntou ela num assomo repentino de alegria.
George mirou-a, numa expressão embevecida, e não replicou. Quando olhava e sorria de modo inesperado, parecia inundar as pessoas num banho de ternura; contudo, não era belo, e quase sempre conservava um aspecto taciturno.
- Então vou continuar, declarou minha irmã, voltando-se para a frente.
Tocou trechos disto e daquilo, de modo distraído e, num movimento brusco, depois de ter esboçado uma espécie de queixa sentimental, abandonou o piano e foi enterrar-se numa cadeira baixa, junto do fogão. Uma vez ali, procurou George com os olhos; ele teve consciência daquela súplica, mas não se atreveu a ceder e ficou torcendo o bigode.
- Você, no fim de contas, não passa de uma criança, disse-lhe ela então, muito calma. O lavrador perguntou-lhe porque.
- Sim, uma criança, repetiu ela, recostando-se no espaldar da cadeira e sorrindo com ar indolente.
- Nunca tinha me lembrado disso, observou George, com perfeita seriedade.
- Palavra?
- É como digo, confirmou ele, tratando de reunir suas recordações.
Lettie riu-se com vontade e prosseguiu:
- Está em crescimento.
- Como?
- Em crescimento.
- Sou capaz de jurar que nunca fui criança.
- Escute: a sua infantilidade não o impede de ser homem jôrio. Outro qualquer mal se atreveria a tanta simplicidade, com medo de perder o ar digno. Tolices!
O rapaz achou a explicação divertida e, como de costume, pôs-se a matutar no caso.
- Gosta de estampas? perguntou ela de repente, já cansada de olhá-lo.
- Mais do que tudo.
- Menos do que jantar, aquecer, se espreguiçar-se...
Sentindo-se humilhado com aquela apreciação, George mordeu lábios, sem replicar; e Lettie, arrependida, sorriu com doçura.
- Então vou mostrar-lhe algumas.
Dizendo isto, levantou-se e saiu da sala. O rapaz teve, no entanto, a impressão de que se aproximava mais dela. Daí a pouco voltou carregando uma pilha de livros enormes.
- Isso é que é força! exclamou ele.
- Muito amável...
George olhou desconfiado, para ver se ela estaria fazendo troça.
- É tudo quanto sabe me dizer? perguntou Lettie.
O rapaz deu uma resposta vaga, para não se comprometer.
- Conheço, prosseguiu ela, pondo os livros sobre a mesa, quais os pensamentos dos homens pela maneira como me observam. Ajoelhou defronte do lume
e continuou: Alguns olham para o cabelo, outros à minha maneira de respirar, ou reparam no nariz... e outros, mas poucos, fitam-me nos olhos para ler o
que eu penso. Você não pertence a este último grupo. Para você sou um espécime de outra natureza: muito forte! Ah, que homem primitivo!
George pôs-se a entrelaçar os dedos. Ela desconcertava-o.
- Traga a sua cadeira para cá, ordenou ela, sentando-se à mesa e abrindo um dos livros.
Falou depois sobre cada gravura, insistindo em querer saber a opinião dele. Às vezes discordavam e o rapaz parecia pouco convencido; outras vezes Lettie ficava escandalizada com as opiniões que ouvia.
- Se, notou ela, viesse agora um bretão de outros tempos, vestido de peles, para me contrariar como você, não seria justo que o aconselhássemos a não fazer figura de parvo?
- Não sei...
- Pois devia saber! Nunca sabe nada.
- Como é, então? Minha irmã desatou a rir.
- A pergunta foi tão fácil! Olhe, você podia ser mais. .. vivo.
- Muito obrigado, respondeu ele, em tom irônico.
- Ah, julga que é um modelo de perfeições? Fique sabendo que o acho indolente.
- Sim, é um molengão, interveio Alice, que nesse instante reentrava na sala, pronta para partir. Não é capaz de sacudir-lhe Lettie?
- Não me sinto com esse direito.
- Adeus a todos, continuou Alice. Vamos, Cyril, está um luar de primeira ordem. Boa noite.
Acompanhei-a a casa, e os outros dois ficaram olhando as gravuras.
George tinha inclinações românticas, gostava de Copley, Fielding, Cattermole e Birket Foster. Girtin e David Cox não lhe diziam nada. Em certa altura puseram-se a apreciar George Clausen.
- Este é um verdadeiro realista, disse Lettie. Torna belas as coisas vulgares, vê o mistério e a grandeza que nos envolvem ainda quando fazemos
trabalhos subalternos. Se eu montar no campo, a seu lado...
Aquilo era novo para ele e feriu a sua imaginação. A estampa em discussão representava uma aquarela de Clausen intitulada Mondando. Lettie não largou o assunto:
- A cor poente é mesmo assim, e, se olhar para a terra, notará que existe nela como que um oiro quente... Compreenda o colorido, isso leva-lo-á a perceber tudo. Você, por enquanto, está cego, é como um recém-nascido, só deseja dormir, vive muito materialmente: é como um piano que só tivesse as notas mais vulgares. O pôr do sol não significa nada para si, é uma coisa que acontece todos os dias... Não me obrigue a torturá-lo. Se houvesse vindo ao mundo numa casa onde alguma coisa o oprimisse, alguma coisa que não pudesse entender; se jamais acreditasse ou duvidasse... De qualquer destes modos, podia ser um homem e não uma criança. Não, não tem crescido, é como os bulbos que passam todo o verão a inchar, a inchar mas que nunca dão flor. Quanto a mim, a flor já apareceu, mas quer continuar a crescer. O que é demasiadamente alimentado não floresce. Você tem de sofrer antes de desabrochar. Quando a morte se aproxima de uma planta, instiga-a ao amor da floração. Decerto quer saber se a morte me tocou já. Ouça: nesta casa há sempre a sensação da morte. Creio que a minha mãe, antes de eu nascer, odiava o meu pai: havia pois, nas suas veias, uma corrente mortífera. Isso tem sua importância...
George ouvia, de olhos esbugalhados e boca aberta como uma criança que pressente a história que lhe contam mas não compreende as palavras. Ela, por fim, pousou nele o olhar, e começou a rir suavemente. Depois, batendo-lhe de leve na mão, murmurou:
- Desorientei-o? Foi grande amabilidade a sua ter-me escutado. Não há nenhuma intenção nisto tudo... tão fora da realidade!
- Mas... por que o disse?
- Que pergunta! Agora voltemos à vaca fria. Estamos a olhar um para o outro como dois patetas.
Falaram de novo sobre as reproduções de quadros. De súbito, George exclamou:
- Repare!
Era o Idílio de Maurice Griffinhagen.
- Que tem? indagou ela, corando lentamente. Lembrara-se do seu próprio entusiasmo quando vira aquilo pela primeira vez.
- Bonito, não acha? disse ele, mirando com olhos brilhantes a sua interlocutora. O seu sorriso, que não era sinal apenas de satisfação, mostrava-lhe
os dentes muito brancos.
- O quê? volveu Lettie baixando a cabeça, um tanto confundida.
- Aquela mulher... receosa... e apaixonada!
- E natural que sinta certo medo ao ver o bárbaro em todo o seu esplendor, envolto em peles e tudo mais...
- Mas não gosta disto?
Minha irmã encolheu os ombros, replicando:
- Namore a primeira mulher que encontrar. Na altura em que as papoulas avermelharem os campos, já ela estará caída nos seus braços. Haverá necessidade de mais alguma coisa, além de a trazer meio assustada?
Enquanto falava, ia brincando com as folhas do livro, sem olhar para o seu companheiro.
- No entanto... gaguejou ele, de olhos cintilantes, seria... antes...
- Oh, santa inocência!
- Mas, insistiu o rapaz, eu não sei se gostaria de qualquer mulher que eu soubesse que...
- Querido Galaaz, redarguiu Lettie, em voz galhofeira, acariciando o queixo com o dedo. Você devia ter sido monge... ou mártir. Devia ser frade cartuxo.
George riu, sem fazer caso daquele discurso. Experimentava uma sensação nova para ele, como que um fogo a arder no peito e nos músculos dos braços. Ofegante, olhou para os seios de Lettie, e estremeceu.
- Está estudando o seu papel? perguntou ela.
- Não, mas... Tentou fitá-la, mas não o conseguiu. Encolhendo-se todo, deixou pender a cabeça, enquanto ela perguntava, cheia de curiosidade:
- Mas o quê?
Já mais calmo, o lavrador ergueu a vista: e os seus olhos, grandes e expressivos, pareciam queimá-la, como se deles irradiasse uma labareda que atingisse as faces de Lettie. Ela é que, por sua vez, dobrou a cabeça, pondo-se a alisar o vestido.
- Nunca tinha visto esse quadro? inquiriu em voz baixa. E ele, cerrando as pálpebras e retraindo-se envergonhado, murmurou:
- Não, nunca o tinha visto.
- É para admirar. Trata-se de uma obra vulgarizada.
- Ah, sim?
Este pretexto para conversa acabou por se esgotar.
Lettie ergueu de novo o olhar e encontrou o dele. Fitaram-se por um momento antes que baixassem mais uma vez a cabeça. Era, para ambos, verdadeira tortura essa contemplação muda - dor recolhida que eles se obrigaram a suportar nesse instante e que depois lhes encheu as veias de um fluido ígneo, assustador. Lettie, alarmada, procurou dizer qualquer coisa.
- Suponho que o quadro está em Liverpool, foram as suas primeiras palavras.
George não se atreveu a perder a deixa. Tinha consciência da situação e achou necessário replicar:
- Ignorava que houvesse um museu em Liverpool.
- Há, sim, e muito bom.
Os olhares encontraram-se noutro relance, mas ela voltou logo a cara, e ele fez outro tanto. Assim, com a vista desviada, conversaram ainda um pouco. Por fim, Lettie levantou, pegou os livros e levou-os consigo; à porta voltou-se e aproveitou o ensejo para dizer:
- Está admirando a minha força?
A sua atitude não deixava de ser bela. Como levantara muito a cabeça, via-se-lhe a curva da garganta descendo suavemente até o peito, que se entumescera com o esforço dos braços a segurarem os livros. George contemplou-a, e nos lábios de ambos adejou um sorriso. Lettie ergue mais o pescoço, como se estivesse bebendo, e um e outro sentiram o sangue latejando-lhes nas fontes. Então, com um leve tremor, ela virou a cara e desapareceu da sala.
Enquanto minha irmã esteve ausente, George ficou torcendo o bigode. Pouco depois ela chegou; ao atravessar o vestíbulo, viera falando sozinha, em francês. Tendo visto Sarah Bernhardt representar a Dama das Camélias e Adriana Lecouvreur, Lettie aprendera o estranho tom de voz da grande atriz e costumava imitá-la de vez em quando. Nesse momento, dando de cara com o rapaz, riu-se para ele - que lhe ripostou fosse o que fosse - e continuou a pronunciar palavras na mesma língua, com um
sotaque cheio de asperezas. Aquilo soou de forma singular e desconcertante. Notei (como muitas vezes mais tarde) que havia no rosto de George uma perplexidade dolorosa, tal a sensação de qualquer coisa que o magoava e que ele não conseguia entender.
- Devemos parecer loucos uma vez ou outra, disse ela, para mostrar que ainda não envelhecemos.
- Gostava de ter compreendido, disse George, ainda de semblante triste.
- Coitado! exclamou Lettie, divertida. E tão modesto! Já vai embora, realmente? Acho-o tão melancólico... Vão julgar, na sua casa, que não lhe demos ceia.
- Ceei uma quantidade de coisas... retorquiu ele, agora sorridente, querendo aventurar-se a uma frase de efeito. Mas estava excitado em demasia.
- ... de coisas horrorosas, atalhou a moça, rematando-lhe o período. E este final ainda é o pior de tudo.
- Acha?
Fitaram-se por momentos, ambos risonhos.
- Muito pior. Esperaram uns segundos, sem dizer mais nada. George olhou-a de novo.
- Adeus, disse ela, estendendo a mão. A voz denotava, ao mesmo tempo, ternura e rebeldia. George tornou a observá-la, de olhos chamejantes,
e depois agarrou-lhe a mão, demorando-a na sua, apertando-lhe os dedos... Envergonhada de haver sido tão expansiva, Lettie baixou o olhar e, nessa
ocasião, viu que o rapaz tinha um ferimento no polegar.
- Que grande golpe! bradou, enquanto fazia, trêmula, uma pequena pressão no dedo magoado.
George soltou uma risada.
- Não dói? perguntou ela, muito solícita.
Ele tornou a rir. E respondeu naturalmente, como se aquele polegar não lhe merecesse nenhuma consideração:
- Nada...
Trocaram mais um sorriso. Então, com um movimento brusco, George quebrou o encanto, e afastou-se.


CAPÍTULO 4

 

Chegara o Outono. As dálias-vermelhas, que em geral se conservam vivas e luminosas até tão tarde, apareceram com as corolas murchas e apodrecidas.
Uma tarde, quando eu passava defronte da porta do correio, chamaram-me de lá de dentro e entregaram-me uma carta para minha mãe. Observei o sobrescrito, cuja caligrafia tortuosa me causou um mal-estar inexplicável, meti a carta no bolso e depressa me esqueci dela. Em casa, querendo lembrar-me de qualquer coisa que interessava à minha mãe, recordei-me do fato e entreguei a carta. A destinatária reparou também no sobrescrito e começou a rasgá-lo nervosamente. Chegou-se depois mais para a luz e, de olhos semicerrados, pôs-se a esquadrinhar o conteúdo. Fui buscar-lhe os óculos e ela mal me agradeceu. Suas mãos tremiam. Leu a carta num instante, em seguida sentou-se, voltou a ler, e continuou a olhar para o papel.
- Que é, mãe? perguntei-lhe.
Não me respondeu, e ficou na mesma posição. Aproximei-me dela, pus-lhe a mão no ombro, receoso de qualquer má notícia, e ouvi-a murmurar, como se eu não estivesse presente:
- Coitado de ti, Frank.
Frank era o nome de meu pai.
- Que sucedeu, mãe? insisti.
Virou-se ela então, fitou-me como quem olha para um desconhecido, pôs-se de pé e começou a passear na sala. Depois saiu; percebi que se dirigia ao quintal.
O papel escorregara para o chão. Apanhei-o. Toda a caligrafia mostrava o mesmo aspecto desordenado que eu já notara no sobrescrito; a data indicava ter a carta sido escrita dias antes, numa aldeia situada a poucas milhas de distância. E o texto dizia.

"Minha querida Lettice:
Participo que estou quase morrendo: não poderei durar mais de dois dias, com os rins neste estado.
Fui aí um dia; não a vi, mas descobri nossa filha à janela e troquei meia dúzia de palavras com o rapaz. Nem um nem outro me reconheceram. Se soubesse como me sinto só, horrivelmente só, teria pena de mim.
Tenho poupado o mais que posso, para que seja reembolsada. Agrada-me ver chegado o meu fim, que bem mereci. Não podia ser pior.
Adeus, para sempre. Teu marido.
Franfe Beardsall."

Fiquei perplexo com a leitura desta carta. Fiz um esforço para me recordar de meu pai, mas, com grande esforço, só consegui rever a imagem que me deixava na memória certa fotografia antiga, socorrendo-me ao mesmo tempo da descrição feita por minha mãe: homem alto, belo, melancólico, de olhos claros.
Esse casamento fora infeliz. Meu pai era frívolo, de caráter ordinário, se bem que não fosse destituído de atrativos. Mentiroso, sem a mínima noção da honra, desiludira por completo as expectativas da mulher. Umas após outras, descobrira ela todas as irregularidades do homem a quem se ligara; sentia a alma revoltar-se e, como o sortilégio se partira em mil pedaços, afastou-se com a amargura de quem vê o seu romance transformar-se numa farsa imoral. Quando ele a deixou, trocando-a por outros prazeres - Lettie estava com três anos, e eu com cinco - minha mãe não sentiu senão alívio. Depois, só recebera notícias indiretas, que o não reabilitavam embora a sua situação material houvesse prosperado. O caso é que ele nunca lhe escrevera nem a procurara durante dezoito anos.
Entretanto, minha mãe regressou do quintal, e sentou-se numa cadeira, entretendo-se a fazer bainhas na orla do avental.
- A verdade, disse ela, é que Frank tinha direito aos filhos e que eu os guardei todo este tempo.
- Ele podia ter voltado, se quisesse, observei.
- Eduquei vocês contra o pai, mantive a distância - e ele queria tanto aos filhos! Devia estar agora a seu lado; devia tê-lo levado lá há mais tempo.
- Como, se não conhecia o seu paradeiro?
- Ele queria voltar... suspeitei disso nestes últimos anos. Mas conservei-me afastada, bem o reconheço. Coitado! Há-de ter compreendido os seus erros. Eu fui mais cruel...
- Não diga isso. Está falando debaixo da impressão recebida.
- Pressenti ultimamente que ele estava mal. Não sei como, mas adivinhei a sua doença, e tive a suspeita de que queria tornar a ver-nos.
Há três meses, em especial, que eu estava inquieta. Ah, fui bastante cruel!
- Então vamos, sugeri. Vamos lá visitá-lo.
- Amanhã, amanhã, replicou minha mãe, parecendo que só nesse momento reparara em mim. Irei de manhã.
- Vou consigo.
- Sim, de manhã. À Lettie não se diz nada. Ela tem sua festa em Chatsworth.
- Não se diz nada, concordei.
De aí a pouco minha mãe subiu ao andar de cima.
Mais tarde, Lettie chegou de Highclose. Leslie não quis entrar. Na manhã seguinte foram de automóvel para Matloc e Chatsworth. Como andava excitada, minha irmã não reparou em nada.
Depois de eles terem partido, nós saímos também. Quando descíamos do comboio, em Cossethay, a tarde estava calma e dourada, e mamãe insistiu em fazer a pé o percurso de duas milhas, até a aldeia. Fomos devagar, pela estrada, demorando-nos a apreciar as flores rubras que ornavam as sebes. Dir-se-ia que não tínhamos grande desejo de chegar ao nosso destino. Ao avistarmos o campanário cinzento da igreja ouvimos sons de estridente música metálica: dançava-se animadamente numa quinta dos arredores.
Havia cavalos de pau e barcos girando em roda, sob o céu azul transparente. Sentamo-nos sobre os degraus de uma cancela, a observar o carrossel e as várias barracas espalhadas pelo campo. As crianças, em grupos, passavam de um divertimento para outro. Com dois baldes gotejantes nas mãos, um homem atravessou o espaço aberto; às portinholas dos carros espreitavam mulheres e, debaixo dos pés das pessoas, metiam-se constantemente cães magros e preguiçosos. Assim decorria a feira, com todos
os seus ruídos particulares.
A voz masculina e rouca de certa dama convidava as crianças curiosas a olharem pelo estereoscópio. Na tribuna do carrossel estava um homem; e escarranchando-se ali, inclinava-se para trás, assobiando forte com os dedos na boca. Numa barraca imunda via-se um sujeito gordo a gritar aos garotos reunidos à sua volta, intimando-os a desafiarem um rapaz corpulento que, numa atitude impassível, cruzava os braços e mostrava o vigor dos bíceps. Como alguém perguntasse se ele se responsabilizava
pelo desafio, o rapaz fez que sim com a cabeça, o que foi reforçado logo pelo empresário. Mais além, ouvia-se a voz esganiçada dos vendedores. A lamber um sorvete, aproximou-se de nós uma moça; mas não nos achou dignos de interesse, e prosseguiu o seu caminho em busca de outras distrações.
Estávamos tomando coragem para seguir através daquele tumulto quando o sino rachado da igreja dominou o burburinho, lançando ao ar três badaladas. Olhei para minha mãe - e ela afastou-se de mim.
A música do realejo continuava arrastando-se, a mulher de voz rouca fazia novos apelos. Depois houve um momento de calmaria. O empresário do atleta entrou então na barraca para lutar com este, os vendedores ergueram os seus clamores, os cavalos e os barcos recomeçaram a girar.
De súbito, o sino voltou a badalar, agora mais vezes. O barulho, no entanto, crescera à nossa volta. Um dos rapazes, que se atrevera a andar de carrossel, tinha ainda o pé no estribo quando aquilo principiou a girar, com risco de desequilibrar tudo. A moça do sorvete comia agora outro, lambendo-o com igual método. Minha mãe, distinguindo o sino em meio daquele reboliço, gritou-me que a seguisse - e assim nos apressamos através da feira, em direção à igreja.
Passamos depois por um jardim onde flores rubras espreitavam do topo das hastes compridas. Por toda a parte se desgrenhavam crisântemos e murchavam malmequeres. Esse jardim pertencia a uma casa baixa e escura, atrás de um muro de bambu. Fomos direto à entrada principal. As venesianas estavam descidas; mas, numa janela, distinguimos luz mortiça de velas.
- É a Vivendo, do Teixo? perguntou minha mãe a um rapaz.
- Da Senhora May? É aqui, respondeu ele.
- Ela vive só? - inquiri - por meu turno.
- Tinha um hóspede francês, mas ele morreu. É por isso que estão as velas acesas.
Batemos à porta.
- Vêm por causa dele? indagou uma velha curvada, de voz rouca, que nos perscrutava com os seus olhinhos azuis; ao mesmo tempo, meneava a cabeça, coberta com uma touca de veludo, e apontava para um quarto interior.
- Viemos, declarou minha mãe. Recebi uma carta.
- Ah, coitadinho! Lá se foi! volveu a mulher, sempre a abanar a cabeça. Depois inclinou-se mais para nós, cheia de curiosidade, pôs a mão mirrada no braço da minha mãe e cochichou:
- As velas já se apagaram por duas vezes.
- Preciso de entrar e tomar algumas disposições. Sou parenta mais chegada, explicou a mãe, com voz trêmula.
- Sim, senhora; estive dormitando e, quando acordei, já estava escuro. Ah, não preciso agora velar por ele, pobre homem!, como fiz tantas vezes. O que ele padeceu, credo! Levantou as mãos ressequidas e fitou minha mãe com maior atenção, erguendo para elas os olhos intensamente azuis.
- Sabe onde é que ele guardava os seus papéis? perguntamos em seguida.
- Sim, senhora, falei com o Reverendo Burns a respeito de tudo. Devemos rezar por ele, foi o que me disse o padre. Comprei as velas com o meu próprio dinheiro. Era muito esquisito, coitado. Pobre homem! repetiu a dona da casa, sacudindo a cabeça grisalha em ar de condolência.
Minha mãe deu um passo em frente.
- Quer vê-lo? acudiu a velha, um tanto receosa.
- Quero, respondeu a mãe, acompanhando a palavra com um aceno vigoroso. Tinha percebido que a outra era quase surda.
Entramos para a cozinha, que era baixa, comprida e escura, com os vitrôs fechados.
- Sentem-se, disse a velha no momento tom apagado, - como se falasse consigo mesma. Era irmã dele, talvez?
Mamãe abanou a cabeça.
- Ah, sua cunhada! retorquiu a hospedeira. Fizemos sinal negativo.
- São primos? continuou, olhando para nós já suplicante, Não a desmentimos desta vez.
- Esperem um minuto, pediu, saindo da cozinha no seu andar saltitante. Bateu a porta, ouvimo-la tropeçar numa cadeira, mas por fim voltou com
uma garrafa e dois copos, que pôs na mesa, na nossa frente. Mal se julgaria que esse pulso magro seria capaz de segurar uma garrafa cheia.
- Esta é a que ele bebia, explicou logo, enquanto nos incitava a provar. Bebam, para ganhar forças. Afastou-se outra vez e regressou com o açucareiro. Recusamos a bebida.
- Ele é que não tornará a tomar, coitado! E que boa pinga, minha senhora. Só bebia coisas boas. Mas há três dias que não engolia nem uma gota. Vá, não façam cerimônia. Recusamos de novo.
- Está ali, segredou ela, apontando para uma porta fechada, no canto mais sombrio da cozinha. Abri-a, arrisquei uns passos e, tropeçando, fui de encontro à mesa na qual ardia uma vela num castiçal de latão. A vela caiu no soalho e o castiçal rolou com estrépito.
- Oh! Meu Deus! gemeu a hospedeira. Correu, a tremer, para o outro lado da cama e tornou a acender o pavio que ainda fumegava. Nesse momento a luz
deu-lhe em cheio na cara encarquilhada e pôs reflexos nas maçanetas do leito de mogno. No chão, viam-se pingos, e na cama, debaixo da colcha, distinguia-se o contorno de um corpo. A velha ergueu a parte da roupa que cobria o cadáver e recomeçou nos seus lamentos. O coração batia-me com força; evitei o olhar mas não pude. Ali estava o homem que eu vira no bosque, porém já lívido. Senti ao mesmo tempo piedade e terror e uma impressão horrível de
pequenez, de isolamento num grande espaço vazio. Parecia que eu me encontrava para além de mim próprio, como se fosse uma sombra insignificante que se movesse na escuridão. Depois notei que minha mãe havia chegado e que, abraçando meus ombros, murmurava em tom dolorido:
- Filho, filho da minha alma!
Estremeci e voltei a mim. Não havia lágrimas nos olhos dela, apenas uma expressão de súplica.
- Não faz mal, mãe, não faz mal, disse eu, incoerentemente, no meio da minha atrapalhação.
Com as mãos velando-lhe o rosto, minha mãe dirigiu-se à dona da casa e impôs-lhe silêncio. Esta enxugou as faces e aconchegou os fios grisalhos debaixo da touca de veludo.
- Onde estão os haveres dele?
- Heim? perguntou a velha, apurando o ouvido.
- Está aqui tudo quanto lhe pertencia insistiu a mãe, com voz forte.
- Aqui? repetiu a mulher, indicando o quarto com a mão estendida. Havia, além da enorme cama de mogno, sem cortinados, uma escrivaninha, uma cômoda antiga de carvalho e duas ou três cadeiras. Não o pude levar para cima. Está cá pouco mais ou menos há três semanas, acrescentou de aí a instantes.
- Aonde está a chave da escrivaninha? perguntou minha mãe ao ouvido da outra.
- Sim, senhora, é a escrivaninha dele, respondeu, olhando-nos indecisa.
A cena confrângia-me.
- A chave! gritou minha mãe. Onde está a chave?
A velha, perturbada, não fazia outra coisa senão abanar a cabeça. Calculei que ela não soubesse, de fato, o que lhe perguntavam.
- E as roupas? As roupas? inquiri, apontando para o meu paletó. Ela, então, compreendeu e disse:
- Vou buscar.
Perto da cabeceira do leito existia uma portinha que dava para a escada do andar superior. Estávamos dispostos a seguir a hospedeira, que desaparecera a toda pressa por ali, quando ouvimos um passo pesado na cozinha e uma voz gritando.
- Teria a velha ido beber com o diabo? Viva, Senhora. May, venha antes beber comigo!
Sentimos o despejar de um líquido no copo e quase no mesmo instante entrou um homem no quarto, dizendo:
- Sempre quero ver onde está essa velha! Como acontecera comigo, esbarrou também na mesa, mas não derramou nada no chão. Raio de degrau! acrescentou em tom jovial. Devia ser o médico. Vinha de chapéu na cabeça e vagueou pelo aposento com a maior sem-cerimônia. Tinha a cara vermelha e era volumoso de corpo.
- Desculpe, disse ele, reparando em minha mãe, que baixou a cabeça num leve cumprimento. É a Senhora. Beardsall? ajuntou, tirando o chapéu.
Mamãe fez sinal afirmativo.
- Fui eu que pus no correio a carta para a senhora. Também é parente? perguntou a seguir, indicando-me.
- O mais próximo.
- Pobre homem! volveu ele, designando o morto. Conseqüências da vida solitária!
- A carta foi grande surpresa, para mim, disse minha mãe.
- Ele não estava em estado de escrever, tinha passado muito mal ultimamente. Enfim, mais tarde ou mais cedo temos de dar contas a Deus. Queira desculpar.
Houve um momento de silêncio, durante o qual o médico suspirou. Depois começou a assobiar baixinho.
- Será melhor levantar a venesiana, observou ele, deixando entrar no quarto uma nesga de luz. Em todo o caso, não hão-de ter muitas preocupações. Não ficaram dívidas. Creio até que deixou qualquer coisa. Já não está nada mau. Pobre diabo! Andava com a saúde muito ruim. Enfim, mais tarde ou mais cedo... Para onde teria ido o demônio da velha? exclamou de repente, olhando para o teto de vigas, que estremecia com o peso de alguém no quarto de cima.
- Gostava de encontrar a chave da escrivaninha, disse minha mãe.
- Vou procurá-la. E o testamento também. Ele informou-me quanto ao lugar onde tinha isso, e pediu-me que lhe entregasse tudo, quando a senhora viesse. Pensava muito na família, ao que me parece. Podia-lhe ter corrido melhor a vida...
Ouvimos nessa altura os passos da velha descendo a escada. O médico foi ao encontro dela, até aos primeiros degraus.
- Cuidado, cuidado, gritou ele. A pobre mulher fez o que era de esperar: embaraçou-se nos suspensórios de umas calças que trazia de rastos e veio cair nos braços do médico. Este restabeleceu-lhe o equilíbrio, ao mesmo tempo que dizia: - Não se machucou não?
- Ah, doutor, ainda bem que veio. Já viu quem está aí?
- Já, retorquiu ele, com os seus modos rudes mas bondosos. Correu à cozinha, arranjou dois copos de uísque e trouxe-os consigo. Um para si e outro
para mim. Isto dá-lhe forças!
A velha sentou-se numa cadeira junto da porta da escada, com a pilha de roupa caída aos pés. A claridade do dia, entrando pela janela, misturava-se com a dos castiçais e punha tons estranhos tanto na casa da hospedaria como na figura imóvel que estava na cama.
Enquanto a dona da casa segurava o copo com a mão trêmula, o médico deu-nos as chaves e pusemo-nos a vasculhar as gavetas, tirando para fora os papéis. Ele, sem deixar de bebericar o seu uísque ia dando informações acerca do defunto.
- Estava aqui há só dois anos. Começa a sentir-se cansado, disse com os meus botões. Vivera algum tempo no estrangeiro, e por isso é que lhe chamavam francês. Bebeu mais um gole e continuou: - Ah, sempre me pregou cada peça! Sonhava alto, de forma assustadora. Felizmente a velha é surda como uma porta. É horrível, sonhar assim. Um homem arruina-se por completo, quando isso lhe acontece. Bebeu novos goles de uísque, fez outras reflexões e afogou-as com mais bebida. - Mas era um tipo decente, generoso, de mãos largas. As pessoas que não gostavam dele é porque não o compreendiam.
Detesta-se sempre o que não se pode aprofundar. Muito metido consigo, isso é verdade, - exceto quando estava dormindo. Olhou para o copo, suspirou e prosseguiu: - Vamos sentir sua falta. Não é verdade, Senhora May? Fez esta pergunta em voz tão alta que nos sobressaltou; e, por instinto, olhamos furtivamente o leito mortuário.
Entretanto o médico acendera o cachimbo e fumava com sofreguidão, talvez para matar o desejo de beber novos copos de uísque. Mamãe e eu aproveitamos a ocasião para examinar os papéis. Cartas, havia poucas; duas eram endereçadas a pessoas de Paris. Mas encontramos muitas contas, recibos, apontamentos diversos: tudo coisas de negócios.
Em toda aquela desordem a custo se descobriria um traço de vida sentimental. Minha mãe escolheu alguns papéis que lhe pareceram de maior valor. Os outros incluindo as contas, levou-os para a cozinha e jogou-os ao fogo. Parecia ter medo de procurar além de certo ponto.
O médico, entretido com o fumo, voltou a expor os seus pensamentos:
- Há duas maneiras, sim, há duas maneiras.
Pode-se deixar arder a lâmpada com a chama forte, e vê-la brilhar, até que se extingue, e faz fumo, e cheira mal; ou então conservá-la com todo o cuidado sobre a mesa, sujar os dedos arrumá-la de vez em quando: dura mais e cheira menos. Neste momento olhou o copo e notou que estava vazio. Isso chamou-o à realidade: - Posso ser-lhe útil seja no que for, minha senhora?
- Não se incomode, muito obrigada.
- Calculo que não haja muito trabalho nessas arrumações. Nem muitas lágrimas a verter - quando um homem gastou a sua mocidade sabe Deus por onde!
Os que o conheceram moço não hão-de sentir grandemente a sua perda. Teve os seus dias, mas não os gozou muito - sempre a desejar mais e mais. Não há nada como viver casado, com a existência regrada. Depois disto recaiu numa das suas meditações, na qual se manteve todo o tempo em que nós fechamos a escrivaninha, queimamos os papéis inúteis, guardamos os mais importantes - na minha algibeira e na mala da minha mãe - e nos preparamos para sair. Foi só então que ele, olhando admirado para nós, disse de repente: - E a respeito do enterro? Em seguida, notando o ar de fraqueza de minha mãe, deu um pulo, agarrou no chapéu a toda a pressa e acrescentou: - Venha ter com minha mulher, que lhe dará uma xícara de chá. Tenho vegetado tanto no meio destes rústicos que me esqueço às vezes das normas da cortesia. Venham. Minha mulher está só.
Mamãe sorriu e agradeceu-lhe. Voltamo-nos para a porta. No limiar, porém, ela hesitou, dirigiu a vista, rapidamente, para o leito, e por fim decidiu-se a partir.
Ao sentir a frescura da tarde que findava, tive a impressão de que havia sido tudo mentira.
Custava-me a acreditar. Não, não existia realidade naquela face lívida, naquela barba grisalha onde a luz da vela punha nódoas ondulantes e amareladas. O leito de mogno e a velha surda eram simples ilusão dos meus sentidos. A verdade estava só nestes girassóis de cor intensa, nesse relógio do Hospício, na claridade da tarde que nos envolvia e reconfortava. Tive um arrepio, expulsei da memória
o quadro que me afigurava irreal e prossegui o caminho.
A residência do médico ficava num lugar agradável, entre faias. Junto de uma cerca de ferro, em frente do pasto, via-se nesse momento uma senhora acariciando o focinho de uma linda vaca Jersey, a observá-la de muito perto e a falar-lhe com acentuada pronúncia escocesa. Dir-se-ia que essa mulher pequena e rosada estava falando e
brincando com uma filha. Ao virar-se para nós, ficou surpreendida e saudou-nos ainda com um resto de ternura nos olhos.
Uma vez em casa, ofereceu-nos chá, bolos e geleia. Não me fartei de gozar o som da sua voz musical, que lembrava o zumzido de abelhas em torno do açúcar; e, embora não dissesse nada de especial, nós a escutamos com a maior atenção.
O médico era pessoa bondosa e alegre. A mulher lançava-lhe de vez em quando olhares receosos e fazia o possível por não encará-lo. Com os seus modos francos e joviais, o marido troçava, elogiando-a depois com exagero e tornava a
dirigir-lhe gracejos. Em certa altura começou a ser um nadinha enfadonho e eu percebi que a mulher temia
vê-lo embebedar-se deveras. Devia sentir horror ao espetáculo da embriaguez, que não parecia ser muito raro.
Não tinham filhos.
Ao notar a inquietação da mulher, o médico suspendeu as suas brincadeiras. Olhou para ela várias vezes e pareceu constrangido com o fato de a sua cara metade evitá-lo, então começou a ser visível o mal-estar desse homem, e eu percebi que ele queria ir-se embora.
- Talvez fosse preferível irmos agora ao padre, observou daí a pouco. E deixamos aquela sala cujas janelas se abriam para o sul, para as pastagens, aquela sala que revelava toda a história da família, quer nas aguarelas pretensiosas, quer nos tapetinhos bordados das mesas, nas jarras vazias, no piano fechado, nas xícaras desirmanadas, no bico rachado do bule que deixava nódoas na toalha, e nos dois romances de capa suja, vindos de uma livraria de empréstimo.
Fomos encomendar o caixão, e o médico bebeu um novo copo de uísque. Paguei as despesas do funeral, e ele selou o ato com uma gota de aguardente. O cálice de porto, que o padre ofereceu, completou a jovialidade do meu companheiro. Regressamos depois a casa dele.
Desta vez, a inquietação que a mulher mostrou nos olhos não conseguiu dissipar a alegria do doutor: ele tagarelava sem descanso e ela
limitava-se a fazer girar no dedo o anel de casamento. Apesar do ar alarmado que mostramos, o médico insistiu em nos conduzir no seu carro até a estação. A mulher, então tranqüilizou-nos.
- Podem ir com ele sem receio, declarou com sua voz de acento escocês.
Da estação de Eberwich até em casa há uma certa distância. Fizemos o percurso parte em ônibus e o resto a pé. Minha mãe, cansada como estava, sentiu bastante o caminho.
Rebeca esperava-nos junto dos rodondendros; correu cheia de solicitude ao encontro de minha mãe e perguntou se queria chá.
- Já tomei.
- Mas devia tomar outra chávena.
Na sala de jantar, recebeu o chapéu e o casaco de minha mãe e ficou à espera, desejosa de ser esclarecida mas com relutância de fazer qualquer pergunta. Afligiam-na as olheiras de mamãe e o seu ar fatigado.
- Lettie esteve em casa, participou em seguida.
- E foi-se outra vez?
- Veio só mudar de vestido. Levou o de popelina verde. E queria saber para onde tinham ido...
- Que respondeu?
- Disse que não se deviam demorar.
Achei-a alegre como um passarinho.
Depois disto, Rebeca olhou atentamente para minha mãe, que lhe disse:
- Sabe? Ele morreu. Acabo de vê-lo.
- Agora, graças a Deus, a senhora não terá que se aborrecer mais.
- Morreu abandonado, Rebeca.
- Como a senhora tem vivido, nem mais, volveu a criada, em tom áspero.
- Mas eu tive comigo os filhos. Não diga nada à Lettie.
- Não, minha senhora. Rebeca saiu.
- Você e Lettie receberão o dinheiro, disse a mãe, dirigindo-se a mim. Havia cerca de quatro libras, que lhe tinham sido deixadas; e, só no caso da sua morte, é que minha irmã e eu as herdaríamos.
- Pertencem-lhe, mãe, retorqui.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio. Foi ela quem o quebrou, dizendo:
- Podia ter tido um pai...
- Felizmente tivemos mãe. Poupou-nos isso.
- Não diga semelhante coisa!
- Digo e repito. Estamos gratos.
- Se algum dia sentir desprezo por alguém, trata de impedi-lo, e seja generoso, filho.
- Sim, senhora.
- Por agora, basta. Mais tarde ou mais cedo será preciso prevenir Lettie.
Eu o fiz uma semana depois. Minha irmã, insensível, perguntou-me:
- Quem mais sabe?
- Nós, a mãe e Becky.
- Mais ninguém?
- Não.
- Se ele era tão nocivo para a mãe, foi melhor que desaparecesse de vez. Onde está ela?
- Lá em cima.
E Lettie subiu as escadas, a correr.


CAPÍTULO 5

 

A morte do homem que fora nosso pai
modificou-nos bastante a existência: não que experimentássemos grande desgosto, mas porque nos dominou a impressão da vida malograda. Haviam-se alterado em nós os sentimentos e afinidades, criando-se outra percepção das coisas, novos e diferentes cuidados.
Tínhamos vivido sempre entre a água e a floresta - Lettie e eu. Ela, em especial, procurava em tudo as notas mais brilhantes; parecia ouvir as águas gargalharem e as folhas abafarem risos como se fossem meninas; via as árvores sacudirem os ramos, tal se estivessem a dançar, e julgava descobrir maior ternura no simples arrulhar dos pombos.
Mais tarde, todavia, reparara no lamento doloroso do ouriço cacheiro apanhado numa armadilha e percebera a existência de outras ratoeiras às quais serviam de engodo as tripas de um pobre coelho.
Certa ocasião, pouco tempo depois da nossa visita a Cossethay, Lettie foi-se sentar no banquinho da janela. O sol, que a amava e jamais a queria abandonar, apegara-se aos seus cabelos e beijava-os com lábios ardentes, que tinham o colorido das flores que a rodeavam. Minha irmã, olhando por cima de Nethermere, pousava a vista em
Highclose, sombra indecisa naquela névoa de Setembro. Se não fosse o clarão vermelho das suas faces, eu diria que elas estavam tristes e sérias.
Aninhando-se no canto da janela, daí a momentos Lettie apoiou a cabeça no peitoril de madeira, e adormeceu. Parecia a criança adorável de outrora, ali dormindo de lábios entreabertos, como num amuo - e respirando muito devagar. Senti o peso da minha velha responsabilidade: devia protegê-la, tomar conta dela.
Ouvimos passos no areão do passeio. Era Leslie que chegava. Pensando que ela podia vê-lo, tirou o chapéu; mas ficou admirado de que não se mexesse. Aproximando-se mais, percebeu então o motivo; piscou-me o olho e entrou nas pontas dos pés pelo quarto a dentro, a fim de contempla-la. Impressionado com a atitude suave e abandonada
de Lettie, com o ar de mocidade compassivo e submisso, que ela irradiava, ele a beijou nas faces avermelhadas pelos raios do sol.
Lettie despertou com um gritinho infantil. E ele, sentando-se ao seu lado, puxou-a carinhosamente, olhando-a sempre com olhos ternos e sorridentes. Julguei a princípio que minha irmã ia adormecer outra vez, mas as pálpebras tremeram e as pupilas luziram muito vivas.
- Leslie, deixe-me! exclamou, repelindo-o. O rapaz largou-a e levantou-se, fitando-a com severidade. Lettie, compondo o vestido, foi logo ao espelho para arrumar o cabelo.
- É tão atrevido! disse ela, ainda despenteada, cheia de vergonha e de rubor.
- Não se pode parecer bem e estar dormindo ao mesmo tempo, volveu ele, rindo e desculpando-a.
- Não é bonito o que fez! replicou a moça, ainda irritada.
- Por que não havia eu de beijá-lo? Não sou de cerimônias.
- Mas tratava-se de mim e não de você.
- Meu Deus, tanto barulho por uma coisa tão simples...
- Mamãe vem aí, preveniu ela. Minha mãe gostava bastante de Leslie.
- Ora viva, disse ao entrar, parece-me que estão zangados.
- Lettie ralhou comigo por eu a ter beijado quando ela representava o papel de Bela Adormecida.
- E este rapaz teve a presunção de se julgar o Príncipe?
- Infelizmente, sem qualidades dignas da personagem, retificou ele em tom pesaroso.
Lettie deu uma risada e perdoou-o. Era um homem elegante e atraente. Dava gosto vê-lo andar com movimentos vigorosos e elásticos. O rosto, porém, não agradava tanto como o conjunto da sua pessoa: tinha as sobrancelhas muito ralas, o nariz demasiado grosso e uma testa pouco favorecedora, se bem que não fosse curta. A expressão é que o ajudava muito, franca, risonha, saudável.
- Pois eu, disse ele, fitando-a e sorrindo, vinha buscá-la para sair.
- A tarde está deliciosa, interveio minha mãe. Lettie relanceou o seu admirador e respondeu:
- Sinto-me com tanta preguiça!
- Não importa. Despertará lá fora. Vá pôr o chapéu, Parecia impaciente. Minha irmã, observando-o, viu-o sorrir de certa maneira especial, baixou os olhos e saiu da sala.
- Irá, no fim de contas, disse ele, falando consigo próprio, mas em voz alta. Gosta de se fazer de rogada.
Lettie devia tê-lo ouvido, pois, ao reaparecer, já a enfiar as luvas, declarou-me tranqüilamente:
- Você vem também.
Leslie rodou nos calcanhares e encarou-a surpreendido e furioso.
- Preciso de ficar, disse eu, sentindo-me constrangido. Falta acabar esta aguarela.
- Não, não, vem conosco, insistiu ela. Puxou-me da cadeira e tirou-me o pincel da mão.
O sangue afluiu ao rosto de Leslie, que se dirigiu rápido ao vestíbulo, donde voltou com o meu boné.
- Está bem! rematou, ainda colérico. As mulheres têm a mania de que são Napoleões.
- É verdade, Senhor Duque de Ferro, acudiu ela, zombeteira.
Para não perder o assunto que ela sugerira, Leslie replicou ato contínuo:
- O pior é que há sempre Waterloo... Vamo-nos embora, sim?
- Às ordens, volveu ela, tomando-me o braço.
Fomos através do bosque até a estrada real, passando pelos terrenos fronteiriços, de vegetação hirsuta - esses terrenos que podiam constituir um parque mas que permaneciam abandonados, com ervas e montículos erguidos pelas toupeiras; estavam cheios de urzes, sarças, e espinheiros aqui e ali, formando estranhos grupos.
Na estrada, as folhas estalavam debaixo dos nossos pés. As águas conservavam-se calmas e azuis e as medas de cereais pareciam vultos adormecidos.
Trepamos o outeiro por detrás de Highclose e seguimos ao longo do planalto, procurando com a vista as colinas do árido Derbyshire; mas era outono, não podíamos avistá-las. O que descobrimos foram os cabeçotes da mina de Selsby e a respectiva aldeia, de tão feio aspecto, estendendo-se nua e desabrigada pio alto do monte.
Lettie ia bem disposta, rindo e brincando sem cessar. Colhia frutos silvestres e enfeitava com eles o vestido. Como enterrasse num dedo um espinho de silvado, pediu a Leslie que o arrancasse. Assim brincando saímos da estrada e enveredamos pelo caminho apertado que fica à esquerda da floresta, à direita dos campos e dos baldios e defronte das altas colinas de Strelley. Depois de uns momentos de marcha, vimos brilhar uma foice. Lettie correu à beira da vereda, para admirar de mais perto: era George que ceifava as espigas de aveia, pois a segadora mecânica não podia chegar àqueles terrenos declinosos. O pai encarregava-se de fazer os feixes.
Endireitando-se, o Senhor Saxton descobriu-nos e chamou-nos para irmos ajudá-lo. Passamos por uma abertura da sebe e fomos ter com ele.
- Agora tire o casaco, disse-me ele. E, dirigindo-se a Lettie: Não nos trouxe de beber? Mau! Estão passeando, não é verdade? Veja lá o que é uma pessoa engordar! acrescentou, espetando a cara volumosa enquanto se curvava para atar as espigas. Era homem corpulento, vermelho, na força da vida.
- Ensine-me como é. Quero experimentar, pediu Lettie.
- Não, senhora, negou ele brandamente; iria esfolar os seus lindos dedinhos e dar cabo do espartilho. Ouça as minhas mãos, ajuntou, esfregando-as uma na outra; soam como lixa.
George, que estava de costas para nós, ainda não nos tinha visto, e continuava a ceifar. Leslie observava-o.
- Belo exercício, disse ele.
- Tem razão, assentiu o pai dos Saxtons, levantando a cara, muito corada, acima do feixe. O nosso George entretém-se deveras nisto. É bom para desentorpecer.
Caminhamos no meio das espigas ceifadas. Como o sol se tornara mais suave, George havia tirado o chapéu, e o cabelo preto, cheio de suor, enrolava-se em caracóis. Firmemente apoiado à terra, mexia o resto do corpo, da cintura para cima, com movimentos de grande beleza rítmica. À altura da anca, no cinto dos calções, pendia-lhe o passador da foice. A camisa desbotada, quase branca, mostrava um rasgão na cintura e deixava ver através dele os músculos das costas agitando-se como sobre a água de um regato. Aquele corpo elástico e harmonioso tinha qualquer coisa que atraía o olhar.
Falei-lhe, e George voltou-se, fitando logo minha irmã com um sorriso espontâneo e denunciador. Estava, nesse instante, realmente belo. Tentou dirigir-nos palavras de saudação; mas, não tendo conseguido formulá-las, agachou-se, apanhou um braçado de aveia e pôs-se a atá-lo sem cerimônia.
Lettie não achava também nada que dissesse. Foi Leslie quem quebrou o silêncio:
- Não há dúvida que isso é ótima ginástica.
- É, sim, confirmou o interpelado, continuando a trabalhar. Vendo que Leslie pegava na foice, acrescentou: - Vai transpirar e dar cabo das mãos.
O outro abanou a cabeça, tirou o casaco e perguntou: - Como se faz?
E, sem esperar resposta, começou a cortar as hastes mais próximas. George não respondeu, mas voltou-se para Lettie.
- Está pitoresco, disse ela, um pouco timidamente. A calhar para um Idílio.
- E você? inquiriu ele.
Minha irmã encolheu os ombros, riu e foi apanhar uma flor vermelha. Só então falou, indagando:
- Como é que se amarra isso?
Pegando numas poucas de hastes, George limpou-as e mostrou como se atavam. Em vez de dar atenção a isso, Lettie olhou para as mãos dele, grandes e vigorosas, enrubescidas pelo cabo da foice.
- Bem, me parece que não serei capaz, declarou ela.
- Não, confirmou o rapaz, com a maior naturalidade, enquanto espiava o trabalho de Leslie. Este, que estava sempre pronto para tudo, fazia
obra asseada, sem conseguir, todavia, os movimentos majestosos do lavrador.
- Aposto que vai ficar suado, disse George.
- Você não fica? perguntou Lettie.
- Um pouco, mas não estou vestido de ponto em branco. De repente, Lettie fez esta observação:
- Sabe uma coisa? Os seus braços dão-me tentações de lhes tocar. Têm uma cor morena, tão bonita! E parecem tão rijos!
George exibiu-lhe um braço. Ela hesitou; mas, de súbito, pôs as pontas dos dedos na pele morena, deixou-as correr um instante ao longo do bíceps e, retirando a mão de repente, escondeu-a na prega da blusa. O rubor subira-lhe ao rosto.
A gargalhada que ele soltou, lenta e retumbante, acariciou e exasperou ao mesmo tempo os ouvidos dos que a escutaram.
- Não desgostaria de trabalhar aqui, disse ela, espalhando a vista pelo cereal ceifado e pelo bosque envolto numa névoa azul. George seguiu seu olhar, e
tornou a rir devagar, com indulgência, com assentimento.
- É verdade! repetiu Lettie, exagerando a nota.
- Para você, volveu ele, enfiando a mão no peito da camisa e esfregando brandamente a ilharga, trabalhar ou estar quieta ê sempre um motivo de prazer.
A moça contemplou-o corno se esse homem, latejante de vida, fosse a mais bela criação da Natureza.
Nesse momento chegou Leslie enxugando a testa.
- Caramba! Fiquei suando.
George levantou-lhe o casaco, abandonado no chão, e, entregando-lhe, recomendou:
- Veja lá não se resfrie.
- Não há dúvida, respondeu o outro, que isto é um exercício de primeira ordem. Você deve ter a pele muito dura, acrescentou, ao ver o companheiro abrir um canivete e tirar com ele um espinho enterrado na mão.
Lettie não disse nada, mas recuou uns passos.
Saxton, contente com o pretexto que se oferecia de descansar e conversar, aproximou-se do grupo.
Cansou-se depressa, notou ele, rindo, a Leslie.
Mas George, nessa ocasião, deixou escapar um grito. Todos nos voltamos e vimos um coelho que irrompera de baixo dos feixes e que enfiava para a sebe, correndo e esquivando-se o melhor que podia. A seara ainda de pé, naquela encosta, ocupava cerca de cinqüenta passos de comprimento e uns dez de largura.
- Não esperava que houvesse algum aqui, declarou Saxton, lançando mão de um ancinho e brandindo com ele para o lado da vedação. Seguimo-lo sem demora. Ele, porém, recomendou que esperássemos, a fim de ver se as espigas mexiam.
Espalhamo-nos, então, em torno.
- Atenção, ali! bradou o lavrador, excitadíssimo. No mesmo instante apareceu outro coelho.
- Agarra, agarra! foi o grito geral. Todos nos pusemos em perseguição do fugitivo, que parecia desnorteado. Querendo escapar-se ao ataque de Leslie, que estava mais perto dele, o animal, mudando de rumo, esgueirou-se para a banda da colina, atravessando em ziguezagues o labirinto dos feixes colocados no terreno.
Cedo lhe faltaram as forças e George foi-lhe no encalço. O coelho ainda conseguiu meter-se entre umas palhas; o rapaz, contudo, não o perdera de
vista e, de aí a pouco, trazia-o na mão, pendurado pelas orelhas.
Regressávamos, transpirando e ofegando, ao limite da seara quando ouvimos Lettie chamar e vimos Emily e os dois irmãozinhos que se aproximavam de nós, vindos da escola.
- Outro! gritou Leslie.
As espigas ondularam. "Aqui, aqui!" exclamei eu. O animal saltou e despediu para a sebe. George e Leslie, que estavam nesse canto, arremeteram contra ele e fizeram-no mudar de curso. Eu o fiz encaminhar-se então para o lado de Saxton, que ainda o seguiu mas que era excessivamente pesado para a empresa. O coelho atirou-se para a cancela! Molie, com o chapéu na mão, veio sobre ele e conseguiu obrigá-lo a recuar.
Já cansado, o coelho enveredou no meio dos feixes, fugindo ao meu avanço. Se eu tivesse caído sobre a vítima, tê-la-ia apanhado, mas não pude fazê-lo a tempo, e o animal escapou-se por um buraco da sebe. George atirou-se e quase lhe punha a mão em cima. Mas era tarde. Estendido no chão, arquejante, George fitou-me com olhos em que se via a excitação e o esgotamento lutarem como um combate de luz e claridade. Quando pôde falar, perguntou-me:
- Por que você não se lançou em cima dele?
- Foi impossível, respondi.
Retrocedemos. As duas crianças espiavam agora também por entre as espigas não ovadas. A nossa impressão era de que não havia mais caça. George recomeçou na sega, e eu continuei a andar ao acaso: foi então que descobri um coelho emboscando-se num ponto afastado do terreno. As orelhas dele pareciam coladas ao dorso e a sua palpitação era tão agitada que se via a pele castanha subir e baixar; os olhos, muito vivos, fitavam-me cintilando. Embora o animal não me inspirasse compaixão, a verdade é que me encontrava desarmado e fiz sinal a Saxton, que logo acorreu e o atingiu com o ancinho. Ouviu-se um guincho que me impressionou como se eu próprio
tivesse sido atingido. O coelho, no entanto, escapuliu e, esquecido do grito lancinante, dei-me a perseguir a vítima, que parecia ferida.
Meus dedos, enrijecidos, negavam-se a tocá-lo. Leslie acudiu nesse momento, ansioso por matar.
Olhei para cima. As moças estavam na porteira, prontas a partir.
- Não há mais nenhum, sentenciou o lavrador. Mollie, naquele instante, deu novo alarma:
- Há um na toca!
Era buraco muito pequeno para que George metesse a mão, de forma que pusemos a cavar com o cabo do ancinho. O pau conseguiu alargá-lo suficientemente; aos nossos ouvidos chegou um guincho que nos sobressaltou.
- São ratos, disse George, ao mesmo tempo que o bicho se escapava. Alguém o atingiu logo com uma pancada - e, por toda a parte pularam filhotes.
Matamos a ninhada como quem mata insetos: contamos nove, ali estatelados no chão.
- Coitada! comentou o meu amigo, olhando para a ratazana. Teve tanto trabalho em criá-los!
Pegamos-lhe pelo rabo, observando-a curiosos e condoídos.
Aquele dia admirável começava a declinar. Para o lado do oeste o nevoeiro tornara-se mais azul, e o zumbido rítmico das máquinas, na mina distante, quebrava o silêncio do ar. Era a hora de largar o trabalho. Ao passarmos pelos campos, sentimos o mato zunindo como o murmúrio de uma cascata. Da terra elevava-se suavemente o cheiro das searas. E o último grito dos faisões veio da floresta, acompanhado do esvoaçar das derradeiras nuvens de pássaros. Peguei uma foice e, cansado mas satisfeito, desci com os outros em direção à granja. As crianças tinham partido à frente, levando consigo os coelhos mortos. Quando chegamos ao moinho, as moças levantavam-se da mesa. Emily começou a retirar os pratos e a lavá-los para nos servirem o jantar. Mal olhou para os recém-vindos e o cumprimento que nos dirigiu foi de simples cortesia. Lettie agarrou num livro que estava no assento da lareira e foi com ele para a janela. George deixou-se tombar numa cadeira, depois de haver tirado o casaco, e alisou o cabelo para trás; ficou depois silencioso, com os braços morenos estendidos sobre a mesa. De aí
a pouco esfregou a mão nos olhos e disse-me:
- Correr desta maneira cansa mais do que uma semana inteira de trabalho. Não seria capaz de repetir a proeza.
- O esporte é excitante enquanto dura, opinou Leslie.
- Isto faz mais mal, interveio a Senhora Saxton, do que o proveito que nos trouxeram os coelhos.
- Talvez não, mãe. Olhe que valem um par de xelins, retorquiu o rapaz.
- E um par de dias da tua existência.
- Que vale isso? disse ele, dando uma dentada num pedaço de pão com manteiga. Dá-nos chá, ajuntou, dirigindo-se à irmã.
- Não sei o que se pode esperar de gente bruta, murmurou Emily compadecida, trazendo o bule na mão.
- Ah, replicou George, comendo mais pão com manteiga, desta vez fui acompanhado nas minhas selvagerias.
- Os homens são todos selvagens, acudiu Lettie em tom fogoso, sem desviar a atenção do livro.
- Compete a vocês amansar-nos, observou Leslie, que estava de bom humor.
Minha irmã não respondeu. Foi George quem falou, numa entoação tão de conselheiro que enfureceu as senhoras:
- E as mulheres não fazem mal aos bichinhos mas gostam de utilizar suas peles nos vestidos.
Emily afastou-se, indignada. Lettie abriu a boca para responder, mas acabou por ficar silenciosa.
- O caso é que isso de matar sempre é desagradável, respondeu Leslie.
- Quando nos metemos nisto, retrucou George, é para ir até ao fim. Depois de sentir o cheiro do sangue, ninguém tem domínio de si...
- Parece-me horrível, declarou Lettie, andar atrás de um coelho a torturá-lo.
- Oxalá não tome gosto...
- Não há dúvida de que os homens são cruéis, disse Leslie, olhando de esguelha para minha irmã. São cruéis à sua maneira, repetiu, com outra olhadela e um sorriso irônico.
George voltou à carga:
- Para que vamos ficar com rodeios? Se nos agrada fazer uma coisa, havemos de pô-la em prática.
- Exceto se faltar a coragem, interveio Emily, cheia de amargura.
O rapaz ergueu os olhos para ela, subitamente encolerizado.
- Mas, disse Lettie, que não pôde resistir a fazer a pergunta, não acha que é coisa brutal - agora que você pensa dessa forma - correr atrás desses animais indefesos? Pareceu-me ato degradante, dos mais vis...
- Talvez seja, replicou ele, mas não o foi ainda há uma hora.
- Não tem sentimentos, concluiu minha irmã, desiludida. George riu, sem responder; mas o seu riso assemelhava-se a uma súplica.
Acabamos o chá em silêncio, minha irmã lendo e Emily andando na sala, de um lado para outro. George levantou-se e saiu. Minutos depois o ouvimos passar no pátio, com os baldes de leite cantando Alameda dos Freixos.
- Nada o faz ficar quieto, opinou Emily, cada vez mais desgostosa. Lettie olhou para o pátio, através da janela, pensativa. Parecia mal humorada.
Daí a instantes saímos também, antes que a luz de todo abandonasse o tanque. Emily levou-nos até ao quintal para colher algumas ameixas maduras. O terreno era baixo e escuro, coberto de ervas. As árvores estendiam os ramos sobre os passeios. Pouco mais produzia o quintal, a não ser alcachofras moles e abóboras balofas. Mas no fundo, onde se erguiam as construções da propriedade, altas e cinzentas, havia aquela ameixoeira encostada ao muro - a qual já rompera a escravidão e se expandia livremente; entre os seus ramos escondiam-se agora esplêndidos globos rubros, verdadeiros tesouros. Abanei o tronco velho e gasto, onde escorria seiva, e os frutos tombaram pesados, batendo nas largas folhas de ruibarbo que estavam por baixo.
Riram as moças, e nós dividimos o saque, com o que voltamos ao pátio. Depois descemos ao limite do jardim, que confina com o tanque. Este era rodeado de ervas enormes entremeadas de caniços grossos. Conforme nos prevenira Saxton, havia lá grande quantidades de ratazanas. Na margem fronteira, as árvores frutíferas desciam até a água, que vinha do tanque mais alto, através de um túnel.
À nossa aproximação, fugiram dois ratos para dentro da passagem subterrânea. Sentamo-nos, observando, sobre umas pedras musgosas. Então eles reapareceram, andaram um pouco, pararam, correram outra vez, puseram-se à escuta, tranqüilizaram-se, - e, emergindo em plena liberdade, meteram-se em toda a parte, arrastando as caudas peladas e compridas. Daí a pouco havia já seis ou sete, dos maiores, entretidos na boca do túnel, onde estava mais escuro. Muito calmos, esfregavam os focinhos aguçados e alisavam os bigodes. De repente, um deles, excitado, saltou verticalmente, torcendo-se no ar, e em seguida fugiu para dentro do buraco; outro lançou-se à água, com um mergulho pouco elegante, e nadou para o lado onde nos encontrávamos: parecia um diabinho, com a venta ponteaguda à superfície e os olhitos vivos faiscando. Lettie estremeceu, e eu atirei uma pedra ao tanque, assustando assim toda a súcia de roedores. Mas nós estávamos ainda mais assustados, de maneira que resolvemos partir. Em poucos instantes chegamos ao pátio.
Leslie acolheu-nos intrigado. Durante esse tempo, visitara as provisões de Saxton, acompanhado pelo proprietário.
- Fugiram de mim? inquiriu ele.
- Não, replicou minha irmã. Fui buscar ameixas. Olhe! E mostrou-lhe duas, no mesmo raminho.
- São bonitas de mais para comer.
- É que você ainda não provou.
- Vamos, retorquiu Leslie, oferecendo-lhe o braço. Vamos até à lagoa.
Lettie aceitou o convite.
A noite estava esplêndida, e as águas tranqüilas tinham reflexos amarelos, quase espessos. A pedido de minha irmã, Leslie sentou-se num ramo baixo de salgueiro, e encostou a cabeça nos joelhos. Emily e eu continuamos a passear; mas a voz de Leslie
chegava-me aos ouvidos, num murmúrio. Lettie respondeu na sua toada carinhosa.
- Não... fiquemos sossegados... está tudo tão calmo... É o que mais aprecio agora.
Conversando, Emily e eu sentamo-nos por fim no tronco dos alamos, um pouco mais além. Depois de umas horas de excitação, à noite - e em especial pelo Outono - somos inclinados à melancolia, ao sentimentalismo. A pequena distância, sussurrava a fala de Lettie e aquilo era como o rumor de um inseto voando. Longe, no pátio, George começou a cantar a velha canção "Espalha a semente do amor".
Isto interrompeu a voz alada de minha irmã. Com a aproximação do cantor, acabou de todo esse som de palavras em tom de confidencia. Fomos ao encontro de George. Leslie endireitou a cabeça, ergueu os joelhos, mas não falou. O filho dos Saxtons estava defronte de nós e dizia:
- A lua não está nascendo.
- Ajude-me a saltar daqui, pediu minha irmã a Leslie, estendendo as mãos para ele segurá-la. O interpelado levantou-se; mas, fazendo-se desentendido, passou-lhe os dedos debaixo dos braços e arrumou-a melhor no assento, como se ela fosse uma criança; mostrava-se ressentido com aquela intrusão do lavrador.
- Julgava encontrá-los todos juntos, notou George, sem se exaltar.
Lettie achou necessário dar logo uma explicação:
- E estamos, na verdade. Agora somos cinco. É ali que a lua vai aparecer?
- Ali mesmo, confirmou Emily. Gosto tanto de a ver surgir, acima da floresta! Ergue-se devagar, e olha para nós: penso sempre que ela quer qualquer coisa e que eu tenho uma resposta para lhe dar. O pior é que não sei qual seja...
A leste, onde o céu estava mais pálido, sobre os confins do bosque, apareceu a ponta de uma lua amarelada.
Admiramos em silêncio, e o disco tornou-se cheio, perfeito, mergulhando-nos num banho de luar. Lettie agitava-se de contentamento; Emily perturbava-se de melancolia, abrindo os lábios, num rogo... Leslie franzia a testa, distraído; George refletia, e os raios de luz enredavam-se-lhe na imaginação. Por fim, Leslie chamou-nos à realidade:
- Vamos. E tomou o braço de minha irmã.
Lettie deixou-se conduzir ao longo da margem e depois sobre a ponte de madeira.
Quando descíamos cautelosamente a escarpa íngreme do pomar, ouvimos a voz de minha irmã:
- Sinto vontade de rir e de dançar, de fazer escândalo...
- Esperamos que não o faça, acudiu o seu admirador, aborrecido.
- Sim, sim, vou atirá-lo à água!
- Sossegue! intimou ele, agarrando-a pelas costas.
Ao chegar à porta que dá para o relvado, acrescentou umas palavras em voz baixa e empurrou a cancela. Suponho que lhe fez propostas definitivas, esperando obrigá-la a tomar um compromisso. Mas ela libertou-se e, vendo a extensão da relva onde a lua punha sombras largas, exclamou:
- Uma polca! Com a erva assim macia e curta pode-se dançar uma polca. Não importa que haja folhas de árvores pelo chão. Que bom, que bom!
Estendeu a mão a Leslie; foi, todavia, muito brusca a mudança para que ele aceitasse. De modo que chamou por mim, com um tom de ansiedade em que se notava o seu receio de ser apanhada nas malhas do sentimento, com uma noite daquelas...
- Cyril, dance comigo. Leslie detesta a polca.
Dancei com minha irmã. Esses passos eram instintivos em mim, como coisa inata. Voamos em redor do campo, levantando as folhas mortas. A noite, a lua tão próxima, o firmamento, os ramos das árvores, tudo nos envolvia de sobrenatural. Ninguém seria capaz de extenuar Lettie quando ela dançava: seus pés
dirse-iam asas batendo no ar. Quando por fim parei, ela riu-se, mais fresca do que nunca, e pôs-se a endireitar o cabelo.
- É delicioso! disse, satisfeita, falando agora com Leslie. Venha experimentar.
- A polca, não, respondeu ele com acento triste, achando que esses compassos frenéticos não estavam de acordo com a poesia dos seus sentimentos.
- Mas na relva úmida não se pode dançar outra coisa, demais a mais com estas folhas caídas... E você, George?
- Diz Emily que eu pulo demais.
- Não faz mal.
Num abrir e fechar de olhos, Lettie e George principiaram a polcar em desmedida velocidade, o que fez com que tombassem ambos no chão. O rapaz ergueu-se logo, levantou-a e recomeçaram num giro irresistível e tremendo. Emily e eu juntamo-nos ao baile. De vez em quando eu tinha a sensação de algo muito branco a flutuar perto de mim, com um rumor de saias alvoroçadas. Já estávamos cansados, e eles ainda se mantinham em plena dança. Quando terminaram, George apareceu com ar de triunfo, nervoso, forte - e ela divertida como uma bacante. Compreendera que, por essa noite, se encontrava livre do pedido de casamento.
- Já pôs ponto final? inquiriu Leslie.
- Já, respondeu Lettie, arquejando. Devia ter dançado também. Agora faça favor de me passar o chapéu. Por que está assim tão macambúzio?
- Macambúzio? repetiu ele.
- Ou, pelo menos, solene. Que sucedeu?
- Pergunta-me o que sucedeu?
- Isso é da lua. Veja: tenho o chapéu bem colocado? Mas olhe para mim! Então endireite-o. Mais. Ah, que mãos frias! As minhas, pelo contrário, estão quentíssimas. Desculpe todas estas travessuras. Estou pronta. Já reparou como estes crisântemos têm um cheiro tão fúnebre? Olhe a lua
a rir e a piscar os olhos através daqueles ramos. Que tem ela a ver com a tristeza dos crisântemos? Agarrou num punhado de pétalas e atirou-as ao ar
-Girem! Não quero melancolias. Gosto dos seres alegres, rudes, impetuosos!

 

CAPÍTULO 6

 

Como já disse, Strelley Mill fica no extremo norte do extenso vale de Nethermere; na encosta dessa banda jazem os seus terrenos aráveis e os seus pastos. O baldio, agora recinto fechado - visto pertencer à propriedade - ocupa a vertente ocidental. A terra cultivada confina com o curso impetuoso do ribeiro, depois com a linha das matas e finalmente com o tanque superior. Para além, a leste, ergue-se o aclive bravio, salpicado de ervas, de árvores antigas e dos espinheiros que fazem de
sebe. Ao longo da orla das colinas, a começar pelo nordeste, estão os bosques sombrios, que descrevem uma curva pelo sul e leste e descem sem governo até a margem de Nethermere, circulando a nossa casa. Da crista do monte oriental, olhando em frente, vê-se a agulha da torre na igreja de Selsby, alguns telhados e torres da mina de carvão.
O proprietário da fazenda, vasto domínio feudal, descendia de uma família antiga, outrora ilustre, mas atualmente decaída do seu esplendor. Ao contrário dos bens, que haviam diminuído, a árvore genealógica ramificara-se de maneira espantosa: já não era um simples roble inglês,
mas uma figueira-da-índia. Como haveria o bom
do homem de alimentar tanta gente com tão magros rendimentos, sem prejuízo do seu nome e das suas tradições? Quis o destino que os inúmeros coelhos, de que havia tocas por toda a propriedade, lhe indicassem a forma de subsistência; vendendo cada animal por cerca de um xelim, em Nottingham, estaria resolvido o magno problema.
Aqueles roedores espalhavam-se por toda a granja. Os cereais e a erva desapareciam da face da terra. O gado emagrecia, sem pasto onde se alimentar. Sem mugidos de vacas nem ladrar de cães, a herdade ficou transformada num ermo silencioso, por onde errava Halkett, o guarda-florestal.
Mas o dono adorava os coelhos e defendia-os contra os estratagemas do seu arrendatário, que andava desesperado. Protegia-os com a sua autoridade e com ameaças de despejo, e regozijava-se ao ver a chusma parda daqueles bichos daninhos movendo-se pelas encostas da colina.
O guarda sorria, flemático. E o fidalgo e um seu amigo apreciador do esporte percorriam de manhã as terras, ambos de espingarda na mão. Estava estabelecido que mais ninguém poderia usar ali armas de fogo.
Entretanto, Strelley Mill começava a mostrar as conseqüências daquela praga. Saxton queixou-se e o senhorio respondia que ele lhe arrendara tudo aquilo por uma ninharia. A soma recebida era absurda - portanto, deixasse os coelhos comerem à vontade! Discutiram, ingerindo whisky e o fidalgo acabou a conferência prometendo que teria uma conversa com Halkelt, para ver se arranjavam solução para o caso.
Nasci em setembro, e tenho uma ternura especial por este mês. Não há calor, nem confusão, nem sede, nem cansaço no corte das searas como sucede no tempo do feno. Se as colheitas se fazem tardiamente, como é comum entre nós, só em meado de setembro é que ficam prontas as medas. Amanhece devagar. A terra é como uma mulher casada que desperta cheia de languidez; não se levanta de um pulo aos primeiros beijos da alvorada, mas lentamente, sossegadamente, vendo chegar sem alvoroço cada novo dia da sua vida. As névoas azuis, como as reminiscências nos olhos da esposa preguiçosa, nunca se erguem da colina arborizada, e só ao meio-dia se afastam,
arrastando-se, das sebes mais próximas. Não há pássaros que façam soltar trinados da garganta da manhã; e, durante o dia, a única voz de ave que se escuta é a do corvo. Sente-se, é claro, a respiração regular e tranqüila das foices e o sussurro impertinente de segadora mecânica; mas, no dia seguinte, às primeiras horas, tudo está outra vez
silencioso. As espigas aparecem úmidas e, quando as amarramos e as erguemos para formar as moreias, aquelas paveias aconchegam-se macias e ficam melancolicamente pendidas.
Enquanto eu trabalhava com o meu amigo, naquelas manhãs calmas, conversava com ele e ensinava-lhe tudo quanto sabia a respeito de química, botânica, psicologia. alava-lhe da vida, do sexo e da origem dos seres, de Schopenhauer e de William James, do que aprendera com os meus professores. Companheiros de longa data, estávamos habituados um ao outro, e ele ouvia-me com atenção. O outono estreitava mais ainda a nossa intimidade. Desta vez levantei o assunto da poesia e ministrei-lhe rudimentos
de metafísica. George era bom terreno para as sementes que eu lançava. Não tinha dogmas, exceto no que respeitava a fazer as coisas a seu modo. A religião não o interessava. De modo que ouvia as minhas lições com espírito desempoeirado, compreendendo tudo rapidamente. Depressa as minhas idéias se tornaram suas também.
Regressávamos para almoçar em mangas de camisa: a tepidez da atmosfera constituía o nosso único abafo. Nesses momentos é coisa grata gozar-se uma camaradagem como aquela. Em tudo o outono punha a sua marca, desde os frutos, que amadureciam nas árvores, até as conversas que se estabeleciam à mesa e em que as vozes eram mais suaves e mais saudosas do que as da época do feno.
A tarde é morna e dourada. Os feixes de aveia parecem leves e, ao cair uns sobre os outros,
dir-se-ia que murmuraram segredos. O restolho fica a tinir quando os pés o sacodem. Ao levantarmos os molhos, soltam-se raminhos de silva que haviam ficado presos debaixo daqueles, e reparamos
que, nos caules dilacerados das dedaleiras, pendem ainda as últimas campânulas.
Falamos do povo, das nossas esperanças, do futuro - e do Canadá, onde o trabalho é inumano; onde as planícies são extensas e a gente não vive entalada num vale como um fruto que tomba num pomar exíguo.
A névoa insinua-se na languidez da tarde. Os feixes estão já atados e só falta erguê-los em medas. No poente, o sol descai entre um clarão de ouro; o ouro torna-se vermelho o vermelho escurece como um fogo a consumir-se rasteiro. Por fim tudo desaparece por trás de uma coluna de nevoeiro leitoso e purpureado como a flor pálida
das ameixoeiras.
Visto o casaco e volto para minha casa.

À noite, depois de ordenhadas as vacas, íamos espreitar as armadilhas colocadas aqui e ali. Atravessávamos o ribeiro e subíamos a vertente do monte, roçando as botas nas manchas negras das escabiosas e ladeando as cardos, cuja penugem cintilava ao luar, e tropeçando sobre montículos de terra levantados pelas toupeiras, entre a erva úmida e grossa. As colinas e os bosques estendiam as suas sombras; os lagos de névoa, no fundo dos vales, absorviam a luz trêmula e fria dos astros.
Alcançamos uma vez a velha quinta que se ostenta no cume do monte. As árvores haviam-na abandonado, deixando uma clareira enorme onde outrora existira um jardim. A minha admiração foi atraída para as janelas, onde não se descobria nenhuma luz, embora passasse pouco das oito horas. Reparando melhor no frontispício extenso e imponente, verifiquei que algumas dessas janelas tinham sido entaipadas, o que dava a desagradável impressão de um rosto cego. No meio daquela escuridão pareciam ainda mais negros os sítios onde a argamassa caíra.
Empurramos o portão e seguimos pelo passeio repleto de ervas e de plantas secas. Espiamos um quarto, que tinha também janela para o outro lado, através da qual o luar punha faixas brancas no chão lajeado, sujo de papéis e de feixes de palha. O fogão sobressaía à claridade, vendo-se montes de cinzas, restos de jornais queimados e uma boneca sem cabeça, em grande parte reduzida a carvão. A um canto via-se um boné de peles, que devia ter pertencido a um guarda de caça. Lastimei que o luar
devassasse o aposento: só a escuridão seria digna de reinar ali. Como tudo isso me entristeceu! - o fogão, as rosinhas no papel da parede...
Levado pelo seu instinto de lavrador, George foi visitar as dependências. O pátio surpreendeu-me, tão coberto estava de urtigas, altas como eu nunca vira, e o ar que se respirava denunciava-as imediatamente. Segui o meu amigo pelo estreito passeio de tijolos, e continuei a sentir arrepios. Dentro, porém, as construções apareceram-nos razoáveis em matéria de conservação: é que haviam sido restauradas várias vezes. Tinham bons vigamentos, eram confortáveis e apresentavam-se mais ou menos limpas. Aqui e ali encontramos penas de galinha e restos de um esqueleto de gato, conforme examinamos à luz de um fósforo. Ao entrarmos no estábulo, ouvimos ruído e logo avançaram, ameaçadoras, três enormes ratazanas. Recuei, tremendo, e tropecei num balde esburacado e enferrujado, de onde espreitavam ervas.
Depois houve um silêncio horrível, quebrado apenas pelo rumor que faziam os ratos e alguns morcegos a voar. Não dei com vestígios de cereais, palha ou feno: só ervas em pleno desenvolvimento... Depois de me encontrar em liberdade, no pomar, o meu tremor ainda continuava. Entre nós e o céu não se interpunham frutos: os pássaros os derrubaram e os coelhos os devoraram. Ou alguém procedera a uma colheita deles, por sua conta e risco.
- Nisto, murmurou George, com amargura, nisto é que o moinho há de se transformar.
- Depois da tua morte, retifiquei.
- Nunca chegarei a dirigir a fazenda. E meu pai pouco agüentará nela, com estes coelhos todos e outras complicações. O que fazemos não chega
a ser lavoura, dependente de tantas coisas atualmente, somos um misto de agricultores, de leiteiros, de hortelões, de transportadores. Tristes ocupações...
- Precisa viver, retorqui.
- De acordo, mas é estúpido. E o pai não se mexe, não transforma os seus métodos!
- E você?
- Eu? Para que hei de mudar? Estou bem em casa e, quanto ao futuro, deixo-o entregue a si mesmo enquanto ninguém precisar de mim.
- Laissez faire... rematei, sorrindo.
- Não é laissez faire, replicou ele, olhando em volta, é puxar o leite das tetas e deixá-lo correr. Repara!
Através do véu diáfano do luar que deslizava sobre a encosta podia-se ver vários exércitos de coelhos, ora avançando ora parando para comer desaforadamente.
Demos uns passos em direção à colina e eles espalharam-se logo. Aproximamo-nos da valeta que limita os campos do moinho. Então George soltou um grito e correu. Segui-o, e nessa altura descobri o vulto escuro de um homem que se levantava da sebe. Era o guarda. Fingia estar examinando a espingarda e, na ocasião em que chegamos junto dele, saudou-nos com voz calma: "Boa noite!"
George pôs-se a investigar a abertura existente na sebe, e disse:
- Está preocupado com aquele buraco...
- Sim, gostaria de saber o que pretendem, volveu o homem, que era corpulento e mal-encarado.
- Pode ver com os seus olhos... Tire a armadilha... e o coelho, respondeu George, de mau humor.
- Coelho? repetiu o guarda, voltando-se para mim com ar trocista.
- Sabe muito bem... Pode tirar... e então...
- Então o quê? Olhe que não me assusta!
George deu um passo em frente e cresceu para o homem, já fora de si.
- Cuidado! continuou o outro, medindo o meu amigo de alto a baixo. É melhor retirar-se... retiraram-se ambos. Não consinto que toquem na armadilha nem no coelho.
George fez um movimento súbito para agarrar o homem pelo casaco. Mas caiu logo de costas, derrubado com uma pancada forte junto da orelha esquerda.
- Grande besta! exclamei, quebrando o punho no queixo do agressor.
Quando dei por mim estava também por terra, e, com a vista ofuscada, ainda vi os calções de veludinho do guarda girando-me em torno da cabeça.
O homem desaparecera. Levantei-me, e levei a mão ao peito, ao lugar onde me doía. George ficara estirado junto da sebe. Dirigi-me a ele e esfreguei-lhe as fontes com ervas molhadas. O meu amigo abriu os olhos, fitando-me com ar esgazeado; depois, respirando com dificuldade, passou a mão pela testa.
- Aturdiu-me, não há dúvida!
- Inferno! bradei.
- Não esperava isto... Ele é que me atirou ao chão?
- E a mim também.
Por algum tempo, George conservou-se silencioso. Em seguida, tateando a cabeça, murmurou: - Ainda me dói. Tentou pôr-se de pé, sem o conseguir. - Meu Deus, ser reduzido a este estado por um reles guarda!
- Vamos retorqui. Experimentemos voltar para casa. O meu amigo acudiu logo:
- Convém que não saibam nada do que se passou.
Por meu lado, pensava na dor que sentia no peito e procurava recordar-me do murro que atirara ao queixo do vigia. - Se quebrei os dedos, disse com os meus botões, não dou por mal empregado o gesto. Levantei-me e ajudei George. A princípio, ele pendeu sobre mim. Depois já foi capaz de andar, mas com passos desencontrados.
- Estou enlameado? perguntou-me.
- Não muito, respondi, impressionado com o tom de pudor ofendido com que ele me falava.
- Limpe-me as costas.
Fiz o melhor que pude. Durante algum tempo seguimos através dos campos, tristes e calados.
- Mais tarde, já à beira da lagoa, fomos sobressaltados por umas enormes sombras sibilantes que passavam por cima da nossa cabeça. Eram os cisnes que procuravam abrigo, pois o vento frio começara a agitar Nethermore. Por cima das águas abaixavam-se e subiam continuamente, despedaçando o luar, e o ar repercutia o som daquelas asas que haviam desfeito o silêncio da noite. Ao entrarem na sombra, os cisnes ficavam tenebrosos como espectros.
O vento punha-nos arrepios em todo o corpo.
- Não dizes nada do que se passou?
- Não.
- A ninguém?
- A ninguém.
- Boa-noite.

Pelos fins de Setembro a nossa região foi alarmada: cães, vindos não se sabe de onde, começaram a devastar os rebanhos!
Certa manhã, um proprietário local, ao dar uma volta pelas suas terras, encontrou, cheio de horror, duas das suas ovelhas mortas, com o corpo dilacerado, junto de uma sebe. Os restantes animais haviam-se agrupado num canto, transidos de medo. Alguns tinham manchas de sangue na lã. Durante dias o proprietário andou amargurado com o desgosto que isso lhe causara.
Houve quem dissesse ter visto dois cães escuros, de aspecto feroz. O guarda do Doutor Collins ouvira uivos por volta da alvorada. Quando o pastor foi ver o rebanho encontrou três ovelhas banhadas em sangue.
Os lavradores deram então rebate. O dono da granja de White House tinha resolvido guardar o gado no redil, com os cães à porta. Mas, como era sábado, os pastores foram ver o teatro ambulante que fizera paragem em Westwold. Enquanto eles assistiam, boquiabertos, ao espetáculo, vendo as personagens morrer com muitas convulsões, a quererem falar sem conseguir articular palavra - seis das ovelhas daquela propriedade eram chacinadas no campo.
Indagou-se por toda a parte se havia ficado algum cão fora nessa noite. Ninguém respondeu afirmativamente.
Saxton possuía trinta ovelhas no terreno baldio, e George pensou que o mais simples e fácil seria dormir lá. Para esse fim construímos, ele e eu, um abrigo de canas entrelaçadas de ramos de silva, que durante a tarde, enchemos de braçados de grama. George dormiu ali naquela semana, com grande aflição da mãe - que ia esperá-lo de madrugada, no frio, com o avental cobrindo a cabeça. Não podia admitir a idéia de que o filho passasse a noite naquele lugar.
Por isso, no sábado, trouxe ele os cobertores para casa e levou Gyp para a cabana, a fim de o substituir na vigia. Acompanhei-o nessa ocasião e estivemos uns momentos a admirar as estrelas, que cintilavam sobre a escuridão da colina. De vez em quando uma ovelha balia, ou era um coelho que passava entre o matagal - e Gyp logo dava alarma.
O novoeiro arrastava-se pelas urzes e pelas sarças, onde as teias de aranha pareciam de prata. George, sentado fora do abrigo, disse-me então:
- Vi passar hoje dois tipos, com sacos e cordas.
- Deviam ser caçadores furtivos, disse. Falou com eles?
- Não. Não me viram. Eu estava dormindo quando um coelho entrou pelo cobertor, fugindo a um cão que o perseguia e a quem dei uma pancada que o fez ganir. O coelho ficou muito tempo junto comigo e depois fugiu.
- Que parece isto tudo?
- Não sei nem me importa.
Papai poderá arranjar-se sem mim e mamãe tem os outros filhos. O meu desejo é emigrar.
- Por que não foi?
- Ora, há tantas coisas que nos retêm em casa! Além disso, na pátria, sempre se é alguém, ao passo que no estrangeiro...
- No entanto, quer partir.
- Como é possível ficar? O vale está tornando-se bravio. Não produz nada. Por outro lado, não pode se dizer o que quer, e tudo continua sempre na mesma. É impossível fazer qualquer mudança: para qualquer parte onde se olhe, perde-se a vontade de pensar em coisas novas. Que há aí que mereça a pena?
De que vale a minha vida?
- O aconchego do lar não é nada que se despreze. George não respondeu.
- Que o leva a abandonar o ninho?
- Ao certo, não sei. Desde aquela questão com o guarda que não me sinto como era. Até Lettie me disse: Aqui não pode viver à sua vontade. É como um dos mosaicos de mármore do vestíbulo, tem que jogar certo com os outros. O pior é que você não deseja ser nenhum mosaico; pelo contrário, quer imiscuir-se na vida, fundir-se nela... Acredite sua irmã falava muito sério.
- O que ela diz não se escreve. Quando é que a encontrou?
- Veio na quarta-feira, de manhã, quando eu estava apanhando maçãs. Subiu comigo na árvore. Como soprava muito vento - e por isso é que resolvi apanhar os frutos - os ramos balançavam muito. Eu subi ao mais alto e Lettie ficou um pouco abaixo, segurando o cabaz. Como lhe perguntasse qual achava ser a melhor espécie de liberdade, é que ela me deu aquela resposta.
- Devia tê-la contrariado.
- Achei que era verdade.
- Que diabo! Parece-me esquisito.
- Não, sua irmã viu bem. Considera-me, ao que parece, uma espécie de pastelão...
- Mostrou-lhe que não era assim.
- Para quê? Sou isso mesmo.
- Dá a impressão de que está apaixonado. George riu-se, e declarou:
- Não, isso não. Mas é uma tristeza verificar que não tenho nada de que me orgulhe.
- Não conheço essa linguagem.
Arrancando punhados de ervas, com ar meditativo, o meu amigo respondeu assim à pergunta que fiz em seguida, quanto à época da sua partida:
- Ainda não sei. Por enquanto não disse nada à mamãe. Nunca será antes da primavera.
- Acontecerá qualquer coisa antes...
- O quê?
- Qualquer coisa decisiva.
- Não adivinho o que possa acontecer, exceto um despejo por parte do senhorio.
- Está na sua mão provocar os acontecimentos.
- Não brinque comigo, Cyril.
Gyp deu um pulo nesse momento, puxando a corrente com força para ver se conseguia acompanhar-nos. No mato, as ovelhas conservavam-se em repouso e eram manchas brancas no escuro da colina. Junto do chão arrastava-se a névoa fria.
- Apesar disso, Cyril, ter uma mulher que nos sorria à mesa; ouvi-la cantar enquanto arruma a casa, e à noite, antes de nos lavarmos... quando o
fogão está quente e nós estamos cansados ... Vê-la assim de perto, no aconchego do lar, falando com doçura...
- Castelos, George.
Sem fazer caso do meu comentário, ele tornou a rir-se e acrescentou:
- Sabe? Quando eu estava colocando os feixes e abraçando os maços, tive a impressão de que abraçava uma mulher. Foi uma sensação inesperada.
- Cuidado não vá se perder na rede dos sonhos. Sempre risonho, sem ligar as respostas, George continuou:
- Sonhando, o tempo voa. As manhãs passam num abrir e fechar de olhos.
- Meu Deus! Por que não esquece tudo isso em vez de insistir em tantas fantasias?
- Se o sonho é belo, por que não o havemos de prolongar? Com isso, terminou suas confissões. E eu voltei para casa. Fiquei na janela, a olhar para a paisagem procurando tirar o caso a limpo. O nevoeiro pousava nas águas de Nethermere; dir-se-ia uma dança de fantasmas sobre a lagoa. Antevi o tempo que meu amigo não estaria mais seguindo a grade da lavoura
ao longo do vale, e que a porta do quarto de Lettie estaria fechada para esconder a tristeza da sua desolação, e senti calafrios ao pensar nesse vácuo ameaçador que pesava sobre nós. Como poderia eu suportar tamanho isolamento? Que faria minha irmã?
Levantei-me cedo no dia seguinte, quando a claridade penetrava trêmulamente na floresta. A lua ainda era visível nas bandas de oeste. Saí. Morriam os últimos restos do verão e o mundo parecia diminuído desde aquela manhã. Já o cheiro do outono caía pesado e úmido das árvores. As folhas secas obstruíam os passeios.
Ao aproximar-me da herdade ouvi latidos; e, correndo, alcancei o baldio, onde encontrei o rebanho dividido em grupos e qualquer coisa que saltava pelo meio deles.
George apareceu também correndo. Repercutiu o tiro de uma espingarda. Peguei uma pedra e continuei correndo. À minha frente fugiam três ovelhas espavoridas: à luz indecisa do alvorecer, ainda vi as suas sombras alvacentas perderem-se no meio das urzes. Pulou um cão nesse momento e eu atirei-lhe a pedra com quanta força tinha. Atingi-o, porque o animal soltou um ganido lancinante; como ele escapava, fui no seu encalço, esquivando-me das sarças e saltando por cima das plantas rasteiras.
Os tiros continuavam; ouviam-se também gritos de homens excitados. O cão perdera-se de vista, mas eu segui sempre, descendo a colina. Num campo adiante notei alguém correndo. Galguei a sebe, que era baixa, e reconheci o vulto de Emily que dava largas passadas sobre a erva úmida. Mais tiros e mais gritos. Emily olhou em volta, deu comigo e disse, arquejante:
- É na pedreira.
Caminhamos para lá, sem dizer uma palavra. Ladeamos o bosque, acompanhamos o curso do rio e chegamos por fim ao local.
Havia agora árvore no lugar das antigas escavações; e as paredes escarpadas, de grande profundidade em alguns pontos, tinham desmoronado, sendo muitas das pedras arrastadas. Descemos a margem e entramos na pedreira pelo leito do rio. Junto aos troncos dos freixos e dos carvalhos brilhavam primaveras pálidas, pendendo frouxas
para as águas que corriam ocultas. Emily encontrou vestígios de sangue num belo renque de bons dias amarelos. Seguimos esses traços até onde o ribeiro deságua em fundo áspero e rochoso e o chão da pedreira não é mais do que um emaranhado de sarças e madressilvas.
- Arranje uma pedra, aconselhei, enquanto nos comprimíamos na passagem estreita e a água deslizava silenciosa debaixo dos ramos dos arbustos e dos cabelos desgrenhados das ervas. Pesquisamos todo aquele abrigo, quase até a estrada. Palpitava-me que o cão estivesse ali: ouvi como que um rosnar, seguido de gemidos. Quebrei uni galho de sorveira e, avançando sempre, fomos ter no lugar dos velhos fornos de cal.
Na boca de um desses fornos, Emily caiu, ficando ajoelhada junto de um cão. Os movimentos que o animal fazia eram os espasmos da morte; revirava os olhos e mostrava os dentes, nas vascas dá agonia. Emily, segurando-o pela garganta, puxou-lhe â cabeça para trás.
- Morreu! exclamei. Chegou a feri-la? Empurrei-a para um lado e ela estremeceu, como se tivesse horror de si mesma.
- Não, não, respondeu, olhando para os braços e para a saia, onde havia marcas de sangue.
A minha pedrada atingira o cão, e Emily, ajoelhando, sujara-se na ferida.
- Mordeu-a? insisti, ansioso.
- Não. Limitei-me a observá-lo e ele ainda se levantou. Bati-lhe então com a pedra, mas perdi o equilíbrio e caí.
- Deixe-me lavar-lhe o braço.
- E horrível, não acha?
- O quê? perguntei, ocupado já a procurar-lhe água no ribeiro.
- Toda esta história...
- Devia-se queimar isto, sugeri, olhando para o ferimento que lhe encontrei no braço.
- Este arranhão? Não é nada! Veja agora se consegue limpar-me a saia. Sinto-me repugnada.
Com o lenço molhado lavei-lhe o melhor que pude, insistindo:
- Deixe-me queimar-lhe essa ferida. Podemos ir às valas. Consinta nisso... é o seu dever... Doutra maneira não fico descansado.
- Acha que sim? retorquiu ela erguendo a vista para mim com um sorriso a esboçar-se nos belos olhos negros.
- Sim... vamos lá.
- Ah! Ah! riu ela. Que ar tão grave!
Toquei-lhe no ombro e impeli-a para diante. Emily enfiou o braço no meu e inclinou-se para mim.
- Tal qual Lorna Doone, disse ela com expressão divertida.
- Sim, mas deixe-me fazer-lhe o que pedi, repliquei eu, referindo-me à cauterização.
- Está bem; mas vai-me doer... Ui! Nem quero pensar nisso. Dê-me algumas dessas flores.
Apanhei um cacho de flores de viburno, com bagas rubras e translúcidas. Emily chegou-as às faces e aos lábios, acariciando-as. E murmurou:
- Sempre desejei pôr flores vermelhas no cabelo.
Tinha o xale sobre os ombros e a cabeça descoberta. Os cabelos, pretos, macios, curtos, envolviam-na caprichosamente. Não seria fácil segurar aí, durante muito tempo, os frutos carnudos do viburno, embora ela enfiasse os pezinhos deles nos dentes das travessas.
Já com os cachos a cintilarem-lhe entre os caracóis, ela fitou-me, de olhos muito abertos. Correspondi ao seu olhar, è vi que ela esboçava um sorriso triunfante. Então, puxando da sebe um galho de bons-dias, arranquei-o e torci-o em forma de grinalda.
- Vou coroá-la, disse eu. Ela, rindo, desviou a cabeça.
- O quê! retorquiu, pondo na exclamação toda a temeridade da sua alma ansiosa.
- Não será Cloé nem Bacante. A sua alma reflete-se nos olhos, ardente e perturbada.
O riso esmoreceu de súbito e ela mirou-me outra vez séria e suplicante.
- É antes como uma donzela de Burne-Jones. Nos seus olhos acumulam-se sombras e você não as expulsa. Você pensa que a polpa da maçã não é nada e só se preocupa com as sementes. Por que não a morde e a come, deitando-as fora?
Emily observou-me com ar triste, sem compreender, mas crendo que eu, na minha sabedoria, falava verdade, como achava sempre que se transviava no labirinto das minhas palavras. Inclinou a cabeça, caiu-lhe a grinalda e só ficou um cacho de bagas. Em redor de nós, no chão, espalhavam-se castanhas de faia, de envolta com folhas secas de tons de ouro. Emily apanhou alguns desses frutos.
- Gosto disto, declarou ela, mas faz-me lembrar tanto a infância que sinto vontade de chorar. Ir buscar castanhas antes do almoço, enfiá-las num colar... fazer inveja às outras pequenas, na escola! Sentia tanto gosto em possuir um colar desses como hoje sinto prazer com o Outono - com a diferença de não haver tristezas à mistura. Depois de se crescer já não se experimentam alegrias puras.
Enquanto falava, Emily ia apanhando mais frutos, curvada para o chão.
- São apenas ouriços ou têm dentro alguma coisa? perguntei.
- Duas ou três completas. Tome-as. Não quero para mim.
Despi o invólucro espinhoso de uma delas e devolvi-a. Emily abriu a boca para comer, sem deixar de me olhar. Há pessoas que, em vez de se acompanharem de esplendores, arrastam consigo nuvens de tristeza. Possuem o condão de ver tudo negro, e proclamam que só o pesar é que é real. Anjos sombrios para quem a dor é bela e constitui a suprema felicidade. Isso mesmo se lê nos seus olhos,
se depreende das suas vozes. Emily era assim. Fascinava-me e ao mesmo tempo fazia-me sentir revoltado.
Seguimos o caminho sombreado de faias antigas. Adiante descia a encosta coberta de cardos e de ervas ásperas. Depressa tivemos vista do lugar das valas, que foi teatro de tanta animação no tempo de Lord Byron e agora estava deserto, rodeado de espesso matagal. As vidraças da casa desapareciam sob o pó acumulado: já não havia necessidade de protegê-las contra o gado, os cães ou os homens. Uma das três casas era habitada. Fora, junto da porta, caía água límpida sobre uma pedra enorme, gotejando de uma bica.
- Espere, disse eu a Emily, deixe-me abotoar-lhe as costas do vestido.
- Abriu? disse ela rapidamente, olhando por cima do ombro e corando.
Enquanto eu desempenhava esse trabalho, saiu do prédio uma moça que trazia nas mãos uma chaleira e uma xícara. Ficou tão admirada de me ver naquela ocupação que se esqueceu do que ia fazer e parou boquiaberta.
- Sara Ann! gritou uma voz, do interior da casa. Vem fechar a porta.
A moça, com a xícara, encheu a chaleira. Em seguida pousou tanto uma coisa como outra e cruzou os braços para aquecê-los. A sua roupa consistia num corpete cinzento e saia vermelha de flanela, tudo muito rasgado. Os cabelos pendiam despenteados pelos ombros abaixo.
- Precisamos entrar, disse eu, aproximando-me dela, que, assustada, lançou mão da xícara e correu para dentro, chamando:
- Mãe!
Do interior da residência saiu uma mulher. Trazia um seio de fora, o que tombava sobre a blusa - como esta cala solta por cima da saia. O cabelo, de um tom ruivo desvanecido, estava em desordem, denotando que ela se levantara nesse momento da cama. Às pregas da saia agarrava-se um garoto magro, de camisa escandalosamente curta: tinha olhos muito grandes, com que nos olhava cheio de espanto, e a cara quase toda suja de gema de ovo. A mulher fitou-nos com ar lânguido e inquiridor.
Disse-lhe o que queríamos,
- Entrem, entrem, convidou ela. Mas não reparem na casa. Os meninos ainda não levantaram. Vem aqui Billy.
Entramos, e eu levei comigo a chaleira que a jovem esquecera junto da bica. A cozinha, espaçosa, era escassamente mobilada: as crianças, porém, bastavam a enchê-la. A mais velha, com seus treze anos, assava um pedaço de toucinho com uma das mãos, e na outra segurava a camisola. Como a queimasse o calor da chama, passou o toucinho para a outra mão e lambeu os dedos a fim de atenuar o ardor. Feito isto, voltou à posição primitiva. O cabelo castanho claro pendia-lhe em pesadas melenas pelas costas abaixo. Sentando no guarda-fogo de aço estava um rapazinho a molhar um pedaço de pão na gordura que ia escorrendo do toucinho. "Um dois, três, quatro, cinco, seis pingos." E, depressa, o pequeno deu uma dentada no pedaço engordurado e continuou a sua tarefa com a outra mão. Quando nós entramos, o garoto tentou puxar a camisa até os joelhos, gesto que desperdiçou alguns pingos do toucinho. Sobre uma almofada via-se um nenê corado e gorducho - que, evidentemente, acabara de mamar; agora esperneava enquanto outro rapaz dava-lhe pão com manteiga pela boca dentro. A mãe correu para o diva, tirou o pão da boca da criança, introduziu-lhe o dedo na garganta, levantou-a, bateu-lhe nas costas, e ficou muito aliviada quando o filho começou a chorar. Depois administrou palmadas sonoras nas nádegas despidas do autor da proeza. Este começou a gritar, mas calou-se de súbito quando nos viu rir. No pano, que serviu de tapete junto da lareira, estava uma linda criança entretida lavando com chá a cara de uma boneca de pau e enxugando-a na camisola. À mesa, numa cadeira alta, outro menino sugava um pedaço de toucinho, cuja gordura escorria, através dos dedos, pelos braços escuros. Instalado numa poltrona ampla, um rapaz maior ocupava-se em despejar numa vasilha de leite os resíduos de chá que estavam nas chávenas. A mãe, ainda com o bebê ao colo, afastou a vasilha e precipitou-se para o garoto.
- A minha vontade era dar cabo de você! disse ela. Mas ele escapuliu para baixo da mesa e ali ficou sereno e indiferente.
- Poderia emprestar-me uma agulha de malha? perguntei eu à mulher, depois de esta recomeçar a amamentar a criança.
- Sara Ann! Onde estão tuas agulhas? indagou ela, encolhendo-se ao mesmo tempo e pondo a mão na boca do nenê que chupava o peito. Vendo que eu a fitava, explicou então:
- Não calcula como ele morde. Só tem dois dentes, mas parecem seis lancetas. Carregou o sobrolho e apertou os lábios, enquanto falava à criança: - Feio menino! Não tem vergonha de morder assim sua mãe?
A atenção da criançada estava agora dividida entre seus interesses particulares e a nossa presença - com exceção do garoto que sugava o toucinho com o mesmo afinco e imobilidade de sempre.
- Onde está o meu trabalho de malha, Sam?
Pegou-o? inquiriu Sara Ann, depois de uma busca breve.
- Não peguei, respondeu Sam do seu esconderijo.
- Pegou, sim, interveio a mãe, dando um pontapé ao acaso, por baixo da mesa.
- Não peguei, não, senhora, insistiu o moleque.
A mulher sugeriu diversos lugares onde poderiam encontrar o que procuravam, e, por fim, o objeto das pesquisas foi achado na gaveta da mesa, entre garfos e velhos espetos de pau. A mãe dirigiu então algumas censuras à filha, em tom amigável, mas Sara Ann não deu atenção; estava preocupada com o seu trabalho de malha, - um regalo de lã encarnada, que serviria para o próximo Inverno. Na parte já feita haviam-lhe espetado um sacarrolhas, e o novelo tinha espetos de pau atravessados.
- Foi você, Sam, queixou-se a pequena. Não há dúvida de que foi você.
O acusado replicou de baixo da mesa com uns versos chocarreiros, e a mãe estremeceu toda com a gargalhada que soltou.
- Foi o pai que lhe ensinou aquilo, explicou-lhe, ela, envaidecida.
Depois de mais uma troca de palavras, levaram a agulha ao fogo. As crianças observavam muito interessada.
- Quer você mesmo fazê-lo? perguntei a Emily.
- Eu? exclamou ela, arregalando os olhos e abanando a cabeça.
- Então serei eu.
Peguei na agulha, segurando-a com o lenço. Depois segurei sua mão e examinei a ferida. Emily, porém, quando viu o clarão do metal quente, puxou o braço, olhando sempre e rindo histericamente, cheia de medo e da vergonha de ter medo. Conservei-me sério, sem ceder, e ela acabou por estender outra vez a mão, enquanto mordia os lábios imaginando a dor que iria suportar.
O meu olhar infundiu-lhe, no entanto, coragem; mas, quando desviei a vista para a operação, Emily soltou um grito que terminou em risada, levou as mãos atrás das costas e fitou-me de novo, trêmula, apreensiva, envergonhada, sempre sufocada por um riso que era já suplicante.
Uma das crianças começou a chorar.
- Para que serve isso? disse-lhe eu, atirando para a lareira a agulha já fria.
Dei às mulheres todo o dinheiro em cobre que levava. A Sam, que permanecia debaixo da mesa, ofereci uma moeda de prata e ao outro pequeno um canivete que encontrei no bolso. Por causa de uma diabrura daquele, ficaram todos em desordem, e nós saímos no meio da grande confusão. Emily, contudo, mal reparava no que se passava: os seus pensamentos giravam em volta de si mesma - e em torno de mim.
- Sou tão covarde! murmurou ela, com ar humilde. Mas isto é mais forte do que eu... acrescentou, quase num rogo,
- Não se importe, repliquei. -' É impossível evitar, insistiu.
- O que tem graça é que, nada conseguiu distrair a atenção do menor.
- É verdade, assentiu ela, mordendo a ponta do dedo, pensativa.
Nossa conversa foi interrompida pela algazarra que vinha da casa. Sam corria agora atrás de nós, brincando. As perninhas tremiam-lhe, a camisa flutuava-lhe à brisa da manhã. Por fim pisou um cardo ou outra coisa espinhosa, porque o vimos parado e silencioso, com uma perna no ar e segurando o pé com ambas as mãos.

 



                    CONTINUA

 

 

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