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CAPÍTULO 7
Durante o cair das folhas Lettie andou sempre muito impertinente, dizendo vulgaridades a respeito dos homens, do amor, do casamento, escarnecendo de Leslie, contrariando-lhe os desejos. Ele, por fim, deixou de visitá-la.
Quanto às suas idas ao moinho, minha irmã deixou de fazê-las, pois metera na cabeça que a recebiam ali muito familiarmente, num plano de igualdade que ela não admitia. Desde a morte do nosso pai que lhe começara aquela inquietação, e o fato de haver herdado - embora fossem uns magros haveres - tornara-a orgulhosa, difícil de contentar.
Esta dificuldade verificava-se em todas as circunstâncias; ela, que deixava correr a sua vida sem nunca pensar, sentava-se agora à janela, meditando, mordendo tanto o lenço até que o esgarçava. A mim não dizia nada. Mas lia muito, em especial tudo que dizia respeito à existência da mulher moderna.
Numa tarde, Lettie foi dar um passeio até Eberwich. Havia quinze dias que Leslie não vinha visitar-nos. O vento arrastava pelas colinas uma névoa viscosa, e os caminhos estavam negros de lama. No bosque, as copas das árvores abanavam com um ar pouco acolhedor. Com um tempo assim, devia-se estar em casa e, se fosse possível nem olhar para fora. Aticei o fogo do fogão e fui correr as cortinas para tornar o aposento mais confortável. Nesse momento vi que Lettie regressava apressadamente, com passo
firme e rígido. Quando entrou, vinha com as faces coradas.
- O chá ainda não foi servido? - perguntou.
- Rebeca pôs agora no fogo, respondi.
Lettie tirou os agasalhos e lançou-os para cima do sofá. Dirigiu-se ao espelho, alisou o cabelo, todo encaracolado pela umidade do nevoeiro, e olhou sua imagem com expressão altiva. Em seguida, rodou nos calcanhares, olhou para a mesa vazia e tocou a campainha.
Era tão raro que tocassem a campainha da casa de jantar que Rebeca foi primeiro à porta da rua e depois é que veio perguntar:
- Tocaram?
- Pensei que o chá já estivesse pronto, disse Lettie friamente.
Rebeca olhou para mim e para minha irmã e replicou:
- São apenas quatro e meia. Mas posso traze-lo. Minha mãe desceu à casa de jantar quando ouviu o tilintar das chávenas.
- Gostaste do passeio? perguntou ela a Lettie, que estava desatando as botinas.
- O pior foi a lama, respondeu minha irmã.
- Ah! Aposto como te arrependeste por não ter ficado em casa. Em que estado estão as botas! E a orla da saia, também! Deixe levá-las para a cozinha.
- Rebeca que leve, replicou Lettie; mas mamãe já sairá da sala.
Quando foi servido o chá, sentamo-nos em silêncio à mesa. Morríamos do desejo de perguntar a Lettie o que lhe acontecera de mau; contivemo-nos, porém. Passados momentos, minha irmã declarou:
- Sabem quem encontrei? Leslie Tempest.
- Oh! exclamou minha mãe. E, para maior esclarecimento, inquiriu: Acompanhou-a no passeio?
- Nem olhou para mim.
- Oh! repetiu a mãe, num tom que exprimia tudo. Decorridos instantes, fez o seguinte comentário: Talvez ele não a tivesse visto.
- Ou seria orgulho de raça, alvitrei.
- Viu-me, replicou Lettie, e se não me visse não se teria mostrado tão encantado com a Margaret Raymond.
- Talvez não fosse para mostrar... É possível que não a tivesse visto.
- Tenho a certeza de que sim. O entusiasmo dele era por demais. Mas podia estar descansado que eu não ia correr atrás dele.
- Parece-me muito mal disposta, observei eu.
- Não estou, não. Mas ele sabia que eu tinha que andar todo este caminho até em casa, e só se preocupou em levar a Margaret, que mora a metade
da distância.
- Em que carruagem vinha ele?
- Na de duas rodas. Enervada, Lettie cortou em tiras uma torrada, enquanto nós esperávamos com paciência mais explicações.
- Foi uma indignidade, não acha, mamãe?
- Minha filha: lembre de que o trataste com certa crueldade.
- Ele não passa de uma criança. Um garoto maldoso. Os homens são todos crianças crescidas.
- E as mulheres não sabem o que querem, disse minha mãe.
- É uma qualidade dos adultos, acrescentei eu.
- É um insolente. Detesto-o! exclamou Lettie.
Levantou-se e foi buscar o cesto da costura. Lettie só costurava quando estava de mau humor. Minha mãe dirigiu-me um sorriso, soltou um suspiro e, para se consolar, refugiou-se na leitura da Vida de Gladstone, de Morley - o seu breviário.
Eu tinha de ir a Highclose para entregar à Senhora Tempest uma carta que minha mãe lhe escrevera por causa de um bazar de caridade. "Na volta, trarei Leslie comigo", disse de mim para mim.
A noite estava escura e pavorosa. Os lampiões da estrada de Eberwich acabavam em Nethermere; os seus reflexos amarelados na água tornavam ainda mais feio o tempo úmido e frio.
Leslie e Marie estavam na biblioteca, que também servia de escritório e de sala de estar. Leslie encontrava-se instalado numa poltrona ampla junto ao fogão, entre nuvens de fumo azulado Marie estava empoleirada na escada, com um livro volumoso sobre os joelhos. Leslie levantou-se, apertou-me a mão, deu-me as boas-vindas, e tornou a embrenhar-se na sua nuvem de fumo. Marie dirigiu-me um sorriso tímido e disse:
- Oh, Cyril! Que prazer em vê-lo! Estou tão aborrecida! Leslie já me declarou que não é nenhum pasteleiro - nem eu pretendo que o seja. Ele não tinha necessidade se mostrar assim tão malcriado.
- Que aconteceu?
Marie carregou o sobrolho, deu uma palmadinha no tomo volumoso e declarou-me:
- Estou com vontade de fazer aquelas tortas espanholas que sua mãe faz e que são uma delícia; já se sabe que Mabel não conhece a receita, e como não a tenho no meu livro de cozinha vim procurá-la na enciclopédia. Procurei página por página na parte espanhola e ainda não encontrei nada. Faltam-me cinqüenta páginas e, embora eu já esteja com dores de cabeça, Leslie não quer ajudar-me porque está aborrecido não sei porquê.
E Marie olhou para mim com desespero cômico.
- Queria fazê-las para o bazar de caridade?
- Sim, para amanhã. A cozinheira já fez o resto, mas eu tinha empenho nessas tortas. Não acha que são deliciosas?
- Estupendas. Eu remedeio o caso indo pedir a receita a minha mãe.
- Se me fizesse esse favor... Mas não. Você não pode andar cá e lá com uma noite horrível como esta. Estamos cercados de lama. Os criados saíram:
William foi ter com o pai, e minha mãe mandou George levar umas coisas ao presbitério. Não tenho coragem de pedir às moças que vão à rua com um tempo destes. Tenho de renunciar à idéia das tortas. Que aborrecimento!
- Peça a Leslie que vá, sugeri eu.
- Ele está de mau humor, replicou ela, olhando para o rapaz.
Leslie nem se dignou responder.
- Serás capaz de fazer isso, Leslie?
- O quê?
- Ir até Woodside por minha causa?
- Para quê?
- Buscar uma receita. Vá, seja um bom rapaz.
- Onde estão os criados?
- Saíram ambos.
- Manda uma das criadas.
- Numa noite assim? Qual iria?
- Cissy.
- Não serei eu quem o peça. Não acha que Leslie é egoísta, s Cyril? Muito egoísta são os homens!
- Vou eu, repliquei. Não tenho nada a fazer em casa. A mãe está lendo, e Lettie costurando. O tempo mexe com minha irmã, tal como acontece a Leslie.
- Mas não é justo ...disse ela, fitando-me com doçura. Pôs de lado o volumoso tomo e desceu da escadinha.
- Por que não vai você? disse ela, pousando a mão no ombro de Leslie.
- Oh! As mulheres! exclamou ele, erguendo-se com ar contrariado. Nunca desistem dos seus desejos e caprichos.
- Parece-me que ele vai, disse Marie, animada, correndo pegar o sobretudo do irmão. Este enfiou com indolência os braços nas mangas, mas não puxou o casaco para os ombros.
- É tão alto, observou Marie nas pontas dos pés. Por que não arruma o sobretudo aos ombros?
- Vai buscar uma cadeira, disse ele.
Marie deu-lhe um puxão à gola do casaco, mas Leslie continuou impassível e submisso como um cordeiro.
- Leslie, você é muito mau! Não consigo arranjá-lo como se deve.
Intervim e arrumei-lhe a gola do casaco.
- Toma, disse ela, entregando o chapéu ao irmão. Agora, não demore.
- Que noite pavorosa! disse Leslie depois de estarmos na rua.
- É verdade.
- Em qualquer parte da cidade se está melhor do que neste inferno do campo.
- A propósito: divertiu-se muito?
Leslie desfiou a longa história dos três dias passados na capital. Ouviu sem escutar, dando mais atenção aos pios das aves noturnas que voavam sobre Nethermere e à voz lamentosa e impaciente dos animais da floresta. Foi com satisfação que me senti no vestíbulo iluminado de casa.
- Leslie! exclamou minha mãe, que prazer em vê-lo por cá!
- Obrigado, minha senhora, respondeu ele. E voltou-se para Lettie, que estava sentada com a costura no regaço, muito atenta, de cabeça pendida.
- Como vê não posso me levantar, disse ela, estendendo-lhe a mão, em cujo dedo médio brilhava um dedal. Fez bem em vir visitar-me. Não sabia que já tinha voltado.
- Mas... começou ele. Interrompeu-se, porém.
- Calculo que deve ter se divertido, continuou minha irmã, com voz calma.
- Bastante, obrigado.
Houve uma pausa na conversa, durante a qual só se ouviu o som da agulha a atravessar o pano. Depois, sem erguer a vista, Lettie prosseguiu:
- Não duvido. Tem mesmo o ar de quem se divertiu.
- Que quer dizer com isso?
- Noto-lhe certo ar de pessoa culpada... ou, pelo menos, embaraçada. Não reparou, mamãe?
- Reparei.
- É razão para não fazermos perguntas, concluiu minha irmã, sempre ocupada na costura.
Leslie riu. Lettie rebentara a linha e tentava enfiá-la de novo na agulha.
- Que tem feito com este feio tempo? perguntou ele, com pouca diplomacia.
- Ora, temos estado em casa, aborrecidas. De súbito, pôs-se a cantar para si mesma:
Onde é que estiveste, gatinha, gatinha?
Em Londres estive pra ver a rainha.
E lá que fizeste, gatinha mimada?
Assustei um murganho que andava na escada.
- Suponho, acrescentou ela, que devia ser isso mesmo. Pobre ratinho! Não viu a rainha, Leslie?
- Não estava em Londres, disse ele em tom sarcástico.
- Com isso, retorquiu Lettie, tirando dois alfinetes dos dentes, com isso não quer dizer, naturalmente, que estivesse em Eberwich.. . a sua rainha.
- Não sei onde está. O rapaz parecia já mal humorado.
- Ah, pensei que talvez a tivesse encontrado em Eberwich, insistiu minha irmã, falando com doçura. Quando voltou?
- Ontem à noite.
- Por que não veio visitar-nos mais cedo?
- Passei o dia no escritório.
- Pois eu estive em Eberwich, declarou Lettie, afetando a maior inocência.
- Esteve?
- É verdade. E fiquei tão contrariada! Tive a impressão de que o veria.
Deu mais uns pontos e observou-os de soslaio. Leslie ruborizara-se. Então Lettie, sempre com ar inocente, continuou:
- Sim, percebi que você tinha voltado. É curioso como adivinhamos a presença das pessoas.. daquelas com quem temos afinidades Puxou a agulha umas
poucas vezes, tirou um alfinete do peito, prendeu-o na costura e pôs-se a olhar para o trabalho, sem a mais leve denúncia de malícia.
- Tive um palpite que o encontraria... Outra pausa, outro alfinete. - Mas não o encontrei.
- Fiquei no escritório até tarde, ele apressou-se a esclarecer.
Lettie prosseguiu na costura, provocantemente calma. Tirou outro alfinete da boca, prendeu-o numa dobra do pano e disse sem se alterar:
- Seu mentiroso...
Minha mãe tinha saído da sala para ir buscar o livro das receitas.
Leslie permanecia mudo e atrapalhado. Lettie costurava, inflexível. Por momentos reinou o silêncio. Foi ele quem o quebrou:
- Não sabia que se interessava tanto por mim... para me pedir explicações.
- Interesso-me? exclamou ela, fitando-o pela primeira vez. Quem disse tal coisa?
- Ninguém. E, se não se interessa, o melhor é eu ir-me embora.
Houve outro intervalo. Só se ouvia o som da agulha. Mas Lettie tomou a resolução de falar:
- Que motivo o levou a pensar que eu me interessava por você?
- Não me importo que seja verdade ou não seja! Estou pouco ligando.
- Que excitação! E faça favor de moderar a linguagem. Isso é privilégio dos muito íntimos.
- Não fui eu quem começou.
- Tem graça, não me lembro, volveu ela, cheia de dignidade.
Leslie desatou a rir.
- Se está assim tão disposta a criticar-me, com essa severidade...
Disse isto na esperança de que ela lhe desse uma resposta tranquilizadora. Mas Lettie recusou-se a falar e continuou na sua obra de agulha. Leslie impacientou-se, virou e revirou o chapéu, e suspirou. Por fim não se conteve:
- Quer dizer que então. .. está tudo acabado?
Lettie tinha sobre ele a vantagem de estar ocupada com o trabalho. Concentrou toda a sua atenção na costura, observou-a de perto, alisou-a e recomeçou a costurar antes de responder. Isto humilhou Leslie. Por fim, ela disse:
- Pensei assim esta tarde.
- Meu Deus! Não pode perdoar, Lettie?
- O quê?
A pergunta sobressaltou-o.
- Sim... esquecer, respondeu ele.
- Escute... murmurou ela suavemente. O rapaz correu como um cão à chamada, atravessando a sala a toda a pressa. E perguntou-lhe em voz
baixa:
- Se interessa um pouco por mim?
- Talvez... Havia uma espécie de promessa na sua voz.
- Tratou-me muito mal, Lettie! Eu me, interesso muito por você.
- Estranha maneira de mostrar interesse!
O tom dela exprimia agora censura suave, abandono e perdão.
Leslie inclinou-se para ela segurou-lhe as faces com ambas as mãos e beijou-a, murmurando:
- Parece que faz gosto em arreliar-me.
Lettie deixou cair a costura no regaço e ergueu os olhos para ele.
No dia seguinte, domingo, o tempo estava chuvoso e ruim. O almoço foi tarde e, por volta das dez horas, fomos à janela e aí ficamos vendo a impossibilidade de ir à igreja.
A chuva tombava como uma cortina escura que nos escondia a paisagem. A geada havia queimado as folhas dos nastúrcios do jardim, que pendiam escuros e flácidos para o chão, de pescoços dobrados. O tabuleiro de relva estava juncado de folhas caídas, molhadas e lustrosas: manchas rubras de plantas rasteiras, montes dourados de visco, tapetes avermelhados sob as faias e, mais ao canto, o negro opaco das folhas do bordo, pesadas de água, cujo tom primitivo era cor de limão. Em dado momento,
uma dessas folhas negras despendeu-se do ramo e tombou aos ziguezagues, girando numa dança macabra.
- Olha! disse Lettie de súbito.
Ergui os olhos a tempo de ver um corvo a voar e a agarrar-se ao ramo mais alto do velho azevinho que havia à beira do terreno de cultura. Tornou a bater as asas, recuperou o equilíbrio e ali ficou encolhido, tristemente resignado ao tempo detestável.
- Por que motivo aquele diabo veio instalar-se a nossa frente? disse Lettie com petulância. Com certeza foi só para agourar qualquer desgraça.
- A ti ou a mim? perguntei eu.
- Está olhando para mim.
- Podes distinguir a esta distância as pupilas maldosas dos olhos do corvo? repliquei.
- Eu é que o vi primeiro, retorquiu minha mãe decidida a tomar para si o presságio.
Um é tristeza, dois são bom agouro.
Três uma carta, quatro um namorado.
Cinco são prata, seis denotam ouro,
Sete um segredo nunca revelado.
ara a consolar, repliquei:
- Aposto como ele é apenas um mensageiro antecipado. Depressão chegarão mais três, e terás então o número exato de quatro.
- É uma coisa curiosa, observou Lettie, mas sempre que vejo um corvo acontece-me qualquer infelicidade.
- E quando vê quatro? perguntei.
- Devia ter ouvido a Senhora Wagstaffe. Disse-me ela que, uma semana antes do Jerry ter se afogado, todos os dias um corvo grasnou na macieira do jardim.
- Que grande desgraça para ela!
- O que é certo é que chorou muito. Também me deu vontade de chorar, embora não pudesse deixar de rir quando ela me disse esperar que ele fosse para
o céu. Mas .. a palavra mas é aflitiva para mim: corta-me o fio dos pensamentos.
- Era a respeito do Jerry que estava falando.
- Ah! A Senhora Wagstaffe ergueu a cabeça e as lágrimas escorreram-lhe pelo rosto abaixo. Ele devia ser um velho muito aborrecido! Não percebo como
as mulheres casam com semelhantes homens. É um alívio pensar que esse bêbedo se afogou no canal.
Ao dizer isto, Lettie correu a espessa cortina da janela e abrigou-se num cantinho, protegendo-se contra o frio. Lá fora soprava o vento, abanando as árvores meio despidas, cujas folhas escuras se despegavam de súbito, com um brilho estranho. Pelos troncos negros a chuva escorria continuamente.
Mais dois corvos, que apareceram então, assemelharam-se a duas daquelas folhas que viessem rodopiando no ar; mas foram pousar numa das árvores mais próximas da casa, quase ao lado do primeiro que surgira. Lettie espiava-os, entre divertida e melancólica. Por fim veio ainda outro, que descreveu uma curva larga, lutando contra o vento, subindo sempre e grasnando.
- Aí está O quarto corvo, disse.
Ela não respondeu, e continuou observando. A ave continuou a lutar heroicamente, mas o vento dominou-o com as suas asas poderosas, levando-o consigo, e imobilizando-o quase. Tive pena dele, e também dos outros dois que se viram obrigados a levantar vôo e que seguiram o seu companheiro como almas a procurarem um corpo onde pudessem encarnar. O primeiro de todos foi o único a ficar no esqueleto hirto, cinzento-prateado, do azevinho.
- Nem sequer diz nunca mais, comentei eu.
- É preferível dizer nunca mais do que eternamente, redarguiu Lettie, com ar um tanto lúgubre.
- Por quê?
- Não sei. Mas você faz idéia do que é eternamente.
Tive certeza de que Leslie voltaria mas agora começava a duvidar. As coisas complicavam-se.
Ouviu-se a sineta da cozinha. Lettie deu um pulo.
Eu fui abrir a porta - e ele entrou. A moça concedeu-lhe um olhar de gratidão. E Leslie compreendeu-o.
- Helen tinha uma reunião muito animada. Foi bastante difícil conseguir ver-me livre, disse-me ele, muito calmo.
- Que dia horrível! notou minha mãe.
- Pavoroso! Está corada, Lettie. Que andou fazendo.
- Olhei para o fogo.
- E que viu?
- Imagens indistintas; nada, em suma.
O rapaz riu. E ficamos silenciosos por algum tempo.
- Esperava-me? perguntou ele.
- Sim, estava convencida de que você viria. Deixamo-los sós. Leslie aproximou-se mais. Como ela tinha o cotovelo sobre a prateleira do fogão, ele passou-lhe o braço em volta da cintura e murmurou, cheio de ternura:
- Então, gosta de mim?
- Gosto, respondeu Lettie.
O rapaz apertou-a então contra si e beijou-a repetidas vezes - até que minha irmã, já sem fôlego, o repeliu mansamente, empurrando-o para trás.
- Passarinho tímido, disse Leslie, cujos olhos cintilavam num sorriso largo. Tinha visto aflorarem as lágrimas aos dela, onde flutuaram por momentos,
sem todavia caírem. Minha querida... meu amor, por que chora? continuou, encostando ó rosto ao dela e sentindo na face a umidade das lágrimas. Sei
que me ama, acrescentou ainda, redobrando de ternura. Sabe uma coisa? Também tenho vontade de chorar. Sinto um nó na garganta.
Ficaram silenciosos por algum tempo. Passados longos momentos, Lettie subiu ao andar de cima e, decorridos minutos, senti os passos de minha mãe.
Sentei-me junto à janela e observei as nuvens baixas que passavam vertiginosas. Tive a impressão de que tudo se movia também e que eu próprio me desencorporara e flutuava acima da vida terrena. Para além, sempre para além, sem saber onde nem porquê, o vento, as nuvens, a chuva, as aves e as folhas corriam em rodopio...
Durante todo este tempo, o velho corvo continuava imóvel - embora as nuvens rolassem, desunindo-se e turvando a atmosfera, embora as árvores abanassem e as vidraças da janela estremecessem com as pancadas da chuva. Percebi
então que parará de chover; semelhantes a limões maduros, brilharam as flores de um olmeiro sob o clarão amarelado do sol. O corvo olhou para mim - tive a certeza de que ele olhava para mim.
- Que pensa de tudo isto? perguntei-lhe.
O corvo fitou-me 'com desdém: para ele eu era um pássaro enorme, sem penas, meio alado, incompreensível, digno de desprezo, mas terrível. Acredito que ele me odiasse.
- Ouve, disse-lhe eu. Se um corvo pode falar por que razão você não fala?
A ave virou a cabeça com ar de fastio. Fosse como fosse, o meu olhar perturbou-a. Moveu-se constrangida, ergueu-se, bateu as asas como se fosse voar, equilibrou-se e voltou a encolher-se.
- Não prestas para nada, exclamei. Nem sequer sabes dizer uma palavra.
O corvo permaneceu indiferente. Ouvi então gritos de pássaros soando pela campina. Pareciam buscar a tempestade e, no entanto, injuriavam-na. Adejavam ao vento, e não desistiam de insultá-lo. Dir-se-ia exultarem com o seu esforço, e contudo só se ouviam lamentos desesperados. Todos os pássaros gritavam a mesma queixa, andando sempre em roda,
com as largas asas erguidas.
- Olhe, disse eu ao corvo, eles desafiam-no, acham-no desagradável, mas não gostariam de perdê-lo para ficarem como você, velho esqueleto imóvel.
A ave, não podendo suportar o meu discurso, bateu as asas, arremessou-se ao ar e grasnou sinistra e agourentamente. Depressa deixei de vê-la.
Como sentisse frio, desci ao rés-do-chão.
Lá estava Leslie junto de Lettie. Com o dedo, enrolava-lhe um desses caracóis que na cabeça de minha irmã sempre esboçavam tendência para fugir.
- Veja, dizia ele, como o seu cabelo é atraído para mim. E brilha tanto! Lembra os ranúnculos ao sol.
- Mas também gosta de liberdade. É como eu... respondeu a moça.
- Ah, os seus cabelos acariciam-me o rosto. Fazem-me aos ouvidos um zunido musical... Não se mexa; fique quieta, e eu direi que espécie de música
é essa.
- Sim, sim, diga.
- É como o piar do tordo, ao crepúsculo, assustando as pálidas anémonas do bosque - até que elas, ofegantes, procuram trepar no muro do nosso quintal; é como o tinir das campainhas azuis quando as abelhas lhes sugam o néctar; é como o riso de Hipómenes, anelante, depois do seu triunfo...
Calou-se, e beijou-a num gesto de admiração.
- Esqueceu-se da marcha nupcial, cavalheiro.
- Quantas maçãs de ouro deixei eu cair? perguntou ele, satisfeito.
- O quê? replicou Lettie, semi-irônica.
- Você é Atalanta, explicou Leslie, envolvendo-a num olhar de paixão. Mas creio que se retardou na corrida um pouco de propósito...
- Sim, foi isso, exclamou ela, rindo e submetendo-se às carícias. Foram as maçãs dos seus olhos, as dos seus calcanhares fortes... as que Eva trincou... Eis o que me venceu!
- É muito inteligente, muito fora do vulgar... E eu ganhei as maçãs maduras das suas faces, dos seus seios, dos seus punhos ... E as curvas do seu corpo,
o calor da sua pele, a sua ternura...
Lettie, sempre trocista, concordou, murmurando:
- Tudo isso... tudo isso. -• Ah... confessa-o?
- Confesso, mas deixe-me respirar. Reclamou tudo isso?
- Sim, senhora, e você me deu.
- Ainda não. Quer tudo?
- Cada átomo.
- Mas... olhe agora...
- Com um olhar de esguelha?
- Com os olhos da alma. Suponha que somos dois anjos...
- Oh, céus... um anjo caído!
- Não me interrompa agora. Faça de conta que sou como a Donzela Ditosa.
- De coração ardente...
- Não diga tolices. Sou uma Donzela Ditosa e você, batendo com os pés nas folhas douradas das faias, vai pensando...
- Aonde quer chegar?
- Seria capaz de meditar... em orações?
- Para que me pergunta isso?
- Porque, dizendo fragmentos de orações, a sua alma delicada poderia elevar-se...
- Deixe-se de almas delicadas, Lettie! Não sou dessa espécie, não tolero os pré-rafaeligtas. Você não é um Burne-Jones, é um Albert Moore. Creio que mais vale o contato suave de um corpo macio do que uma oração. Só sei rezar com beijos.
- E quando não puder?
- Esperarei outra oportunidade. Prefiro ter os meus braços de sua pessoa, sentir na minha boca o contato de sua boca vermelha ... em vez de estar com você cantando hinos celestiais.
- Comigo jamais cantará hinos no céu, disso tenho a certeza.
- Mas tenho-a aqui... agora.
- A nossa vida não será senão uma alvorada pálida?
- Mentirosa. É a minha vez de lhe dar este nome. Carpe diem, minha rosa em botão, minha corça pequena. Há uma poesia bem bonita, a este respeito. Ê tempo de deixares a tua mãe e de te aventurares a um abraço quente. Coitado do velho Horácio... Já o esqueci.
- Pobre Horácio...
- Ah, ah, esquecê-la é que eu não posso. Por que me olha assim desse modo estranho?
- Como?
- Você arrelia-me. Não se ganha nada em aprofundá-la.
- Pode medir-se a profundidade de um beijo... Calaram-se. De aí a pouco, Leslie perguntou.
- Quando é que nos consideraremos noivos?
- Espere pelo Natal... até eu ter vinte e um anos.
- Ainda três meses! Que diabo!
- Não tem importância. Poderei então escolhê-lo livremente.
- Pois sim, mas três meses!
- Não será necessário pedir autorização a ninguém.
- Nessa data já deveríamos estar casados.
- Com tanta pressa? Que diria sua mãe?
- Diria que é a coisa mais sensata que eu fiz em toda a minha vida. Você, Lettie, será uma esposa ideal, capaz de obsequiar, de...
- Que vôos tão brilhantes!
- Voaremos ambos.
- Não, você é que tem asas, Leslie. Hei-de lhes retocar as cores, e a poeira dourada do corpo. Depois, quando se aproximar muito da luz... já não poderá voar. Coitada de mim! Que será da borboleta se perder as asas?
- Tantas palavras... para quê? Cala-se, e deixe-me ver minha imagem nos seus olhos.
- Seu Narciso... A imagem lisonjeia-o? Ou fica disforme, como se fosse visto na água corrente?
- Não sei. Apenas vejo agora seu sorriso. Que há por trás dele?
- Continuo a pensar que você é um Narciso, belo, cheio de mocidade...
- Fale sério, peço-lhe.
- É perigoso. Poderia causar-lhe a morte.
- O quê?
- Torne-se também sério. Eu já estou.
Pensando que ela se referia à seriedade do seu amor, Leslie não pôde deixar de se sentir envaidecido.
O vento rugia sobre a floresta, mas nem um sopro passava entre as samambaias pendentes. Através das árvores escoara-se um aguaceiro casual que me fazia escorregar nos caminhos molhados. Nos troncos cinzentos das árvores havia riscos negros onde a água escorrera; as feteiras estavam derrubadas. Pela vereda íngreme cheguei à cancela da mata, e sal.
No céu marchavam exércitos de nuvens negras e pesadas, arrastando-se quase pela urze do baldio. O vento soprava frio e desanimador, a terra parecia soluçar. Vinha cheio o regato, apressado, remoinhando, como que a falar consigo mesmo. Senti a chuva cair. Sem me preocupar com a lama, corri o mais que pude e entrei na cozinha da granja.
As crianças estavam pintando e requisitaram imediatamente o meu auxílio. A Senhora Saxton, informou-se que Emily e George se encontravam na sala. Satisfiz a vontade dos meninos, troquei meia dúzia de palavras com a dona da casa e sentei-me a descalçar os sapatos.
Era uma tarde de domingo. Na sala, Saxton dormia numa poltrona, cheio de imponência, confortavelmente instalado. Emily, sentada à mesa, escrevia - e escondeu de repente os papéis, logo que eu entrei. George, instalado perto do lume, entretinha-se lendo. No momento da minha chegada ergueu a vista de
cima do livro e dirigiu-me uma saudação indolente. O seu olhar falava com admirável eloqüência.
Conversamos em voz baixa, para não acordar o pai, que continuava de olhos fechados, de cara erguida: queimada como era pelo sol, parecia assim, ao lado da parede, uma daquelas pêras volumosas, maduras, acastanhadas. O relógio fazia lânguidos e lentos tique-taques. Agrupamo-nos junto do fogão, falando devagar sobre ninharias: e errou em torno de nós um doce murmúrio feito de tons gratos e desapaixonados.
Por fim, George levantou-se, pôs de lado o livro, olhou para o pai e saiu.
No celeiro ouvia-se trabalhar o aparelho de cortar os nabos, que tombavam em fitas encaracoladas, formando já um montão. Aquele cheio ativo trouxe-me a recordação de outras noites de inverno, quando o pátio estava cheio de neve, na qual se imprimiam as ferraduras dos cavalos, e horizonte brilhava para as bandas do sul; noites
em que a pura amizade atingia o seu máximo ...
- Trabalhando no domingo! exclamei.
- Papai não fez isto ontem e passou-me despercebido. Como sabes, ele esquece-se às vezes. E hoje não quis perder o sono da tarde...
No curral, o gado dava sinal da sua existência. Ouvia-se o mugir das vacas e o barulho das correntes que as prendiam. Quando George terminava o trabalho de cortar os nabos, entrou Emily, de olhos brilhantes e cabelos sedosos em desalinho, para nos intimidar a irmos tomar chá antes de começar a mungigdura. Ao domingo era costume tirar o leite mais cedo, mas George obedeceu sem discutir, pois tratava-se de uma ordem do pai, e seu pai tinha autoridade absoluta nos assuntos da lavoura.
Aquele último dia de outubro fora bastante feio; escureceu cedo, e tomamos o chá à luz do candeeiro, alegremente, num ambiente aconchegado. O chá de domingo seria incompleto sem uma visita; comigo, segundo me declararam, atingira a perfeição. Gostei de ouvi-los falar assim. Sorri, disfarçando o meu prazer com um gole de chá, quando o pai de Emily declarou:
- É perfeitamente natural termos aqui o nosso Cyril. Saxton não era pessoa que gostasse de ver interrompida uma reunião tão agradável como essa; por isso, quando George afastou a cadeira, alegando a necessidade de se ausentar, ele dirigiu-lhe um olhar suplicante e disse em tom brando e conciliatório:
- Vamos, mas só por uns minutos. No celeiro, a lanterna pendia encostada à parede, iluminando vagamente a parte mais baixa da construção, onde se
viam os restos de feno e pó na junção dos tijolos e tiras de nabo, retorcidas, espalhadas sobre a terra batida. O teto alto, com os seus ninhos de andorinhas nas telhas, estava mergulhado no escuro; pelos cantos havia também sombra, ocultando a arrecadação de palha, feijão e carne salgada. Mas, ao longo dos corredores, cintilava a luz, fazendo brilhar os focinhos das vacas e a cal das paredes.
George parecia bastante contente. No entanto, era meu propósito dizer-lhe uma coisa; assim que ele acabou de dar de comer aos animais e se sentou para ordenhar, principiei:
- Como disse, Leslie Tempest estava lá em casa, quando saí...
O meu amigo fincou o balde entre os joelhos, colocou as mãos na teta da vaca e olhou para mim com ar interrogativo.
- Estão praticamente noivos, disse-lhe eu a seguir.
G eorge não desviou os olhos, mas era como se não me visse - tal se estivesse a escutar um ruído distante. Depois baixou a cabeça e encontrou-a ao corpo do animal; julguei que ia começar a ordenhar, mas enganei-me. A vaca mexeu o pescoço para um lado e outro, insatisfeita. Então o rapaz começou seu trabalho, maquinalmente, e o leite correu com abundância. Eu observava-lhe o movimento das mãos e escutava, mais ou menos aliviado, aquele rumor sempre igual do jato que incidia dentro do
balde. Daí a instantes as mãos tornaram-se-lhe mais vagarosas e ele mais pensativo. Deteve-se e perguntou-me:
- Ela deu o sim?
Fiz um movimento de cabeça, afirmativo.
- E que diz sua mãe?
- Esta satisfeita.
George recomeçou a mungir. A vaca moveu-se, constrangida, o que lhe valeu um olhar enfurecido do rapaz. Inquieto, o animal tornou a mexer-se e deu com a cauda na
face de George.
"Fica quieta!" gritou ele, batendo-lhe na anca, fato que a amedrontou - tal como uma mulher espancada. George praguejou então, mas continuou a ordenhar. Ela, no entanto, secara por aquela noite, o que lhe valeu nova pancada do lavrador, que já se levantara e retirara o banco.
Antes de passar à outra vaca, o rapaz ficou uns momentos pensativo e eu julguei que ele tinha alguma coisa para dizer. Nessa altura, porém, entrou o pai, carregado com seu balde. Saxton foi meter o nariz onde estávamos; e, rindo, com as suas maneiras bonacheironas, observou-me:
- Com que então é espectador, Cyril? Julguei que tivesse ordenhado uma ou duas vacas...
- Domingo é dia de descanso, respondi. Além do mais, isso faz doer as mãos.
- Questão de prática. O quê, George? Foi tudo quanto tiraste da Júlia?
- É verdade.
- Ham... Está secando. Júlia, minha velha, não emagreças. Depois de ele ir-se embora e de restabelecido o silêncio, o ambiente pareceu ainda mais frio. Ouvi, do outro alpendre, o velhote dizer bem humorado: "Espera, mocinha", e a seguir ressoavam os primeiros jatos de leite a esguicharem
no balde.
- Leslie não perdeu o tempo, disse George com ar bravio. Limitei-me a rir; ele, porém, aguardou mais qualquer coisa.
- Já devia esperar que Lettie ficasse noiva dele, observei eu então.
- Talvez replicou George, e, além disso, ela já estava preparada para esse resultado. Não interessa... o que sua irmã pretende... na realidade. Se ele não fosse tão rico, ela teria preferido...
- A você?
- Andava assustada... Conservava-se propositadamente longe...
- De você, George?
- A minha vontade era apertá-la com tanta força que a fizesse gritar.
- Devia tê-la apertado antes.
- As mulheres são como os gatos, procuram o conchego. Lettie concluiu um negócio. São todas negociantes.
- Não generalize, não vale a pena.
- Que descarada!
- Ora... Creio que ela o ama.
George, espantado, olhou para mim com ar estranho. A sua perplexidade tinha qualquer coisa de infantil.
- Crê?
- Sim, ama-o sinceramente.
- Mais valia que fosse a mim, murmurou ele, recomeçando na ordenha.
Deixei-o e fui falar com Saxton. Este acabou de tirar o leite das suas quatro vacas; nessa altura, do outro lado do estábulo, ainda brilhava a lanterna de George. Fui encontrá-lo com a última vaca. Quando, por fim, terminou, o rapaz depôs sossegadamente o balde e, dirigindo-se à infeliz Júlia, coçou-a no lombo, na cabeça, no focinho.
O animal mirava-o com os seus olhos muito grandes e muito abertos. Ainda se não refizera do susto. Em certa ocasião deu uma chifrada no seu tratador,
e George, esfregando a cara e contemplando-a triste e sério, observou:
- Não se pode entendê-las. Nunca tinha pensado nisso, mas a verdade é que não as podemos entender. Como sabes, Cyril, ela tinha-me animado a continuar...
Ao ver o aspecto lastimável do meu amigo, não pude deixar de rir.
CAPÍTULO 8
Durante semanas - fins de novembro e princípios do mês seguinte - estive retido em casa com um resfriado. A geada, que veio por fim, clareou o ar e secou a lama dos caminhos. Quinze dias antes do Natal o mundo parecia transfigurado: as árvores, altas, prateadas, em tons de pérola, erguiam-se confusas de encontro a um céu de anil desmaiado como seres de uma flora paradisíaca. O bosque dir-se-ia petrificado em mármore, coberto de prata e neve. As folhas dos azevinhos e as dos rododendros
estavam debruadas e rendilhadas de gelo.
Quando surgiu a noite, pura e brilhante, com a lua entre a geada branca, senti revolta contra o meu confinamento no interior da casa. Cessara o nevoeiro e o tempo úmido, coisas que haviam tornado apetecível a existência dentro de casa. Depois do pôr do sol nem já era visível o clarão das forjas distantes, pois as nuvens tinham debandado e a lua e as estrelas iluminavam fortemente o horizonte.
Leslie fora outra vez para Londres. Lettie, junto de mim, tentou dissuadir-me, em atitude fraternal, quando eu mostrei vontade de sair.
- Vou só ao moinho, disse eu. Ela hesitou ainda e acabou por dizer que me acompanharia. Devia tê-la encarado cheio de curiosidade, porque minha irmã acrescentou:
- Mas, se prefere ir só...
- Vem, vem, retorqui logo, sorrindo para mim mesmo.
Lettie encontrava-se na melhor das disposições. Corria, saltava sobre as pedras, dava risadas, falava consigo mesma em francês. Chegamos ao moinho. Gyp não ladrou. Abri a portinha do quintal, deslizamos sorrateiramente até à copa, tão grande quanto escura, e por último espreitamos a cozinha através da fenda da porta.
A Senhora Saxton estava próximo da lareira, onde tinha colocado uma bacia cheia de água; a seus pés, aquecendo as pernas nuas ao calor do fogão, via-se David, que acabara de tomar o seu banho. Na água nadavam flocos de espuma de sabão. Curvando-se para o menino, a mãe esfregava-lhe os cabelos loiros. Mollie penteava os caracóis castanhos, acomodada perto do pai - que, na poltrona, lia em voz alta e forte, com uma precisão um tanto rebuscada. À mesa sentavam-se Emily e George: ela escolhia passas,
num grande monte, e ele, de cabeça baixa, ia-lhes tirando as sementes, devagar.
David, interrompendo a fricção que a mãe lhe dava, atirou-se para a frente a fim de mexer com o gato que dormia. Ouvia-se apenas a voz do pai, deliciado com a sua recitação. Estariam os outros a escutá-lo? Bati com a aldrava e entrei.
- Lettie! exclamou George.
- Cyril! gritou Emily.
- Olá, olá, Cyril! brandaram os pequenos.
E seis olhos grandes e castanhos, cheios de admiração, dirigiram-me as suas boas-vindas. Tanto os pais como os filhos me assediaram de perguntas, mostrando o interesse que nos dedicavam. Por fim sossegaram.
- É verdade que sou uma estranha, disse Lettie, que havia tirado o chapéu e os abafos. Devia vir aqui mais vezes, não acham?
- Dá-nos sempre imenso prazer, replicou a Senhora Saxton. Não ouvimos durante todo o dia senão o rumor da água no moinho... e só vemos nevoeiro e folhas caindo das árvores. É uma bênção escutar uma voz nova.
- Cyril está realmente melhor, Lettie? perguntou Emily com ar tímido.
- Meu irmão ficou estragado com mimos. Estou acreditando que se finge ainda um pouco doente para que continuemos a mimá-lo. Deixe-me descascar maçãs,
sim?
Aproximou-se da mesa e pôs-se em um dos lados empunhando o descascador de maçãs. George não lhe dirigiu a palavra e foi ela quem lhe falou:
- Eu não me prontifico a ajudá-lo, George, porque não gosto de sentir os dedos pegajosos e porque estou entusiasmada de vê-lo assim tão interessado pelo trabalho.
- Há de ter muito tempo para me apreciar nesta ocupação porque as passas são inúmeras.
- Come uma de vez em quando? E o que eu costumo fazer.
- Se eu comesse uma, comeria todas.
- Nesse caso, pode passar-me algumas.
George entregou-lhe uma porção delas, sem fazer comentários.
- É muito! Olhe que a sua mãe está olhando para cá. Deixe-me só acabar esta maçã. Repare, a casca ficou inteirinha!
Lettie pôs-se de pé e exibiu uma longa tira encaracolada.
- Quantas vezes devo girar com a casca, Senhora Saxton?
- Três vezes... mas hoje não é véspera de Todos-os-Santos.
- Não importa. Repare! Por três vezes girou por cima da cabeça a casca verde da maçã, deixando-a cair à terceira. O gato ia lançar-lhe as garras, mas a pequena Mollie enxotou-o.
- Que é? perguntou Lettie, ruborizada.
- Um G, respondeu Saxton, piscando o olho e rindo-o que lhe valeu um olhar furioso da mulher.
- Não é nada, disse David ingenuamente, esquecendo a sua atrapalhação por estar de camisa em frente de uma senhora. Mollie observou com os seus
modos frios:
- Pode ser um S... mal feito.
- Ou um, L, acrescentei eu. Lettie olhou para mim com um ar imperioso, que me indignou.
- Que diz Emily? perguntou ela.
- Não digo nada, respondeu a moça. Só a Lettie poderá ver a verdadeira letra.
- Diga-nos qual é, pediu George a minha irmã.
- Eu! exclamou Lettie. Quem adivinha o que uma sementeira pode produzir?
- Aquele que a semeou e a viu germinar, repliquei. Lettie atirou a casca para o fogo, soltando uma risadinha, e retomou a sua tarefa.
A Senhora Saxton inclinou-se para a filha e, falando baixinho de modo que George não pudesse ouvi-la, disse que este estava arrancando a polpa das passas.
- George! exclamou Emily com rudeza. Você não deixa senão a pele.
- ... e desejava saciar o seu estômago com a bolotas que os porcos comiam, resmungou o irmão no mesmo tom descortês, enquanto levava um punhado de passas à boca. Emily afastou logo a vasilha.
- Está muito mal feito, observou ela.
- Veja, interveio Lettie, dando-lhe uma das maçãs acabada de descascar. Coma isto, de preferência, seu guloso.
George pegou no fruto, olhou-o e, com um sorriso malicioso, respondeu:
- Se dá a mim a maçã, a quem dará as cascas?
- Aos porcos, volveu ela, como se tivesse percebido apenas o primeiro comentário do rapaz, alusivo ao Filho Pródigo. Não quer? acrescentou
minha irmã, vendo que ele colocava a maçã sobre a mesa.
- Mãe, chamou George, por brincadeira, ela está fazendo como Eva.
Rápida como um relâmpago, Lettie agarrou a maçã que lhe oferecera momentos antes e escondeu-a, fitando George com olhos dilatados. Por fim atirou-a ao lume. Mas não acertou no alvo e foi Saxton quem a levantou da saliência do fogão, dizendo:
- Os porcos também a podem comer. Você foi tolo George: quando uma senhora nos oferece qualquer coisa, não se deve fazer caretas.
- À cê qu'il parait, exclamou Lettie, rindo muito à vontade e até com grande espalhafato.
- Que disse ela, Emily? perguntou Saxton, contagiado pelo riso.
- Falou muito depressa para que eu pudesse entender. George recostou-se na cadeira, com as mãos enfiadas nos bolsos dos calções.
- Afinal, nós é que vamos acabar este trabalho das passas, declarou Lettie. Repare como seu irmão é preguiçoso, Emily.
- Gosta das comodidades, replicou esta, em ar de troça.
- É a verdadeira imagem do bem-estar, prosseguiu Lettie. Veja: consistência, saúde, satisfação. De fato, na posição em que se encontrava, sem casaco, de pescoço nu, George parecia realmente a satisfação em pessoa.
- Não costumo consumir as minhas forças, elucidou ele.
- Nem você nem eu somos como o Cyril. Nunca desgastamos o corpo... em especial o coração.
- Temos isso de comum, volveu George, olhando-a com um ar alheio por entre as pálpebras semicerradas, e sempre recostado na cadeira.
Lettie continuou a descascar e a tirar as sementes das maçãs - e, feito isso, ocupou-se das passas. Entretanto Emily andava atarefada cortando o sebo e guardando-o numa tigela de madeira. As crianças estavam prontas para se deitarem, de modo que vieram dar-nos beijos e desejar boa-noite - a todos menos ao George; por fim saíram, acompanhadas da mãe. Emily depôs a faca e queixou-se de que lhe doía o braço. Fui então ajudá-la, e continuamos nessa ocupação durante muito tempo. Saxton ainda
lia, Lettie trabalhava e George, reclinado, olhava para nós.
Uma vez concluído o picadinho de carne, passas e maçãs, Lettie pulou da cadeira e declarou:
- Estou muito nervosa para continuar sentada. Se fizéssemos outra coisa? Já são vésperas de Natal.
- Dançar? perguntou Emily. -- Sim, sim, dançar! George ergueu-se de súbito.
- Vamos! disse ele.
Atirou fora as chinelas, sem se importar que lhe vissem os buracos das meias, e começou a afastar as cadeiras. Depois estendeu o braço à Lettie, que veio rindo ao seu encontro, e ambos começaram a dançar com incrível velocidade sobre as lajes enormes da cozinha. Os pés da moça, ligeiros, acompanhavam os de George nos pulos que ele dava, e distinguia-se ora o bater leve dos sapatos dela ora a pancada surda dos pés de George, calçados com meias. Emily e eu fomos juntar-nos aquele par; os movimentos da minha companheira eram lentos, mas isso não impedia que dançássemos com desembaraço; eu, cheio de calor, transpirava, e ela estava ofegante quando a levei à sua cadeira. Os outros dois prosseguiram num rodopio louco, até que eu me senti atordoado de os ver, e Saxton principiou a rir, gritando que parassem.
Mas George continuou. Bailavam-lhe os cabelos soltos, que caíam para trás; os pés já se arrastavam cansados, produzindo um rumor surdo no chão. Ela, por seu lado, ofegava. Vi-a mover os lábios, pedindo ao seu par que suspendesse a dança; e ele, rindo sempre, segurava-a com toda a força. Finalmente as pernas de Lettie afrouxaram, e George ergueu-a nos braços, estreitando-a muito; assim mesmo deram ainda duas voltas - até que ele se afundou no diva, arrastando-a consigo. Seus olhos brilhavam
como carvões em brasa, o suor umedecia-lhe os cabelos e luzia-lhe na cara; todo ele arquejava. Lettie recostou-se no sofá, imóvel, com o braço do rapaz em torno da cintura. Parecia subjugada e tinha os cabelos em desordem. Emily mostrou-se ansiosa com aquele resultado, e Saxton, também um pouco inquieto, observou:
- Excederam-se. Foi uma loucura.
Por fim, Lettie recuperou o fôlego, pôs-se de pé e, soltando um riso trêmulo, começou a arrumar o cabelo. Entrou na copa, onde pitavam a escova e os pentes, e Emily acompanhou-a, levando consigo um candeeiro. Quando regressou, já penteada, e com certa palidez que sucedera ao rubor, George ergueu a vista para ela, num ar de triunfo que lhe era peculiar. Lettie, que tinha uma larga nódoa de suor no cinto onde ele a segurara, disse-lhe numa voz que não foi tão rude como as palavras fariam supor:
- Seu selvagem!
O rapaz soltou um profundo suspiro, endireitou-se e riu com indolência.
- Vamos a outra? propôs ele.
- Quer dançar comigo?
- Se você quiser...
- Nesse caso... dancemos um minueto.
- Não percebo nada disso.
- Mas tem de dançar... Vamos lá.
George levantou e pôs-se ao seu lado. Ela foi conduzindo-o e acabou por servir de cavalheiro na valsa final. A cena era bastante ridícula. Como remate, Lettie fez uma vênia e agradeceu, enquanto enxugava com o lenço as mãos que se haviam umedecido, pois a camisa de George estava molhada de suor.
- Espero que se tenha divertido, observou ele.
- Imenso!
- Fez com que eu parecesse um idiota, não haja dúvida.
- Julga que pode parecer idiota? Que ironia! Ça marche! Por outras palavras, vá lá! Mas é uma dança encantadora.
George olhou para ela, desceu as pálpebras, e não replicou: -• Ah, disse Lettie, trocista uns nasceram para o minueto, outros para...
- Para coisas que não sejam frívolas.
- Chama frívola porque não consegue dançá-la. Quanto a mim, gosto muito.
- Não consigo, heim?
- Acha que sim? Não, não foi feito para isso.
- Sou uma espécie de Clarence Mac Fadden, retrucou ele acendendo o cachimbo - como se a conversa já não lhe interessasse.
- Tem razão. Ah! Quanto tempo cantei esses versos!
... ele queria dançar, Porém os pés fugiam-lhe ao compasso...
Lembro-me que foi depois de uma ceifa e que nos divertimos bastante. Nunca me tinha vindo a idéia compará-lo com Clarence Mac Fadden. Tem piada! A propósito: quer ir à nossa reunião de Natal?
- Quando? Quem vai?
- No dia 26. Vão as pessoas do costume: Alice, Tom Smith, Fanny, os de Highclose...
- E que tencionam fazer?
- Charadas... E dançar, assim qualquer coisa de que você goste.
- A polca?
- E minuetos... e valetas. Anda dançar uma valeta, Cyril.
Obrigou-me a conduzi-la numa valeta e depois em minuetes e mazurcas. Lettie dançava com elegância, mas com certo ar provocante - o que era a sua arte diabólica. Quando terminamos, Saxton disse:
- Muito bem, muito bem! Dançaram lindamente, não te parece, George? Quem me dera ser novo!
- Como eu! atalhou George, rindo sem grande vontade.
- Há de ensinar-me, Cyril... um dia, rogou Emily com os seus modos suplicantes, o que desagradou muito a Lettie.
- Por que não me pede a mim? perguntou ela, de maneira brusca.
- Porque você nem sempre vem cá.
- Vim hoje. Vamos experimentar. E arrastou Emily de uma forma que não admitia recusa.
Lettie, como eu já disse, era alta, firmemente moldada, graciosa por natureza; tinha agilidade, e os movimentos equilibrados e harmoniosos denunciavam as tendências sutis da sua alma de artista. A outra era mais baixa e mais pesada. Em todos os gestos se lhe podia ver o seu estranho temperamento. Estremecia de comoção - comoção que a devastava, porque Emily não tinha uma inteligência por aí além nem coração muito alegre. Por índole, era triste e inerte; conhecia a sua falta de domínio no
tumulto dos sentimentos que a agitavam e unia aos seus infortúnios uma profunda desconfiança de si própria.
Enquanto dançavam, Lettie e Emily mostravam pasmoso contraste. O à-vontade da primeira e os seus movimentos flexíveis tornavam-na encantadora; a segunda não sabia dirigir os passos, cometia incessantemente o mesmo erro, e, agarrando na mão de minha irmã, observa-a sempre no desejo de ser bem sucedida - mas o fracasso enchia-a de humilhação e desespero. Quanto mais lhe explicavam a regra, pior a moça se desembaraçava. Quando estava à beirinha do êxito, logo a tolhia o medo de não ser capaz
de proceder com acerto; não tinha consciência de nada, senão de que devia fazer qualquer coisa. Era uma confusão pegada! Por fim Lettie deixou de falar e limitou-se a levá-la ao acaso, no que tirou melhor proveito. Bastava que Emily não tivesse que pensar nos seus gestos para que adquirisse graça e liberdade. O movimento, o ritmo, o compasso comunicavam-se-lhe mais aos sentidos do que à inteligência.
Chegou a altura da ceia. A Senhora Saxton apareceu por momentos e conversamos calmamente sobre coisas e loisas. Lettie não disse uma palavra acerca do fato de estar noiva, nem fez a mínima alusão ao assunto. Comportava-se como se tudo corresse da mesma forma que nas outras vezes, embora eu desconfiasse de que ela estava ao corrente
da minha conversa com George: julgava decerto que nós queríamos fingir de ignorantes.
Depois da ceia, quando nos dispúnhamos a regressar a casa, Lettie falou deste modo a George:
- A propósito... Tens de nos mandar visco paia a festa, com muitas bagas. O seu tem muitas bagas este ano?
- Não sei. Nem olhei para lá. Podemos ver isso agora, se quiser.
- Mas você vai sentir frio.
George calçou as botas, envergou o casaco, ê enrolou um lenço em volta do pescoço. A lua nova já desaparecera e no céu escuro tremulavam as estrelas. As trevas da noite encheiram-nos de receio. Lettie agarrou-me o braço e apertou-o com força. George ia adiante para abrir os portões. Dirigimo-nos ao jardim fronteiro, atravessando a ponte de pedra, sob a qual se precipitava a água até o extenso declive da margem. Mal distinguíamos as velhas macieiras nodosas, pendentes sobre nós. Abaixamos
a cabeça a fim de evitar os ramos, e seguimos George. Este hesitou um momento, dizendo:
- Deixem-me orientar... Parece-me que estão ali as duas árvores com visco.
Tornamos a segui-lo em silêncio.
- Sim, declarou ele, aqui estão.
Aproximamo-nos e observamos de perto. A custo podíamos distinguir os ramos escuros da planta parasita entre as braçadas da árvore. Lettie desatou a rir.
- Viemos contar as bagas? disse ela. Nem consigo descobrir o visco!
Inclinou-se para diante e para trás, procurando na escuridão. George, que também se esforçava por ver, sentiu na cara a respiração de Lettie e, voltando-se, observou a palidez do rosto dela e o fulgor sombrio dos seus olhos. Num ímpeto, tomou-a nos braços e beijou-a na boca. Quando a largou, afastou-se dizendo qualquer coisa incoerente a propósito de ir buscar uma lanterna. Lettie conservou-se de costas para mim, fingindo procurar as bagas do visco. Não tardou que eu visse aproximar-se uma luz.
- George traz aí uma lanterna, participei.
Quando o rapaz chegou, falou com voz estranha e sumida:
- Agora podemos ver o que há aqui.
Ergueu a lanterna de forma que iluminou seu rosto e o de minha irmã, e pôs em destaque os ramos contorcidos das árvores e o sombrio matagal de visco semeado de bagas.
Em vez de olharem para o que pensavam procurar, fitaram-se profundamente; George estava corado, de pálpebras trêmulas, e àquela luz amarelada parecia belo e ardoroso.
Por fim, conseguiu dominar a confusão e ergueu a cabeça declarando:
- Está cheio de bagas.
Na realidade havia pouquíssimas.
Lettie olhou também para cima e murmurou uma confirmação. O facho de luz envolvia-os como que numa redoma, num mundo aparte daquele em que eu estava. George ergueu o braço, quebrou um galho de visco com algumas bagas e ofereceu-o à ela.
De novo se fitaram. Depois, minha irmã baixou os olhos e prendeu o raminho na gola de peles. Assim permaneceram uns momentos no círculo de luz da lanterna erguida.
O lenço vermelho e negro que rodeava o pescoço de George dava ao rapaz um aspecto exuberante. Desceu então a lanterna e tentou falar com naturalidade:
- Sim... há muitas este ano.
- Tem de me dar alguns ramos, replicou ela, desviando-se e quebrando finalmente o encanto.
- Quando devo cortá-los?
No regresso, George caminhou junto de Lettie, balançando a lanterna. Depois, deu-nos boa noite e nós fomos para casa, sem que minha irmã tomasse o meu braço.
Nas duas semanas que se seguiram estivemos muito ocupados nos preparativos para o Natal, fazendo a armação de madeira para o avezinho e colhendo ramos de hera. Das quintas circunvizinhas vinham gritos lancinantes de porcos, e, depois da matança, por toda a parte flutuava a fragrância da carne enchouriçada; e na estrada, mais distante, soava o barulho das carroças que traziam as mercadorias do Natal. Os aldeãos esperavam-nas ansiosos e os vendedores irrompiam com ar triunfante, exibindo
grandes ramos de visco, maçãs coradas, aves mortas e caixotes de onde surgiam laranjas vistosas. Ao estalar do chicote, os cavalos punham-se outra vez em marcha, trotando ligeiros sob os chicotes.
Na tarde do dia 24, ao crepúsculo, dei um passeio com minha irmã. Por cima de nossas cabeças, entre a confusão da folhagem, via-se o rubor do céu. Os troncos das árvores pareciam maiores e tomavam tons azulados. Pelo caminho encontramos dois rapazes dos seus quinze a dezesseis anos, vestidos com bombachas muito remendadas e com lenços amarrados ao pescoço. Apareciam nos bolsos garrafas de zinco, que deviam estar cheias de chá, e os nós dos lenços que lhes serviam de sacos.
- O quê! exclamou Lettie, vão trabalhar na véspera de Natal?
- Parece que sim, disse o mais velho.
- E quando voltam?
- Pela madrugada.
- Em pleno Natal!
- Vão ver os anjos anunciadores e a estrela, observei eu.
- E eles hão de crer que somos dois maltrapilhos respondeu, rindo, o mais novo.
- Vamos embora, acudiu o outro.
E lá seguiram ambos, arrastando as botas pesadas.
- Boas-festas! ainda lhes gritei.
Devíamos ir à reunião de Highclose. Pelas sete e meia entrei na cozinha da nossa casa, onde o candeeiro tinha a luz muito baixa. Rebeca estava num canto, quase às escuras. Sobre a mesa distingui, numa jarra de vidro, meia dúzia de lindos ranúnculos.
- Quem nos mandou isto, Becka?
- Não foram oferecidos, replicou ela com voz chorosa, saindo das trevas.
- Mas nunca os vi no nosso quintal...
- Talvez não os visse. Eu é que os descobri há uns dias e conservei-os com todo o cuidado.
- Para o Natal? São bem bonitos. Julguei que alguém os enviara.
- Cada vez pensam menos em mim...
- Que tens, Becka?
- Nada. Quem se importa comigo? Já estou tão velha!
- Há qualquer coisa que te aborrece.
- E se fosse assim? Não interessa o que eu sinto. O melhor é ficar num canto do fogão, em companhia destas flores que ninguém quer.
Lembrei-me de que Lettie, excitada com a idéia de ir à festa de Highclose, teria sido capaz de recusar o que Rebeca lhe oferecia. Não havia mais ninguém a quem pudesse agora oferecer flores...
- Deixe para lá, retorqui. Ela anda fora de si, esta noite.
- É fácil esquecerem-me...
- A você e a todos, Becka. Tant mieux.
Em Highclose Lettie fez grande êxito. Entre as beldades do campo ela era, decididamente, a mais elegante. Refulgia, como se estivesse no palco. Extasiado, Leslie não deixava de ostentar a sua admiração, orgulhoso da sua amada. Quando os dois se encontravam, fitavam-se muito, com ares provocantes e vitoriosos. Lettie gozava imenso o seu triunfo em público, e aquele regozijo culminava em demonstrações de amor ao seu par. Ele, por seu lado, retribuía satisfeito.
Entretanto, a ilustre dona da casa, pomposa e corpulenta, chamara minha mãe para junto dela, em atitude protetora: e a convidada, com um sorriso amarelo, espiava as idas e vindas da filha nessa reunião tão distinta e brilhante.
Dancei com várias senhoras e beijei honestamente cada uma delas ao passar debaixo do arco de visco - exceto duas, que tomaram a iniciativa de me beijarem primeiro.
- O senhor é temível, observou a maliciosa Miss Woofeey. Verdadeiro rôdeur de femmes, apesar de parecer um cordeirinho...
- Se gosta do meu balido, adote-me como animal da sua estimação.
- Não, não é o meu gênero... Oxalá que ele não tenha ouvido.
- É algum lobo?
- O mais carniceiro possível. Estamos noivos não sei bem como. Estas coisas nunca se apuram, não é verdade?
- Falta-me experiência para responder.
- Que mau! É, realmente, uma fera.
- Quem?
- Ele, é claro. Não fujo a certa admiração pelos homens pesados. O pior é que não dançam.
- Talvez seja melhor assim.
- Estou a ver que o detesta. Foi pena não lhe ter perguntado, com antecedência, se ele sabia dançar.
- Acha que isso teria importância?
- Decerto. Agora vai ser necessário, para dançar, recorrer àqueles com quem não nos casamos...
- Por quê?
- Só se casa com um...
- Tem razão.
- Aqui está ele. Ó Frank, você me deixa inteiramente abandonada aos acasos do mundo. Julguei que tinha me esquecido.
- O mesmo julguei eu, replicou o noivo, um rapaz gordo, alto, de rosto redondo e infantil. Sorriu intimidado e nunca se soube o que ele queria dizer com a sua frase.
Voltamos para casa de carruagem, já de manhã. Lettie, abafada no seu casaco, dera um passeio com o namorado, no jardim, e estava ainda nervosa, de olhar brilhante.
Ao despedir-se de minha irmã, Leslie pareceu-me mais simpático, e até a sua voz me soou agradavelmente.
Ao atingirmos o portão, na rua particular que se bifurca da estrada, ouvimos John dizer "obrigado" e, olhando, descobrimos os dois rapazes que voltavam da mina.
Rodeados de trevas, com a luz da lanterna a cair sobre eles, deram-me ambos uma impressão grotesca. Vinham salpicados de neve e tinham-nos dirigido novas saudações.
Lettie inclinou-se na portinhola da carruagem e acenou-lhes, gritando:
- Boas-festas!
Chegara o Natal, com as suas belas efusões.
CAPÍTULO 9
Lettie fez vinte e um anos no dia seguinte ao de Natal. Ainda cedo, acordou-me com gritos de consternação, pois caíra imensa neve, - o que aumentava o frio matutino e retardava o clarear da manhã. O lago parecia sinistro como o olhar fixo de um defunto; r a floresta lembrava a barba do cadáver de um velho.
Vi aparecer um coelho, que se deteve desalentado. Os pássaros hesitavam no seu vôo, sentindo a traição que a terra lhes fizera. E a neve parecia não ter fim!
- Não virá ninguém! murmurou Lettie, lamentando-se; calculava já o malogro da sua festa.
- De qualquer forma, Leslie virá, respondi eu.
- Um só!
- Um que vale por todos, não é verdade? disse. E tenho a certeza de que George não faltará, embora não o veja há quinze dias. Durante este tempo não esteve uma só noite em casa, segundo me disse a família.
- Por quê?
- Sei lá!
Mais uma vez Lettie foi perguntar a Rebeca se achava que compareceria algum. Para o que desse e viesse, mandaram chamar uma empregada extra.
Passava pouco das dez horas quando Leslie chegou, corado, de olhos brilhantes, rindo como um garoto. Ouviram-lhe os passos barulhentos logo à entrada, e ele, batendo com o chicote nas polainas, chamou por Lettie da cozinha para dar sinal da sua vinda. Minha irmã foi ao seu encontro e saudou-o com efusão.
- Ah! Minha mulherzinha! exclamou ele, beijando-a. Declaro que estás uma mulher. Mira-te no espelho... Que vê aí?
Lettie assim fez.
- Parece muito satisfeito... olhando para mim, observou ela.
- Olha antes para ti. Repara! Estou crendo que tem mais receio dos teus olhos do que dos meus.
- É verdade, disse ela. Leslie beijou-a com enlevo.
- Hoje é o dia dos seus anos.
- Bem sei.
- E eu não me esqueci. Até combinamos uma coisa.
- O quê? perguntou Lettie.
- Toma... e veja se gosta, respondeu ele entregando-lhe uma caixinha. A moça abriu-a e, instintivamente, meteu o anel no dedo. Leslie fez um gesto de satisfação e ela, erguendo a vista, soltou um riso nervoso.
- Enfim! disse ele em tom de alívio.
- Ah! exclamou Lettie com voz estranha e vibrante. Leslie apertou-a nos braços. Passados momento, quando pudederam raciocinar e falar outra vez, disse a moça.
- Acha que virão à minha festa?
- Espero que não.
- Não diga isso! Estamos com tudo preparado!
- Que importa? Dez mil pessoas hoje aqui...!
- Não são dez mil... Apenas cinco ou seis. Ficarei furiosa se não aparecerem.
- Quer que venham?
- Fizemos os convites... está tudo pronto... e eu sempre desejei ter a minha festa, um dia.
- Mas, hoje... que maçada, Lettie!
- Quero celebrar os meus anos. Acha que virão?
- Se tiverem juízo não porão os pés aqui.
- Ao menos podia ajudar-me, volveu ela, amuada.
- Estou pronto... Meteu na cabeça ter hoje a casa cheia de gente?
- Bem sabe que sempre contei com a minha festa. Em qualquer caso... estou convencida de que Tom Smith virá, assim como a Emily Saxton.
Leslie mordeu o bigode, irritado, e disse por fim:
- Sendo assim, acho melhor mandar o John buscar todos.
- Seria muita maçada...
- Maçada nenhuma.
- Sabe? disse ela, fazendo girar o anel no dedo. Isto me dá a impressão de que amarrei um fio no dedo para me lembrar de alguma coisa... A cada momento a minha consciência dá sinal...
- Seja como for, você é minha agora, replicou ele. Depois do almoço, quando estávamos sós e ainda sentados à mesa, Lettie apontou nervosamente para o seu anel.
- É bonito, não acha, mamãe? disse ela, comovida.
- Sim, muito bonito. Eu sempre gostei de Leslie, respondeu minha mãe.
- Mas ê um anel tão pesado! Dá uma certa aflição. Tenho vontade de tirá-lo.
- É como eu. Nunca pude usar anéis. Durante meses detestei a minha aliança de casamento.
- Sim?
- É verdade. O meu desejo era tirá-la e guardá-la. Mas depois habituei-me.
- Ainda bem que este anel não é o do casamento.
- Leslie considera esse tão valioso como um aliança observei.
- Ah, sim! Em todo o caso, é diferente...
Girou o anel no dedo para que as pedras ficassem do lado de dentro, mirou a argola de ouro lisa, e voltou a pô-la na posição primitiva.
- Sim, ainda bem que este não é o do casamento. Por enquanto, não. Começo a sentir-me mulher feita, futura dona de casa... Tenho a impressão de que
cresci hoje.
Minha mãe levantou-se de súbito e beijou Leslie com carinho.
- Deixe-me dar um beijo de despedida à minha filhinha, disse ela com a voz sufocada pelas lágrimas. Lettie agarrou-se à mãe e, com a cara escondida no peito dela, soluçou baixinho. Depois limpou a face molhada e beijou a mãe, murmurando:
- Não, mãe... não.
Por volta das três horas, chegou a carruagem com Leslie e Marie. Tanto Lettie como eu estávamos no andar de cima, e ouvi Marie subir em busca de minha irmã.
- Oh, Lettie! Ele está tão excitado como nunca o vi. Levou-me consigo para comprar o anel... Deixe-me vez como ficou.
É lindo! Vou ajudá-la a pentear-se, Lettie. Você tem um belo cabelo... cheio de vida. É pena torcê-lo num rolo. Gostaria que o meu cabelo fosse um pouco mais comprido, embora assim seja mais fácil pentear-me à moda... que é tão chie! Os tufozinhos ficam bem, não acha? O seu cabelo é um pouco comprido para isso, mas ficaria um encanto. Não acha que os meus olhos e sobrancelhas são o que tenho de melhor na cara?
Enquanto essa deliciosa criaturinha continuava a tagarelar, eu desci.
Leslie sobressaltou-se quando entrei na sala. Mas, ao ver-me sozinho, afundou-se outra vez na poltrona e ali ficou com as mãos nos joelhos, olhando para o fogo.
- Que diabo, ela está fazendo? perguntou.
- Vestindo-se.
- Então... bem podemos esperar. Pois não é uma estopada que essa gente venha cá?
- Em geral, divertímo-nos.
- Pois sim... mas você e eu não estamos nas mesmas circunstâncias .
- Realmente..., volvi eu, rindo.
- Oh, Cyril! Não sabe o que é estar apaixonado. Nunca pensei... nunca julguei que pudesse gostar assim de alguém. É uma sensação constante,
que tanto está na epiderme como no fundo da alma: ela, ela...
Leslie interrompeu-se uns instantes, de olhar fito no fogo.
- É uma idéia obcecante, que nos comprime. Nunca nos deixa, nem por um momento.
Mais uma vez mergulhou em reflexões.
- E, de repente, lembramo-nos do seu beijo, e o sangue queima nas veias.
Nova meditação, durante a qual pareceu querer aprofundar o caso. E rematou:
- Não creio que Lettie sinta por mim o que eu sinto por ela.
- Gostaria que lhe correspondesse tal qual?
- Sei cá! Talvez não... Todavia não julgo que ela sinta...
Acendeu um cigarro para moderar a excitação e ficamos calados. Neste momento as moças desceram, tagarelando muito alegres. Lettie entrou na sala, e o noivo, pulando da cadeira, foi logo vê-la de perto. Minha irmã vinha vestida de seda cor de nata, flexível, de gola aberta. O cabelo ficara-lhe um encanto, conforme prometera Marie.
Ao ver-se tão admirada, riu nervosamente; as suas graças desabrochavam como uma flor ao sol. Leslie beijou-a.
- Está lindíssima! exclamou.
Ela riu outra vez, como única resposta, e ele conduziu-a ao sofá e obrigou-a a sentar-se ao seu lado A moça mostrava-se indulgente, e o rapaz estava cheio de satisfação. Pegando-lhe na mão, Lettie olhou-a e reparou muito no anel.
- Fica bem, murmurou ele. Que significam safiras e diamantes? Eu não sei...
- Nem eu. Azul é esperança; os diamantes talvez signifiquem a limpidez cristalina da minha natureza.
- Ou a sua dureza e fulgor. É uma alma de tempera forte. Mas porquê a esperança?
- Por quê? Como em quase todas as coisas, não há nenhuma razão. Esperança! Mulher de olhos vendados a tocar uma lira sem cordas! Gostava de saber por que motivo não deixa ela rolar o instrumento sobre a borda do mundo e não arranca o lenço dos olhos, para observar em volta. Acredito que as mulheres, na sua maior parte, são capazes de lançar um olhar furtivo, por baixo daquela faixa da confiança que tapa sua vista, ou até retirá-la de todo; mas a verdade é que não o fazem, coitadas!
- Não creio que saiba o que estás dizendo. Com certeza não sabe. As safiras fazem-me lembrar os teus olhos e... não é o azul a cor da fé? Já li qualquer coisa a esse respeito.
- Você é que devia usá-lo, disse ela, tirando o anel, para que me tivesse sempre no pensamento.
- Guarda-o, guarda-o. Ele a manterá mais segura do que essa jovem loira atada a uma árvore, no quadro de Millais. Suponho que é de Millais.
Lettie soltou uma risada tão forte que estremeceu toda.
- Que comparação! Quem seria o bravo cavaleiro que viria libertar-me... de mansinho?
- Que importa? respondeu ele. Não queres a liberdade, pois não?
- Não... por enquanto, replicou ela para aborrecê-lo. Continuaram a falar um tanto disparatadamente, tornando-se eloqüentes por gestos e olhares rápidos e pela sensação ardente da proximidade. A voz de Lettie abandonou o tom irônico, e ambos se entregaram à expansão do seu
amor. Marie arrastou-me para a casa de jantar, a fim de os deixarmos sós.
Marie era uma mulher encantadora, de aspecto impecável e rosto amável. Tinha cabelos escuros, que caíam no pescoço em pesados caracóis. Tanto no cabelo como no vestuário ela não se preocupava muito com a última moda. Era como um botão meio aberto; uma pessoa discreta cheia de caráter e de meiga indulgência.
Nesse momento sorriu-me com o calor do sentimento sobre o qual espalhava a sua graça, mas o recato que lhe era peculiar não lhe permitiu
dizer-me coisa alguma. Olhou em volta da sala e depois para fora da janela, e observou por fim:
- Adoro Woodside! É tão repousante. Tem qualquer coisa... de fato... que nos consola. Sabe? Tenho lido Máximo Gorki.
- Não acho muito próprio.
- Meu pai gosta muito dos livros dele. Eu é que não voltarei a lê-lo. Ah, Woodside! É tão bom! Sentimo-nos tão bem à sombra das árvores... A vida aqui não é doentia.
- Vive-se à lei da natureza.
- Não, não quero dizer isso. Sentimo-nos como num mundo antigo e generoso, sem maldade.
- Novo, indisciplinado e louco...
- Qual! Você e Lettie, Leslie e eu, aqui, estamos tão bem, tão naturais... Woodside exala antigüidade, doçura, calma. Tranqüiliza-me .
- É verdade, a existência decorre sem nada de anormal, de cruel ou extravagante. É como um pombal...
- São tão lânguidas, as pombas...
- Adoráveis. Você, com essa golinha preta, lembra uma pomba mansa. Ou melhor, uma rola. Lettie é uma pomba brava.
- E encantadora, sua irmã. Desembaraçada, cheia de superioridade! Gostaria de possuir a energia que ela tem. Caminha direito ao fim. Admiro-a muito.
Ri-me ao vê-la assim entusiasmada por minha irmã. Era tão meiga, tão condescendente, essa Marie! Quando ela se dirigiu para a janela, passando debaixo do arco de folhagem, puxei dois cachos da trepadeira e beijei-a. Depois arrumei as cortinas pesadas a fim de conseguir lugar de onde ela pudesse ver a neve.
- É um encanto, murmurou com ar pensativo. Deve ser de temperamento doentio quem escreve como Máximo Gorki.
- São pessoas que vivem nas cidades, observei.
- Sim... Mas repare em Hardy: do que ele escreve depreende-se que a vida é terrível.
- Se você não a sente assim é porque não a encara desse modo. A verdade é que também não vejo a vida por esse prisma.
- Isto é um pedacinho do céu.
- Paraíso de esquimós, talvez. E nós somos os anjos. Considero-me um arcanjo.
- Não, você é um homem frívolo, um presunçoso. Que é aquilo? Que é que está se movendo entre as árvores?
- Alguém que chega, disse eu.
Era um sujeito corpulento quem passava por meio da vegetação compacta.
- Que modo de andar engraçado! notou Marie.
Quando ele estava mais próximo, reparamos que se escarranchava sobre patins à moda índia. A minha companheira observou, riu, tornou a verificar, e escondeu-se atrás das cortinas, tomada de hilaridade. O homem, de tez vermelhusca, parecia apoplético ao arrastas pela neve aqueles pesados sapatos trançados. O corpo oscilava de maneira cômica. Corri à porta e introduzi-o em casa, enquanto Marie ficara refazendo-se do seu acesso de riso.
William Bancroft estendeu-me, ainda calçada de luva grossa, a mão larga com que depois limpou a testa cheia de suor.
- Então, meu caro Beardsall, como tem passado? Que calor sinto eu, Deus! Foi uma boa idéia, acrescentou, mostrando-me os patins. Estupenda, não acha? Sou tal e qual um desses índios destemidos ...
Carregava nos rr e os seus aa eram muito prolongados.
- Mas é difícil resistir a isto, continuou ele. Lembra aquela festa do ano passado, em que apareceram tantas moças inesperadas? Enquanto dizia isto franzia os lábios infantis e ia esfregando a papada.
Depois de despir o sobretudo e de tirar o agasalho branco que protegia o pescoço, sem se importar com os flocos de neve que caíam no chão - fato que Rebeca tomou como ofensa pessoal - William sentou-se numa poltrona e tratou de descalçar as polainas e as botas. Como trouxera sapatos, enfiou-os em seguida e eu o conduzi ao primeiro andar.
- Deslizei até aqui como uma andorinha, declarou - o que me fez reparar na sua corpulência. Não encontrei vivalma, embora tivessem afastado a neve da estrada.
Como vi marcas de rodas de um carruagem, calculei que os Tempests estivessem cá. Com que então, Lettie decidiu-se pelo Tempest? Tirou as esperanças dos outros.
As mulheres deixam-se atrair pelo ouro... Não podemos censurá-las. A propósito: Madie Howitt vem, suponho eu...
Fiz qualquer observação a respeito da neve.
- Verá como aparece... nem que a neve chegue ao pescoço, insistiu ele. A mãe dela me viu passar.
Enquanto William se arranjava, informei-o de que Leslie mandara a carruagem buscar Alice e Madie. O meu interlocutor deu uma palmada na coxa gorda e exclamou:
- Miss Goll! Cheira bem. Meu caro Beardsall, vai ser divertido! Madie, e o Tempest, e...
Entre dentes, assobiou um trecho de uma canção da moda, ao mesmo tempo que alisava o colete claro. Em seguida arrumou gravata branca e endireitou os anéis - dois, um de sinete e outro de diamantes, magnífico - ajustando-os nos dedos gordos. Depois passou a mão, delicadamente, pelo cabelo cheio de ondas, penteado para trás e um pouco seco, tirou de uma caixinha um cravo amarelo, com folhagem adequada, sacudiu-o com um lenço de seda e espanou os sapatos de verniz. Por fim mordeu os
lábios e olhou-se satisfeito no espelho. Estava pronto para se apresentar às senhoras.
- Não podia ter-me esquecido de um dia como este, Lettie. Vim deslizando até aqui nos meus patins, tal qual Hiawatha dirigindo-se a Minehaha1.
- Ah, isso não era nada, observou Marie, de mansinho.
E esta é uma reunião admirável, Miss Tempest, disse ele. fazendo uma vênia a Marie, que não pôde esquivar-se a soltar uma risada.
- Trouxe músicas? perguntou minha mãe.
- Desejaria ser Orfeu, replicou William, pronunciando as palavras com ênfase, conforme o hábito que ficara do seu treino de cantor. Você deve estar vaidoso, Tempest. Ela será tão bondosa como é bonita?
- Quem?
William franziu a face redonda e macia - tão macia que mal se acreditara ter conhecido a lâmina da navalha. A campainha tocou nesse instante, e Lettie saiu com Marie.
- É uma beleza! prosseguiu William. Sinto-me rendido. É uma flor. Aquele anel foi você quem deu, Tempest?
- Modere-se, respondeu Leslie.
- Tenha juízo, acudi eu.
- Nesse caso, lançarei os olhos para outro lado, disse Will com a voz arrastada. Le bel homme sans merci!
Soltou um suspiro profundo e passou os dedos pelo cabelo, mas sempre olhando para o espelho. Depois endireitou os anéis e dirigiu-se ao piano, onde tocou ao acaso, brilhantemente. Só então que, pegando no álbum de música de Tchaikovski, escolheu uma, que começou a executar: era uma abertura, demasiado longa, e isso não o satisfez.
Passeando em seguida à Serenata de D. João, William resolveu cantar.
Tinha bela voz de tenor, mas suave e melodiosa do que a de Leslie, e também menos forte e metálica. Nesse momento cantava alto, de maneira que se podia ouvir no outro andar da casa. Quando se espalhava aquela rajada sonora, a porta abriu-se; William abrandou o tom, mas não se dignou olhar para os que entravam.
- Que arrebatamento! exclamou Alice unindo as mãos e pondo os olhos em alvo, como uma santa no seu nicho. É o coro dos Anjos!
- Proserpina! Europa! murmurou Madie por sua vez, embrulhando-se na sua confusa mitologia.
Quando redobrou a intensidade das notas, Alice levou as mãos ao peito, num êxtase.
- Segura-me, Madie, senão vou cair nos braços daquela sereia, disse agarrando-se à amiga.
A música terminou, e William circunvagou a vista pela sala.
- Tenha calma, Miss Gall, aconselhou ele.
- É capaz de me recomendar calma? A um animal feroz, como eu?
- Lamento muito, disse Will.
- Você é a causa da minha inquietação, declarou Alice.
- Não esperava que viesse, observou Madie.
- Vim até aqui deslizando como um pele-vermelha. Como Hiawatha dirigindo-se a Minehaha. Sabia que você não faltaria.
- Sabia? repetiu ela, sorrindo tolamente. Quando ouvi o piano tive um baque no coração. Há um ano que o não via! Como se transportou até aqui?
- De patins, como um verdadeiro índio canadense. Em que estado ficaram!
- Vá pô-los e faça-nos uma exibição! pediu Alice.
- No frio e na neve? Não teria medo, acredite.
Mas voltou-se para Madie e começou a conversar com ela. Alice entreteve-se com minha mãe. Daí a pouco chegou Tom Smith, que se sentou ao lado de Marie: muito sossegado, olhava por cima dos óculos com os seus olhinhos vivos e castanhos, cheio de desdém por William e de desconfiança por Lettie e Leslie.
Não faltou muito que entrassem George e Emily, que vinham um pouco nervosos. Tiraram as galochas, demorando-se bastante, como quem não tinha pressa de aparecer na sala. Foi com espanto que vi George calçar sapatos de baile.
Emily, rosada pelo ar agreste, estava com um vestido cor de vinho que realçava sua beleza exuberante. Todos os homens estavam de casaca, exceto George, que vestia laço preto e dinner Jacket, de bom corte: o rapaz era exigente nesse assunto de vestuário.
Introduzi-os na sala, onde o candeeiro não fora ainda aceso e onde a luz do fogo sobressaía na penumbra. Havíamos retirado os tapetes e alguma mobília, de forma que o aposento parecia maior. Os recém-vindos cumprimentaram os que já estavam e sentaram-se junto do fogão. Minha mãe conversou com os convidados, e depois acendemos as velas do piano, para que William tocasse qualquer coisa. Ele tinha fama de pianista exímio, cheio de sentimento e mestria. Custava a crer, mas era verdade. Minha
mãe saiu da sala para tratar do chá, e Lettie, daí a pouco, arrastou uma cadeira para o lado de Emily e George e sentou-se conversando com eles. Leslie ficou à janela, contemplando o céu quase purpúreo e a relva onde a neve parecia azulada.
Lettie poisou a mão no colo de Emily e disse baixinho:
- Repare... Gosta?
- O quê? Está noiva?! exclamou Emily.
- Já sou maior, replicou Lettie.
- É lindo o anel! Deixe-me experimentá-lo. Foi coisa que nunca usei. Com certeza não passa pelo nó do dedo. Veja como tenho as mãos vermelhas do frio! Eu não dizia? É muito pequeno para mim.
George observava os gestos daquelas quatro mãos no colo da irmã: duas que ressaltavam de brancura na sala sombria, e as outras duas um tanto vermelhas, com ossos largos, que faziam movimentos nervosos. O anel passava de mão em mão, soltando faíscas à luz das velas.
- Não me felicita? disse Lettie em voz muito alta, que parecia dirigir-se a ele.
- Ah, com certeza, volveu Emily. Aí vão os meus parabéns.
- E você não diz nada? perguntou minha irmã voltando-se para George, que se conservava silencioso.
- Que quer que eu lhe diga? replicou ele.
- O que quiser.
- Será qualquer dia. Deixe-me pensar no caso.
- Sempre atrasado! comentou Lettie, chamando assim a atenção de Alice para a lentidão de espírito do lavrador.
- O quê? exclamou este, olhando de súbito para aquela que o escarnecia.
Lettie percebeu que se excedera; e, metendo o anel no dedo, atravessou a sala e foi ter com Leslie. Pôs-lhe a mão no ombro, inclinou a cabeça para ele e murmurou qualquer coisa. O pobre rapaz estava deslumbrado, pois a noiva não costumava prodigalizar assim as provas do seu amor.
Fomos então tomar chá. Sobre a mesa, onde apareciam arranjos de flores, o candeeiro de
quebra-luz amarelo distribuía uma claridade suave. Irradiavam brilho o serviço de prata e o de porcelana. Todos nós estávamos bem dispostos. Quem poderia aborrecer-se sentado a uma mesa repleta de iguarias, na companhia de gente nova, enquanto
a neve caía lá fora? George ficou atrapalhado ao reparar que pusera as mãos sobre a mesa; mas, quanto ao resto, não houve mais nada que perturbasse a nossa boa disposição.
A conversa, como era de esperar, enveredou para o casamento.
- Que diz a isto, Senhor Smith? perguntou Marie.
- Por enquanto não me pronuncio, respondeu ele com a sua voz áspera. Para mim o casamento é problema que ainda falta analisar. Depois de encontrada a solução, comunicarei...
- Mas vá dizendo o que pensa...
- Lembra-se daquela pequena ruiva que foi nossa colega? perguntou Will a Lettie. Pois casou há pouco tempo com o velho Craven.
- Que seja muito feliz, disse minha irmã. Não foi uma das suas paixões, Bancroft?
- Entre várias, replicou William, sorrindo. E você também pertenceu ao número. Não se recorda?
- Divertíamo-nos tanto! exclamou Lettie. Costumávamos ir ao Jardim Botânico, pela hora das refeições. Você demorou-se quase todo aquele Outono. E quando demos um concerto - você, eu e o Frank Wishaw - no teatrinho do colégio?
- Até o Prinny lhe fez a corte, observou Will. E, nessa noite, o Wishaw levou-a à estação, na carruagem que o Gettin lhe fora buscar. Nunca até então houvera caso semelhante. O maduro do Wishaw conquistou-a com aquela carruagem, não é verdade?
- Ah, como eu estava orgulhosa! declarou Lettie. Vocês todos no topo da escadaria, olhando-me com admiração! Mas o Frank Wishaw não era lá muito boa pessoa, embora tocasse maravilhosamente violino. Nunca simpatizei muito com ele.
- Fez bem, retorquiu William. Ele, afinal, não esteve lá muito tempo... só o bastante para ser meu rival. Foi uma bela temporada essa que passamos no colégio!
- Não foi nada má, confirmou Lettie. Em todo o caso, havia certa dose de loucura. Parece-me que foram três anos perdidos.
- Creio que, depois disso, você fez progressos, observou Leslie Tempest, sorrindo. Agradava-lhe a idéia de que ela tivera um namoro inocente, o que
só aumentava a glória da conquista final, - e essa pertencia-lhe.
Durante aquela série de evocações, George sentiu-se deslocado na conversa.
Depois de tomarmos chá, regressamos à sala, onde só o clarão do fogo combatia as trevas envolventes. Quando os nossos convivas descobriram o visco, o seu entusiasmo não conheceu limites.
- George, Cyril, venham beijar-me, ordenou Alice.
- Will avançou para lhe dar essa honra; ela, porém, gritou-lhe:
- Conserve-se à distância, seu gorducho! E agora, meu querido George, venha beijar-me, acrescentou. Você só tem a mim. Venha cá, não fuja...
Agarrou-o e beijou-o em cada face, dizendo-lhe com meiguice:
- Não esteja tão sério, anime-se!
Acendemos as luzes, e Leslie, Lettie, Will, Maid e Alice propuseram fazer charadas figuradas. A primeira cena representava uma fuga para Gretna Green: Alice fazia de criada, papel que ela interpretava maravilhosamente como característica. O entretenimento era o mais divertido possível. Leslie estava muitíssimo alegre. Era evidente que, quanto mais dinâmico ele se mostrava, mais calma Lettie se sentia. Na segunda cena, melodrama comovente, minha irmã compenetrou-se do seu papel de trágica. Acabado esse ato, Lettie voltou ao limiar da porta e atirou beijos à assistência.
- Não acha que ela representa bem? perguntou Marie, dirigindo-se a Tom.
- Com inteira realidade, respondeu ele. Minha mãe interveio nessa altura:
- Desempenha sempre o seu papel com perfeição.
- Parece-me que ela podia representar para valer, acudiu Emily.
- Com certeza, asseverou a mãe. Mas quando se visse no espelho cairia em si.
- E então? inquiriu Miss Tempest.
- Sentir-se-ia desesperada e esperaria que o acesso lhe passasse, replicou minha mãe com um sorriso intencional.
Os atores regressaram à sala. Lettie fez um papel secundário e Leslie desempenhou o seu de maneira brilhante, com o que nos admiramos muito. Ninguém lhes negou aplausos, embora não fosse fácil decifrar a palavra que tinham em vista. Riram-se eles com a nossa falta de perspicácia e deram a explicação da charada. Então nós exigimos
mais.
- Continue, pediu Lettie ao noivo, enquanto eu ajudo a arrumar a sala para o baile. Não o perderei de vista. Emily tomará o meu lugar; estou um tanto cansada.
Assim fizeram.
A um canto, minha mãe, Marie, Tom e eu improvisamos uma mesa de bridge. Lettie declarou que queria mostrar estampas novas a George, e ambos se debruçaram, por algum tempo, sobre um álbum. Depois, minha irmã intimou-o a auxiliá-la no arrastar dos móveis.
- Agora já teve muito tempo para refletir, notou ela. - Tão pouco! Não sei ainda o que devo dizer.
- Conte-me o que esteve pensando.
- A seu respeito... volveu George, constrangido.
- E então? insistiu Lettie.
- Pensei no seu tempo de estudante...
- Ah, foi tão divertido! Tive muitos namoros. Gostei de todos - até verificar que não havia nada em qualquer deles. Enfastiei-me.
- Pobres rapazes! comentou ele, rindo. Eram todos iguais?
- Eram, e ainda são, respondeu ela.
- Tanto pior para você.
- Por quê?
- Porque não fica ninguém.
- Que sarcasmo! Faça uma exceção.
- Eu? Você disparou para o ar com cartuchos sem pólvora... menos um, é claro.
- Atingi-o? Porque não suspendeu o fogo?
- Sou sempre retardado. Foi com amargura que recordou esta frase que ela dissera. E acrescentou:
- Contudo, sabia que eu a amava. Estava farta de saber.
- Verbo no pretérito... Mude o tempo para a próxima vez.
- A culpa foi sua. Descartou-se... insistiu George, cada vez mais excitado.
Como resposta, Lettie ergueu a mão e mostrou-lhe o anel de noivado, ao mesmo tempo que sorria muito calma. O rapaz olhou-a com mal contida cólera.
- Quer fazer o favor de enrolar os tapetes e afastar as cadeiras para o lado? perguntou minha irmã, logo a seguir.
George afastou-se, a fim de cumprir a missão; mas virou-se ainda para trás e disse em voz sentida:
- Nunca me teve em consideração. Sou um zero...
- Repare... está aí uma cadeira a mais, replicou ela, sempre tranqüila; corara, no entanto, e viu-se obrigada a baixar a cabeça, para disfarçar.
Enquanto Lettie se retirava, George pôs-se a afastar os tapetes para um canto.
Na ocasião em que os atores reapareceram, Lettie levava uma jarra de flores. Durante a representação da charada, manteve-se ela sempre a contemplá-los, sorrindo e dando palmas. No final Leslie aproximou-se e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. Lettie
beijou-o então, às ocultas, com o que o envaideceu ainda mais. Em seguida foram preparar o outro ato.
Sem que ela o chamasse de novo para ajudá-la, George não se atrevera a chegar-se para minha irmã, que andava, por essa altura, com as faces afogueadas.
- Como sabe que não o considero? perguntou ela. Nervosa como estava, sentia-se incapaz de resistir àquele jogo proibido.
George riu e, por momentos, não conseguiu encontrar uma resposta.
- Ora, porque sei! disse por fim. Você tinha a certeza de que podia me dominar em qualquer ocasião... por isso não tinha pressa.
- Nesse caso, procedemos em concordância com a maneira tradicional, retorquiu ela ironicamente.
- Bem sabe que foi você quem começou, volveu George. Brincava comigo... Naquelas manhãs, quando eu estava enfeixando a aveia, e depois quando apanhava maçãs, você aparecia... Nunca pude esquecer esses momentos... Tudo pareceu diferente daí para cá. Você despertou a minha vida... Imaginei coisas que estavam além das minhas possibilidades.
- Ah! Lastimo muito.
- Não diga isso. Mas que será de mim?
- Que será de você? repetiu ela um tanto sobressaltada. George sorriu outra vez; compreendeu a situação, e foi um nadinha teatral, embora profundamente sincero.
- Desprezou-me... pôs-me de parte, e fiquei desorientado. Que hei-de fazer?
- Você é um homem, replicou ela. George riu-se com desdém.
- E então?
- Pode continuar... da maneira que lhe apetecer, respondeu Lettie.
- Quanto a isso... veremos, disse ele.
- Não é da minha opinião?
- Não sei. Veremos.
Saíram da sala. Chegando ao vestíbulo, Lettie voltou-se para o rapaz e murmurou em voz baixo:
- Ah, lastimo tanto, tanto!
E ele, em tom baixo e suave, replicou:
- Não importa... não importa.
Ouviram-se risadas dos que estavam combinando a charada, Lettie afastou-se de George e entrou na sala, dizendo alto:
- Creio que já está tudo pronto. Podemos sentar agora. Depois dos atores representarem a última charada, Leslie dirigiu-se para a noiva:
- Então, minha querida senhora, está contente por eu ter voltado para junto de você?
- Com certeza. Não me deixe outra vez, Leslie.
- Não deixo, não. Olha, esqueci do lenço na sala de jantar, acrescentou ele.
Saíram juntos. Minha mãe deu licença para que os homens fumassem, e nessa ocasião Marie observou a Tom:
- Admiro-me de que um cientista fume. Não será desperdício de tempo?
- Faça o favor de me acender o cigarro, respondeu ele. Mas cuidado não me queime o nariz...
George estava sentado numa poltrona enorme.
- Pobre rapaz! comentou Alice. Não precisa também de um anjo que o auxilie?
- Preciso, respondeu ele. Pretendo riscar este fósforo e não tenho onde.
- Quer fazê-lo na sola do meu sapato? Então, endireite-se, para que eu me sente no seu colo. Coitado, está tornando-se voluptuoso, acrescentou aquela estouvada, empoleirando-se nos joelhos de George. E se eu lhe queimasse os bigodes? Cautela... Pronto! Com que ar de prazer você puxa a fumaça!
- Inveja-me? perguntou ele, com um sorriso estranho.
- Um pouco!
- É pena privar-se deste prazer, observou George em tom quase terno.
- Deixe-me fumar também.
O rapaz tirou o cigarro dos lábios e ofereceu. Alice aceitou-o, surpreendida e um tanto excitada com a entoação daquela voz.
- Agora, já posso ir, disse ela.
- Não vá. Agrada-me a sua companhia, disse-ele, retendo-a.
- Que mãos tão grandes! Largue-me. Lettie, vem dar-lhe um beliscão.
- De que se trata? perguntou minha irmã.
- Ele não me larga.
- Há-de cansar-se, respondeu Lettie.
Alice já estava livre mas não se mexeu. Conservou-se nos joelhos de George, de testa franzida, fumando o cigarro dele; pensativamente, ia soprando rolos de fumo... De súbito, sentiu comichão no nariz e pôs-se a esfregá-lo.
- Afinal, isto não é tão bom como parecia. O rapaz riu, cheio de condescendência.
- Lindo menino! murmurou ela, afagando-lhe o queixo.
- Acha que sou? inquiriu ele em tom lânguido.
- Vaidosão! retorquiu Alice, dando-lhe puxões de orelhas. Depois enterneceu-se, murmurou uma desculpa e beijou-o. Ao voltar-se para nós, piscou os olhos a minha mãe e a Lettie. Esta última estava sentado ainda com o noivo, que brincava com o braço dela, ora apertando-o ora fazendo-lhe festinhas.
- É um amor de braço! declarou Leslie, depondo nele um beijo. Tão morno... apesar de tão branco! Lembra o de Io (Personagem mitológica, transformada por Júpiter em novilha)....
- Estão a falar de bezerras, observou Alice a George. Baixando a voz, Tempest perguntou a minha irmã:
- Lembra daquele personagem de um livro de Merimée, que pretendia morder a mulher e beber-lhe o sangue?
- Lembro-me, acudiu Lettie. Também sente esse apetite?
- Talvez, retrucou ele, a rir. Quem me dera que todos fossem embora! Seu cabelo está soltando em volta do pescoço. É adorável...
Alice, sempre trocista, arregaçou a manga do casaco de George, e, mostrando o pulso - que descansava sobre o joelho dela - exclamou:
- Que lindo braço, não acham? Moreno como uma côdea de pão...
O rapaz sorriu, fitando-a.
- Rijo como um tijolo, prosseguiu ela.
- Gosta?
- Não! respondeu logo a moça, num tom que significava sim. Faz-me arrepios.
George continuou a sorrir, e então Alice estendeu-lhe as mãos pequenas, semelhantes a duas flores. Assim recostado como estava, o meu amigo contemplou-as com muita curiosidade.
Ao mesmo tempo ansiosa e mordaz, Alice Gall começou a interrogá-lo:
- Que lhe parecem? Valem para você como se fossem de prata?
- Mais do que isso, redarguiu ele, mostrando-se cortesão.
- Como se fossem de ouro?
- Decerto...
- Acha que pareço com uma mosca a zumbir à vidraça da sua janela, desejosa de lhe fazer companhia?
George respondeu com uma risada.
- Adeus, disse ela, levantando-se e abandonando-o.
- Não vá...
Todavia, já era demasiado tarde.
O aparecimento de Alice no grupo calmo e sentimental teve o mesmo efeito de uma luz forte incidindo de repente num poleiro de aves adormecidas. Todos se ergueram e, desejando fazer fosse o que fosse, quiseram dançar.
- Emily, toque uma valsa. Você não se opõe, pois não, George? O quê? O Tom não dança? ó Marie!
- Eu não me importo, declarou Marie.
- Dance comigo, Alice, disse George. Cyril vai convidar Miss Tempest.
- Vamos lá! respondeu Alice.
Começamos a dançar. Notei que Lettie espiava os pares, e quis indagar a causa. George valsava com Alice; não ia mal, e ria com as observações que a moça lhe fazia.
Minha irmã parecia não dar atenção à conversa do noivo e continuava observando Alice e George. Por fim dirigiu-se a este:
- Dança sempre?
- Julgava que não? Olhe que se comprometeu comigo para um minueto.
- Bem sei.
- Está combinado?
- Está. Mas...
- Fui aprender isso em Nottingham.
- O quê? Por causa da minha festa? Sim, Leslie, vai ser agora uma mazurca. Toque, Emily. Você, Tom, faça companhia à minha mãe.
Dançou-se a mazurca com os mesmos pares. George saiu-se melhor do que eu esperava - sem acanhamento, embora um tanto duro. Enquanto girou pela sala, foi sempre conversando e rindo com Alice. No entanto, parecia distraído.
Lettie lembrou então uma dança de pares, e ela e George começaram a dançar o minueto. O rapaz teve um sorriso de triunfo.
- Felicita-me? disse ele.
- Estou surpreendida, respondeu ela.
- E eu também. Sinto-me radiante.
- Sim? Receba os meus parabéns.
- Obrigado! Custou, mas você já começa a crer.
- Em quê? perguntou ela.
- Em mim.
- Não recomece esse assunto, pediu Lettie com ar triste.
- Gosta de dançar comigo? indagou ele.
- Agora, fique quieto. Isto é sério. -* Oh, Lettie? Dá vontade de rir!
- Dou? Que seria se você casasse dentro em pouco com a Alice? disse ela.
- Eu... com a Alice! Oh, Lettie! Tenho apenas cem libras, e nenhuma situação definida. Eis porque não caso, a não ser com uma herdeira.
- Possuo duas mil libras, pouco mais ou menos.
- Ah, sim? Isso dava, observou ele, sorrindo.
- Você hoje está diferente, disse ela, inclinando-se para o rapaz.
- Estou? Naturalmente é porque tudo se modificou também. As coisas definiram-se... pelo menos por agora.
- Não se esqueça dos dois passos que temos de fazer, disse ela sorrindo; e acrescentou gravemente: Não pude evitar isso.
- Por que não?
- Coisas da vida! Habituaram-me a esperar este desfecho. Toda a gente esperava por isto. Acabamos por fazer o que os outros esperam que façamos... É inevitável. Somos como peças de xadrez manejadas pelos jogadores.
- Na verdade, concordou ele, sem grande convicção.
- Não sei como acabará isto, murmurou.
- Lettie! exclamou George, apertando a mão dela com força.
- Não... não diga nada. Agora, já é tarde. O que está feito está feito. Se pronunciar mais alguma palavra, direi que estou cansada e deixarei de dançar. Não diga mais nada.
E George não disse mais nada... pelo menos a ela. Dançaram até ao fim. Depois, foi ele buscar Marie; e, enquanto valsava e conversava com esta deliciosa mulher ia readquirindo a animação. Mostrou-se muito alegre no resto da noite, com espantosa vivacidade. À ceia, comeu de tudo e bebeu muito vinho.
- Um pouco mais de peru, Senhor Saxton...
- Obrigado. Dê-me também um pouco dessa geléia escura, se faz favor. Isto para mim é novidade.
- Quer pudim?
- Quero... Você é uma jóia. Depois da ceia, Alice exclamou:
- Querido George, já acabou? Não queira morrer como um rei... o Rei João. Não posso passar sem você.
- Está assim tão apaixonada por mim?
- Ora, se estou! Por sua causa, seria capaz de atirar o meu chapéu mais bonito embaixo da carroça do leite!
- Não, não. Prefiro antes você na dita carroça... quando for eu a conduzi-la.
- E vá visitar-nos, acrescentou Emily.
- Que simpáticos! Amanhã você já não quererá saber de mim, querido George.
Madie, Tom, William e Alice tomaram lugar na carruagem. A última despediu-se demoradamente de Lettie e atirou beijos a George, prometendo amá-lo fiel e sinceramente.
Os irmãos Saxtons demoraram-se um pouco mais.
A sala pareceu deserta. Haviam terminado os risos, e tudo estava tranqüilo. Mal se podia manter a conversa no meio do constrangimento que sentíamos.
- O dia de hoje chegou ao fim, disse George. Foi uma noite divertida... e eu bebi demais.
- Fico contente com isso, disse Lettie.
Fomos para o vestíbulo. Ele e a irmã calçaram então as galochas, ajustaram as polainas e ainda se detiveram uns minutos antes de se irem embora.
- Temos de partir, explicou o meu amigo, antes que o relógio dê as badaladas. Apontou para as galochas, acrescentando: Olhem para os meus sapatos de vidro; sou como a Gata Borralheira. Vai bater meia-noite... é preciso fugir. Não há dúvida que bebi demais.
As colinas, para além de Nethermere,
apareciam vagamente esboçadas.
- Adeus, Lettie. Adeus!
Embrenharam-se na profundeza do bosque, onde espreitavam manchas de neve pálida. Do escuro, ainda chegou o som de uma voz:
- Adeus!
Leslie empurrou com força o portão e arrastou minha irmã para a sala. Falaram baixinho, riram e ele acabou por fechar a porta do aposento. Lettie continuou a rir - riso estranho, incongruente, que esmoreceu por fim.
Marie sentara-se ao piano - que estava na sala de jantar - e martelava ao acaso naquelas teclas desconjuntadas Dir-se-ia o comentário final da festa, e esses sons encheram-me de tristeza. Ela, porém, que era uma sentimental, parecia deleitar-se com isso.
Assim se abrira um abismo entre o dia de hoje e o de amanhã. Sem reparar nos sofrimentos da hora atual, só víamos agora - atrás de nós e perante nós - a triste comédia dos dias decorridos e a trágica sucessão dos que chegariam.
A carruagem voltou.
Marie deixou o piano, chamando pelo irmão:
- Leslie, Leslie, o John já está aqui! Ninguém respondeu.
- Leslie, o John espera por nós!
- Lá vou.
- Mas é já!
Pressurosa, dirigiu-se à porta da sala e falou com ele. Só então é que Leslie apareceu, cabisbaixo, indignado com a interrupção. Lettie veio atrás dele, compondo o cabelo. Parecia cansada e perplexa, como muitas mulheres em idênticas situações.
Leslie, sempre contra vontade, acabou por se despedir, depois de muitos beijos na noiva - e subiu para a carruagem que estacionava numa poça de luz amarela entremeada de sombras. No caminho, ainda ele gritou qualquer coisa relativa ao que deviam fazer no dia seguinte.
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO 1
Muito tempo ficou o inverno caído sobre a terra. Por causa de uma alteração no sistema do trabalho, puseram-se em greve os empregados das minas de Tempest, Warral e Cia. A miséria não foi grande, porque os mineiros eram sensatos na sua maioria e estavam bem precavidos; mas a tristeza pairou sobre a região e não deixou de haver sofrimentos. Pelas ruas, pelos atalhos, por toda a parte viam-se grupos de homens ociosos e desanimados.
Passaram-se semanas. Os delegados da Federação dos Mineiros promoveram reuniões, os sacerdotes fizeram preces públicas - mas a greve continuou. Não havia sossego possível. A campainha do pregoeiro não parava de badalar na via pública; os serviçais da empresa distribuíram manifestos em que se expunha a questão com todos os seus pormenores; o povo não deixava de comentar o caso e fazia-o com azedume e ressentimento; as escolas forneciam almoços, os institutos religiosos davam sopas, as pessoas ricas ofereciam chá e bolos. No meio de tudo isto, as crianças divertiam-se. Mas nós, que conheciamos as angústias dos velhos e as privações das mulheres,
sentíamos que a atmosfera se tornava pesada e angustiante .
Nas matas dos proprietários locais prosseguiu a caça furtiva, apesar da defesa heróica dos guardas. Houve um homem que apareceu com uma perna estropiada; embora declarasse que fora devido a uma queda na ladeira, soube-se que o ferimento resultará de uma armadilha em que ele ficara preso. Outros dois homens foram apanhados em flagrante, e o tribunal condenou-os a sessenta dias de prisão.
Em ambos os portões de Highclose - no lado da nossa casa e no outro, mais distante, de Eberwich - apareceram avisos prevenindo de que seriam castigados todos os que transgredissem a proibição de entrar. Não demorou muito que esses papéis ficassem sujos de lama; mas surgiram logo outros em substituição.
Os grevistas que vagueavam pelos caminhos próximos de Nethermere olhavam com rancor para Lettie quando ela passava envolta nas peles que Leslie lhe oferecera, e faziam observações desagradáveis. Minha irmã ouviu-as e sentia-se constrangida - tanto mais que herdara da mãe certas convicções democráticas. A esse respeito costumava
até discutir acaloradamente com o noivo.
Lembrou-se de falar da greve a Leslie, o qual a escutou com ar de superioridade. No fim, sorriu e declarou que ela não estava ao par do assunto; as mulheres, através da sua sentimentalidade, chegavam a conclusões arbitrárias; os homens é que deviam tomar decisões, decisões ponderadas e não impetuosas. As mulheres não entendiam dessas coisas... os negócios não eram para elas... etc., etc. Infelizmente, Lettie era a pessoa menos indicada para tratar de tais assuntos.
- Está bem, disse ela no tom calmo e resignado de quem quer pôr termo à conversa.
- Minha querida, não se aborreça com estas coisas e volte a ficar alegre. Nunca mais falaremos disto, sim?
- Nunca mais.
- É tão ajuizada como boa. Olhe o bosque denso e deserto: só você e eu existimos no mundo; você é meu céu e a minha terra.
- E o inferno?
- Ah, se fosse sempre fria como está agora! Sinto calafrios quando a vejo assim... e eu sou tão ardente, Lettie!
- E então?
- É cruel! Beija-me. Não, não me apresente o rosto; beije-me. Por que não fala?
- Para quê? De que serve falar quando não há nada a dizer?
- Está ofendida? Que frieza!
- Como a deste dia de neve, respondeu ela.
Por fim o inverno desentorpeceu os membros; espreguiçou-se, ergueu-se, e atirou para o norte o seu álgido vestuário.
A greve acabou. Os mineiros voltaram ao trabalho. Era uma maneira suave de declarar que estavam derrotados. Fosse como fosse, acabou a greve.
Os pássaros apareceram e arremessaram-se em vôos; as flores de aveleira, perdida a rigidez hibernai, pendiam como borlas macias. Todo o dia soavam gorjeios nos campos; e, mais tarde, ouviam-se em cada canto gritos de aves triunfantes.
Lembro-me do dia que a respiração das colinas se ergueu no suspiro do despertar, e em que os olhos azuis das águas se abriram cheios de luz. No infinito céu de março amontoaram-se nuvens que a toda hora passavam majestosas, aureoladas de alvo esplendor, amaciadas com sombras vagas e fugidias, como se fossem acompanhadas por bandos de anjos, e arredondadas como o contorno suave de um seio muito branco. Todo o dia passaram elas para o seu vasto destino, enquanto eu me apegava à terra, ansioso
e impaciente. Lancei mão do pincel e tentei reproduzi-las na tela; mas desisti, enfurecido comigo mesmo. Desejaria que, no áspero vale onde as sombras das nuvens atravessavam como peregrinos, houvesse qualquer coisa que me arrancasse do ermo em que me enraizara. Na glória desse dia azul e branco, aquelas massas vaporosas, em suspensão, seguiram sempre sua caminhada sem darem por mim.
Ao entardecer, foram todas embora; e o céu ficou vazio como uma bolha azul flutuando sobre nós.
Leslie chegou e propôs à noiva acompanhá-lo num passeio. Ela intimou-se a ir também, e eu, para fugir de mim mesmo, não opus resistência.
Havia uma atmosfera morna no interior da mata e nos recôncavos dos outeiros; mas, na parte desabrigada da encosta, o vento açoitava-nos as faces.
- Alcança-me umas flores dessa árvore, pediu Lettie ao noivo, quando íamos ao longo do rio. Sim, essas que estão pendentes sobre a água... rosadas como uma onda de sangue sob a pele. Repara: vermelho e amarelo, acrescentou ela, apontando para o ramalhete que tinha ao peito. Em seguida, Lettie começou a recitar o Aniversário de Cristina Rossetti.
- Ainda bem que você se lembrou de vir passear, continuou ela. Vê como Strelley Mill está lindo! É como um amontoado de cogumelos rubros e dourados num cenário de duendes. Há tempão que não vou lã. Se fossemos agora?
- É um pouco tarde. Já passa das cinco e meia. Vi... o filho... numa destas manhãs.
- Onde?
- Estava carregando adubo, e eu estava com pressa.
- Falou com você?
- Não, não disse nada, mas eu observei-o. É sempre o mesmo, muito queimado... com ar estúpido. Ainda bem que você correu com ele.
Lettie ficou uns momentos sobre uma pedra larga, equilibrando-se, enquanto o regato passava pelos seus pés, contornando-a.
- Então não quer visitá-los?
- Não. Prefiro escutar o rumor desta água, replicou Leslie.
- É tão musical!
- Continuamos o passeio? perguntou ele, impaciente mas submisso.
- Vou até lá num pulo, declarei.
Fui, e encontrei Emily a por o pão no forno.
- Venha dar uma volta, supliquei-lhe.
- Já? Vou avisar mamãe. Estava com vontade de sair... Desapareceu logo, e voltou enfiando o casaco cinzento, já de chapéu na cabeça. Ao atravessarmos o pátio, ouvimos George que nos chamava.
- Volto aqui! gritei.
O rapaz ainda compareceu ao portão, para nos ver. Quando chegamos à vereda, descobrimos Lettie empoleirada sobre a cancela, apoiando-se com a mão na cabeça do noivo.
Viu-nos, viu George também - e acenou. Leslie observou-a com ar ansioso, e então a moça tornou a acenar, rindo alto e dizendo ao seu companheiro que estivesse quieto e a segurasse enquanto ela se voltava. Assim fez, dando um pulo logo a seguir, como uma ave enorme que se arremessasse no espaço. O noivo estendeu os braços e aparou-a.
Todos juntos, seguimos pela encosta acima, Sunny Bank, onde antes tinham brilhado as searas de ouro e agora ondulavam filas de cardos esfrangalhados, por entre os quais fugiam coelhos. Passamos perto das cabanas que se abrigam num dos côncavos do monte e alcançamos as terras altas - essas que dominam Leicestershire até Charnwood, à esquerda e, mais para além, o cabeço de Derbyshire, em frente e à direita.
A estrada, devido à ser raro uso, estava toda coberta de ervas, e terminava abruptamente no topo da colina. A meio caminho divisava-se a quinta de White House, com a sua escada de acesso já muito esboroada. Depois da sua época de esplendor, de luzidas cavalgadas, passara às mãos de um lavrador que a cultivava.
Chegamos às pedreiras e visitamos os fornos de cal.
- Vamos à mata que fica do outro lado, propôs Leslie. Desde pequeno que não a vejo.
- É proibida a entrada, disse Emily.
- Não se trata de violar a propriedade alheia, replicou ele com ar importante.
Seguimos ao longo do rio, que ia correndo apressado e tombava em cascatas, indiferente às flores que lhe ornavam as margens. Ladeamos a corrente e subimos a colina através da floresta. No solo avermelhado destacavam-se rebentos verdes e aveludados de certas ervas. Por fim atingimos o topo da encosta, onde a vegetação era mais rala. Enquanto eu falava com Emily, tive a impressão confusa de qualquer coisa branca sobre a terra. A moça soltou uma exclamação de surpresa, e compreendemos então
que pisávamos, àquelas primeiras sombras do crepúsculo, largos maciços de campainhas brancas. Havia poucas aveleiras; só aqui e ali se erguia algum carvalho. Tudo estava coberto da alvura das campainhas, como se a terra vermelha houvesse recebido uma chuva de maná. Seguia-se um vale pequeno e fundo, semelhante a uma taça, também semeado de flores que pareciam esmaecidas às primeiras sombras que iam nos envolvendo. A terra estava tépida, salpicada de vagens escuras, de ervas, de florinhas. Por cima de nós, sobre o rendilhado leve das aveleiras, o sol poente banhava os carvalhos de uma luz sobrenatural; dir-se-ia uma comunhão sagrada das puras coisas silvestres, inúmeras, frágeis, enredadas na sombra do por do sol. Há flores cuja companhia é alegre: as hordas majestosamente bárbaras das campânulas azuis, os grupos festivos das primaveras, as anêmonas vivas e balouçantes; mas as campainhas brancas são tristes e misteriosas. Não compreendemos seu significado; não nos pertencem, a nós que as tocamos com os dedos e as colhemos. Envoltas no crepúsculo, estas flores vencidas são melancólicas como dríades abandonadas.
- Que pensa você que significam? perguntou Lettie em voz baixa, enquanto acariciava as flores com os seus dedos brancos e a fímbria da saia roçava por elas.
- Este ano há muito menos, disse Leslie.
- Lembram-me a trepadeira, que nunca é bem nossa, por mais que a utilizemos, observou Emily, dirigindo-se a mim.
- Que pensa que elas significam, Cyril? repetiu Lettie.
- Não sei. Emily afirma que essas flores pertencem a qualquer religião perdida. Seriam talvez o símbolo das lágrimas para algum estranho povo druida que nos antecedeu.
- Mais do que lágrimas, disse Lettie. Mais do que as lágrimas, representam o silêncio. Sim, algo de uma antiga religião perdida. Assustam-me.
- Por quê? inquiriu Leslie.
- Se eu soubesse, não me assustaria. Repare nestas campainhas todas...
Entre as folhas sombrias, as flores pendiam formando manchas confusas.
- Repare nelas: aconchegam-se retraídas, indefesas. Fazem parte de qualquer ciência que nós perdemos e de que sentimos a necessidade.
Apavoram-se. Tem aspecto fatídico. Bem sabe, Cyril, que havia seres que desapareceram da face da terra, como os mastodontes e outras monstruosidades. Mas as coisas que eram precisas, a sabedoria...
- É contra minha crença, declarei.
- Pois eu julgo que alguma coisa se perdeu...
- Anda, disse Leslie, não se preocupe com fantasias. Vem comigo ao fundo do vale para ver como é diferente e estranho o céu é como uma cobertura de filigrana feita de ramos de árvores.
Lettie endireitou-se e seguiu-o pelo declive, dizendo:
- Ah, você está pisando as flores.
- Não. Sou bastante cuidadoso.
Sentaram-se ambos no tronco de uma árvore tombada. Minha irmã inclinou-se para a frente e passou os dedos brancos entre as folhas escuras, colhendo aqui e ali uma ou outra flor - como se estivesse cumprindo um ritual. Leslie não podia ver seu rosto.
- Você não se importa comigo? perguntou ele de mansinho.
- Com você? Ergueu o busto, fitou-o e riu de modo estranho. Não me parece real, acrescentou num tom mais estranho ainda.
Por algum tempo ficaram silenciosos. Nos arbustos, voavam pássaros. Emily olhou espantada. E, ao mesmo tempo, ouviu-se alguém, por cima de nós, dizer com voz irônica:
- Pombinhos, heim? Este não é o lugar próprio para arrulharem. Façam favor de me declarar os seus nomes?
- Afaste-se, seu idiota! gritou Leslie, levantando-se furioso. Voltamo-nos e descobrimos o guarda da propriedade, Annable, que se conservava em atitude ameaçadora e que prosseguia nas suas observações ferinas:
- Muito bem, sim senhores. Dois... e mais dois fazem quatro . Saiam do ninho, deixem-me apreciar as carinhas...
- Idiota! repetiu Leslie, ajudando a noiva a levantar-se. Não vê que aqui estão senhoras?
- Perdão, mas a esta distância e ao escuro não se pode distinguir uma senhora de uma simples mulher. Quem é o senhor?
- Vamo-nos! Você, Lettie, venha comigo, não pode ficar aqui. Ambos subiram até â parte iluminada. O guarda viu de quem se tratava.
- Queira desculpar, Senhor Tempest, não o havia reconhecido. Julguei que fossem quaisquer doidivanas que tivessem vindo para aqui...
- Cale-se, homem. Desculpe, Lettie. Quer o meu braço? Faziam um par muito elegante. Minha irmã com seu chapéu de plumas, que lhe caíam para trás sobre o cabelo, vestindo o casaco justo e comprido, que ficava tão bem no seu corpo.
O vigia contemplou-os; depois, sorrindo, desceu ao côncavo, em grandes passadas, para voltar daí a instantes com um par de luvas na mão.
- Vossa Excelência esqueceu-se disto, minha senhora... Lettie recebeu-as e foi refugiar-se junto ao noivo. Mas, de repente, exclamou:
- As minhas flores! Vou buscá-las.
Entre as raízes das árvores estava um punhado de campainhas brancas. Minha irmã pegou-as, enquanto a seguíamos com a vista.
- Estou penalizado por este engano, acrescentou o guarda. Mas eu quase me esqueci de como eram as senhoras. Nunca vejo senão as filhas do patrão... que não saem à noite.
Trocaram ainda várias palavras com o homem e Leslie tornou-se indulgente, achando graça na linguagem pitoresca em que ele se exprimia. A propósito do sítio das valas, onde era "mais fácil criar fedelhos do que na cidade", perguntei-lhe eu se as crianças que estavam lá seriam seus filhos.
- Conhece-os? Não são uma ninhada de se tirar o chapéu? Uns verdadeiros furões, espertos como doninhas... e criados como um bando de raposas, para correrem por toda a parte...
Emily aproximou-se de Lettie e ambas se conservaram afastadas daquele homem que elas odiavam por instinto.
- Qualquer dia caem em alguma ratoeira, observei. Sorrindo, o homem respondeu:
- São bravios. Hão de defender-se como os animais.
- Admira-me que fale dessa maneira, acudiu Leslie. Falta às suas obrigações.
O guarda pôs-se a rir.
- Ora, as obrigações dos pais! A quem vem contar essa história! Tenho nove filhos - oito, que o nono ainda não chegou. Procria bem, a minha velha: nove em quatorze anos! Que parece?
- Chega a ser crueldade.
- Qual! É assim mesmo. Seja-se boa rês, homem ou mulher, digo eu. O senhor é, naturalmente, um macho; a senhora uma... fêmea. É assim mesmo, enquanto houver saúde.
- Que quer dizer?
- Faça-se como os animais. Vigio os meus filhos, vejo-os crescer. São rijos como cepos.
Hei de mantê-los longe da podridão da raça humana. Só se não puder evitar... Que sejam como os pássaros, ou as doninhas, ou os esquilos.
- São maneiras de ver as coisas, respondeu Leslie.
- Repare como as mulheres olham para nós. Que sou eu, aos olhos delas? Qualquer coisa entre um touro e um verme. Admire agora esta flor! acrescentou levantando a voz para as moças ouvirem e arrancando do chão uma primavera. Bonita, não é verdade? E para quê? Para que é que o senhor usa esse traje elegante e torce o bigode?
Ah, é melhor dizer às mulheres que não venham ao bosque antes de saberem o que são certas coisas... Boa-noite, senhores.
E o homem desapareceu no escuro.
- Que tipo grosseiro! comentou Leslie, ao reencontrar-se com minha irmã. Mas é boa pessoa.
- Pregou-nos um susto! replicou ela. No entanto, parece que interessou a você. Dá a impressão de que tem muito que contar.
- Parece que lhe falta alguma coisa... atalhou Emily.
- Bom sujeito, no fim de contas, intervim por meu turno. Leslie deu a sua opinião:
- Robusto, mas insensível. Sem alma...
- Sem alma, confirmou Emily.
Lettie ficara pensativa. Eu esbocei um sorriso.
A tarde estava maravilhosa, muito calma. No poente adensavam-se nuvens vermelhas, e, no outro lado, via-se uma lua desmaiada. Em volta de nós, e ã distancia, o arvoredo tomava tons de púrpura. Naquele pálido pôr do sol a paisagem aparentava desolação e estranheza; e sob os nossos pés sentíamos a terra elástica das veredas.
- Corramos! gritou Lettie. Dando as mãos uns aos outros, saímos em correria. Rindo, ofegando, depressa esquecemos a tristeza que nos invadira.
- Escutem! ordenou um de nós. Paramos de súbito.
- É uma criança! disse Lettie.
- Nas valas, elucidei.
Seguimos para lá. Da casa vinham soluços infantis e o vociferar histérico de uma mulher.
"Seu sem vergonha! Seu sem vergonha!"
E isto era acompanhado pelo som de pancadas e vozes altas. Fomos nessa direção e vimos uma mulher batendo furiosamente num garoto com uma caçarola de esmalte. O rapazinho estava enrolado como um ouriço-cacheiro; a mulher agarrava-o pelos pés e tosava-lhe os ombros e as costas como se empunhasse um mangual. Agrupados em volta, com o clarão do lume crepitante a iluminar suas faces molhadas e as boquinhas entreabertas, estavam as outras crianças também chorando. A mãe encontrava-se numa espécie de desvairio; o cabelo tombava-lhe para a cara, os olhos dilatavam-se num paroxismo de furor. Para baixo e para cima, aquele braço longo movia-se como a vela de um moinho. Corri a segurá-lo. Contida deste modo, a mulher deixou cair a caçarola da mão inerte, e, cambaleando, atirou-se para o diva. Fechava e abria as mãos nervosamente e parecia ter esgotado todas as forças. Emily acalmou as crianças enquanto Lettie acalmava a mulher. Pouco a pouco ela sossegou e acabou por ficar tranqüila em frente a minha irmã, mexendo com ar alheio o anel de noivado.
Emily, entretanto, lavou a cara de uma das pequenas, que desatou a chorar quando viu a toalha manchada de sangue. Mas, por fim, calou-se também, e Emily pôde despejar a água deste último instrumento de tortura e acender finalmente o candeeiro.
Nessa ocasião descobri Sam acaçapado debaixo da mesa. Estendi-lhe a mão, e o garoto escapuliu-se para o corredor como um lagarto. Daí a instantes, ao vê-lo num canto a chorar com dores, fui tirá-lo do seu esconderijo e obriguei-o a ficar na cozinha. Dolorido como estava, acabou por submeter-se.
Despimo-lo e vimos-lhe o lindo corpinho branco cheio de contusões. A mãe recomeçou a soluçar, e as crianças acompanharam-na em coro. As moças tentaram abrandar a gritaria, enquanto eu esfregava gordura no rapazinho que permanecia calado e encolhido. Depois a mãe tomou-o nos braços e beijou-o com ardor, chorando desesperada. O menino deixou que
ela o beijasse, até que começou também a soluçar convulsamente. Abraçados um ao outro, chorava a mãe desgrenhada e o filho meio nu. Passada a crise de choro, a mulher deitou a criança na cama, as moças ajudaram a vestir os pijamas nos menos, e a casa não tardou a ficar silenciosa.
- Não consigo domá-los, queixou-se a mãe tristemente. Dão respostas malcriadas... não sei que fazer deles. Annable não me ajuda, ninguém me respeita; todos riem de mim.
- Ah, meu menino! exclamou Lettie, pondo o pequenino no chão e segurando-o pela camisa. Quer ver sua mãe?
A criança, que teria dezesseis meses, foi em passos vacilantes na direção da mãe, agitando as mãozinhas e rindo, com os olhos brilhantes de prazer.
A mulher recebeu o filho nos braços, alisou-lhe na testa os cabelos castanhos sedosos e encostou a cara dele à sua.
- Ah! disse ela. Tens um papá muito esquisito, meu amor. Não é como os outros. Não faz caso de ninguém. É como se fosse um estranho para nós.
A pequena, que tinha a cara ferida, encontrara consolo junto de Leslie. Sentara-se nos joelhos dele e olhava com os seus olhos azuis e sérios, seriedade que se tornava mais notável quando se observava sua cabecinha redonda, de cabelos curtos.
Agarrando na mão gorducha um bocado de giz vermelho, dizia ela mais ou menos na sua linguagem:
- O papá deu-me isto para eu pintar a cara da minha boneca, que é de pau. Vou-lhe mostrar.
Saltou para o chão e, arregaçando a camisa comprida com uma das mãos, foi até ao canto onde as crianças guardavam suas coisas e trouxe a Leslie uma bruxa besuntada de vermelho.
- Esta é que é a boneca que o papá me fez. Chama-se Dona Mima.
- Sim? retorquiu Leslie. É muito feia, não achas?
- Não. É bonita. O papá diz que ela é tal e qual uma senhora.
- E ele é que te deu os preparos para lhe pintares a cara?
- Sim, senhor.
- Você não consente que o Sam pegue nisso?
- Não. A mama diz que eu não dê, e ele me morde.
- E que diz teu pai?
- O papá?
A mãe interveio então:
- Ele não faz senão rir, e diz que mais vale uma dentada do que um beijo.
- Que bruto! exclamou Leslie.
- Bruto não é. Nunca bateu nos meninos nem tampouco em mim. Mas é muito diferente dos outros homens. Não se chega para a família. Hoje é mais estranho para mim do que na primeira vez em que o vi.
- Quando o conheceu?
- Era eu muito nova quando me apareceu esse rapaz, bonito e bem falante. Ainda hoje em dia ele é capaz de conversar como um senhor da alta, mas para mim nunca diz nada. Que sou eu para ele, senão um chinelo velho? Sente-se superior a mim... e aos próprios filhos. Meu Deus, ele não demora a chegar!
Mandou os pequenos para a cama, varreu o lixo para um canto e começou a pôr a mesa. A toalha era limpa. No lugar do marido colocou uma colher de prata.
íamos a sair quando o homem chegou. Vi a sua figura corpulenta no limiar da porta e o vulto maciço daquela mulher prolífica movendo-se subserviente em volta do quarto.
- Com que então teve visitas?
- Não as convidei. Entraram porque ouviram as crianças chorando.
Penetramos na escuridão da noite.
- É sempre a mulher quem leva a carga mais pesada, comentou Lettie com acento de amargura.
- Se ele a tivesse poupado, quem sabe se ela não seria agora uma criatura feliz? Mas o marido espezinhou-a. Os homens são cruéis, e o casamento permite que eles dêem largas aos seus instintos, observou Emily.
- Não queira tomar isto como uma amostra de todos os casamentos, replicou Leslie, dirigindo-se a minha irmã. Pensa em você e em mim.
- Pensarei.
Seguimos pelo atalho, entre as sombras das árvores, que o luar projetava negras e compactas. Aqui e ali a claridade incidia num raminho muito branco que os coelhos haviam descascado durante aquele duro inverno. Subimos numa clareira. O céu, para as bandas do norte, banhava-se numa luz esverdeada; em frente, Orionte descia para
o seu leito, e a lua acompanhava-o.
- Quando vejo um por do sol, disse Emily, sinto-me meio amedrontada. Infunde-nos respeito, não acha?
- Sim, deixa-nos estarrecidos e na expectativa de qualquer coisa, retorqui.
- Que é que você espera? perguntou ela suavemente; ergueu a cabeça, viu-me sorrir, e abaixou os olhos, mordendo os lábios.
Ao chegarmos à encruzilhada, Emily convidou-nos a entrar no moinho - só por um momento - e Lettie aceitou o convite.
A janela da cozinha não tinha cortinas, e os estores, como de costume, não estavam descidos. Olhamos para dentro, através dos ramos de madressilva. George e Alice jogavam xadrez; a mãe consertava um casaco e o pai lia, como era seu hábito. Alice falava baixinho, e George inclinava-se sobre o tabuleiro, com os braços apoiados na mesa.
Fizemos barulho à porta e entramos. George levantou-se com indolência, apertou-nos a mão e tornou a sentar-se.
- Ora viva, Lettie Beardsall, por onde tens andado? Ninguém a vê! bradou Alice.
Saxton, no seu tom jovial, acrescentou logo:
- É verdade que ninguém a vê?
- E que linda ela vem, com um belo chapéu, peles, e flores. Repare, George; talvez você não soubesse que Lettie era assim tão elegante.
George ergueu o olhar, atentou no traje e nas flores, mas sem olhar nunca a recém-chegada.
- Elegantíssima, confirmou ele. E voltou a ocupar-se do xadrez.
- Estivemos colhendo campainhas, disse Lettie, apontando para o ramalhete que tinha no peito.
- Que lindas! Dá-me umas, sim? pediu Alice, estendendo a mão. Lettie entregou-lhe as flores.
- Xeque ao rei! exclamou George, muito entretido com o jogo.
- Veja estas campainhas, replicou-lhe o adversário. Não vão bem a um ser cândido como eu? Lettie não deve usá-las - não é inocente e meiga como esta sua amiga. Quer algumas flores?
- Para quê?
- Para se enfeitar, já se sabe, e para ter um ar de inocência.
- É a sua vez de jogar, disse ele.
- Onde é que você poderá pô-las? Só se for na camisa... Ah, espere!
Espetou-lhe duas ou três flores no cabelo negro e crespo, e voltou-se para Lettie:
- Vê! Ele não está um amor? Lettie soltou uma risadinha forçada.
- Parece Traseiro com a cabeça de burro, comentou minha irmã.
- Nesse caso, sou Titânia. Não acha que fico uma deliciosa Rainha das Fadas, ó Traseiro? Quem é o ciumento Oberon?
- Faz-me lembrar aquele homem na Hedda Gabler, coroado de folhas de parreira, observou Emily.
- A sua égua está melhor, Senhor Tempest? perguntou George, sem ligar a mínima importância às flores que tinha no cabelo.
- Está quase boa, obrigado.
- George falou-me disso, interveio o pai, continuando a conversa com Leslie.
- Estou em xeque, George? indagou Alice, voltando ao jogo. Franziu a testa, meditou no que ia fazer, moveu a peça e exclamou com voz triunfante: Remediei o caso. É a sua vez, cavalheiro!
George refletiu um pouco e jogou resolutamente. Alice não se fez esperar: agarrou o cavalo, fê-lo dar um pulo e gritou: Xeque ao rei!
- Não tinha reparado. A vitória está na sua mão, disse ele.
- Ficou derrotado! Nunca mais se gabe de vencer uma mulher. Xeque-mate... com flores no cabelo!
George levou a mão à cabeça e atirou as flores para cima da mesa.
- Se vocês soubesse! exclamou a mãe, que vinha nesse instante da queijaria.
- Que foi? perguntaram todos.
- Nickie Ben comeu o coador de pano. É verdade! Quando eu ia fazer a lavagem do saco, encontro o gato ainda lambendo os bigodes.
George soltou uma gargalhada que se prolongou. Lettie fitou-o, esperando de que o acesso de riso acabasse.
- Faço uma idéia de como o bicho não ficou quando sentiu correr-lhe pela goela meio metro de musselina! exclamou ele, ofegante, desatando de novo às gargalhadas. Alice riu também: era fácil contagiá-la de hilaridade. Saxton acompanhou-os e, de aí a pouco, a casa parecia vir abaixo com o barulho que eles faziam. Só Lettie parecia querer que isso acabasse. Ao passar o braço nu sobre a mesa, George atirou ao chão as flores que ainda estavam lá.
- Que malcriado! bradou minha irmã.
- O quê? perguntou ele, olhando em volta. Ê por causa das flores? Tem pena delas? O seu coração é muito sensível. Não é verdade, Cyril?
- Sempre foi.. Condói-se dos animais indefesos, e até das coisas, disse eu.
- Não gostaria de ser um animalzinho, George? perguntou Alice.
O rapaz sorriu, afastando as peças do xadrez.
- Vamos embora? propôs Lettie, dirigindo-se ao noivo.
- Se preferes, reflicou ele, levantando-se satisfeito.
- Sinto-me cansada.
Leslie renovou as suas demonstrações de solicitude.
- Demos um passeio muito grande, naturalmente.
- Não, não foi isso. Mas aquelas campainhas brancas, e o guarda, e os filhos dele... e o resto. Fiquei extenuada. Beijou Miss Gall, Emily e a Senhora Saxton, acrescentando: Boa-noite, Alice. Não é por minha culpa que não nos temos encontrado. Bem sabes que sou sempre a mesma. Despediu-se de George, fitando-o com olhos trêmulos, como se quisesse reprimir as lágrimas.
George alcançara, de certa maneira, um triunfo sobre Lettie. Aquele desejo de chorar, com que ela voltava para casa, era segredo entre os dois; Leslie não o saberia.
Acompanhamos Alice até Eberwich. A certa altura ouvimos-lhe este comentário: "Sou uma macaquinha balançando-se entre dois ramos". À chegada, George pretendeu beijá-la, mas ela, fazendo-lhe uma festinha no queixo, murmurou (como se ele fosse uma criança): "Que lindinho!" Depois soltou uma risada, fugindo para dentro de casa.
- É um demônio vivo, comentou o lavrador. Regressamos por Greymede.
- Vamos à Estalagem do Carneiro visitar minha prima Meg, propôs ele.
Eram dez e meia quando me obrigou a atravessar a estrada e penetrar no corredor coberto de saibro da estalagem. No tempo do tio-avô de George aquilo fora uma propriedade importante, mas começara a decair depois da sua morte, mal governada pela viúva e por um homem que era pau para toda a obra. Felizmente a velha tinha uma neta que a ajudava, bela moça dos seus vinte e quatro anos, cujos pais se encontravam ausentes na Califórnia.
Quando íamos afoitamente pelo corredor, surgiu à porta do botequim a cabeça ruiva de Bill.
- Boa-noite! disse ele ao reconhecer George. Sigam sempre... Elas ainda não se deitaram.
Avançamos até ao fim do corredor e abrimos a porta da cozinha. A velha estava sentada numa poltrona baixa, de espaldar arredondado bebendo alguma coisa.
- Olá, George! exclamou ela, na sua voz cansada. Alguma coisa importante o traz aqui, com certeza. De outra forma, como se lembraria de vir visitar-me?
- Pois fique sabendo que vim apenas fazer-lhe uma visita. Onde está Meg?
- Ah! Ah! Ah! Vieste ver... a mim... e perguntas onde está Meg? Quem é esse senhor que o acompanha?
George apresentou-me e eu apertei a mão enrugada da velha.
- Muito gosto em conhecê-lo, disse ela, abanando a cabeça com ar melancólico. Sentem-se, não fiquem de pé.
Instalei-me no sofá coberto com almofadas de quadrados azuis e vermelhos. A casa estava muito quente eu me senti um tanto agoniado. A velha parecia meditar. Era pessoa de rosto duro, magra, apertada num vestido espesso de fazenda negra, e com um broche de ouro, enorme, pregado na gola de renda.
Ouvimos passos rápidos no andar de cima.
- Ela vem aí, informou a velha, despertando da sua apatia. Rangerem os degraus sob os pés apressados e Meg apareceu à porta. Parou, surpreendida, enquanto dizia:
- Percebi que havia alguém, mas nunca pensei que fosse você. O rubor subiu-lhe ao rosto naturalmente rosado, e ela sorriu - com um sorriso fresco e aberto. Creio bem que até então nunca vira mulher com tanto encanto físico; em cada movimento, em cada curva do seu corpo, havia uma sedução voluptuosa; não poderia dar atenção às palavras que ela proferia quem olhasse para aqueles lábios rubros como frutos maduros.
- Serve-lhes uísque, Meg. Bebe, não é verdade? Recusei com firmeza, mas a velha insistiu:
- Não diga que não. Quer uma bebida quente? Que é que deseja?
Como eu não me pronunciasse, a minha hospedeira decidiu por mim:
- Serve vinho clarete... embora não seja coisa muito apropriada para esta hora.
Meg saiu da cozinha; a velha suspirou por duas ou três vezes, sem nenhuma razão aparente - a não ser que fosse por causa do whisky.
- Ainda bem que vieste visitar-me agora, resmungou ela, porque não terá a sorte de me ver para a outra vez. E deixe-me dizer que ficarei bem contente de ir embora, acrescentou, depois de alguns suspiros.
Aquele aborrecimento da vida chegava a ser comovente. No entanto, a verdade é que a velha se apegava à existência como um parasita no lombo de um porco. Debilmente, mas com ênfase apesar de tudo, exclamou para si mesma: - Custa bastante ter de suportar o dia de amanhã. Gostaria de desaparecer já; mas nem posso pensar que aquela pobre pequena fica sozinha... Beba, meu rapaz, beba! Deixe, que não vai se embriagar com um copo.
Preferi servir-me do uísque em vez daquela bebida acre.
- Não posso sossegar enquanto ela não estiver arrumada, concluiu a velha.
Respirou fundo e, com ar desdenhoso, voltou a empunhar o copo. George sorriu e não disse nada, limitando-se a engolir um trago de uísque. O estalo que ele deu com a língua enervou nossa hospedeira, que voltou, fungando, às suas libações. O rapaz franziu a testa, irritado, encheu o copo e tornou a beber.
- Sou capaz de apostar como nunca na tua vida beijaste uma moça, observou ela, sorvendo as últimas gotas.
Neste momento Meg apareceu no corredor, e disse:
- Venha avó, já são horas de se recolher.
- Sente você aí e tome alguma coisa. Nem sempre temos companhia...
- Não, deixe-me antes levá-la à cama. Deve ter sono, com toda a certeza.
- Sente-se, já disse, e tome um cálice de porto.
Meg foi buscar novos copos e uma garrafa, e eu arranjei lugar para ela entre eu e George. Tomamos todos vinho do Porto. Meg, inconsciente e ingênua, redobrava de solicitude; quanto ria, a cara parecia iluminar-se. Seu pescoço claro e macio atraía-me a vista e enfeitiçava-me. Como George lhe fizesse qualquer pergunta, ela voltou-se para ele e os dois rostos ficaram muito juntos. O rapaz beijou-a; Meg recuou, e ele, levantando-se, encheu-lhe o pescoço de beijos ardentes.
Deliciada, a velha dava gargalhadas e agarrava com força o copo que tinha na mão.
- Continuem! bradou. E agora à saúde! Um brinde!
Todos quatro brindamos e bebemos. George serviu-se de mais vinho e bebeu-o de um trago. Estava excitado em demasia, perdendo por completo a moderação que o fazia normalmente conter as suas paixões.
- Tia! gritou ele erguendo o copo. Por aquilo que sabe!
- Agora sim! volveu a dona da casa. Vejo quem é você. Brindem todos pela tal coisa!
- Pela tal coisa, repetiu George antes de pousar a boca no copo.
- Que é? inquiriu Meg.
A velha riu com estrondo e piscou o olho ao sobrinho - que, de lábios molhados, se pôs outra vez de pé e beijou Meg com entusiasmo.
- É isto, declarou. Está feito o acerto.
A moça limpou a cara com o avental. Sentia-se constrangida. Em tom suplicante, insistiu com a avó para que fosse se deitar; mas ela não se mostrava muito convencida.
- Não vá ainda, tia! gritou George.
- Espere, Meg, respondeu a velha. Estou pronta. Arranje uma luz.
A moça trouxe uma lamparina, e Bill, entrando nesse momento, entregou à patroa uma caixa de madeira com o dinheiro arrecadado nesse dia.
- Vai deitar-te também, disse ela ao serviçal, que era bastante feio, de faces encarquilhadas. O homem sentou-se a um canto e tirou as botas. George, dê-me um beijo de despedida, acrescentou a viúva; quando ele com satisfação cedeu aquela intimativa, a tia cochichou-lhe qualquer coisa ao ouvido, e o rapaz soltou uma risada. Em seguida, a velha pôs uísque num copo e chamou o criado para que viesse tomá-lo. Por fim, apoiando-se pesadamente no braço de Meg, retirou-se para o andar superior. Devia ter sido uma mulher corpulenta; agora, porém, ao lado da figura exuberante da sobrinha, parecia magra e alquebrada. Nós ouvimos subirem os degraus, com grande dificuldade. George ficara torcendo o bigode e sorrindo, nos olhos brilhava-se esse clarão peculiar aos que experimentam sensações novas. Como ele se servisse de mais álcool, gritei-lhe em tom admoestador:
- Toma cuidado!
- Por quê? redarguiu o meu amigo com o ar de uma criança mimada.
Bill, que estivera muito tempo contemplando um buraco que tinha na meia, esvaziou o copo e,
dando-nos boa-noite, partiu para o seu quarto.
Meg tornou a aparecer. Levantei-me e participei-lhe que nos íamos embora.
- Acompanho-os até lá fora, porque tenho de trancar a porta depois que saírem, disse ela.
Ficou de pé, à espera, com ar aborrecido. George levantou-se. Agarrou-se à borda da mesa a fim de se segurar; depois equilibrou-se nas pernas e, com os olhos em Meg, chamou-a:
- Vem aqui! Quero pedir uma coisa.
A moça olhou para ele, meio sorridente, meio indecisa. George abraçou-o com o braço e, fitando-a nos olhos, com a face dela quase unida à sua, murmurou:
- Deixe-me beijá-la.
Sem resistência, Meg ofereceu-lhe os lábios, fixando nele o olhar brilhante. George beijou-a e apertou-a de encontro a si.
- Vou casar com você, declarou ele.
- Vai? disse ela, com expressão de alegria e de dúvida ao mesmo tempo.
- Vou, sim, respondeu George, redobrando a força do abraço.
Atravessei o corredor e coloquei-me no limiar da porta aberta, contemplando a noite. Creio que fiquei ali muito tempo. Por fim ouvi a voz da velha chamando no alto da escada:
- Meg! Meg! Mande-o embora e venha para cima.
Seguiu-se um silêncio só interrompido por um leve murmúrio de vozes - até que os dois chegaram ao corredor.
- Boa-noite. Desejo-lhe felicidades, gritou a tia. Aquele som, vindo do andar superior, tinha um não sei quê de sobrenatural.
George, apressadamente, ainda deu outro beijo à mulher a quem prometera casamento.
- Deus, disse ela com ternura. Viu-nos desaparecer e depois fechou o pesado ferrolho da porta.
- Pode crer... começou o meu amigo, tentando coordenar as idéias. A voz saiu-lhe rouca, estrangulada, pois a excitação não lhe passara ainda de todo. Pode crer, repetiu, ela é um... um vulcão.
Não repliquei, e ele nem deu por esse fato.
- Diabo! Por que a deixei ir?
Caminhamos algum tempo em silêncio, George parecia mais calmo.
- É a maneira como ela mexe o corpo... E, quando está parada, aquelas curvas. Basta olhar... sente-se logo...
Eu não ignorava nada disso, mas achei desnecessário dizer.
- Quando sonho com mulheres... é sempre com Meg. Parece-me tão meiga... E aquele seu jeito...
A pouco e pouco os passos de George tornavam-se pesados. Ao chegarmos ao ponto onde a via férrea atravessa o caminho, ele tropeçou, e cairia para a frente se eu não o segurasse pelo braço.
- Oh! Estarei bêbedo, Cyril? exclamou ele.
- Nem por isso, disse-lhe eu.
No entanto, os pés de George tornaram a arrastar-se, e ele começou a ir aos ziguezagues. Voltei a agarrar seu braço. Resmungou qualquer coisa, furioso consigo mesmo, e depois murmurou em voz pastosa:
- Estou caindo de sono.
Seguimos aos tropeções pela estrada solitária e silenciosa, através da escuridão desigual da floresta. George caminhava pesadamente, e era difícil conduzi-lo. Quando, por fim, atingimos o rio, não ficamos com rodeios e fomos chapinhando na água. Ordenei-lhe que não fizesse ruído algum no pátio de casa e entramos o mais de mansinho
que nos foi possível. George deixou-se cair com todo o seu peso em cima do sofá e, dobrando-se para a frente, começou a desamarrar as polainas. A meio dessa ocupação dormiu, e eu receei que ele caísse para diante. Tratei então de tirar-lhe as polainas, as botas molhadas e o colarinho. Quando estava vendo se conseguia despertá-lo um pouco para despir-lhe o casaco, ouvi ranger os degraus e assustei-me com isso - pois julguei que aparecesse a Senhora Saxton. Mas foi Emily quem surgiu, envolta num roupão branco que lhe chegava aos pés. Olhou para nós com as pupilas dilatadas de terror e murmurou:
- Que aconteceu?
Com um movimento de cabeça designei o irmão; a cabeça dele pendia de novo sobre o peito.
- Está ferido? perguntou Emily, com voz já audível, perigosamente audível.
George ergueu a cabeça e fitou-a com expressão de furor.
- George! bradou Emily, perplexa e amedrontada.
Os olhos do rapaz pareciam contrair-se-lhe de maneira perversa.
- Está embriagado? indagou ela então, recuando, mas sem desviar a vista. Embebedou-se, não é verdade?
Por minha parte, começava a sentir-me indignado. Àquela pergunta, respondi de modo afirmativo, baixando a cabeça.
- Ah, se mamãe se levanta! É preciso pô-lo já na cama. Como é possível que você...
Este cochichar sibilante irritava a ele e a mim. Agarrei o meu amigo pelo casaco. George resmungou e praguejou. A moça reteve a respiração, enquanto ele a fitava com severidade. O meu receio era que George tivesse uma explosão de cólera.
- Vá para seu quarto, ordenei a Emily, que se recusou a obedecer-me. Nesse momento o irmão respirava fundo e inchavam as veias do seu pescoço. A recusa da moça começava a enfurecer-me .
- Vá imediatamente! insisti. Ela, ainda hesitante, afastou-se, olhando sempre para trás.
Depois de tirar o casaco e o colete de George, deixei-o cair em modorra e descalcei-me. Feito isso, pu-lo de pé e, seguindo atrás, impeli-o pela escada acima. Ao chegarmos ao quarto dele acendi uma vela. Não vinha rumor algum dos outros quartos. Despi meu amigo e meti-o na cama conforme pude,
aconcheguei-lhe a roupa e deitei-lhe aos pés o tapete de pele de vitelo, pois a noite esta fria. Quase no mesmo instante, George começou a ressonar. Assim adormecido, tinha o ar de um garoto fatigado das tropelias cometidas.
Senti-me só no silêncio envolvente, e olhei em torno de mim. As colunas do leito de mogno, esculpidas, levantavam-se sombrias de encontro ao teto baixo do quarto. Junto da cama havia uma cadeira. O resto da mobília completava-se com uma cômoda amarela, que estava no meio das janelas. Sobre a cômoda reparei que descansava um livro: era um exemplar dos poemas de Ornar Caiame, edição barata, ilustrada, que Lettie lhe oferecera no tempo em que andava entusiasmada com este poeta.
Olhei de novo em volta e apaguei a vela. Ao sair para o patamar, vi Emily a espreitar à porta do seu quarto.
- Já dorme? perguntou ela.
Fiz que sim com a cabeça e segredei-lhe boa-noite. Depois, cheio de cansaço, regressei a minha casa.
Depois daquela noite, Lettie e Leslie estreitaram a sua convivência, embora nisso houvesse, de parte a parte, grandes altas e baixas. Leslie parecia insatisfeito e procurava submetê-la à sua vontade - no que ela foi gradualmente consentindo. Em volta de si própria e do noivo, minha irmã cerrou a cortina compacta do presente,
e os dois assemelharam-se a crianças que brincassem por trás dos cortinados de um leito antigo; do seu olhar excluiu ela todas as perspectivas de distância, como um árabe que desdobra a tenda e conquista o mistério e o espaço do deserto. Assim viveu Lettie encerrada entre seus prazeres e fantasias.
Às vezes, e só por acaso, olhava através da tenda. Depois agarrava-se aos livros e nada podia desviá-la dessa paixão. Nos momentos em que descansava da leitura, ficava na janela do quarto, horas seguidas, olhando para longe. Queixava-se, então, de enxaquecas. Mamãe dizia que era do fígado. E o noivo, amuado como um rapazinho a quem contrariam nos seus desejos, declarava que isso era apenas mau humor e perversidade.
CAPÍTULO 2
A primavera trouxe complicações. Os Saxtons declararam que a propriedade estava sendo destruída pelos coelhos. Num acesso de desespero, o pai comprou uma espingarda. Embora soubesse que o dono jamais consentiria na destruição daquela sua fonte de receita, a verdade é que, logo na manhã seguinte, ainda escuro, ia ele estava dando tiros. A princípio, o resultado foi apenas a dispersão dos animais e a aparição em cena do guarda Annable; depois, exaltado com o uso da arma, disparou sobre os roedores e levou para casa oito ou nove pares deles.
George não só aprovou essa medida de precaução como até gostou; no entanto, nunca tomara ele a iniciativa de matar os coelhos, nem mesmo de incitar o pai a fazê-lo. Calculou que isso acarretaria complicações, e a possível perda da terra. A idéia de que teriam de ir para outro lugar preocupou-o um pouco, mas achou que era melhor não se afligir até ver até aonde iam as coisas.
Estabeleceu-se ódio de morte entre os moradores de Strelley Mill e o guarda Annable, que adorava seus coelhos.
- Chamam-nos bichos daninhos! resmungava ele. Daninha, só conheço uma coisa: é a má língua. Deste modo, decidiu perseguir os caçadores.
Por essa ocasião eu andava interessado em estreitar as minhas relações com o guarda. Toda a gente o detestava - para os aldeões ele era como um demônio dos bosques. Alguns mineiros tinham jurado vingar-se pelo fato de terem sido presos por causa dele. Mas Annable possuía grande atrativo para mim: o seu físico magnífico, o seu vigor, o rosto moreno e sombrio arrastavam-me para ele.
Era homem com uma idéia fixa: de que todo o mundo civilizado só encerrava podridão. Odiava o mínimo sinal de cultura. Entramos em maior intimidade numa tarde em que ele me encontrou na mata a observar os vermes que formigavam num coelho morto. Isso levou-nos a discutir a vida. Era ele materialista cem por cento: troçava da religião e de todas as formas de misticismo. Passava os dias a dormir, ou a construir complicadas armadilhas para apanhar as doninhas e os homens (embora chegasse
à conclusão de que mais valia um tiro), ou fazendo qualquer trabalho de silvicultura para se entreter; plantava árvores novas, e derrubava as velhas, aproveitando-as para lenha e para os consertos do assoalho. Quando se punha a meditar, refletia na decadência da humanidade - o declínio da raça humana dentro da loucura, maldade e devassidão. "Seja bom animal, não atraiçoe seu instinto", eis o seu lema. Apesar disto, Annable era fundamentalmente infeliz - e fazia-me sentir assim também. Suponho que seria este seu poder de me comunicar sua infelicidade que lhe incutia amizade por mim. Tratava-me como um pai afetuoso trata um filho débil. Gostava de apoiar a mão no meu ombro ou no joelho enquanto conversávamos; fazia-me perguntas, expunha-me as suas idéias e acreditava na minha sabedoria.
No começo de abril fui à mata da pedreira para me avistar com Annable. Como não o encontrasse, segui ao longo do velho muro de tijolos que limitava a horta e fui pela estrada real, em direção à igreja arruinada que está na beira do caminho, justamente onde as árvores se fecham em túnel; na curva da estrada, elas, enormes, pendem sobre nós, e é na obscuridade que o transeunte receoso descobre as ruínas soturnas da igreja.
A vereda que levava ao adro estava coberta de folhas secas. Com a minha aproximação escapuliu um mocho do campanário escuro. A erva invadia a entrada. Abri a porta, arrastando para trás dela um montão de estuque e de lixo, e entrei. Na penumbra, vi os bancos numa desordem fantástica e os livros de orações espalhados pelo chão, cheios de poeira e roídos pelos ratos. Os pássaros voavam na escuridão do teto. Olhei para cima e descobri no alto da torre um sino pendente. Abaixei-me e apanhei um pedaço de estuque do meio de uma confusão de penas, de ninhos desfeitos e de restos de pássaros mortos. Atirei vários bocados de argamassa na direção do sino até que o ouvi badalar com leve som. Houve um ruflar de asas. Tornei a atingir o sino e, nesse momento, moveram-se formas escuras lá no alto, ecoaram gritos de alarme e houve qualquer coisa que tombou pesadamente. Senti um calafrio; saí daquele local tenebroso, e foi com alívio e prazer que vi, por trás dos ramos de teixo, o céu onde brilhavam os últimos clarões do dia. Respirei o ar fresco em que vibravam os trinados dos melros e dos tordos.
Vaguei por onde as lápides tumulares dominam o terreno do solar; em baixo, a luz, atravessando os vitrais, projetava uma claridade amarela no pátio lajeado e no tanque dos peixes.
Do cemitério descia-se para aí por uma escada de pedra, entre balaustradas cujos pilares carcomidos ainda se elevavam graciosos e dignos, envoltos
em líquenes. A escadaria era quase intransitável, devido à quantidade de hera e de roseiras de trepar; junto dos últimos degraus aglomeravam-se fetos.
Agitando as asas, em vôo do terraço para o adro, passou nesse momento um pavão. A seguir, ouvi sobre as lajes o som de pés que se arrastavam: era o guarda. Assobiei da forma combinada e ele parou a meio caminho, entre a folhagem da escadaria. O pavão voou por cima de mim e foi pousar na cabeça curvada de um anjo de pedra, tosco e enegrecido. Uma vez aí, inclinou o pescoço e pôs-se a investigar em volta; depois endireitou-se e soltou um grito que rasgou o silêncio crepuscular do santuário. A vegetação parecia ter estremecido àquele som e eu quase julguei ver as primaveras e as violetas acordarem do seu sono e arfarem de pavor.
O guarda olhou para mim e sorriu. Indicando a ave, Annable disse-me então:
- Ouça aquele maldito!
Mais uma vez o pavão ergueu a cabeça coroada e soltou um grito; ao mesmo tempo, moveu desastradamente as pernas feias e exibiu a plumagem da cauda, brilhante como uma fonte de estrelas coloridas sobre o pescoço inclinado do anjo.
- Olhe para aquele vaidoso! Empoleirado num anjo, como quem precisa de pedestal para o seu orgulho! Aquilo é a alma de uma mulher... ou então
é o diabo.
Ficamos silenciosos por algum tempo, observando o pavão que rodava à nossa frente, na luz do crepúsculo.
- É o espírito de uma mulher, insistiu Annable. Que idéia de se empoleirar naquele anjo! A minha vontade era torcer-lhe o pescoço.
Com novo grito, a ave remexeu-se e estendeu para nós o bico, com ar de escárnio. Annable agarrou num torrão de terra e atirou-o ao pavão, exclamando:
- Sai daí, sem vergonha! Soltou uma risada e acrescentou, batendo com o pé numa sepultura: Muitos pulos de susto hão de dar estas almas quando ouvem
aquela algazarra!
Apanhou outro torrão de cima de uma campa e atirou-o à ave, que ergueu vôo e foi adejando pelos terraços.
- Ora repare como aquele estúpido sujou o anjo! bradou o guarda. É tal qual uma mulher: vaidosa, barulhenta o profanadora.
Sentou-se em cima de um túmulo e acendeu o cachimbo - que, dois minutos depois, estava de novo apagado. Nunca, até então, eu vira o guarda tão fora de si.
- A igreja, disse eu, começou a ruir. Isto acontecerá a todas, nesta terra. Não falta muito. E os pavões vão invadir os cemitérios.
- Sim, senhor, disse o guarda, sem olhar para mim.
- Esta pedra está fria, observei, levantando-me.
Ele pôs-se de pé também e esticou os braços, como espreguiçando-se. Escurecera por completo, pois nem se podia contar com a luz mortiça de uma lua cor de cera, lá para o lado do oriente.
- Esplêndida noite, murmurei. Não sente o cheiro das violetas?
- Sim, senhor. E a lua parece uma mulher grávida. Gostava de saber o que lhe entrou pela barriga.
- Você, disse-lhe eu, não espera nada?
- Qual, neste maldito lugar! Meu Deus, sou como uma casa que foi construída e que ninguém habitou. Cairei também aos pedaços.
- Mas ainda está de pé.
Annable riu-se, num tom de amargura.
- Venha sentar-se aqui, pediu-me então.
Conduziu-me a um degrau próximo da porta do lado norte, entre dois bancos, onde estava mais escuro e havia perfeito silêncio. Sentamos, e ele pousou cuidadosamente a espingarda a um canto. Manteve-se calado por algum tempo, a refletir, e por fim exclamou:
- Quer saber a minha vida? Vou contá-la. Fui para Cambridge - meu pai era um grande negociante de gado - mas fiquei órfão enquanto estudava e
não concluí o curso. Convenceram-me então a ser padre, e eu concordei.
"Deram-me o lugar de coadjutor numa aldeia do Leicestershire. Bonito sítio, pouco povoado, com uma igreja antiga e uma boa residência. O meu trabalho não era excessivo e o pároco, filho de um titular, tratava-me bem. Emprestou-me um cavalo e permitiu-me que fosse à caça - e eu recordo sempre de tudo aquilo quando respiro, nas manhãs frescas, o aroma da erva úmida. Foi uma bela vida; divertia-me e ao mesmo tempo cumpria as obrigações do meu cargo.
"Na época das caçadas costumava lá ir uma prima do pároco, Lady Crystabel, fidalga de nascimento. No meu segundo ano de coadjutor, esta senhora apareceu ali no mês de junho. Haviam muito poucos convidados, e ela habituara-se a falar comigo. Eu lia bastante. A dama fingia-se ignorante e infantil, de modo que
me obrigava a dizer bobagens e eu me empolgava na conversa. Também jogávamos tênis, e cavalgávamos juntos e até eu a levava de barco, no rio, manejando os remos. Dizia ela que estávamos num lugar ermo e que podíamos fazer o que quiséssemos. Obrigou-me a usar roupas de flanela e coisas macias. Era uma mulher bonita, franca e despida de preconceitos: maravilhosa, na minha opinião. Encontrava-a de manhã cedo no jardim, quando eu vinha do banho no rio, e ela corava e propunha-me passear em sua companhia. Lembro de que eu costumava enxugar-me na margem mais alta do rio, onde podia ser visto por Lady Crystabel. Eu estava doido por essa mulher -
e ela ainda mais apaixonada por mim.
Certo dia fomos visitar uns subterrâneos no Derbyshire; a pretexto de jogar às escondidas, afastamo-nos ambos do resto do grupo e demoramo-nos de propósito. Os outros supuseram que já nos tínhamos ido embora, e partiram, trancando a porta. Ela então fingiu-se atemorizada e agarrou-se a mim, escondendo a cara no meu peito
e lamentando o que os mais poderiam dizer a respeito daquele incidente. Peguei-lhe as mãos, beijei-a, e tudo acabou em bem. Mais tarde soube - porque ela mo revelou - que a idéia lhe fora sugerida por um mau romance francês, a Vida de um Rapaz Pobre. O rapaz pobre, nessa altura, fui eu. Casamos. Lady Crystabel cedeu-me um rendimento que lhe provinha de uma das suas propriedades. Fomos viver no solar. Minha mulher jamais me perdia de vista. Meu Deus! Éramos um par apaixonado, e ela encarava-me sempre à luz das suas tendências estéticas: considerou-me Cróton, Hércules e não sei quantas estátuas gregas...
Nunca me opus aos seus devaneios. Mas, pouco a pouco, ela foi-se cansado. Ao fim de três anos estava farta de mim. O meu atrativo era este vigor físico. Ainda o conservo. Estendeu-me o braço e obrigou-me a experimentar-lhe o bíceps. Fiquei espantado com a dureza do músculo, que lhe retesava a manga.
- Ah! continuou ele, não sabe o que é o orgulho de possuir um corpo assim. Minha mulher, no entanto, resolvera não ter filhos: não se atreveria a isso, dizia. Eis a origem do primeiro desacordo. Começou a esfriar o entusiasmo. O senhor não calcula a humilhação de uma pessoa como eu, que dominara pela superioridade física. Tentei repreendê-la: ficou simplesmente espantada com a minha audácia! Ainda me lembro desse espanto.
O espiritualismo começara a invadi-la. Houve um poeta que a conquistou. Tornou-se admiradora de Burne-Jones. Ou Waterhouse. Sim, foi Waterhouse. Convenceu-se de que era uma espécia de Lady of Shalott, creio eu. Seja como for, eu não passava, aos seus olhos, de um simples animal. Son boeuf. Tolerei aquilo por mais de um ano - até que um dia me disfarcei com o traje de um dos criados, e fugi.
Segundo parece, fui visto em França, depois na Austrália... embora nunca tivesse saído da Inglaterra. Decidiram por último que eu tinha morrido na floresta. Ela tornou a casar e, para
demonstração real da minha morte, escreveu e publicou no jornal uma notícia necrológica. Aquilo serviria de prevenção a outras damas fidalgas que por acaso se sentissem inclinadas por rapazes pobres.
Agora, essa mulher já morreu. Encontraram O álbum que ela deixou e que estava cheio de fotografias, incluindo uma dos meus tempos de rapaz, onde havia alusão à infelicidade do casamento desigual. Eu, por outro lado, tenho a impressão de que cheguei ao fim da vida. Julguei que seria um desses homens de meia idade, sólidos, resistentes,
e aqui estou aborrecido como aos vinte o seis anos.
Há uma coisa... Tive filhos, uma ninhada deles. Antes de tudo, fui um bom macho: procriei pelo menos. Annable calou-se e ficou olhando para a lua,
que boiava através dos ramos negros de uma árvore.
- Quer dizer que ela morreu... esse pobre pavão, murmurei.
O homem pôs-se de pé, sem deixar de olhar para o céu, e espreguiçou-se. Era um vulto que se impunha, assim de braços estendidos e recortado ao luar.
- Tenho a impressão de que a culpa não foi toda dela, disse ele.
- Era como um pavão branco, sugeri.
Annable riu-se.
- Vou para casa pelo caminho de cima, propôs o guarda. Creio haver qualquer coisa no fundo da mata.
- Está bem, concordei eu um tanto apreensivo.
- Ela era bonita. Murmurou Annable.
Levantei-me e estendi-lhe a mão; logo me arrependi, porém, ao pensar quanto este gesto poderia exprimir comiseração pelo homem. O guarda apertou-me os dedos durante um momento e depois foi-se embora.
Ao sair do cemitério experimentei repentina revolta contra àquelas sepulturas desmanteladas que me embaraçavam os passos. A atmosfera estava sufocante e a sombra das árvores enormes projetava-se de maneira assustadora. Foi com alegria que alcancei a estrada lisa e clara, que descobri as lanternas de uma carruagem e ouvi o som dos cascos dos cavalos que se aproximavam de mim. Depois deles passarem senti-me outra vez isolado.
Sobre a colina a face brilhante da lua parecia equilibrar-se nos ramos mais altos das árvores, - majestosa e próxima e distante ao mesmo tempo. Foi mais tranqüilo que voltei em direção ao caminho que os olmos ladeavam e que recendia tão agradavelmente. Dei um salto e puxei um galho, que encostei ao rosto para gozar o encanto desse contato suave. Gostei de sentir também a carícia dos abetos e de outras árvores que despertavam do sono hibernai e estendiam à minha passagem os seus dedos veludíneos. Só os ramos nus e lisos dos freixos se conservavam austeros como emblema da vida disciplinada. Depois olhei para baixo, para o negrume da vegetação que
rodeava a pedreira e enchia o fundo do vale - e pareceu-me que o mundo, o meu próprio mundo, se tornava de novo estranho para mim.
Quatro ou cinco dias depois de Annable ter conversado comigo no adro daquela igreja, fui procurá-lo outra vez. Era uma manhã de domingo. Que mar verde e ondulante a ramaria das árvores! Pelo chio espalhava-se a graça dealbada das primaveras. Nessa hora a vida que existe latente no mundo principia vibrando na frescura do ar. O fumo das cabanas vai-se erguendo azul ao pé do arvoredo e depois amarelo de encontro ao céu.
Sam apareceu à porta da casa e olhou em volta; depois trepou ao depósito da água para investigar melhor. Sem dúvida que isso não o satisfez, pois o garoto saltou para o chão e correu pela encosta, direto ao bosque. "Está procurando o pai", disse eu com os meus botões, ao mesmo tempo que o seguia através da desolação do prado, esmagando com as botas as hastes dos cardos que ainda restavam e tropeçando nos buracos feitos pelos coelhos. Num abrir e fechar de olhos o pequeno atingiu o muro
que corre ao longo da extremidade da pedreira e deu um pulo por cima dele.
Chegando a esse local fiquei um tanto perplexo: o flanco da pedreira descia, desde a vedação, numa altura de vinte ou trinta pés, cheio de pedras soltas. Olhei em volta: pela encosta abaixo havia uma vereda que vinha dar nesse ponto, e o muro tinha as marcas de pesadas botas. Tornei a olhar para baixo e vi (como é que não reparara nisso?) que as pedras formavam uma espécie de escadaria desigual, como é vulgar encontrar-se nas barreiras do Derbyshire. Reparando melhor, notei que esses
degraus estavam gastos; apesar disso atrevi-me a descer, com muito cuidado, agarrando-me o melhor que pude. Uma vez em baixo, experimentei a satisfação de haver descoberto e utilizado esse processo desconhecido, e admirei a habilidade do guarda que havia acomodado as pedras tão engenhosamente naquele empilhamento irregular.
Na pedreira estava uma temperatura agradável; dir-se-ia que os raios de sol engrossavam ali, suavizando o ambiente. Os montes de rocha devastados cobriam-se de uma profusão de violetas silvestres. O tojo alastrava-se e, entre as pedras, os penachos da tussilagem já se encontravam prateados. A Primavera acabava precisamente de despertar aí, desprendendo os cabelos cintilantes e abrindo os olhos cor de púrpura.
Atravessei a pedreira, descendo para onde o regato corre murmurando uma balada às prímulas e às árvores cobertas de botões. Quando vagueava por ali, deliciado pela frescura do sítio, despertou-me a atenção o barulho de um bater de pedras.
- Que estará fazendo aquele garoto? disse comigo mesmo, pondo-me a caminho para ver se o descobria. Fui até ao outro lado da pedreira: neste lado mais úmido os arbustos sobem pela parede, mais alta do que a outra e também com pedregulhos amontoados. Quando me aproximava ouvi mais nitidamente alguém remexendo as pedras, e a voz de Sam lastimar-se. Estava ele oculto por um ramo de aromeira, onde zumbiam abelhas e donde se exalava um perfume adocicado. Quando o vi comecei a rir da sua figurinha choramingando e puxando com força pedras de uma pilha enorme que caíra de um dos flancos da barreira e que viera misturada de terra e de ramos despedaçados de silva. No muro via-se uma brecha larga. O caso é que o menino trabalhava
ansiosamente, o que me fez correr para lá.
Ouviu-me os passos, ergueu a face vermelha do esforço, em cujo olhar se estampava o terror, e gritou-me com voz aflita:
- Tire-as de cima dele!
O coração bateu-me subitamente no peito com tanta força que eu julguei sufocar: distingui a mão do guarda emergindo das pedras. Sem dizer uma palavra, ajudei-o na retirada dos pedregulhos, até que pude agarrar o braço de Annable. Tentei puxá-lo, mas não consegui.
- Tire-as de cima dele! gemeu Sam, trabalhando com frenesi.
Quando, por fim, arranquei o guarda para fora, vi que estava morto. Sentei-me, trêmulo pelo esforço despendido, e pus-me a olhar para o cadáver: tinha uma ferida enorme num dos lados da cabeça. Sam encostou a cara à do pai e cheirou-a como um cão, a ver se sentia vida nele. Depois olhou para mim.
- Ele não se levanta, disse, com uma vozinha rouca de medo e de inquietação.
Meneei a cabeça, e a criança começou a chorar. Tentou fechar os lábios de Annable, que haviam-se entreaberto com a dor da morte; em seguida,
passou-lhe os dedos em volta dos olhos, que estavam escancarados - e eu notei que Sam tremia
só de tocá-lo.
- Não está dormindo, repare! Tem os olhos abertos!
Era-me impossível suportar a expressão interrogadora do garoto. Agarrei-o, a fim de afastá-lo dali, mas Sam debateu-se, ansioso por se libertar.
- Faça com que ele fique de pé! gritava. E debatia-se com tal fúria que tive de largá-lo.
Correu então para o morto, chamou-o em altas vozes, abanou-lhe os ombros, e acabou por sentar-se no chão - ficando como que hipnotizado pela ferida da cabeça; estendeu o dedo para tocá-la e estremeceu.
- Vamos, disse-lhe eu.
- Que é isto? perguntou ele, apontando para a ferida. Tapei o rosto do cadáver com um lenço de seda.
- Deixe-o dormir sossegado... enquanto eu vou chamar alguém. Seria capaz de ir num pulo ao solar?
Sam abanou a cabeça. Eu bem sabia que ele não sairia dali, de forma que lhe tornei a recomendar que não mexesse no pai e que o deixasse quieto até o meu regresso. Sam seguiu-me com a vista mas não se moveu do seu assento de pedras junto do cadáver - embora eu tivesse a certeza de que ele estava cheio de medo de ficar sozinho.
Corri ao solar; faltou-me a coragem para ir às valas. Pouco tempo depois voltava acompanhado do proprietário e de três trabalhadores. Como eu ia à frente, para indicar o caminho, vi a criança erguer a ponta do lenço a fim de observar a cara do pai e ter a certeza de que ele estava dormindo. Nesse momento deu pela nossa chegada e sobressaltou-se. Descobrimos o rosto de Annable, e então o menino, percebendo a imobilidade, fitou-me com um olhar que nunca mais esquecerei.
- Triste história, murmurou o proprietário. Triste história. Eu desde o princípio lhe disse que as pedras poderiam ruir e ele respondeu-me que tomaria cuidado em fixá-las bem. Nunca se pode estar seguro de nada! E, ainda assim, não foi todo o muro que desmoronou. Uma história muito triste!
Na investigação a que se procedeu ficou estabelecido que a morte fora acidental. Correu, no entanto, o boato de que o guarda havia sido vítima de uma vingança.
Resolveram enterrá-lo no cemitério de Greymede, à sombra das faias. Parece que a viúva quis assim e se não podia negar nada no estado em que ela se encontrava.
Do meu posto de observação, entre as árvores, vi o cortejo descer a encosta da colina, naquela esplêndida manhã de Primavera em que se realizou o enterro. No ar ressoava o canto das cotovias e a terra toda parecia já dilatar-se na concepção do estio. Quando a aragem movia as folhas das aveleiras, o sol infiltrava-se por meio delas
e dir-se-ia que no chão iluminado nasciam novos e pequeninos sóis. Corria por toda a parte um sopro estimulante <- um arrepio igual ao que deve sentir a mulher que concebeu. Certa aromeira, colocada num ponto alto, dava-me a impressão de uma nuvem de ouro ao amanhecer de um dia calmo; em volta zumbiam as abelhas, e esse murmúrio trêmulo, de regozijo, misturava-se ao perfume quente das flores. Os pássaros cruzavam o espaço, exultantes, levando no bico fiozinhos de ervas: mergulhavam na escuridão do bosque e regressavam de novo à atmosfera azul,
num trabalho constante e ruidoso.
Vindo de uma fazenda, lá em baixo, atravessou o campo um rapaz seguido por um cão. Iam para os terrenos baldios onde os rebanhos se moviam como nuvens pardacentas, entre o negrume espinheiro.
Como eu compartilhei o triunfo do tentilhão quando ele passou por mim, rápido, surgindo do silvado! Obtivera alguma coisa preciosa pára a construção do ninho, já prestes a ficar concluído. Os tordos, porém, achei-os insolentes no instante em que ouvi-os gorjeando na sebe. Com que olhar estático e brilhante este pássaro aconchega
os ovos ao peito, aquecendo-os - aqueles ovos tão azuis, cor de turquesa! Mal pude ver uma carriça que se precipitou contra o matagal rasteiro, e em seguida o ar encheu-se de um ruflar de asas, numa agitação pesada. Eram os patos bravos qpe faziam a sua aparição, ondulando como sombras no ar límpido, grasnando, lamentando-se num queixume incessante. Ouvi também os gritos amargurados dos abibes, que voavam em círculos baixos, ora subindo ora descendo, e batiam as largas asas num movimento compassado e triste. De súbito aproximaram-se do solo; em seguida, noutra palpitação de angústia e protesto, elevaram-se de novo, ofertando ao sol o peito branco e lustroso e prosseguindo na sua lamúria desesperada.
Através das sarças, corriam faisões alvoroçados, exibindo as pernas vistosas e procurando abrigo mais seguro na floresta.
Houve então um lamento em resposta aos dos povoncinos, o qual ecoou mais grave e mais forte - gemido que emudeceu todas as aves. No topo da colina surgiram os homens em passo lento, com o velho proprietário marchando à frente do cortejo. Curvados, seis deles conduziam o caixão aos ombros: vinham devagar e cautelosamente, ao peso
do esquife claro e luzídio; seguiam outros seis, perturbados, esperando sua vez de tomar conta da urna. Distinguiam-se os lenços vermelhos atados em volta do pescoço, e as camisas azuis e brancas sob os coletes desafogados. A madeira do ataúde não era polida, mas brilhava ao sol; e os homens que o levavam lembrariam decerto, durante toda a sua vida, do cheiro dessas tábuas de olmo recentemente cortadas.
De novo soou o lamento, vindo do alto da colina. Era a mulher, que seguia mais atrás, gorda, disforme, chorando em altos gritos, com as crianças agarradas às saias, também chorando. Aquele barulho assustava os pássaros e os coelhos, e até os cordeiros fugiam apavorados em procura das respectivas mães. Os abibes é que não se
importavam com isso, e juntavam o seu queixume ao clamor erguido pela viúva e pelos pequenos. Voavam em círculo sobre as pessoas e sobre a urna de madeira clara; eram como sacerdotes nas suas vestes pretas e brancas, mais desgostosos do que esperançados, girando incessantemente, subindo, descendo, gritando sempre numa toada lúgubre e repetindo as últimas notas numa inflexão de desespero.
Por fim, os portadores do caixão desapareceram entre as margens altas; a mulher perdeu-os de vista, e, no entanto, ficou parada, olhando em frente. Sentia-se sozinha, e tinha de regressar para casa...
Descansaram o esquife nos pilares da porteira, e os homens enxugaram o suor que escorria pelas faces e esfregaram os ombros doloridos do peso.
Estavam os outros seis se preparando para levar o ataúde quando se aproximou uma mulher com um jarro e uma caneca azul. Foi o proprietário quem bebeu primeiro, seguindo-se os mais. Entretanto, a mulher recuou e conservou-se afastada do caixão que cheirava a olmo: imóvel, imaginava a figura do homem que ali estava fechado nas trevas, enquanto tudo fora brilhava à luz do sol. Cheia de terror, reteve a respiração e abaixou-se para remexer as folhas das violetas, em busca de flores que ela não
podia ver através das lágrimas.
Conseguindo dominar-se, colheu um punhado de violetas e aspirou-as profundamente, numa ânsia de consolação. Os homens depuseram o jarro e a caneca junto dela, e o proprietário deu ordem de marcha. Mais uma vez puseram o caixão aos ombros. E os ramos de ulmeiro, com seus cachos pendentes de flores rubras, roçaram pela urna de madeira clara, como se murmurassem pesarosos: "Temos tanta pena... tanta pena!" Os renovos cheios de vida inclinavam-se compassivos para confortar o homem que ali ia encerrado às escuras...
"Talvez ele os ouça e durma em paz", pensou ela. Enxugou as lágrimas, pegou no jarro e desceu lentamente na direção do riacho.
Passados momentos pus-me também de pé e encaminhei-me para o moinho, que ficava em baixo, calmo, alegre, com um penacho de fumo azul subindo descuidado para o céu. No outro lado do vale dois cavalos andavam no terreno lavrado. De quando em quando ouvia-se a voz de um homem chamando-os, com tal ressonância que senti desejos de ir atrás dos animais naquele vale imenso, cheio de sol e de esquecimento. Na água, onde havia reflexos de fogo, deslizavam dois cisnes com serena alegria. Já
se fora a tristeza que por ali passara. Observei o cisne, de asas eriçadas e intumescidas, e a esbelta companheira que espreitava sob os ramos pendentes. Ele navegava bem à vista, longe da margem, voltando imperiosamente a cabeça para mim. Fiquei com vontade de arremessar-lhe um punhado de ervas, mas, indolente como estava, em vez disso voltei para o pomar.
Ali, os narcisos erguiam as cabeças e deixavam cair para trás os seus caracóis amarelos. Junto de cada árvore assomavam grupos de flores, algumas em plena maturidade, outras de corola levemente inclinada, num porte modesto e suave, e outras ainda de faces ocultas, saindo dos caules esbeltos. Desejei saber a linguagem dessas flores
e conversar com elas.
Mais em cima, as árvores, com os seus braços erguidos, agitavam a cabeleira ao sol, enfeitando-se de botões alvos e frescos como peitos de sereias.
Comecei a sentir-me mais alegre. Na vereda brilhavam as folhas da tussilagem, rindo em jubilosa companhia; acariciei-lhes as faces aveludadas, ri-me também, e aspirei o perfume das groselhas, desperta recordações da infância.
A casa estava calma, acolhedora; de novo os espectros a tinham invadido, mas esses fantasmas somente vinham gozar o aconchego do lugar, trazendo nos braços o calor do sol e espalhando-o no pó dos quartos sombrios.
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