Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
D E C Â M E R O N
Primeira Parte
Giovanni Boccaccio nasceu em 1313, no mês de Julho, em Certaldo ou, mais provavelmente, em Florença. Após uma infância penosa, desloca-se para Nápoles, para a corte do rei Roberto d”Anjou, de costumes algo devassos. É aí que, renunciando ao comércio e à jurisprudência, pode satisfazer a sua vocação de escritor. Em 1350 regressa a Florença, onde vai compor o Decâmeron, dedicado a todas as mulheres enamoradas. Com ele obtém um sucesso prodigioso. Contudo, a partir de 1354, e talvez sob a influência do seu amigo Petrarca, reflecte sobre os erros da juventude e reage contra a dissolução moral. Já a obra seguinte, Corbaccio, é uma crítica rude às mulheres. Em 21 de Dezembro de 1375 morre em Certaldo.
COMEÇO DO LIVRO CHAMADO “DECÂMERON” (Nota 1) Decâmeron é uma palavra de raiz grega; significa “(livro) das dez jornadas” e foi criada sobre o modelo de Hexâmeron, título comum de várias obras ascéticas medievais (a mais conhecida pertence a Santo Ambrósio), as quais tratavam dos seis dias da criação do mundo. Seguindo o exemplo de Boccaccio, também Margarida de Navarra (séc. XVI) e G. B. Basile (séc. XVII) darão aos seus romanceiros respectivamente o título de Heptâmeron (sete jornadas) e Pentâmeron (cinco jornadas). (Fim da nota) (COGNOMINADO PRÍNCIPE GALEOTTO) (Nota 2) O príncipe Galeoto é o personagem que favorece os amores de Lancelote e Ginevra num famoso romance medieval (Lancelote do Lago), cuja leitura, segundo a narrativa dantesca (Inferno, V, pp. 126 e segs.), impeliu ao pecado Paulo e Francisca. O seu nome depressa começou a significar “intermediário de amor”. (Fim da nota) ONDE ESTÃO CONTIDAS CEM NOVELAS EM DEZ DIAS CONTADAS POR SETE DAMAS E TRÊS MANCEBOS
Coisa humana é haver compaixão dos aflitos (Nota 3) O prólogo começa por apresentar solenemente a obra como o tributo de um dever humano: a compaixão dos “aflitos”. Mas logo se restringe a uma especial categoria de “aflitos” – os homens e sobretudo as mulheres apaixonadas, ganhando leveza e vida na contemplação destes seus leitores ideais. Boccaccio relaciona depois de forma explícita o Decâmeron com o amor de juventude que foi a chama onde ateou toda a sua anterior produção poética, mas ao mesmo tempo separa-se nitidamente dela. Dominado o incêndio, apenas ficaram no seu espírito o calor e a luz: é a hora exacta para a contemplação e para a criação artística. Quem lê o agradecimento ao amor que encerra o prólogo vê já a obra na sua justa luz: assemelha-se a um daqueles quadros onde o navegante, chegado felizmente a bom porto, manda retratar o mar no qual temeu as tempestades, mas em que também conquistou a riqueza, e pendura-o devotamente diante da divindade. (Fim da nota) e, se a qualquer pessoa convém, mais que a todas convém àquelas que, tendo já carecido de conforto, noutrem o encontraram. Entre elas, se alguma vez houve quem precisasse ou lhe foi querido ou já teve o prazer de tal conforto, eu aí me conto. Desde a primeira juventude até aos tempos de hoje ardi, de facto, desmesuradamente em altíssimo e nobre amor que, se o tivesse de narrar, talvez parecesse excelso de mais para a minha baixa condição. E porquanto eu fosse louvado e largamente considerado entre as pessoas sensatas conhecedoras desse amor, não menos ele deixou de trazer-me bem grande mágoa de sofrer. Não, decerto, por crueza da mulher amada, mas pelo fogo excessivo que na mente acendia um mal regrado apetite, o qual, porque não deixasse ficar-me contente em algum razoável limite, muitas vezes me fazia sofrer maior fastídio que o necessário. Em tal sofrimento, grande refrigério me trouxeram as agradáveis conversas dum amigo e as suas louváveis consolações, tanto que tenho firme convicção de que não me encontro morto porque isso aconteceu! Mas prouve Àquele que, por ser infinito, deu como lei incomutável a todas as mundanas coisas o terem fim, que o meu amor, ardente mais que qualquer outro amor, e que não puderam romper ou dobrar nem força de razão, nem força de conselho, nem de evidente vergonha ou de perigo possível, no andar do tempo foi por si mesmo diminuindo, de modo que, no espírito, de si apenas me deixou aquele gosto que usa oferecer a quem demasiado não se mete a navegar em seus mais obscuros abismos. Por isso, onde usava ser doloroso, mandado embora todo o tormento, o sinto conservar-se deleitável. Mas, ainda que a dor tenha findado, nem assim me fugiu a memória dos benefícios já recebidos e dados por aqueles a quem, pela bondade que me concediam, eram pesadas as minhas dores; nem creio que jamais fugirá senão com a morte. E, acreditando eu ser a gratidão sumamente louvável entre as demais virtudes e condenável o seu contrário, a mim próprio propus, a fim de não parecer ingrato, prestar algum alívio dentro do pouco que me é possível e em pagamento do que recebi, agora que posso declarar-me livre, se não aos que me ajudaram e porventura dele não precisam por seu bom senso ou boa fortuna, ao menos àqueles a quem será útil prestar algum alívio. E, ainda que a minha ajuda, ou conforto, se antes quisermos dizer, acabe de ser mui pouca para as necessidades, nem assim me deixa de parecer que depressa há-de ser oferecida onde maior a necessidade se mostre, seja porque é de maior utilidade, seja porque se torna mais estimada a sua posse. E quem é que vai negar que ela muito mais convém às graciosas damas do que aos homens? Tímidas e envergonhadas, elas guardam ocultas nos delicados peitos as amorosas chamas que, bem o sabem quantos as provaram e as provam, possuem muito maior força do que as manifestas. Além disso, restringidas pelas vontades, prazeres e mandos de pais, de mães, de irmãos e de maridos, permanecem a maior parte do tempo fechadas no pequeno círculo dos seus quartos. Sentadas e quase sem que fazer, na mesma hora querendo e não querendo, dentro de si revolvem pensamentos vários que nem sempre podem ser alegres. Se, por causa desses pensamentos, alguma melancolia penetra nas suas almas movida por ardente desejo, nelas é natural que demore com profundo sofrimento se novos pensamentos a não removerem. Além de que as mulheres são muito menos fortes no suportar do que os homens e, como abertamente se pode ver, não acontece o mesmo com os homens enamorados. A eles, se alguma melancolia ou desgosto de pensamentos os afligir, logo surgem muitas formas de aliviar ou vencer a dor. Querendo, não lhes falta passear, ouvir e ver muitas coisas, ir aos pássaros, caçar ou pescar, cavalgar, jogar e mercanciar. Com estas ocupações pode cada um chamar a si o ânimo, no todo ou em parte, afastando-o do fastidioso pensamento, ao menos durante o espaço de tempo bastante ou para que surja uma consolação ou para que o sofrimento se atenue.
Portanto, para que de meu lado se dê, ao menos em parte, remédio ao erro da fortuna (a qual onde menor era a força, como vemos nas delicadas damas, mais avarenta de amparo se mostrou) e para socorro e abrigo daquelas que amam (pois às outras bastam a agulha, o fuso e a dobadoura), quero contar cem novelas (ou fábulas, parábolas, histórias, conforme queiramos dizer) que foram narradas durante dez dias por uma honesta companhia de sete damas e três moços, agrupada durante o pestífero tempo da passada mortandade, além de algumas canções cantadas pelas mesmas damas para divertimento de todos. Nestas novelas encontraremos histórias de amor agradáveis e escabrosas e outros afortunados acontecimentos, passados tanto nos tempos actuais como nos antigos. As mulheres que lerem estas histórias igualmente poderão colher prazer das coisas divertidas que elas mostram e útil conselho para conhecer o que é de evitar e, da mesma forma, de seguir. Não creio que tais coisas intervenham sem pensamento de fastídio. Se tal acontecer – e queira Deus que sim! –, rendam elas graças ao amor, o qual, ao libertar-me dos seus laços, me concedeu que pudesse dar atenção aos seus prazeres.
COMEÇA A PRIMEIRA JORNADA DO “DECÂMERON”, NA QUAL, DEPOIS DE O AUTOR HAVER DEMONSTRADO POR QUAL RAZÃO SE REUNIRAM A CONVERSAR SOB O REINADO DE PAMPÍNEA AS PESSOAS QUE DEPRESSA VÃO SER APRESENTADAS, SE FALA DAQUILO QUE A CADA QUAL MAIS AGRADA (Nota 1) A introdução abre-se com um quadro de morte retirado da realidade – Florença empestada, fétido morticínio em que perece, juntamente com os homens, “a veneranda autoridade tanto das leis divinas como das humanas” – e conclui com um quadro de vida retirado do sonho: o ermo campestre onde dez criaturas eleitas transcorrem os seus dias numa senhoril e bem ordenada alegria. A passagem de um quadro para outro é constituída pelo colóquio em Santa Maria Novella, onde uma forte vontade de vida (Pampínea) vence a morte apenas com as armas da sensatez, inclinando-se perante as exigências da ordem (discurso de Filomena), mas defendendo a liberdade contra as insídias dos escrúpulos (discurso de Neífile). A peste, que oferece artisticamente o ponto de partida e moralmente a justificação para o conteúdo excepcional da obra, é descrita conforme a verdade histórica. O seu tom austero, atento e quase científico, afasta-se menos do tom das célebres descrições da peste ateniense de 430 a. C. contidas nas obras de Tucídides e de Lucrécio – ambas desconhecidas para Boccaccio – do que daquele tom permeado de cristã piedade que Manzoni nos dá da peste milanesa de 1630. (Fim da nota)
Sempre que, pensando para mim, ó graciosíssimas senhoras, considero como sois todas naturalmente compassivas, logo reconheço que a presente obra, na vossa opinião, terá um grave e fastidioso começo, tão dolorosa é a recordação da pestífera mortandade já passada para todos os que a viram ou de outra forma a conheceram em excesso nociva e lastimosa. Essa recordação, a traz no frontispício a minha obra, mas não quero que isso vos cause medo de continuar a leitura, como se devêsseis continuar a ler sempre no meio de suspiros e de lágrimas. Seja para vós este horrendo princípio como para os viajantes uma montanha áspera e íngreme, junto da qual se encontra uma lindíssima e aprazível planura, que tanto mais lhes agrade quanto maior a dureza da subida e da descida. Assim como a extrema alegria atinge a dor, também as misérias acabam quando a alegria aparece. A este breve desagrado (chamo-lhe breve, porquanto em poucas linhas se contém) seguir-se-á depressa a doçura e o prazer que antes vos prometi e que este prólogo não vos deixaria esperar se, porventura, o não houvesse dito. Em verdade, se honestamente vos pudesse conduzir até ao que desejo por outra via que não por tão agreste vereda como esta, de boa vontade o haveria feito. Mas como sem esta evocação não podia explicar o motivo por que aconteceram as coisas que seguidamente podem ler-se, sou levado a escrever como que movido por necessidade.
Haviam os anos da frutífera Encarnação do Filho de Deus (Nota 2) No tempo de Boccaccio, o ano não começava em todo o lado no dia 1 de Janeiro (festa da Circuncisão). Havia sítios onde começava a 25 de Dezembro (festa do Natal) e noutros, como em Florença, a 25 de Março (festa da Encarnação). (Fim da nota) chegado ao número de 1348 quando à egrégia cidade de Florença, nobilíssima mais que todas as cidades de Itália, chegou a mortífera pestilência. Fosse ela obra dos corpos superiores (Nota 3) Por influência dos astros. (Fim da nota), ou, por nossas iníquas obras, enviada para nossa correcção sobre os mortais pela justa ira de Deus, quis a desgraça que ela se estendesse até ao Ocidente alguns anos depois de haver começado nas regiões orientais, roubando um incontável número de vidas e, sem detença, alastrando-se de terra para terra. De nada valeu qualquer juízo ou providência: nem que oficiais especialmente preparados limpassem a cidade das suas muitas imundícies, nem que se proibisse a entrada de qualquer enfermo, nem os inúmeros conselhos dados para a conservação da sanidade, nem mesmo as súplicas a Deus feitas vezes sem conto pelas pessoas devotas, organizando procissões ou de outras maneiras. Quase no princípio da Primavera do referido ano, a peste começou a manifestar os seus efeitos dolorosos duma forma horrível e espectacular. Como acontecera no Oriente, quando a alguém o sangue corria do nariz, era manifesto sinal de morte inevitável. No começo da epidemia, nasciam nas axilas ou nas virilhas, tanto aos homens como às mulheres, certos inchaços, alguns dos quais cresciam como vulgar maçã, outros como ovos, uns mais e outros menos, chamando-lhes o vulgo “bubões”. Passado pouco tempo, o dito bubão começou a nascer e a crescer indiferentemente por todo o resto do corpo. Em seguida, a qualidade da moléstia começou a transformar-se em manchas escuras ou lívidas, as quais apareciam a muita gente nos braços, nas coxas e por todas as partes do corpo, grandes e dispersas nuns casos, pequenas e muito chegadas noutros casos. E, como o bubão fora de início e continuava a ser um infalível sinal de morte a aproximar-se, assim também o eram as manchas naqueles em que elas apareciam. Para remédio destas enfermidades, não parecia que valesse ou desse resultado nem conselho de médico, nem virtude de qualquer medicamento. Ao contrário, fosse porque a natureza do mal não tinha cura, fosse porque a ignorância dos receitadores ignoravam a natureza do mal e, por conseguinte, não acertavam no devido tratamento, não só eram poucos os que se curavam, como quase todos morriam até ao terceiro dia depois de aparecerem os referidos sinais, uns mais cedo, outros menos, quase todos sem qualquer febre ou outro acidente. Entretanto, além dos que eram formados, tornara-se imenso o número de curandeiros, homens e mulheres que nunca perceberam nada de medicina. A epidemia ganhou maior força por se transmitir rapidamente dos enfermos às pessoas sãs, tal como o fogo se ateia às coisas secas ou oleosas quando se chegam muito a ele. O mal foi ainda mais longe: não era só o falar e o conviver com os enfermos que transmitia às pessoas sãs a doença ou a causa da morte comum, mas também o tocar nas roupas ou qualquer outro objecto que os enfermos tivessem tocado ou utilizado parecia bastante para pegar a enfermidade a quem lhes tocasse.
Espantosa coisa é o que vos devo contar. Se a não tivessem visto os meus olhos e os de muitos, dificilmente ousaria acreditar e muito menos escrever, ainda que o escutasse de pessoa fidedigna. Digo-vos que a qualidade da peste era tão eficaz em pegar-se de um para outro que não só ia de homem para homem como, muito mais, largas vezes foi bem visível passar-se o seguinte: tendo-se lançado para a via pública os farrapos dum pobre homem morto de peste, chegaram-se a eles dois porcos, e como usam fazer, primeiro afocinharam-nos bastante e depois pegaram nos trapos com os dentes e sacudiram-nos com força. Passado um momento, depois dum breve rodopio, num ápice caíram por terra sobre os farrapos por desgraça arrastados, mortos como se houvessem tomado veneno. Destes e de muitos outros factos semelhantes ou ainda mais graves nasceram variados medos e imaginações nos que permaneciam vivos e quase toda a gente chegava a uma conclusão bastante cruel: tinham asco aos enfermos e aos seus haveres e fugiam deles. Praticando assim, julgava cada qual estar a conseguir saúde para si mesmo. Havia pessoas que pensavam ser útil para resistir a tão completo desastre uma vida moderada e a fuga de tudo o que fosse supérfluo. Formando-se em grupo, viviam separadas de todas as outras pessoas, recolhendo-se e fechando-se nas casas onde não havia nenhum enfermo. Para viverem melhor, serviam-se com moderação extrema de delicadíssimos alimentos e de óptimos vinhos, evitavam toda a luxúria, não permitiam que lhes falasse ninguém de fora, nem queriam saber notícias de mortos ou de enfermos, entretendo-se com a música e os prazeres que era possível ter. Outros, guiados por opinião contrária, afirmavam ser remédio seguro contra tanto mal beber com fartura, gozar e andar pelas ruas cantando e folgando, dar satisfação aos desejos com tudo o que fosse possível, rir e mofar dos acontecimentos. E assim como afirmavam, assim punham em prática o mais que podiam. Noite e dia, andavam de taberna em taberna, bebiam sem conta nem medida, e bem pior era o que praticavam nas casas alheias, mal sentiam haver dentro delas coisas que lhes agradassem ou os divertissem. E podiam fazê-lo com todo o descaramento porque, como se já não tivessem mais tempo para viver, todas as pessoas abandonavam os seus haveres como a si mesmas se abandonavam. Desta forma, a maior parte das casas tornara-se de domínio comum e assim as utilizavam os estranhos quando lhes apetecia, como se fossem os próprios donos a servirem-se delas. E com todo este brutal comportamento, iam sempre evitando a todo o custo os empestados. A reverenda autoridade das leis da nossa cidade, tanto as divinas como as humanas, achava-se em grande aflição e miséria como se estivesse arruinada e dissolvida para os seus ministros e executores, pois estes, como os restantes homens, se encontravam todos ou mortos, ou enfermos ou tão desprovidos de auxiliares que não conseguiam exercer qualquer ofício. Por isso mesmo, era lícito a qualquer pessoa actuar como bem lhe apetecesse.
Muitos outros mantinham uma via intermédia entre os dois caminhos acima citados. Sem se coibirem nas comidas, como faziam os primeiros, nem se alargando, como os segundos, nas bebidas e noutras depravações, serviam-se das coisas na medida bastante segundo os desejos e andavam pelas ruas, não ficando fechados em casa, trazendo nas mãos, estes, flores, aqueles, ervas aromáticas, aqueloutros, diferentes tipos de especiarias, levando-as com frequência ao nariz por julgarem ser boa medida confortar o cérebro com tais perfumes, pois que toda a atmosfera parecia repelente, envolta com o fedor dos cadáveres, das moléstias e dos medicamentos. Alguns eram guiados por um sentimento mais cruel, mas porventura mais seguro, afirmando não existir nenhum outro remédio contra a peste que fosse melhor e mais eficaz do que fugir da sua presença. Movidos por tal ideia e não cuidando de mais nada senão de si mesmos, muitos homens e mulheres abandonaram a cidade, suas casas, terras, famílias e haveres e demandaram outras regiões ou, pelo menos, os arredores. Era como se a ira de Deus, ao castigar a iniquidade dos homens com a peste, não os perseguisse até onde eles fossem, mas, comovida, apenas tencionasse oprimir os que se encontravam dentro dos muros da cidade; ou como se quisesse que ninguém deveria permanecer na cidade e fosse chegada para esta a última hora.
Embora nem todos morressem, entre os que tinham tão variadas opiniões, nem assim todos eles se conseguiam salvar. Antes, muitos dos que seguiam tais opiniões tombavam enfermos fosse em que lugar fosse. E como, quanto à saúde, eles mesmos tinham dado exemplo aos que continuavam sãos, acabavam definhando no abandono de toda a gente. E voltemos a lembrar que os cidadãos se enojavam uns dos outros, que ninguém se preocupava com os vizinhos e que os familiares raras vezes ou nunca se visitavam, mesmo assim de longe. Com tanto pavor penetrara esta atribulação nos corações dos homens e das mulheres que até um irmão abandonava o outro irmão, o tio, o sobrinho, a irmã, o irmão e, frequentemente, a esposa, o próprio marido. E, mais grave e quase inacreditável, até os pais e as mães tinham nojo de visitar e de servir os filhos, como se eles não lhes pertencessem. Desta forma, à incalculável multidão de homens e mulheres que tombavam doentes outro auxílio não restava que não fosse ou a caridade dos amigos, aliás poucos, ou a cobiça dos criados, que só prestavam serviço seduzidos por graúdos salários e de maus modos. Mesmo assim, eles não eram muitos e a maior parte não tinha prática de tais serviços, quase de mais nada servindo senão para levar aos enfermos o que eles pediam e de os olhar quando estavam a morrer. Aliás, por trabalharem em tal serviço, pelo lucro muitas vezes se perdiam a si mesmos. Deste abandono dos enfermos por vizinhos, parentes e amigos e da escassez de criados resultou um costume de que jamais se ouvira falar anteriormente. Por muito elegante ou formosa ou nobre que fosse uma mulher, ao cair doente, nenhuma se preocupava de ser servida por um homem, fosse quem fosse, jovem ou outro. E sem qualquer vergonha lhe mostrava todas as partes do corpo exactamente como se o fizesse a uma mulher, bastando que o pedisse a necessidade da sua moléstia. Para as que vieram depois a curar-se, isto haverá sido causa, nos tempos futuros, de uma menor honestidade. De tudo isto resultou a morte de muitas pessoas que teriam, porventura, sobrevivido se tivessem sido ajudadas. Quer pela falta dos cuidados oportunos que os enfermos não podiam ter, quer pela violência da peste, era tão grande a multidão dos que iam morrendo dia e noite que era espantoso o ouvir contar estas coisas e, mais ainda, vê-las com os próprios olhos. Nasceram assim, como que por fatalidade, entre os que continuavam vivos, certas práticas opostas aos anteriores costumes dos cidadãos. Era habitual* como ainda hoje vemos ser, as mulheres da família ou as vizinhas se reunirem na casa do defunto e chorassem juntamente com as que eram mais chegadas. Por outro lado, os vizinhos e muitos outros cidadãos juntavam-se em frente da casa do defunto com a família mais próxima. Segundo a categoria do morto, vinha depois a clerezia e os da sua classe levavam-no aos ombros, com funérea cerimónia de círios e de cânticos, até à igreja que o finado escolhera antes da morte. Logo que a fúria da peste começou a aumentar, tais práticas acabaram completamente ou na maior parte surgiram em seu lugar outras práticas novas. Não só as pessoas morriam sem terem muitas mulheres à sua roda, como até eram bastantes as que faleciam sem assistência. Pouquíssimos eram os mortos a quem se concediam as piedosas lamentações e as lágrimas amargas dos familiares; antes, em vez disso, o que muitas vezes havia era risos, motejos e divertidas reuniões. Preterindo em grande parte a piedade feminina em favor da própria saúde, as mulheres aprenderam este costume com toda a naturalidade. Raro eram aqueles cujos corpos fossem acompanhados à igreja por mais de dez ou doze vizinhos. E não lhes pegavam no caixão os cidadãos probos e considerados, mas uma espécie de gatos-pingados oriundos da plebe, os quais se intitulavam cangalheiros e prestavam tais serviços a troco de dinheiro, levando com passos apressados o caixão, não para a igreja escolhida pelo defunto antes de morrer, mas quase sempre para a igreja que ficava mais perto, atrás de uns quatro ou seis clérigos, com poucas velas ou até sem nenhuma. Também os clérigos, com a ajuda dos referidos cangalheiros, sem se demorarem em ofícios demasiado longos e solenes, metiam o corpo na primeira sepultura que encontrassem desocupada. O tratamento de gente humilde e, porventura, de grande parte da classe média revestia-se de miséria muito maior. De facto, retida nas suas casas ou por esperança ou por pobreza, não se afastando para longe, a maior parte dessa gente caía enferma aos milhares em cada dia e, sem ninguém que os servisse ou os ajudasse, todos morriam sem qualquer salvação. Eram bastantes os que morriam, dia e noite, na via pública. E muitos outros, finando-se nas suas casas, os vizinhos só se davam conta de que tinham morrido pelo fedor dos seus corpos em corrupção. Tudo estava cheio destes e de outros corpos que iam morrendo por toda a parte. Os vizinhos agiam quase sempre da mesma forma, movidos, não menos pelo receio de que a corrupção dos cadáveres os lesasse, do que pela caridade devida aos defuntos. Sozinhos ou com a ajuda de alguns carregadores, quando os encontravam, tiravam para fora das casas os corpos dos já falecidos e colocavam-nos à frente das portas, onde, especialmente de manhã, quem por ali andasse poderia ver um imenso número de cadáveres. Mandavam-se então vir caixões e, à falta destes, chegava-se a colocar alguns corpos sobre tábuas. Mais do que um caixão teve de servir para levar dois ou três ao mesmo tempo, tendo sido mais que uma e podendo contar-se por muitas as vezes em que um caixão continha a mulher e o marido, dois ou três irmãos, o pai e o filho ou outros casos semelhantes. E foram sem conto as vezes em que, indo dois padres com uma cruz no enterro de alguém, se colocavam atrás mais três ou quatro caixões, levados pelos carregadores. Quando os padres supunham ter um morto para sepultar, encontravam seis, oito, por vezes mais. Nem estes mortos eram venerados por qualquer lágrima, círio ou acompanhamento. Ao contrário, chegaram as coisas a tal ponto que se cuidava tanto dos homens que faleciam como hoje se cuidaria de cabras. Assim, claramente se viu que, enquanto o curso normal das coisas não conseguira, através de menores desventuras, ensinar nem sequer aos sábios como é dever resignar-se com a morte, agora a grandeza dos males tornava os próprios homens simples conhecedores e despreocupados com a morte.
Como não bastasse a terra sagrada para sepultura da grande multidão de cadáveres que, todos os dias e a quase toda a hora, eram conduzidos a todas as igrejas e como se procurasse de todos os modos dar a cada um o lugar conveniente segundo o antigo costume, uma vez que tudo se encontrava cheio, abriam-se nos cemitérios das igrejas valas muito grandes para dentro das quais eram lançados às centenas os recém-chegados. Arrumados nessas valas como as mercadorias nos barcos, camada por camada, cobriam-nos com pouca terra até se atingir o cimo da vala.
Para não continuarmos à procura de cada particularidade das passadas misérias sofridas pela cidade, apenas digo que o tão adverso tempo percorrido por ela não deixou em coisa nenhuma mais poupada a província circundante. Sem falar dos castelos, que, na sua pequenez, eram semelhantes na cidade, nas aldeias dispersas e nos campos: os míseros e pobres trabalhadores, juntamente com as suas famílias, morriam como animais, sem qualquer trabalho de médico ou ajuda de criados, nas estradas, nos campos de cultivo e nas casas, dia e noite indiferentemente. Por tal motivo, tornando-se lascivos nos costumes como a gente da cidade, não cuidavam de nenhum dos seus haveres e assuntos. Ao contrário, todos eles, como se ficassem à espera do dia em que veriam a morte vir-lhes ao encontro, esforçavam-se com todo o empenho, não em cultivar os futuros frutos dos animais, das terras e dos seus passados labores, mas em consumir os que se achavam presentes. Assim aconteceu que os bois, os burros, as ovelhas, as cabras, os porcos, as galinhas, os próprios cães fidelíssimos aos homens, expulsos das suas casas, se espalhavam como lhes apetecia pelos campos, onde continuavam abandonadas as searas ainda não ceifadas, nem sequer mondadas. E muitos desses animais, como se racionais fossem, havendo pastado livremente durante o dia, recolhiam à noite aos seus abrigos, saciados e sem qualquer regimento de pastor.
Deixando agora o campo e voltando à cidade, que mais se pode dizer senão que tamanha e tal foi a crueldade do Céu, e porventura em parte a dos homens, que desde Março até Julho seguinte, pela violência da pestífera enfermidade e por serem mal assistidos ou abandonados nas suas necessidades, em consequência do medo que sentiam os sãos, a mais de 100 000 criaturas humanas dentro dos muros da cidade de Florença foi arrebatada a vida, não se imaginando porventura, antes do mortífero desastre, que na cidade houvesse tanta gente! Oh!, quantos grandes palácios, quantas belas casas, quantas nobres residências outrora cheias de criados, de senhores e damas viram esvaziar--se até ao mais baixo dos servos! Oh!, quantas memoráveis estirpes, quantas enormes heranças, quantas famosas riquezas se viram ficar sem legítimo sucessor! Quantos valorosos homens, quantas belas mulheres, quantos alegres jovens, aos quais, não um qualquer, mas Galeno, Hipócrates e Esculápio (Nota 4) Galeno e Hipócrates são médicos gregos famosos, respectivamente, nos séculos II e V a. C; Esculápio é o deus grego da medicina. (Fim da nota) teriam considerado de perfeita saúde, almoçaram de manhã juntamente com os pais, os companheiros e os amigos, e que depois, ao cair da noite, cearam no outro mundo juntamente com os seus antepassados!
A mim próprio repugna continuar a envolver-me tanto no meio de tantas misérias. Por isso, resolvo pôr de lado agora aqueles aspectos que justamente me possam causar aversão e apenas afirmo que, encontrando-se deste modo quase vazia de habitantes a nossa cidade, aconteceu, como ouvi mais tarde a pessoa fidedigna, que numa terça-feira de manhã, na venerável Igreja de Santa Maria Novella, quando não se encontrava ali mais ninguém e depois de ouvirem os ofícios divinos, em trajes de luto como exigia tão infausto período, se encontraram sete donzelas, todas unidas umas às outras por amizade, vizinhança ou parentesco. Nenhuma havia passado os 28 anos nem tinha menos de 18; todas eram cultas, de sangue nobre, belas de aspecto e ornadas de bons costumes e de graciosa honestidade. Eu diria os seus verdadeiros nomes se uma justa razão me não impedisse de os declarar: não desejo que, sendo contados e ouvidos a seu respeito os factos que vou narrar, possa alguma delas passar por vergonha no futuro. As leis são hoje bastante rigorosas em relação ao prazer, mas nessa altura, pelos motivos acima apontados, eram muitíssimo largas não apenas para a idade delas, mas até para idades mais do que maduras. Também não quero dar azo a que os invejosos, prontos para morder em qualquer vida merecedora de elogio, diminuam nalgum acto a honestidade das nobres damas com ditos alarves. Mas, para que logo se possa compreender sem nenhuma confusão o que diz cada uma delas, tenciono chamá-las por nomes que, no todo ou em parte, se adaptam às qualidades de cada uma. À primeira, a que tinha mais idade, daremos o nome de Pampínea, à segunda, Fiammetta, Filomena, à terceira, e à quarta, Emília. À quinta chamaremos Lauretta, à sexta, Neífile, e à última não sem razão daremos o nome de Elisa (Nota 5) Um dos meios de que Boccaccio, coerente com a sua técnica, se serve para nos levar a crer na existência real do seu grupo é a obscuridade das alusões referentes aos seus componentes. Parece brincar com eles, descobrindo-os no meio do público mais vasto a que está falando. A “razão” dos pseudónimos deve buscar-se em parte em recordações autobiográficas e em parte num simbolismo amoroso apoiado em etimologias por vezes incertas ou inexactas. Pampínea significa “vicejante”, “rica de pâmpanos” e é um nome que o poeta já usara na juventude para indicar uma mulher amada; Fiammetta seria Maria de Aquino; Filomena poderia ser “a cantora” (de filomela = rouxinol) ou talvez “a amada”; Emília, a “aduladora”, é uma heroína da Teseida; Lauretta será uma alusão à Laura e à poesia de Petrarca; Neífile significaria “a adolescente amorosa”; Elisa, “a abandonada”, é um segundo nome de Dídone na Eneida. (Fim da nota).
Não foram conduzidas por qualquer intenção, mas pelo acaso que elas se encontraram reunidas numa das partes da igreja, sentadas como que em roda. Depois de muitos suspiros, parando a recitação dos padre-nossos, começaram a discorrer entre si muitas e variadas coisas sobre as condições da época. Algum tempo decorrido; calando-se as damas, assim começou a falar Pampínea:
“Minhas queridas damas, deveis ter ouvido muitas vezes, tal como eu, que não ofende ninguém quem honestamente se serve da sua razão. E natural razão é que todo aquele que nasce neste mundo ajude, conserve e defenda quanto lhe for possível a sua vida, coisa tão aceitável que já algumas vezes aconteceu, para se conservar a vida, dar a morte a homens sem se cometer nenhuma culpa. Se isto concedem as leis, cuja preocupação é que todo o ser mortal possa viver bem, muito mais e sem ofensa de ninguém nos cabe, a nós e a qualquer pessoa, tomar os remédios que conseguirmos para conservação das nossas vidas! Todas as vezes que reparo bem para o que costumamos fazer, esta manhã e todas as manhãs passadas, e pensando quantas têm sido e o que valem as nossas conversas, compreendo, e também vós podeis compreender, como cada uma de nós duvida de si mesma. Disto não me maravilho eu nada, mas já muito me maravilho, certa de que todas nós temos sentimentos femininos, de não procurarmos para nós alguma compensação daquilo que justamente todas receamos. Parece-me continuarmos aqui apenas como se quiséssemos ou devêssemos ser testemunhas de quantos cadáveres são levados para a sepultura, ou ver se os frades da igreja, cujo número está reduzido a quase nada, cantam os ofícios às horas certas, ou para mostrar, a quem aconteça aparecer, nos nossos vestidos, quais e quantas são as nossas misérias. Se sairmos da igreja, por todo o lado vemos serem transportados cadáveres ou enfermos; ou vemos os criminosos, que a autoridade das leis públicas já condenou ao exílio, rindo-se das mesmas leis por saberem mortos ou enfermos os seus executores e percorrendo a cidade com insolentes violências; ou a escória da urbe, embriagada com o nosso sangue, designarem-se cangalheiros e, para nossa humilhação, andarem cavalgando e correndo por toda a parte, insultando as nossas desditas com escabrosas canções. Não ouvimos outra coisa senão que “este e aquele morreram” e “aqueloutros estão a morrer”. Se ainda houvesse quem chorasse os mortos, ouviríamos por todo o lado dolorosos lamentos. Se voltarmos para as nossas casas, não sei se vos acontece o mesmo que a mim: não encontrando da numerosa criadagem senão a minha aia, encho-me de medo e sinto todos os meus cabelos em pé. Para onde quer que vá ou me deixe estar, parece-me que vejo a sombra dos que faleceram, não com o rosto que eu lhes conhecia, mas com um aspecto horrível que lhes veio recentemente não sei de onde, e me causa pavor.
“Por todas estas razões, parece-me errado ficarmos aqui na igreja, lá fora ou em casa, tanto mais quanto suponho que mais ninguém, possuidor de algum poder e de sítios para onde ir como nós possuímos, tenha ficado cá, além de nós. Se porventura alguns continuam, tenho ouvido dizer e muitas vezes vi que esses fazem tudo o que lhes apetece sem qualquer distinção entre acções honestas e desonestas, bastando que o desejo os solicite, sozinhos ou acompanhados, de dia ou de noite. E não são apenas as pessoas seculares, mas até os que vivem enclausurados nos conventos, convencidos estes de poderem fazer o mesmo que os outros fazem e sem inconveniência. Quebradas as leis da obediência e entregues aos prazeres carnais, tornam-se pessoas lascivas e corruptas, supondo salvar desse modo a vida. Se assim é, como vemos manifestamente ser, que fazemos nós aqui? Que esperamos? Que sonhamos? Porque havemos de ser mais preguiçosas e lentas quanto à nossa salvação do que todos os restantes cidadãos? Julgar-nos-emos nós de menor valia que todas as outras? Ou acreditamos que temos a vida ligada ao nosso corpo com laços mais fortes que os dos outros, não havendo por isso de cuidar de que haja alguma coisa com força bastante para a ferir? Estamos erradas, iludidas, e que estultícia a nossa se assim acreditarmos! Veremos uma prova bem clara do que digo sempre que nos quisermos lembrar de quantos e quais os jovens e as damas vencidas por esta peste cruel. Portanto, para que não tombemos, levadas pela repugnância ou pelo descuido, naquilo de que porventura podemos salvar-nos de algum modo se quisermos, não sei se estais de acordo com o que me parece: acho muitíssimo bem que, sendo nós quem somos e a exemplo do que muito antes de nós fizeram e fazem, nos fôssemos embora desta terra; que, fugindo aos depravados exemplos dos outros, como à morte, fôssemos viver honestamente nas nossas casas de campo, que em tão grande quantidade cada uma de nós possui, e nelas gozássemos de quanta festa, de quanta alegria, de quanto prazer nos fosse possível, sem nunca ultrapassar a voz da razão. Lá ouvem-se cantar os passarinhos, olham-se os outeiros e as planícies verdejantes, os campos cobertos de searas, que mais parecem o mar ondulado, as árvores de mil variedades. O Céu aparece-nos mais aberto e, mesmo quando amuado, nunca nos recusa as suas eternas belezas, muito mais agradáveis de ver do que as paredes vazias da nossa cidade. Além disso, é muito mais fresco o ar, há maior abundância das coisas que nos tempos actuais são necessárias para viver e é menor o número de aborrecimentos. Ainda que lá morram os camponeses tanto como aqui os cidadãos, o desagrado é tanto menor quanto mais dispersos do que na cidade estão as casas e os seus habitantes. Por outro lado, se bem vejo, não somos nós que abandonamos alguém, antes se pode dizer com verdade sermos até nós as abandonadas, pois que os nossos nos deixaram sozinhas em tão grande sofrimento como se não lhes pertencêssemos, ou porque morreram ou porque fugiram da morte. Nenhuma censura pode, portanto, cair sobre essa decisão. Antes, se a não tomarmos, podem sobrevir a dor, a angústia e porventura a morte. Assim, se estiverdes de acordo, julgo que o melhor que devemos fazer é reunir as nossas criadas e abalarmos levando as coisas que forem necessárias. Hoje neste lugar, amanhã naquele, aproveitaremos toda a alegria e divertimento que o tempo actual nos possa oferecer, assim deste modo continuando até que vejamos, se antes não formos alcançadas pela morte, que fim o Céu reserva para estes acontecimentos. Recordo-vos que não é menos inconveniente para nós se honestamente partirmos do que para grande parte das outras desonestamente continuarem.”
Depois de ouvir Pampínea, as outras mulheres não só elogiaram o seu conselho como também, desejosas de o seguir, logo começaram entre si a combinar os pormenores de o pôr em prática, como se, levantando-se dos bancos, logo se pusessem a caminho. Mas Filomena, que era extremamente ponderada, disse: “Senhoras, ainda que seja muito bem pensado o que Pampínea acaba de dizer, nem assim mesmo o devemos fazer de corrida, como parece que desejais fazer. Recordai-vos de que somos todas mulheres e nenhuma de nós é tão criança que não possa compreender qual a sensatez das mulheres reunidas e o modo como elas sabem governar-se sem a providência de algum homem. Somos inconstantes, quezilentas, desconfiadas, pusilânimes e medrosas. Por tudo isto, tenho dúvidas sérias de que esta companhia não se dissolva muito depressa e dum modo menos honroso que o aconselhável se não tomarmos outra governação que não seja a nossa. É bem que tomemos providências antes de começarmos.” Declarou, então, Elisa: “Realmente, os homens são a cabeça das mulheres e, sem as ordens deles, raras vezes algum trabalho nosso alcança um fim louvável. Mas onde poderemos nós encontrar esses homens? Cada uma de nós sabe que a maior parte dos seus estão mortos. E os que ainda estão vivos, divididos em grupos, estes por um lado, aqueles por outro, sem sabermos por onde, andam todos a fugir ao mesmo de que nós procuramos fugir. Pedirmos a estranhos não parece conveniente. Por isso, convém descobrir forma de nos organizarmos, a fim de não nos perseguirem nem aborrecimento nem escândalo para onde quer que formos, por prazer ou por descanso.”
Estavam assim discorrendo as damas entre si, quando eis que entraram na igreja três jovens, mas não tanto que o mais novo deles não tivesse pelo menos 25 anos de idade. Mas nem a crueldade do tempo, nem a perda de amigos e de parentes, nem o receio sobre si mesmos apagara neles o amor ou sequer o arrefecera. Um chamava-se Pânfilo, Filóstrato, o segundo, e Dioneu, o último (Nota 6) Os três componentes masculinos do grupo, que possuem consistência e personalidade maiores do que os componentes femininos, aludem a várias posições que o amor pode assumir no homem e também eles se relacionam com o passado de Boccaccio. Pânfilo (“todo amor”) é o nome com que Boccaccio se cantou a si mesmo como ditoso amante de Fiammetta; Filóstrato (“o vencido de amor”) é o infeliz protagonista do poema homónimo; Dioneu (“o luxurioso”) é um nome que deriva de Dione, mãe de Vénus, e Boccaccio chamara-se a si próprio numa carta de juventude spurcíssimus Dyoneus (“depravadíssimo Dioneu”). (Fim da nota), todos eles simpáticos e educados. Para suprema consolação dos três, andavam eles, no meio de tamanha confusão de acontecimentos, em busca das suas damas, querendo a ventura que todas as três se encontrassem entre as referidas sete, além de algumas das outras serem de famílias próximas de um ou outro dos rapazes. Ainda os olhos dos moços as não haviam descoberto, já os tinham visto elas. E logo afirmou Pampínea com um sorriso: “Logo a fortuna nos favorece de princípio, vindo pôr diante de nós sensatos e valentes jovens, que de boa vontade serão nossos guias e servidores se não nos repugnar aceitá-los para tal ofício.” Neífile, com as faces cobertas de rubor e envergonhada por ser a amada de um daqueles jovens, disse então: “Por Deus, Pampínea, olha o que estás a dizer. Eu sei perfeitamente que só se pode falar bem de qualquer um deles e considero-os capazes de empresa bem maior do que esta. Penso igualmente serem eles capazes de oferecer boa e honesta companhia não apenas a nós, mas a mulheres muito mais belas e de mais valor do que nós somos. Mas sendo coisa bem conhecida estarem eles apaixonados de algumas das que se encontram aqui, receio que, se os levarmos connosco, daí resultem calúnias e censuras, sem culpa nossa ou deles.” Respondeu-lhe Filomena: “Isso não tem nenhuma importância. Desde que eu viva honestamente e não me doa a consciência de alguma coisa, fale em contrário quem quiser: Deus e a verdade terçarão armas por mim. Estivessem eles já dispostos a ir connosco e realmente, como disse Pampínea, bem podíamos afirmar que a fortuna favorece a nossa partida.” Ouvindo-a falar deste modo, não se limitaram a calar-se, mas concordaram unanimemente em chamá-los, comunicar-lhes o projecto e pedir-lhes que aceitassem com agrado fazer-lhes companhia. Sem mais palavras, Pampínea, que tinha laços de sangue com um deles, levantou-se e foi-lhes ao encontro, tendo eles parado a olhá-las. Com rosto sorridente, cumprimentou-os, declarou-lhes o projecto das donzelas e rogou-lhes da parte de todas que se dispusessem a fazer-lhes companhia com espírito puro e fraterno. De princípio, os jovens julgaram que elas estavam a troçar deles. Mas, quando viram que a donzela falava verdade, responderam com alegria que estavam prontos para o fazer. Logo, sem demora e antes de abalarem, combinaram tudo o que era preciso para a viagem. Puseram em ordem quanto devia ser preparado, enviando recado antecipadamente para o local aonde pensavam dirigir-se. Na manhã seguinte, quarta-feira, ao clarear o dia, as damas, com algumas camareiras, e os três jovens, com três criados seus, saíram da cidade e meteram-se ao caminho. Mal tinham andado não mais que duas escassas milhas fora da cidade, chegaram ao local previamente combinado. Ficava o dito local sobre um pequeno monte, bastante afastado das estradas em toda a roda, agradável à vista com os vários arbustos e plantas todas vestidas de verdes frondes. No alto do monte erguia-se um palácio com um lindo e grande pátio no seu interior, galerias, salas e quartos, qual deles de maior beleza e decorados com admiráveis e aprazíveis pinturas. Em torno, campos relvados, jardins maravilhosos, poços de águas fresquíssimas, caves de vinhos preciosos, tudo coisas mais próprias para apreciadores de bebidas do que para sóbrias e honestas donzelas. E com bastante agrado, a recém-chegada companhia tudo encontrou limpo, as camas feitas nos quartos e todo o palácio cheio das flores que naquela estação podia haver e enfeitado com juncos.
Sentados para a sua primeira reunião, tomou a palavra Dioneu, mais que todos os outros jovem agradável e espirituoso: “Senhoras, o vosso bom senso, mais do que a nossa sagacidade, guiou-nos até aqui. Não sei o que em vossos pensamentos tencionais fazer. Os meus, deixei-os para lá da porta da cidade quando há bem pouco saí convosco para fora. Por isso, ou estais dispostas a divertir-vos, a rir e a cantar comigo, dentro do que é próprio da vossa dignidade, ou me despedis para que eu regresse aos meus pensamentos e me deixe estar na atribulada cidade.” A isto respondeu sorrindo-se Pampínea, como se também ela houvesse expulso de si os seus pensamentos: “Dioneu, dizes muito bem. Queremos viver alegremente e nem outra foi a razão que nos levou a fugir das tristezas. Mas como sem ordem nenhuma coisa pode durar por muito tempo, tendo sido eu que tomei a iniciativa das conversas de que nasceu esta tão distinta companhia, e pensando agora em como prolongar a nossa alegria, creio ser necessário escolhermos entre nós um chefe, a quem veneremos e obedeçamos como superior e cujo dever consista em pensar constantemente em zelar por vivermos felizes. E para que todos provemos, de uma parte, o peso da solicitude, de outra parte igualmente o prazer da soberania, de modo que não haja quem sinta inveja por não o haver provado, proponho que a cada um de nós se atribua por um dia esse peso e essa honra, devendo o primeiro ser escolhido por eleição de todos. Quanto aos seguintes, chegando a hora de vésperas, aquele ou aquela que nesse dia for o soberano escolherá quem lhe aprouver. E este, durante o tempo em que dispuser do poder, decidirá de sua livre vontade sobre o local e o modo de vida que devemos seguir.”
Foram estas palavras recebidas com inteiro agrado e unanimemente a elegeram para rainha do primeiro dia. Filomena correu ligeira a um loureiro e, porque muitíssimas vezes ouvira falar de quanta honra eram dignas as folhas deste e quão digno de honra tornavam quem fosse por elas coroado, colheu alguns ramos e teceu com eles uma grinalda honrosa e elegante. Esta coroa de louros, colocada na cabeça enquanto durou a companhia, foi para cada um deles o sinal distintivo de real senhoria e poder. Já rainha, Pampínea mandou chamar à sua presença os criados dos três jovens e as criadas delas, que eram quatro. Ordenou depois que todos se calassem e, no silêncio geral, declarou: “Como primeira a dar um exemplo de como, caminhando de bem para melhor, a nossa companhia pode viver e durar o tempo que quisermos com ordem, com prazer e sem nada que nos haja de envergonhar, começo por nomear meu mordomo Parmeno, criado de Dioneu, e a ele confio o cuidado e o governo de toda a nossa criadagem, bem como o que diz respeito ao serviço da sala.
Determino que Sirisco, criado de Pânfilo, seja o nosso ecónomo e tesoureiro, sob as ordens de Parmeno. Tíndaro, ao serviço de Filóstrato, servirá também nos quartos dos outros dois senhores sempre que os outros criados, impedidos pelos seus encargos, não possam atender a esse trabalho. Mísia, minha criada, e Licisca, criada de Filomena, ficarão sempre na cozinha e prepararão zelosamente as refeições que Parmeno lhes ordenar. Quimera de Lauretta e Estratília de Fiammetta queremos que fiquem encarregadas do arranjo dos quartos das senhoras e da limpeza dos locais onde estivermos. De cada um em geral queremos e ordenamos, se quiser estimar o nosso favor, que, vá onde for, venha de onde vier, seja o que for que oiça ou que veja, cuide de nunca nos trazer do exterior notícia que não seja agradável.” Dadas estas breves ordens, que por todos foram aplaudidas, levantou-se sorridente e disse: “Há por aqui jardins, prados e outros sítios bem aprazíveis onde cada um a seu bel-prazer pode recrear-se. Quando soar a hora tércia (Nota 7) O dia dividia-se em 24 horas, 12 diurnas e 12 nocturnas, que tinham uma duração variável segundo as várias estações, sendo calculadas a partir do nascer e do pôr do Sol. Oito dessas horas são as chamadas horas canónicas, nas quais o clero deve recitar certas partes do breviário, e têm o nome de “matinas” (cerca das 3), “prima” (ao nascer do Sol, cerca das 6), “tércia” (cerca das 9), “sexta” (às 12), “noa” (cerca das 15), “vésperas” (o pôr do Sol, cerca das 18), “completas” (cerca das 21), “meia-noite” (as 24). A “meia-tércia” é intermédia entre a tércia e a sexta, a “meia-sexta” entre a sexta e a nona, etc. (Fim da nota), estejam todos aqui para comermos ao fresco.”
Despedido assim pela nova rainha o alegre grupo, os jovens, acompanhados pelas formosas damas, dirigiram-se a passo vagaroso para um jardim, conversando sobre coisas agradáveis, tecendo lindas grinaldas de variados ramos e cantando canções de amor. Demorando-se apenas o tempo que a rainha lhes determinara, regressaram a casa e viram que Parmeno dera início ao seu trabalho com todo o esmero. Entrando para uma sala do rés-do-chão, encontraram as mesas postas, com toalhas alvíssimas e copos que pareciam de prata, tudo enfeitado com flores de giesta. Depois de trazida a água para as mãos e quando aprouve à rainha, foram sentar-se nos lugares indicados por Parmeno. Haviam sido preparadas deliciosas iguarias e apresentados vinhos finíssimos, e logo, tranquilamente, os três criados serviram as mesas. Satisfeitos com a beleza e a ordem das coisas, todos comeram no meio de agradáveis conversas e com alegria. Levantadas as mesas, como tanto as damas como os jovens soubessem todos dançar e alguns deles tocassem ou cantassem muito bem, mandou a rainha que trouxessem os instrumentos. Por sua ordem, Dioneu pegou num alaúde, Fiammetta, numa viola, e começaram a tocar suavemente uma dança. Mandados embora os criados para comerem, a rainha com as outras damas e os dois jovens encetaram em passo lento uma “carola”. Terminada esta, começaram a cantar canções de galanteria e alegres. Desta maneira se entretiveram até que à rainha pareceu serem horas de dormir. Apresentadas as despedidas, os três jovens foram para os seus quartos, isolados dos quartos das donzelas, encontrando-os com as camas bem feitas e tão enfeitadas de flores como estava a sala. O mesmo aconteceu com as damas, que, despindo os vestidos, foram repousar.
Ainda não passara muito da hora noa quando a rainha se levantou e mandou levantarem-se todas as outras e bem assim os jovens, afirmando não ser saudável dormir demasiado de dia. Foram, então, até um prado onde a relva era verde e alta, sem que de nenhum lado o sol batesse. Sentia-se correr uma suave brisa e, por vontade da rainha, sentaram-se todos em círculo sobre a relva. Disse-lhes Pampínea: “Como estais a ver, o Sol vai alto e faz grande calor, apenas se ouvindo as cigarras nas oliveiras. Seria, com certeza, loucura irmos agora a qualquer outro sítio. O local é agradável e fresco. Tendes aqui, estais a ver, tabuleiros de damas e de xadrez. Cada um pode divertir-se com aquilo que mais prazer lhe der ao espírito. Mas, se quiserdes seguir a minha opinião, não jogaríeis, porque o jogo traz perturbação ao espírito de uma das partes sem que a outra parte ou quem assiste recolha grande prazer. Se fôssemos contar histórias, poderíamos passar agradavelmente esta parte quente do dia, contando cada um a sua novela enquanto toda a companhia o escutava.
Ainda não teremos acabado de contar cada um a sua novela e já o Sol se terá posto e o calor diminuído. Podemos, então, ir divertir-nos para onde vos apetecer. Se a minha ideia vos agrada, pois que estou disposta neste caso a seguir o que vos aprouver, então comecemos. Mas se não vos agrada, faça cada um o que mais lhe apetecer até à hora de vésperas.” Tanto as damas como os homens acharam muito bem contar histórias. “Então, se vos dá gosto – afirmou a rainha –, determino que, neste primeiro dia, escolha livremente cada um o tema de que mais goste de falar.” E, voltando-se para Pânfilo, que estava sentado à sua direita, com ar prazenteiro lhe mandou que fosse ele a começar com uma das suas novelas. Mal ouviu a ordem, imediatamente Pânfilo assim principiou, escutado por toda a gente:
Ser Cepparello engana um santo frade com uma falsa confissão e morre; tendo sido durante a vida um homem do pior jaez, ganha fama de santo depois de morto e chamam-lhe São Ciappelletto (Nota 8) É a troça que faz ao mais cândido dos frades o mais odioso dos delinquentes. Mas este delinquente genial e impassível revela-se um artista perfeito na concepção e na recitação da comédia com que ele conquista o confessor e o povo e, quase poderíamos dizer, o próprio Deus. Não há qualquer reacção do senso moral, exactamente como se nos contassem as misérias da vida privada dum actor na altura em que estivéssemos a ouvir uma das suas sublimes interpretações cénicas. (Fim da nota).
“É de conveniência, caríssimas senhoras, que o admirável e santo nome Daquele que foi criador de todas as coisas dê princípio a toda a obra feita pelo homem. Por isso, cabendo a mim como o primeiro inaugurar as nossas narrações, quero começar por uma das suas obras milagrosas, a fim de que, ouvindo-a, se firme nele a nossa esperança como em alguma coisa imperturbável e que sempre o seu nome seja por nós louvado.
“Sendo as coisas temporais todas elas transitórias e sujeitas à morte, é manifesto encontrarem-se, dentro e fora de si, repletas de tédio, de angústia e de fadiga, submetidas a infindáveis perigos. Nós que, sem qualquer engano, vivemos misturados com elas e somos parte delas, não conseguiríamos nem resistir nem proteger-nos se uma especial graça de Deus não nos desse força e discernimento. Mas não julguemos que tal graça desce até nós e está connosco por obra de algum merecimento nosso. Ela vem-nos da Sua divina bondade e rogada pelas orações daqueles que, havendo sido mortais como nós somos, seguiram fielmente em vida a vontade de Deus e com Ele agora se tornaram eternos e bem-aventurados. A eles dirigimos as nossas preces sobre as coisas que julgamos serem-nos úteis, decerto por não ousarmos dirigi-las à presença do Supremo Juiz, por eles serem procuradores informados por experiência da nossa fragilidade. Mas podemos ver ainda mais quanto Ele está cheio de compassiva liberalidade para connosco: não sendo possível à agudeza dos olhos humanos penetrar de algum modo no segredo da inteligência divina, pode alguma vez acontecer que, enganados porventura por falsa opinião, façamos nosso advogado perante Sua majestade alguém que haja sido expulso para um eterno exílio. Apesar disso, Ele, a quem nenhuma coisa é oculta, olha mais à pureza do suplicante do que à sua ignorância ou à condenação do suplicado, e, tal como se este se encontrasse na Sua bem-aventurada presença, atende aquele que faz a súplica. Isto se pode ver claramente na novela que vou contar-vos. Claramente, digo eu, não segundo o juízo de Deus, mas o dos homens.
“Imagine-se que, havendo sido elevado a cavaleiro de França o riquíssimo e grande mercador Musciatto Franzesi (Nota 9) Musciatto Franzesi, de Florença, foi um camponês, depois mercador e mais tarde cavaleiro na corte do rei de França Filipe, o Belo, sendo recordado pelos cronistas do tempo no séquito do irmão de Filipe, Carlos de Valois, quando, a convite de Bonifácio VIII, desceu à Itália na esperança de conseguir, à custa dos inimigos do papa, o domínio que não possuía (Carlos-Sem-Terra). Em 1304, Musciatto é enviado a Florença em missão de paz. Também Ciappelletto (Cepparello Dietaiuti de Prato) é um personagem que existiu realmente e foram descobertos autógrafos seus. (Fim da nota), e tendo ele que vir à Toscânia acompanhando Carlos-Sem-Terra, irmão do rei de França, a quem o Papa solicitara que ascendesse até à sua presença, viu os seus negócios bastante embrulhados aqui e acolá, como é frequente acontecer aos mercadores. Como não era fácil nem rápido resolver o assunto, pensou confiar os negócios a diversas pessoas. Conseguiu forma de tudo resolver, só lhe restando dúvidas de quem escolher que fosse capaz de lhe cobrar os créditos que havia dado a diversos borgonheses. O fundamento da dúvida estava em ele saber que os borgonheses eram gente de brigas, de má condição e desleais. Não lhe aflorava à memória algum homem que fosse tão malvado, e no qual pudesse pôr alguma confiança, para enfrentar a malvadez dos borgonheses. Depois de haver demorado longamente o pensamento nesta procura, recordou-se de um tal Cepparello de Prato, que se alojava muitas vezes na sua casa de Paris. Era um indivíduo de baixa estatura e muito bem apresentado. Como os Franceses não sabiam o que significava Cepparello, supunham que significasse, de acordo com a língua deles “chapéu” ou “grinalda”. Por ser homem baixote, chamavam-lhe não Ciappello, mas Ciappelletto. Por isso, todos o conheciam por senhor Ciappelletto e poucos por senhor Cepparello.
“Era a seguinte a vida de Ciappelletto: notário de profissão, sentia-se muitíssimo envergonhado quando algum dos seus documentos, embora poucos escrevesse, não era realmente falso. Fraudes fazia ele tantas quantas lhe encomendavam, e com maior gosto as faria de graça do que a bom soldo as autênticas. Prestava falsos testemunhos com sumo prazer, fosse ou não solicitado. Como nesses tempos em França se fazia muitíssima fé nos juramentos, e porque ele não se preocupava de dar com falsidade, vencia iniquamente todas as querelas a quem o chamava para prestar juramento sobre a sua fé. Sentia extremo gosto e empenhava-se a fundo em introduzir males, ódios e escândalos entre amigos, familiares ou quaisquer outras pessoas, e quanto maiores os males daí resultantes, mais ele se alegrava. Convidado para um homicídio ou para qualquer outro delito, nunca dizia que não, ia de toda a boa vontade, sendo bastantes as vezes em que feriu e matou homens com as próprias mãos e com muito gosto. Era um refinadíssimo blasfemador de Deus e dos santos e ninguém como ele era tão iracundo à mais pequena coisa. Nunca costumava ir à igreja e escarnecia com palavras abomináveis todos os seus sacramentos como se de coisa vil se tratasse. Em contrapartida, era frequentador e usador das tabernas e de outros locais desonestos. Desejava tanto as mulheres como os cães desejam as pauladas; ao invés, deleitava-se em acções contra a Natureza mais que nenhum outro desgraçado. Era capaz de calotear e de roubar com a tranquila consciência dum santo homem. Glutão em extremo e grande bebedor, chegava ao ponto de passar por vergonhosos aborrecimentos. Era perito no jogo e na batota com os dados. Enfim, para quê perder tempo com tantas palavras? Era, quiçá, o pior dos homens que alguma vez nasceu. A sua malvadez tinha servido de apoio, durante muito tempo, à influência e ao prestígio de Musciatto, o qual muitas vezes o defendeu tanto de pessoas particulares, às quais frequentemente injuriava, como da corte, contra a qual cometia igualmente injúrias.
“Lembrando-se, pois, desse tal Cepparello, cuja vida ele muito bem conhecia, ponderou o dito senhor Musciatto ser exactamente o homem que a malvadez dos borgonheses requeria. Mandou-o, por isso, chamar e disse-lhe: “Ciappelletto, como sabes, estou em vias de abalar daqui definitivamente. Como tenho alguns negócios, entre outros, a resolver com borgonheses, gente sempre pronta a enganar, não sei de ninguém melhor do que tu em quem eu possa confiar para reaver deles o que me pertence. Ora, como presentemente não tens nada que fazer, se quiseres ocupar-te do assunto, prometo conseguir-te o favor da corte e dar-te uma razoável parcela do que receberes.” “Ciappelletto, sabendo-se desocupado e mal aviado de bens do mundo e vendo partir aquele que, durante tanto tempo, fora o seu sustento e refúgio, sem mais demoras, ou como que empurrado pela necessidade, decidiu e declarou aceitar de boa mente. Combinadas as coisas entre eles, recebeu Ciappelletto a procuração e as cartas abonatórias do rei e, depois da partida de messer Musciatto, abalou para a Borgonha, onde quase ninguém o conhecia.
“Ao revés da sua natureza, começou a proceder às cobranças e a realizar aquilo que ali o levara com toda a bondade e doçura, como se guardasse para o fim as suas arremetidas. Actuando deste modo, foi hospedar-se em casa de dois irmãos florentinos que emprestavam dinheiro a juros e que o tratavam com muita consideração por amizade a Musciatto. Ora aconteceu-lhe tombar doente, e logo os dois irmãos mandaram vir médicos, criados para o servirem e tudo o que pudesse ser útil para ele recuperar a saúde. Mas todas as ajudas foram inúteis, e o desgraçado homem, que já era velho e vivera desregradamente, de dia para dia, segundo a opinião dos médicos, ia de mal a pior como quem sofre doença de morte. Os dois irmãos sofriam bastante com esse facto, e certo dia, bastante perto do quarto onde Ciappelletto jazia enfermo, começaram a falar um com o outro: “Que havemos de fazer dele?”, diziam entre si. “Por causa deste homem, temos nas mãos uma situação péssima. Mandá-lo embora da nossa casa assim doente seria motivo de grande reprovação e manifesto sinal de insensatez. As pessoas viram-nos, primeiro, recebê-lo e, depois, servi-lo e tratá-lo com toda a solicitude. Agora, sem que ele pudesse ter feito alguma coisa que nos devesse desagradar, viam-no ser mandado embora da nossa casa assim bruscamente e com ele à beira da morte. Mas, por outra parte, foi um homem tão mau que não há-de querer confessar-se nem receber qualquer sacramento da Igreja. Morrendo sem confissão, nenhuma igreja quererá receber o seu corpo e será atirado para a vala comum à guisa de um cão. Ainda que ele se confesse, os seus pecados são tantos e tão horríveis que não haverá quem se assemelhe e não se encontrará frade ou padre que queira ou possa absolvê-lo. Sem absolvição, será do mesmo modo atirado para a vala comum. Se tal coisa acontecer, o povo da terra, já por causa do nosso ofício, que lhe parece cheio de iniquidade, ao ponto de passar todo o dia a dizer mal dele, já pela vontade que tem de roubar-nos, ao ver o que se passa, começará a murmurar e exclamará: “Se a Igreja não quis receber estes cães lombardos (Nota 10) Lombardo significava então habitante da Itália do Norte e, por extensão, italiano e também usurário, uma das profissões que eles exerciam com frequência no estrangeiro; sendo a usura condenada pela Igreja, isso comportava a excomunhão. (Fim da nota), também nós os não queremos tolerar!” Correrá para as nossas casas e não só nos roubará os haveres como, porventura, nos arrebatará além disso a vida. De todo o modo, estamos mal se o homem morrer.”
Como dissemos, Ciappelletto jazia perto do sítio onde os dois conversavam e tinha um ouvido muito apurado, como acontece frequentemente aos enfermos. Ouviu, pois, o que estavam a dizer a seu respeito e mandou-os chamar para lhes dizer: “Não quero que, por minha causa, fiqueis preocupados ou que receeis ser prejudicados. Entendi o que estáveis a conversar de mim e estou absolutamente certo de que aconteceria como dissestes se as coisas viessem a passar-se como as imaginais. Mas vão correr de outro modo. Cometi tantas ofensas, durante a minha vida, contra Deus, que não adianta nem atrasa cometer mais uma à hora da morte. Diligenciai, pois, em mandar-me vir o frade mais santo e mais douto que puderdes encontrar, se algum houver, e deixai o caso comigo, pois que firmemente ajustarei os vossos interesses e os meus de forma a tudo correr bem e a ficardes satisfeitos.”
Embora sem colher grande esperança do que ele disse, os dois irmãos não deixaram de ir a um convento à pergunta de algum santo e douto homem que ouvisse de confissão um lombardo que se encontrava doente em casa deles. Foi-lhes apresentado um velho frade de vida santa e digna, grande mestre nas Escrituras e no qual todos os cidadãos punham uma devoção muito grande e especial. Levaram-no com eles e, logo que o frade chegou ao quarto onde jazia Ciappelletto, sentou-se junto dele, começou primeiro a confortá-lo com bondade e depois perguntou-lhe há quanto tempo se confessara a última vez. Ciappelletto, que nunca se tinha confessado, respondeu: “Padre, o meu hábito é confessar-me todas as semanas ao menos uma vez, mas são muitas as semanas em que me confesso mais vezes. A verdade é que já passaram oito dias desde que adoeci e não voltei a confessar-me, tanta foi a indisposição que a doença me trouxe.” Retorquiu o frade: “Fizeste bem, meu filho, e assim deves continuar a fazer. Uma vez que te confessas com tanta frequência, vejo que não me dará muito trabalho ouvir-te ou fazer-te perguntas.” Disse Ciappelletto: “Senhor frade, não diga isso. Eu nunca me confessei tantas e tão amiudadas vezes que não tivesse sempre o desejo de fazer uma confissão geral de todos os meus pecados que pudesse lembrar, desde o dia em que nasci até àquele em que me confessava. Não me poupeis pelo facto de eu estar doente, pois que prefiro muito mais desagradar à minha carne do que, para sua comodidade, fazer eu alguma coisa que pudesse trazer perdição à minha alma que o meu Salvador resgatou com o seu precioso sangue.” Estas palavras agradaram muito ao santo homem e pareceram-lhe prova duma alma bem disposta. Depois de haver louvado este hábito de Ciappelletto, começou a perguntar-lhe se alguma vez cometera pecado de luxúria com mulheres, ao que Ciappelletto respondeu com um suspiro: “Meu padre, quanto a essa parte sinto vergonha de vos contar a verdade, temendo pecar por vanglória.” Retorquiu o frade santo: “Fala sem receio, pois nunca alguém pecou por dizer a verdade na confissão ou em qualquer outro momento.” Disse, então, Ciappelletto: “Já que me dais segurança quanto a este ponto, vou dizer-vos: estou tão virgem como quando saí do corpo da minha mãe.” “Ó abençoado por Deus!”, exclamou o frade. “Como procedeste bem! E o teu mérito é tanto maior quanto é verdade que estavas mais livre de fazer o contrário, se quisesses, do que nós e todos os que vivem sujeitos a uma regra.” Em seguida, perguntou-lhe se tinha ofendido a Deus com o pecado da gula. Com um profundo suspiro, respondeu Ciappelletto que sim e que muitas vezes. Acontecia que, além do jejum quaresmal que as pessoas devotas fazem anualmente, costumava jejuar a pão e água ao menos três dias na semana e (especialmente quando sentia algum cansaço, ou de ter estado em adoração ou das peregrinações que fazia) costumava beber a água com aquele prazer e aquele apetite que os grandes bebedores provam com o vinho. E muitas vezes lhe apeteceram aqueles molhos de saborosas ervas que as mulheres colhem quando vão ao campo. Certas alturas, a comida parecera-lhe melhor de quanto devia parecer a quem faz jejum por devoção, como ele fazia. O frade retorquiu: “Meu filho, esses pecados são naturais e muito leves. Não quero que sintas a consciência mais pesada do que é devido. Acontece a qualquer homem, por santíssimo que ele seja, achar agradável o comer depois dum prolongado jejum e beber depois duma fadiga.” “Oh!, meu padre!” – bradou Ciappelletto –, “não me digais isso para consolar-me! Bem sabeis como não ignoro deverem ser feitas com toda a pureza e sem mancha nenhuma na alma as coisas que se fazem para o serviço de Deus. Quem de outro modo fizer, pecará.” O frade estava felicíssimo: “Estou contente de que assim pense a tua alma e agrada-me bastante, a este propósito, a tua pura e boa consciência. Mas diz-me: pecaste por avareza, desejando mais que o conveniente ou ficando com aquilo que não devias?” Respondeu Ciappelletto: “Meu padre, não quero que façais mau juízo por eu me encontrar em casa destes usurários. Não tenho nada com eles. Antes vim cá para os admoestar, os corrigir e os afastar da sua abominável ganância. Suponho que o teria conseguido se Deus me não tivesse assim visitado. Mas devo informar-vos de que meu pai me deixou com fortuna, da qual, após a sua morte, dei a maior parte por amor de Deus. Em seguida, para sustentar a minha vida e poder ajudar os pobres de Cristo, fiz os meus pequenos negócios e com eles tive ensejo de ganhar. Mas o que ganhei sempre o reparti a meias com os pobres de Deus: gastava metade naquilo que me era necessário e dava a eles a outra metade. E Deus ajudou-me de tal modo que os meus negócios andaram sempre de bem para melhor.” “Fizeste bem” – disse o frade –, “mas quantas vezes é que te iraste?” “Oh!” – respondeu Ciappelletto –, “isso posso eu dizer que o fiz muitas vezes! E quem conseguiria dominar-se ao ver os homens praticar constantemente acções vergonhosas, não respeitar os mandamentos de Deus e não temer os Seus juízos? Muitas foram as ocasiões durante o dia em que eu preferira estar morto a viver, vendo os jovens correr atrás das vontades, ouvindo-os jurar e blasfemar, andar pelas tabernas, não visitar as igrejas e seguir as veredas do mundo em vez do caminho de Deus. “Prosseguiu o frade: “Essa, meu filho, é uma ira justa e não serei eu quem te vai impor por isso uma penitência. Mas alguma vez, por acaso, a ira te induziu a cometer algum homicídio, a dizer vilanias a alguém ou a fazer qualquer outro insulto?” A isto respondeu Ciappelletto: “Ai de mim, senhor! Como podeis dizer tamanha coisa, vós que me pareceis homem de Deus? Então, se tivesse havido em mim a mais pequena ideia de cometer alguma dessas coisas que referis, julgais possível acreditar que Deus me houvesse protegido tanto? São coisas próprias de facínoras e de homens malvados, aos quais, se alguma vez encontrei um, eu sempre disse: “Vai-te embora e que Deus te converta!” “Mas, diz-me lá, meu filho, e que Deus te abençoe: nunca prestaste falso testemunho contra ninguém, nem disseste mal dos outros, nem tiraste coisas a alguém contra a vontade do seu proprietário?” “Sim, senhor” – respondeu Ciappelletto –, “disse mal duma outra pessoa. Eu tinha um vizinho que, sem a mais pequena razão, estava constantemente a espancar a mulher. E eu fui dizer mal dele, uma vez, à família da mulher, tanta pena tive daquela escrava na qual o homem, todas as vezes que bebia a mais, desancava como só Deus vos pode dizer.” Perguntou, depois, o frade: “Pois bem, disseste-me que foste mercador: enganaste alguma vez alguém, como costumam fazer os mercadores?” “Infelizmente sim, senhor!” – disse Ciappelletto. – “Mas não sei onde está esse a quem o fiz. Só sei que alguém me entregou dinheiro que me devia dar por um tecido que lhe vendi e eu meti o dinheiro na caixa sem o conferir. Passado bem um mês, verifiquei haver quatro pequenas moedas além do que devia ser. Como não voltei a encontrar a pessoa, depois de ter guardado o dinheiro durante um ano para lho devolver, dei-o de esmola por amor de Deus.” Disse o frade: “Isso não teve importância e agiste bem ao fazer como fizeste.” Além destas, perguntou-lhe o frade santo muitas outras coisas, a todas as quais ele foi respondendo do mesmo modo. Quando já ia a dar-lhe a absolvição? disse Ciappelletto: “Senhor, ainda tenho um pecado que não vos confessei.” O frade perguntou-lhe qual e ele respondeu: “Recordo-me de ter dado ordem ao meu criado, num sábado depois da hora noa (Nota 11) O descanso dominical começava para os mais zelosos no sábado à tarde. (Fim da nota), para varrer a casa, sem guardar a reverência que é devida ao santo domingo.” “Oh!” – disse o frade –, “isso é uma coisa leve, meu filho!” “Não digais que é leve coisa” – retorquiu Ciappelletto. – “Nunca se venera demais o domingo, pois nesse dia Nosso Senhor ressuscitou da morte para a vida.” Disse de novo o frade: “Cometeste mais algum pecado?” “Sim, senhor” – respondeu Ciappelletto. – “Uma vez, distraído, escarrei na igreja de Deus.” O frade sorriu-se e exclamou: “Meu filho, isso não é coisa para te preocupares. Nós, que somos religiosos, passamos o dia todo a cuspir na igreja.” Ciappelletto retorquiu: “Pois o que fazeis é grande vilania, porque nada devemos manter mais asseado do que o santo templo onde se oferece o sacrifício a Deus.” E assim foi ele confessando muitos pecados semelhantes. Por fim, pôs-se a suspirar e, de seguida, a chorar copiosamente como ele sabia fazer muitíssimo bem quando queria. Disse o santo frade: “Meu filho, que tens tu?” Respondeu Ciappelletto: “Ai, reverendo! Há ainda um pecado do qual nunca me confessei, tal a vergonha de ter de o dizer. Sempre que me lembro dele, choro como estais a ver e parece-me certíssimo que Deus jamais terá misericórdia de mim por causa deste pecado.” Então o bom do frade insistiu: “Ora vamos lá, meu filho, que estás tu a dizer? Se todos os pecados até hoje cometidos por todos os homens, ou que venham a ser cometidos por todos os homens enquanto o mundo durar, se encontrassem num só homem e ele estivesse arrependido e contrito como vejo que tu estás, a bondade e a misericórdia de Deus são tão grandes que, se o homem os confessasse, Ele os perdoaria magnanimamente. Fala, por isso, com toda a confiança.” E Ciappelletto, continuando num choro copioso: “Ai, meu padre, este meu pecado é demasiado grande e, se não for o empenho das vossas orações, mal posso acreditar que Deus alguma vez me perdoe.” Retorquiu o frade: “Tem confiança e diz qual foi, pois te prometo que rezarei por ti a Deus.” Continuava Ciappelletto a chorar e a calar e o frade a confortá-lo para que falasse. Depois de Ciappelletto, sempre lacrimoso, haver assim mantido suspenso o frade durante longuíssimo tempo, acabou por soltar um grande suspiro e dizer: “Meu padre, já que me prometeste rezar por mim a Deus, vou contar-vos: ficai a saber que, quando eu era criancinha, roguei uma praga a minha mãe.” E, declarado isto, voltou a romper num choro abundante. Disse o frade: “Ó meu filho, mas achas que ele é assim tão grande pecado? Os homens passam o dia inteiro a rogar pragas a Deus e de boa vontade Ele perdoa a quem se arrepende de O ter blasfemado, e tu não acreditas que Ele te perdoe esse pecado? Não chores, consola-te! Tem a certeza de que, se tivesses sido um daqueles que O pregaram na cruz, com esse arrependimento que vejo possuíres, Ele dar-te-ia o seu perdão.” Ciappelletto insistiu: “Ai de mim, padre, que estais vós a dizer? A minha mãezinha que me guardou dentro do seu corpo nove meses, dia e noite, e que me trouxe ao colo mais de cem vezes! Foi um mal demasiado a blasfémia que lhe fiz! É um pecado grande de mais! Se não rezardes a Deus por mim, não terei perdão.”
Quando pareceu ao frade nada mais restar para dizer a Ciappelletto, deu-lhe a absolvição e a sua bênção, tomando-o na conta dum homem santíssimo, pois acreditou ser inteiramente verdade aquilo que Ciappelletto afirmara. E quem não iria acreditar se ouvisse um homem falar assim à beira da morte? No fim de tudo disse-lhe o frade: “Senhor Ciappelletto (Nota 12) Até aqui trata-o por tu; com o vós começa o processo de canonização. (Fim da nota), com a ajuda de Deus depressa ficareis bom; mas se for da vontade de Deus chamar a vossa bendita e bem disposta alma à Sua presença, gostaríeis de que o vosso corpo fosse sepultado no nosso convento?” Ciappelletto respondeu: “Sim, senhor! Nem quero que seja noutro local, pois vós me prometestes rezar a Deus por mim. Além disso, sempre tive uma especial devoção pela vossa Ordem. Rogo-vos que, mal chegardes ao convento, me envieis o realíssimo corpo de Cristo que por vós é consagrado de manhã no altar. Embora eu não seja digno dele, desejo recebê-lo com licença vossa. Depois, dai-me a santa e extrema-unção, a fim de que eu, se como pecador vivi, ao menos morra como cristão.” O santo homem disse que lhe dava muita alegria, que ele tinha razão e que lhe mandaria sem demora os sacramentos. Assim aconteceu. Os dois irmãos, bastante duvidosos de que não os enganasse o Ciappelletto, tinham encostado o ouvido a um tabique que separava o quarto onde ele estava deitado de um outro quarto. Com fácil audição, escutavam e entendiam o que o Ciappelletto ia dizendo ao frade. Sentiam, às vezes, uma grande vontade de rir, ao ouvirem as coisas que ele confessava ter feito, e quase que estoiravam. Comentavam um para o outro: “Que homem este ao qual nem a velhice, nem a doença, nem o medo da morte que vê estar perto, nem mesmo Deus, diante de cujo tribunal dentro em breve esperamos que deva estar, o conseguiram remover da sua malvadez ou levá-lo a não desejar morrer como viveu!” Mas quando ouviram que ele teria sepultura na igreja, não os preocupou mais o resto. Pouco depois, Ciappelletto fez a comunhão e, piorando muitíssimo, recebeu a extrema-unção. Pouco passada a hora de vésperas do mesmo dia em que fizera aquela linda confissão, falecia.
“Cumprindo as determinações que ele mesmo deixara, os dois irmãos trataram de tudo para que fosse enterrado com todas as honras. Mandaram recado ao convento, para que os frades viessem fazer o velório durante a noite, consoante o costume, e levassem o morto na manhã seguinte, tendo os dois irmãos organizado quanto era necessário. O santo frade que o confessara, ao saber do seu passamento, foi falar com o prior do convento e, mandando-se tocar a capítulo, mostrou aos frades ali reunidos que o senhor Ciappelletto tinha sido um santo homem, pelo que tinha percebido da sua confissão. Na esperança de que Deus viria a fazer muitos milagres por intermédio dele, convenceu-os de que deviam receber aquele corpo com muitíssima reverência e devoção. Crédulos, o prior e os outros frades deram a sua concordância. Foram todos para o local onde jazia o cadáver de Ciappelletto e fizeram-lhe uma grande e solene vigília. De manhã, todos paramentados de alvas e pluviais, transportaram-no para a sua igreja, seguidos por quase todo o povo da cidade, homens e mulheres. Colocado na igreja, o santo frade que o confessara subiu ao púlpito e começou a pregar maravilhas sobre ele, a sua vida, os seus jejuns, a sua virgindade, a sua simplicidade, inocência e santidade. Entre outras coisas, contou-lhes aquilo que o senhor Ciappelleto havia confessado, entre muitas lágrimas, como o seu maior pecado e quanta dificuldade ele, confessor, tivera para o convencer de que Deus lhe perdoava. E, voltando-se para o povo que o escutava, o pregador vituperou-o: “E vós, malditos de Deus, por um cisco de palha que se vos mete nos pés, logo blasfemais de Deus, de Nossa Senhora e de toda a corte celestial!” Contou ainda muitas outras coisas da sua lealdade e pureza. Em suma, com as suas palavras, às quais era dada inteira fé pela gente da região, tais coisas meteu na cabeça e na devoção de quantos se encontravam presentes que, mal acabou o ofício, com o maior atropelo do mundo todos correram a beijar-lhe os pés e as mãos, rasgando todas as roupas que vestiam o corpo e considerando-se ditoso quem conseguia apoderar-se dum pedacinho desses farrapos. Foi preciso o corpo ficar exposto todo o dia para que toda a gente pudesse vê-lo e visitá-lo. Depois, ao cair da noite, sepultaram-no com todas as honras numa capela, dentro duma urna de mármore. A partir do outro dia, pouco a pouco, as pessoas começaram a vir à sepultura, a acender velas, a venerá-lo e, depois, a fazer promessas e a pendurar no local imagens de cera, de acordo com a promessa que faziam. Entretanto, foi crescendo a fama da sua santidade e a devoção por ele. Quando se viam nalguma adversidade, quase ninguém fazia promessas a outro santo que não fosse ele. Começaram a chamar-lhe, e ainda hoje lhe chamam, São Ciappelletto, dizendo--se que Deus realizou muitos milagres por seu intermédio e continua a realizá-los todos os dias em favor de quem devotamente a ele se encomenda.
“Assim viveu e morreu o senhor Cepparello de Prato e assim veio a dar em santo, como haveis escutado. Não quero negar a possibilidade de ele se encontrar como bem-aventurado na presença de Deus. De facto, embora a sua vida tivesse sido a de um celerado e malvado homem, podia ter no último instante uma tão grande contrição, que Deus se compadeceu dele, porventura, e o acolheu no seu Reino. Mas, como se trata de coisa oculta, penso apenas de acordo com as aparências e afirmo que ele deve encontrar-se em perdição às mãos do Diabo, antes que no Paraíso. Se é assim que acontece, bem podemos ver quão imensa é a bondade de Deus para connosco. Deste modo, ainda que façamos dum seu inimigo, julgando-o amigo, o nosso intercessor, Ele atende-nos como se recorrêssemos a um verdadeiro santo como intercessor da sua graça.
“Agora, para que nos mantenhamos sãos e salvos por sua graça nas presentes adversidades e nesta tão agradável companhia, a Deus nos recomendaremos em nossas necessidades, certíssimos de sermos escutados, louvando o seu nome pelo qual nos reunimos e prestando-lhe reverência.”
E Pânfilo calou-se.
O judeu Abraão, estimulado por Giannotto de Civigni, vai à corte de Roma. Mas, quando vê a perversidade do clero, volta a Paris e faz-se cristão (Nota 13) A demonstração pelo absurdo da verdade do cristianismo, baseada no próprio facto da sua persistência e da sua difusão, demonstração comum aos padres da Igreja e a Dante (Paraíso, XXIV, pp. 106 e segs.), foi também atribuída pela tradição a personagens hostis à Igreja, como Saladino e Frederico II. Na boca destes assume naturalmente maior realce a censura feita à indignidade do clero. No caso presente, a demonstração serve sobretudo de pretexto para delinear duas figuras. Homem de boas intenções é Giannotto, mas a sua vista é curta; daí o imprevisto para ele nas conclusões do muito mais arguto e ponderado judeu. (Fim da nota).
A novela de Pânfilo provocou, por vezes, algum riso e foi muito elogiada pelas damas. Escutada com atenção e havendo chegado ao fim, como ao lado dele estivesse sentada Neífile, a rainha ordenou a esta que continuasse a série do divertimento que tinham iniciado, contando ela uma outra novela. Neífile, tão ornada de delicadas maneiras como de beleza, respondeu alegre-mente que o iria fazer de bom grado e começou assim:
“Pânfilo mostrou na sua novela que a bondade de Deus não olha aos nossos erros quando estes resultam de alguma coisa que nós não possamos ver. Com a minha, tenciono provar-vos como a mesma bondade, suportando pacientemente os defeitos daqueles que devem dar um verdadeiro testemunho dela com as obras e as palavras e fazem o contrário, demonstra por si própria a sua infalível verdade, para que nós continuemos seguindo com firmeza de alma aquilo em que acreditamos.
“Ouvi dizer, graciosas damas, que houve em Paris um grande mercador e bondoso homem, de nome Giannotto de Civigni, muito leal e recto, o qual fazia grande comércio de tecidos. Mantinha ele uma especial amizade com um riquíssimo homem judeu chamado Abraão, igualmente mercador, pessoa bastante recta e leal. Vendo-lhe a rectidão e a lealdade, Giannotto começou a andar muito pesaroso pelo facto de a alma dum homem de tanto valor, sabedoria e bondade estar destinada à perdição por falta da fé. Por isso, começou a pedir-lhe amigavelmente que abandonasse os erros da fé judaica e se voltasse para a fé cristã, pois bem podia ver como esta última era santa e boa, prosperava e aumentava constantemente, enquanto era visível que a sua ia diminuindo e caminhando para o nada. O judeu respondia que não acreditava haver outra fé santa e boa fora da fé judaica; que ele nascera nela e nela tencionava viver e morrer. Não havia nada que o fizesse demover. Giannotto não desistiu e, passados alguns dias, voltou com as mesmas palavras, mostrando-lhe um tanto toscamente, como costumam fazer os mercadores, os motivos pelos quais a nossa fé era melhor que a judaica. O judeu era grande entendido na lei judaica; todavia, ou porque o movesse a grande amizade que tinha com Giannotto, ou porque o mesmo efeito porventura fizessem as palavras que o Espírito Santo punha na boca do homem ignorante, começaram a agradar grandemente ao judeu os argumentos de Giannotto. Obstinando-se, porém, na sua crença, não se deixava vergar. Quanto mais teimoso se mantinha, mais Giannotto insistia com ele sem nunca desistir. Até que o judeu, vencido por tão constante insistência, disse: “Está bem, Giannotto, agrada-te que eu me faça cristão; estou disposto a fazê-lo, e tanto é verdade que primeiramente quero ir a Roma para ver aquele que tu afirmas ser o vigário de Deus na terra. Quero observar as suas maneiras e os seus costumes, bem como os dos seus irmãos cardeais. Se eles me parecerem, de acordo com as tuas palavras e as deles, capazes de me levarem a compreender que a vossa fé é melhor do que a minha, como te empenhaste em demonstrar-me, farei o que te disse. Mas se assim não for, continuarei judeu como sou agora.” Quando ouviu isto, Giannotto sentiu-se profundamente contristado e disse lá para consigo: “Perdeu-se todo o esforço que me parecia ter sido tão bem empregue, julgando eu que o tinha convertido.
Se ele for à corte de Roma e observar a vida celerada e imunda dos clérigos, não creio que de judeu se faça cristão. Antes, se já se tivesse feito cristão, voltaria a fazer-se judeu.” E disse, voltando-se para Abraão: “Ó meu amigo, porque vais tu meter-te nesses trabalhos e numa despesa tão grande como é ires daqui até Roma? Além disso, tanto por mar como por terra, tudo está cheio de perigos para um homem rico como tu és. Não achas que deves procurar aqui quem te dê o baptismo? E se, porventura, possuis algumas dúvidas acerca da fé que eu te apresento, onde encontras tu mestres maiores e homens mais entendidos nela do que aqui, que te possam esclarecer sobre o que pretenderes ou perguntares? É por estas razões que, no meu parecer, a tua viagem é supérflua. Pensa que lá os prelados são como os que tens visto aqui e, até, tanto melhores quanto eles estão mais perto do pastor principal. Por isso, a meu conselho, devias guardar tais trabalhos para outra ocasião, por altura duma indulgência, em que porventura eu te farei companhia.” O judeu respondeu-lhe: “Acredito, Giannotto, que seja como tu me contas; mas, para te dizer tudo numa palavra, estou inteiramente resolvido a ir, se quiseres que eu faça o que tão insistentemente me pediste. De outro modo, nunca farei nada disso.” Vendo a sua resolução, Giannotto disse: “Então, que faças uma viagem feliz!” E ficou--se a pensar que o judeu nunca se tornaria cristão depois de ter visto a corte de Roma. Como, porém, não perdia nada, silenciou-se.
“O judeu montou a cavalo e dirigiu-se à corte de Roma o mais depressa que pôde. Ao chegar foi recebido com todas as honras pelos seus confrades judeus. Alojando-se na cidade e sem falar a ninguém sobre o motivo da sua ida, começou discretamente a observar os modos de vida do Papa, dos cardeais, dos outros prelados e de todos os cortesãos. Do que ele se foi apercebendo, como homem perspicaz que era, e, ainda, do que o informavam alguns, descobriu que, do mais alto ao mais pequeno, todos eles, com a maior desonestidade, pecavam por luxúria, não só a natural, como ainda a sodomítica, sem qualquer freio de remorso ou de vergonha. Era de tal ordem que a influência das meretrizes e dos amásios não era de somenos força para impetrar até os maiores favores. Além disto, abertamente os descobriu, a todos eles, glutões, bêbedos inveterados e, depois da luxúria e mais que do resto, escravos do ventre à guisa de brutos animais. Continuando a observar, viu serem todos avarentos e cobiçosos de dinheiro. O próprio sangue humano, ou mesmo cristão, e as coisas divinas, provenientes de sacrifícios ou de benefícios, fosse o que fosse, tudo se comprava e vendia por dinheiro, fazendo-se mais negócios e jogos de bolsa do que em Paris se faziam de tecidos ou de qualquer outra coisa. À evidente simonia davam o nome de “procuração” e à gula o de “sustentações”, como se Deus não conhecesse, não digo o significado das palavras, mas as intenções daqueles espíritos corruptos e, à maneira dos homens, se deixasse enganar pelo nome das coisas. Extremamente desagradado com todos aqueles factos e muitos outros que mais vale silenciar, parecendo-lhe ter visto o bastante, como homem sóbrio e modesto que era, o judeu resolveu voltar a Paris e assim fez. Giannotto, mal soube que ele regressara, nenhuma outra coisa esperando menos do que vê-lo fazer-se cristão, foi visitá-lo e fizeram grande festa um ao outro. Depois de Abraão ter descansado alguns dias, Giannotto perguntou-lhe o que lhe parecera do Santo Padre, dos cardeais e dos outros cortesãos. O judeu respondeu-lhe prontamente: “Acho que Deus tem de castigar todos. Digo-te isto porque, se bem os soube observar, não me pareceu ver neles nenhuma santidade, nenhuma devoção, nenhuma boa obra, nenhum exemplo de vida ou outro, fosse em que clérigo fosse. Só a luxúria, a avareza, a gula, a fraude, a inveja, a soberba e coisas semelhantes ou piores, se de algum modo pode haver piores, me parecem gozar de tal favor por todos eles, que Roma mais me parece uma forja de obras diabólicas do que de obras divinas. Pelo que posso julgar, parece-me que o vosso pastor, e com ele todos os outros, se empenham com inteira solicitude, engenho e arte em reduzir ao nada e a expulsar do mundo a religião cristã, quando dela deviam ser o fundamento e o apoio. Ora, por ver que não acontece o que eles procuram, mas que a vossa religião constantemente cresce e torna-se mais lúcida e mais clara, com razão me parece discernir que o Espírito Santo deve ser o seu fundamento e o seu apoio, como religião mais verdadeira e mais santa do que qualquer outra. Por tal motivo, eu que me conservava duro e rígido perante as tuas exortações, digo-te agora abertamente que por coisa nenhuma quero deixar de fazer-me cristão. Vamos, pois, à igreja e manda-me baptizar segundo o devido costume da vossa santa fé.” Giannotto, que estava à espera duma conclusão exactamente contrária a esta, quando o ouviu assim falar, sentiu-se o homem mais feliz do mundo. Dirigindo-se com ele à Igreja de Nossa Senhora de Paris, pediu aos clérigos que dessem o baptismo a Abraão. Ouvindo da boca de Giannotto o pedido, imediatamente o satisfizeram. E Giannotto acompanhou-o à fonte sagrada e deu-lhe o nome de João. Depois, mandou-o instruir na nossa fé por homens de muita competência. Depressa ele se instruiu e viveu depois como homem repleto de bondade, de valor e de vida santa.”
O judeu Melquisedeque vence com a história dos três anéis um grave perigo que lhe armara Saladino (Nota 14) A parábola dos três anéis é um tema tradicional que se presta tanto para uma declaração de cepticismo como para uma lição de tolerância religiosa. Já tinha aparecido num breve conto de Novellino e volta a aparecer aprofundada num drama de Lessing, Nathan der Weise (Natã, o Sábio). Agora serve de arma no diálogo entre duas subtis inteligências, diálogo onde – e aqui está o seu imprevisto – a disputa de dois egoísmos se transforma em disputa de duas generosidades, indo coroar-se na amizade. A virtude é filha da inteligência: eis um tema característico de Boccaccio. (Fim da nota).
Depois de todos terem louvado a novela de Neífile, esta calou-se e, quando aprouve à rainha, Filomena começou a falar do seguinte modo.
“A novela contada por Neífile traz-me à memória o perigoso caso que se passou com um judeu. E como já se falou muito e bem acerca de Deus e da verdade da nossa fé, não será de recusar que desçamos agora até aos acontecimentos e aos actos dos homens. Irei, pois, contar-vos a minha novela e talvez que, depois de a terdes escutado, vos torneis mais cautelosas nas respostas às perguntas que vos forem feitas.
“Deveis saber, amorosas companheiras, que, tal como a estultícia muitas vezes afasta o homem da situação feliz e o coloca em extrema miséria, assim também o bom senso afasta o homem avisado de gravíssimos perigos e o coloca em grande e seguro repouso. Que seja verdade a estultícia conduzir a alguns duma boa situação para a miséria, vê-se por muitos exemplos de que não temos presentemente intenção de falar, considerando que todos os dias saltam à vista mil casos desses. Mas que o bom senso seja causa de consolação é o que vos irei mostrar, como prometi, numa breve novela.
“Saladino (Nota 15) Salah-ed-din (1137-1193), filho dum alto dignitário maometano (e não de nascimento humilde, como julgava Boccaccio, tornou-se sultão do Egipto (que é aqui chamado frequentemente de Babilónia) e reconquistou Jerusalém para o Islão em 1187. Ganhou fama de soberano justo e amável, mesmo entre os escritores cristãos. (Cf. Dante, Inferno, IV, pp. 129; Boccaccio, Decâmeron, X, IX.) (Fim da nota), cujo valor tanto era que não somente de homem humilde ascendera a sultão da Babilónia, como ainda conseguira muitas vitórias sobre reis sarracenos e cristãos, gastou todo o seu tesouro em diversas guerras e em obras de grande magnificência. Por qualquer acidente que lhe sobreveio, viu-se precisado duma boa quantidade de dinheiro, não vendo de onde o pudesse obter tão depressa como era necessário. Veio-lhe, então, à memória um rico judeu chamado Melquisedeque, o qual fazia empréstimos a juro em Alexandria. Sabia que ele poderia valer--lhe quando quisesse, mas que era tão avarento que nunca o faria de vontade. Por seu lado, Saladino não queria usar de violência. Como a necessidade o apertasse mais, esforçou-se por encontrar maneira de o judeu lhe valer e resolveu empregar violência colorida de alguma razão. Mandou-o chamar, recebeu-o com muita familiaridade, fê-lo sentar-se com ele e disse-lhe depois: “Valoroso homem, várias pessoas me têm dito que és uma pessoa sapientíssima e que penetras muito a fundo nas coisas de Deus. Por isso, gostaria de saber de ti qual das três leis consideras a verdadeira: a judaica, a sarracena ou a cristã?” O judeu, de facto, era um homem sábio e deu-se bem conta de que Saladino queria apanhá-lo nas palavras para lhe levantar algum processo. E pensou que não podia louvar nenhuma das três mais do que as outras sem que Saladino não atingisse os seus intentos. Aguçado o engenho por ver a necessidade que tinha duma resposta com a qual não fosse apanhado, prontamente lhe aflorou ao espírito o que devia dizer. E falou: “Meu senhor, é uma bela pergunta a que me fazeis e, para vos dizer o que penso, acho melhor contar-vos uma pequena história, que ireis ouvir. Se não me engano, lembro-me de ter ouvido dizer muitas vezes ter existido um homem poderoso e rico que, entre as outras jóias mais estimadas que guardava no seu tesouro, possuía um anel belíssimo e precioso. Querendo prestar homenagem ao seu valor e à sua beleza e deixá-lo para sempre na mão dos seus descendentes, ordenou que aquele dos seus filhos em cuja mão o anel fosse encontrado, por dele o haver recebido, fosse considerado seu herdeiro, devendo ser honrado e reverenciado por todos os outros como o maior. Aquele a quem o anel fora deixado dava ordem semelhante aos seus descendentes, fazendo exactamente como o seu predecessor. Em resumo, assim andou o anel de mão para mão, passando por muitos sucessores, até que ultimamente chegou à mão de um que tinha três filhos belos, virtuosos e muito obedientes ao pai. Amava-os, por isso, a todos da mesma maneira. Os jovens eram sabedores da tradição do anel e cada um deles, desejoso de ser o mais venerado, rogava em particular e o melhor que sabia ao pai, que já estava velho, para lhe deixar o anel quando morresse. O bondoso homem, que os estimava a todos de igual maneira e que não era capaz, ele próprio, de eleger o filho a quem o devesse deixar, pensou em satisfazê-los a todos da mesma forma, prometendo a cada um um anel. Em segredo, encomendou a um bom artesão que fizesse outros dois anéis, os quais resultaram tão semelhantes ao primeiro que nem o fabricante conseguiu dizer qual era o verdadeiro. Ao avizinhar-se a morte, deu um dos três anéis secretamente a cada um dos filhos. Após a morte do pai, quis cada um deles apoderar-se da herança e da honra. Como as recusassem uns aos outros, cada um puxou do seu anel como prova de razão do que devia ser feito. Vendo os anéis tão parecidos entre si que não era possível saber qual era o verdadeiro, ficou por resolver e ainda hoje continua pendente a questão de quem seria o legítimo herdeiro do pai.
“O mesmo vos digo, meu senhor, sobre as três leis dadas por Deus Pai aos três povos, acerca das quais me fizeste a pergunta. Cada povo crê possuir precisamente a sua verdadeira lei e cumprir os seus mandamentos, mas ainda hoje continua pendente, como no caso dos anéis, a questão de saber quem possui a verdade.” Saladino reconheceu o judeu haver sabido evitar excelentemente o laço que lhe estendera diante dos pés e, por isso, resolveu-se a revelar-lhe a sua necessidade para ver se ele o queria ajudar. Assim fez, declarando-lhe o que tinha em pensamento fazer se ele não tivesse respondido tão prudentemente como o fizera. O judeu emprestou-lhe de boa vontade toda a quantia pedida por Saladino e este satisfez depois integralmente a dívida. Além disso, ofereceu-lhe valiosos presentes e considerou-o sempre como seu amigo, mantendo-o junto de si num grande e honroso cargo.”
Um monge, caído em pecado de gravíssima punição, livra-se censurando oportunamente o seu abade pela mesma culpa (Nota 16) A nossa novela desenrola-se num mosteiro de homens, tal como a segunda novela da IX jornada se desenrolará num mosteiro de mulheres, apresentando afinidades com esta, porque ambas com um mote que desmascara a hipocrisia dos superiores. Agora o tema dominante é o triunfo dos instintos naturais sobre as regras ascéticas. A simpatia do autor volta-se para o jovem monge, mas também não é olhado com demasiada severidade o Dom Abade, que “era homem esperto” e cujo solilóquio não vai contra a moral boccacciana. (Fim da nota).
Despachada a sua novela, mal Filomena se calara, quando Dioneu, sentado ao lado dela e sem esperar outra ordem da rainha por já saber, pela ordem como se começara, caber-lhe intervir, começou a falar deste modo:
“Amorosas damas, se compreendi bem a intenção de todas, encontramo-nos aqui para nos divertirmos uns aos outros contando histórias. Portanto, desde que não se vá contra isso, julgo lícito a cada um (como ainda há pouco a nossa rainha disse que era) contar a novela que pensa mais poder agradar. Por ter ouvido que Abraão salvou a alma por haver seguido os bons conselhos de Giannotto de Civigni e que Melquisedeque defendeu as suas riquezas das armadilhas de Saladino com o seu bom senso, tenciono contar em poucas palavras o expediente com que um monge livrou o corpo de gravíssima pena.
“Em Lunigiana, terra não muito longe daqui, havia um convento mais cheio, então, de santidade e de monges do que actualmente. Entre os demais, havia um jovem monge cujo vigor e frescura nem os jejuns, nem as vigílias conseguiam macerar. Certo dia, ao começo da tarde, enquanto os outros monges dormiam, aconteceu-lhe ter ido por acaso passear em volta da igreja que ficava num sítio bastante solitário. Surgiu-lhe, então, uma donzela bastante bonita, porventura filha de algum dos camponeses da região, a qual andava ali pelo campo a colher certas ervas. Mal a viu, logo ferozmente o assaltou a concupiscência da carne. Aproximou-se mais, meteu-se de conversa com ela e, de palavra em palavra, chegou a acordo com a rapariga, levando-a consigo para a sua cela sem que ninguém desse conta. Enquanto o monge, arrebatado pelo excessivo desejo, se comprazia com a rapariga dum modo menos cauteloso, aconteceu que o abade se levantou da sesta e, passando mansamente diante da cela, ouviu o barulho que ambos faziam. Para melhor perceber as vozes, encostou o ouvido cautelosamente à porta da cela e teve, então, a certeza de que havia mulher lá dentro. Veio-lhe forte tentação de mandar abrir a porta, mas depois lá pensou que devia tomar outra atitude e, voltando ao seu quarto, esperou que o monge saísse. Embora ocupado no seu grandíssimo prazer e deleite com a jovem, nem por isso o monge estava menos alerta. Parecendo--lhe ter ouvido um rumor de passos no dormitório, espreitou por um pequeno orifício e viu perfeitamente o abade à escuta, percebendo muito bem que ele devia ter descoberto que estava uma rapariga na sua cela. Deixou-o extremamente preocupado saber que o facto lhe iria acarretar pesado castigo. Mas, sem mostrar nada da sua inquietação à rapariga, começou logo a magicar muitos planos, à procura de algum que o pudesse salvar. Lembrou-se, então, duma artimanha nova que lhe servia perfeitamente para o fim imaginado. Dando a entender que lhe parecia ter estado já muito tempo com ela, disse à rapariga: “Vou procurar maneira de saíres daqui sem seres vista. Fica, portanto, sossegada até à minha volta.” Saiu da cela, fechou a porta à chave e foi direito ao quarto do abade para lhe entregar a chave como todos os monges costumavam fazer quando iam sair. Com ar sorridente, disse-lhe: “Senhor, esta manhã não consegui trazer toda a lenha que recolhi. Com vossa licença, vou agora ao bosque para a trazer.” O abade, supondo que o monge não descobrira que ele o tinha apanhado, ficou feliz com aquela oportunidade de se informar mais cabalmente do pecado que o monge cometera e de bom grado pegou na chave e deu a licença. Quando o viu ir-se embora, começou a pensar no que seria preferível fazer: se abrir a cela na presença de todos os monges e mostrar-lhes aquele pecado para que não houvesse depois razão de murmurarem contra ele quando castigasse o monge, ou se ouvir primeiro da rapariga como se passara aquele negócio. Pensando lá consigo que ela podia ser mulher ou filha de algum homem a quem ele não devia dar a vergonha de a ter mostrado diante de todos os monges, achou melhor ver primeiro de quem se tratava e depois decidir. Às ocultas, encaminhou-se para a cela, abriu-a, entrou e voltou a fechar a porta. A moça, quando viu entrar o abade, ficou toda confusa e, cheia de vergonha, começou a chorar. O senhor abade, poisando-lhe o olho em cima e achando-a bonita e fresca, embora fosse velho, sentiu de repente não menos fogosos os estímulos da carne como os sentira o jovem monge. E deu-se consigo a pensar: “Ora! Porque não hei-de eu pegar no prazer quando o tenho aqui à mão, como se fosse obra que o desprazer e o enfado tivessem preparada sempre que me apetecesse? Esta é uma bonita rapariga e não há aqui ninguém deste mundo que o possa saber. Se a conseguir convencer a satisfazer-me os desejos, não encontro razão de o não fazer. Quem é que vai saber? Nunca haverá ninguém que o descubra e pecado encoberto é pecado meio perdoado. Talvez nunca mais volte a encontrar uma ocasião destas. Acho de grande sensatez agarrar uma coisa boa quando Deus a envia ao encontro de alguém.” Assim pensando e por completo mudando a intenção que ali o levara, chegou-se mais à rapariga, começou meigamente a confortá-la e a pedir-lhe que não chorasse. De palavra em palavra, acabou por declarar--lhe o seu desejo. A rapariga, que não era de ferro nem de diamante, vergou-se com bastante facilidade aos prazeres do abade. Este abraçou-a, beijou-a repetidamente e trepou para a cama do monge. Mas, porventura tendo em conta o grave peso da sua dignidade e a tenra idade da jovem, com receio de a poder magoar com o seu exagerado peso, não se deitou ele sobre o peito dela; colocou-a antes sobre o seu peito e durante largo tempo com ela se divertiu.
“O monge, que simulara ter ido para o bosque, mas se escondera no dormitório, logo que viu o abade entrar sozinho na sua cela, teve a certeza de que o estratagema ia dar resultado e ainda mais certo ficou ao vê-lo trancar-se lá dentro. Saiu de onde estava e cautelosamente dirigiu-se ao orifício através do qual viu e ouviu tudo o que o abade fez ou disse. Quando ao abade pareceu já ter demorado bastante tempo com a rapariguinha, deixou-a fechada na cela e voltou para o seu quarto. Passando algum tempo, ao sentir o monge e supondo que ele voltava do bosque, decidiu repreendê-lo asperamente e metê-lo no cárcere, para que só ele pudesse ficar de posse da presa conquistada. Mandou-o chamar, repreendeu-o com toda a dureza e de rosto carregado, ordenando que o metessem no cárcere. Respondeu-lhe com toda a presteza o monge: “Senhor, não me encontro ainda há tempo que chegue na Ordem de S. Bento para já conhecer todos os pormenores da sua regra. Vós ainda não me havíeis mostrado que os monges se devem deixar esmagar pelas mulheres como pelos jejuns e vigílias. Mas, agora que me haveis mostrado, prometo--vos, se me perdoardes, que não voltarei a cometer tal pecado, antes farei como vi que vós fizestes.”
“O abade, que era homem esperto, percebeu imediatamente que o monge não só era mais sabido que ele, como ainda assistira ao que ele tinha feito. Com o remorso da culpa própria, teve vergonha de cometer ao frade o mesmo que também ele merecia. Perdoou-lhe, por isso, e impôs-lhe que guardasse silêncio sobre o que tinha visto. Prudentemente puseram a rapariga na rua, mas é de supor que a mandassem voltar mais vezes.
A marquesa de Monferrato reprime o louco amor do rei de França Com um banquete de galinhas e umas tantas palavras graciosas (Nota 17) Na tradição novelesca, a começar pela oriental, não rareiam os motes com que uma mulher consegue conter o atrevimento dum homem de condição superior à sua; o desta novela não é dos mais argutos. O valor está na figura da marquesa, que se movimenta com desenvoltura diante do cenário senhoril da sua casa e arrefece com um banho de água fria os ardores do rei, fazendo-o voltar, não sem um geral embaraço, às leis da conveniência, se não às da virtude. (Fim da nota).
A novela contada por Dioneu feriu um pouco de vergonha os corações das damas que o escutavam, do que foi sinal o honesto rubor surgido nas suas faces. Mas depois, olhando umas para as outras e mal conseguindo dominar o riso, continuaram a ouvir com um leve sorriso malicioso. Quando a novela chegou ao fim, a rainha repreendeu-o com algumas doces palavrinhas, a fim de mostrar que tais histórias não eram de contar diante de senhoras. E, voltando-se para Fiammetta, que estava sentada na relva ao lado de Dioneu, ordenou-lhe que prosseguisse pela mesma ordem. Com graciosidade e rosto prazenteiro, Fiammetta começou:
“Seja porque me agrada termos começado, com as novelas, a mostrar quanta é a força das respostas belas e prontas, seja ainda porque, assim como nos homens é grande sensatez buscar sempre o amor de uma mulher de linhagem mais alta do que a sua, igualmente nas mulheres é da maior prudência saberem-se guardar de caírem apaixonadas por um homem superior a elas, veio-me ao espírito, minhas formosas damas, mostrar-vos na novela que me cabe contar-vos como, por meio de obras e de palavras, uma gentil dama se defendeu a si e afastou alguém duma situação dessas.
“O marquês de Monferrato, homem de alto valor e gonfaloneiro da Igreja, partira para o além-mar numa grande travessia de cristãos feita com forças armadas. Falando-se do seu valor na corte do rei Filipe, O Vesgo (Nota 18) Filipe Augusto (1165-1223). Trata-se da III Cruzada (1189-1192), na qual também participou o marquês Bonifácio I de Monferrato. (Fim da nota), o qual se aprestava a sair de França, a caminho da mesma travessia, foi dito por um cavaleiro que não existia debaixo do Céu um casal igual ao do marquês e da sua esposa. Quanto o marquês era famoso por todas as virtudes entre os cavaleiros, tanto o era a esposa em beleza e virtude entre todas as mulheres do mundo. Estas palavras penetraram de tal maneira na alma do rei de França que, sem nunca a ter visto, logo começou a amá-la apaixonadamente. Resolveu só embarcar em Génova para a travessia a que ia. Indo por terra, encontraria uma razão aceitável de fazer visita à marquesa, convencendo-se de que, com a ausência do marquês, seria possível realizar o seu desejo. Como pensou, assim mandou executar. Enviou adiante alguns homens e pôs-se a caminho acompanhado de poucos fidalgos. Quando chegou perto das terras do marquês, um dia antes mandou dizer à marquesa que o esperasse na manhã seguinte para almoçar. A marquesa, prudente e esperta, respondeu ledamente que era uma suprema honra, acima de todas as demais, e que ele seria bem-vindo. Começou depois a pensar no que significaria aquilo de um tão importante rei a visitar na altura em que o seu marido não se encontrava em casa. Não se enganou no pressentimento de que ele vinha atraído pela fama da sua beleza. Apesar disso, decidida a prestar-lhe as devidas honras como virtuosa dama, convocou os homens prudentes que haviam ficado e, seguindo os seus conselhos, mandou organizar tudo o que era oportuno. Mas quis ser ela sozinha a decidir sobre o banquete e as iguarias. Sem perda de tempo, mandou apanhar quantas galinhas houvesse na região e ordenou aos cozinheiros que preparassem os vários pratos do banquete real apenas com as galinhas.
“O rei chegou no dia marcado e foi recebido com grande festividade e honras pela marquesa. Ao pôr os olhos nela, pare-ceu-lhe muito mais bonita, virtuosa e educada do que imaginara com as palavras do cavaleiro. Ficou extremamente maravilhado e elogiou-a grandemente, ardendo tanto mais no seu desejo quanto mais achava que a dama ultrapassava a anterior imagem que fizera sobre ela. Depois de haver tomado algum repouso em salas muito bem decoradas, como pertence a uma condigna recepção de tão importante rei, chegou a hora do almoço. Sentaram-se a uma mesa a marquesa e o rei, enquanto os outros foram honrados, consoante a sua categoria, nas restantes mesas. O rei sentia-se sumamente agradado enquanto era servido sucessivamente de muitos pratos e de vinhos excelentes e preciosos, além de ir olhando com prazer, de vez em quando, a formosíssima marquesa. Mas, à medida que os pratos se iam sucedendo, começou o rei a ficar um tanto intrigado por reparar que, embora fossem variadas as iguarias, todas elas eram feitas de galinha. Como o rei sabia que o lugar onde se encontravam não podia deixar de ser muito rico em variadas espécies de caça e que, havendo anunciado previamente a sua vinda, a dama tivera tempo de mandar fazer a caçada, embora isto lhe causasse muito espanto, não quis deixar de aproveitar a ocasião para falar precisamente das galinhas. Voltou-se para a dama e disse-lhe com ar sorridente: “Senhora, nesta terra nascem apenas galinhas e nenhum galo?” A marquesa, que entendeu perfeitamente a pergunta, e parecendo-lhe que Deus lhe mandava, conforme o seu desejo, o momento oportuno para mostrar o seu propósito, dirigiu-se afoitamente ao rei e respondeu à pergunta que ele fizera: “Não, meu senhor. Mas as mulheres, ainda que sejam diferentes umas das outras nos vestidos e nas honras, são todas iguais, aqui ou noutro lado.” Ouvindo tais palavras, o rei compreendeu bem o motivo do banquete só de galinha e a virtude que aquelas palavras encerravam. Convenceu-se, pois, de ser inútil gastar palavras com tal mulher e de não haver lugar para a violência. Assim como inconsideradamente se inflamara por ela, assim também prudentemente, e para salvaguarda da sua honra, tinha de apagar o mal concebido fogo. Não voltou, portanto, a dirigir-lhe qualquer outro motejo, com medo das suas respostas, e continuou a comer pondo de lado toda a esperança. Acabado o almoço, procurando encobrir a sua desonesta visita com a pressa de partir, agradeceu a honra que da marquesa havia recebido e abalou para Génova, enquanto ela o encomendava a Deus.”
Um valente homem confunde com uma bela sentença a maldosa hipocrisia dos religiosos (Nota 19) A hipocrisia é um dos vícios que Boccaccio mais detesta. Quando usada como tutela duma necessidade natural, o que acontece na quarta novela, pode olhá-la com certa indulgência, mas condena-a severamente quando ela se torna uma arma ao serviço da cobiça. Daí a dureza com que é escarnecido o inquisidor (que é um Personagem histórico: frei Pedro de Áquila). Diante dele, figura de maior relevo, está o bom homem que engole “rigorosamente” os seus bocados amargos, mas que, depois, também, desafoga um pouco o seu fel. (Fim da nota).
Depois de todas terem elogiado a virtude da marquesa e o airoso castigo dado ao rei de França, Emília, que estava sentada junto de Fiammetta, logo que aprouve à rainha, começou afoitamente a contar:
“Também eu não calarei a ferroada que um valente homem secular deu a um religioso avarento com uma sentença que tanto é de rir como de louvar.
“Vivia não ainda há muito tempo na nossa cidade, queridas donzelas, um frade menor que era inquisidor da perversão herética. Por muito que ele se empenhasse em parecer santo e terno amante da fé cristã, como todos eles fazem, não menos se mostrava bom inquisidor de quem tinha a bolsa cheia do que de quem ele sentisse falho de fé. A sua solicitude levou-o a descobrir, por acaso, um bom homem muito mais rico de dinheiro do que de sensatez. Esse homem, não tanto por falta de fé mas por falar ingenuamente, talvez aquentado pelo vinho ou por demasiada boa disposição, dissera um dia, numa roda de amigos, possuir um vinho tão bom que até Jesus Cristo o beberia. Isto foi relatado ao inquisidor e, como este descobriu que as fazendas do homem eram grandes e bem recheada a sua bolsa, cum gladiis et fustibus (Nota 20) “Com espadas e com bastões”. Expressão tirada do Evangelho de S. Lucas. (Fim da nota), correu com toda a impetuosidade a pôr-lhe em cima um processo muito grave, decidindo que devia proceder, tal como fez, não à correcção da descrença do inquirido, mas ao enchimento de florins a sua mão. Mandou convocá-lo e perguntou-lhe se era verdade o que fora dito contra ele. Respondeu que sim o bom homem e contou as circunstâncias. A isto disse o santíssimo inquisidor e devoto de S. João Barba de Oiro: “Com que então fizeste de Cristo um bebedolas sequioso de vinhos afamados como se ele fosse Cinciglione (Nota 21) Bêbedo florentino de proverbial notoriedade. (Fim da nota) ou qualquer outro de vós, bêbedos e taberneiros! E, agora, com palavras mansas, queres mostrar que se trata de coisa sem grande importância? Não é como supões: merecias a fogueira se quiséssemos actuar em relação a ti como devia ser.” Com estas e outras palavras muito semelhantes e de sobrolho carregado, o frade falava-lhe como se ele fosse um Epicuro a negar a imortalidade das almas. Em resumo, tanto o assustou, que o bom homem, para que usassem de misericórdia com ele, mandou untar as mãos do frade através de certos intermediários com uma boa quantidade de unguento de S. João Boca de Ouro (Nota 22) S. João Crisóstomo (ou Boca de Ouro) foi um famoso orador sagrado do século IV; mas aqui o seu nome (como também o de S. João Barba de Ouro, criado por analogia) é apenas usado por divertida alusão ao ouro com que se compravam as absolvições. (Fim da nota), o qual muito alivia as enfermidades das pestilentas avarezas dos clérigos, especialmente dos frades
menores que nem ousam tocar no dinheiro. Esta unção tão cheia de virtude, ainda que em nenhum dos seus tratados de medicina Galeno se lhe refira, actuou tão eficazmente que a ameaça da fogueira se transformou numa cruz. E, como o homem estivesse de abalada para a travessia de além-mar, a fim de que o emblema tivesse mais beleza, fizeram a cruz de amarelo sobre fundo preto. Além disso, já com o dinheiro recebido, o frade reteve-o junto de si vários dias, dando-lhe a penitência de ouvir missa todas as manhãs na Igreja de Santa Cruz e de se apresentar diante dele à hora das refeições. Durante o resto do dia, podia o homem fazer o que bem lhe agradasse. O homem cumpriu rigorosamente e aconteceu que, certa manhã, ouviu cantar na missa, entre outras, estas palavras do Evangelho: “Recebereis cem por um e possuireis a vida eterna.” Ficou-lhe a frase firmemente gravada na memória.
“De acordo com as ordens recebidas, à hora da refeição apresentou-se diante do inquisidor e encontrou-o a almoçar. Perguntou-lhe o inquisidor se tinha ouvido missa nessa manhã e logo o homem respondeu: “Sim, senhor!” O inquisidor continuou: “Ouviste nela alguma coisa de que tenhas dúvidas ou de que desejes fazer alguma pergunta?” Disse o bom homem: “Não duvido de nada de quanto ouvi e creio firmemente ser tudo verdade. Ouvi, mesmo, uma coisa que me fez e me faz sentir muitíssima compaixão de vós e de outros vossos irmãos, pensando na maldita condição que haveis de encontrar na vida de além.” Perguntou o inquisidor: “Que palavra foi essa que assim te levou a sentir uma tal compaixão de nós?” O bom homem respondeu: “Senhor, foi aquela palavra do Evangelho que diz: Recebereis cem por um.” “Isso é verdade, disse o inquisidor, mas porque te comoveu essa palavra?” “Senhor, respondeu o bom homem, vou dizer-vos. Desde que venho aqui, tenho visto todos os dias darem lá fora a muita pobre gente ora um, ora dois caldeiros de sopa, a qual vos sobra a vós e aos outros frades do convento. Ora, se na outra vida vos derem cem por um, haveis de ter tantos caldeiros de sopa que ficareis todos afogados lá dentro.” Todas as outras pessoas que estavam à mesa com o inquisidor largaram-se a rir e o inquisidor sentiu-se todo vexado ao ver atingida a sua reles hipocrisia. Se não fosse a censura merecida pelo que tinha feito, seria capaz de mover novo processo contra o homem por causa daquele risível motejo que o ferira a ele e a outros poltrões. Furioso, mandou ao homem que fizesse o que Mais lhe apetecesse, mas que não voltasse a aparecer-lhe.”
Com uma novela sobre Primasso e o abade de Cluny, Bergamino critica cortesmente um bizarro gesto de avareza por parte do nobre senhor Cane della Scala (Nota 23) A novela apresenta alguma analogia estrutural com a primeira da terceira jornada, porque em ambos os casos se trata duma parábola ou narrativa exemplar inserta noutra história (esta técnica de entalhe já aparecia na novelística oriental, sendo levada ao extremo no Panciatantra) e também porque, através da parábola se resgata o momentâneo egoísmo dum espírito nobre. O seu fascínio está na aura de senhoril cortesia que transpira dos quatro personagens, na melancolia de Bergamino, na persuasiva sagacidade com que o primeiro leva os seus casos a coincidir com os do segundo. (Fim da nota).
A afabilidade de Emília e a sua novela fizeram rir a rainha e todos os circunstantes, elogiando-se o original expediente do cruzado. Mas, depois de acabarem os risos e de todos serenarem, Filóstrato, a quem tocava a vez de apresentar a sua história, começou a falar:
“É uma coisa bonita, virtuosas damas, atingir um alvo que se mantém imóvel; mas é quase milagre atimjir um objecto que surge inesperadamente diante dos olhos do archeiro. A viciada e sórdida vida dos clérigos oferece por si mesma, muito facilmente e em variados aspectos, um alvo imóvel de maldade para que toda a gente, conforme desejar, fale, critique e repreenda. Foi o que o valente homem fez muito bem atacando o inquisidor pela hipócrita caridade dos frades que dão aos pobres o que antes devia ser dado aos porcos ou lançado fora. Apesar de ter na devida conta a novela anterior, considero, no entanto, merecedor do maior elogio aquele que criticou com uma elegante novela o magnífico senhor Cane della Scala (Nota 24) Cane ou Cangrande (1291-1329), senhor de Verona e vigário imperial também exaltado por Dante, que foi seu hóspede (Paraíso, XVII, pp. 70 e segs.), é aqui referido pela sua liberalidade para o imperador Frederico II (1194-1250). Bergamino é provavelmente o autor duma obra latina intitulada Dialogus creaturarum e cujo nome deriva de Bérgamo, sua pátria. (Fim da nota), por causa dum súbito e inesperado gesto de avareza por este senhor cometido, assim representando noutrem o que pretendia dizer de si e dele. A história é a seguinte:
“Segundo uma ilustríssima fama que ressoa em quase todo o mundo, o nobre senhor Cane della Scala, que a fortuna favoreceu em muitos aspectos, foi um dos mais notáveis e magníficos senhores conhecidos na Itália desde o imperador Frederico para cá. O nobre resolveu organizar uma importante e maravilhosa festa em Verona, tendo afluído muita gente vinda de variados sítios, sobretudo aqueles cujo modo de vida consistia em frequentar as cortes. Inesperadamente, não se sabe por que razão, pôs de lado a ideia, recompensou em parte os que tinham vindo e despediu-os. Só um indivíduo chamado Bergamino, que, para quem já o ouvira, tinha fama de ser homem de conversa fácil e ornamentada, como não lhe fosse entregue nenhuma indemnização nem feito qualquer despedimento, continuou a ficar, esperando que não passaria sem uma vantagem futura. Meteu-se, porém, na cabeça do nobre Cane que tudo o que lhe desse seria mais desperdiçado do que se o lançasse ao fogo. Assim, nada lhe disse nem lhe mandou dizer. Passaram-se alguns dias e Bergamino viu que não o chamavam nem o convidavam para alguma coisa do seu ofício. Além disso, ia-se endividando na hospedaria com os seus cavalos e criados. Começou a ficar apreensivo, mas continuou à espera, pois não lhe parecia bem que partisse. Como trazia consigo três belos e ricos fatos, oferecidos por outros senhores, para se apresentar na festa com todo o decoro, e como o hospedeiro exigisse a paga, começou por lhe entregar um dos fatos. Em seguida, ainda continuando por muito mais tempo e tendo que ajustar contas por várias vezes com o hospedeiro, teve de entregar-lhe o segundo fato e começou a comer à conta do terceiro, disposto a esperar ainda o tempo para que o fato desse e a partir depois.
“Ora, estando ele a comer do terceiro fato, aconteceu ir lá almoçar, um dia, o senhor Cane, que o achou de aspecto bastante prostrado. Quando assim o viu, mais por zombaria do que por gosto de lhe ouvir um dos seus ditos, o senhor Cane disse: “Que tens, Bergamino? Estás tão melancólico! Diz lá qualquer coisa.” Então, Bergamino não pensou um segundo e, como se há muito o houvesse já pensado, imediatamente contou esta novela a propósito da sua situação:
“Meu senhor, decerto sabeis que Primasso (Nota 25) Primasso ou Primate, bispo de Colónia, viveu na primeira metade do século XIII, foi literato e poeta e são-lhe atribuídos alguns carmes goliárdicos, entre os quais um em louvor do vinho. (Fim da nota) foi um homem de muito valor em gramática e, mais que ninguém, um grande e repentista versejador. As suas obras tornaram-se tão notáveis que, embora em muitos lados o não conhecessem de vista, pelo nome e pela fama quase não havia pessoa que não soubesse quem era Primasso. Ora aconteceu encontrar-se ele em Paris, certa vez, em situação de carência, como se encontrava a maior parte do tempo, dado que o talento era pouco considerado pelos poderosos. Ouviu, então, falar dum abade de Cluny, considerado pelas suas rendas como o prelado mais rico da Igreja de Deus, à excepção do Papa. Sobre ele ouviu contar coisas maravilhosas e magníficas: que tinha sempre aberta a sua corte e que nunca recusava nem comida nem bebida a quem o procurasse quando o abade estava à mesa. Ouvindo isto, Primasso, como era homem que apreciava conhecer a gente nobre e senhoril, resolveu ir ver a magnificência daquele abade e informou-se da distância desde Paris até onde ele morava. Responderam-lhe que se encontrava a seis milhas, numa propriedade sua. Primasso pensou que, se partisse de manhã cedo, podia chegar a horas de almoçar. Pediu que lhe ensinassem o caminho e, como não encontrou companhia, receou que por desgraça viesse a perder-se e ir parar a sítio onde tão cedo não pudesse encontrar comida. Para não passar fome no caso de tal acontecer, pensou levar consigo três pães, achando que água para beber, se bem que pouco a apreciasse, a encontraria em qualquer parte. Metendo os pães encostados ao peito, pôs-se a caminho e tão bem lhe correu que chegou antes da hora do almoço ao sítio onde estava o abade. Entrou em casa, andou a ver tudo e, ao deparar com uma grande quantidade de mesas postas, com o grande aparato da cozinha e com os outros aprestos para o almoço, disse para si mesmo: “Realmente, ele é tão magnífico quanto se diz!” Continuava ele atento a tudo aquilo que o rodeava quando o mordomo do abade, por ser a hora de almoçar, deu ordens de vir água para as mãos. Trazida a água, distribuiu toda a gente pelas mesas. Quis o acaso que Primasso fosse colocado exactamente defronte da porta do quarto de onde sairia o abade para vir à sala a fim de almoçar. Era costume naquela corte não trazer para a mesa nem vinho, nem pão, nem qualquer outra comida ou bebida antes de o abade se ter sentado à mesa. Depois de o mordomo ter arrumado as mesas, mandou informar o abade que, assim que desejasse, o almoço estava pronto. O abade mandou abrir a porta do quarto para entrar na sala, querendo o acaso que o primeiro homem em que poisou a vista foi Primasso, o qual se apresentava com muito mau aspecto e a quem ele não conhecia pessoalmente. Mal o viu, imediatamente lhe aflorou ao espírito uma ideia desagradável que jamais sentira e comentou para si mesmo: “Ora vejam lá a quem eu dou de comer!” Voltou para trás, mandou fechar a porta do quarto e perguntou aos que estavam junto dele se alguém conhecia aquele maltrapilho que estava sentado à mesa defronte da porta do seu quarto. Responderam todos que não.
“Primasso, que sentia uma grande vontade de comer, como é próprio de quem fez uma caminhada e não tem o costume de jejuar, depois de esperar um pouco e de ver que o abade não chegava, sacou de junto do peito um dos três pães que trouxera e começou a comer. O abade, passado algum tempo, ordenou a um dos criados que fosse ver se Primasso se tinha ido embora. O criado respondeu: “Não, senhor! Pelo contrário, está a comer pão que parece haver trazido consigo.” Disse, então, o abade: “Pois coma do seu se o tem, que do nosso não comerá ele hoje!” Desejava o abade que Primasso se fosse embora por si mesmo, pois não lhe ficava bem despedi-lo. Primasso, depois de comido o pão e como o abade não viesse, começou a comer o segundo, o que foi igualmente relatado ao abade por aquele a quem mandara ver se ele se fora embora. Por fim, como o abade não aparecia e comido o segundo pão, Primasso começou a comer o terceiro, o que voltou a ser contado ao abade. Este começou, então, a pensar e a dizer lá para si: “Ora! Que estranha coisa esta que me veio à ideia! Que avareza e que desdém! E por causa de quê? Há tantos anos que dou de comer a quem desejar, sem olhar se a fidalgo ou a vilão, se a pobre ou a rico, se a mercador ou a vendilhão. Vi com os meus próprios olhos um sem número de maltrapilhos a fazer estragos e nunca me entrou no espírito um pensamento como este. Decerto que a avareza não me assaltou por homem de pouco interesse. De grande valor há-de ser este que me parece um maltrapilho para que a minha alma se obstine em não honrá-lo.” Dito isto, quis saber quem era o homem. Quando soube tratar-se de Primasso, vindo até ali para ver o que ouvira contar da sua magnificência, conhecendo o abade a sua fama de conhecido homem de mérito, sentiu-se envergonhado e, desejoso de emendar O erro, empenhou-se em honrá-lo de muitas maneiras. Depois de almoçarem, e segundo o que era de conveniência para a categoria de Primasso, mandou que o vestissem nobremente, deu-lhe dinheiro e um palafrém e deixou ao seu bel-prazer o partir e o ficar. Satisfeito com isto, agradeceu-lhe os favores o melhor que soube e a Paris, de onde viera a pé, voltou a cavalo.”
“O nobre Cane, que era senhor inteligente, sem mais nenhuma explicação, percebeu perfeitamente o que Bergamino queria dizer e, sorrindo, afirmou-lhe: “Bergamino, mostraste muito justamente os teus males, o teu talento, a minha avareza e aquilo que esperas de mim. De facto, nunca a avareza me assaltou tanto como agora por tua causa, mas vou expulsá-la com o mesmo cacete que tu imaginaste.” Mandou pagar ao hospedeiro, vestiu muito nobremente Bergamino com um fato dos seus, deu-lhe dinheiro e um palafrém e, por aquela vez, entregou à sua livre vontade o partir e o ficar.”
Guilherme Borsiere atinge com airosas palavras a avareza do nobre senhor Hermino de Grimaldi (Nota 26) Novela de argumento afim da precedente, mais polémica na sua nostalgia dos antigos costumes cavalheirescos e de linha mais simples, em que a brusca e nada convincente conversão do Grimaldi se baseia apenas num dito. (Fim da nota).
Ao lado de Filóstrato estava sentada Lauretta, que, depois de ouvir elogiar a astúcia de Bergamino e vendo caber a ela a vez de contar alguma coisa, gostosamente assim começou a falar sem esperar por nenhuma ordem:
“A novela anterior, queridas companheiras, leva-me a contar a forma parecida como um valoroso cortesão combateu com resultado a cupidez dum riquíssimo mercador. Embora a conclusão seja igual à anterior, não deixará de vos ser menos agradável, por ver que ao fim tudo acaba bem.
“Viveu em Génova há bastante tempo um gentil-homem chamado Hermino de Grimaldi, que, por aquilo que toda a gente julgava, possuía tão grandes propriedades e tanto dinheiro que ultrapassava de longe a riqueza de qualquer outro abastado cidadão conhecido, nesse tempo, em Itália. E se em riqueza ganhava a qualquer italiano, ultrapassava desmedidamente em avareza e em mesquinhez qualquer outro mísero e avarento que no mundo houvesse. Deste modo, não só apertava a bolsa no obsequiar os outros, como até nas coisas úteis à sua própria pessoa; e como o geral costume dos Genoveses, que gostam de vestir-se muito bem, suportava enormes privações para não gastar dinheiro, o mesmo fazendo na comida e na bebida. Era de tal ordem que merecidamente lhe tinham retirado o sobrenome dos Grimaldi e toda a gente lhe chamava apenas Hermino Avareza.
“Enquanto a sua fortuna, porque a não gastava, ia prosperando, chegou a Génova um valoroso cortesão, bem vestido e bem falante, chamado Guilherme Borsiere. Não era ele nada parecido com os cortesãos dos nossos dias, que merecem mais o nome de burros seguidores daqueles que, sem a mais pequena vergonha dos seus corruptos e desprezíveis costumes, presentemente querem ter o nome e a fama de fidalgos e de senhores; burros criados não nas cortes, mas na sua imundície de toda a malvadez desses repugnantes homens. Naqueles tempos, o ofício dos cortesãos e aquilo em que consumiam as suas forças era restabelecer as pazes onde houvessem nascido guerras ou rancores entre fidalgos; fomentar casamentos, laços de parentesco e amizades; com belos e espirituosos ditos, recrear os ânimos prostrados e divertir as cortes; com ásperas repreensões, como se fossem pais, censurar os defeitos dos maus. E tudo isto com Prémios muito pequenos. Hoje empenham-se em gastar o tempo a andar de um para outro a dizer mal, a semear a cizânia, a divulgar vícios e misérias e, o pior, fazendo isto na presença de toda a gente. Atiram à cara uns aos outros os males, as vergonhas, os vícios, verdadeiros ou não. Arrastam as pessoas nobres com falsas lisonjas para acções abjectas e criminosas, sendo considerado de maior apreço, mais honrado pelos indignos e depravados senhores, mais exaltado com altíssimos prémios aquele que diz as palavras ou comete as acções mais abomináveis. Eles são a grande vergonha e a lástima do mundo actual e fornecem evidentíssima prova de que as virtudes, deste mundo deportadas, abandonaram os míseros viventes na podridão dos vícios.
“Mas voltemos ao que eu tinha começado e de que uma justa ira me afastou mais do que eu emulava. O referido Guilherme foi recebido com honras e olhado com prazer por toda a fidalguia de Génova. Passados alguns dias de permanência na cidade e tendo ouvido muitas coisas sobre a sovinice e a avareza do nobre senhor Hermino, quis visitá-lo. Hermino já tinha ouvido falar de como Guilherme Borsiere era um homem de valor, e, guardando ainda dentro de si, apesar da sua avareza, alguma centelha de delicadeza, recebeu-o com palavras muito amistosas e de rosto sorridente, conversando com ele de muitos e variados assuntos. Enquanto iam conversando, levou-o juntamente com outros genoveses que estavam presentes até uma sua nova casa, mandada construir com muita beleza. Depois de ter mostrado a casa toda, disse: “Ah! Sr. Guilherme, vós, que muitas coisas tendes visto e ouvido, não me sabereis informar de alguma que nunca tenha sido vista e que eu pudesse mandar pintar na sala desta minha casa?” Guilherme, ao ouvir a disparatada pergunta, respondeu: “Senhor, penso não ser capaz de vos informar sobre coisa que nunca tenha sido vista, a não ser sobre os espirros e outras coisas parecidas. Mas, se desejais, informar-vos-ei bastante sobre uma que penso que vós nunca vistes.” Sem esperar pela resposta que ele iria dar, Hermino exclamou: “Ah! Peço-vos, dizei-me que coisa é essa!” Guilherme respondeu-lhe, então, prontamente: “Mandai pintar a cortesia” (Nota 27) Cortesia, segundo o significado etimológico, é o conjunto das virtudes em que se apoia o esplendor duma corte, especialmente a liberalidade. (Fim da nota). Quando ouviu esta palavra, apoderou-se de Hermino subitamente uma vergonha tamanha que teve a força bastante para o fazer mudar de sentimentos, quase para o oposto ao que até essa altura ele havia sido. Declarou então: “Sr. Guilherme, mandá-la-ei pintar de tal maneira que jamais nem vós nem outros podereis ter razão de dizer que eu não a vi nem a conheci.” Daí em diante, de tal virtude foi a palavra pronunciada por Guilherme, que Hermino se tornou, mais do que nenhum outro do seu tempo em Génova, o mais liberal e o mais amável gentil-homem, o que recebia com maiores honras a gente de fora e a da cidade”.
Picado por uma dama da Gasconha, o rei de Chipre torna-se de inepto em valente (Nota 28) A novela é uma das mais lineares do Decâmeron e retoma um tema já desenvolvido no Novellino, sem no entanto o aprofundar muito. A figura mais viva é a da altiva e apaixonada dama, que se reflecte inteiramente no acre motejo pelo feliz resultado tão inesperado. (Fim da nota).
Era para Elisa que restava a última ordem da rainha, mas ela não a esperou e começou alegremente:
“Jovens damas, já tem acontecido muitas vezes que uma palavra quase sempre dita por acidente e não de propósito consegue realizar numa pessoa o que não conseguem realizar várias repreensões e muitos castigos. É isto que a novela contada por Lauretta mostra muito bem. O mesmo vos quero, também, mostrar com outra novela bastante breve. Como as palavras bem ditas podem ser sempre úteis, devemos recolhê-las com atenção, seja quem for que as pronunciou.
“Nos tempos do primeiro rei de Chipre, depois de Godofredo de Bulhão (Nota 29) Godofredo de Bulhão tomou Jerusalém em 1099: o primeiro rei de Chipre foi, em 1192, Guido de Lusignano. (Fim da nota) ter conquistado a Terra Santa, aconteceu que uma nobre dama da Gasconha foi em peregrinação ao Sepulcro. Parando em Chipre no regresso, foi vilmente ultrajada por alguns homens celerados. Lamentando-se inconsolável, pensou em ir apresentar queixa ao rei, mas alguém lhe disse que era trabalho perdido, pois o rei era de vida tão remissa e tão pouco magnânimo que, em vez de vingar com a justiça quem sofresse injúria, até suportava com censurável fraqueza um sem número de injúrias cometidas contra ele, de tal modo que todos os que tinham qualquer queixa a manifestavam sem lhe despertar qualquer afronta ou vergonha. Ouvindo isto, a dama desesperou da vingança, mas decidiu colher algum consolo para o seu mal, indo estigmatizar a vilania do rei. Aparecendo chorosa na presença deste, disse-lhe: “Meu senhor, não venho à tua presença por esperar vingança da injúria que me fizeram. Mas, para sua compensação, rogo-te que me ensines a maneira como sofres as que oiço dizer que te fazem, para que, aprendendo de ti, eu seja capaz de suportar com paciência a minha. Deus sabe que, se me fosse possível, de boa vontade passaria para ti esta injúria, pois que as suportas tão bem.” O rei, até aí indolente e preguiçoso, como se acordasse do sono e começando por vingar com aspereza a injúria feita àquela dama, tornou-se um duríssimo perseguidor de todo aquele que, daí em diante, viesse a cometer algum acto contra a honra da sua coroa.”
Mestre Alberto de Bolonha delicadamente envergonha uma dama que o queria envergonhar a ele porque dela se tinha enamorado (Nota 30) É uma das novelas em que mais se realça o presságio dos novos tempos. O ideal de cultura e de graça espiritual delineado no prólogo parece antecipar o que vai tornar-se realidade no século XVI, e a arguta figura de mestre Alberto, com a sua reivindicação dum amor apoiado mais nas forças do espírito do que nas do corpo, parece prenunciar remotamente as auras platónicas do Renascimento. (Fim da nota).
Depois de Elisa ficar calada, restava à rainha a tarefa de contar a última novela. E assim começou ela a falar com graça feminina:
“Virtuosas donzelas, como no sereno firmamento as estrelas são adorno do céu e dos verdes prados, as flores na Primavera, assim os ditos graciosos são o adorno das louváveis maneiras e das conversas joviais. Esses ditos, porque são breves, ficam muito melhor nas mulheres do que nos homens, por ser mais inconveniente às mulheres do que aos homens falar muito e demasiado tempo quando se pode passar sem isso. Mas, pára geral vergonha nossa e de todas as mulheres do nosso tempo, restam hoje poucas mulheres ou nenhuma que entendam esses ditos ou que, embora entendendo, lhes saibam responder. A virtude, que as mulheres antigas possuíam nas almas, mudaram-na as modernas para os ornamentos do corpo, e aquela que hoje se apresenta vestindo os tecidos mais pintalgados, mais às riscas e mais floreados considera que há-de ser muito mais conceituada e muito mais estimada do que as outras. Não pensa ela que, se pusessem esses panos em cima dum burro, este carregaria com muito mais tecido do que nenhuma delas e nem por isso o honrariam mais do que um burro merece. Sinto vergonha de estar a dizer isto, porque não o posso afirmar contra as outras sem que o afirme contra mim própria: assim enfeitadas, assim coloridas, assim pintalgadas ou como estátuas de mármore, elas conservam-se mudas e insensíveis. Mesmo que, interpeladas, elas respondam, muito melhor seria que ficassem caladas. Estão convencidas de que o não saberem conversar entre as damas ou com os homens de valor resulta da candura de alma, e à sua estupidez puseram o nome de honestidade, como se apenas fosse honesta aquela que conversa com a criada, com a lavadeira ou com a padeira. Se fosse isto o que a Natureza quis, como elas supõem, ter-lhes-ia limitado de outro modo o seu chilreio. É verdade que, tal como noutras coisas, é preciso atender ao tempo, ao lugar e com quem se conversa. As vezes acontece, julgando uma mulher ou um homem fazer corar outra pessoa com um dito espirituoso, mas não tendo medido as suas forças com as do outro, sentir tombar sobre si o rubor que julgou provocar. Assim, para que saibais prevenir-vos e não se possa entender como sendo de vós aquele ditado muito corrente que diz que as mulheres em tudo agarram o pior, quero que a última novela de hoje que me cabe contar vos prepare para que, tal como vos distinguis das outras pela nobreza de alma, assim também vos mostreis diferentes das outras pela excelência de maneiras.
“Em Bolonha vivia, não ainda há muitos anos, e talvez ainda viva, um médico muito ilustre e de conhecida fama em quase todo o mundo. Chamava-se Mestre Alberto (Nota 31) Identificado com Alberto Zancari, leitor de Medicina na Universidade de Bolonha a partir do ano de 1326. (Fim da nota). Já idoso, com cerca de 70 anos, era tal a nobreza do seu espírito que, embora do corpo tivesse fugido quase todo o calor natural, isso não evitou acolher em si as chamas do amor. Ao ver em certa festa uma formosíssima viúva chamada, segundo alguns dizem, Margarida de Ghisolieri, sumamente encantado tal como se fosse um jovem, acolheu as amorosas chamas no seu maduro coração dum modo tal que não era capaz de repousar bem durante a noite se no dia anterior não tivesse visto o gracioso e delicado rosto da formosa dama. Por isso, começou a frequentar a rua em frente da casa da dama, umas vezes a pé, outras a cavalo, conforme lhe vinha mais a jeito. A dama e muitas outras aperceberam-se do motivo da sua passagem e frequentemente se juntavam a fazer troça por verem um homem tão carregado de anos e de ciência assim apaixonado. Supunham elas que esta tão agradável paixão do amor somente nas frívolas almas dos jovens, e em mais nenhuma outra parte, pudesse caber e demorar. Mestre Alberto continuava, no entanto, a passar pela rua. Ora, num dia de festa, aconteceu que a dama se encontrava sentada diante da sua porta, com muitas outras mulheres, quando viram de longe Mestre Alberto dirigir-se para elas. Combinaram todas com a dama recebê-lo e enchê-lo de atenções, para depois troçarem da sua paixão. Foi o que fizeram. Pondo-se todas de pé e convidando-o, conduziram-no para um fresco pátio, mandando vir finíssimos vinhos e confeitos. No fim, com palavras muito belas e graciosas, perguntaram-lhe como é que era possível enamorar-se por aquela formosa mulher, sabendo que ela era cortejada por tantos jovens, belos, gentis e elegantes. O mestre, sentindo-se pungir, muito cortesmente, mostrou cara alegre e respondeu: “Senhora, que eu ame não deve causar maravilha a nenhum entendido, sobretudo que eu vos ame a vós, pois que o valeis. E o facto de aos homens idosos serem naturalmente retiradas as forças que se requerem para os exercícios do amor, nem por isso lhes é retirada a boa vontade nem o conhecimento do que é o amor. Antes, tanto mais aprenderam da Natureza e quanta mais experiência eles possuem do que os jovens. A esperança que, a mim, que sou velho, me leva a amar-vos, a vós que sois amada por tantos jovens, é esta: já estive muitas vezes em sítios onde vi as mulheres comerem à merenda tremoços e alhos-porros. Do alho-porro nada se aproveita, mas o menos prejudicial e o mais agradável é a cabeça. Vós, porém, guiadas por errado apetite, segurais a cabeça com a mão e mastigais a rama, a qual, além de não prestar, tem sabor desagradável. Sei lá eu, minha senhora, se vós não fazeis o mesmo na escolha dos amantes? Se o fazeis, serei eu o vosso eleito e haveis de correr com os outros.” A gentil dama sentiu-se um tanto envergonhada, tal como as outras, e disse: “Mestre, muito bem e com muita cortesia nos castigais pelo nosso presunçoso empreendimento. Todavia, estimo o vosso amor, como merece um homem de ciência e de virtude. Por isso, salvaguardando a minha honestidade, podeis impor-me perfeitamente, como coisa vossa, qualquer vosso desejo.” O mestre pôs-se de pé com os seus companheiros, agradeceu à dama e riu-se, apresentou-lhe as despedidas alegremente e foi-se embora. Assim a dama, por não olhar de quem fazia troça, julgando vencer, acabou vencida. Se fordes prudentes, muito bem do mesmo vos haveis de guardar.”
Já o Sol descia para a hora de vésperas e o calor diminuíra em grande parte quando chegaram ao fim as novelas das jovens senhoras e dos três mancebos. Disse-lhes, pois, com amabilidade a rainha: “Já não me resta, queridas companheiras, coisa nenhuma que fazer no meu governo deste dia senão dar-vos nova rainha, que disponha, segundo o seu juízo, com honesto divertimento a sua e a nossa vida amanhã. Embora o dia pareça ainda durar daqui até à noite, como não parece possível providenciar para o futuro se não começarmos algum tempo antes, e para que a nova rainha se prepare para deliberar o que julgar oportuno para amanhã, julgo que devemos começar nesta hora os dias seguintes. Por isso, reverenciando Aquele por quem todas as coisas vivem e para nossa consolação, neste segundo dia será rainha para guiar o nosso reino Filomena, jovem muito sensata.” Depois disto, levantou-se, tirou a grinalda de louros e colocou-a, reverente, em Filomena, sendo a primeira a saudá-la como rainha, igualmente seguida pelas outras e pelos jovens, todos se oferecendo muito contentes à sua senhoria. Filomena, um tanto ruborizada, ao ver-se coroada como reinante e recordando-se das palavras pouco antes ditas por Pampínea, para não parecer tola, recobrou o ânimo, começou por confirmar os cargos distribuídos por Pampínea e decidiu o que se devia fazer na manhã seguinte e para a próxima ceia, continuando todos onde estavam. Em seguida, começou assim a falar:
“Caríssimas companheiras, ainda que Pampínea, mais por sua cortesia do que por minha virtude, me fizesse rainha de todas vós, nem assim estou disposta a seguir apenas o meu parecer sobre a forma de organizar a nossa vida, mas quero seguir igualmente o vosso. Assim, para conhecerdes o que penso fazer e, por conseguinte, possais acrescentar ou retirar o que quiserdes, vou expor-vos a minha intenção em poucas palavras. Se bem observei as decisões hoje tomadas por Pampínea, parece -me que elas conseguiram ser, ao mesmo tempo, louváveis e agradáveis. Por isso, não penso alterá-las enquanto elas não se tornarem maçadoras, ou por demasiada duração ou por outro motivo. Determinando, assim, continuarmos como começámos, levantai-vos e vamos divertir-nos um pouco. Quando o Sol estiver a pôr-se, cearemos ao fresco e, depois de algumas canções e de outros divertimentos, será bom irmos dormir. Amanhã, levantar-nos-emos cedo e iremos de novo para qualquer sítio divertir-nos como a cada um apetecer. E, como fizemos hoje, almoçaremos à hora marcada e dançaremos. A seguir à sesta, voltaremos a contar novelas como agora, pois me parece colhermos de modo igual muitíssimo prazer e utilidade. É verdade que desejo pôr em prática o que Pampínea não pôde fazer por ter sido eleita para o governo a hora tardia: limitarei a um único tema as histórias que iremos contar e vou revelar esse tema antecipadamente para que todos tenham tempo de pensar uma bonita novela a contar sobre o que foi proposto. É um facto que, desde o princípio do mundo, os homens têm sido guiados por diversos acasos da fortuna e assim hão-de continuar até ao fim. Cada um deve, pois, falar sobre isto: “Alguém, assaltado por diversos infortúnios, para lá da sua esperança consegue chegar a bom fim.”
Todos eles, mulheres e homens, louvaram unânimes esta ordem e afirmaram que a cumpririam. Apenas Dioneu, depois de os outros se haverem calado, é que disse: “Senhora, declaro-vos como todos os outros que a vossa ordem é extremamente agradável e louvável. Mas suplico-vos uma especial mercê, que desejo ter garantida enquanto durar a nossa companhia: que eu não seja obrigado a esta lei de ter de contar a novela segundo a proposta dada, se tal não me aprouver, mas sim a novela que mais me agradar dizer. E para que ninguém suponha que eu desejo esta mercê por ser homem que não tem à mão nenhuma história, desde agora ficarei contente se for sempre o último a falar.”
A rainha, que já o conhecia como brincalhão e divertido, compreendeu perfeitamente que ele não fazia aquele pedido senão para alegrar o grupo com alguma novela de riso quando estivessem cansados de falar. E, com a concordância dos outros, de bom grado lhe concedeu a mercê. Pondo-se todos de pé, dirigiram-se vagarosamente para uma ribeira de águas transparentes que descia duma colina até um vale coberto pela sombra de muitas árvores, correndo entre alvas pedras e verdes ervas. Ali chegadas, entraram na água descalças e de braços nus e começaram a fazer diversas brincadeiras entre elas. Aproximando-se a hora da ceia, voltaram ao palácio e cearam com prazer. Depois da ceia, e trazidos os instrumentos, ordenou a rainha que se fizesse uma dança guiada por Lauretta e que Emília cantasse uma canção, acompanhada com alaúde por Dioneu. Cumprindo a ordem, Lauretta apressou-se a escolher e a guiar uma dança, enquanto Emília cantava a seguinte canção amorosa (Nota 32) A balada inspira-se na representação dantesca de Raquel (Purgatório, XXVII, pp. 104 e segs.), que simboliza a vida contemplativa, a alma que se dobra sobre si mesma para descobrir no seu interior a beleza de Deus. Mas nesta balada circula e difunde-se em pura musicalidade um sentido de abandono quase voluptuoso. (Fim da nota):
Tão enamorada estou da minha beleza
que jamais de outro amor
não cuidarei nem creio apaixonar-me.
Vejo nela, sempre que olho para o espelho,
o bem que satisfaz o inteLecto,
nem acontecimento novo ou pensamento antigo
conseguem privar-me de tão estimado deleite;
que outro objecto assim agradável
podia alguma vez eu encontrar
que no peito me pusesse nova paixão?
Não me foge este bem, tanto eu desejo
contemplá-lo para minha consolação;
Antes, vem ao encontro do meu prazer
tão suave de sentir que não há palavras
que o digam, nem o poder entender
alguma vez um mortal
que não tenha ardido em igual paixão.
E eu, que a toda a hora mais me inflamo
quanto mais fixos tenho nele os olhos,
toda me entrego a ele, toda me rendo,
saboreando já o que ele me promete:
e quanto mais perto estou mais espero
uma alegria tão grande que jamais
de tal paixão cá se ouviu falar.
Concluída esta breve balada, a que todos respondiam alegremente (Nota 33) Repetindo em coro, depois de cada estância, o refrão (constituído pelos primeiros três versos). (Fim da nota), ainda que muito dessem que pensar a alguns as suas palavras, depois de mais algumas danças, e por já ter decorrido uma parte da breve noite, aprouve à rainha pôr fim à primeira jornada. Acendidas as tochas, ordenou que toda a gente fosse repousar até à manhã seguinte. E assim fez cada um, dirigindo-se para os seus quartos.
CONCLUÍDA A PRIMEIRA JORNADA DO “DECÂMERON”, COMEÇA A SEGUNDA, DURANTE A QUAL, SOB A REGÊNCIA DE FILOMENA, SE FALA DE ALGUÉM, QUE ASSALTADO POR DIVERSOS INFORTÚNIOS, PARA LÁ DA SUA ESPERANÇA CONSEGUE CHEGAR A BOM FIM (Nota 1) São quase todas novelas de aventuras e de fantasia, as chamadas novelas da fortuna. Veremos o que significa para Boccaccio a Fortuna em X, I, melhor do que no prólogo de II e III, onde se discorre solenemente sobre ela. De qualquer modo, nas novelas seguintes, exceptuando talvez a sexta e a sétima, é fácil relacionar as acções com móbeis humanos: o fascínio do juvenil atrevimento de Martellino, a imprudência de Reinaldo de Asti, o ardor da sua protectora, a constância de Landolfo, a virtude do conde de Antuérpia e a sagacidade de Ginevra. (Fim da nota)
Já o Sol trouxera com a sua luz sobre todas as coisas o novo dia e os passarinhos o testemunhavam aos ouvidos cantando encantadores versos nos verdes ramos, quando também todas as damas e os três jovens, já levantados, avançam pelos jardins. Calcando a orvalhada relva com passo vagaroso, andando de um lado para o outro e fazendo lindas grinaldas, passeiam durante largo tempo. Exactamente como no dia anterior, assim fizeram agora: depois de almoçarem ao fresco e de dançarem um pouco, foram descansar. Levantaram-se quando passava da hora noa e, logo que à sua rainha assim aprouve, voltaram para o fresco prado e sentaram-se em volta dela. A rainha, que era formosa e de muito aprazível aspecto, coroada com a sua grinalda de louro, demorou algum tempo o olhar em todos os rostos da companhia e ordenou a Neífile que iniciasse com uma sua novela a nova série. Neífile não se fez rogada e começou, feliz, a contar:
Martellino, disfarçando-se de paralítico, finge ser curado diante de Santo Arrigo. Descoberto o seu ardil, é espancado. Prendem-no depois e corre o risco de morrer na forca, mas à última hora escapa. (Nota 2) É uma sátira, como a de Cepparello, que se insere com absoluta indiferença no quadro da religiosidade ou da superstição popular. Perfeita na sobriedade, põe em relevo no meio de outras figuras menores a figura dum cómico genial, tendo como fundo uma multidão descrita com feliz profundidade psicológica. (Fim da nota)
“Acontece muitas vezes, caríssimas damas, que aquele que se empenhou em escarnecer de outrem, principalmente sobre coisas que são de respeitar, acaba por ver-se ele escarnecido e, por vezes, a contas sozinho com o prejuízo. Por esta razão e para obedecer ao mandamento da rainha, abrindo com uma novela minha o tema proposto, quero contar-vos primeiro a desventura e depois, fora de tudo o que ele esperava, a grande felicidade que aconteceu a um homem da nossa cidade.
“Vivia não ainda há muito tempo em Treviso um alemão chamado Arrigo (Nota 3) Trata-se do Beato Arrigo, ou Henrique, que em vida foi moço-de-fretes e que morreu em Treviso em 1315. (Fim da nota), o qual, como homem pobre que era, servia de moço-de-fretes pago por quem o contratava. Toda a gente o tinha por homem de vida muito santa e virtuosa. Fosse ou não verdade, o certo é que, segundo contam os habitantes de Treviso, quando ele morreu, à hora da sua morte todos os sinos da igreja-mor de Treviso começaram a tocar sem que ninguém os puxasse. Tomando o facto à conta de milagre, toda a gente proclamava que Arrigo era santo. O povo inteiro da cidade acorreu à casa onde jazia o corpo e transportaram-no para a igreja-mor como se fosse um corpo de santo. Trouxeram coxos, paralíticos, cegos e todos os atingidos por qualquer enfermidade ou defeito, como se todos devessem ficar curados ao tocarem naquele corpo. No meio do tumulto e do corrupio de povo, aconteceu chegarem a Treviso três conterrâneos nossos. Um chamava-se Stecchi, outro, Martellino, e o terceiro, Marchese. Eram homens que andavam de corte em corte para divertirem a assistência, mascarando-se e imitando qualquer pessoa com gestos bizarros. Eles nunca tinham estado ali e ficaram espantados ao verem toda a gente a correr. Quando souberam a razão do facto ficaram desejosos de ir ver também. Arrumada a bagagem num albergue, disse Marchese: “Queremos ir ver o santo, mas por mim não vejo como seja possível lá chegarmos. Ouvi dizer que a praça está cheia de alemães (Nota 4) Soldados mercenários. (Fim da nota) e de outra gente armada que o governador da terra mandou lá estar para não haver desordens. Além disso, ao que dizem, a igreja está repleta de povo e é quase impossível a uma pessoa lá entrar.” Então Martellino, que desejava ver o espectáculo, disse: “Não vamos desistir por isso, pois encontrarei maneira de chegar até junto do corpo do santo.” Retorquiu Marchese: “Como?” Respondeu Martellino: “Vou dizer-te. Eu disfarço-me de paralítico e vós, de um lado tu e do outro Stecchi, como se eu fosse incapaz de andar sozinho, segurais-me e fingis que me quereis levar para que o santo me cure. Ninguém, ao ver-me, deixará de me abrir caminho e deixar-me passar.” O plano agradou a Marchese e a Stecchi. Sem demora, saíram do albergue e foram os três para um local solitário. Martellino retorceu as mãos, os dedos, os braços e as pernas e, ainda por cima, a boca, os olhos e a cara toda, que até parecia coisa horrorosa de ver. Não haveria ninguém que, ao olhar para ele, não dissesse que realmente era uma pessoa toda estropiada e paralítica. Amparado deste modo por Marchese e Stecchi, dirigiram-se para a igreja perante o olhar compadecido de toda a gente, suplicando humildemente por amor de Deus a quem estava à frente que lhes dessem lugar, o que facilmente lhes era concedido. Passado pouco tempo, mirados por toda a gente e constantemente gritando “Deixem passar! Deixem passar!”, chegaram ao sítio onde se encontrava o corpo de Santo Arrigo. Logo alguns nobres que ali se encontravam em volta pegaram em Martellino e puseram-no sobre o cadáver a fim de que alcançasse daquele modo o milagre da cura. Com toda a gente atenta para ver o que lhe aconteceria, passado um pouco, Martellino começou, como quem sabia representar perfeitamente, a endireitar um dedo depois a mão, depois o braço, acabando por endireitar-se todo. Ao assistir o povo àquilo, fez-se tamanho alarido em louvor de Santo Arrigo que nem as trovoadas se conseguiram ouvir. Encontrava-se, por acaso, perto dali um florentino que conhecia muito bem Martellino, mas que não o reconhecera quando o viu trazido assim tão disfarçado. Quando o viu escorreito e o reconheceu, logo começou a rir-se e a dizer: “Meu Deus! Que triste logro! Quem não havia de crer, ao vê-lo vir, que ele não estava realmente paralítico?” Escutaram estas palavras alguns trevisinos, que imediatamente perguntaram: “O quê? Ele não estava paralítico?” O de Florença respondeu-lhes: “Deus não oiça! Foi sempre escorreito como o é cada um de nós, mas, como pudestes ver, sabe melhor do que ninguém fazer estas brincadeiras de se disfarçar com a forma que quer.” Quando eles ouviram tal coisa, não foi preciso mais nada. Irromperam violentamente e começaram a gritar: “Prendam esse traidor e escarnecedor de Deus e dos santos que não estava paralítico e veio aqui fingindo-se tolhido para escarnecer de nós e do nosso santo!” Dito isto, agarraram nele, tiraram-no lá do alto onde estava, puxaram-lhe os cabelos, rasgaram-lhe a roupa toda que vestia e começaram a dar-lhe murros e pontapés. Quem não corresse a fazer o mesmo nem parecia homem. Mar tellino gritava: “Por amor de Deus, piedade!”, e defendia-se quanto podia, mas não lhe valia de nada. O aperto da multidão sobre ele tornava-se cada vez maior. Ao verem isto, Stecchi e Marchese começaram a dizer um para o outro que as coisas estavam a correr mal e, receando por si próprios, não se atreviam a ajudá-lo. Ao invés, puseram-se a clamar com os outros que o matassem, não deixando todavia de pensar como conseguir arrancá-lo das mãos do povo. Com certeza o matariam se não fosse um estratagema que Marchese pôs imediatamente em prática. Encontrando-se no exterior toda a guarda do governo, Marchese correu o mais depressa que pôde até junto do representante do Podestade e disse: “Socorro, por amor de Deus! Está ali um malvado homem que me roubou a bolsa com 100 florins de ouro. Peço-vos que o mandeis prender para eu reaver o que é meu.” Logo que isto ouviram, correram uns doze guardas até onde o pobre Martellino continuava a ser massacrado. Rompendo a muito custo aquela aglomeração de gente, arrancaram-no das mãos deles todo pisado e esfarrapado e levaram-no ao palácio. Aí o seguiram muitos dos que se consideravam escarnecidos por ele e, como ouviram que fora preso como ladrão de bolsas, pareceu-lhes que não havia título mais justo para o fazerem castigar e começaram a clamar todos igualmente que ele lhes tinha roubado a bolsa. Ouvindo tais coisas, o juiz do Podestade, que era um homem severo, logo o convocou à parte e o começou a interrogar sobre o assunto. Mas Martellino ia respondendo como se menosprezasse aquela prisão. Irritado, o juiz mandou-o suspender da corda e dar-lhe vários puxões com intenção de o obrigar a confessar o que eles afirmavam para depois o enviar à forca. Mas, quando o puseram no chão e o juiz lhe perguntou se era verdade quanto diziam contra ele, como de nada lhe servia negar, disse: “Meu senhor, estou pronto a confessar-vos a verdade, mas obrigai cada um dos que me acusam a dizer quando e onde lhes roubei a bolsa e eu dir-vos-ei o que fiz e o que não fiz.” O juiz respondeu: “Isso agrada-me.” E, tendo chamado alguns deles, um declarava que ele a tinha roubado havia oito dias, outro, havia seis, outro, havia quatro, e alguns, que naquele mesmo dia. Ouvindo isto, Martellino disse: “Meu senhor, eles estão a mentir com todos os dentes e posso dar-vos provas de que estou a falar verdade. Eu nunca tinha entrado nesta terra e só há pouco cheguei. Mal acabei de chegar, fui, para minha desventura, ver o corpo do santo e lá me espancaram, como estais a ver. De que é verdade o que vos digo pode esclarecer-vos o oficial do Senhor, que se encontra nas apresentações (Nota 5) Funcionário diante do qual tinham de apresentar-se os forasteiros à chegada para serem registados no seu livro. (Fim da nota), bem como o seu livro e ainda o meu hospedeiro. Por isso, se achardes que é assim como vos digo, não me mandeis torturar nem matar a pedido desta malvada gente.” Estando as coisas neste pé, Marchese e Stecchi, que ouviram dizer que o juiz da prefeitura estava a agir com rudeza contra ele e já o suspendera da corda, sentiram muito medo e disseram entre si: “Procedemos mal. Tirámo-lo da sertã e lançámo-lo ao fogo.” Com grande solicitude, puseram-se a caminho e foram ter com o seu hospedeiro, a quem narraram os factos. O homem riu-se com o caso e levou-os a um tal Sandro Ago-lanti, que morava em Treviso e tinha grande influência junto do Senhor. Contando-lhe tudo pela devida ordem, rogaram-lhe que se interessasse pelo caso de Martellino. Sandro, depois de muito riso, foi ter com o Senhor e pediu-lhe que mandasse buscar Martellino. Assim se fez e os que o foram buscar encontraram-no em camisa diante do juiz, completamente abatido e muito assustado, pois que o juiz não dava ouvidos a nada em seu favor. Ao contrário, decerto possuído por algum rancor contra os Florentinos, estava absolutamente disposto a enviá-lo para a forca e não havia maneira de o querer entregar ao Senhor, até que se viu forçado a entregar-lho contra sua vontade. Uma vez na presença do Senhor e depois de lhe haver contado tudo em pormenor, rogou--lhe como suprema graça que o deixasse partir, pois enquanto não estivesse em Florença sempre lhe parecia sentir o cabresto na goela. O Senhor soltou grandes gargalhadas por tão grande aventura, mandou dar um fato a cada homem e os três, escapando de tamanho perigo, voltaram a casa sãos e salvos, contra toda a esperança.”
Reinaldo de Asti, assaltado, consegue chegar a Castelo Guilherme e é albergado por uma dama viúva. Recompensado dos seus prejuízos, torna a casa são e salvo (Nota 6) Um homem belo e agradável, necessitando de ajuda material, e uma dama rica, necessitada de confortos amorosos, encontram-se no momento mais propício para que daí resulte a singular fortuna do primeiro; este – como sublinha com impassível malícia Boccaccio – atribui todo o mérito a uma devoção pessoal. La Fontaíne inspirou-se nesta novela para um conto. (Fim da nota).
Das desaventuras de Martellino contadas por Neífile grandemente se riram as damas e sobretudo, entre os jovens, Filóstrato, a quem, por estar sentado junto de Neífile, a rainha ordenou que prosseguisse com as novelas. Sem nenhuma hesitação, Filóstrato começou:
“Formosas damas, sou levado a contar-vos uma novela que em parte é a mistura de coisas religiosas, de desgraças e de amor. Talvez que ouvir esta novela só possa ser útil sobretudo para aqueles que andam viajando pelos arriscados países do amor, nos quais, ainda que tenha boa cama, encontra mau albergue aquele que não recite o padre-nosso de S. Julião.
“Havia, no tempo do marquês de Azzo de Ferrara, um mercador chamado Reinaldo de Asti que fora a Bolonha tratar de negócios. Depois de resolvidos, regressou a casa. Ora aconteceu que, saindo de Ferrara e cavalgando no sentido de Verona, se encontrou com uns indivíduos que pareciam mercadores mas que eram bandoleiros e gente de má vida e condição. Incautamente acompanhou-os conversando. Eles, ao verem que se tratava dum mercador e calculando que devia levar dinheiro, deliberaram entre si roubá-lo logo que achassem uma oportunidade. Para que ele não desconfiasse de nada, continuaram a conversar de muitas coisas honradas e legais, como pessoas modestas e de boa condição, mostrando-se no que podiam e sabiam humildes e benignos em relação a ele. Entretanto, Reinaldo considerava grande sorte tê-los encontrado, porque ia sozinho, a cavalo, com o seu criado. Continuando assim a caminhada e passando de assunto para assunto como acontece nas conversas, calhou falarem das orações que os homens fazem a Deus. Um dos bandoleiros (eles eram três) disse para Reinaldo: “E vós, nobre senhor, que orações costumais fazer enquanto andais de viagem?” Reinaldo respondeu: “Realmente, quanto a essas coisas, eu sou um homem material e rude e poucas orações trago nas mãos, pois vivo um pouco à moda antiga e deixo passar dois soldos por vinte e quatro dinheiros (Nota 7) O dinheiro de prata valia precisamente um duodécimo do soldo de ouro e daí o significado da expressão: “não aspiro a novidades, deixo estar as coisas como estão”. (Fim da nota). De todo o modo, sempre tive o costume de recitar pela manhã, quando viajo e ao sair do albergue, um padre-nosso e uma ave-maria por alma do pai e da mãe de S. Julião (Nota 8) S. Julião Hospitaleiro era venerado como o protector dos viajantes. (Fim da nota) e depois rogo a Deus e ao santo que me arranjem um bom albergue para a noite seguinte. Já bastantes vezes ao longo da minha vida me encontrei em grandes perigos durante as viagens, escapei de todas elas e, à noite, sempre cheguei a bom lugar e fiquei bem alojado. Por isso, tenho firme crença de que S. Julião, em cuja honra eu rezo, me alcança de Deus esta mercê e não me parece que corra bem o dia, nem que eu passe bem a noite seguinte, se não tiver recitado esta oração pela manhã.” A isto retorquiu o que fizera a pergunta: “E esta manhã haveis recitado a oração?” Respondeu Reinaldo: “Com certeza!” Então o tal, sabendo já o que iria acontecer, disse para si mesmo; “Que ela te dê proveito, pois que, se não houver falha, estou certo de que hás-de albergar-te mal.” Depois, disse-lhe: “Também eu tenho viajado muito e nunca a recitei, embora muitas vezes a tenha ouvido recomendar, e nunca me aconteceu por isso não encontrar bom alojamento. Talvez esta noite possais ver quem melhor se alojará, se vós, que recitastes essa oração, se eu, que não a recitei. É verdade que costumo recitar, em vez dela, oDirupis-ti, a Intemerata ou o De Profundis (Nota 9) A primeira e a terceira são palavras iniciais de dois salmos e a segunda duma oração a Nossa Senhora, a qual, pela sua extensão, já se tinha tornado sinónimo de “longo discurso, ralhete”. Aqui, no calão dos malandrins, significam respectivamente “tareias, ameaças verbais, morticínios”. (Fim da nota), que, já dizia uma avó minha, são de muitíssima virtude.” Continuaram assim a falar de várias coisas, prosseguindo na viagem à espera do melhor local e momento para o seu iníquo propósito. Era já tarde e tinham passado para lá de Castelo Guilherme quando os três, ao atravessarem um rio a vau, achando a hora avançada e o local solitário e esconso, o assaltaram, roubaram e abandonaram sem montada e em camisa. Enquanto abalavam, iam dizendo: “Anda, vai ver se o teu S. Julião te arranja esta noite um bom albergue. O nosso santo é que nos arranja um de certeza.” Atravessaram o rio e desapareceram. O criado de Reinaldo, quando viu assaltarem o amo, cobardemente nada fez para o ajudar, mas voltou para trás o cavalo que montava, não se conteve e correu para Castelo Guilherme. Era quase noite quando lá entrou e, sem mais ralar-se, foi para o albergue.
“Reinaldo ficara em camisa e descalço. Fazia muito frio e nevava fortemente e ele sem saber o que fazer. Ao notar que a noite estava a cair, tremendo e batendo os dentes, começou a procurar em volta se via algum abrigo onde pudesse refugiar-se sem morrer de frio. Mas não encontrou nenhum porque, algum tempo antes, tinha havido uma guerra na região e tudo fora queimado. Impelido pelo frio, dirigiu-se a trote para Castelo Guilherme, sem saber se o seu criado se tinha refugiado ali ou noutro sítio. Só pensava que, se conseguisse entrar no castelo, alguma ajuda Deus lhe haveria de mandar. Mas a escuridão da noite surpreendeu-o ainda longe do castelo, a cerca de uma milha, pelo que já chegou tarde, com as portas cerradas e as pontes subidas, não conseguindo entrar lá dentro. Por isso, doído e desconsolado, começou a chorar, procurando em volta onde, ao menos, a neve não lhe caísse em cima. Viu, por acaso, sobre as muralhas do castelo, uma casa que ressaltava um pouco para fora e decidiu abrigar-se debaixo daquela sacada até que o dia nascesse. Dirigiu-se para lá e descobriu sob a sacada uma porta, aliás fechada, mas perto da qual havia um pequeno monte de palha. Lá se arrumou, triste e pesaroso, lamentando-se muitas vezes a S. Julião e dizendo que este não correspondera à fé que nele tinha posto. Mas S. Julião, tomando-o ao seu cuidado, preparou-lhe sem demora demasiada um bom albergue.
“Vivia naquele castelo uma dama viúva, muito mais bonita de corpo do que outra qualquer, a quem o marquês de Azzo amava como à própria vida e que a tinha ali à sua disposição. A dama residia naquela casa sob cuja sacada Reinaldo fora abrigar--se. No dia anterior, por acaso tinha acontecido que o marquês viera ali para passar a noite com ela e, em segredo, mandara preparar um banho em casa da dama e uma excelente ceia. Quando tudo estava preparado e ela só esperava a chegada do marquês, bateu à porta um criado que trazia notícias para o marquês, as quais o obrigaram a montar de súbito a cavalo. Mandou dizer à dama que não esperasse por ele e partiu imediatamente. A dama, um tanto desconsolada e sem saber que fazer, resolveu meter-se no banho preparado para o marquês, em seguida cear e depois deitar-se. Entrou, assim, na banheira, a qual ficava junto da porta a que o infeliz Reinaldo se encostara fora da terra. Estava a dama a banhar-se quando ouviu o choro e o bater de dentes de Reinaldo, que até parecia uma cegonha. Chamou a criada e disse-lhe: “Vai lá acima e olha para fora da muralha junto dessa porta aí. Vê quem lá está e o que faz.” A criada foi e, com a ajuda da claridade que havia, viu Reinaldo ali sentado, em camisa e descalço, a tremer com toda a força, como já foi dito. Perguntou-lhe, então, quem era ele. Reinaldo, a tremer tanto que mal conseguia juntar as palavras, disse-lhe o mais rapidamente que pôde quem era, como e porque estava ali, rogando-lhe depois sentidamente que, sendo possível, não o deixasse ali morrer ao frio da noite. A criada, compadecida, voltou junto da senhora e contou-lhe tudo. Também esta se comoveu e, lembrando-se de que possuía a chave daquela porta, a qual servia às vezes para as ocultas entradas do marquês, disse: “Vai e abre-lhe a porta sem fazer barulho. Temos aqui esta ceia sem haver quem a coma e hâ bem onde poder albergá-lo.” A criada louvou muito a senhora pela sua humanidade e foi abrir-lhe a porta. Fê-lo entrar para casa, e a dama, quando o viu enregelado, disse-lhe: “Depressa, bom homem, mete-te naquela banheira, que a água ainda está quente.” Sem esperar outro convite, Reinaldo assim fez de boa vontade. Todo consolado com o calor do banho, pareceu-lhe que voltara da morte à vida. A dama mandou preparar-lhe roupa que pertencera ao seu marido, falecido há pouco tempo, e, quando ele a vestiu, até parecia feita de encomenda. Enquanto esperava pelas ordens da dama, ia dando graças a Deus e a S. Julião por o terem salvo daquela maldita noite que o esperava e de o haverem conduzido a um bom albergue, como aquele parecia ser.
Depois disto, tendo a dama repousado um pouco, mandou acender um fogo muito forte numa lareira, foi para lá e perguntou pelo bom homem. A criada respondeu-lhe: “Senhora, já se vestiu e é um belo homem, parecendo pessoa muito bem educada e de categoria.” “Vai chamá-lo – ordenou a dama – e diz-lhe que venha para junto da lareira. Aqui ceará, pois sei que ainda não ceou.” Reinaldo entrou na sala da lareira, olhou para a dama, que lhe pareceu senhora de muita classe, cumprimentou-a com reverência e agradeceu-lhe o melhor que soube o benefício prestado. A dama, depois de o ver e ouvir e achando que ele era tal a criada dissera, recebeu-o com amabilidade, mandou-o familiarmente sentar-se à lareira e interrogou-o sobre o acidente que o tinha trazido até ali. Reinaldo narrou, então, ordenadamente todos os factos. A dama ouvira já qualquer coisa a respeito da chegada do criado de Reinaldo e, por isso, acreditou totalmente no que ele contou. Informou-o do que sabia acerca do criado e de como facilmente o poderia encontrar na manhã seguinte. Depois de a mesa ter sido posta como a dama determinara e lavadas as mãos, Reinaldo começou a cear na companhia dela.
“Reinaldo era um homem alto, de rosto belo e agradável e de maneiras muito dignas e graciosas, sendo pessoa ainda de meia idade. A dama, depois de ter olhado muitas vezes para ele, e achando-o muito merecedor de elogio, como se tinha avivado o seu desejo carnal porque o marquês estivera prestes a vir deitar--se com ela, pôs nele a sua ideia. Depois da ceia, levantou-se da mesa e foi aconselhar-se com a criada sobre se lhe parecia bem que ela, uma vez que o marquês a desprezara, aproveitasse aquele dom que a fortuna lhe trouxera adiante dos olhos. A criada, conhecendo o desejo da sua senhora, aconselhou-a quanto pôde e soube que o satisfizesse. Então, a dama voltou para junto da lareira onde havia deixado Reinaldo sozinho, começou a fitá-lo com olhares amorosos e disse-lhe: “Oh!, Reinaldo, porque estais tão pensativo? Não achais que vos podeis ressarcir de um cavalo e de alguns tecidos que perdestes? Ganhai ânimo e ponde-vos alegre. Estais em vossa casa e até vos digo mais: quando vos vi trajando essa roupa que foi do meu defunto marido, parecestes-me ele e, esta noite, já me veio umas cem vezes o desejo de vos abraçar e beijar e, se não fosse o receio de vos causar desagrado, já o teria feito com certeza.” Quando Reinaldo ouviu tais palavras e viu os olhos da mulher cintilantes, como não era nenhum mentecapto, correu para ela de braços estendidos: “Senhora, só de pensar que, se posso dizer que estou vivo, a vós o devo para sempre, e vendo de onde me arrancastes, grande vilania era a minha se eu não me empenhasse em realizar todos os vossos desejos. Satisfazei, pois, o vosso prazer de me abraçar e beijar, que eu vos abraçarei e beijarei com o maior dos gostos.” Não foram precisas mais palavras. A dama, que ardia no mais apaixonado anseio, lançou-se logo nos seus braços. E, abraçando-se avidamente, depois de mil vezes o beijar e outras tantas ser beijada, saíram dali, foram para o quarto e, deitando-se sem perda de tempo, antes de nascer o dia plenamente e por várias vezes satisfizeram os seus desejos.
“Logo que a aurora começou a romper, quis a dama que se levantassem para que ninguém fosse desconfiar de nada. Deu-lhe umas roupas bastante gastas e encheu-lhe a bolsa de dinheiro, rogando-lhe que guardasse segredo. Depois de lhe ter indicado o caminho para entrar na cidade e encontrar o criado, fê-lo sair pela mesma porta por onde havia entrado. Reinaldo, quando se fez dia claro, fingiu vir de mais longe e, abertas as portas, entrou no castelo e descobriu o criado. Depois de vestir a sua roupa, que estava guardada na mala, e quando ia para montar o cavalo do criado, como por milagre divino aconteceu serem trazidos para o castelo os três salteadores que o tinham espoliado na tarde anterior, presos por outro crime cometido pouco depois. Por confissão dos próprios meliantes, foram-lhe restituídos o cavalo, os tecidos e o dinheiro, além de um par de presilhas que os salteadores não sabiam a quem pertenciam. Deste modo, dando graças a Deus e a S. Julião, Reinaldo montou o cavalo e voltou para casa são e salvo, enquanto no dia seguinte os três bandoleiros eram Postos a baloiçar ao vento.”
Três jovens, esbanjando os seus haveres, caem na pobreza. Um sobrinho deles estabelece relações com um abade quando voltava a casa desesperado e descobre que esse abade era a filha do rei de Inglaterra. Esta escolhe-o por marido, recompensa todo o prejuízo dos tios dele e volta a dar-lhes uma boa situação (Nota 10) Novela de aventuras, um tanto incolor até ao momento em que – não sem algum equívoco malicioso que torna mais inesperado o golpe de teatro – a figura vivaz duma donzela cheia de audácia amorosa, mas recta e sincera, salta para o primeiro plano, dominando os acontecimentos. (Fim da nota).
As aventuras de Reinaldo de Asti foram escutadas com admiração pelas damas e pelos jovens, louvando a devoção dele e agradecendo a Deus e a S. Julião terem-lhe prestado socorro no auge da sua desgraça. E, embora falando por meias palavras, também acharam que não se revelara estulta a dama ao saber aproveitar o dom que Deus lhe enviara a casa. Enquanto se conversava, entre risadas, da bela noite que ela passara, Pampínea, que se encontrava ao lado de Filóstrato, pensou que lhe cabia a vez a ela, como realmente viria a acontecer. Concentrou-se pensando no que haveria de contar e, depois da ordem da rainha, começou assim a falar, tão resoluta como feliz:
“Virtuosas damas, quanto mais se fala dos factos da fortuna, tanto mais há que dizer para quem souber examinar os seus conhecimentos. Não é motivo de espanto se alguém pensar com sensatez que todas as coisas, estultamente consideradas nossas, se encontram nas mãos da fortuna. Por conseguinte, elas são trocadas de um para outro sucessivamente e sem descanso, segundo a sua secreta decisão e sem que nós percebamos alguma ordem. Embora isto se revele com muita credibilidade em tudo e todos os dias e já tenha sido bem provado nalgumas novelas anteriores, como é desejo da rainha continuarmos a falar do tema, acrescentarei às outras uma novela, talvez de certa utilidade para os ouvintes e que julgo agradável.
“Viveu na nossa cidade um cavaleiro chamado Tebaldo, que alguns afirmam ter pertencido à família dos Lamberti e outros à família dos Agolanti, sendo mais provável esta segunda opinião, sobretudo por causa da profissão que os seus filhos vieram a exercer, igual à que sempre foi e continua a ser exercida pelos Agolanti (Nota 11) Tanto os Lamberti como os Agolanti eram conhecidas famílias florentinas. A profissão era a de emprestar dinheiro com usura. (Fim da nota). Mas, pondo de lado a questão de saber a qual das casas ele pertencia, só digo que foi, no seu tempo, um cavaleiro riquíssimo. Teve três filhos: o primeiro chamado Lamberto, o segundo, Tebaldo, e o terceiro, Agolante. Eram jovens belos e folgazões, e ainda o mais velho não fizera dezoito anos quando o riquíssimo Tebaldo faleceu, deixando-os como legítimos herdeiros de todos os seus bens móveis e imóveis. Os filhos, ao verem-se riquíssimos de dinheiro e de propriedades, sem outro governo além do seu próprio prazer, começaram a gastar sem qualquer freio ou reserva. Tinham um número muito grande de criados, muitos e bons cavalos, cães e aves. Ofereciam constantes recepções, davam presentes, promoviam torneios, fazendo não só o que era próprio de fidalgos, mas também o que os seus juvenis apetites pediam que eles fizessem.
“Não levaram esta vida durante muito tempo, pois o tesouro deixado pelo pai acabou por esgotar-se, e, como não bastassem as rendas para as despesas que faziam, começaram a hipotecar e a vender as propriedades. Vendendo uma hoje, outra amanhã, quando repararam não possuíam quase nada. A pobreza abriu-”lhes os olhos, que a riqueza mantivera fechados. Lamberto, um dia, chamou os outros dois, falou-lhes de qual fora a honorabilidade do pai e em que situação estava a deles, de qual fora a sua riqueza e quanta a pobreza em que tinham caído por causa do seu desordenado dispêndio. O melhor que soube, e antes que surgisse miséria ainda maior, exortou-os a venderem todos o Pouco que lhes restava e a irem-se embora. Foi o que fizeram. Sem apresentar despedidas e sem fazer qualquer barulho, saíram de Florença e só pararam quando chegaram a Inglaterra.
Alugaram uma pequena casa em Londres e, fazendo o mínimo de despesas, começaram a emprestar dinheiro a altos juros. A sorte foi-lhes tão favorável que, no espaço de poucos anos, ganharam enormes quantidades de dinheiro. Ora um, ora outro, foram regressando sucessivamente a Florença e, com aquele dinheiro, resgataram grande parte das suas propriedades, compraram ainda muitas outras e casaram-se. Como continuavam a emprestar dinheiro na Inglaterra, puseram a tomar conta dos seus negócios um sobrinho chamado Alexandre. Em Florença, os três esqueceram a situação em que já uma vez os colocara o desastroso dispêndio e, apesar de todos eles terem encargos de família, mais do que nunca começaram a gastar sem medida, obtendo de todos os mercadores altíssimos créditos de grandes quantidades de dinheiro. Durante alguns anos, ajudou a suportar as despesas o dinheiro que lhes era enviado por Alexandre, o qual começara a emprestar dinheiro a barões sobre os seus castelos e outros rendimentos, o que trazia grandes lucros. Ora, enquanto os três irmãos iam gastando assim à larga e pediam dinheiro emprestado quando lhes faltava, sempre com a esperança posta em Inglaterra, aconteceu, contra a previsão de toda a gente, estalar na Inglaterra, entre o rei e um seu filho (Nota 12) Trata-se provavelmente do rei Henrique II (1154-1189) e do seu filho, o rei jovem” de dantesca memória (Inferno, XXVIII, pp. 133-142). (Fim da nota), uma guerra que dividiu toda a ilha nos que apoiavam um e nos que apoiavam o outro. Por causa da guerra foram tirados a Alexandre todos os castelos dos barões e deixou de receber quaisquer outras rendas, Com a esperança, dia após dia, de que se fizesse a paz entre o filho e o pai e de que, por conseguinte, todos os capitais e interesses lhe fossem restituídos, Alexandre não abandonava a Inglaterra. Entretanto, os três irmãos não limitavam nada as suas enormes despesas, pedindo cada dia mais dinheiro emprestado. Mas quando, após vários anos, se viu permanecer sem nenhum efeito a esperança havida, os três irmãos não só perderam o crédito, como se viram inesperadamente presos por quererem ser pagos por aqueles aos quais deviam dinheiro. Como as suas propriedades não chegaram para o pagamento, ficaram na prisão por causa do remanescente. As esposas e os filhos, ainda pequenos, foram para o campo ou para outros lados, vestindo muito pobremente e não sabendo que mais esperar senão uma vida inteira de miséria. Na Inglaterra, Alexandre esperou durante anos que voltasse a paz, mas, ao ver que ela não chegava e considerando ser tão perigoso como inútil para a sua vida continuar ali, resolveu regressar à Itália e pôs-se a caminho absolutamente só.
“Por acaso, quando ia a sair de Bruges, viu que saía igualmente um abade branco (Nota 13) Um beneditino. (Fim da nota) acompanhado de muitos monges e precedido por muitos criados e grande quantidade de bagagem, seguindo atrás dele dois cavaleiros idosos e parentes do rei. Como conhecia os cavaleiros, Alexandre aproximou-se deles e foi acolhido de bom grado na sua companhia. Enquanto ia viajando com eles, Alexandre perguntou-lhes discretamente quem eram os monges que cavalgavam com tanta criadagem e para onde iam. Respondeu-lhe um dos cavaleiros: “O que vai a cavalgar à frente é um rapazinho da nossa família, que recentemente foi eleito abade de uma das maiores abadias de Inglaterra. E como tem idade inferior à que as leis permitem para tão importante dignidade, vamos com ele a Roma a fim de suplicar ao santo padre a dispensa necessária para tão pouca idade e a confirmação no cargo. Mas não se pode falar disto a ninguém.” Viajando o novel abade ora à frente ora atrás da comitiva, como vemos que fazem os senhores quando viajam durante todo o dia, viu junto de si durante o caminho Alexandre, que era bastante jovem, muito belo de figura e de rosto e de extrema educação, simpático e de elegantes maneiras.
“Logo à primeira vista, maravilhado, o abade agradou-se dele como nunca se agradara fosse do que fosse. Chamou-o para junto de si, começou a conversar com ele de modo agradável e a perguntar-lhe quem era, de onde vinha e para onde ia. Alexandre falou-lhe abertamente da sua situação, satisfez as perguntas e ofereceu-se para o servir em tudo, ainda que de pouco ele fosse capaz. O abade, ouvindo-o falar com elegância e ordem e analisando mais em pormenor as suas maneiras, considerou-o, só para si, um fidalgo, apesar da sua profissão servil. Ainda mais se inflamou a sua simpatia por ele. Enchendo-se de compaixão pelas suas desgraças, confortou-o muito afavelmente e disse-lhe que não perdesse a esperança, pois que, se fosse homem de valor, Deus ainda o voltaria a colocar onde a fortuna o houvera lançado ou ainda mais alto. Como ele ia para a Toscana, pediu-lhe que lhe desse o prazer da sua companhia, uma vez que também passaria por lá. Alexandre agradeceu as palavras de conforto e afirmou-se à disposição de qualquer ordem sua. Enquanto a viagem ia prosseguindo, novos sentimentos foram entrando no coração do abade ao ver Alexandre. Passados alguns dias, chegaram a uma pequena cidade não grandemente abastecida de albergues. Como o abade quis ali hospedar-se, Alexandre fê-lo instalar em casa dum hospedeiro que era bastante seu amigo e ordenou que arranjassem para o abade um quarto no sítio menos desconfortável da casa. Como se já fosse mordomo do abade e enquanto pessoa de muita prática, alojou toda a comitiva o melhor de que foi capaz na cidade, uns aqui, outros acolá. Depois de o abade ter ceado e porque já ia avançada a noite, tendo ido toda a gente dormir, Alexandre perguntou ao hospedeiro onde podia dormir também ele. Respondeu-lhe o hospedeiro: “Na verdade não sei. Como vês, está tudo cheio e podes observar que eu e a minha família vamos dormir em cima dos bancos. Todavia, no quarto do abade há umas arcas de cereais para onde te posso levar e armar-lhes em cima uma pequena cama. Se quiseres, lá te deitarás esta noite o melhor que for possível.” Alexandre retorquiu: “Como hei-de eu ir para o quarto do abade se sabes que é estreito e que, por falta de espaço, não se pôde lá deitar nenhum dos seus monges? Se eu tivesse visto isso quando se correram as cortinas, teria posto os monges a dormir em cima das arcas e eu ficaria onde eles estão a dormir.” Voltou o hospedeiro: “O que está feito está feito e, se quiseres, podes lá ficar muito bem instalado. O abade está a dormir e tem as cortinas fechadas. Vou lá pôr-te um cobertor sem fazer barulho e tu dormes à vontade.” Vendo ser possível fazer aquilo sem causar qualquer incómodo ao abade, concordou e instalou-se o mais discretamente que pôde. Mas o abade não estava a dormir. Ao contrário, pensava ardentemente nos seus recentes desejos. Ouvira, por isso, a conversa do hospedeiro e de Alexandre e igualmente se apercebera de quando Alexandre se foi deitar. Ficou, pois, muito contente e disse para si mesmo: “Deus ofereceu uma oportunidade aos meus anseios; se não a aproveito, talvez não volte a encontrar outra semelhante.” Absolutamente resolvido a aproveitá-la, quando lhe pareceu que tudo estava sossegado dentro da hospedaria, chamou em voz baixa Alexandre e disse-lhe que viesse deitar-se ao seu lado. Ele, depois de várias recusas, despiu-se e deitou-se. O abade pôs-lhe a mão sobre o peito e começou a apalpá-lo exactamente como costumam fazer as jovens apaixonadas aos seus amantes. Alexandre ficou muito espantado e duvidou se o abade não estaria a ser arrastado por um desonesto amor para o tocar daquele modo. Fosse por suposição, fosse por qualquer gesto de Alexandre, logo o abade lhe adivinhou a dúvida e sorriu. Rapidamente levantou a camisa que tinha vestida, pegou na mão de Alexandre e pô-la sobre o seu peito, dizendo--lhe: “Alexandre, afasta o teu estúpido pensamento e procura aqui, descobre o que eu te escondo.” Alexandre meteu a mão no peito do abade e encontrou dois pequenos seios redondos, rijos e delicados, como se fossem feitos de marfim. Quando os encontrou e mal descobriu tratar-se de uma mulher, sem esperar outro convite, imediatamente a abraçou e a quis beijar. Ela, porém, disse-lhe: “Antes que te chegues mais a mim, escuta o que te quero dizer. Como podes ver, sou mulher e não homem. Abalei virgem da minha casa e ia ter com o papa para que ele me desse marido. Por tua fortuna ou minha desgraça, quando no outro dia te vi, o amor inflamou-me tanto por tua causa que nunca houve mulher que assim amasse um homem. Resolvi, por isso, escolher-te por marido, de preferência a qualquer outro. Se não me quiseres por esposa, sai imediatamente daqui e vai para o teu lugar.” Embora a não conhecesse, mas por ter em conta a comitiva que a acompanhava, Alexandre pensou que ela devia ser nobre e rica e achava-a muitíssimo bela. Assim, sem pensar demasiado tempo, respondeu que, se a ela lhe agradava, a ele dava-lhe muito prazer. Então ela sentou-se na cama diante dum pequeno quadro com a efígie de Nosso Senhor, pôs-lhe na mão um anel, fê-lo pedi-la em casamento e depois abraçaram-se e entretiveram-se o resto da noite com grande prazer de cada uma das partes. Tendo combinado entre si o modo e a ordem de actuar, quando veio o dia, Alexandre levantou-se e saiu do quarto tal como entrara. Ninguém soube onde ele tinha dormido a noite, e, extraordinariamente feliz, retomou a viagem com o abade e a sua companhia. Depois de muitos dias, chegaram a Roma.
“Repousaram alguns dias e, depois, o abade, com os dois cavaleiros e Alexandre, dirigiram-se sem mais à residência do papa. Prestada a devida reverência, o abade começou assim a falar: “Santo padre, como deveis saber melhor do que ninguém, quem desejar viver bem e honestamente deve, dentro do possível, fugir de toda a ocasião que o pudesse conduzir a fazer de outro modo. Foi para o fazer exactamente assim que eu, desejando viver com decoro, fugi em segredo com o hábito que estais vendo e com boa parte dos tesouros do rei de Inglaterra, meu pai, o qual me queria dar como esposa ao rei da Escócia, senhor velhíssimo, quando eu sou jovem, como estais vendo. E pus-me a caminho para que Vossa Santidade me destinasse um marido. Não foi tanto por causa da velhice do rei da Escócia como pelo receio de vir a cometer, por fragilidade da minha juventude, se casasse com ele, alguma coisa que fosse contra as leis divinas e contra a honra do sangue real de meu pai. Vinha eu com esta disposição quando Deus, que sabe perfeitamente o que é preciso para cada pessoa, me colocou, julgo que por sua misericórdia, diante dos olhos aquele que lhe aprouve para meu marido.” E apontando Alexandre: “É este jovem que vedes aqui ao meu lado, cujas maneiras e valor são dignos de qualquer dama nobre, apesar de a nobreza do seu sangue não ser porventura tão clara como é a real. A ele escolhi e a ele quero e não aceitarei qualquer marido, seja qual for a opinião de meu pai ou de outros. Ficou, assim, removida a principal razão que me pusera a caminho. Mas agradou-me concluir a viagem, não só para visitar os lugares santos e veneráveis de que a cidade está cheia e Vossa Santidade, como também para tornar manifesto na vossa presença e na dos restantes homens o matrimónio contraído entre mim e Alexandre apenas na presença de Deus. Rogo-vos, pois, humildemente, que vos apraza o que a Deus e a mim agradou e nos deis a vossa bênção, a fim de, com ela, ainda mais certos da vontade d’Aquele de quem sois vigário, juntos vivermos e enfim morrermos para a glória de Deus e honra vossa.”
“Ficou Alexandre maravilhado ao ouvir que a mulher era filha do rei de Inglaterra e ficou cheio duma espantosa alegria secreta. Mas mais se maravilharam os dois cavaleiros e irritaram-se de tal maneira que, se não estivessem na presença do papa mas noutro sítio, teriam injuriado Alexandre e a dama. Por outro lado, muito se maravilhou o papa tanto pelo traje da dama como pela sua escolha. Mas, vendo que não se podia voltar atrás, resolveu satisfazer os seus rogos. Começou por reconfortar os cavaleiros, que via irritados, e pô-los outra vez de boa paz com a dama e Alexandre. Depois deu ordens para o que havia a fazer. Quando chegou o dia por ele marcado, diante de todos os cardeais e de muitos outros personagens importantes que tinham vindo como convidados para uma soleníssima festa por ele preparada, mandou vir a dama. Regiamente vestida, surgia tão formosa e agradável que toda a gente a elogiava merecida-mente. Mandou igualmente chamar Alexandre, igualmente vestido com esplendor. A sua aparência e as suas maneiras não eram já as dum jovem que trabalhara como usurário, mas antes reais. Acompanhavam-no, muito diferentes, os dois cavaleiros. O papa deu início à celebração solene dos esponsais e, depois de terminadas as belas e magníficas núpcias, despediu-se deles com a sua bênção.
“Quando saíram de Roma, agradou tanto a Alexandre como à dama irem a Florença, aonde a fama já tinha levado a notícia. Recebidos pelos Florentinos com as maiores honras, a dama mandou pôr em liberdade os três irmãos, ordenando primeiro que todos os credores fossem pagos, e restituiu-lhes as propriedades, a eles e às esposas. Com o agradecimento de todos e levando na sua companhia Agolante, Alexandre partiu de Florença com a sua esposa. Chegados a Paris, foram recebidos solenemente pelo rei. Entretanto, os dois cavaleiros dirigiram-se a Inglaterra e tanto argumentaram com o rei que este lhe deu a sua graça e recebeu com muitíssima festa a filha e o genro, a quem, pouco depois, armava cavaleiro com grande solenidade, dando-lhe o condado da Cornualha. Alexandre soube actuar tanto e tão bem que restabeleceu a paz entre filho e pai, do que resultou grande benefício para a ilha. Assim conquistou o amor e a gratidão de todos os habitantes. Agolante recuperou inteiramente tudo aquilo que lhe pertencia e voltou extraordinariamente rico para Florença, antes disso armado cavaleiro pelo conde Alexandre.
“O conde viveu depois uma vida gloriosa com a sua esposa, e, segundo alguns pretendem afirmar, com a sua inteligência, o seu valor e a ajuda do sogro conquistou a Escócia e aí foi coroado rei.”
Landolfo Rufolo cai na pobreza e torna-se corsário. Preso por genoveses, naufraga em pleno mar e salva-se agarrado a uma caixa repleta de jóias valiosíssimas. É recolhido em Corfu por uma mulher e regressa rico a sua casa (Nota 14) Novela de aventuras em cenário marítimo que acompanha com equilibrada compostura o protagonista nas suas repetidas tentativas de dominar a sorte contrária. Realça, em contraste com a descrição do naufrágio, o sereno quadro da chegada a Corfu e a nítida figura da “pobre mulherzinha”. (Fim da nota).
Lauretta estava sentada junto de Pampínea e, ao ver que esta chegara ao glorioso fim da sua novela, sem mais espera começou a falar deste modo:
“Graciosíssimas damas, segundo o que me parece, não pode existir maior rasgo da fortuna do que ver alguém ser elevado desde a ínfima miséria à condição régia, como a novela de Pampínea mostrou haver acontecido ao seu Alexandre. E, como aos que doravante irão contar a sua novela sobre o tema proposto se impõe conservarem-se dentro de tais termos, não me envergonho de narrar uma história que, embora contenha desgraças maiores, não tem uma conclusão assim tão excelente. Também sei que, comparada com a anterior, a minha novela vai ser escutada com menos atenção. Mas hei-de ter desculpa, pois que mais não é possível.
“O litoral desde Reggio a Gaeta é considerado a parte mais aprazível da Itália. Ali, perto de Salerno, encontra-se uma costa que desce sobre o mar e à qual os habitantes dão o nome de costa de Amalfi. Está povoada de pequenas cidades, de jardins e de fontes, bem como de homens ricos, empreendedores do comércio mais do que nenhuns outros. Entre essas cidades, há uma que se chama Ravello, na qual ainda hoje vivem homens ricos e onde viveu em tempos um que era riquíssimo. Chamava-se Landolfo Rufolo. Não satisfeito com a sua riqueza e desejoso de a duplicar, esteve em risco de perder-se a si mesmo, além de perder toda a fortuna. Ora Landolfo, como é hábito entre os mercadores, fez as suas contas, comprou um barco muito grande e, com o seu dinheiro, carregou-o de mercadorias variadas, dirigindo-se depois a Chipre. Quando lá chegou, verificou terem chegado igualmente outros navios com a mesma espécie de mercadorias. Por tal motivo, não só teve de vender muito barato o que levava, como até se viu forçado a deitar fora algumas dessas coisas para se desembaraçar delas. Com isto, ficou bastante perto da ruína. Muitíssimo desgostado, sem saber o que fazer e ao ver-se, em tão pouco tempo, de homem riquíssimo tornar-se quase pobre, pensou ou em morrer ou em reaver-se dos prejuízos roubando, a fim de não tornar pobre à terra de onde saíra rico. Achou comprador para o seu navio e, com esses dinheiros mais os outros que recebera da mercadoria, comprou um barco pequeno e ligeiro para fazer pirataria, armou-o e guarneceu-o muito bem com tudo o que era conveniente para tal serviço. Depois dedicou-se ao trabalho de tornar seu o que pertencia aos outros, atacando principalmente os turcos. A fortuna foi-lhe muito mais benévola neste trabalho do que fora no comércio. Talvez em menos de um ano, roubou e capturou tantos barcos de turcos que não só recuperou o perdido no comércio, como duplicou largamente o que possuíra. Ensinado pelo anterior desgosto da perda, e vendo que possuía o bastante, não quis tombar em segundo desgosto e convenceu-se a si próprio de que lhe bastava o que possuía sem desejar mais nada. Resolveu assim voltar para casa com a sua fortuna. Com receio da mercancia, não se arriscou a investir de outra forma o seu dinheiro e pôs-se no caminho do regresso, à força de remos, no mesmo barco onde o tinha ganho. Havia alcançado já o arquipélago, quando, certa tarde se levantou um si-roco, não só contrário ao seu caminho, mas que tornava também muito encapelado o mar, duma forma que o pequeno barco não conseguiria suportar. Abrigou-se, por isso, daquele vento numa enseada aberta num ilhéu, ali resolvendo esperar por melhoria de tempo. Pouco depois chegaram à mesma enseada com alguma dificuldade dois grandes vasos genoveses que vinham de Constantinopla e fugiam ao mesmo que Landolfo. Os homens daqueles barcos viram a pequena embarcação e fecharam-lhe a saída para que não pudesse escapar-se. Quando souberam quem era o seu dono, já conhecido como tendo fama de muito rico, sendo eles naturalmente ávidos de dinheiro e rapaces, resolveram apoderar-se do barco. Desembarcaram alguns homens bem armados de bestas e colocaram-nos em posição tal que não deixava ninguém sair do barco se não quisesse ser frechado. Depois, em canoas a remo e ajudados pelo mar, acostaram ao pequeno barco de Landolfo. Com pouco trabalho e em pouco tempo, sem perderem um só homem de toda a chusma, apoderaram-se dele sem resistência. Levaram Landolfo para uma das naves, retiraram tudo o que havia no barco, meteram-no ao fundo e conservaram Landolfo como prisioneiro, vestido com mísera roupa.
“No dia seguinte, com o vento mudado, os navios fizeram-se à vela para poente e continuaram viagem com boa fortuna durante todo o dia. Ao fim da tarde, porém, levantou-se um vento de tempestade que encapelou fortemente o mar e separou os dois barcos um do outro. Arrastado pelo vento, aconteceu que o barco onde se encontrava o desgraçado e pobre Landolfo se viu atirado com grande violência contra a ilha de Cefalónia, bateu num baixio, abrindo-se e estilhaçando-se como um vidro ao embater contra uma parede. O mar ficou pejado de mercadorias a boiar, de caixotes e de tábuas. Como é hábito acontecer em semelhantes casos, apesar da noite escuríssima e do mar muito grosso e cheio, os pobres mortais que vinham a bordo lançaram--se à água e, nadando os que sabiam nadar, foram-se agarrando ao que por acaso lhes passava pela frente. Entre eles, o infeliz Landolfo, apesar de no dia anterior haver chamado muitas vezes a morte, preferindo-a a ter de regressar a casa assim pobre como se via, ao vê-la tão perto sentiu medo. Tal como os outros, quando lhe veio à mão uma tábua, agarrou-se a ela como se Deus, adiando-lhe o afogamento, lhe mandasse uma ajuda para o salvar. Deste modo se manteve até clarear o dia, a cavalo na tábua o melhor que era possível, sacudido pelo mar e pelo vento, ora para um lado, ora para o outro. Com o dia, olhou em volta e apenas viu nuvens e mar e uma caixa que boiava sobre as ondas. A caixa, às vezes, aproximava-se, com enorme susto para Landolfo, receoso de que ela lhe batesse de modo a afogá-lo. Sempre que a caixa se chegava, e quando podia, afastava-a com a mão, embora estivesse quase sem forças. Mas daí a pouco tempo formou-se de repente no ar um golpe de vento que fustigou o mar e apanhou a caixa com tanta fúria que a lançou contra a tábua sobre a qual estava Landolfo, virando-a. Landolfo largou-a, afundou-se nas ondas, voltou à superfície nadando, ajudado mais pelo medo que pela força, e viu bastante longe dele a tábua. Receoso de não lhe chegar, avizinhou-se da caixa, que se encontrava bastante perto, encostou o peito à tampa o melhor que pôde e foi-a equilibrando com os braços.
“Desta maneira, atirado pelo mar de lado para lado, sem comer porque não tinha de quê e bebendo mais do que lhe apetecia, não sabendo onde estava nem vendo senão mar, passou todo o dia e a noite seguinte. No outro dia, por vontade de Deus ou por força do vento, chegou à praia de Corfu, feito numa esponja e com ambas as mãos agarradas aos bordos da caixa, exactamente como fazem os que estão prestes a afogar-se e se agarram a qualquer coisa. Na praia, estava uma pobre mulherzinha a limpar com areia a loiça e a lavá-la com a água salgada, pondo-a muito bonita. Ao vê-lo aproximar-se e como não descobriu nele qualquer forma, assustou-se, pôs-se a gritar e recuou. Landolfo estava incapaz de falar, quase não via e, portanto, não disse nada. Mas o mar puxou-o mais para terra e a mulher distinguiu a forma da caixa. Olhando com mais atenção, descobriu primeiramente os braços estendidos sobre a caixa, em seguida avistou-lhe a cara e pôde ver do que se tratava. Movida pela compaixão entrou um pouco no mar, que se tornara tranquilo, pegou-lhe os cabelos e puxou-o para terra juntamente com a caixa. Com dificuldade arrancou-lhe a caixa das mãos e pô-la à cabeça duma filha que estava com ela. Levou-o depois para terra como se fosse uma criancinha. Meteu-o num banho quente e tanto o friccionou, tanto o lavou com a água quente, que ele recuperou o calor fugido e um pouco das perdidas forças. Tirou-o do banho quando lhe pareceu tempo e reconfortou-o com um pouco de bom vinho e de bolos. Durante alguns dias, tratou dele o melhor que pôde, até que Landolfo recobrou as forças e soube onde estava. A boa mulher achou que era tempo de lhe devolver a caixa que o tinha salvo e disse-lhe que tratasse de ir à sua sorte. Ele assim fez, e embora não se lembrasse da caixa que a mulher lhe entregava, pegou nela pensando que, embora pouco valesse, algum dia lhe podia render algum dinheiro. Achando-a muito leve, baixou-lhe muito a esperança. Apesar disso, numa altura em que a mulher não estava em casa, arrombou-a para ver o que continha e encontrou lá dentro muitas pedras preciosas, umas unidas, outras soltas, coisas de que ele era algo entendido. Ao vê-las, e sabendo que eram de muito valor, agradeceu a Deus que ainda o não quisera abandonar e ficou todo feliz. Mas como em tão pouco tempo fora ferozmente atingido pelo azar duas vezes, com receio de uma terceira, pensou que precisava de muita cautela para levar aqueles objectos até sua casa. Embrulhou as pedras o melhor possível nalguns trapos e disse à mulher que já não precisava da caixa, mas que seria um grande favor se ela lhe desse um saco e ficasse com aquela. A mulherzinha fez a troca de boa vontade e Landolfo, depois de lhe haver apresentado os maiores agradecimentos pelos favores que lhe prestara, pôs o saco ao pescoço e foi-se dali embora. Entrou num barco e foi até Brindisi. Dali, e sempre ao longo da costa, chegou a Trani, onde encontrou uns conterrâneos seus, negociantes de panos. Depois de lhes ter falado de todos os seus infortúnios, menos da caixa, eles vestiram-no por amor de Deus. Além disso, emprestaram-lhe um cavalo, deram-lhe companhia e orientaram-no para Ravello, aonde ele afirmava querer regressar definitivamente. Quando lá se julgou a seguro, deu graças a Deus que o tinha guiado, abriu o saco e examinou agora com mais pormenor do que antes cada uma das pedras. Verificou que elas eram tantas e de tal valor que, se as vendesse pelo justo preço ou até mais baixo, ficaria duas vezes mais rico do que era quando partira. Depois de ter encontrado forma de despachar as suas pedras, enviou para Corfu uma boa quantia de dinheiro, a fim de pagar à mulher que o salvara do mar o serviço prestado. O mesmo tratou de fazer aos que o haviam vestido em Trani. Ficou com o restante dinheiro e viveu honradamente até ao fim da vida, sem mais querer voltar à mercancia.”
Andreuccio de Perúgia, indo a Nápoles para comprar cavalos, é surpreendido numa noite por três graves acidentes e, escapando de todos eles, volta a sua casa com um rubi (Nota 15) É a obra-prima da jornada e uma das maiores criações cómicas de Boccaccio. Na primeira parte domina a incomparável luta entre Andreuccio, o provinciano estúpido e inexperiente, e uma mulher da vida, uma espécie de Napoleão de saias, que, como comediante, podia fazer frente a Ciappelletto (I, I). Brincando com Andreuccio como o gato com o rato, entre ilusões e desilusões, arranca-lhe o verniz e fá-lo andar errante, emporcalhado e assustado, durante a noite, pelas ruas de pior fama duma Nápoles que ele não conhece. Desta maneira, a medonha vida subterrânea passa para primeiro plano, absorvendo em si a figura do protagonista, atirado de um lado para outro, com endiabrada comicidade e com total coerência artística, de aventura para aventura, até que, numa cena final, onde terrores macabros se alternam com satânicos ditos dum alegre cinismo, ele volta a emergir e, rapidamente amadurecido por tantas experiências, mostra ser menos parvo do que tinha parecido. A novela, contada pelo personagem um pouco napolitano de Fiammetta, foi ambientada topograficamente com especial rigor, como demonstrou B. Croce (La novella di Andreuccio, Bari, 1911). Ainda hoje existe a Ruga Catalana, rua para onde dava o beco Malpertugio através dum pertugio ou abertura nas muralhas. Sabemos inclusive que aí morou uma certa Flora siciliana, conterrânea dum tal Francesco Buttafuoco. Também ainda hoje podemos ver numa capela da catedral de Nápoles o túmulo do arcebispo Filipe Minútolo, falecido em Outubro de 1301. (Fim da nota)
“As pedras encontradas por Landolfo – começou Fiammetta, a quem tocava a vez de contar – trouxeram-me à lembrança uma novela que não contém menos perigos do que a novela narrada por Lauretta, mas muito diferente dessa, porquanto aqueles se passaram talvez durante anos, enquanto estes se passaram numa só noite, como ides ouvir.
“Segundo ouvi dizer, houve em Perúgia um jovem de nome Andreuccio di Pietro, negociante de cavalos. Ouvira ele dizer que havia em Nápoles um bom mercado de cavalos. Meteu na bolsa 500 florins de ouro e, como nunca tinha saído de casa, dirigiu-se com outros mercadores para lá. Chegou num domingo à tarde, pela hora de vésperas, e, informado pelo hospedeiro, na manhã seguinte dirigiu-se ao mercado. Viu muitos cavalos, bastantes agradaram-lhe e discutiu o preço de vários. Não conseguiu chegar a acordo sobre nenhum, mas, para mostrar que vinha para comprar, duma forma tola e pouco cautelosa, várias vezes tirou da bolsa os florins que trazia, na presença dos que iam e vinham. Estando ele nestes negócios e continuando a mostrar a bolsa, aconteceu passar junto dele, sem que este a visse, mas vendo-lhe ela a bolsa, uma rapariga siciliana muito bonita, mas disposta a satisfazer qualquer homem por baixo preço. Logo ela disse para si mesma: “Quem estaria melhor do que eu se fosse meu aquele dinheiro?” E prosseguiu caminho. Acompanhava a rapariga uma velha igualmente siciliana. Quando esta viu Andreuccio, deixando a rapariga andar para a frente, correu afectuosamente a abraçá-lo. Vendo aquela coisa, a rapariga não disse nada e ficou de parte, à espera. Andreuccio voltou-se para a velha, reconheceu-a e fez-lhe uma grande festa. Ela prometeu ir visitá-lo à hospedaria e partiu sem perder mais tempo na conversa, enquanto Andreuccio voltava ao negócio, mas sem comprar nada naquela manhã.
“A rapariga, que vira primeiro a bolsa de Andreuccio e depois a familiaridade entre a sua velha e ele, para ver se descobria algum modo de se apoderar daquele dinheiro, no todo ou em parte, começou cautelosamente a perguntar quem era ele, onde estava alojado e como é que ela o conhecia. A velha falou-lhe com tanto pormenor da história de Andreuccio que este pouco mais lhe teria acrescentado. Contou-lhe ter vivido muitos anos em casa do pai dele, na Sicília e depois em Perúgia, e igualmente lhe contou onde estava alojado e o que viera fazer. A rapariga, inteiramente informada sobre a família dele e os seus nomes, satisfez os seus desejos com requintada malícia e urdiu sobre eles o seu projecto. Ao voltar a casa, pôs a velha a trabalhar todo o dia para que ela não pudesse ir visitar Andreuccio. Chamou depois uma criadita sua, a quem já ensinara muito bem a fazer serviços destes, e à hora de vésperas mandou-a à hospedaria onde estava alojado Andreuccio. Quando a criadita lá chegou, estava ele por acaso sozinho à porta. Perguntando-lhe ela por Andreuccio, respondeu ser o próprio. Chamou-o, então, à parte e disse: “Senhor, uma nobre dama desta cidade gostaria de falar-vos quando vos aprouver.” Olhando para a criadita e todo convencido de que era um rapaz de muito bela figura, convenceu-se de que a dama estava apaixonada por ele, como se não existisse em Nápoles outro jovem belo senão ele. Prontamente respondeu que estava preparado e perguntou-lhe onde e quando lhe queria falar aquela dama. A criadita respondeu: “Senhor, quando desejardes vir, ela espera-vos em sua casa.” Imediatamente e sem avisar nada na hospedaria, Andreuccio exclamou: “Ora vamos lá, vai andando à frente, que eu te seguirei.”
«Conduziu-o a criadita a casa da dama, que morava num bairro chamado Malpertugio, bastando este nome para mostrar a sua fama. Mas Andreuccio, como não sabia nem suspeitava de nada, supôs ter ido a um local muito honrado e a casa de uma senhora de sociedade. E muito à vontade, com a criadita à sua frente, entrou na casa. Enquanto subia as escadas, a garota chamou pela sua patroa exclamando: “Está aqui o Andreuccio!” E logo ele viu a dama ao cimo das escadas, à sua espera. Era ainda muito nova, alta de figura, de cara muito bonita, faustosamente vestida e ataviada. Quando Andreuccio chegou perto dela, a dama desceu três degraus ao seu encontro, de braços abertos. E esteve algum tempo sem dizer nada, enleada ao seu pescoço, como que tolhida por excesso de ternura. Depois, com lágrimas nos olhos, beijou-o na testa e, com a voz um pouco embargada, disse: “Ó meu Andreuccio, sê bem-vindo!” Ele, maravilhado com tão meigas carícias, respondeu estupefacto: “Senhora, eu é que me alegro de ver-vos!” Ela pegou-lhe na mão, levou-o através da sala e daí, sem dizer mais nada, entrou com ele no quarto, o qual recendia a rosas, a flor de laranjeira e a outros aromas. Via-se uma lindíssima cama cercada de cortinas e muitos vestidos pendurados em cabides, segundo os costumes da região, além de outros objectos muito belos e preciosos. Diante de tudo aquilo, como um novato, Andreuccio ficou firmemente convencido de que ela não podia deixar de ser uma grande senhora. E, sentados os dois numa arca que se encontrava ao fundo da cama, assim lhe começou à falar: “Andreuccio, estou mais do que certa de que estás admiradíssimo com as carícias que te faço e com as minhas lágrimas, pois decerto não me conheces nem, porventura, alguma vez ouviste falar de mim. Mas vais ouvir uma coisa que te deixará ainda mais espantado: sou tua irmã! E digo-te que, em qualquer hora que eu morra, morrerei consolada, pois Deus me fez a grande mercê de, antes de morta, ter visto um dos meus irmãos, que eu sempre desejei conhecê-los todos. Se nunca ouviste falar disto vou contar-te. Pietro, meu e teu pai, residiu durante muitos anos em Palermo como, suponho, deves saber. Pela sua bondade e simpatia, foi e ainda hoje é estimado por todos os que o conheceram. Mas, entre todos os que o estimaram, foi minha mãe quem mais o amou. Tanto que, sendo dama de nobreza e viúva, pôs de parte o receio ao pai e aos irmãos e a sua honra, de tal maneira que se juntou com ele, nascendo dessa união aquela que está aqui diante dos teus olhos. Mais tarde, Pietro foi obrigado a deixar Palermo e a voltar para Perúgia. Abandonou-me com minha mãe, era eu pequenina, e nunca mais ouvi dizer que se tenha recordado da minha mãe ou de mim. Não fosse ele meu pai e censurá-lo-ia com veemência, ao pensar na ingratidão que revelou para com a minha mãe (ponho de parte o amor que ele me devia como sua filha, nascida não duma criada ou de uma mulher vulgar), que se entregara nas suas mãos, a si e aos seus haveres, levada por um amor fidelíssimo e sem se importar de saber quem ele era. Mas que havemos de fazer? É muito mais fácil criticar os males feitos num passado remoto do que dar-lhes emenda.
“Assim foi que se passaram os factos. Deixou-me criancinha em Palermo e lá cresci até quase à idade que tenho. A minha mãe, que era uma dama rica, casou-me com um nobre fidalgo de Agrigento (Nota 16) Pormenores historicamente verosímeis. Estamos em 1301 e o presumível cunhado de Andreuccio ter-se-ia refugiado em Nápoles, junto do rei Carlos II de Anjou, depois de ter conspirado para conseguir o seu regresso à Sicília, perdida por seu pai em 1282 e então na posse de Frederico II de Aragão. (Fim da nota), o qual fixou residência em Palermo por amor de mim e de minha mãe. Como era fortemente guelfo, travou algumas relações com o nosso rei Carlos. Sabendo disto o rei Frederico, antes que pudéssemos sofrer quaisquer consequências, tivemos de fugir da Sicília, na altura em que eu esperava vir a ser a dama mais importante que jamais houve na ilha. Trazendo connosco as poucas coisas que foi possível trazer (digo poucas em comparação com o muito que possuíamos), abandonámos terras e palácios e refugiámo-nos nesta cidade. Viemos, porém, encontrar o rei Carlos tão grato connosco que em parte nos vimos indemnizados pelos prejuízos recebidos por sua causa. Deu-nos propriedades e casas e continua a dar ao meu marido e teu cunhado uma boa renda, como ainda poderás ver. Desta maneira, aqui me encontro e aqui te venho conhecer, meu doce irmão, pela boa graça de Deus e não pela tua.” Dito isto, voltou a abraçá-lo de novo, e chorando ternamente, beijou-lhe a testa.
“Andreuccio ouviu a história que ela urdiu com tanta ordem e compostura que em nenhum momento lhe faltou a palavra entre os dentes, nem a língua se mostrou balbuciante. Lembrando-se de que o pai realmente vivera em Palermo, conhecendo por si próprio os costumes dos jovens que facilmente se entregam aos amores da juventude e vendo as enternecidas lágrimas, os abraços e os honestos beijos, aceitou tudo o que ela disse como absolutamente verdadeiro. E, quando ela se calou, respondeu-lhe: “Senhora, não vos pareça estranho que eu me sinta espantado. Nunca o meu pai, fosse por que motivo fosse, falou da vossa mãe ou de vós; ou, se falou, nunca chegou a mim essa notícia. Eu sabia tanto de vós como se não existísseis e é para mim tão agradável encontrar-vos agora, minha irmã, quanto é certo sentir-me aqui mais sozinho e menos esperava por tal coisa. Na verdade, não sei de homem de tão elevada condição que não vos estimasse, quanto mais eu, que sou um pequeno mercador. Mas peço-vos que me expliqueis uma coisa: como soubestes que eu me encontrava cá?” Respondeu-lhe ela: “Disse-mo esta manhã uma pobre mulher que se encontra muitas vezes comigo. Segundo me contou, viveu muito tempo em Palermo e em Perugia em casa do nosso pai. Se não me tivesse parecido mais decente seres tu a vir a minha casa, que é também tua, do que eu ir a casa estranha, já teria ido há mais tempo procurar-te.” Depois destas palavras, começou a perguntar pormenorizadamente por todas as pessoas da família, dizendo-lhe o nome delas. Andreuccio respondeu a tudo e assim ficou ainda mais naquilo de que já não tinha dúvidas. Como a conversa foi demorada e o calor era muito, ela mandou vir vinho grego e bolos, servindo a bebida a Andreuccio. Quando, depois, ele quis ir-se embora por serem horas da ceia, ela de modo nenhum permitiu, mas, fingindo-se entristecida, abraçou-o e disse: “Ai!, coitada de mim! Bem vejo que me tens muito pouco amor. Pensar eu que estás com uma tua irmã que nunca tinhas visto e em cuja casa devias hospedar-te quando vieste, e tu queres ir-te embora para cear na hospedaria? Não! Tens de cear comigo. Lá porque o meu marido está fora, o que muito me aborrece, saberei fazer-te um pouco as honras como dona de casa.”
“Não sabendo que responder, Andreuccio disse: “Amo-vos como se deve amar uma irmã, mas se eu não for vão ficar à minha espera toda a noite para cear, o que será coisa mal feita.” Retorquiu ela: “Louvado seja Deus se não havia de ter alguém em casa que eu mande a dizer que não te esperem! Seria, até, maior gentileza e teu dever mandares dizer aos teus companheiros que venham cear. Depois, se quiseres ainda ir-te embora, ireis todos em grupo.” Andreuccio respondeu não desejar a presença dos companheiros naquela noite, mas, já que era da vontade dela, faria o que lhe desse prazer. A dama, então, fingiu enviar alguém à hospedaria a avisar que o não esperassem para a ceia. Depois de terem conversado sobre muitas outras coisas, sentaram-se à mesa e foram sendo servidos de variados e excelentes pratos, numa ceia que ela ardilosamente fez prolongar até noite escura. Quando se levantaram da mesa e Andreuccio quis partir, ela declarou que de modo nenhum consentiria, pois Nápoles não era terra para andar na rua durante a noite, sobretudo sendo-se forasteiro. Aliás, ao mandar dizer que o não esperassem para a ceia, mandara dizer o mesmo para a dormida. Ele acreditou e, como lhe agradava estar junto dela, enganado por falsa fé, deixou-se ficar. Depois da ceia, não sem motivo, demoraram-se longamente a conversar de muitas coisas. Com uma parte da noite já decorrida, a dama deixou Andreuccio a dormir no seu quarto, com um garoto para lhe indicar aquilo de que precisasse, enquanto ela foi para outro quarto com as suas criadas. Fazia bastante calor e, por isso, mal Andreuccio se viu sozinho, despiu-se e, ficando apenas em camisa, tirou as calças e pendurou-as na cabeceira da cama. Por exigência do natural costume de ter de deitar fora o supérfluo peso do ventre, perguntou ao garoto onde é que o podia fazer. O garoto indicou-lhe uma porta num dos cantos do quarto e disse: “Vá aí dentro.” Andreuccio entrou para lá confiadamente, pousou ao acaso o pé sobre uma tábua que na parte oposta estava despregada da trave onde assentava. Fazendo saltar a tábua, enfiou-se com ela pelo chão abaixo. Caiu de bastante alto e foi atolar-se na imundície que enchia o local, mas Deus tanto o protegeu que não se magoou com a queda. Para melhor compreenderdes o que se disse e o que se segue, vou dizer-vos como era aquele local. Ficava num beco estreito como os que frequentemente encontramos entre duas casas. Sobre duas traves postas de casa a casa, pregavam-se algumas tábuas e era colocado o assento. Foi uma dessas tábuas que tombou juntamente com ele.
“Achando-se, pois, Andreuccio naquele beco e lastimando-se com o acontecido, começou a chamar pelo rapaz. Mas este, mal o sentira cair, tinha corrido a contar à dama. Esta foi depressa ao quarto e logo procurou pelas calças dele. Encontrou-as e com elas o dinheiro que ele, desconfiado, estupidamente trazia sempre consigo. A palermitana, que se fizera irmã dum perugino, apoderou-se do dinheiro, pois para isso tinha montado aquela armadilha. Não se preocupou mais com Andreuccio e foi rapidamente fechar a porta por onde ele passara quando caiu. Como o rapaz não respondia, Andreuccio começou a chamar em voz alta, mas de nada lhe valeu. Já suspeitando e começando tardiamente a dar-se conta do logro, trepou a um pequeno muro que separava da estrada aquele beco, desceu para a rua e dirigiu-se à porta da casa, que reconheceu muito bem. Durante largo tempo chamou em vão, barafustou, bateu. Pôs-se, então, a chorar e a clamar, como quem via perfeitamente a sua desgraça: “Ai desgraçado de mim! Em tão pouco tempo perdi 500 florins e uma irmã!” Depois de muitas outras palavras, começou novamente a bater à porta e a gritar. Tanto insistiu que muitos dos vizinhos em roda, assim acordados e não contendo o seu enfado, se levantaram. Entretanto, uma das serviçais da dama, com os olhos muito enso-nados, veio à janela e disse troçando: “Quem está a bater aí em baixo?” “Oh! – clamou Andreuccio –, pois não me conheces? Sou Andreuccio, irmão da senhora Fiordaliso.” Respondeu-lhe ela: “Ó homenzinho, se bebeste de mais, vai dormir e volta cá amanhã. Não sei quem é Andreuccio nem percebo nada do que estás para aí a dizer. Vai-te embora e deixa-nos dormir, por favor.” “Como? – continuou Andreuccio –, não percebes o que estou a dizer? Percebes com certeza. Mas se na Sicília são assim os parentescos para em tão pouco tempo serem esquecidos, devolve-me ao menos a minha roupa que deixei aí e de bom grado me vou embora com Deus.” Retorquiu-lhe a criada, meio a rir: “Homenzinho, parece-me que estás a sonhar.”
“Dizer isto, voltar para dentro e fechar a janela foi um ápice. Andreuccio, já certíssimo de que tinha perdido tudo, levado pela sua dor, converteu em raiva a sua grande cólera e decidiu reaver com a injúria o que não conseguira reaver com as palavras. Pegou num pedregulho e pôs-se a bater ferozmente à porta com pancadas muitíssimo mais fortes do que antes. Com isto, muitos dos vizinhos já anteriormente acordados e levantados pensaram tratar-se de algum importuno que tivesse inventado aquelas palavras para aborrecer a boa mulher. Aborrecidos com o barulho das pancadas que ele desferia, vieram às janelas e puseram-se a bradar exactamente como os cães do bairro a ladrar em volta dum cão forasteiro: “Que malvadez é essa de vir a estas horas a casa das boas mulheres e dizer tais disparates? Ora vai lá com Deus, homenzinho. Deixa-nos dormir, por favor. Se tens alguma coisa a resolver com ela, volta amanhã e não nos dês tanta maçada esta noite.” Animado com “estas palavras, um tal, que lá dentro da casa era o rufião da boa mulher e que Andreuccio não vira nem ouvira, aflorou à janela e disse com voz grossa, terrível e furiosa: “Quem está aí em baixo?” Àquela voz, Andreuccio levantou a cabeça e viu um homem que, pelo pouco que conseguia compreender, mostrava dever ser um personagem importante, de barba negra e farfalhuda no rosto. Como quem acabava de levantar-se da cama ou dum pesado sono, bocejava e esfregava os olhos. A medo, Andreuccio respondeu-lhe: “Sou um irmão da senhora aí de dentro.” Mas o tal nem esperou que Andreuccio acabasse a resposta. Ainda com maior dureza do que antes, retorquiu: “Não sei se me tenho ou se não vou aí abaixo e te arreie tantas até que te movas daí, burro chato, bebedolas, que esta noite não deixas dormir ninguém!” E voltou para dentro, fechando a janela. Alguns dos vizinhos, que conheciam melhor a raça de tal homem, disseram a Andreuccio com palavras segredadas: “Por Deus, vai-te daqui, homenzinho, se não queres que ele te mate esta noite. Vai-te embora, que é o melhor para ti.” Andreuccio, assustado com a voz e a figura do indivíduo e impelido pelos conselhos dos outros, que pareciam falar-lhe movidos pela caridade, sofrendo como mais ninguém e tendo perdido a esperança de reaver o seu dinheiro, meteu-se a caminho de regresso à hospedaria, tomando a direcção de onde viera durante o dia, seguindo a criadita, sem saber por onde andava. Desagradado ele próprio com o fedor que lhe vinha de si mesmo e desejoso de atingir o mar para lavar-se, virou à esquerda e começou a subir uma rua chamada Ruga Catalana. Enquanto se dirigia para o alto da cidade, calhou ver pela frente dois homens, que se dirigiam para ele com uma lanterna na mão. Teve medo de que fossem guardas da corte ou outros homens com más intenções e, para fugir deles, escondeu-se sem fazer barulho num casebre que viu ali perto. Mas os tais homens, como se já viessem destinados àquele sítio, entraram no mesmo casebre. Descarregaram umas tantas ferramentas que traziam às costas e, um com o outro, começaram a examiná-las, conversando sobre várias coisas a propósito. Estavam a falar quando um deles disse: “Que quer isto dizer? Estou a sentir um fedor como parece que nunca senti.” Dito isto, levantaram um pouco a lanterna e deram com o infeliz Andreuccio. Estupefactos, perguntaram-lhe: “Quem está aí?” Andreuccio continuou calado, mas eles aproximaram-se com a luz e perguntaram o que estava ele ali a fazer assim tão sujo. Então, Andreuccio contou-lhes tudo o que se tinha passado. Eles, imaginando onde o caso poderia ter-se dado, disseram um para o outro: “Foi com certeza em casa do malandrão Buttafuoco.” Voltaram-se para ele e disse-lhe um: “Ó homem, mesmo que tenhas perdido o teu dinheiro, tens muitas graças a dar a Deus por essa história de haveres caído e de poderes depois voltar a casa. Se não fosse caíres, podes ter a certeza de que, antes de adormeceres terias sido morto e, juntamente com o dinheiro, terias perdido a vida. Mas de que serve agora chorar? É tão certo poderes reaver uma só moeda como agarrares as estrelas do céu. O que ainda podes ser é morto, se ele souber que disseste alguma coisa.” Dito isto, trocaram algumas palavras entre si e disseram-lhe: “Olha, estamos com pena de ti e, por isso, se quiseres vir connosco a uma coisa que vamos agora fazer, estamos convencidos de que te caberá muitíssimo mais do que perdeste.” Andreuccio, já desesperado, respondeu estar pronto.
Fora sepultado naquele dia um arcebispo de Nápoles, chamado Filippo Minútolo, e sepultaram-no com riquíssimos paramentos e com um rubi no dedo que valia mais de 500 florins de ouro. Os homens tencionavam ir pilhá-lo e foi o que explicaram a Andreuccio. Este, levado mais pela cupidez do que pelo conselho, meteu-se a caminho com eles. Enquanto se dirigiam à igreja e como Andreuccio continuasse a cheirar muito mal, um deles disse: “Não se pode encontrar um sítio qualquer onde este se lave para não cheirar assim tão mal?” Respondeu o outro: “Sim, estamos perto dum poço, junto do qual costumam estar sempre uma corda e um grande balde; vamos lá e depressa o lavamos.” Chegados ao poço, viram que estava lá a corda, mas que tinham levado o balde. Resolveram atá-lo à corda e descê-lo ao poço para que se lavasse lá no fundo. Logo que estivesse lavado, sacudiria a corda e os outros puxá-lo-iam para cima. Assim fizeram, mas aconteceu que, já com ele descido no poço, alguns guardas da senhoria, fosse pelo calor, fosse por terem corrido atrás de alguém, sentiram sede e dirigiram-se àquele poço para beber. Quando os dois homens os viram, imediatamente se puseram em fuga. Os guardas que vinham para beber não repararam neles e Andreuccio, lá no fundo do poço, como já estivesse lavado, sacudiu a corda. Cheios de sede, os guardas puseram de lado os escudos, as armas e os capotes e começaram a puxar a corda, supondo que trazia atado o balde cheio de água. Quando Andreuccio se viu perto da borda do poço, largou a corda e trepou com as mãos. Ao verem semelhante fenómeno, tomados dum medo súbito, os guardas largaram a corda sem dizerem uma palavra e puseram--se em fuga o mais depressa que foram capazes. Andreuccio ficou tão espantado que, se não estivesse já bem seguro, cairia ao fundo do poço, porventura ferindo-se gravemente ou morrendo. Mas quando saltou para fora e achou as armas, que sabia não terem sido trazidas pelos companheiros, ainda mais espantado ficou. Assim na dúvida, e sem saber o que se passara, lamentando a sorte, resolveu ir-se embora sem tocar em nada. Andou errando sem saber por onde e foi assim que o encontraram os dois companheiros, os quais voltavam para o tirar do poço. Ao vê-lo, mostraram-se muito admirados e perguntaram-lhe quem o tinha tirado do poço. Os dois, imaginando o que se tinha passado, contaram-lhe a rir por que tinham fugido e quem eram os que o haviam puxado. Sem mais conversa, porque já era meia-noite, foram para a igreja catedral, entraram facilmente nela e dirigiram--se à urna, que era de mármore e muito grande. Com o ferro levantaram o pesadíssimo tampo quanto permitisse a um homem passar e escoraram-no. Depois do trabalho feito, pôs-se um deles a dizer: “Quem é que lá vai dentro?” Respondeu o outro: “Eu não.” “Nem eu”, disse aquele, “mas vai entrar Andreuccio.” “Isso é que eu não farei”, disse Andreuccio. Voltaram-se ambos para ele: “Como é que não entras? À fé de Deus, se não entrares, dar-te-emos tantas com estas trancas de ferro na cabeça que te deixaremos aí morto, estendido no chão.” Com o medo, Andreuccio entrou no túmulo e foi pensando entretanto lá para si: “Eles obrigam-me a entrar para me enganarem. Logo que eu lhes tiver dado tudo, enquanto eu estiver a esforçar-me para sair da urna, abalam para a vida deles e eu ficarei sem nada.” Resolveu, pois, ir-se adiantando a retirar a sua parte e, lembrando-se do valioso anel de que ouvira falar, logo que desceu, tirou-o do dedo do arcebispo e enfiou-o no seu. Depois deu-lhes o báculo, a mitra, as luvas, despiu-o até à camisa. E, tendo-lhes entregue tudo isto, foi dizendo que não encontrava mais nada. Eles teimavam que devia lá estar o anel e disseram-lhe que rebuscasse tudo. Mas Andreuccio respondia que não o encontrava e fê-los esperar bastante, fingindo estar à procura. Eles que, por outro lado, eram tão maliciosos como ele, insistiam que continuasse à procura e, ganhando tempo, tiraram a escora que segurava o tampo da urna e fugiram, deixando-o encerrado lá dentro do túmulo. Pode cada um imaginar como terá ficado Andreuccio quando viu tal coisa. Várias vezes tentou com a cabeça e com os ombros para ver se conseguia levantar o tampo, mas era esforço inútil. Vencido por grave dor, desmaiou e caiu em cima do cadáver do arcebispo. Quem então os visse dificilmente reconheceria qual dos dois estava mais morto, o arcebispo ou ele. Quando voltou a si, começou a chorar copiosamente, dando-se conta de um dos dois fins a que, sem dúvida, iria chegar: ou, se ninguém viesse abrir a urna, acabaria por ali morrer de fome e de mau cheiro entre os vermes do cadáver; ou viria alguém e, sendo encontrado lá dentro, acabaria enforcado como ladrão. Estando ele mergulhado nestes pensamentos e muito aflito, ouviu passos na igreja e vozes de muitas pessoas. Vinham, como ele pensava, para fazer o mesmo que ele e os companheiros já tinham feito. Com isto, cresceu-lhe grandemente o medo. Mas depois de os tais terem aberto e escorado a urna, puseram-se a discutir sobre quem devia entrar, mas ninguém o queria fazer. Depois de longa discussão, um padre disse; “De que têm medo vocês? Julgam que ele vos come? Os mortos não comem os homens. Eu entro lá dentro.” Dito isto, apoiou o peito no rebordo da urna, voltou a cabeça para o lado de fora e enfiou para dentro as pernas para descer ao fundo. Andreuccio, vendo isto, pôs-se de pé, agarrou o padre por uma das pernas e fingiu querer puxá-lo. O padre, ao sentir tal coisa, soltou um berro enorme e rapidamente se lançou para fora da urna. Todos os demais se assustaram e, deixando a urna aberta, puseram-se igualmente em fuga como se os perseguissem cem mil diabos. Quando tal viu, Andreuccio alegrou-se como nunca esperara, saltou imediatamente para fora e saiu da igreja pelo mesmo caminho por onde viera. Aproximava-se já o dia até que ele, errando ao acaso com o anel no dedo, chegou à beira do mar e dali foi dar à hospedaria, onde encontrou os companheiros e o hospedeiro, que tinham passado toda a noite em cuidados com a sorte dele. Contou-lhes o que se tinha passado e todos acharam, a conselho do hospedeiro, que ele devia partir imediatamente de Nápoles. Assim o fez sem demora e voltou para Perúgia, depois de ter investido o seu dinheiro num anel, ele que fora para comprar cavalos.”
Dona Berítola é encontrada numa ilha com dois cabritos, depois de haver perdido os dois filhos, e vai para Lunigiana. Ao serviço do senhor desta terra está um dos seus filhos, o qual se deita com a filha do senhor e é metido no cárcere. A Sicília revolta-se contra o rei Carlos, a mãe reconhece o filho, este casa com a filha do senhor, volta a encontrar o irmão e regressam a uma condição elevada (Nota 17) Novela em forma de romance de gosto popular, toda ela percorrida por uma veia de ternura humana. É notável a defesa dos direitos da juventude e do amor na boca de Giannotto, mas sobretudo poéticas são as páginas que descrevem amorosamente a delicada e melancólica figura de Berítola, voltada para os seus cabritos no cenário da ilha deserta. (Fim da nota).
Tanto as damas como os jovens riram-se muito com as desventuras de Andreuccio narradas por Fiammetta. Quando Emília viu que a novela acabara, por ordem da rainha começou:
“Graves e fastidiosos são os movimentos da fortuna. Quando, porém, se fala de coisas dessas, há sempre um acordar das nossas almas, as quais se deixam facilmente adormecer com os favores da mesma fortuna. Julgo, por isso, que nunca aborrece ouvir tais coisas, nem aos ditosos nem aos desventurados, pois que aos primeiros os torna prudentes e aos segundos traz consolação. Portanto, embora tenham sido contados anteriormente grandes sucessos, quero contar-vos uma novela tão real como impressionante. Embora acabando num fim alegre, foi tão grande e tão prolongada a sua amargura que dificilmente posso acreditar que a suavize a alegria de que é seguida.
“Queridas damas, deveis saber que, depois da morte do imperador Frederico II, foi Manfredo (Nota 18) Eis os factos históricos a que se faz alusão nesta e noutras novelas. Em 1250 morreu o imperador Frederico II, senhor da Sicília e do reino de Nápoles. Seu filho Manfredo foi coroado imperador em 1258 e derrotado e morto em 1266 em Benevento por Carlos I de Anjou, chefe do partido guelfo italiano, que lhe sucedeu como rei de Nápoles e da Sicília. Mas em 1282 (revolta das Vésperas Sicilianas) os Anjou foram expulsos da Sicília e obteve a Sua coroa o rei Pedro III de Aragão, ajudado por um nobre de Salerno, João da Prócida. Em 1269 era coroado rei da Sicília Frederico II de Aragão, enquanto no trono de Nápoles a Carlos I sucedia Carlos II (1285-1309) e depois Roberto de Ânjou. (Fim da nota) coroado rei da Sicília. Altamente honrado por este era um fidalgo de Nápoles chamado Arrighetto Capece, que tinha por esposa uma bela e nobre dama igualmente napolitana e chamada Dona Berítola Caràcciola. Arrighetto, em cujas mãos estava o governo da ilha, quando soube que o rei Carlos I vencera e matara Manfredo em Benevento e que todo o reino se punha ao lado dele, porque estava seguro da curta fidelidade dos Sicilianos e não queria tornar-se súbdito do inimigo do seu senhor, aprestou-se para fugir. Mas os Sicilianos souberam disso e imediatamente ele e muitos outros amigos e servidores do rei Manfredo foram entregues como prisioneiros ao rei Carlos, a quem entregaram depois a possessão da ilha. Dona Berítola, no meio de tantas alterações, sem saber onde parava Arrighetto e sempre aflita com o que teria acontecido ao marido, receosa da ignomínia, deixou todos os seus bens e, grávida e pobre, na companhia dum filho chamado Geofredo, talvez de oito anos, fugiu num pequeno barco para Lípari, onde deu à luz outro filho varão, ao qual deu o nome de Scacciato. Arranjou uma ama e com eles embarcou a fim de voltar a Nápoles, para casa dos pais. Mas aconteceu o contrário do que esperava. Impelido pelo vento, o barco, que devia dirigir-se a Nápoles, foi arrastado para a ilha de Ponza, onde entraram numa pequena enseada à espera de melhor tempo para a viagem. Dona Berítola desembarcou na ilha com os outros, procurou um lugar solitário e afastado e aí sozinha pôs-se a chorar o seu Arrighetto. Todos os dias fazia o mesmo, até que, estando de uma dessas vezes ocupada com as suas mágoas, aconteceu aproximar-se sem que ninguém, marinheiro ou outrem, se tivesse apercebido uma galé de corsários, que os prendeu a todos sem dificuldade e logo abalou. Dona Berítola, acabado o seu diurno lamento, voltou à praia para rever os filhos como era hábito fazer e não encontrou ninguém. Primeiramente surpresa, logo suspeitou do que se passara e, lançando os olhos para o mar, viu a galé ainda não muito afastada e rebocando o pequeno navio. Percebeu assim perfeitamente que, tal como perdera o marido, tinha perdido agora os seus filhos. Ao ver-se ali, pobre, só e abandonada, sem saber se alguma vez voltaria a encontrar algum deles, gritando pelo marido e pelos filhos, desfalecida, tombou na areia. Não havia ali quem lhe fizesse recobrar as perdidas forças com água fria ou de qualquer outro modo. Puderam, assim, os espíritos vaguear à vontade o tempo que lhes apeteceu. Mas quando voltaram ao mísero corpo as abaladas forças juntamente com as lágrimas e o lamento, largo tempo andou Dona Berítola chamando pelos filhos, procurando-os por todas as grutas. Vendo, porém, que era em vão o seu esforço e que a noite estava a chegar, esperando não sabia o quê, pensou um pouco em si própria, abandonou a praia e regressou à gruta onde costumava chorar e lamentar-se.
“Passada a noite com muito medo e incalculável dor, veio o novo dia. Tinha já passado a hora da tércia quando ela, que não havia ceado no dia anterior, levada pela fome, começou a comer ervas e, aumentada como foi possível, se entregou, chorando, a diversos pensamentos sobre a sua vida futura. Enquanto neles se entretinha, viu chegar-se uma cabra que entrou numa gruta ali perto. Passado algum tempo, tornou a sair e a voltar para o bosque. Levantou-se a dama, então, entrou na gruta de onde saíra a cabra e viu dois cabritos nascidos talvez naquele dia. Pareceram-lhe a coisa mais doce e mais graciosa deste mundo e, como ainda não lhe tinha secado nos seios o leite do último parto, pegou neles meigamente e deu-lhes o peito. Eles não recusaram a oferta e puseram-se a mamar como se ela fosse a própria mãe. Daí em diante, não fizeram qualquer distinção entre a mãe e a dama. Pareceu à nobre senhora ter encontrado naquele ermo uma companhia. Assim, nutrindo-se de ervas, bebendo água e chorando tantas vezes quantas se lembrava do marido, dos filhos e da sua vida pretérita, dispôs-se a viver e a morrer ali, tão amiga da cabra como dos cabritinhos. Com o passar do tempo, a nobre senhora acabou por tornar-se selvagem.
“Vários meses depois, quis a fortuna que ali chegasse um navio de Pisani, o qual demorou alguns dias no mesmo local aonde anteriormente ela tinha chegado. A bordo vinha um nobre chamado Conrado, dos marqueses Malespini (Nota 19) Também Dante fala com grandes elogios de Conrado Malaspina, senhor de Lunigiana, no vale de Magra, falecido cerca de 1294 (Purg., VIII, pp. 118 e segs.). Sua esposa chamava-se Orietta. (Fim da nota), acompanhado da sua virtuosa e santa esposa. Vinham duma peregrinação a todos os santuários existentes na Apúlia e iam a caminho de casa.
“Para vencer a melancolia, o nobre, juntamente com a esposa, alguns criados e os seus cães, pôs-se um dia a explorar o interior da ilha. Não muito longe do lugar onde se encontrava Dona Berítola, os cães de Conrado começaram a perseguir os dois cabritos, que já estavam crescidos e andavam por ali na pastagem. Os cabritos, escorraçados pelos cães, não encontraram sítio para fugir senão a gruta onde estava Dona Berítola. Esta, ao ver o que se passava, levantou-se, pegou num pau e afugentou os cães. Conrado e a esposa, que vinham na peugada dos cães, quando ali chegaram e a viram morena, magra e de cabelos crescidos como se tornara, ficaram espantados e ela ainda muito mais do que eles. Mas depois de, a pedido dela, terem mandado os cães para trás e após muita insistência, convenceram-na a dizer quem era e o que estava ali a fazer. Ela contou-lhes abertamente e em pormenor tudo sobre a sua condição, todos os seus infortúnios e a sua selvática resolução. Ao escutá-la, Conrado, que conhecera muito bem Arrighetto Capece, chorou de compaixão e com insistentes palavras procurou demovê-la de resolução tão cruel, oferecendo-se para a levar a casa dela ou recebê-la na sua com honras de irmã e aí estivesse até que Deus lhe mandasse fortuna mais ditosa. Como a dama não cedeu a tais oferecimentos, Conrado deixou junto dela a esposa, dizendo a esta que mandasse vir comida, que a vestisse com um dos seus vestidos, dado ela encontrar-se esfarrapada, e que fizesse tudo para a levar consigo. A nobre dama ficou junto dela, chorou bastante com Dona Berítola os seus infortúnios, mandou vir roupa e comida e, com o maior esforço do mundo, convenceu-a a vestir-se e a comer. Finalmente, depois de muitos rogos, como ela declarasse que jamais iria para onde a pudessem reconhecer, convenceu-a^ a ir consigo para Lunigiana, levando os dois cabritos e a cabra, que, entretanto, tinha voltado e, com grande maravilha da fidalga, lhe fizera uma grande festa. Quando regressou o bom tempo, Dona Berítola embarcou na companhia de Conrado e da esposa” deste, juntamente com a cabra e os dois cabritos. Por causa disto, como toda a gente ignorava o nome da dama, começaram a chamar-lhe a Cabra. Com bom vento depressa arribaram à foz do Magra, aí desembarcaram e subiram ao castelo. Dona Berítola, vestida de viúva, ali permaneceu junto da esposa de Conrado como uma das suas aias, digna, humilde e obediente, sempre com dedicado amor aos seus cabritos e cuidando da sua alimentação.
“Os corsários, que em Ponza se tinham apoderado do barco onde ia Dona Berítola e a deixaram na ilha por não a terem visto, encaminharam-se com toda a outra gente para Génova. Chegados ali, a presa foi repartida pelos donos da galé, cabendo em sorte, entre outras coisas, a um tal senhor Guasparrin d”Oria a ama de Dona Berítola e as duas crianças que estavam com ela. Guasparrin mandou-a com as crianças para a sua casa, conservando-as como servos nos serviços domésticos. A ama, sofrendo extraordinariamente com a perda da sua senhora e com a miserável sorte em que se via cair com as duas crianças, chorou durante muito tempo. Mas, ao ver que as lágrimas nada resolviam, concluiu estar reduzida com elas à servidão. Embora fosse uma pobre mulher, era inteligente e sensata. Começou por conformar-se o melhor de que foi capaz e, depois de pensar ao que tinham chegado, achou que, se os dois garotos fossem reconhecidos, talvez viessem a encontrar facilmente dificuldades. Além disso, esperava que alguma vez a fortuna havia de mudar e eles poderiam, se fossem vivos, regressar à perdida condição. Pensou, portanto, não revelar a ninguém quem eles eram se a ocasião não fosse oportuna para o fazer. E, a toda a gente que a interrogava a tal propósito, dizia que eram seus filhos. Ao mais velho não lhe chamava Geofredo, mas Giannotto di Procida. Ao mais pequeno não se preocupou em mudar o nome. Com extrema diligência, mostrou a Geofredo por que lhe mudara o nome e o perigo que ele corria se fosse reconhecido, recordando-lhe isto não uma vez, mas muitas e frequentes vezes. O rapaz, que era inteligente, fazia exactamente como lhe ensinava a prudente ama. Mal vestidos e pior calçados, assim estiveram pacientemente vários anos os dois rapazes com a ama em casa de Guasparrino, a trabalhar em todos os serviços mais baixos. Mas Giannotto, quando chegou aos 16 anos, porque possuía um espírito que não pertencia a um servo, desprezando a vileza da condição servil, embarcou nas galés que seguiam para Alexandria, indo-se embora do serviço do senhor Guasparrino, andando por muitas partes, mas sem colher quaisquer lucros. Finalmente, passados três ou quatro anos depois de ter deixado o senhor Guasparrino, já feito um jovem belo e de elevada estatura, veio a saber que o pai, que supunha morto, continuava ainda vivo, embora na prisão e guardado cativo pelo rei Carlos. Já quase sem esperança na sorte, errando como vagabundo, chegou a Lunigiana, onde o acaso o fez entrar como criado em casa de Conrado Malaspina, servindo-o cabalmente e muito a contento. Embora algumas vezes tenha visto a sua mãe, que estava com a esposa de Conrado, nunca a reconheceu, nem ela a ele. A idade de um e de outro tinham-nos transformado bastante em relação ao que eles eram na última vez em que se viram.
“Estava Giannotto ao serviço de Conrado quando sucedeu voltar para casa de seu pai uma filha do mesmo Conrado, cujo nome era Spina e que tinha ficado viúva dum certo Nicolau de Grignano. Era muito bonita, simpática e com pouco mais de 16 anos. Quando por acaso pôs os olhos em Giannotto e ele nela, apaixonaram-se ardentemente um pelo outro. Este amor não esteve muito tempo sem efeito e durou vários meses antes de alguém se aperceber. Foi assim que, demasiado confiantes, começaram a comportar-se dum modo menos discreto daquele que se requer para semelhantes casos. Andando a jovem, certo dia, com Giannotto num belo e denso bosque, deixaram toda a restante companhia e avançaram lá para dentro. Pareceu-lhes terem-se afastado bastante dos outros e foram estender-se num sítio aprazível, cheio de erva e de flores e oculto pelas árvores, pondo-se a jogar os prazeres do amor um com o outro. Estavam eles juntos há um largo tempo, que o grande deleite lhes fazia parecer muito breve, quando foram surpreendidos pela mãe da jovem primeiramente e depois por Conrado. Este, em extremo chocado pelo que viu, sem nada dizer das suas razões, mandou imediatamente a três dos seus criados que os prendessem e os levassem amarrados para um dos seus castelos. E pôs-se a caminho, fervendo de ira e de desgosto, resolvido a dar-lhes uma morte de ignomínia. A mãe da jovem, embora tivesse ficado muito perturbada e achasse que a filha merecia uma severa penitência pelo seu pecado, quando percebeu por algumas palavras a intenção de Conrado em relação aos culposos, não pôde suportar aquela ideia. Adiantou-se em alcançar o irritado marido e começou a rogar-lhe que não deveria desejar, na sua velhice, precipitar-se, levado pela fúria, tornar-se o assassino da própria filha e sujar as mãos no sangue dum seu criado. Havia de encontrar outra maneira de aplacar a ira, por exemplo metendo-os na prisão para nela sofrerem e expiarem o pecado cometido. A santa senhora tanto insistiu com estas e outras palavras que conseguiu desviá-lo do propósito de os matar. Conrado ordenou que fosse cada um deles encarcerado em sítios diferentes, bem guardados e mantidos com pouco alimento e muito desconforto, até que ele decidisse outra coisa sobre os dois. Foi isto que se fez. Pode cada um imaginar qual a vida dos dois no cativeiro, em lágrimas sem fim, em prolongados jejuns e em tantas privações.
“Assim passaram um ano Giannotto e Spina naquela vida de sofrimento, sem que Conrado se lembrasse deles. Ora aconteceu que o rei Pedro de Aragão, por acordo com o senhor Gian di Procida, levantou a revolta na ilha da Sicília e tomou-a ao rei Carlos. Conrado, como gibelino, festejou grandemente o feito.. Giannotto ouviu contar os acontecimentos a um dos seus guardas e, então, soltou grande suspiro, dizendo: “Ai desgraçado de mim! Vão decorridos já catorze anos que ando a arrastar uma vida de miséria pelo mundo, esperando apenas por isto. E, agora que aconteceu, para que eu não espere conseguir muito mais, vem-me encontrar na prisão, de onde nunca mais espero sair senão morto!” “Como? – disse o carcereiro. – Que te interessa a ti o que possa haver entre os poderosos reis? Que é que tinhas de fazer na Sicília?” Respondeu Giannotto: “Parece-me que o meu coração rebenta quando penso naquilo que o meu pai fez por lá. Embora eu fosse criança pequena quando de lá fugi, lembro-me de o conhecer como governador da ilha, em vida do rei Manfredo.” Prosseguiu o carcereiro: “Mas quem foi o teu pai?” “O meu pai - disse Giannotto –, agora já com certeza o posso revelar, pois me encontro fora do perigo que eu receava se o tivesse revelado antes. Chamou-se,-e ainda hoje se chama se estiver vivo, Arrighetto Capece. O meu nome não é Giannotto mas Geofredo. Não tenho qualquer dúvida de que, se eu saísse daqui e voltasse à Sicília, ainda lá teria uma posição muito grande.” O bom homem não adiantou mais nada e, logo que teve uma oportunidade, contou tudo a Conrado. Quando tal coisa ouviu, embora mostrando que não se interessava pelo prisioneiro, Conrado procurou Dona Berítola e perguntou-lhe afavelmente se tivera de Arrighetto algum filho chamado Geofredo. Chorando, a dama respondeu que, se o mais velho dos dois filhos que tivera fosse vivo, assim se chamaria e havia de ter a idade de 22 anos. Ao ouvir isto, Conrado concluiu serem os dois a mesma pessoa e veio-lhe ao espírito que, sendo assim, podia ao mesmo tempo fazer um grande acto de misericórdia e afastar a sua vergonha e a da filha dando-lhe esta por esposa. Mandou vir em segredo Giannotto e interrogou-o com pormenor sobre toda a sua vida passada. Encontrando provas mais do que manifestas de que ele era realmente Geofredo, filho de Arrighetto Capece, disse-lhe: “Giannotto, sabes quanta e qual a ofensa que me fizeste na honra da minha filha quando, tratando-te eu bem e com amizade, devias, como deve fazer um servidor, zelar e agir sempre pela minha honra e pelos meus interesses. Muitos seriam aqueles que, fazendo-lhes tu o mesmo que a mim fizeste, te dariam morte vili-pendiosa, coisa que a minha clemência não suportou. Ora, dado seres, como dizes, filho de fidalgo e de fidalga, quero, quando tu mesmo quiseres, pôr termo aos teus sofrimentos, tirar-te da miséria e do cativeiro em que te encontras e, ao mesmo tempo, pòr no devido lugar a tua honra e a minha. Apaixonaste-te de Spina, ainda que duma forma condenável para ti e para ela. Como sabes, Spina é viúva e o seu dote é grande e valioso. Conheces a sua educação, o seu pai, a sua mãe: da tua presente condição não digo nada. Por isso, quando quiseres, estou disposto a que se torne honestamente tua esposa aquela que desonestamente foi tua amante. Ficarás com ela em minha casa o tempo que desejares, tratado como meu filho.” A prisão macerara o corpo de Giannotto, mas o generoso espírito recebido da sua origem, esse não o rebaixara ela de modo nenhum, como não lhe reduzira o total amor que tinha pela sua dama. E, embora desejasse ardentemente o que lhe estava a oferecer Conrado e ele se encontrasse à sua mercê, não hesitou em responder como a grandeza da sua alma lhe mostrava que devia ser: “Conrado, nem a cobiça de mandar, nem o desejo da riqueza, nem outra razão qualquer me levou alguma vez a armar insídias como traidor contra a tua vida ou os teus interesses. Amei a tua filha, amo-a e hei-de sempre amá-la porque a considero digna do meu amor. Se, na opinião da gente vulgar, me comportei com ela menos honestamente, afinal cometi o pecado que a juventude traz sempre consigo. Se alguém o quiser suprimir, terá de suprimir a juventude. E se os velhos quiserem recordar-se de que foram jovens e quiserem medir os erros dos outros pelos seus e os seus pelos dos outros, não haverá a gravidade que tu e muitos outros fazem. Cometi esse pecado como amigo e não como inimigo. O que me convidas a fazer sempre foi por mim desejado e, se eu tivesse acreditado que isso me seria concedido, há muito tempo o teria solicitado. É coisa tanto mais querida para mim quanto menor a esperança sobre ela. Se não tens a intenção que as tuas palavras revelam, não me alimentes de vã esperança: manda-me de novo para a prisão e faz-me sofrer quanto te aprouver, pois que, na medida em que eu amo Spina, tanto por amor dela sempre te amarei e, faças tu o que me fizeres, sempre te respeitarei.” Ao ouvir estas palavras, Conrado ficou surpreendido, considerou-o um elevado espírito, que o seu amor era ardoroso e ficou a estimá-lo ainda mais. Pondo-se de pé, abraçou-o, beijou-o e, sem perda de tempo, ordenou que discretamente trouxessem Spina. Ela emagrecera na prisão e tornara-se pálida e débil, parecendo uma mulher diferente do que era, tal como Giannotto parecia outro homem. Os dois, na presença de Conrado, por mútuo consentimento, contraíram os esponsais segundo o nosso costume.
“Depois de passarem alguns dias sem que alguém tivesse sabido qualquer coisa do que se passara e depois de Conrado lhes ter facultado tudo aquilo de que eles precisavam ou lhes dava gosto, pareceu-lhe tempo de dar alegria às suas mães. Mandou, pois, chamar a sua esposa e a Cabra e assim falou na presença de ambas: “Que diríeis, senhora, se eu vos devolvesse o vosso filho mais velho e na qualidade de marido de uma das minhas filhas?” A Cabra respondeu: “De uma coisa dessas só vos poderia dizer que, se pudesse estar-vos mais grata do que estou, seria na medida em que me estaríeis a dar uma coisa que eu estimo mais do que a mim própria. E dando-me tal coisa da forma que estais a dizer, dar-me-íeis um pouco da esperança que perdi.” As lágrimas calaram-na. Disse depois Conrado à sua esposa: “E que acharias tu, senhora, se te desse um tal genro?” A esposa respondeu-lhe: “Mesmo não sendo um desses que são fidalgos, mas um maltrapilho, se vos agradasse, também me agradaria a mim.” Disse, então, Conrado: “Dentro de poucos dias, espero com isso tornar-vos mulheres felizes.” Quando achou que os dois jovens haviam retomado a sua primeira forma, mandou-os vestir convenientemente e perguntou a Geofredo: “Como te sentirias se, para lá da alegria que possuis, encontrasses agora a tua mãe?” Geofredo respondeu: “Não acredito que os desgostos dos seus desventurados infortúnios a tenham conservado viva. Mas, se isso fosse possível, sentir-me-ia extremamente feliz e, guiado pelo seu conselho, seria capaz de recuperar grande parte da minha condição na Sicília.” Conrado mandou chamar as duas mulheres. Elas fizeram imediatamente maravilhosa festa à nova esposa, mostrando não pouco espanto pela inspiração que assim pôde levar Conrado a ser tão benigno para casar Giannotto com ela. Dona Berítola, porém, com as palavras ouvidas da boca de Conrado, pôs-se a olhar e um secreto poder acordou nela a lembrança dos traços infantis do rosto do seu filho. Sem esperar outra prova, correu de braços abertos ao seu pescoço. A demasiada comoção e alegria maternal não lhe deixaram dizer qualquer palavra; antes a fizeram perder as forças da sensação e tombou como morta nos braços do filho. Este, embora muito se espantasse ao recordar que muitas vezes a tinha visto naquele mesmo castelo e nunca a reconhecera, apesar disso logo reconheceu o odor materno e, censurando-se a si mesmo pelo seu passado descuido, com lágrimas recebeu-a nos seus braços e beijou-a com ternura. Mas logo que Dona Berítola, carinhosamente ajudada pela esposa de Conrado e por Spina, readquiriu as esvaídas forças por meio de água fria e de outras artes, novamente se pôs a abraçar o filho com muitas lágrimas e com muitas palavras doces. Cheia de materno carinho, mil vezes ou mais o beijou, enquanto ele com muita reverência a olhava e recebia os beijos.
“Aquele justo e ditoso acolhimento repetiu-se três ou quatro vezes, com grande alegria e prazer dos circunstantes. Contaram um ao outro tudo por quanto haviam passado e, entretanto, Conrado comunicou aos amigos, com grande satisfação de todos eles, o novo parentesco que fizera, dando ordens para uma bela e magnífica festa. Foi então que Geofredo lhe disse: “Conrado, vós cumulastes-me de felicidade e durante muito tempo destes honroso acolhimento a minha mãe. Ora, para que nada mais nos reste fazer, rogo-vos que deis a minha mãe, à minha festa e a mim próprio a alegria de ter presente o meu irmão. Já vos contei que o senhor Guasparrino d’Oria se apoderou de mim e do meu irmão num ataque corsário. Ele conserva-o em sua casa na condição de servo. Rogo-vos, ainda, que envieis uma pessoa à Sicília, que se informe inteiramente sobre as condições e a situação do país, procure saber que é feito de Arrighetto, meu pai, se está morto ou se está vivo e em que estado, regressando depois de perfeitamente informada de tudo.” Conrado acedeu de boa mente ao pedido de Geofredo e, sem mais demora, enviou pessoas de muita confiança a Génova e à Sicília.
“A pessoa enviada a Génova procurou o Sr. Guasparrino e rogou-lhe instantemente da parte de Conrado que lhe mandasse Scacciato e a sua ama, contando-lhe em pormenor o que Conrado fizera em relação a Geofredo e à mãe. O senhor Guasparrino ficou muito espantado de ouvir tais coisas e disse: “Não há dúvida que farei por Conrado tudo o que eu puder fazer e lhe dê agrado. De facto, tenho em minha casa há catorze anos o rapaz que me pedes e uma que é sua mãe. De bom grado lhos enviarei. Mas diz-lhe da minha parte que se acautele e não acredite demasiado nas histórias de Giannotto, esse que agora diz chamar-se Geofredo, pois ele é muito maior patife do que parece.” Dito isto, ordenou que servissem o mensageiro, mandou chamar em segredo a ama e discretamente interrogou-a sobre o facto. Ela, ao ouvir falar da revolta da Sicília e ao saber que Arrighetto estava vivo, afastou o medo que tinha antes, contou-lhe tudo em pormenor e mostrou-lhe as razões por que havia tomado aquela atitude. O senhor Guasparrino, vendo estarem perfeitamente de acordo as palavras da ama com as do mensageiro de Conrado, começou a acreditar no que eles diziam. Como era homem muito astuto, pôs-se a inquirir de uma e de outra maneira sobre aquela história. Encontrando cada vez mais provas que lhe davam a certeza do facto, arrependeu-se do vil tratamento que dera ao rapaz. Para emenda disto e porque sabia quem fora e quem era Arrighetto, deu ao rapaz por mulher e com um grande dote uma sua filha, bonita e de 11 anos de idade. Depois de ter dado uma grande festa, dirigiu-se a Lerici numa galeota bem aparelhada, juntamente com o rapaz, a filha, o mensageiro de Conrado e a ama. Recebido por Conrado, dirigiu-se com toda a sua companhia para um castelo deste, não muito distante dali, onde fora preparada a grande festa. Mas não há palavras capazes de descrever a festa daquela mãe ao rever o filhinho, a festa dos dois irmãos, a festa dos três à fiel ama, a festa de todos eles a Guasparrino e à sua filha, a festa deste a todos e a festa de toda aquela gente com Conrado, a sua esposa, os filhos e os amigos. Por isso, vos deixo a vós, damas, imaginá-la.
“Mas para que a festa ficasse completa, quis o Senhor Deus, que quando começa a dar é abundantíssimo, acrescentar-lhe as alegres notícias sobre a vida e a boa situação de Arrighetto Capece. Ia grande a festa e estavam os convidados, mulheres e homens, em volta das mesas ainda no primeiro prato, quando chegou o enviado à Sicília. Entre outras coisas sobre Arrighetto, contou que, quando a revolta contra o rei se levantou na terra onde ele estava preso como cativo do rei Carlos, o povo correu furioso à prisão, matou os guardas, tirou-o para fora e, por se tratar do principal inimigo do rei Carlos, fizeram-no seu capitão. Seguiram-no depois a caçar e a matar os Franceses. Por tais feitos, havia ele entrado na suma graça do rei Pedro, que lhe devolveu todos os bens e dignidade. Encontrava-se, pois, numa elevada e excelente condição. Acrescentou o enviado que Arrighetto o tinha recebido com todas as honras e se alegrara de forma indescritível ao receber notícias da esposa e do filho, dos quais nunca mais soubera nada desde que fora preso. Além disso, mandou-lhes uma falua com alguns fidalgos, os quais deviam estar a chegar. O mensageiro foi acolhido e escutado com grande alegria e júbilo. Imediatamente Conrado, com alguns dos seus amigos, foi ao encontro dos fidalgos que vinham buscar Dona Berítola e Geofredo. Recebeu-os alegremente e conduziu-os até ao banquete, que ainda não ia a meio. Dona Berítola, Geofredo e todos os restantes receberam-nos com uma alegria como outra igual nunca existiu. Os fidalgos, antes de começarem a comer, saudaram e agradeceram da parte de Arrighetto, o melhor que souberam e puderam, a Conrado e à esposa deste a honra que prestaram à mulher e ao filho dele. Arrighetto estava à sua disposição para tudo aquilo que por ele fosse possível fazer. Em seguida, dirigiram-se ao senhor Guasparrino, cujo benefício fora inesperado, e disseram-lhe estarem certíssimos de que, se Arrighetto soubesse o que ele fizera por Scacciato, lhe mandaria semelhantes e maiores agradecimentos. Depois, muitíssimo alegres na festa das duas novas esposas, comeram juntamente com os noivos. A festa de Conrado oferecida ao genro e aos outros parentes e amigos não durou apenas aquele dia, mas muitos outros. Terminada a festa, Dona Berítola e os outros acharam ser altura de partir. Despediram-se com muitas lágrimas de Conrado, da mulher deste e do senhor Guasparrino, embarcaram na falua levando consigo Spina e abalaram. O vento era favorável e depressa chegaram à Sicília. Arrighetto recebeu-os em Palermo, tanto os filhos como as mulheres, a todos igualmente com uma alegria tão grande que jamais se pode descrever. Diz-se que lá viveram durante longos anos, muito felizes e, bem cientes da graça recebida, amigos do Senhor nosso Deus.”
O sultão de Babilónia envia ao rei do Algarve uma sua filha para casar com ele. Durante quatro anos, diversos acidentes levam a princesa a passar pela mão de nove homens, correndo várias terras. Finalmente, é restituída ao pai como estando virgem e, como de princípio, volta ao rei do Algarve para sua mulher (Nota 20) A novela conta as aventuras duma princesa que, por causa da sua beleza fatal, entre desgraças e crimes, passa de uma mão para a outra durante quatro anos, num ritmo acelerado. Todavia, não existe nela nada de trágico. Boccaccio diverte--se com o prodigioso desenrolar de casos tão fantasiosos, limitando-se a uma psicologia bastante sumária dos personagens e projectando aqui ou além um sorriso malicioso, que vai acentuar-se perante a pacífica conclusão matrimonial do seu magnífico provérbio: “Boca beijada não perde ventura.” La Fontaine inspirou-se nesta novela para um dos seus melhores contos. (Fim da nota).
Se um pouco mais se alongasse a novela de Emília, a compaixão sentida pelas donzelas diante das desventuras de Dona Berítola tê-las-ia conduzido às lágrimas. Mas, concluída a novela, aprouve à rainha que fosse Pânfilo a contar em seguida a sua novela. Como ele era obedientíssimo, logo começou:
“Dificilmente, adoráveis senhoras, podemos saber por nós o que nos pode acontecer. Como várias vezes foi possível ver, há muitos a julgar que, se ficassem ricos, poderiam viver sem preocupações e em seguro. E não só o rogaram a Deus com orações, como procuraram consegui-lo sem recusar qualquer esforço ou perigo. Mas se tal coisa se realizou, logo encontraram quem, tendo sido amigo das suas vidas antes de enriquecerem, logo os mataram levados pela cobiça de tão vasta herança. Outros de baixa condição subiram ao lugar mais alto dos reinos através de mil batalhas perigosas e pelo sangue dos irmãos e dos amigos. Julgavam eles ir encontrar a suprema felicidade sem as incontáveis preocupações e medos de que, afinal, se viram e sentiram cheios. Conheceram pela própria morte que, na mesa dos reis, se bebia no ouro o veneno. Muitos desejaram com ardentíssimo apetite o vigor do corpo e a beleza e alguns os ornamentos e não se aperceberam de terem feito mal em desejá-los antes de se aperceberem que tais coisas eram causa da sua morte ou de vida dolorosa. E, para não ter que falar exaustivamente de todos os desejos humanos, afirmo não haver nenhum que possa com segura certeza ser escolhido pelos homens como isento de infortúnios. Por isso, se quisermos agir correctamente, devemos dispor-nos a aceitar e a possuir só o que nos dá Aquele que é o único a saber do que precisamos e que o pode dar. Mas tal como os homens pecam no desejo de várias coisas, vós, graciosas senhoras, pecais sobretudo, numa: desejais ser belas e, não bastando as belezas que a natureza vos concede, ainda procurais com maravilhosa arte acrescentá-las. Por isso me apraz contar-vos como foi desventuradamente bela uma sarracena à qual aconteceu ter de fazer novas núpcias nove vezes em cerca de quatro anos, por culpa da sua beleza.
“Há muito tempo atrás, houve na Babilónia (Nota 21) Trata-se realmente do Egipto. Para se dirigir ao reino do Algarve, Alatiel parte de Alexandria, passa as costas da Sardenha e naufraga em Maiorca. (Fim da nota) um sultão que tinha o nome de Beminedab e em cujos dias muitas coisas aconteceram segundo os seus desejos. Entre os muitos filhos e filhas, possuía uma filha chamada Alatiel. Todos os que a tinham visto diziam ser a mais bela mulher que alguma vez se viu no mundo. Numa grande vitória que obtivera sobre uma multidão de árabes que o tinham atacado, fora ardorosamente ajudado pelo rei do Algarve. Como este lhe pedisse como graça especial a mão da sua filha, deu-lha para mulher. Embarcou-a com um digno acompanhamento de homens e mulheres e com ricas vestes, num navio bem armado e apetrechado e mandou-a na companhia de Deus. Os marinheiros, achando o tempo de boa feição, largaram as velas ao vento e saíram do porto de Alexandria, tendo navegado durante vários dias sem problemas. Já tinham passado a Sardenha e parecia-lhes estarem perto do termo da viagem quando, certo dia, se levantaram subitamente diversos ventos, cada um deles o mais impetuoso. Foi tão fustigado o navio onde viajava a dama que por várias vezes os marinheiros se consideraram perdidos. No entanto, como homens valorosos que eram, puseram em prática toda a sua arte e força e, lutando contra um mar gigantesco, mantiveram-se assim três dias. Tinha começado a terceira noite de tempestade, e esta, em vez de abrandar, crescia constantemente. Já não sabiam onde estavam, nem o podiam saber por cálculo marítimo ou à vista, pois o céu escurecera completamente com as grandes nuvens e a cerrada noite. Deviam encontrar-se não muito ao norte de Maiorca quando sentiram o navio desconjuntar-se. Ao verem-se sem outro remédio para escapar, cada um pensou em si e não nos outros. Os proprietários lançaram, então, ao mar uma canoa e, considerando-se mais seguros dentro dela do que no desconjuntado navio, atiraram-se para a canoa. Mas logo de seguida foram saltando todos os homens que havia dentro do navio e, embora os primeiros que desceram para a canoa se opusessem de facas em riste, todos se lançaram à pequena embarcação. Assim, pensando eles fugir à morte, ali a foram encontrar. De facto, a canoa, por causa da adversidade do tempo, não conseguiu aguentar tanta gente, afundou-se e todos pereceram. O navio, impelido por um vento impetuoso, embora desconjuntado e quase todo cheio de água, foi correndo velozmente e acabou por encalhar numa praia da ilha de Maiorca. A bordo apenas tinham ficado a dama e as suas aias, quase todas jazendo à beira da morte, vencidas pela fúria do mar e pelo medo.
“Fora tal e tão grande o ímpeto do navio que se enterrou quase todo na areia, apenas a uma pedrada da costa. Ali ficou durante a noite, batido pelo mar e sem que o vento o conseguisse mover. Quando se fez dia claro e a tempestade amainou um pouco, a dama, meio morta, ergueu a cabeça e, débil como estava, começou a chamar ora um, ora outro dos seus criados, mas sem resultado. Os que ela chamava estavam demasiado longe. Vendo que ninguém lhe respondia e não lobrigando ninguém, ficou muito assombrada e começou a sentir um medo muito grande. Pondo-se de pé como lhe foi possível, viu as aias que estavam na sua companhia e todas as outras mulheres deitadas no chão. Depois de muito tentar chamá-las uma por uma, poucas encontrou que ainda dessem sinais de vida, como se a morte as tolhesse por causa do grave enjoo de estômago e pelo medo. O pavor da dama cresceu ainda mais. Todavia, levada pela necessidade de alguém que a confortasse, pois via-se ali sozinha e sem saber onde estava, tanto estimulou as que estavam vivas que as conseguiu pôr em pé. Descobrindo que elas não sabiam por onde tinham ido os homens e vendo o navio quebrado em terra e inundado em água, pôs-se com elas a chorar de dor. Até à hora noa ainda não tinham visto ninguém na praia ou noutro lugar a quem pudessem suplicar por socorro. Era já a hora noa quando, ao regressar por acaso duma propriedade sua, passou por ali um fidalgo chamado Pericon de Visalgo, com vários criados a cavalo. Viu o navio, logo imaginou o que acontecera e ordenou a um dos criados que, sem demora, tentasse subir ao navio e lhe dissesse o que havia lá dentro. O criado, embora com dificuldade, conseguiu trepar e encontrou a nobre donzela com a reduzida companhia que lhe ficara, escondendo-se muito tímida sob o bico da proa do navio. Ao verem o criado, elas suplicaram-lhe várias vezes misericórdia chorando. Mas, reparando que ele não as percebia nem elas o percebiam, esforçaram-se por meio de gestos em mostrar-lhe a sua desventura. O criado, depois que observou tudo o melhor que pôde, foi contar a Pericon o que encontrara no barco. O fidalgo mandou tirar imediatamente para fora do barco as mulheres e os objectos mais valiosos que havia a bordo e se podiam levar, indo com elas para um seu castelo. Ali reconfortou as mulheres com alimentos e com repouso, percebendo pelos ricos trajes que a dama por ele encontrada devia ser senhora de grande nobreza e logo o confirmando o serviço que as outras mulheres lhe prestavam. Embora a dama estivesse pálida e bastante desarranjada de figura, mesmo assim as suas feições pareciam formosíssimas a Pericon. Logo decidiu, se ela não tivesse marido, querê-la por mulher e, se não a pudesse ter por mulher, conquistar-lhe a amizade. Pericon era homem de bela aparência e muito robusto. Passados alguns dias a mandar servir muito bem a dama, esta restabeleceu-se por completo e ele achou-a duma beleza acima de tudo o que se possa imaginar, lamentando grandemente que não a pudesse entender nem ela a ele. Embora sem conseguir saber quem era a dama, apaixonou--se desmedidamente pela sua beleza e com actos agradáveis e amorosos empenhou-se em convencê-la a não se opor aos seus desejos. Mas nada conseguia: ela recusava totalmente a sua intimidade, enquanto a paixão de Pericon se atiçava cada vez mais. Vendo isto e observando, por já se encontrar ali há vários dias, que, pelos costumes, se encontrava no meio de cristãos, achou que lhe serviria de pouco dar-se a conhecer, mesmo que fosse capaz. Com o andar do tempo, ou por força ou por amor, acabaria por ter de satisfazer os desejos de Pericon. Mas, com nobreza de alma, decidiu-se a dominar a sua mísera sorte. Recomendou às suas aias, apenas restavam três, que a ninguém revelassem quem eram, a não ser que se encontrassem em local onde soubessem haver ajuda manifesta para a sua liberdade. Além disso, exortou-as com veemência a conservarem a castidade, declarando que se decidira a que ninguém a possuiria senão o seu marido. As aias elogiaram-na e disseram que, por vontade delas, seguiriam a sua ordem.
“Pericon, dia a dia mais inflamado de amor, e tanto mais quanto mais perto via a desejada coisa e ela se recusava, concluía que de nada lhe valiam as suas adulações e resolveu empregar o engenho e as artes, reservando para o fim a violência. Tendo notado, uma vez por outra, que a dama apreciava o vinho, ela que não estava habituada a beber porque a sua lei o proibia, achou que a poderia apanhar servindo-se do vinho como ministro de Vénus. Fingindo não se preocupar por ela se mostrar esquiva, deu certa noite uma bela ceia como de festa solene, na qual a dama participou. A ceia estava repleta de muitas iguarias e ele deu ordens ao criado que a servia para lhe dar a beber vários vinhos misturados. O criado fez exactamente assim e ela, desprevenida, deixando-se levar pelo sabor agradável da bebida, bebeu mais do que exigia a sua conveniência. Pondo de lado todos os desgostos passados, ficou alegre e, ao ver algumas mulheres dançarem modas de Maiorca, pôs-se a dançar à moda de Alexandria. Quando assim a viu, Pericon julgou estar perto do que desejava e prolongou a ceia pela noite dentro, com maior abundância de comidas e bebidas. Finalmente, os convidados foram-se embora e ele entrou sozinho com a dama no quarto. Ela, mais aquecida pelo vinho do que temperada pelo pudor, como se Pericon fosse uma das suas aias, despiu-se na presença dele sem qualquer sinal de vergonha e meteu-se na cama. Pericon não tardou em segui-la e, apagando as luzes, logo se deitou junto dela, do outro lado, tomou-a nos braços sem que ela mostrasse qualquer oposição, e começou a divertir-se no amor com ela. Depois de ela o ter sentido, como nunca antes nada soubera do corno com que os homens marram, quase ficou arrependida de não ter dado consentimento às seduções de Pericon. E, sem deixar de ficar à espera de ser convidada para aquelas doces noites, muitas vezes ela mesma o convidava não com palavras, pois não sabia como dar-se a perceber, mas com gestos.
“A fortuna, porém, não contente de a ter transformado de mulher dum rei em amante dum castelhano, preparou amores mais cruéis, que levantou diante da grande felicidade entre ela e Pericon. Tinha este um irmão de 25 anos, belo e viçoso como uma rosa. Chamava-se Marato. Quando este a viu, ficou extraordinariamente agradado e pareceu-lhe, segundo o que podia compreender dos gestos dela, estar em boa situação para os seus favores. Considerando que nada lhe poderia tirar o que dela desejava senão a solene guarda que Pericon lhe fazia, foi arrastado para um cruel pensamento. E não tardou que ao pensamento sucedesse o criminoso efeito. Encontrava-se, por acaso, no porto da cidade um navio carregado de mercadorias, o qual ia seguir para Clarência, na România. Eram seus proprietários dois jovens genoveses e já fora içada a vela para partirem logo que houvesse vento favorável. Marato entrou em acordo com eles e combinou como devia ser recebido na noite seguinte, acompanhado pela dama. Feito isto, ao cair da noite, depois de ter pensado no que devia fazer, foi despercebidamente a casa de Pericon, que não desconfiava dele, levando consigo alguns companheiros de toda a confiança, aliciados para o que planeara fazer. Segundo o plano entre eles estabelecido, deixou-se ficar escondido lá dentro de casa. Quando parte da noite havia passado, abriu a porta aos companheiros, foram ao quarto onde Pericon dormia com a dama, abriram a porta, mataram Pericon em pleno sono e pegaram na dama, triste e chorosa, ameaçando-a se fizesse barulho. Com grande parte dos objectos mais preciosos de Pericon, sem que os sentissem, dirigiram-se rapidamente ao porto e, sem demoras, Marato e a dama subiram para o navio, enquanto os companheiros voltavam para trás. Com vento favorável e fresco, os marinheiros fizeram vela para a viagem. Amargamente muito chorou a dama o primeiro infortúnio e este segundo. Mas Marato, com a ajuda do “santo cresce-na-mão” que Deus lhe dera, começou a consolá-la duma forma tão convincente que ela, já na intimidade com ele, esqueceu-se de Pericon. Até lhe parecia encontrar-se bem quando a fortuna lhe armou nova tristeza, como se não estivesse contente com as passadas. Sendo ela, como já foi dito tantas vezes, formosíssima de forma e de muito graciosas maneiras, fortemente se enamoraram dela os dois jovens proprietários do barco, de tal jeito que, esquecendo tudo mais, procuravam servi-la e agradar-lhe, acautelando-se sempre a fim de que Marato não se apercebesse do motivo. Como os dois se deram conta deste amor de um e de outro, fizeram um secreto entendimento e combinaram conquistar em comum aquele amor, como se o amor se pudesse repartir como a mercadoria ou os lucros. Vendo-a muito guardada por Marato e assim impedidos quanto às suas intenções, num dia em que o navio corria à vela velozmente, viram Marato na popa do navio olhando para o mar. Sem que Marato se apercebesse da presença deles, chegaram a acordo e, agarrando-o rapidamente pelas costas, atiraram-no ao mar, demorando-se durante o tempo de mais de uma milha a ver se alguém dera conta de Marato ter caído ao mar.
“Quando a dama se apercebeu e não viu maneira de o conseguir reaver, começou a fazer nova lamentação dentro do navio. Imediatamente os dois amantes acorreram a confortá-la, esforçando-se por serená-la com doces palavras e grandes promessas, ainda que pouco os percebesse, ela que chorava não tanto o perdido amante como a sua desventura. Depois de longos sermões empregues com ela uma e várias vezes, pareceu-lhes que a tinham quase consolado e conversaram entre si qual seria o primeiro a levá-la consigo para a cama. Como cada um deles queria ser o primeiro e era coisa em que não conseguiam chegar a mútuo acordo, começaram primeiramente numa violenta rixa de palavras, mas depois, atiçados pela ira, pegaram nas facas e lançaram-se furiosamente um sobre o outro. A tripulação foi impotente para os separar e tantos golpes desferiram um no outro que um deles tombou repentinamente morto, enquanto o outro ficou em vida gravemente ferido em muitas partes do corpo. Isto desgostou muito a dama, ao ver-se ali sozinha sem ajuda ou conselho de ninguém e bastante receosa de que se voltasse contra ela a ira dos familiares e dos amigos dos dois proprietários. Mas as súplicas do ferido e a breve chegada a Clarência libertaram-na do perigo da morte. Desembarcou, então, e alojou-se com ele numa hospedaria.
“Logo correu pela cidade a fama da sua grande beleza, chegando aos ouvidos do príncipe da Moreia, o qual se encontrava nessa-altura em Clarência. Quis vê-la, viu-a e achou-a muito mais bela do que a fama dizia. E subitamente apaixonou-se por ela, tanto que nem conseguia pensar noutra coisa. Ao saber do modo como ela ali chegara, achou que podia tê-la como sua. Ao procurar de que modos, os familiares do ferido souberam disso e sem esperarem por mais, imediatamente lha enviaram. Ficou o príncipe sumamente grato e também a dama por lhe parecer que assim estaria fora dum grande perigo. Olhando-a o príncipe, além da beleza, ornada de maneiras reais, sem de outro modo conseguir saber quem ela era, supôs que devia tratar-se de nobre senhora, e, assim, duplicou o seu amor por ela. Tratava-a muito dignamente, não à guisa de amante, mas como sua própria mulher. Por isso, fazendo comparação com os males passados, parecia à dama estar bastante bem, encontrando-se tão revigorada e feliz que as suas belezas floresceram tanto que toda a România parecia não ter outro assunto de conversa.
“Foi por isso que o duque de Atenas, jovem, belo e de boa figura, amigo e parente do príncipe, sentiu desejos de a ver. Dando ares de vir visitar o príncipe, como por vezes costumava fazer, chegou a Clarência com uma bela e importante companhia, sendo recebido com todas as honras e grande festa. Passados alguns dias, veio à conversa entre ambos as belezas daquela mulher e o duque perguntou se ela era assim tão maravilhosa como constava. Respondeu-lhe o príncipe: “Muito mais, mas quero que acredites não nas minhas palavras, mas nos teus olhos.” Instado o duque pelo príncipe, ambos se dirigiram aonde ela se encontrava. A dama, que soube antecipadamente da visita, recebeu-os muito educadamente e de sorriso na face. Sentaram-na no meio dos dois, mas não puderam ter o prazer de conversar com ela, porque pouco ou nada percebia daquela língua. Cada um deles a contemplava como se fosse maravilha, mas ainda mais o duque, que mal podia acreditar que ela fosse um ente mortal. Sem se dar conta, deixou-se afundar miseravelmente e tomou-o ardente paixão por ela. Depois de ter saído com o príncipe de junto dela e de ter ocasião de reflectir, considerou o príncipe o mais feliz dos homens porque tinha um ser tão belo ao seu dispor. Após muitos e variados pensamentos, pesou-lhe mais o fogoso amor do que a honestidade e deliberou, houvesse o que houvesse, privar daquela felicidade o príncipe para se tornar a si mesmo feliz. Decidido a avançar, pôs de lado toda a razão e toda a justiça e aplicou todo o seu pensamento aos ardis. Certo dia, de acordo com o hediondo projecto que fizera, de cabala com um criado de quarto do príncipe, um de nome Ciríaco, muito em segredo mandou preparar todos os seus cavalos e bagagens para partir. Quando a noite chegou, foi introduzido discretamente pelo tal Ciríaco no quarto do príncipe, juntamente com um companheiro, fortemente armados. Viu que o príncipe, por fazer muito calor, enquanto a dama dormia, se encostara completamente nu a uma janela voltada para o mar, a receber a aragem que soprava dessas bandas. Tendo antes ensinado ao companheiro o que devia fazer, em silêncio avançou pelo quarto até à janela, apunhalou o príncipe nos rins, varando-o com um punhal até ao outro lado. Agarrou nele rapidamente e atirou-o pela janela fora. O palácio ficava sobre o mar, a grande altura, e a janela onde então se encontrava o príncipe dava para umas casas que a violência do mar arruinara e nas quais raras vezes ou nunca alguém entrava. Aconteceu, tal como o duque previra, que a queda do corpo do príncipe não foi nem podia ser ouvida por qualquer pessoa. O companheiro do duque, depois de ver aquilo feito, fingindo fazer carícias a Ciríaco, pegou rapidamente numa corda trazida de propósito, lançou--lha ao pescoço e puxou-a de tal modo que Ciríaco não pôde fazer qualquer barulho. O duque veio ao pé, estrangularam o criado e atiraram-no para o mesmo sítio para onde lançaram o príncipe. Feito isto, com a certeza de não terem sido escutados nem pela dama, nem por outra pessoa, o duque pegou numa luz e, sem fazer ruído, pôs a dama, que dormia num sono profundo, toda a descoberto. Contemplando-a toda, admirou-a muitíssimo, e se vestida lhe agradara, nua agradou-lhe de modo incomparável. Excitado pelo mais ardente desejo, sem se preocupar com o recente pecado por ele cometido e ainda com as mãos sujas de sangue, deitou-se ao lado da dama e com ela, muito cheia de sono e crente de que era o príncipe, se acoitou. Mas, depois de haver demorado com ela algum tempo em grande prazer, levantou-se, mandou chamar ali alguns dos companheiros, mandou pegar na dama de maneira que não fizesse barulho e levou-a pela mesma porta por onde entrara. Pô-la a cavalo e, no maior silêncio possível, meteu-se a caminho com toda a sua gente e voltou para Atenas. Como, porém, tinha mulher, foi pôr a dama, chorosa como nenhuma outra, não em Atenas, mas num local muito belo que ele possuía não longe da cidade, à beira-mar. E ordenou que a servissem com todas as honras daquilo que precisasse.
“Na manhã seguinte, os cortesãos do príncipe esperaram até à hora noa que o príncipe se levantasse. Como nada ouvissem, empurraram a porta dos aposentos, que estava fechada apenas no trinco, e não viram ninguém. Supuseram que ele tivesse ido às ocultas para qualquer sítio, a fim de estar alguns dias à sua vontade com aquela formosa mulher, e não se incomodaram mais. No outro dia, aconteceu que um louco entrou nas ruínas onde estavam os corpos do príncipe e de Ciríaco, puxou para fora Ciríaco segurando a corda e começou a andar arrastando-o consigo. Foi com grande espanto que muita gente reconheceu o cadáver. Com muitas adulações, convenceram o louco a levá-los ao sítio de onde o havia retirado e lá foram encontrar, com enorme dor para toda a cidade, o corpo do príncipe. Sepultaram-no com todas as honras e puseram-se a investigar sobre os autores de tão grande crime. Ao verem que o duque de Atenas não se encontrava ali, mas partira furtivamente, suspeitaram, como realmente fora, ter sido ele a cometer o crime para levar consigo a dama. Imediatamente substituíram o príncipe falecido por um irmão deste e incitaram-no à vingança com todo o seu poder. Como outros indícios os certificassem de que os factos se haviam passado como eles imaginavam, logo o novo príncipe reuniu um belo, grande e poderoso exército e levantou-se em pé de guerra contra o duque de Atenas. Quando soube do que se passava, o duque preparou igualmente todas as suas forças armadas para se defender. Vieram em seu auxílio muitos senhores, entre os quais o imperador de Constantinopla mandou o seu filho Constâncio e o seu sobrinho Manuel, acompanhados de excelente e numerosa tropa. Foram recebidos com todas as honras pelo duque e ainda mais pela duquesa, que era irmã de um deles. Como tudo se aparelhasse, de dia para dia, cada vez mais para a guerra, a duquesa aproveitou uma oportunidade, mandou-os chamar a ambos aos seus aposentos e com abundantes palavras narrou--lhes toda a história, explicando-lhes as razões daquela guerra. Revelou o desprezo que lhe dava o duque por causa da mulher que sabia ele manter escondida. Queixando-se muito, rogou-lhes que, para honra do duque e para sua consolação, empregassem o remédio que lhes parecesse melhor. Os jovens sabiam como tudo se passara e, por isso, sem mais perguntas, consolaram a duquesa o melhor que souberam e encheram-na de boa esperança. Informados por ela sobre onde a dama se encontrava, partiram. Como tinham ouvido muitas vezes elogiar a dama pela maravilhosa beleza, desejaram vê-la e pediram ao duque que a apresentasse. O duque, mal recordado do que havia acontecido ao príncipe por a ter apresentado a ele, prometeu que o faria. Mandou preparar um magnífico almoço num lindíssimo jardim da casa onde a dama residia e, na manhã seguinte, levou-os com alguns outros amigos para almoçarem com ela. Sentado ao lado da dama, Constâncio pôs-se a olhá-la todo maravilhado, afirmando a si mesmo nunca ter visto um ser assim tão formoso. Tinha, com certeza, desculpa o duque ou qualquer outro que, para possuir um ser tão maravilhoso, cometesse traição ou outro feito desonesto. Olhou-a uma e várias vezes e de cada vez a achou mais digna de louvor, acabando por lhe acontecer exactamente o mesmo que ao duque. Saiu dali apaixonado por ela, abandonando todo o pensamento sobre a guerra e pôs-se a pensar como poderia roubá-la ao duque, ocultando a toda a gente o seu amor. Mas enquanto ele ardia neste fogo, chegou o tempo de partir contra o príncipe, que já se avizinhava das terras do duque. Segundo o plano estabelecido, o duque, Constâncio e todos os demais saíram de Atenas e foram combater nalgumas fronteiras, para que o príncipe não conseguisse avançar mais. Por lá se demoraram vários dias e Constâncio continuava sempre com a alma e o pensamento naquela mulher. Imaginou então que, agora que o duque não estava junto dela, podia muito bem realizar os seus desejos. Para ter um motivo de voltar a Atenas, mostrou-se com uma forte indisposição física. Com licença do duque, confiou o comando a Manuel, foi procurar a irmã a Atenas e, passados alguns dias, pô-la a falar do desprezo que o duque parecia dar-lhe por causa da mulher que mantinha. Depois disse-lhe que, logo que a irmã quisesse, a ajudaria muito bem naquele caso, tirando a dama de onde ela estava e levando-a embora dali. A duquesa supôs que Constâncio fazia aquilo por seu amor e não por amor da dama. Respondeu que muito a satisfaria se realmente isso fosse feito de forma que o duque nunca viesse a saber que ela tinha dado o seu consentimento. Constâncio prometeu-lhe firmemente e a duquesa aceitou que ele fizesse como lhe parecesse a melhor maneira. Constâncio mandou aparelhar discretamente um barco veloz e, naquela tarde, mandou-o para junto do jardim onde morava a dama, informando os seus homens que estavam a bordo sobre o que tinham de fazer. Depois foi com outros homens ao palácio onde a dama se encontrava, sendo festivamente acolhido pelas pessoas que estavam ao serviço dela, como também pela própria dama. Por vontade de Constâncio, dirigiu-se com ele para o jardim, acompanhada pelos seus servos e pelos companheiros de Constâncio. Dando a entender que tinha de falar com a dama a sós, da parte do duque, encaminhou-se sozinho com ela até uma porta que abria para o mar, a qual já estava aberta por um seu companheiro. Dando sinal, chamou o barco, mandou segurar depressa a dama e levá-la para bordo. Voltando-se para os servos, disse: “Ninguém se mova nem faça barulho se não quiser morrer, pois não é minha intenção roubar ao duque esta mulher, que é dele, mas afastar a afronta que ela faz à minha irmã.” Ninguém ousou responder. Constâncio subiu com os seus homens para o barco, sentou-se ao lado da chorosa dama e ordenou que metessem os remos à água e partissem. Não era vogar, era voar. Logo ao princípio do outro dia chegaram a Egina. Desembarcaram para descansar e Constâncio entreteve-se com a dama, que chorava a sua desventurada beleza. Voltaram de novo ao barco e em poucos dias alcançaram Quios. Com medo de que o pai o repreendesse e de que lhe roubassem a dama, Constâncio achou por bem ficar ali por se tratar de local seguro. Durante vários dias, a formosa mulher carpiu a sua desventura, mas, afinal, consolada por Constâncio, como várias vezes outros tinham feito, começou a sentir prazer pelo que a fortuna lhe punha diante.
“Estavam as coisas neste pé quando Osbeque, ao tempo rei dos turcos e sempre em guerra contra o imperador, veio por acaso nesses dias a Esmirna. Lá ouviu dizer que Constâncio levava uma vida devassa em Quios com uma dama que raptara, sem se rodear de qualquer precaução. Acorreu, então, a Quios com alguns pequenos navios armados e, numa noite, entrou silenciosamente na cidade com os seus homens, surpreendendo muita gente ainda na cama antes que alguém se apercebesse da chegada dos inimigos. Finalmente, depois de terem morto todos os que, ao senti-los, corriam às armas e de terem incendiado toda a cidade, meteram nos navios os despojos e os prisioneiros e voltaram para Esmirna. Quando ali chegaram, Osbeque, que era jovem, ao revistar o espólio, encontrou a beldade e soube que ela fora presa quando dormia na cama com Constâncio. Ficou contentíssimo. Sem perda de tempo, fê-la sua mulher, celebrou as núpcias e com ela dormiu feliz durante vários meses.
“Antes destes acontecimentos, o imperador tinha feito um tratado com Basão, rei da Capadócia, para que atacasse Osbeque por um lado com as suas forças, enquanto ele o atacaria pelo outro lado. O acordo ainda não tinha sido inteiramente posto em prática por não ter o imperador cedido nalgumas coisas que Basão lhe pedia e ele achava menos convenientes. Mas quando soube o que acontecera ao filho, sentiu uma dor imensa e, cedendo imediatamente ao que o rei da Capadócia lhe pedia, solicitou-lhe que atacasse Osbeque com quantas forças tivesse, ao mesmo tempo que ele se aprestava para atacar do outro lado. Quando soube de tal, Osbeque reuniu o seu exército antes de se ver apertado entre os dois poderosíssimos senhores e avançou contra o rei da Capadócia, deixando a sua formosa dama em Esmirna, à guarda dum seu fiel criado e amigo. Passado algum tempo, defrontou-se com o rei da Capadócia, travou combate, foi morto em batalha e o seu exército foi derrotado e disperso. Vitorioso, Basão avançou livremente para Esmirna e, à medida que avançava, toda a gente se submetia a ele como vencedor. O criado de Osbeque, de nome Antíoco, a cuja guarda ficara a formosa mulher, embora ele já fosse de idade serôdia, achou-a de tanta beleza que se enamorou dela, traindo a fé ao seu amigo e senhor. Conhecia a sua língua, o que muito a agradava, pois há vários anos vivia como se tivesse de ser surda e muda por não entender ninguém nem por ninguém ser entendida. Impelido pelo amor, em poucos dias tomou tanta familiaridade com ela que, passado algum tempo, sem respeitarem o senhor de ambos que se encontrava pelejando na guerra, tornaram a intimidade não apenas de amizade mas também de amor, desfrutando um com o outro um maravilhoso prazer debaixo dos lençóis. Quando souberam que Osbeque fora vencido e morto e que Basão vinha avançando e pilhando tudo, decidiram ambos não ficar ali à espera. Agarraram na maior parte do que pertencia a Osbeque e abalaram os dois em segredo para Rodes, onde, pouco tempo depois de lá estarem, Antíoco foi atingido por doença mortal. Encontrou-se ali com ele, por acaso, um mercador cipriota que muito estimava e de quem era muitíssimo amigo. Sentindo Antíoco estar perto o seu fim, pensou em deixar-lhe os seus bens e a sua amada mulher. Estava a morte vizinha quando ele chamou a ambos e lhes disse: “Vejo-me chegado ao fim e não me engano, o que dói, pois nunca a vida me deu tanto prazer como agora me estava a dar. É certo que uma coisa me faz morrer felicíssimo: tendo de morrer, vejo que morro nos braços das duas pessoas a quem amo acima de quaisquer outras neste mundo, nos teus braços, caríssimo amigo, e nos desta mulher, à qual amei mais do que a mim próprio logo que a conheci. Mas também me pesa ao pensar que, depois da minha morte, ela fica por aqui estrangeira, sem ajuda nem conselho. Mas pesar-me-ia bastante mais se eu não te visse aqui, pois acredito que hás-de cuidar dela por amor de mim como se o fizesses a mim próprio. Por isso te rogo o mais que posso: se eu vier a morrer, sejam-te confiados os meus bens e a minha mulher; faz deles e dela o que achares que leva consolação à minha alma. A ti, adorada mulher, peço-te que não me esqueças depois da minha morte, a fim de que no além eu me possa orgulhar de neste mundo ser amado pela mais bonita mulher alguma vez formada pela natureza. Se destas duas coisas me derdes inteira esperança, sem dúvida alguma partirei consolado.” Tanto o amigo mercador como a dama choravam enquanto iam ouvindo tais palavras. Depois de Antíoco ter falado, confortaram-no e juraram fazer o que ele pedia, se acontecesse morrer. De facto, não demorou muito que Antíoco se finasse, sendo sepultado pelos dois com todas as honras. Passados alguns dias, o mercador despachou todos os seus negócios em Rodes e quis regressar a Chipre num lugre de catalães que ali se encontrava. Perguntou à formosa mulher o que pensava fazer, dado que ele tinha de voltar para Chipre. A mulher respondeu que de bom grado iria com ele, se este fosse de acordo, esperando que por amor de Antíoco seria tratada e respeitada por ele como sua irmã. O mercador respondeu que todos os desejos dela lhe agradavam a ele e, para defender a dama de qualquer ofensa que lhe pudessem fazer antes de chegarem a Chipre, declarou que ela era sua mulher. Subiram ao navio e foi-lhes dado um camarote à popa. Para que os factos não se mostrassem contrários às palavras, dormia com ela numa estreita cama. Deste modo aconteceu o que não tinha sido intenção nem de um nem de outro ao partirem de Rodes: incitados pela escuridão e pela comodidade e calor do leito, cujas forças não são pequenas, esqueceram a amizade e o amor do falecido Antíoco e, como que puxados por igual desejo, começaram a excitar-se um ao outro. Antes de chegarem a Pafos, onde morava o cipriota, fizeram parentesco. Quando chegaram a Pafos, a dama ficou algum tempo com o mercador.
“Aconteceu, por acaso, chegar a Pafos para tratar de qualquer assunto um fidalgo chamado Antígono. Era homem de muita idade e de bastante mais sensatez mas de pequena riqueza, porque, tendo feito vários empreendimentos ao serviço do rei de Chipre, a sorte fora-lhe adversa. Calhou um dia ele passar diante da casa onde a formosa mulher habitava e numa altura em que o mercador cipriota havia partido com a sua mercadoria para a Arménia. Viu-a, por acaso, a uma das janelas da casa. Como era lindíssima, pôs-se a fitá-la e deu consigo a recordar-se de já a ter visto de outra vez, mas não houve maneira de recordar--se onde. Para a famosa mulher, que há tão longo tempo vinha sendo joguete da fortuna, começava a apressar-se o momento em que os seus males iam ter fim. Quando ela viu Antígono, logo se recordou de o ter visto ao serviço do seu pai num importante lugar. Apoderou-se dela a súbita esperança de poder ainda voltar à sua condição real. Logo que pôde, sabendo que estava ausente o seu mercador, mandou chamar Antígono para lhe ouvir o conselho. Quando ele apareceu, a dama perguntou-lhe, muito envergonhada, se ele não seria Antígono de Famagusta, como ela supunha. Antígono respondeu que sim e, além disso, acrescentou: “Senhora, parece-me reconhecer-vos, mas por coisa nenhuma consigo saber de onde. Peço-vos, se não vos custar: trazei-me à memória quem sois vós.” Quando ouviu que era ele, a dama chorou copiosamente e lançou-lhe os braços ao pescoço. Passado um silêncio, com ele grandemente assombrado, perguntou-lhe se nunca a tinha visto em Alexandria. Mal ouviu tal pergunta, imediatamente Antígono reconheceu Alatiel, a filha do sultão, que julgavam ter morrido no mar. Quis prestar-lhe reverência, mas ela susteve-o e rogou-lhe que se sentasse um pouco ao seu lado. Antígono assim fez e reverentemente perguntou-lhe como, quando e de onde viera ela parar ali, pois que em toda a terra do Egipto se tinha como certo haver ela morrido afogada há muitos anos no mar. A dama respondeu: “Bem desejaria que antes assim tivesse sido, em vez de ter passado a vida que tive, e creio que o meu pai desejaria o mesmo se alguma vez o soubesse.” Dito isto, voltou a chorar copiosamente. Disse-lhe Antígono: “Senhora, não fiqueis aflita mais do que é necessário. Se vos apraz, contai-me o que vos aconteceu e qual foi a vossa vida. Talvez as coisas tenham decorrido de forma a encontrarmos, com a ajuda de Deus, um bom remédio.” “Antígono – disse a formosa senhora –, quando te vi, pareceu-me que estava a ver o meu pai. Foi levada pela mesma ternura que por ele tenho que, podendo eu ter-me ocultado, te revelei quem era. De bem poucas pessoas podia ter acontecido que, ao vê-las, eu me sentisse tão contente por tê-las visto como aconteceu ao ver-te e reconhecer--te no meio de toda a gente. Por isso, vou revelar-te como a um pai o que sempre ocultei na minha desgraçada desdita. Se depois de me teres ouvido, achares que de algum modo consegues fazer-me voltar ao meu primeiro estado, rogo-te que o faças; se achares que não é possível, rogo-te que nunca digas a ninguém teres-me visto ou ouvido dizer qualquer coisa.” Dito isto, sempre em lágrimas, contou-lhe tudo o que lhe tinha acontecido desde o dia em que arribou a Maiorca até àquele momento. Comovido, Antígono começou a chorar e, após haver pensado um pouco, afirmou: “Senhora, dado que nos vossos infortúnios haveis ocultado a vossa condição, não tenho qualquer dúvida de vos devolver ao vosso pai mais considerada do que nunca e, em seguida, como esposa ao rei do Algarve.” Perguntando-lhe ela como havia de fazer, em pormenor lhe explicou Antígono o que havia de contar e logo ele foi a Famagusta, procurou o rei e disse-lhe: “Meu senhor, se vos aprouver, podeis ao mesmo tempo obter para vós mesmo uma honra muito elevada e ser de grande utilidade para mim, que por vós empobreci, sem grande esforço vosso.” O rei perguntou-lhe como, e Antígono respondeu: “Chegou a Pafos a jovem e formosa filha do sultão que há muito consideravam ter morrido afogada. Para conservar a sua virtude, teve de sofrer provação muito grande e prolongada. Presentemente encontra-se em situação de pobreza e deseja voltar para junto do pai. Se vos aprouvesse enviá-la ao sultão sob a minha custódia, seria uma grande honra para vós e um grande bem para mim, pois não creio que um tal serviço saía alguma vez do pensamento do sultão.” O rei, movido pela régia virtude, imediatamente respondeu que isso lhe dava prazer. Mandou-a buscar com todas as honras, trouxe-a para Famagusta, onde ele e a rainha a acolheram com inexcedível alegria e com magnífica solenidade. Interrogada pelo rei e pela rainha sobre os seus infortúnios, respondeu contando tudo do modo como lhe fora ensinado por Antígono. Alguns dias depois, a pedido dela, o rei enviou-a ao sultão com uma solene escolta de homens e de mulheres, sob a chefia de Antígono. Ninguém pergunte se o sultão a recebeu com alegria, tal como a Antígono e a toda a comitiva. Depois de ela ter descansado algum tempo, quis o sultão saber como se encontrava ela viva e onde estivera durante tanto tempo sem nunca lhe haver dito nada sobre a sua situação. A dama, que decorara muito bem os ensinamentos de Antígono, logo começou a falar ao pai deste modo: “Meu pai, talvez no vigésimo dia desde que vos deixei, o vosso navio foi destroçado por uma violenta tempestade e encalhou numa praia do Ocidente, num local chamado Água Morta, durante a noite. Nunca mais soube o que terá acontecido aos homens que iam a bordo. Apenas me lembro de que, ao nascer o dia, me vi como se tivesse voltado da morte à vida. Alguns habitantes da terra já tinham descoberto o desmantelado navio e o povo de toda a região acorreu à pilhagem. Eu e duas das minhas damas fomos levadas primeiramente para a margem e imediatamente agarradas por rapazes, que se puseram em fuga com uma para aqui e outra para acolá. Nunca mais soube o que lhes aconteceu. Dois rapazes apoderaram-se de mim com a minha resistência e arrastaram-me pelos cabelos. Eu continuava sempre a chorar com muita força. Mas aconteceu que, quando eles atravessavam uma estrada para se meterem num bosque muito grande, passaram nessa mesma altura quatro homens a cavalo. Os que me arrastavam, quando os viram, largaram-me e puseram-se logo em fuga. Os quatro homens, que, pelo seu aspecto, me pareceram pessoas importantes, ao verem aquilo, correram para mim, fizeram-me muitas perguntas e eu falei-lhes muito, mas não fui entendida por eles nem eles me entenderam. Depois de longamente deliberarem, puseram-me sobre um dos seus cavalos, levaram-me para um mosteiro de mulheres, religiosas segundo a lei deles. Não sei o que eles lhes disseram, mas fui acolhida por todas com muitíssima bondade e sempre tratada muito bem. Servi depois com grande devoção, juntamente com elas, S. Cresce-em-Val-Cavo, de quem as mulheres daquele país se mostram muito devotas. Algum tempo depois de estar a viver com elas e de haver aprendido um pouco da sua língua, perguntaram-me quem era eu e de onde vinha. Sabendo onde me encontrava, receei que, se fosse dizer a verdade, me expulsassem como inimiga da religião delas. Respondi que era filha dum grande nobre de Chipre, que ele me tinha mandado para Creta dada em casamento e que então acontecera sermos perseguidos por piratas e termos naufragado. Bastantes vezes, por receio do pior, segui em muitas coisas os costumes delas. A mais importante de todas, a quem chamam “abadessa”, perguntou--me se eu queria voltar para Chipre. Respondi ser aquilo que eu mais desejava. Mas ela, preocupada com a minha honra, nunca me quis confiar a ninguém que fosse para Chipre. Há dois meses, porém, chegaram lá certos fidalgos franceses com as suas mulheres, alguns deles parentes da abadessa. Quando ela soube que iam a caminho de Jerusalém para visitar o sepulcro onde foi sepultado, depois de morto pelos judeus, aquele que eles consideram Deus, recomendou-me a esses nobres e pediu-lhes que, em Chipre, me entregassem a meu pai. Dizer-vos como aqueles fidalgos me cercaram de honras e me acolheram com alegria seria uma história que levaria muito tempo a contar. Embarcámos num navio e, passados alguns dias, estávamos em Pafos. Quando me vi ali chegar sem conhecer ninguém nem saber o que havia de dizer aos fidalgos, que me queriam entregar a meu pai como lhes fora ordenado pela venerável senhora, Deus ter-se-á compadecido de mim e fez surgir na margem Antígono precisamente na altura em que desembarcávamos em Pafos. Logo o chamei e, para que não me percebessem aqueles nobres senhores e senhoras, disse-lhe na nossa língua que me acolhesse como filha. Ele compreendeu-me imediatamente, fez-me grande festa, recebeu os fidalgos e as suas esposas com toda a honra, na medida das suas humildes posses e levou-me depois ao rei de Chipre, o qual me recebeu e me enviou a vós com tanta honra que jamais a poderei descrever. Se me falta dizer alguma coisa, que Antígono o faça, pois me ouviu contar muitas vezes a minha aventura.” Antígono, então, voltou-se para o sultão e disse: “Meu senhor, ela contou-vos o mesmo que tantas vezes me disse e me disseram os fidalgos que a trouxeram. Só vos deixou por contar um pormenor e julgo que o fez por não lhe ficar bem dizê-lo. Trata-se de tudo o que esses fidalgos e senhoras disseram sobre a honrada vida que levou na companhia das religiosas, sobre a sua virtude e os seus louváveis costumes, bem como das lágrimas e dos desgostos tanto das damas como dos nobres ao despedirem-se dela depois de ma confiarem. Se vos quisesse contar tudo o que me disseram, não me chegava nem este dia, nem a noite que vem. Quero apenas dizer-vos que, segundo revelaram as palavras dessas pessoas e o que ainda me foi possível observar, podeis orgulhar-vos de possuir a filha mais bela, mais educada e mais virtuosa entre qualquer outro senhor que hoje tenha coroa.”
“O sultão manifestou imensa alegria com estes factos e várias vezes rogou a Deus que lhe concedesse a graça de poder pagar com dignos méritos a quem servira com tanta honra a sua filha e sobretudo ao rei de Chipre, que lha tinha enviado com tal cortesia. Alguns dias depois autorizou Antígono a regressar a Chipre, mandando preparar-lhe riquíssimas ofertas, ao mesmo tempo que enviava ao rei, por carta e por especiais embaixadores, muitíssimos agradecimentos pelo que fizera pela sua filha. Depois disto, desejando que se concretizasse o que tinha começado, isto é, que ela casasse com o rei do Algarve, comunicou-lhe todos os acontecimentos e, além disso, escrevendo-lhe que, se a desejasse como esposa, a mandasse buscar. O rei do Algarve ficou muitíssimo contente, mandou-a buscar com todas as pompas e recebeu-a com alegria. E ela, que já se deitara com oito homens talvez dez mil vezes, deitou-se ao lado dele como virgem e fê-lo acreditar que assim era, vivendo depois como rainha junto dele muito tempo. Por isso mesmo é que se disse: “Boca beijada não perde ventura, antes se renova com a lua.”»
O conde de Antuérpia é falsamente acusado e parte para o exílio. Deixa os dois filhos em diferentes lugares da Inglaterra. Regressa, anónimo, da Escócia e encontra-os em boa situação. Alista-se como moço no exército do rei de França e, depois de reconhecido inocente, volta ao seu primeiro estado (Nota 22) A calúnia com que uma dama repelida pela virtude de um homem se vinga dele – tema muito vulgar em todas as literaturas – dá azo às peripécias do protagonista e dos seus filhos. O triunfo da inocência é conseguido, na parte mais frouxa da história, através de revelações e agnições de sabor popular. A parte poética está na representação da têmpera heróica e cavalheiresca dos perseguidos: a silenciosa dignidade do pai, a honesta e melancólica altivez da filha, retratada com pinceladas muito delicadas entre o seu romântico namorado e a sogra acomodatícia. (Fim da nota).
Muito suspiraram as damas com as várias ocorrências da formosa mulher. Mas sabe-se lá que razão movia aqueles suspiros? Talvez algumas delas suspirassem mais por inveja de tão frequentes núpcias do que por compaixão pela dama. Mas deixemos isto por agora. Soltaram grandes gargalhadas com as últimas palavras que Pânfilo disse, e vendo a rainha que a novela tinha acabado, voltou-se para Elisa e ordenou-lhe que continuasse, segundo a ordem, com uma novela da sua autoria. Foi o que Elisa fez alegremente, começando:
“Vastíssimo campo é este em que andamos hoje vagueando e não há ninguém que não consiga participar, não digo em uma, mas em dez partidas, tanta abundância lhe deu a fortuna com os seus bizarros e graves acontecimentos. Por isso, como devo contar-vos uma entre as infinitas que elas são, conto-vos a seguinte novela:
“Quando o Império Romano passou dos Franceses para os Alemães (Nota 23) Alude-se provavelmente à eleição para imperador de Otão I, verificada em 962, mas todos os aspectos históricos da novela são muito vagos. (Fim da nota), nasceu entre as duas nações uma enorme inimizade e uma guerra acerba e constante. Para defenderem o seu país e atacarem o outro, o rei de França e um seu filho organizaram gigantesco exército para avançar contra os inimigos, com todas as tropas que puderam reunir no seu reino e junto de amigos e parentes. Mas antes de se lançarem ao ataque, para não deixarem o reino sem governo, pareceu-lhes que o conde Guálter de Antuérpia (Nota 24) Os condes de Antuérpia pertenciam à mais alta nobreza e eram parentes do rei de França. (Fim da nota), homem sábio e de linhagem, fidelíssimo amigo e servidor, apesar de bastante versado na arte da guerra, era mais propenso do que eles para as coisas delicadas do que para as violências. Por isso o deixaram a substituí-los em toda a governação do reino de França como vigário-geral, metendo-se depois a caminho. Com sensatez e método, começou Guálter o ofício confiado, consultando sempre a propósito de tudo a rainha e a nora desta. Embora elas tivessem ficado sob a sua custódia e jurisdição, nem por isso as honrava menos como suas senhoras e soberanas. O referido Guálter era um homem de muito bonita figura, talvez de uns quarenta anos, tão simpático e educado que nenhum outro nobre podia ser mais. Além de tudo isto, era o mais gracioso e o mais delicado cavaleiro que naquele tempo se conhecia e aquele que, entre todos, melhor se apresentava.
“Enquanto o rei de França e o filho andavam na dita guerra, aconteceu ter morrido a esposa de Guálter, ficando este sozinho com um filho e uma filha ainda crianças. Guálter continuava a visitar a corte das referidas damas com muita frequência para conversar com elas sobre os assuntos do reino. A nora do rei começou a pòr nele os olhos, a considerar com grande afecto a sua pessoa e maneiras e inflamou-se ardorosamente de um secreto amor por ele. Vendo-se jovem e fresca e a ele sem mulher, pensou ser fácil levá-lo a satisfazer o seu desejo. Pensando que o único obstáculo era a vergonha, decidiu manifestar-lhe tudo e pòr a vergonha de lado. Um dia, encontrou-se sozinha, pareceu-lhe a ocasião oportuna e, simulando querer falar-lhe de outros assuntos, mandou-o chamar. O conde, cujo pensamento estava muito longe do daquela mulher, foi imediatamente ter com ela e, por vontade desta, sentou-se a seu lado num leito, sozinhos num quarto. Depois de o conde lhe haver perguntado por duas vezes o motivo por que o mandara chamar e ela ter-se calado, o amor impeliu-a finalmente, e, ficando toda ruborizada pela vergonha, quase a chorar e toda a tremer, começou a falar com palavras entrecortadas: “Caríssimo e doce amigo e meu senhor, como homem sábio, podeis facilmente compreender quanta é a fraqueza dos homens e das mulheres e, por motivos vários, mais numa do que noutra. É natural que, perante um justo juiz, o mesmo pecado em diferentes tipos de pessoas não deva receber castigo idêntico. Quem é que diria que não se deve censurar muito mais um plebeu ou uma plebeia, aos quais compete ganhar com o seu trabalho o que lhes é preciso para viver, se eles cederem aos estímulos do amor, do que uma dama rica, ociosa e à qual nunca tenha faltado nada do que agrada aos seus desejos? Não creio que haja alguém. Por isso, eu penso que tais razões hão-de trazer uma parte muitíssimo grande de desculpa a favor daquele que as possui, se porventura se deixasse levar pelo amor. A restante parte da desculpa há-de vir-lhe de ter escolhido um sábio e valoroso amante, se foi isso que fez aquela que ama. Segundo me parece, é o que se passa comigo, além de outras razões que me levam ao amor, como a minha juventude e a ausência do meu marido. Valham-me, pois, todas estas razões para defesa do meu ardente amor diante de vós. Se elas encontrarem em vós a mesma força que devem encontrar na presença dos sábios, peço-vos que me deis conselho e ajuda no que eu vos pedir. A verdade é que, por causa da ausência do meu marido, não sou capaz de combater os estímulos da carne nem a força do amor, os quais são de tanta violência que já muitas vezes venceram e todos os dias vencem os homens mais fortes, quanto mais ainda as frágeis mulheres. Porque vivo no conforto e na ociosidade em que me vedes, fui levada a favorecer os prazeres do amor e a ficar apaixonada. Embora eu saiba que tal coisa, a ser conhecida, não seria honesta, todavia, porque tem sido e continua secreta, quase não há razão de a considerar desonesta. Aliás, o amor foi-me tão favorável que não só não me tirou o conhecimento necessário na escolha do amante, como até me ajudou muito, indicando-me vós como digno de ser amado por uma mulher tão importante como eu sou. Se o meu sentimento não me engana, considero--vos o mais belo, o mais agradável, o mais elegante e o mais sensato cavaleiro que se pode encontrar no reino de França. E, além disto, se eu posso dizer que me encontro sem marido, também vós estais sem mulher. Rogo-vos, por este tão grande amor que vos tenho, que não me recuseis o vosso por mim. Apiedai-vos da minha juventude, a qual verdadeiramente se consome por vós como o gelo no fogo.” Seguiram-se estas palavras de tal abundância de lágrimas que a dama, embora querendo dirigir-lhe mais súplicas, não conseguiu continuar a falar. Como que vencida, baixou os olhos banhados de lágrimas e deixou tombar a cabeça sobre o peito do conde. Mas o conde era cavaleiro muito leal e pôs-se a verberar com duríssimas repreensões aquele tão desvairado amor e a afastá-la para trás quando ela já queria abraçar-se ao seu pescoço, ao mesmo tempo que afirmava com juramentos que preferia ser esquartejado a consentir, a si ou a outrem, uma tal ofensa contra a honra do seu senhor. Quando tal ouviu a dama, subitamente se esqueceu do amor e, inflamada por terrível fúria, disse: “Troçais, então, deste modo do meu desejo, vilão cavaleiro? Pois apraza a Deus, já que desejais que eu morra, que vos faça eu morrer ou ser escorraçado deste mundo.” Dito isto, logo lançou as mãos aos cabelos, soltando-os e desgrenhando-os, rasgou depois o vestido sobre os seios e começou a gritar bem alto: “Socorro, socorro! O conde de Antuérpia quer violentar-me!” Quando viu tal cena, o conde receou que fosse muito mais forte a inveja dos cortesãos do que a sua consciência e teve medo de que fizessem mais fé na malvadez da dama do que na sua inocência. Levantou-se, saiu o mais rapidamente possível do quarto e do palácio e fugiu para a sua casa. Ali chegado, sem pensar em mais nada, montou os filhos a cavalo, montou-se ele também e dirigiu-se o mais depressa que pôde para Calais.
“Tinha acorrido muita gente aos gritos da dama. Quando a viram naquele modo e lhe ouviram a causa dos gritos, não só fizeram fé nas suas palavras, como ainda acrescentaram que o conde andava há-muito tempo a servir-se da sua elegância e das suas afectadas maneiras para alcançar o que pretendia. Correram logo enraivecidos a casa do conde para o prender. Como, porém, não o encontraram, começaram por roubar tudo e depois arrasaram toda a casa. A notícia, tão deformada como a contavam, alcançou o exército, chegamdo aos ouvidos do rei e do filho, que, muito irritados, condenaram o conde e os seus descendentes a exílio perpétuo, prometendo prémios muitíssimo grandes a quem o entregasse vivo ou morto. O conde, sofrendo porque a fuga o fazia de inocente em culpado, chegou a Calais sem se dar a conhecer nem a ser conhecido pelos filhos. Logo passou à Inglaterra e dirigiu-se para Londres vestido de pobre. Antes de entrar na cidade, advertiu com muitas palavras as duas criancinhas sobretudo quanto a duas coisas: primeiro, que suportassem com paciência a situação de pobreza em que, sem culpa delas, o destino as lançara juntamente com o pai; em seguida, que evitassem com a maior atenção revelar a alguém de onde vinham e de quem eram filhos, se tinham amor à vida. O filho, chamado Luís, teria uns nove anos, enquanto a filha, de nome Violante, talvez não andasse ainda nos sete. Segundo o que podia entender a sua tenra idade, eles compreenderam muito bem a advertência do pai e logo o mostraram com os factos. Para que isto melhor se pudesse conseguir, pareceu-lhe que devia mudar os seus nomes, e assim fez, chamando ao rapaz Pedrinho e à menina Joaninha. Chegaram pobremente vestidos a Londres e começaram a pedir esmola pelas ruas, como vemos que fazem os vagabundos franceses. Estavam eles, por acaso, certa manhã naquela actividade à porta duma igreja quando uma importante senhora, esposa de um dos marechais do rei de Inglaterra, ao sair da igreja, viu o conde com as duas crianças a pedir esmola. Perguntou-lhe de onde era e se as criancinhas eram filhas dele. Respondeu-lhe que era da Picardia e que, por causa duma má acção dum filho mais velho, o tratante, fora obrigado a abalar com aqueles dois que lhe pertenciam. A dama, que era compassiva, olhou para a menina, gostou muito dela por ser bonita e bem educada e disse: “Bom homem, se estiveres de acordo em deixar comigo a tua filha, que tão boa aparência possui, ficarei com ela de bom grado. Há-de ser uma mulher de valor e eu arranjar-lhe--ei casamento quando chegar a altura, de modo que ficará bem entregue.” O conde ficou muito contente com o pedido e logo respondeu que sim. Confiou-lha de lágrimas nos olhos e recomendou-a muito. Assim, com a filha arrumada e sabendo bem a quem a entregava, resolveu não ficar mais tempo ali. Pedindo esmola, percorreu a ilha e chegou com Pedrinho ao País de Gales depois de grande fadiga, ele que não estava acostumado a andar a pé. Vivia ali um outro marechal do rei em situação muito elevada e possuidor de numerosa criadagem. Algumas vezes valia muito ao conde ir com o filho àquela corte para obterem comida. Andavam por lá um filho do marechal e outros filhos de fidalgos, os quais brincavam a certos jogos como correr e saltar. Pedrinho começou a misturar-se com eles e a jogar com tanta habilidade ou mais do que os outros em qualquer dos jogos que entre eles se praticavam. Certa vez, o marechal assistiu e, agradando-lhe muito o comportamento do rapaz, perguntou quem era ele. Foi-lhe dito que era filho dum pobre homem que ali aparecia algumas vezes a pedir esmola. O marechal mandou-o chamar e o conde, que outra coisa não rogava a Deus, de muito boa vontade lhe entregou o filho, por muito que lhe doesse apartar-se dele. Com os filhos acomodados, o conde resolveu não continuar mais tempo em Inglaterra e, da melhor forma que conseguiu, passou à Irlanda. Chegado a Stanford, empregou-se como criado de certo cavaleiro dum conde da região, fazendo todos os serviços que competem a um criado ou a um moço. Ali permaneceu muito tempo com bastante desconforto e fadiga, sem que nunca alguém o tivesse reconhecido.
“Violante, chamada Joaninha, em casa da fidalga de Londres, ia crescendo em idade, em figura e em beleza, agradando cada vez mais à dama, ao marido desta e a todas as pessoas da casa, bem como a quantos a conhecessem. Era maravilhoso vê--la. E não havia ninguém que, olhando para a sua educação e para as suas maneiras, não dissesse que ela era digna dos mais elevados bens e honrarias. Por este motivo, a fidalga quem o pai a havia confiado, como nunca pudera saber se os factos não seriam diferentes do que ouvira a ele, estava resolvida a dar-lhe honrosamente um marido, de acordo com a condição que supunha ser a da menina. Mas Deus, justo apreciador dos méritos de cada pessoa, dispôs as coisas de outro modo porque a sabia mulher da nobreza e que ela estava a cumprir, sem culpa, a penitência do pecado alheio. E, para que a nobre donzela não caísse em mãos de homem vilão, somos levados a crer que foi a divina bondade que permitiu o que veio a acontecer. A dama com quem Joaninha vivia tinha um único filho de seu marido, que ela e o pai amavam extremosamente, não só por ser filho deles, mas também porque o valia pela virtude e pelos méritos, pois mais do que nenhum outro era bem educado, valoroso, probo e belo de figura. Teria uns seis anos mais do que Joaninha e, achando-a lindíssima e graciosa, enamorou-se dela tão fortemente que não via ninguém mais do que a ela. Como, porém, a imaginava como sendo de humilde condição, não se atrevia a pedi-la ao pai e à mãe para esposa e receava, até, que o repreendessem por ter procurado amor tão em baixo. Por isso, ocultava o seu amor quanto podia. Mas quanto mais escondia aquele amor, mais ele se avivava, até que lhe aconteceu cair gravemente enfermo por excesso de angústia. Foram requisitados vários médicos para o curarem e, tendo eles examinado todos os sintomas, não conseguiram descobrir sequer um pouco da sua doença. Todos eles se encontravam unânimes em desesperar da sua saúde. Os pais do jovem viviam, assim, numa grande dor e numa melancolia tal que não era possível terem outra maior. Bastantes vezes lhe perguntavam com afectuosas súplicas qual a razão do seu mal. Ele respondia ou com suspiros, ou dizendo que se sentia finar. Certo dia, sentou-se junto dele um médico muito novo, mas de grande profundidade na ciência. Segurava-lhe o braço para lhe encontrar o pulso quando, por qualquer motivo, entrou no quarto onde o jovem estava deitado Joaninha, a qual solicitamente o servia em consideração da mãe dele. Mal o jovem a viu, sem que dissesse palavras ou alguma coisa fizesse, logo sentiu no coração mais fortemente o seu ardente amor, pelo que o pulso começou a bater com mais força do que o habitual. O “médico apercebeu-se imediatamente, admirou-se muito e ficou atento para ver quanto tempo durava aquela palpitação. Quando Joaninha saiu do quarto, logo a palpitação acalmou, o que levou o médico a pensar haver descoberto o motivo da doença do jovem. Deixou passar algum tempo e, como se precisasse de pedir alguma coisa a Joaninha, mandou-a chamar, continuando sempre a segurar o braço do jovem. Joaninha não tardou em aparecer e, mal entrou no quarto, logo voltou ao jovem a palpitação do pulso, cessando a mesma quando ela se foi embora. O médico ficou inteiramente convencido, levantou-se, chamou à parte os pais do jovem e disse-lhes: “A cura do vosso filho não está na ajuda dos médicos, mas encontra-se nas mãos de Joaninha. Como pude verificar claramente por certos sintomas, o rapaz ama-a ardentemente, ainda que ela, pelo que vejo, não se aperceba do facto. Sabeis agora o que deveis fazer, se tendes amor à sua vida.”
“Quando isto ouviram, o fidalgo e a esposa ficaram contentes, na medida em que se encontrara uma maneira de o salvar, embora muito lhes doesse tratar-se do que eles temiam, ou seja, terem de dar Joaninha como esposa ao seu filho. Quando o médico abalou, foram ter com o enfermo e a dama falou-lhe deste modo: “Meu filho, nunca julguei que me escondesses algum desejo teu, especialmente quando te vejo à beira da morte por não o conseguires. Devias e deves ter a certeza de que nada existe que por minha vontade eu não faria, ainda que fosse coisa menos aceitável, desde que fosse para a tua felicidade. Mas, uma vez que o escondeste, Deus quis ter mais compaixão de ti do que tu próprio e, para que não morras desta doença, deu-me a conhecer o motivo do teu sofrimento, que outra coisa não é senão o excessivo amor que tens por alguma jovem, seja ela quem for. Realmente não devias envergonhar-te de me revelar tal coisa, pois é próprio da tua idade. Se não estivesses enamorado é que eu te apreciaria muito pouco. Por isso, meu filho, não me escondas nada e descobre-me confiadamente qualquer desejo teu. Põe de lado a tua tristeza e a tua cisma, consola-te e fica certo que não existe nada que me exijas para a tua satisfação que eu não te possa fazer, pois te quero mais do que à minha própria vida. Afasta a vergonha e o receio e diz-me se te posso ajudar nalguma coisa sobre o teu amor. Se achas que não me preocupo para que o leves a bom termo, considera-me a mais cruel das mães que alguma vez deram à luz um filho.” Depois de escutar as palavras da sua mãe, o jovem começou por sentir-se envergonhado, mas depois pensou lá consigo mesmo que nenhuma outra pessoa poderia satisfazer o seu desejo melhor do que ela. Pôs de lado a vergonha e declarou-lhe: “Senhora, nenhuma outra coisa me levou a ocultar-vos o meu amor senão o ter-me apercebido de que a maior parte das pessoas, quando envelhecem, já não se querem recordar de terem sido jovens. Mas vendo quanto sois sensata a este propósito, não só não recusarei ser verdade aquilo que afirmais ter descoberto, como ainda vos revelarei de quem se trata, Com o acordo de que se fará segundo o que se encontra ao alcance da vossa promessa, assim me podereis haver de saúde.” Demasiado fiada de que tudo havia de correr da forma como ele havia pensado no seu íntimo, respondeu liberalmente que lhe revelasse com toda a confiança qualquer seu desejo, pois ela sem demora se empenharia em fazer de modo que ele obtivesse o seu desejo. “Senhora – disse, então, o jovem –, conduziram-me ao estado em que me vedes a grande beleza e as agradáveis maneiras da nossa Joaninha, o não poder-lhe revelar nem torná-la compreensiva do meu amor e o não ter ousado revelar alguma vez esse amor a alguém. Se de um ou de outro modo não se realizar o que me haveis prometido, podeis estar certa de que a minha vida será breve.” Pareceu à dama ser mais ocasião de conforto do que de repreensões e disse sorridente: “Oh!, meu filho!, e foi por isto que te deixaste cair doente? Anima-te e deixa o caso comigo logo que te encontres curado.” O jovem, cheio de boas esperanças, em pouquíssimo tempo deu sinais de melhoras muito grandes. Então, muito contente, a dama resolveu tentar a forma de observar o que tinha prometido. Um dia, chamou Joaninha e, em tom de brincadeira, perguntou-lhe delicadamente se ela não tinha nenhum namorado. Joaninha ficou muito corada e respondeu: “Senhora, a uma donzela pobre, expulsa da sua casa e que tem de estar ao serviço de outrem, como eu faço, não se exige nem cai bem estar à espera de amor.” A dama” retorquiu-lhe: “Se não o tendes, queremos arranjar-vos um, de modo a viverdes muito alegre e a tirardes prazer da vossa beleza, pois não convém que uma rapariga tão bonita, como vós sois, fique sem amante.” Respondeu-lhe Joaninha: “Senhora, fizeste-me crescer como filha depois de me haverdes tirado à pobreza do meu pai, e por isso devo fazer todas as vossas vontades. Mas nisto não vos obedecerei e estou certa de que faço bem. Se for da vossa vontade dar-me um marido, a ele tenciono amá-lo. A outro é que não. Da herança dos meus antepassados nada mais me restou senão a honra e esta hei-de eu guardá-la e respeitá-la enquanto estiver viva.” Tais palavras pareceram contrariar fortemente a dama naquilo que tencionava conseguir para cumprir a promessa feita ao filho, embora, como dama sensata, muito elogiasse dentro de si a donzela. Retorquiu-lhe: “Como, Joaninha? Se Sua Majestade o rei, que é jovem cavaleiro, e sendo tu uma lindíssima rapariga, desejasse alguma coisa do teu amor, recusar-lho-ias?” Prontamente a donzela respondeu: “Poderia o rei violentar-me, que nunca obteria por meu consentimento aquilo que não fosse honesto.” A dama compreendeu qual a disposição da jovem, acabou a conversa e pensou em pô-la à prova. Disse, então, ao filho que, mal estivesse curado, a fecharia com ele num quarto e que ele procurasse obter dela o seu desejo. Acrescentou que lhe parecia inconveniente ir ela, à guisa de alcoviteira, falar em nome do filho e solicitar a rapariga. O rapaz não ficou de modo nenhum satisfeito com a ideia e logo piorou gravemente. Diante disto, a dama revelou a sua intenção a Joaninha, mas achou-a mais firme do que nunca. Contou, então, ao marido tudo o que fizera, e, embora muito lhes custasse, resolveram de comum acordo dar-lha por esposa, preferindo o filho vivo com mulher não conveniente do que o filho morto sem nenhuma. E assim fizeram, depois de muito discorrerem. Joaninha ficou muito contente e, de coração devoto, agradeceu a Deus que não se esquecera dela. Mas, mesmo assim, continuou sempre a declarar-se apenas como filha dum picardo. O jovem curou-se, fez o casamento como o mais feliz dos homens e encetou com ela uma vida de felicidade.
“Pedrinho, que ficara no País de Gales com o marechal do rei de Inglaterra, foi crescendo igualmente na graça do seu senhor e tornou-se de aspecto muito formoso e tão valente como nenhum mais existia na ilha, de tal modo que não se encontrava em todo o país quem o batesse fosse em torneios, fosse em justas, fosse em quaisquer outros jogos de armas. Chamavam-lhe Pedrinho, O Picardo, entre todos conhecido e famoso. O Senhor Deus, tal como não se esquecera da irmã, igualmente veio a demonstrar que também o guardava no seu pensamento. Aquela província foi atingida por uma peste mortífera que dizimou quase metade da população, sem contar muitíssimos dos sobreviventes que fugiram para outras províncias, ao ponto de o país parecer completamente abandonado. Naquela mortandade pereceram o marechal, seu amo, a mulher dele e um filho, além de muitos outros irmãos, sobrinhos e parentes. Apenas restou uma filha em idade de casar, Pedrinho e alguns outros criados. Quando a epidemia abrandou um pouco, vendo que se tratava de homem de prudência e valentia, por gosto e por conselho dos poucos habitantes que tinham ficado vivos, a donzela aceitou-o por marido e, fê--lo senhor de tudo o que lhe coubera em herança. Não tinha passado ainda muito tempo quando o rei, conhecedor da valia de Pedrinho, O Picardo, o nomeou marechal, colocando-o no posto do marechal falecido. Em suma, foi isto o que se passou com os dois inocentes filhos do conde de Antuérpia, que este deixara como se os houvesse perdido.
“Passavam já dezoito anos desde que o conde de Antuérpia partira em fuga de Paris. Continuava na Irlanda e, depois de ter sofrido muita coisa numa vida de bastante miséria, vendo-se já velho, sentiu vontade de saber, se fosse possível, o que tinha acontecido aos filhos. Como se via muito modificado em relação ao aspecto que tivera e se sentia fisicamente mais vigoroso, em virtude do prolongado exercício, do que quando era jovem e vivia na ociosidade, partiu, bastante pobre e mal vestido, de casa daquele que servira durante muito tempo, voltou à Inglaterra e dirigiu-se aonde havia deixado Pedrinho. Foi descobri-lo marechal e grande senhor, encontrando-o saudável, vigoroso e de bela figura. Ficou muito satisfeito, mas não se quis dar a conhecer enquanto não soubesse de Joaninha. Meteu-se novamente a caminho e não parou antes de chegar a Londres. Uma vez aí, perguntou cautelosamente pela dama a quem tinha confiado a filha e pela sua situação. Foi encontrar Joaninha casada com o filho da fidalga, o que muito lhe agradou, e considerou pequena toda a adversidade pretérita, pois que viera encontrar os seus filhos vivos e numa boa situação. Desejoso de a ver, começou a andar rondando a casa da filha, até que um dia Jaime Lamiens, assim se chamava o marido de Joaninha, o viu e se compadeceu dele por ser pobre e idoso. Ordenou a um dos criados que o levasse para sua casa e lhe desse de comer por amor de Deus. O criado obedeceu de bom grado. Joaninha já tivera vários filhos de Jaime, o mais velho dos quais não tinha mais que oito anos. Eram as crianças mais lindas e mais graciosas do mundo. Quando elas viram o conde a comer, como fazem todas as crianças, rodearam--no e começaram a brincar com ele, como se uma secreta virtude as levasse a pressentir que ele era o seu avô. Ele, sabendo que eram os seus netos, começou a mostrar-lhes amor e a fazer-lhes carícias. Daquele modo, as crianças não queriam deixá-lo, por mais que as chamasse o encarregado de as educar. Joaninha soube disso, saiu dum quarto e dirigiu-se aonde se encontrava o conde, ameaçando-as de lhes bater muito a sério se não fizessem o que o preceptor queria. As crianças puseram-se a chorar e a dizer que queriam estar junto daquele bom homem, que gostava delas muito mais do que o mestre. A dama e o conde riram-se. O conde tinha-se posto de pé, não como se fosse pai, mas um pobre homem, para homenagear a filha como senhora, sentindo na alma um prazer maravilhoso por conseguir vê-la. Mas nem então, nem depois ela o reconheceu, pois muitíssimo se modificara em relação ao que fora. Velho, de cabelos brancos e de barbas, emagrecera e tornara-se moreno, parecendo um homem muito diferente do conde. Vendo a dama que as crianças não o queriam deixar e que choravam por as quererem levar dali, disse ao preceptor que as deixasse ficar mais um pouco. Encontravam-se, pois, as crianças com o bom homem quando chegou o pai de Jaime e ouviu do preceptor o que se passava. Como detestava Joaninha, disse: “Deixa-os estar com a má sina que Deus lhes dá. Estão a mostrar de onde é que nasceram. Descendem pela mãe dum vagabundo e, por isso, não admira se gostarem de estar com os vagabundos.” O conde ouviu estas palavras que muito o magoaram, mas, curvando o dorso, suportou aquela injúria como já tinha suportado muitas outras. Jaime, ouvindo falar da festa que os filhos faziam ao bom homem, embora tal não lhe agradasse, como gostava tanto deles que não os podia ver chorar, mandou que recebessem o bom homem para qualquer serviço, se ele quisesse ficar. O conde respondeu que ficava de bom grado, mas que só sabia tratar de cavalos, coisa em que tinha gasto todo o tempo da sua vida. Confiaram-lhe um cavalo, e, logo que acabava de o tratar, ocupava-se do recreio das crianças. “Enquanto a fortuna fora guiando o conde e os seus filhos da maneira que ficou descrita, aconteceu ter morrido o rei de França, depois de haver estabelecido longas tréguas com os Alemães. Para o seu lugar foi coroado o filho, aquele por causa de cuja mulher o conde fora expulso. Este rei, depois de terminadas as últimas tréguas com os Alemães, recomeçou uma violenta guerra. Em seu apoio, o rei de Inglaterra, a ele unido por recentes laços familiares, mandou muitas tropas sob o comando do seu marechal Pedrinho e de Jaime Lamiens, filho do outro marechal. O bom homem acompanhou o segundo e, sem ser reconhecido por ninguém, permaneceu no exército largo tempo como moço de estrebaria. Aí, como homem valente, serviu muitíssimo bem com os seus conselhos e acções, acima ^do que lhe era exigido. Durante a guerra, aconteceu que a rainha de França adoeceu gravemente. Sabendo por si mesma que a morte se avizinhava e arrependida de todos os seus pecados, confessou-se piedosamente ao arcebispo de Ruão, considerado por toda a gente um homem muito santo e bondoso. Entre os outros pecados, contou-lhe o grande mal que fizera ao conde de Antuérpia. E não se contentou em dizer aquilo apenas ao arcebispo, mas narrou tudo como se tinha passado diante de muitas outras pessoas de valor, pedindo-lhes que interviessem junto do rei para que o conde, se fosse vivo, ou, se não, qualquer dos seus filhos fosse restituído à sua posição. Passado pouco tempo, a rainha deixou esta vida e foi sepultada com todas as honras. Contada ao rei a sua confissão, depois de alguns suspiros pela dor das ofensas injustamente feitas ao valoroso homem, o rei ordenou que se fizesse constar, em todo o exército e ainda em muitos outros locais, o anúncio de que seria grandemente recompensado quem desse informações sobre o conde de Antuérpia ou algum dos seus filhos, dado que a confissão da rainha o declarava inocente daquilo por que fora exilado e, por isso, o rei determinava devolvê-lo ao seu primeiro estado ou a um ainda mais alto. O conde ouviu o anúncio enquanto moço de estrebaria e, vendo que aquilo de facto era verdade, procurou imediatamente Jaime e pediu-lhe que fosse com ele junto de Pedrinho, pois lhes queria revelar aquilo de que o rei andava à procura. Encontrando-se os três reunidos, disse o conde a Pedrinho, o qual já estava a pensar revelar quem era: “Pedrinho, Jaime aqui presente está casado com a tua irmã e nunca recebeu qualquer dote. Por isso, a fim de que a tua irmã não esteja sem dote, considero que deva ser ele e não outro a receber o prémio que o rei promete por ti, declarando-te como filho do conde de Antuérpia, por Violante, tua irmã e sua mulher, e por mim, que sou o conde de Antuérpia e o vosso pai.” Ao ouvir tal coisa, Pedrinho olhou-o fixamente, logo o reconheceu, lançou--se aos seus pés em lágrimas e abraçou-o depois enquanto dizia: “Meu pai, como sois bem-vindo!” Jaime, ao ouvir primeiramente o que o conde dissera e vendo depois o que Pedrinho fazia, sentiu-se ao mesmo tempo invadido por um tal espanto e por tão grande alegria que nem sabia o que fazer. Acreditou, porém, nas palavras que ouvia e, envergonhando-se das palavras injuriosas que dirigira ao conde moço de estrebaria, deixou-se cair aos seus pés chorando e pediu-lhe humildemente perdão de todos os ultrajes passados. O conde, pondo-o de pé, perdoou-lhe com muita bondade.
“Depois de terem conversado os três sobre as várias peripécias de cada um e de terem chorado muito e de muito se terem alegrado, Pedrinho e Jaime quiseram vestir o conde com outra roupa. Ele, porém, não aceitou de modo nenhum, mas quis que Jaime tivesse primeiramente a certeza do galardão prometido e que depois o apresentassem ao rei tal como se encontrava e naquela farda de moço de estrebaria para o envergonhar ainda mais. Jaime foi, então, à presença do rei, acompanhado pelo conde e por Pedrinho, e ofereceu-se para lhe apresentar o conde e os filhos, devendo o rei premiá-lo de acordo com o anúncio proclamado. O rei mandou imediatamente vir o galardão devido pelos três, ante os olhos maravilhados de Jaime. Ordenou que levasse aquele galardão consigo se realmente lhe apresentasse, como prometia, o conde e os filhos. Jaime voltou para trás, pôs diante de si o conde moço de estrebaria e Pedrinho e disse: “Majestade, aqui estão o pai e o filho; a filha, que é minha mulher e não está aqui presente, com a ajuda de Deus em breve haveis de vê-la.” Ao ouvir isto, o rei olhou para o conde e, apesar de este se encontrar muito mudado em relação ao que fora, reconheceu-o depois de o fitar um pouco. Quase de lágrimas nos olhos, como o conde estivesse de joelhos, levantou-o, beijou-o e abraçou-o. Depois acolheu amistosamente Pedrinho e deu ordem para que imediatamente o conde fosse provido de roupas, de criados, de cavalos e de arneses, segundo requeria a sua nobreza. Isto foi desde logo cumprido. Além disso, o rei atribuiu grandes honras a Jaime e quis que lhe contassem tudo sobre as peripécias passadas.
“Quando Jaime tomou os altos galardões por haver apresentado o conde e os filhos, o conde disse-lhe: “Toma estes dons da magnificência de Sua Majestade o rei e não te esqueças de dizer ao teu pai que os teus filhos, seus e meus netos, não descendem de vagabundo pelo lado da mãe.” Jaime levou os prémios e mandou vir a Paris a mulher e a mãe. Acompanhou-as a mulher de Pedrinho. Ali se encontraram num grande júbilo com o conde, ao qual o rei devolvera todos os bens, tornando-o mais poderoso do que nunca. Com a sua autorização, voltou cada um para sua casa, enquanto ele viveu em Paris até à sua morte mais gloriosamente do que nunca.”
Bernabò de Génova, enganado por Ambruogiuolo, perde o seu dinheiro e manda matar a esposa inocente. Ela escapa e, vestida de homem, entra ao serviço do sultão. Descobre o enganador e chama Bernabò a Alexandria, onde o enganador é castigado. Retomando as roupas femininas, ela e o marido regressam ricos a Génova (Nota 25) Numa conversa de homens, descrita com magistral naturalidade, um imprudente deixa-se levar por um cínico interlocutor a apostar uma grande quantia sobre a virtude da sua mulher. Quando é ludibriado com habilidosa fraude e se considera ter perdido, ordena, furioso, que matem a esposa. Esta, porém, vestida de homem, foge e toma o caminho do exílio, onde tem ocasião de revelar a sua têmpera excepcional. Tudo acaba com a descoberta da fraude, a reconquista do marido e a punição do caluniador, depois de uma cena saborosamente irónica em que a dama se dá a conhecer entre o espanto do imprudente e do malvado. Esta romanesca novela inspirou a Shakespeare a sua comédia Cymbeline. (Fim da nota).
Depois de Elisa ter cumprido o dever com a sua comovente novela, a rainha Filomena, que era bela e de figura esbelta e que possuía um rosto mais agradável e mais sorridente do que qualquer outra, concentrou-se e disse: “Deve ser cumprido o combinado com Dioneu e, como apenas ele e eu ainda não contámos a nossa novela, apresentarei a minha em primeiro lugar e, segundo o pedido que fez, ele será o último a contar.” Dito isto, assim começou:
“Costuma o vulgo dizer muitas vezes o seguinte provérbio: “O enganador cai aos pés do enganado.” Nenhuma razão parece provar a verdade deste provérbio, mas provam-na os factos que acontecem. Por isso, caríssimas damas, seguindo o tema proposto, sinto ao mesmo tempo vontade de vos provar como é verdade o que se diz. E não vos há-de ser nocivo o que ireis escutar, pois haveis de saber como defender-vos dos enganadores.
“Encontravam-se numa hospedaria de Paris alguns importantes mercadores italianos, como habitualmente faziam, para tratar cada um dos seus negócios. Numa das noites, depois de terem ceado alegremente, começaram a conversar sobre variadas coisas, e, passando de assunto para assunto, encontraram-se a falar das suas mulheres que tinham deixado em casa. Em tom jocoso, um deles começou por dizer: “Eu não sei como se porta a minha. O que sei é que, se me chega às mãos uma garota que me agrade, ponho de lado o amor que tenho à minha mulher e divirto-me com a garota o melhor que posso.” Outro prosseguiu: “Eu faço o mesmo. Se acredito que a minha mulher busca a sua aventura, ela faz isso mesmo; se não acredito, ela fá-lo igualmente. Cada um faz o que lhe apetece e lá se diz: burro que dá coices na parede magoa-se com eles.” O terceiro falou de acordo com esta mesma opinião. Em suma, todos pareciam estar de acordo quanto ao facto de as mulheres deixadas por eles não gostarem de perder tempo. Apenas um deles, chamado Bernabò Lomellin, natural de Génova, disse o contrário, afirmando que ele, por especial mercê de Deus, tinha como esposa a mulher mais cheia de todas aquelas virtudes que são próprias de qualquer ou ainda de cavaleiro e, em grande parte, de pajem. Seria de tal modo que talvez não existisse outra igual na Itália. Era bonita de corpo, ainda bastante nova, ágil e de figura atraente. Não havia nenhuma daquelas coisas que pertencessem a uma mulher fazer, como os lavores da seda e trabalhos semelhantes, que ela não fizesse melhor do que outra qualquer. Além disso, dizia o mercador que não havia nenhum escudeiro, ou criado, se quisermos dizer, que soubesse servir melhor do que ela à mesa dum senhor, de tal modo ela era educada, sensata e cheia de atenção. Depois disto, elogiou-a por saber montar a cavalo, praticar a falcoaria, ler, es-crever e fazer contas como se fosse um mercador. Acabados todos estes elogios, chegou ao ponto de que se falava e afirmou com juras não ser possível encontrar pessoa mais honesta e mais casta do que ela. Tanto assim que tinha a certeza de que, se ele permanecesse fora de casa dez anos ou para sempre, nunca ela consentiria nessas aventuras com outro homem. Estava entre os mercadores naquela conversa um jovem mercador chamado Ambruogiuolo de Piacenza, o qual soltou as maiores gargalhadas do mundo ao ouvir o elogio de Bernabò à sua mulher. Em ar de mofa, perguntou-lhe se fora o imperador que lhe tinha concedido um tal privilégio entre todos os homens do mundo. Bernabò, um tanto perturbado, respondeu não ter sido o imperador quem lhe concedera esta mercê, mas sim Deus, que podia um pouco mais do que o imperador. Disse, então, Ambruogiuolo: “Bernabò, de modo nenhum duvido de que não creias estar a dizer a verdade, mas, ao que parece, atendeste pouco à natureza das coisas. Se tivesses essa atenção, não te considero de tão rude inteligência que não pudesses descobrir na tua mulher certos indícios que te levariam a falar mais moderadamente sobre esta matéria. Não penses que nós, tendo falado tão abertamente das nossas mulheres, acreditamos que temos esposas diferentes da tua ou feitas de outra maneira. Falámos assim movidos por uma natural experiência e, por isso, quero conversar um pouco contigo sobre o assunto. Sempre ouvi dizer que o homem é o mais nobre animal criado por Deus entre os mortais, seguindo-se a mulher. Mas o homem, como se crê geralmente e se vê pelas suas obras, é mais perfeito. Sendo mais perfeito, sem dúvida que deve ter mais firmeza, e assim é, de facto, porque as mulheres são universalmente mais volúveis. Isto podia ser provado com muitos argumentos da natureza, que, por agora, tenciono deixar de lado. Se, portanto, o homem tem mais firmeza e não consegue, já não digo deixar de condescender à mulher que o solicita, mas resistir ao desejo de uma que lhe agrada e, para além do desejo, deixar de fazer tudo para se encontrar com ela, e se isto acontece não uma vez em cada mês, mas mil vezes ao dia, que esperas tu que possa fazer uma mulher, por natureza volúvel, diante dos rogos, das adulações, das prendas e das mil formas que usará um homem esperto que a ame? Julgas que ela consegue aguentar-se? Por mais que o afirmes, não creio que acredites em tal coisa. Tu mesmo dizes que a tua esposa é mulher de carne e osso como as outras. Sendo assim, ela deve ter esses mesmos desejos e essas mesmas forças que as outras possuem para resistir aos naturais apetites. Portanto, é possível que ela, por mais honesta que seja, acabe por fazer o mesmo que as outras. Ora nenhuma coisa possível pode ser negada tão severamente ou afirmar-se o contrário dela como tu fazes.” Bernabò retorquiu-lhe: “Sou um mercador e não um filósofo, e é enquanto mercador que te respondo. Reconheço que aquilo que dizes pode acontecer às mulheres levianas nas quais não há vergonha nenhuma. Mas as que são ajuizadas preocupam-se tanto com a sua honra que, para a conservar, se tornam mais fortes do que os homens, que não se preocupam com tal coisa. A minha mulher é uma delas.” Disse Ambruogiuolo: “Realmente, se de cada vez que elas consentissem em aventuras desse género, lhes nascesse um corno na testa, para servir de testemunho daquilo que elas fizeram, acredito que seriam muito poucas aquelas que dariam o seu consentimento. Mas como não parece que o corno nasça, não fica traço nem sinal naquelas que são ajuizadas. A vergonha e os danos da honra só se encontram nos factos manifestos. Por isso, quando elas podem, fazem-no às escondidas; se o evitam, é por serem parvas. Tem a certeza de que só é casta a mulher que, ou nunca foi requestada por algum homem, ou nunca foi atendida, se for ela a requestar. E, embora eu saiba que isto tem de ser assim por naturais e verdadeiras razões, não falaria tão convictamente como estou a falar se não houvesse tido essa experiência muitas vezes e com muitas mulheres. Digo-te que, se eu estivesse perto da tua santíssima esposa, tenho a certeza de que, em pouco tempo, a levaria ao mesmo a que já levei as outras.” Bernabò respondeu perturbado: “Estarmos a discutir com palavras podia estender-se por demasiado tempo; ora dizes tu, ora digo eu, e no fim nada se adiantaria. Mas, uma vez que dizes serem todas assim tão fáceis de ceder e que o teu engenho é assim tão grande, para te dar a certeza da honestidade da minha mulher, estou disposto a que me cortem a cabeça se a conseguires levar dessa forma a qualquer coisa que te dê prazer. Se não fores capaz, não quero que percas mais do que 1000 florins de ouro.” Ambruogiuolo, já excitado com a discussão, respondeu: “Berna-bò, não sei o que havia de fazer do teu sangue se eu vencesse. Mas, se tens tanta vontade de ver a prova do que já expus, entra com 5000 florins de ouro dos teus, os quais deves estimar menos do que à tua cabeça, contra 1000 dos meus. Se não me deres nenhum prazo, comprometo-me a ir a Génova e a conseguir que a tua mulher me faça a vontade dentro de três meses a contar do dia da minha partida. E trarei comigo, como prova, alguns dos seus objectos de maior estimação e tais e tantos indícios que tu próprio terás de confessar ser verdade, se realmente me deres a tua palavra de honra de que não irás a Génova dentro deste prazo, nem escreverás nada a tua mulher sobre este assunto.” Bernabò declarou-se perfeitamente de acordo. Por mais que os outros mercadores ali presentes se empenhassem em contraditar aquela aposta por saberem que dela podia nascer uma grande desgraça, os dois estavam tão entusiasmados que não atenderam à vontade dos outros e comprometeram-se um com o outro redigindo documentos pelo próprio punho. Tomado o compromisso, Bernabò continuou em Paris e Ambruogiuolo partiu o mais depressa que pôde para Génova. Permaneceu nesta cidade alguns dias, e muito cautelosamente informou-se da morada e dos hábitos da dama, ficando a saber o mesmo ou ainda mais do que ouvira dizer a Bernabò. Pareceu-lhe, assim, que se metera numa louca empresa. Estabeleceu, porém, relações com uma pobre mulher que ia muitas vezes a casa da dama e a quem esta estimava muito. Como não a conseguiu convencer de outro modo, corrompeu-a com dinheiro e fez com que ela o transportasse dentro de uma arca à sua medida, não só para a casa da nobre senhora, mas para o seu próprio quarto. A mulherzinha, segundo a ordem que Ambruogiuolo lhe dera, ali deixou entregue a arca durante uns dias, a pretexto de ter de sair para fora da terra. Com a arca arrumada no quarto, veio a noite e, quando Ambruogiuolo calculou que a dama tinha adormecido, abriu a arca com certas ferramentas, saiu silenciosamente para o quarto onde havia uma luz acesa e pôs-se a observar e a fixar na memória a disposição do quarto, os quadros e outras coisas mais notórias que nele se encontravam. A seguir, aproximou-se da cama e, vendo que a dama e uma menina que estava ao lado dela dormiam profundamente, devagar foi-a descobrindo toda. Achou-a tão formosa assim nua como era vestida, mas não lhe viu nenhum sinal que pudesse fixar, além de um que ela tinha por baixo do seio esquerdo: um sinal em torno do qual cresciam alguns pêlos loiros como o ouro. Depois de a ver, cobriu-a cautelosamente, ainda que, ao vê-la tão bela, lhe apetecesse pôr a sua vida no risco duma aventura e deitar-se ao lado da dama. Mas, como ouvira dizer que ela era tão áspera e rígida acerca de histórias dessas, não se arriscou. Andou a maior parte da noite pelo quarto à sua vontade, roubou uma bolsa e uma garnacha dum cofre, alguns anéis e cintos, guardou tudo dentro da arca, meteu-se lá outra vez e fechou-a exactamente como ela estava antes. E assim fez durante duas noites sem que a dama se apercebesse de alguma coisa. Chegado o terceiro dia, conforme a ordem recebida, a mulherzinha veio buscar a sua arca e levou-a para de onde a havia tirado. Ambruogiuolo saiu lá de dentro, pagou o que prometera à mulher e voltou a Paris o mais rapidamente possível com aqueles objectos, antes de concluído o prazo. Uma vez lá, chamou os mercadores que presenciaram a conversa e a aposta feita por ambos. Diante de Bernabò, disse ter ganho a aposta que fizeram, tendo cumprido aquilo que prometera fazer. Para provar a verdade, descreveu em primeiro lugar a forma do quarto e os seus quadros, mostrando em seguida os objectos da dama que trouxera consigo, afirmando ter sido ela a oferecer-lhos. Bernabò confessou que o quarto, de facto, era como ele estava a descrever; além disso, reconheceu terem pertencido à sua esposa aqueles objectos. Mas declarou que ele pudera ter conseguido de algum dos criados da casa saber como era o quarto e ter obtido da mesma forma os objectos. Por isso, se mais nada tinha a acrescentar, não lhe parecia bastante para o considerar vencedor. Disse, então, Ambruogiuolo: “Realmente devia bastar, mas visto que queres que eu ainda diga mais, vou dizer-te: Dona Ginevra, tua esposa, tem por baixo da mama esquerda um sinal bastante grande, em volta do qual há uns seis lindos pêlos, louros como ouro.” Bernabò, quando ouviu isto, foi como se lhe enterrassem um punhal no coração, tão grande a dor que sentiu. Com o rosto completamente transtornado, ainda que não tivesse dito qualquer palavra, deixou bem manifesto ser verdade o que Ambruogiuolo estava a dizer. Passado um pouco, disse: “Senhores, o que Ambruogiuolo afirma é verdade. Por isso, como ganhou, pagar-lhe-ei o combinado logo que ele quiser.” No dia seguinte, Ambruogiuolo foi pago totalmente, enquanto Bernabò abalava de Paris, de ruim ânimo contra a esposa, dirigindo-se a Génova. Quando chegou perto da cidade, não quis entrar e deixou-se ficar numa sua propriedade a cerca de vinte milhas de distância. Mandou um criado de muita confiança a Génova, com dois cavalos e uma carta a informar a esposa que estava de volta e pedindo que viesse ao encontro dele. Entretanto, impôs ao criado secretamente que, ao ver-se no local que achasse melhor, sem dó nem piedade a matasse e viesse ter com ele. O criado chegou a Génova, entregou a carta e cumpriu o recado, sendo acolhido pela dama com grande alegria. Na manhã seguinte, a dama e o criado montaram a cavalo, a caminho da propriedade. Caminhando e conversando sobre várias coisas, chegaram a um desfiladeiro muito profundo e solitário, ladeado de altas grutas e de árvores. Pareceu ao criado o local indicado para cumprir sem perigo a ordem do seu amo. Puxou do punhal, segurou a dama pelo braço e disse: “Senhora, encomendai a vossa alma a Deus, que sem ir mais além tendes de morrer.” Ao ver o punhal e ao ouvir tais palavras, a dama respondeu muito assustada: “Por amor de Deus!, antes de matar-me, diz-me em que te ofendi para me dares a morte.” “Senhora – disse o criado –, a mim não me ofendestes em nada. Mas não sei em que ofendestes o vosso marido, porque apenas sei ter-me ele dado ordens de vos matar durante esta caminhada, sem ter compaixão de vós. E ameaçou-me de que, se não o fizesse, mandaria enforcar-me. Sabeis como lhe sou afeiçoado e que não posso dizer que não ao que ele me impõe. Sabe Deus a pena que tenho de vós, mas não posso fazer outra coisa.” Respondeu-lhe a dama chorando: “Por amor de Deus! Não queiras tornar-te o assassino de quem nunca te ofendeu só para servir outra pessoa. Deus, que tudo conhece, sabe que eu nunca fiz nada para que mereça receber semelhante coisa do meu marido. Mas deixemos isto por agora. Se quiseres, podes agradar ao mesmo tempo a Deus, ao teu amo e a mim da seguinte maneira: levas as minhas roupas e dás-me apenas a tua jaqueta e um capuz, voltando com essas coisas para junto do teu e meu senhor e dizendo-lhe que me mataste. Juro-te pela vida que me vais dar que desaparecerei e irei para onde nem ele, nem tu, nem pessoa desta região terá mais notícias de mim.” O criado, que mataria contra sua vontade, facilmente se compadeceu. Pegou nos vestidos da dama, deu-lhe uma jaqueta esfarrapada e um capuz, deixou-lhe algum dinheiro que ela trazia consigo e pediu-lhe que desaparecesse daquelas terras. Assim a abandonou no desfiladeiro, sem montada, indo ter com o amo, ao qual declarou que a sua ordem não só fora cumprida, mas que tinha deixado o corpo da defunta entregue aos lobos. Bernabò entrou em Génova, onde acabou por saber-se o que tinha acontecido e o criticaram duramente.
“A dama ficou sozinha e desconsolada. Quando a noite chegou, disfarçou-se o melhor que pôde e dirigiu-se a um lugarejo ali perto. Conseguiu de uma velha o que precisava, adaptou a jaqueta ao seu corpo, encurtando-a, fez da camisa um par de calções, cortou os cabelos e transformou-se toda ela em aspecto de marinheiro. Dirigiu-se depois para o mar e encontrou por acaso um fidalgo catalão, cujo nome era o de En Carach, o qual tinha desembarcado um seu navio, um tanto longe dali, e viera a Alba para se refrescar numa fonte. Meteu conversa com ele, apalavrou-se como seu escudeiro e embarcou com o nome de Sicurano da Finale. Vestida com melhores roupas em traje de fidalgo, começou a servir tão bem e tão sensatamente a En Carach que este ficou muito agradado. Algum tempo depois, o catalão navegou, com o navio carregado, rumo a Alexandria. Levava alguns falcões peregrinos para o sultão e foi oferecer-lhos. O sultão convidou-o algumas vezes para a mesa e, ao reparar nas maneiras de Sicurano, que servia tão bem e sensatamente que logo dele se agradou, pedindo-o ao catalão. Este, embora a custo, entregou-lho. Com a sua maneira de actuar, Sicurano em pouco tempo conquistou a graça e o amor do sultão, exactamente como acontecera ao servir o catalão En Carach.
“Passado algum tempo, efectuou-se em Acra, numa determinada época do ano, uma espécie de feira onde se reuniam mercadores cristãos e sarracenos. A feira efectuava-se sob a autoridade do sultão, o qual costumava enviar sempre, para defesa dos mercadores e das mercadorias, além de alguns dos seus oficiais, um dos seus homens de maior confiança com tropa para fazer a guarda. Em tais circunstâncias, quando chegou o tempo, decidiu enviar Sicurano, o qual dominava perfeitamente a língua. Veio, pois, o dito Sicurano para Acra como senhor e capitão da guarda aos mercadores e à mercadoria, cumprindo solicitamente o que pertencia ao seu ofício. Enquanto fazia as rondas, ia-se encontrando com muitos mercadores da Sicília, de Pisa, de Génova, de Veneza e de outras terras da itália. Saudoso da sua pátria, gostava de conviver com eles. Ora aconteceu-lhe, numa dessas vezes, ter descido do cavalo junto de uma tenda de mercadores venezianos e ver, no meio de outras jóias, uma bolsa e um cinto que imediatamente reconheceu como tendo sido suas. Ficou espantado, mas, sem dar nas vistas, perguntou amavelmente a quem pertenciam e se as queriam vender. Viera à feira, num barco de venezianos, com bastante mercadoria, Ambruogiuolo de Piacenza. Quando este ouviu o capitão da guarda perguntar de quem eram as jóias, deu um passo em frente e riu-se, dizendo: “Senhor, essas coisas são minhas, mas não as vendo; se, porém, vos agradam, com prazer vo-las ofereço.” Vendo-o rir-se, Sicurano suspeitou de que ele o tivesse de algum modo descoberto. Respondeu, porém, mostrando um ar firme: “Talvez te rias de ver um homem de armas interessado por esses objectos femininos.” Retorquiu Ambruogiuolo: “Não, senhor! Não é por isso que me estou a rir, mas pelo modo como as adquiri.” Prosseguiu Sicurano: “Oh! Deus te salve se me disseres, no caso de não julgares inconveniente, como é que as adquiriste.” “Senhor – disse Ambruogiuolo –, foram-me dadas com mais algumas coisas por uma senhora de Génova chamada Dona Ginevra, mulher de Bernabò Lomellin, numa noite em que me deitei com ela e em que me pediu que as guardasse por amor dela. Ora eu estava a rir-me por me ter lembrado da estupidez de Bernabò, o qual foi tão louco que me ofereceu 5000 florins de ouro contra 1000 se eu não conseguisse aliciar a sua mulher para o que me aprouvesse. Foi o que fiz e venci a aposta. E o homem, que antes devia castigar--se a si próprio pela sua estupidez, e não a ela por ter feito o que todas as mulheres fazem, regressou de Paris a Génova e, ao que ouvi dizer, mandou matá-la.” Sicurano, quando isto ouviu, imediatamente percebeu a razão da ira de Bernabò contra ela e ficou a conhecer perfeitamente aquele que fora o causador de toda a sua desgraça, pensando para consigo não deixá-lo assim impune. Mostrou ter gostado muito daquela história e astutamente estabeleceu com o mercador uma grande familiaridade. Foi de tal modo que, acabada a feira, atendendo às exortações, Ambruogiuolo acompanhou Sicurano a Alexandria levando toda a sua bagagem. Uma vez ali, Sicurano mandou abrirem-lhe uma loja e passou-lhe para as mãos bastante dinheiro seu. Ambruogiuolo, vendo que a vida estava a correr bem, ia-se deixando ficar de boa vontade.
“Sicurano, preocupado a provar a Bernabò a sua inocência, não mais descansou até ao momento em que, por obra de alguns importantes mercadores genoveses que se encontravam em Alexandria, conseguiu maneira de o mandar chamar. Como Bernabò se via em bastante pobreza, conseguiu discretamente que um seu amigo o hospedasse até à altura em que achou dever fazer o que pensava. Entretanto, Sicurano levara Ambruogiuolo a contar a história na presença do sultão, conseguindo que este se interessasse. Mas quando viu chegado Bernabò, achou que não devia perder tempo e, na ocasião oportuna, rogou ao sultão que chamasse à sua presença Ambruogiuolo e Bernabò e que, diante deste último, obrigasse Ambruogiuolo pela força, no caso de não conseguir a bem, a dizer como realmente se passara o que ele se gabava de ter feito com a esposa de Bernabò. Vieram, pois, Ambruogiuolo e Bernabò e, com grande assistência, o sultão assumiu um ar severo e ordenou a Ambruogiuolo que dissesse a verdade sobre como ganhara os 5000 florins de ouro a Bernabò. Ali presente, Sicurano, pessoa em que Ambruogiuolo punha a maior confiança, ameaçava-o com um rosto ainda mais irado de o submeter a gravíssimos suplícios se não contasse a verdade. Amedrontado por uma e outra parte, embora um tanto constrangido, Ambruogiuolo narrou tudo como se tinha passado, diante de Bernabò e de numerosas pessoas e sem esperar outro castigo que não fosse a restituição dos 5000 florins de ouro e dos objectos. Depois de Ambruogiuolo ter falado, Sicurano voltou-se para Bernabò e, como executor do sultão naquele assunto, disse: “E tu, que foi que fizeste à tua mulher por causa desta mentira?” Respondeu Bernabò: “Eu, vencido pela cólera de ver perdido o meu dinheiro e pela afrontosa vergonha que julgava ter recebido da minha mulher, mandei a um criado que a matasse e, pelo que o criado me relatou, logo foi devorada por muitos lobos.” Declaradas estas coisas na presença do sultão, que tudo escutou e entendeu, embora ainda não soubesse onde queria chegar Sicurano ao promover aquele interrogatório, este último tomou a palavra: “Meu senhor, podeis ver muito claramente quanto aquela boa esposa se há-de orgulhar a respeito do amante e do marido: o amante, ao mesmo tempo que a priva da sua honra por meio de mentiras que lhe lesam a fama, arruina o marido da dama; o marido, mais crédulo perante as falsidades alheias do que perante a verdade que a longa experiência lhe dera a conhecer, manda matá-la e entregá-la de pasto aos lobos. Para cúmulo, são tais o bem e o amor que o amante e o marido lhe têm que, apesar de terem convivido demoradamente com ela, nenhum deles a reconheceu. Mas, para que vós saibais perfeitamente o que é merecido por cada um deles, se me quiserdes conceder o favor especial de punir o enganador e de perdoar ao enganado, farei com que ela compareça na vossa presença e na deles.” O sultão disse estar de acordo e que mandasse vir a dama, disposto a aceitar tudo o que a propósito fosse do agrado de Sicurano. Muito espantado se mostrava Bernabò, pois firmemente a considerava morta, ao passo que Ambruogiuolo, já feito adivinho da sua desgraça, receava coisa pior do que devolver o dinheiro, sem saber que esperar ou que mais temer com a aparição da mulher, embora aguardassem com grande assombro a sua vinda. Depois que o sultão autorizou Sicurano, este lançou-se de joelhos aos seus pés, lavado em lágrimas, ao mesmo tempo que desapareciam a sua voz masculina e o propósito de continuar a parecer homem. Em seguida disse: “Meu senhor, sou eu essa pobre e desventurada Ginevra que anda há seis anos errante pelo mundo, falsa e criminosamente vilipendiada pelo traiçoeiro Ambruogiuolo e, por ordem deste homem cruel e iníquo dada a um criado, mandada matar e ser entregue aos lobos.” Rasgou, então, a sua roupa no peito e pôs à mostra os seios, deixando assim bem evidente aos olhos do sultão e de toda a assistência a sua condição de mulher. Voltou-se depois para Ambruogiuolo e perguntou-lhe afron-tosamente se, tal como antes se gabara, alguma vez tinha dormido com ela. O homem reconheceu-a e ficou calado, mudo de vergonha. O sultão, que sempre a havia tomado por homem, ficou tão assombrado em face do que via e ouvia que por várias vezes julgou tratar-se mais de sonho do que de realidade. Quando, porém, o assombro lhe passou e descobriu a verdade, teceu os maiores elogios à vida, à persistência, aos costumes e à virtude de Ginevra, até aí chamada Sicurano. Ordenou que lhe trouxessem os mais distintos trajes femininos e damas de companhia, perdoando a Bernabò a merecida morte, por atenção ao pedido que ela fizera. Ao reconhecê-la, o dito Bernabò tinha-se lançado aos seus pés, chorando e pedindo perdão. Dona Ginevra, apesar de ele ser indigno, perdoou-lhe bondosamente, fê-lo pôr--se de pé e abraçou-o ternamente como seu marido. Em seguida, o sultão ordenou que Ambruogiuolo fosse atado a um poste num ponto alto da cidade e ao sol, untado de mel, e que ninguém o retirasse enquanto ele não caísse por si mesmo. Assim se cumpriu. Seguidamente ordenou que entregassem à dama o que tinha pertencido a Ambruogiuolo e que não era assim tão pouco que não valesse 10 000 dobrões. Promoveu uma festa magnífica na qual homenageou Bernabò enquanto marido de Dona Ginevra e esta enquanto mulher valorosíssima. Ofereceu-lhe jóias, baixelas de ouro e de prata e dinheiro no valor de mais de 10 000 dobrões. No final da festa, mandou preparar-lhes um navio e autorizou-os a regressarem a Génova quando eles desejassem. Para lá voltaram riquíssimos e com grande júbilo, sendo acolhidos com supremas honras, sobretudo Dona Ginevra, que todos consideravam morta. E enquanto ela viveu, foi sempre muito considerada pela sua grande virtude.
“Ambruogiuolo, no mesmo dia em que o ataram ao poste e o untaram de mel, não só foi morto com enorme sofrimento, como foi devorado até aos ossos pelas moscas, vespas e moscardos de que muito abundava aquele país. Esbranquiçados e unidos pelos tendões, os seus ossos ficaram largo tempo sem que ninguém os removesse, dando testemunho da sua malvadez a toda a gente. Foi assim que o enganador caiu aos pés do enganado.”
Paganino do Mónaco rouba a mulher a Dom Ricardo de Chinzica. Quando este sabe onde está a dama, vai lâ e faz-se amigo de Paganino. Pede-lhe a mulher, mas Paganino só aceita devolver-lha se ela quiser. A dama, porém, não quer voltar para o marido. Dom Ricardo acaba por morrer e ela torna-se esposa de Paganino (Nota 26) É a história aparentemente cómica e profundamente cruel dum casamento falhado entre uma vigorosa donzela e um velho sem forças e tristonho, cuja estulta ilusão lança na loucura e na morte. Culmina na escaramuça entre os dois cônjuges e no tremendo discurso da dama, um autêntico ensaio de oratória, cujo atrevimento é compensado pela intuição da legitimidade dos instintos em conflito, com uma moral que perdeu todo o contacto com a natureza que ela deveria revelar. Nesta novela inspira-se um dos contos de La Fontaine. (Fim da nota).
Cada um dos elementos do nobre agrupamento elogiou a beleza da história contada pela rainha, mas foi sobretudo Dioneu quem mais elogios lhe deu, ele que era o único a quem faltava contar a sua novela na presente jornada. Depois de muitos louvores à rainha, Dioneu começou:
“Formosas damas, houve um pormenor da novela que me levou a mudar de opinião e a contar uma história diferente da que eu tinha na cabeça. Refiro-me à estupidez de Bernabò, apesar de a coisa lhe ter corrido bem, e de todos aqueles que acreditam no mesmo que ele mostrava acreditar, isto é: correndo eles o mundo a divertirem-se ora com uma, ora com outra, imaginam que as esposas que ficaram em casa se deixem estar de braços cruzados, como se não conhecêssemos – nós que nascemos, crescemos e vivemos no meio delas – quais são os seus desejos. Digo--vos isto porque já vos hei-de mostrar como é grande a parvoíce desses homens e como é ainda maior a daqueles que, julgando-se mais capazes do que é a sua natureza, se iludem com vãos argumentos de conseguirem o que na realidade não podem e se esforçam por tornar os outros iguais a si quando a natureza daqueles que querem convencer o não permite.
“Havia em Pisa um juiz mais dotado de inteligência do que de vigor corporal, chamado Dom Ricardo de Chinzica. Julgava ele, porventura, que podia satisfazer a mulher do mesmo jeito que os estudos, e, como era muito rico, procurou encontrar para sua esposa, com uma solicitude nada pequena, uma mulher bonita e jovem, duas coisas que ele devia evitar se soubesse aconselhar-se como sabia aconselhar os outros. Obteve o que procurava porque o Sr. Lotto Gualandi lhe ofereceu em casamento uma filha chamada Bartolomeia, uma das mais formosas e mais atraentes donzelas de Pisa, uma das poucas de lá que não parecem lagartixas insectívoras. O juiz trouxe-a com grande solenidade para a sua casa e realizou núpcias lindas e magníficas. Mas, na primeira noite, lá conseguiu tocá-la uma vez para consumar o matrimónio e pouco faltou para abandonar a partida a meio. Chegada a manhã, como era magro, seco e de pouco fôlego, teve de restaurar as forças com vinho doce, bolos e outros processos para regressar à sua vida. Agora apreciando melhor as suas forças do que antes, o juiz começou a ensinar à dama um calendário bom para as crianças aprenderem a ler e, porventura, elaborado em Ravena (Nota 27) Um Calendário Bom para as Crianças Aprenderem a Ler (fazia então muito as vezes de silabário), mas não para regular as relações conjugais. Diz-se elaborado em Ravena, porque constava existirem lá tantas igrejas quantos os dias do ano, e, portanto, cada dia tinha um santo para festejar. (Fim da nota). De acordo com o que ele dizia, todos os dias eram festa não só de um santo, mas de muitos. Por devoção aos dias santos, ele mostrava com diversas razões deverem o homem e a mulher abster-se de certas relações. Ainda por cima, acrescentava os dias de jejum, as quatro têmporas, as vigílias de apóstolos e de mil outros santos, as sextas-feiras, os sábados, os domingos do Senhor, a quaresma inteira, certas posições da lua e muitas outras abstenções. Porventura julgava ele que se pudesse fazer na cama com as mulheres o mesmo que ele fazia requerendo os adiamentos das causas civis. Com grande tristeza da dama, em quem ele tocava sabe-se lá se uma vez durante o mês, e contrafeito, Dom Ricardo manteve este comportamento durante muito tempo, guardando-a sempre bem, não fosse qualquer outro ensiná-la a conhecer os dias de trabalho como ele lhe ensinara os dias santos.
“Numa época de grande estio, aconteceu que Dom Ricardo sentiu o desejo de veranear numa sua propriedade nos arredores de Montenegro. Lá ficou alguns dias a tomar ares, tendo levado consigo a formosa esposa. Durante a estadia, para lhe oferecer alguma distracção, certo dia organizou uma pescaria. Para assistirem, ele subiu para um barco com alguns pescadores, enquanto ela embarcava noutro com um grupo de mulheres. Entusiasmou-os o prazer e avançaram várias milhas pelo mar dentro sem que se apercebessem. Quando estavam a assistir à pescaria com maior atenção, surgiu repentinamente uma galeota de Paganino da Mare, famosíssimo corsário desse tempo, o qual, quando viu os barcos, correu para eles. Não conseguiram ser tão rápidos na fuga que Paganino não alcançasse o barco onde iam as mulheres. Quando viu a formosa dama, não desejou mais nada. Com Dom Ricardo já chegado a terra, passou a dama para a sua galeota e foi-se embora. Nem se queira saber como sofreu o juiz ao acompanhar a cena, ele tão ciumento que desconfiava do próprio ar. Sem nenhum resultado, levantou querelas em Pisa e noutras cidades contra a malvadez dos corsários, sem descobrir quem lhe roubara a esposa, nem para onde a levara. Quanto a Paganino, vendo-a assim tão formosa, achou que estava certo e, como não era casado, resolveu ficar com ela definitivamente.
Com doçura consolou a dama banhada em lágrimas, mas quando caiu a noite pareceu-lhe pouco terem adiantado as palavras ditas ao longo do dia e, deixando tombar da cintura o calendário, pôs fora do pensamento os dias santos e feriados e dedicou-se a consolá-la com os factos. De tal maneira a consolou que, antes de chegarem ao Mónaco, já da cabeça dela tinham saído o juiz e as suas leis. A partir de então, viveu com Paganino como a mulher mais feliz do mundo. Paganino levou-a para o Mónaco e, além dos consolos que lhe dava noite e dia, tratava-a com o mesmo respeito como se fosse sua esposa. A certa altura, chegou aos ouvidos de Dom Ricardo onde a esposa se encontrava. Levado por ardentíssimo desejo e cuidando que mais ninguém saberia fazer o que era preciso fazer, resolveu ir ele próprio buscá-la, disposto a gastar uma grande quantia de dinheiro para obter o resgate. Meteu-se ao mar, dirigiu-se ao Mónaco e lá a encontrou, como ela o encontrou a ele. Ao fim da tarde, a dama contou a Paganino, e informou-o da sua intenção. Na manhã seguinte, Dom Ricardo encontrou Paganino e relacionou-se com ele e em menos de uma hora estabeleceu grande intimidade e amizade, enquanto Paganino fingia não conhecê-lo, à espera de ver em que iria dar aquilo. Quando Dom Ricardo achou que era oportuno, manifestou-lhe, o melhor que soube e da maneira mais amável, a razão que ali o trouxera, rogando-lhe que ficasse com quanto quisesse, mas que lhe restituísse a mulher. Paganino respondeu-lhe com um modo simpático: “Senhor, vós sois bem--vindo! Mas para vos dar uma resposta rápida, digo-vos: de facto, tenho em casa uma jovem que ignoro se é vossa esposa ou de outrem, pois não vos conheço nem a conheço a ela senão desde que vive comigo há algum tempo. Se, como estais a dizer, sois marido dela, porque acho que sois um simpático fidalgo, levar-vos-ei à sua presença e estou certo de que ela vos reconhecerá. Se disser que realmente é assim como estais a dizer e se quiser ir convosco, em atenção à vossa simpatia, dar-me-eis o que quiserdes para seu resgate. Mas, no caso de assim não ser, fareis mal em querer-ma tirar, pois sou um homem novo e sou capaz de ter uma mulher como qualquer outro, sobretudo a ela que é a mulher mais gostosa que jamais encontrei.” Disse então Dom Ricardo: “É evidente que ela é minha mulher! Se me levares junto dela, verás imediatamente como logo se lançará ao meu pescoço. Por isso, não peço outra coisa senão o que tu mesmo planeaste.” “Vamos lá então”, respondeu Paganino. Foram, pois, a casa deste, entraram para uma sala e Paganino mandou chamá-la. Vestida e enfeitada, a dama saiu dum quarto e surgiu onde se encontravam Dom Ricardo e Paganino, não tendo com Dom Ricardo outro gesto além do que teria feito com outro qualquer forasteiro que Paganino trouxesse a sua casa. O juiz, à espera de ser escolhido por ela com grande regozijo, ficou espantado diante do que viu e disse lá no seu íntimo: “Porventura transformei-me com a tristeza e a prolongada dor de a ter perdido, de tal modo que nem ela me reconhece.” Falou-lhe então: “Senhora, bem caro me ficou levar-te à pescaria, pois nunca tive uma dor igual à que sinto por haver-te perdido. Mas, com tão frio acolhimento que me dás, parece não me teres reconhecido. Não vês que sou o teu Ricardo e que vim até aqui a fim de pagar o que for da vontade do nobre senhor em cuja casa nos encontramos para te reaver e levar-te comigo? Não vês que me faz o favor de te devolver a mim como eu desejo?” A dama, com um ligeiro sorriso, olhou para ele e disse: “Senhor, estais a falar comigo? Cuidai se não me haveis confundido com outra, pois, quanto a mim, não me lembro de vos ter visto alguma vez.” Respondeu Dom Ricardo: “Repara no que estás a dizer e olha bem para mim. Se quiseres lembrar-te bem, logo verás que sou o teu Ricardo de Chinzica.” A dama retorquiu: “Perdoai-me, senhor, mas talvez não seja muito honesto da minha parte que eu olhe muito para vós como estais a pensar. Já vos olhei, porém, o bastante para saber que nunca vos vi antes.” Dom Ricardo imaginou que ela dizia aquilo por medo de Paganino e por não querer confessar na presença deste que o conhecia. Por isso, depois de algum tempo, rogou a Paganino o favor de falar a sós com a dama no quarto. Paganino declarou-se de acordo desde que realmente não a beijasse contra vontade dela. Ordenou à dama que fosse com Dom Ricardo para o quarto, escutasse o que ele queria dizer e lhe respondesse como bem achasse. Foram então, a dama e Dom Ricardo, sozinhos para o quarto e, mal se sentaram, Dom Ricardo disse: “Ó coração do meu corpo, ó minha doce alma, não reconheces agora o teu Ricardo que te ama mais do que a si mesmo? Como pode lá ser? Mudei assim tanto? Ó meus lindos olhos, demorai-vos um pouco em mim!” A dama pôs-se a rir e, sem o deixar falar mais tempo, disse: “Sabeis perfeitamente que não sou assim tão desmemoriada para não saber que sois Dom Ricardo de Chinzica, meu marido. Mas, enquanto estive convosco, mostraste conhecer-me bastante mal. Se fôsseis inteligente ou aquilo que gostáveis de ser considerado, deveríeis ter suficiente conhecimento para ver que eu era jovem, fresca e viçosa. Por conseguinte, deveríeis saber de que precisam as jovens esposas além do vestir e do comer, ainda que elas por vergonha o não digam. Sabeis muito bem como é que fazíeis. Se vos agradava mais o estudo das leis do que a esposa, não devíeis ter casado. É verdade que nunca me parecestes juiz, mas sim um pregoeiro de sagras e de festas, tão bem as conhecíeis, tal como aos jejuns e às vigílias. Só vos digo que, se tivéssemos dado tantos feriados aos trabalhadores que cultivam as vossas terras quantos destes ao que devia cavar a minha pequena horta, nunca teríeis colhido nem um grão de trigo. Mas quis a vontade de Deus, que olhou compassivamente para a minha juventude, ter eu caído nas mãos daquele com quem vivo neste quarto, onde não se sabe o que é dia de descanso. Refiro--me aos dias santos tão celebrados por vós, que sois mais devoto a Deus do que ao serviço das mulheres. Para cá desta porta nunca entrou nem sábado, nem sexta-feira, nem vigília, nem quatro-têmporas, nem a tão longa quaresma. Ao contrário, aqui trabalha-se e bate-se a lã dia e noite. Ainda a noite passada, antes de tocarem as matinas, sei eu bem como se trabalhou mais de uma vez. É por isso que tenciono ficar com ele e trabalhar enquanto for jovem, guardando os dias santos, as indulgências e os jejuns para quando for velha. E vós, que a boa sorte vos leve o mais depressa possível e guardai sem mim os dias santos que vos aprouver.” Dom Ricardo, enquanto ia ouvindo estas palavras, sentia uma dor insuportável e disse, quando a dama se calou: “Ó minha doce alma, que palavras são essas que estás a dizer? Não respeitas a honra dos teus pais e a tua? Preferes continuar aqui como concubina desse homem e em pecado mortal, em vez de estares em Pisa como minha esposa? Ele, quando estiver farto de ti, com grande desonra tua mandar-te-á embora, ao passo que eu te estimarei e, mesmo que não quisesse, serás sempre a dona da minha casa. Irás tu, por causa desse desregrado e desonesto apetite, pôr de lado a tua honra e a mim que te amo mais do que à própria vida? ó minha amada esperança, não fales mais assim e resolve voltar comigo! Doravante, como já sei qual é o teu desejo, irei fazer um esforço. Mas, ó meu doce bem, muda de parecer e vem comigo, pois nunca mais voltei a sentir--me feliz desde que me foste roubada.” A dama retorquiu: “Quanto à minha honra, agora que já é tarde, penso que ninguém estará mais preocupado do que eu. Os meus pais que se preocupassem quando me entregaram a vós. Se nessa altura não cuidaram da minha honra, não tenciono preocupar-me com a deles agora. Se presentemente me encontro em pecado mortal, assim quero estar enquanto bater o pilão. Não vos preocupeis mais do que eu. Falo-vos assim porque me sinto estar aqui como se fosse a esposa de Paganino, ao passo que em Pisa é que me parecia ser vossa concubina. Em Pisa, só observando as fases da Lua e fazendo cálculos geométricos é que podia haver conjunção dos planetas entre mim e vós. Aqui, ao invés, Paganino abraça-me toda a noite, aperta-me, morde-me e Deus vos conte na minha vez como ele me deixa pisada. Bem podeis afirmar que fareis um esforço. Mas como? Só pegando à terceira e entesando à força de marretadas? Fico a saber que vos tornastes um valoroso cavaleiro desde que deixei de ver-vos! Ide-vos embora e esforçai-vos sim por vos manterdes vivo, se bem que me pareça o contrário, pois não andais nada bem, tão definhado e abatido vos vejo. Digo-vos mais: quando Paganino me abandonar, ao que não me parece disposto enquanto eu quiser ficar, não tenciono voltar para junto de vós. Nem espremendo-vos todo se conseguiria uma tigelinha de caldo, e bastou-me ter vivido uma vez convosco com tão grande prejuízo e a tão elevado preço. Procurarei o que me for útil noutro lado. Volto a dizer-vos: aqui onde não há dias santos nem vigílias é que tenciono ficar. Ide-vos, portanto, com Deus e o mais depressa possível, antes que eu grite e diga que me quereis violentar.” Dom Ricardo, vendo-se em maus lençóis, só então reconheceu a sua loucura por ter casado com uma mulher tão jovem. Magoado e triste, saiu do quarto e teve uma Longa conversa com Paganino, a qual não serviu de nada. Finalmente, sem nada ter conseguido, deixou a mulher, regressou a Pisa e o desgosto fê-lo cair em tamanha demência que andava pelas ruas de Pisa não respondendo a quem o cumprimentava ou lhe perguntava alguma coisa senão isto: “O maldito buraco não quer feriados!”
“Passado pouco tempo, morreu. Quando Paganino soube de tal notícia, ciente do amor que a dama lhe tinha, tomou-a por sua legítima esposa. Enquanto tiveram pernas, sem guardarem dias santos nem vigílias nem quaresmas, trabalharam e aproveitaram bem a vida. Foi por isso que, estimadas senhoras, eu achei que Bernabò, na disputa com Ambruogiuolo, montou a cabra ao contrário.”
A novela fez rir tanto a inteira companhia que não ficou ninguém a quem não doesse o queixo. De unânime acordo, as damas declararam que Dioneu tinha razão e que Bernabò fora um estúpido. Mas depois de concluída a novela e de serenados os risos, a rainha observou que a hora ia avançada. Como toda a gente havia contado a sua história e o fim do seu reinado chegara, segundo a ordem estabelecida tirou da cabeça a grinalda e foi colocá-la na cabeça de Neífile, dizendo com um sorriso: “A partir de agora, querida companheira, seja teu o governo deste pequeno povo.” Em seguida foi sentar-se. Neífile corou um pouco com a honra conferida e o seu rosto tornou-se como se mostra a fresca rosa de Abril ou de Maio ao dealbar o dia, baixando um pouco os olhos graciosos e cintilantes como a estrela da alvorada. Mas depois de acalmado o justo burburinho dos circunstantes que demonstrava alegremente o agrado de todos pela rainha e depois de Neífile ter recobrado o ânimo, esta sentou-se um pouco mais alto do que estava e falou:
“Uma vez que sou vossa rainha, sem me afastar do modo que seguiram as outras rainhas antes de mim e cujo governo aprovastes, vou manifestar-vos com breves palavras aquilo que eu penso e que todos cumpriremos se obtiver a vossa concordância. Como sabeis, amanhã é sexta-feira e depois é sábado, dias um tanto aborrecidos para a maior parte das pessoas por causa das comidas que neles se usa tomar. No entanto, a sexta-feira é um dia que merece reverência por atenção a ter sido o dia da paixão d'Aquele que morreu pela nova vida. Considero, portanto, ser justo e razoável que, em louvor de Deus, passemos o dia rezando, em vez de contar novelas. O sábado a seguir costuma ser o dia de as damas lavarem a cabeça e de limparem toda a poeira e sujidade que se acumularam com o trabalho de toda a semana passada. Muitas costumam igualmente jejuar em louvor da Virgem Mãe do Filho de Deus e já nesse dia absterem-se de qualquer trabalho em honra do domingo que se segue. Por isso, como não podemos cumprir plenamente nestes dias o esquema de vida que escolhemos, considero igualmente razoável interrompermos as novelas. Em seguida, como já faremos quatro dias aqui passados, se quisermos evitar que novas pessoas venham ter connosco, acho oportuno mudar-nos daqui e irmos para outro lado. Já sei para onde e já tomei providências. No domingo, reunir-nos-emos depois de dormirmos. Como hoje nos foi dado um assunto bastante largo para desenvolver e quer porque ides ter mais tempo de pensar quer porque será ainda mais agradável restringir um pouco o tema das novelas, decido que se fale apenas de um dos muitos feitos da fortuna, pensando que deva ser este: De alguém que uma coisa muito desejada com astúcia conseguiu ou que, tendo-a perdido, a recuperou. Sobre este tema pense cada um contar qualquer coisa que possa ser útil ou pelo menos agradável ao grupo, salvaguardando sempre o privilégio de Dioneu.”
Todos concordaram com o discurso e o projecto da rainha e resolveram que assim ficasse estabelecido. Neífile mandou, então, chamar o seu mordomo e deu-lhe ordens sobre o local onde à tarde colocar as mesas e sobre quanto deveria fazer depois, durante todo o tempo do seu reinado. Após isto, levantou-se com a companhia e autorizou que fizessem o que mais agradasse a cada um.
As damas e os homens encaminharam-se para um pequeno jardim, onde se demoraram algum tempo. Chegada a hora da ceia, comeram alegremente e com prazer. Levantaram-se da mesa quando aprouve à rainha, Emília conduziu a dança e Pampínea cantou a seguinte canção, acompanhada pelas outras (Nota 28) A balada posta na boca de Pampínea, a mais sagaz e a mais equilibrada das sete damas, é o canto do amor sereno e retribuído e de cuja alegria nasce naturalmente a esperança da felicidade celeste que Deus não irá recusar a amantes tão fiéis e leais. (Fim da nota):
Que mulher cantará se não eu cantar,
de todo o meu desejo satisfeita?
Vem, Amor, razão de todo o meu bem,
fruto de toda a esperança e felicidade;
cantemos juntos um pouco
não os suspiros e as amargas penas
que o teu deleite mais doce me tornam,
mas apenas o claro fogo
no qual eu vivo em festa e divertimento
adorando-te como se fosses um meu deus.
Diante dos meus olhos pusestes, amor,
no primeiro dia que em teu fogo entrei
um jovem de tal beleza,
de tal ousadia e valor
que maior do que ele não se encontra
nem sequer igual;
dele me apaixonei tanto que agora
canto alegre contigo, meu senhor.
E o que nisto maior prazer me dá
é que eu lhe agrado tanto como ele a mim
por tua graça, amor;
porque neste mundo tenho o que desejo
e no outro espero pussuir a paz,
por esta fé sincera
que nele ponho: Deus que isto vê
ainda mais generoso no seu reino será.
Depois desta outras canções se cantaram, mais danças se bailaram e várias músicas se tocaram. A rainha, porém, achou ser altura de descansarem e, levando tochas à frente, cada qual foi para o seu quarto. Os dois dias seguintes foram passados como anteriormente a rainha dissera e ansiosamente esperaram pelo domingo.
CONCLUÍDA A SEGUNDA JORNADA DO DECÂMERON COMEÇA A TERCEIRA, DURANTE A QUAL, SOB O REINADO DE NEÍFILE, SE FALA DE QUEM UMA COISA MUITO DESEJADA COM ASTÚCIA CONSEGUIU OU QUE, TENDO-A PERDIDO, A RECUPEROU (Nota 1) Novelas de conclusão feliz, como as da segunda jornada. Então, era obra do acaso; agora é obra da “indústria” humana. O tema é genérico, mas, na interpretação concordante dos narradores, o “objecto muito desejado” reduz-se à posse dum homem ou duma mulher, excepto na primeira, onde se visa um bem-estar económico cuja conquista pressupõe, no entanto, a posse nada menos que de nove mulheres. Assim se oferece o ponto de partida para uma série de contos bastante ousados. Dioneu encerra a jornada de modo a não deixar-se superar em audácia pelos predecessores. (Fim da nota).
Começava a aurora, com o avançar do Sol, de vermelha a tornar-se cor de laranja quando, naquele domingo, a rainha se levantou e mandou sair da cama toda a companhia. Bastante tempo antes, enviara o mordomo ao local para onde iam mudar-se e muitas das coisas necessárias, mandando preparar o que era preciso. Logo que viu a rainha pôr-se a caminho, mandou carregar as restantes coisas e, como quem levanta acampamento, seguiu com a bagagem e os criados restantes atrás das damas e dos senhores. A rainha tomou o rumo do ocidente, caminhando a passos lentos, acompanhada e seguida pelas suas damas e pelos três jovens. Guiada pelo canto de uns vinte rouxinóis e de outras aves, seguiu por uma vereda pouco frequentada mas cheia de verdes plantas e de flores, que começavam todas a abrir-se com o nascer do Sol. Tagarelando, gracejando e rindo com a sua companhia, não tinha ela andado mais que dois mil passos quando, muito antes de ser meia tércia, os levou até um palácio muito belo e rico, o qual se erguia sobre a planície num pequeno outeiro. Entraram nele, percorreram-no todo, visitaram as grandes salas, os quartos asseados e bem decorados, com tudo a que um quarto pertence. Fizeram os maiores elogios e consideraram o seu proprietário como um senhor magnífico. Depois desceram e visitaram o vastíssimo e aprazível pátio, as caves repletas de excelentes vinhos, viram a água fresquíssima e muito abundante que ali nascia e teceram ainda mais elogios ao palácio. Em seguida, como lhes apetecesse repousar, subiram a uma varanda que dominava todo o pátio. Por todo o lado encontrava-se tudo coberto das flores da época e de ramagens. Sentaram-se e o discreto mordomo veio recebê-los e confortá-los com preciosíssimos doces e excelentes vinhos. Abertas depois as portas dum jardim que circundava o palácio e era todo cercado de muros, dirigiram-se para dentro dele. À primeira vista, todo o conjunto lhes pareceu de uma beleza maravilhosa; depois começaram a observar mais atentamente os seus pormenores. Havia em toda a volta e no centro, em várias direcções, ruas muito largas e rectas como flechas, cobertas de latadas que davam um forte indício de irem produzir muitas uvas naquele ano. Agora, todas em flor, espalhavam um aroma tão intenso pelo jardim que, misturado ao perfume de muitas outras plantas que rescendiam naquele jardim, lhes dava a sensação de estarem no meio de quantas especiarias nascem no Oriente. As orlas das ruas estavam quase todas cobertas de rosas brancas e vermelhas e de jasmins. Assim, não só de manhã, mas até com o Sol mais alto, era possível passear sob a perfumada e aprazível sombra sem se ser tocado pelos raios solares. Seria longo estarmos a descrever a quantidade, a variedade e a harmonia das plantas naquele lugar; basta dizer que ali cresciam em abundância todas as plantas ornamentais que se dão no nosso clima.
Coisa não menos admirável do que o resto, mas até mais, porventura, era o prado que se encontrava no meio do jardim. Possuía uma relva muito densa e dum verde tão carregado que quase parecia negra. Colorido por mil variedades de flores, era todo circundado por laranjeiras e cedros dum verde intenso e vivo. Com os frutos antigos e novos e ainda em flor, não só oferecia aos olhos uma aprazível sombra, como também fornecia prazer ao olfacto. No meio do prado surgia uma fonte de alvíssimo mármore esculpido com maravilhosos entalhes. Não sei se por um veio natural ou por artifício, um alto jacto de água jorrava duma estátua que encimava uma coluna erguida ao centro da fonte. A água caía depois com agradável som sobre a alvíssima fonte numa tal abundância que nem tanta seria precisa para mover um moinho. A água que sobrava de encher a fonte saía do prado por um canal oculto e, uma vez fora do prado, aparecia correndo em toda a volta, dentro de pequenos canais muito bonitos e artísticos. Percorria quase todo o jardim através de canais semelhantes, juntando-se toda no ponto do jardim onde encontrava saída. Dali descia muito límpida até à planície, mas antes de lá chegar movia duas azenhas com muitíssima força e grande proveito do proprietário.
O espectáculo daquele jardim, da sua bela harmonia, das plantas e da fonte, com os riachos derivando desta última, agradou tanto a todas as damas e aos três jovens que todos declararam que, se fosse possível fazer na Terra o paraíso, não sabiam que outro aspecto dar-lhe senão o daquele jardim, nem podiam pensar que existisse maior beleza. Passearam, então, muito felizes pelo jardim, tecendo lindíssimas grinaldas com os ramos de diversas árvores. Mas, enquanto escutavam porventura umas vinte diferentes espécies de trinados de passarinhos que pareciam cantar em despique entre si, descobriram uma agradável beleza em que ainda não tinham reparado, tão absorvidos estavam pelas outras coisas belas: encontraram o jardim povoado por talvez umas cem variedades de lindos animais. E apontavam uns aos outros coelhos que saíam dum canto, lebres além a correr, cabritos deitados noutro sítio, ágeis veados pastando acolá e muitas outras espécies de animais inofensivos, ao gosto de cada um, por ali andando livremente como se tivessem sido domesticados. Estas cenas, além de outros prazeres, aumentaram ainda mais o agrado dos jovens. Mas, depois de terem passeado bastante, vendo ora isto ora aquilo, foram arrumadas as mesas em volta da bela fonte, cantaram primeiramente seis canções e fizeram algumas danças. Depois, quando aprouve à rainha, foram comer, sendo servidos saborosos e delicados manjares numa ordem perfeita, elegante e serena. Mais alegres, levantaram-se e de novo se divertiram tocando, cantando e dançando até que pareceu à rainha, pelo calor que aumentava, serem horas de ir dormir quem quisesse. Alguns foram descansar, mas outros, conquistados pela beleza do local, não quiseram ir e ficaram-se por ali, uns a ler romances, outros a jogar o xadrez ou o gamão, enquanto os restantes dormiam. Levantaram-se depois da hora noa, banharam o rosto com a fresca água e reuniram-se perto da fonte no prado, por decisão da rainha. Sentaram-se da forma costumada e esperaram o começo das novelas em torno do assunto que a rainha propusera. Filóstrato foi o primeiro a quem a rainha deu um tal encargo e ele começou desta forma:
Masetto de Lamporecchio finge-se mudo, torna-se hortelão dum convento de mulheres e todas correm a deitar-se com ele (Nota 2) A novela, cintilante de malícia, desenrola-se num convento de jovens freiras, cuja natural exuberância, abafada pela regra, fermenta e desafoga ora numa ressentida agitação, ora no cândido cinismo das confissões uma com a outra. O vigoroso camponês, que irá descobrir – não sem algum inconveniente – neste ambiente o seu paraíso terrestre, é magnificamente descrito na sua fundamental grosseria de espírito, não desprovida duma certa perspicácia e habilidade de simulador, Quando estão em jogo os seus interesses materiais. Desta novela tirou La Fontaine argumentos para um conto. (Fim da nota).
“Formosíssimas damas, muitos homens e mulheres são tão estultos que demasiado facilmente acreditam que, por se colocar na cabeça duma donzela o véu branco e lhe vestirem o manto preto, ela deixa de ser mulher e já não sente os desejos femininos, como se fazerem-na freira fosse transformá-la em pedra. E se lhes acontece ouvir alguma coisa contra a sua crença, perturbam-se tanto como se tivesse sido feito um enorme e criminoso pecado contra a natureza. Não pensam nem querem considerar-se a si mesmos, a quem a total liberdade de fazerem o que lhes apetece não os sacia, nem atendem às grandes forças do ócio e da solicitação. Há igualmente muitas pessoas que acreditam com demasiada facilidade que o sacho, a enxada, os alimentos grosseiros e a falta de conforto roubam totalmente aos trabalhadores do campo os desejos carnais e tornam rudes a sua inteligência e discernimento. Ora, uma vez que assim me ordenou a rainha, sem me afastar da proposta que ela fez, apraz-me explicar-vos com a maior clareza, através duma pequena história, quão enganados andam todos os que dessa forma acreditam.
“Houve e continua a haver numa das nossas províncias um convento de mulheres muito famoso pela santidade. Não direi o seu nome para não diminuir em coisa nenhuma a sua fama. Não há muito tempo, viviam lá apenas oito freiras com uma abadessa, todas elas jovens. Era hortelão do seu lindíssimo jardim um pobre homenzinho, que, não satisfeito com o salário, fez as contas com o procurador das freiras e voltou para Lamporecchio, de onde era natural. Entre outros que o acolheram festivamente encontrou-se um moço trabalhador, forte, robusto e de bela figura, apesar de camponês, que tinha o nome de Masetto. Perguntou-lhe este onde é que estivera tanto tempo. O pobre homem, chamado Nuto, contou-lhe, e Masetto quis saber que trabalho fazia no convento. Nuto respondeu: “Trabalhava num jardim das freiras, grande e bonito; ia por vezes buscar lenha ao bosque, tirava a água e fazia outros pequenos serviços como estes. Mas as freiras davam-me um salário tão pequeno que nem sequer dava para pagar o calçado. Além disso, são todas novas e parece que têm o diabo no corpo, pois não se consegue fazer nada como elas querem. Quando eu estava às vezes a trabalhar na horta, dizia uma: “Põe isto aqui” e outra: “Põe aquilo ali”. Outra tirava-me o sacho da mão e dizia: “Isto não está bem.” Aborrecia-me tanto que eu abandonava o trabalho e ia-me embora da horta. Foi de tal modo que, por esta razão e mais aquela, não quis lá continuar e vim-me embora. Bem me pediu o procurador delas, quando me despedi, que se eu encontrasse alguém capaz lho mandasse. Eu prometi, mas que Deus me guarde da espinhela caída quanto é verdade que não lhe mandarei ninguém.” Mesetto escutou as palavras de Nuto e aflorou-lhe à mente um tão forte desejo de se encontrar entre aquelas freiras que todo ele se roía, compreendendo pelas palavras de Nuto que poderia ter acontecido a este aquilo que ele próprio desejava. Achando que não lhe adiantava nada falar do assunto a Nuto, disse-lhe: “Ora!, fizeste bem vires-te embora! Que há-de um homem
fazer no meio de mulheres? Antes estar com diabos. De seis vezes em sete, nem elas próprias sabem o que querem.” Mas, depois daquela conversa, Masetto começou a pensar no caminho a seguir para poder encontrar-se a viver com as freiras. Sabendo que era muito bem capaz de fazer os trabalhos de que Nuto falava, não era por aí que receava perder; o que temia era que não o recebessem pelo facto de ser ainda muito novo e de bela figura. Depois de muito reflectir, pensou: “O local é bastante afastado daqui e lá ninguém me conhece. Se eu fingir que sou mudo, com certeza me recebem.” Com esta ideia no pensamento, pôs um machado aos ombros e, sem dizer para onde ia, vestiu-se de mendigo e foi direito ao convento. Uma vez chegado, entrou e aconteceu-lhe deparar com o feitor no pátio. Gesticulando como usam fazer os mudos, deu a entender que pedia de comer por amor de Deus e que, se fosse preciso, lhes racharia a lenha. O feitor ofereceu-lhe comida de boa vontade e depois pôs-lhe à frente alguns cepos que Nuto não fora capaz de rachar. Cheio de força, Masetto rachou-os num instante. O feitor, que precisava de ir ao bosque, levou-o consigo e fê-lo cortar alguns troncos. Em seguida, meteu-lhe à frente o burro e explicou-lhe por sinais que o levasse para o convento. Masetto cumpriu muito bem e o feitor reteve-o alguns dias para que ele fizesse certos trabalhos que estavam a ser necessários. Num desses dias, a abadessa viu-o e perguntou ao feitor quem era o homem. O feitor respondeu-lhe: “Senhora, é um pobre surdo-mudo que há dias apareceu por aqui a pedir esmola. Tratei-o bem e dei-lhe bastante trabalho que era necessário fazer. Se ele soubesse cuidar da horta e quisesse ficar, julgo que ficaríamos bem servidos, porque estamos a precisar dele: o homem tem força e podia fazer tudo o que fosse preciso. Além disso, não seria necessário preocupar-vos se ele dirigisse alguma graça às vossas jovens.” Disse-lhe a abadessa: “À fé de Deus, o que dizes é verdade: vê se ele sabe trabalhar e faz o possível para o reter connosco. Dá-lhe um par de sapatos, um capote velho e elogia-o, trata-o com delicadeza, e oferece-lhe bastante comida.” O feitor respondeu que o iria fazer. Masetto não andava por muito longe, mas, fingindo estar a varrer o pátio, escutou toda a conversa e dizia lá consigo, todo contente: “Se me meterdes aí dentro, tratarei a vossa horta como nunca alguém cuidou dela.” Viu o feitor que o homem sabia trabalhar muito bem e perguntou-lhe por gestos se queria ali ficar. Masetto, também por gestos, respondeu aceitar o que o feitor quisesse. O feitor contratou-o e ordenou-lhe que tratasse da horta e indicou-lhe o que tinha de fazer. Depois foi tratar de outros assuntos do Convento e lá o deixou. Trabalhando dia após dia, começaram as freiras a importuná-lo e a fazer troça dele, como fazem frequentemente as pessoas aos mudos, e diziam as mais feias palavras do mundo, julgando que ele não as ouvia. A abadessa, que talvez o considerasse tão desprovido de apêndice como de fala, pouca ou nenhuma importância atribuía às brincadeiras. Certo dia, depois de haver trabalhado bastante, estava ele a descansar quando duas freiras muito jovens que andavam pelo jardim se aproximaram do sítio onde o homem estava e puseram-se a olhar para ele, que fingia dormir. A mais atrevida disse à outra: “Se eu tivesse a certeza de que guardavas segredo, dizia-te uma coisa em que várias vezes tenho pensado e que talvez te agrade também.” A outra respondeu: “Fala sem receio, que de certeza eu não digo nada a ninguém.” Então a atrevida pôs-se a dizer: “Não sei se tens notado como somos tão vigiadas que nenhum homem se atreve a entrar aqui, a não ser o feitor e este mudo. Várias vezes ouvi dizer a mais que uma mulher das que nos vêm visitar que todas as doçuras do mundo são uma coisa ridícula em relação à doçura que a mulher sente quando vive com um homem. Tenho pensado muitas vezes, já que não pode ser com outro, em experimentar com o mudo se realmente é assim. E não pode haver melhor do que ele no mundo porque, mesmo que quisesse, não poderia nem saberia contar coisa nenhuma. Vês que ele é um rapagão estúpido que cresceu sem inteligência. Gostaria de saber a tua opinião.” “Oh! Que estás a dizer? – exclamou a outra. – Não sabes que prometemos a Deus a nossa virgindade?” “Ora! – disse a primeira –, quantas promessas lhe fazemos todos os dias e não cumprimos nenhuma! Se lhe prometemos a virgindade, há-de haver uma outra ou mais para cumprir a promessa.” A companheira continuou: “E se ficássemos grávidas, como havia de ser?” Retorquiu-lhe a outra: “Já estás a pensar no mal antes de ele te acontecer. Se isso acontecesse, então se havia de pensar. Há mil maneiras de fazer para que nunca se venha a saber, desde que nós mesmas não digamos nada.” Ao ouvir isto, a segunda já sentia uma vontade maior do que a da outra de provar que bicho era o homem: “Então como é que vamos fazer?” A outra respondeu: “Vês que já é perto da hora noa. Acho que as irmãs estão todas a dormir, excepto nós as duas. Espreitemos a horta para ver se anda por lá alguém; se ninguém andar, que fazer senão pegar-lhe pela mão e levá-lo para aquela cabana onde ele se protege da chuva e, enquanto uma estiver lá dentro com ele, ficar a outra de guarda? Ele é tão pateta que fará o que nós quisermos.” Masetto ia ouvindo toda a conversa e, disposto a obedecer, só esperava que uma delas pegasse nele. As duas freiras olharam bem para todo o lado e viram que de parte nenhuma as podiam ver. Aproximou-se então de Masetto a que lançara a conversa, acordou-o e o homem pôs-se imediatamente de pé. Ela pegou-lhe na mão, e com gestos aliciantes, enquanto o homem lhe mostrava os seus risos patetas, puxou-o para a cabana, onde, sem se fazer rogado, Masetto lhe fez o que a ela apetecia. Como leal companheira, depois de ter o que desejava, deu a vez à outra. Masetto, continuando a mostrar-se simplório, fez-lhes a vontade. Foi assim que, antes de se irem embora, ambas quiseram provar uma vez mais o que o mudo sabia de cavalgar. Quando elas, mais tarde, conversavam muitas vezes uma com a outra, diziam que era realmente uma coisa muito doce, mais ainda do que tinham ouvido contar. Aproveitando as horas favoráveis, continuaram a divertir-se com o mudo.
“Um dia, aconteceu que uma companheira se apercebeu da história através do postigo da cela. Mostrou a cena a outras duas, conversaram primeiro em ir denunciá-las à abadessa, mas depois mudaram de opinião, e de comum acordo tornaram-se sócias da propriedade de Masetto. As restantes três foram-se tornando suas companheiras em ocasiões várias e por variados acidentes. Por fim, a abadessa, que ainda não dera conta de tais factos, quando andava sozinha a passear no jardim em dia de grande calor, foi encontrar Masetto a dormir deitado à sombra duma amendoeira. Pouco trabalhava ele durante o dia, tanta a fadiga das cavalgadas feitas durante a noite. O vento levantara-lhe a roupa de cima e o homem estava todo descoberto. Ao ver aquela cena e sabendo que estava sozinha, a abadessa deixou-se cair no mesmo desejo em que tinham caído as suas freiras. Acordou Masetto, levou-o para o quarto dela e aí o conservou vários dias, com grande queixume das freiras porque ele não vinha trabalhar a horta. A abadessa saboreava e tornava a saborear aquela mesma doçura que anteriormente costumava reprovar nas outras. Mandou-o, enfim, embora do seu quarto para onde ele morava, mas queria-o consigo com muita frequência e pedia-lhe mais do que era o seu quinhão. Masetto lá viu que não conseguia dar satisfação a tantas e achou que o continuar a ser mudo lhe poderia resultar em demasiado prejuízo. Por isso, certa noite em que estava com a abadessa, tirou o freio da língua e pôs-se a dizer: “Senhora, tenho ouvido dizer que um galo chega bem para dez galinhas, mas que dez homens só mal e dificilmente conseguem satisfazer uma única mulher. Ora eu tenho que prestar serviço a nove. Assim, por obra do mundo eu não poderei durar. Ao contrário, por causa do que tenho feito cheguei a um tal ponto que já nada consigo fazer, nem pouco nem muito. Por isso, ou me deixareis ir embora com Deus, ou encontrareis modos a respeito.” Quando assim o ouviu falar, ela, que o julgava mudo, ficou totalmente estupefacta e disse: “Que se passa? Julgava que eras mudo.” “Senhora – respondeu Masetto –, era de facto mudo, não por nascimento, mas por uma doença que me roubou a fala e só esta noite sinto pela primeira vez que ela me é restituída, do que dou graças a Deus quanto posso.” A dama acreditou nele e perguntou-lhe o que pretendia ele dizer com isso de ter que prestar serviço a nove. Masetto contou-lhe o que se passava e a abadessa, depois de o escutar, percebeu que as suas freiras eram todas mais espertas do que ela. Sensata, não permitiu que Masetto se fosse embora, decidiu encontrar com as suas freiras a forma de resolver o problema, a fim de que o convento não ficasse difamado por causa de Masetto. Como entretanto o feitor falecera, abriram-se todas umas com as outras sobre o que tinham feito pelas costas. De comum acordo, para grande satisfação de Masetto, combinaram o modo de convencer a gente dos arredores de que as orações delas e os méritos do santo padroeiro do convento haviam restituído a fala a Masetto, mudo durante tanto tempo. E nomearam-no para seu feitor. Desta forma, distribuíram-lhe as tarefas de maneira que ele as pudesse comportar. Como Masetto veio a procriar bastantes fradezinhos, procedeu-se tão discretamente que ninguém soube de nada senão depois da morte da abadessa, altura em que Masetto estava perto da velhice e desejava voltar rico a sua casa. O conhecimento dos factos levou à rápida realização do seu desejo.
“Foi assim que Masetto, velho, pai e rico, sem ter o encargo de sustentar os filhos nem de fazer despesa com eles, tendo sabido por sua esperteza aproveitar a juventude, regressou à terra de onde partira com um machado ao ombro, declarando que era daquele modo que Cristo tratava quem lhe punha os cornos sobre o chapéu.”
Um palafreneiro deita-se com a mulher do rei Agilulf; o rei dá-se conta mas não diz nada; encontra o homem e tosa-lhe o cabelo, mas o tosquiado tosquia os outros companheiros e evita deste modo a sua desgraça (Nota 3) Sob o humilde traje de palafreneiro, o protagonista da novela é um homem de têmpera heróica: principesco no aspecto e nas aspirações, constante até à romântica deliberação de suicídio, mas temperada com o propósito de pagar com a morte uma hora de júbilo, engenhoso na preparação do plano, hábil em frustrar as consequências, sábio no reconhecimento dos limites da ousadia humana. Mas também o antagonista é um homem prudente, sendo cheio de sabor o oculto diálogo que se trava entre estas duas sagezas. La Fontaine encontrou nesta novela matéria para um conto. (Fim da nota).
Chegou ao fim a novela de Filóstrato, a qual umas vezes fez corar as damas e outras vezes fê-las rir. Resolveu a rainha que fosse Pampínea a contar seguidamente e logo ela começou com um sorriso no rosto:
“Há pessoas tão pouco discretas no desejo de mostrarem saber e entender o que está fora do alcance delas saberem que, às vezes, chegam a censurar nos outros os defeitos ocultos, julgando que diminuem a sua própria vergonha, quando não deixam de a aumentar. A verdade disto é o que vos quero mostrar, encantadoras damas, com o exemplo contrário, contando-vos a astúcia que um homem, porventura de classe inferior à de Masetto, usou perante o bom senso dum grande rei.
“Agilulf, rei dos Lombardos, seguindo as pisadas dos seus antecessores, fixou em Pavia, cidade da Lombardia, a capital do seu reino. Estava ele casado com Teudelinga (Nota 4) É Teodolinda, que ficou famosa por ter difundido largamente o catolicismo entre os lombardos. (Fim da nota), viúva de Âuttari, que fora igualmente rei dos Lombardos. Era uma formosíssima mulher, muito inteligente e honesta, mas mal sucedida quanto ao amor. Com o seu valor e bom senso, o rei Agilulf tornara próspera e pacífica a vida dos Lombardos, e foi nessa altura que aconteceu a um palafreneiro da rainha, homem da mais baixa condição quanto ao nascimento, mas no resto muito acima do seu humilde ofício e de figura bela e grande como a do rei, apaixonar-se loucamente por ela. A sua baixa condição não o impedia de perceber que o seu amor saía fora de toda a conveniência e, como homem prudente, a ninguém o revelava, nem sequer ousava manifestá-lo a ela com o olhar. Embora vivendo sem grande esperança de alguma vez agradar à rainha, não deixava de se gloriar no seu íntimo por ter posto os seus pensamentos tão alto. E assim ardendo naquela fogueira de amor, mais que nenhum outro dos companheiros fazia afanosamente tudo o que julgasse ser agradável à rainha. Deste modo acontecia que, sempre que a rainha desejava cavalgar, preferia, em vez de qualquer outro, montar o cavalo que ele tinha à sua guarda. Quando tal acontecia, o nosso homem sentia-se profundamente grato e nunca lhe largava o estribo, considerando-se feliz se porventura conseguia tocar-lhe no vestido.
“Acontecia, porém, com o pobre palafreneiro o que vemos acontecer com muita frequência: quanto menor se torna a esperança, maior se faz o amor. Era-lhe, pois, dolorosíssimo ter de comportar aquele grande desejo que trazia oculto, sem de nenhuma
esperança se ver ajudado. Como não conseguia desprender-se de tal amor, várias vezes tomou a resolução de morrer. Pôs-se a pensar no modo de o fazer e resolveu procurar a morte de forma que ela mostrasse que morria por causa do amor devotado à rainha. Havia de ser dum modo em que ele jogasse a sorte de conseguir o seu desejo no todo ou em parte. Não quis dizer nenhuma palavra à rainha nem escrever-lhe a confessar o seu amor por saber que seria inútil quanto dissesse ou escrevesse, mas resolveu experimentar se poderia por meio de ardil deitar-se com a rainha. Ora não havia outro ardil nem outra via senão encontrar maneira de se fazer passar pelo rei e, sabendo que este não dormia habitualmente com a rainha, conseguir chegar perto dela e entrar-lhe no quarto. Para observar o modo como ia o rei ter com ela e como ia ele vestido, escondeu-se várias vezes durante a noite no salão do palácio real, situado entre o quarto do rei e o quarto da rainha. Numa dessas noites, viu o rei sair do seu quarto envolvido numa grande capa, de vela acesa numa das mãos e na outra um bastão. Dirigiu-se o rei ao quarto da rainha e, sem dizer palavra, bateu uma ou duas vezes à porta do quarto com o bastão. Imediatamente lhe abriram a porta e lhe tiraram a vela da mão. Assistindo àquela cena e igualmente à do regresso, pensou em fazer ele a mesma coisa. Arranjou maneira de obter uma capa igual à que o rei levava, além duma vela e dum macete, tomou um banho bem quente para que o cheiro a estrume não pudesse incomodar a rainha ou levá-la a descobrir o logro e foi ocultar-se com tais objectos no salão, da forma costumada.
Quando sentiu toda a gente a dormir e lhe pareceu que era o momento ou de saciar o seu desejo ou de abrir caminho por uma sublime causa à invocada morte, fez um pouco de lume com a pedra e o aço que trazia, acendeu a vela, ocultou-se bem enrolado na capa, encaminhou-se para a porta do quarto e bateu duas pancadas com o bastão. Toda ensonada, uma aia veio abrir-lhe o quarto, pegou na luz e sumiu-se com ela. Então o homem, sem dizer palavra, passou-se para dentro da cortina, arrumou a capa e meteu-se na cama onde a rainha dormia. Agarrou-a nos braços avidamente e, como sabia ser costume do rei quando estava aborrecido não querer ouvir coisa nenhuma, mostrou-se também ele aborrecido e, sem nada dizer nem nada lhe ser dito, várias vezes conheceu carnalmente a rainha. Ainda que lhe parecesse doloroso ter de partir, receando que a demasiada demora lhe pudesse transformar em tristeza o prazer recebido, levantou-se, tornou a pegar na capa e na vela, foi-se embora sem dizer nada e voltou para a sua cama o mais depressa possível. Mal tinha acabado de lá chegar quando o rei se levantou e foi ao quarto da rainha, que ficou muito espantada. Quando o rei se meteu na cama e a cumprimentou alegremente, ela encorajou-se com aquela alegria e disse: “ó meu senhor, que novidade há esta noite? Acabastes de sair de ao pé de mim depois de haver tomado comigo um prazer como não é costume e agora voltais tão depressa ao mesmo? Vede bem o que estais a fazer.” O rei, quando ouviu tais palavras, imediatamente presumiu que a rainha tinha sido enganada por uma parecença de costumes e de pessoa. Mas, vendo que nem a rainha nem mais ninguém se apercebera, pensou de súbito que seria mais prudente não a esclarecer. Muitos homens estúpidos, em vez de fazerem assim, teriam exclamado: “Não fui eu quem esteve cá. Quem foi então? Para onde foi? Como é que entrou?” Nasceriam daí muitas consequências que o obrigariam a contristar sem razão a esposa e dar-lhe aso para desejar aquilo mesmo que sentira da outra vez. O que nenhuma desonra lhe podia causar por ficar calado, causar-lhe-ia grande ultraje se falasse. Assim o rei, mais perturbado no espírito do que no rosto ou nas palavras, acabou por responder: “Senhora, não vos pareço homem de cá ter estado uma vez e de voltar ainda mais esta?” Retorquiu a dama: “Sim, meu senhor! No entanto, rogo-vos que olheis pela vossa saúde.” Disse então o rei: “Apraz-me seguir o vosso conselho e vou-me embora desta vez sem vos causar mais transtorno.” Com a alma cheia de ira e de ressentimento ao ver aquilo que lhe tinham feito, voltou a pegar na capa, saiu do quarto e decidiu procurar discretamente aquele que fizera uma tal coisa. Imaginava ter sido alguém da casa, e, fosse ele quem fosse, não tinha podido sair dela. Acendeu uma lanterna de luz muito discreta e dirigiu-se a uma extensa camarata que havia no seu palácio, sobre as cavalariças, e onde dormia em diversas camas a maior parte da criadagem. Calculou o rei que o homem que tinha feito o que a rainha contara ainda não devia ter acalmado o pulso nem as pancadas do coração em consequência do labor suportado. Assim, pela calada, começando por um extremo da camarata, foi pondo a mão sobre o peito dos criados para ver se palpitava. Todos eles dormiam profundamente, excepto o que estivera deitado com a rainha. Esse continuava acordado e, mal viu chegar o rei, logo pensou que o vinha procurar e ficou muito assustado, de tal forma que à palpitação do trabalho feito outra maior lhe acrescentou o medo. Ficou firmemente convencido de que o rei o mandaria matar sem demoras se o descobrisse. Embora lhe andassem no espírito várias coisas para dizer, como viu o rei sem arma nenhuma, resolveu fingir-se a dormir e esperar pelo que faria o rei. Este, depois de haver apalpado muitos criados sem encontrar nenhum que pudesse considerar o culpado, chegou ao pé do homem, descobriu que o coração lhe batia fortemente e pensou: “É este.” Mas como não queria que descobrissem alguma coisa do que tencionava fazer, o rei limitou-se apenas a cortar-lhe com uma tesoura que trouxera consigo uma madeixa de cabelo, que, então, era costume usar muito comprido. Seria o sinal para o reconhecer na manhã seguinte. Feito isto, foi-se embora e regressou ao seu quarto. O homem tinha acompanhado tudo e, malicioso como era, percebeu perfeitamente o motivo de ter sido marcado daquela maneira. Sem mais espera, levantou-se, procurou uma tesoura, encontrando por sorte uma que havia na cavalariça para tosquiar os cavalos, cortou a todos da mesma maneira o cabelo sobre as orelhas e, no fim, sem que o tivessem sentido, voltou a deitar-se. O rei levantou-se pela manhã e ordenou que, antes de abrirem as portas do palácio, viessem à sua presença todos os criados. Uma vez diante dele toda a gente de cabeça descoberta, pôs-se a observá-los para descobrir o que ele tosquiara. Quando viu a maior parte deles com os cabelos cortados da mesma maneira, ficou assombrado e disse lá para consigo: “Apesar de ser de vil condição, o homem que eu procuro mostra muito bem que é de inteligência superior.” Vendo depois não conseguir o que procurava sem dar aso a murmúrios e disposto a não adquirir uma grande desonra só por causa duma pequena vingança, resolveu adverti-lo com uma simples palavra e mostrar-lhe ter sabido o que ele fizera. Dirigiu-se, pois, a todos: “Quem fez o que fez não o torne a fazer. Ide-vos com Deus.” Qualquer outro tê-los-ia suspenso da corda, torturado, submetido a exames e interrogatórios e acabaria assim por pôr a descoberto o que antes devia descobrir. Descoberto o autor, mesmo que obtivesse completa vingança, em vez de a diminuir, aumentaria grandemente a sua vergonha e mancharia a honestidade da sua esposa.
“Quantos ouviram aquela palavra do rei ficaram espantados e durante muito tempo perguntaram entre si o que seria que o rei queria dizer com ela. Mas ninguém a entendeu, a não ser aquele que a palavra atingia. Esse, porque era prudente, jamais a revelou enquanto o rei foi vivo, nem mais arriscou a vida noutra empresa como aquela.”
Sob a aparência de confissão e duma puríssima consciência, certa dama enamora-se por um jovem e leva um reverendo frade, sem este se aperceber, a conseguir-lhe maneira de realizar inteiramente o seu desejo (Nota 5) O rancor duma mulher por causa dum casamento que fere o seu orgulho é a mola duma intriga que se desenrola com admirável naturalidade. A sapiência psicológica da heroína não desmerece a de Ciappelletto (I, II). Mas o frade estúpido, com os seus respeitos humanos e com todo o dinheiro que gostosamente vê cair-lhe na mão, ainda que a pretexto de esmola, parece-nos uma figura mais ambígua que a do confessor de Ciappelletto. Desta novela colheu La Fontaine o tema para um conto. (Fim da nota).
Calara-se já Pampínea e a maior parte deles elogiara a ousadia e o expediente do palafreneiro, bem como a sensatez do rei. Então a rainha voltou-se para Filomena e ordenou-lhe que continuasse. Graciosamente, Filomena começou a falar assim:
“Quero contar-vos a partida pregada realmente por uma formosa dama a um reverendo frade. Ela diverte tanto os leigos quanto é certo que os frades, quase todos muito estúpidos e pessoas de maneiras e costumes bizarros, julgam-se valer e saber em tudo mais do que os outros, embora, de facto, tenham de longe muito menos valor e ciência. Por mesquinhez de espírito, como não possuem modo de se impor como os outros homens, refugiam-se onde possam ter comida, tal como o porco. Contarei esta história, simpáticas damas, não só para obedecer ao tema imposto, mas ainda para vos esclarecer de que também os religiosos, a quem demasiado credulamente prestamos muita fé, podem ser e às vezes têm sido astuciosamente enganados não só pelos homens, mas até por algumas de nós.
“Na nossa cidade, mais cheia de enganos do que de amor ou de fé, existiu não são ainda passados muitos anos uma nobre senhora, rica de beleza e de boas maneiras, dotada pela natureza como nenhuma outra de espírito superior e de profunda inteligência. Embora eu saiba o nome dela, bem como o das outras pessoas que entram na história, não os quero revelar, porque algumas ainda são vivas e ficariam muito agastadas pelas vossas gargalhadas sobre o caso. A dama, nascida de alta linhagem, vira-se casada com um fabricante de lanifícios e não conseguia pôr de lado o desprezo da sua alma em relação ao marido pelo facto de ser artesão. Considerava a dama que nenhum homem de baixa condição, por mais rico que ele fosse, podia ser digno duma fidalga e achava que o marido, com todas as suas riquezas, de nada mais era capaz senão de reconhecer a tecedura dum tecido mesclado ou urdir uma teia ou discutir de fiação com uma fiandeira. Decidiu, pois, evitar de todas as maneiras as suas carícias, a não ser quando as não podia negar, e procurar por si mesma um homem que ela achasse mais digno dessas carícias do que um fabricante de lãs. Enamorou-se, então, por um homem de muito valor e de meia-idade. Foi de tal forma que, se um dia o não visse, passava a noite seguinte em angústia. Mas o valoroso homem não se apercebia do facto e não tratou de nada, enquanto ela, por muito cautelosa, não se atrevia a revelar-lhe os seus sentimentos nem por recados de alcoviteira, nem através de carta, receando possíveis riscos no futuro.
“Descobriu, entretanto, a dama que ele se encontrava frequentemente com um religioso, homem muito rotundo e tosco, mas que nem por isso deixava de ter uma vida muito santa e de ser considerado geralmente como um frade virtuosíssimo. Achou que o frade podia ser um óptimo intermediário entre ela e o seu amante e pensou no modo como havia de actuar. Em hora conveniente, dirigiu-se à igreja onde o religioso costumava encontrar-se, mandou-o chamar e disse-lhe que desejava confessar-se a ele quando estivesse disposto. O frade olhou-a e, adivinhando que era fidalga, ouviu-a de boa vontade. No final da confissão,- disse a dama: “Meu padre, preciso de recorrer a vós para ajuda e conselho num caso que ides escutar. Eu sei, porque já vos falei deles, que sabeis quem são os meus pais e o meu marido, que me quer mais do que à sua própria vida. Também sei que não há coisa nenhuma por mim desejada que ele não me ofereça imediatamente, porque é um homem riquíssimo e pode fazer isso muito bem. Amo-o, pois, mais do que a mim própria. Não digo se eu fizesse, mas apenas se eu pensasse nalguma coisa que fosse contra a sua honra ou a sua vontade, nenhuma mulher criminosa mereceria mais a fogueira do que eu. Ora há um certo indivíduo cujo nome em verdade não sei dizer-vos, mas que me parece pessoa de bem e que, se não me engano, convive muito convosco. É um homem de figura elegante e de estatura elevada, que veste roupa cinzenta bastante decorosa. Talvez por não imaginar a minha intenção, parece-me andar a fazer-me a corte. Não posso aparecer à porta ou à janela nem sair de casa sem que ele imediatamente não me surja pela frente. Até me admiro de ele não aparecer agora aqui. Lamento profundamente o que se passa, porque atitudes destas levam muitas vezes as mulheres a ganhar má fama sem terem culpa. Pensei no meu íntimo em dizer alguma coisa aos meus irmãos, mas depois considerei que os homens, às vezes, levam a cabo as missões que lhes são confiadas de modo a obterem más respostas, de onde nasce uma troca de palavras e daí se chega a vias de facto. Foi para não haver males nem escândalos que me calei e resolvi contar tudo antes a vós do que a outrem, quer por me parecer que sois amigo dele, quer ainda porque vos compete criticar sobre estes assuntos não só os amigos mas também os estranhos. Em nome de Deus, rogo-vos que o repreendais e lhe peçais que não volte a assumir tais atitudes. Existem muitas outras mulheres porventura dispostas a essas coisas e que gostarão de ser espiadas e galanteadas por ele, enquanto que a mim só me causa um extremo enfado, pois de modo nenhum tenho a alma disposta para tal matéria.” Dito isto, como se as lágrimas estivessem quase a rebentar-lhe, baixou a cabeça.
“O santo frade percebeu imediatamente de quem realmente ela estava a falar. Elogiou muito a dama pela sua disposição de alma, acreditando firmemente ser verdade o que ela dizia, prometeu-lhe actuar com tal firmeza e jeito que nunca mais o tal indivíduo a incomodaria e, como sabia que ela era muito rica, fez-lhe o elogio das obras de caridade e da esmola, falando-lhe das suas necessidades. A isto a dama respondeu: “É por Deus que tal coisa vos peço; se ele recusar, dizei-lhe sem receio ter sido eu a contar-vos isto e a vir queixar-me junto de vós.” Em seguida, acabou a confissão, recebeu a penitência e, recordando-se das consolações de que lhe falara o frade por obra das esmolas, encheu-lhe a mão às escondidas com moedas e pediu-lhe que celebrasse missas por alma dos seus defuntos. Enfim, pôs-se de pé e voltou para casa.
“Não muito depois, o valoroso homem veio procurar, como de costume, o santo frade. Depois de terem falado um com o outro durante algum tempo disto e daquilo, o frade chamou-o à parte e, duma forma muito delicada, censurou-o pelas intenções e pelos olhares que supunha que ele tinha dirigido à dama, conforme o que esta dera a entender. O bom do homem ficou assombrado, pois nunca a tinha espreitado e raríssimas vezes acontecera passar-lhe diante da casa, e começou a querer desculpar-se. Mas o frade não o deixou falar e disse-lhe: “Ora não estejas a dar ares de assombro nem percas palavras a negar porque não podes. Não soube estes factos pelos vizinhos: foi ela mesma que os veio contar, queixando-se de ti profundamente. Embora estas brincadeiras nunca te fiquem bem, tão só te quero dizer que, se alguma vez encontrei mulher avessa a tais loucuras, foi esta. Por isso, pela tua honra e para sossego dessa dama, peço-te que não continues e que a deixes viver em paz.” O valoroso homem, mais esperto do que o santo frade, não tardou em compreender a argúcia da dama e, mostrando-se bastante arrependido, disse que daí para o futuro nunca mais se intrometeria com ela. Despediu-se do frade e dirigiu-se para a casa da dama, a qual não deixara de estar atenta a uma janelinha para ver se porventura ele passava. Quando o viu aproximar-se, ficou tão feliz e mostrou-se tão graciosa que ele pôde compreender muito bem ser verdade o que percebera através das palavras do frade. A partir daquele dia, muito cautelosamente continuou a passar por aquele bairro com agrado seu e com muitíssimo deleite e consolo para a senhora.
“Passado algum tempo, tendo a dama já percebido que também ela lhe agradava como ele a si, desejosa de o querer excitar ainda mais e de lhe dar a certeza do amor que lhe tinha, escolheu o lugar e o tempo oportuno, voltou a procurar o santo frade e, sentada aos seus pés na igreja, pôs-se a chorar. Ao vê-la assim, o frade perguntou-lhe caridosamente que novidades tinha ela a contar. A dama respondeu: “Meu padre, as novidades que trago não são outras senão as que dizem respeito ao vosso amigo, esse maldito de Deus de quem me queixei outro dia. Até acredito que ele nasceu para meu grande tormento e para me obrigar a fazer alguma coisa que me leve a nunca mais sentir a alegria nem ter a coragem de pôr-me aos vossos pés.” “Como? – disse o frade. – Ele não desistiu de incomodar-te?” “Certamente que não – disse a dama. – Pelo contrário, depois de eu ter vindo queixar-me, levou a mal por despeito que eu me tenha queixado e, por cada vez que costumava passar em frente da minha casa, julgo que depois começou a passar umas sete. E quisesse Deus que passar por lá e espiar-me lhe bastassem. Mas ele foi tão atrevido e tão descarado que ontem chegou ao ponto de mandar uma alcoviteira a minha casa com recados e prendas. Como se eu não possuísse bastantes, mandou-me uma bolsa e um cinto. Senti-me e ainda me sinto tão ofendida que, se eu não olhasse a que é pecado e se não fosse por amor de vós, teria feito o diabo. Mas consegui dominar-me e não quis fazer nem dizer coisa nenhuma sem primeiro vos consultar. Além disso, tendo eu já devolvido a bolsa e o cinto à mulherzinha, para ela lhos dar de novo e tendo-a despedido com rudeza, receei que ela ficasse com as coisas e lhe fosse dizer que eu as aceitara, como sei que às vezes costumam fazer. Voltei a chamá-la e, muito zangada, tirei-lhe as coisas da mão e vim aqui trazê-las para que sejais vós a devolver-lhas e lhe digais que não preciso das ofertas dele. Graças a Deus e ao meu marido, tenho tantas bolsas e tantos cintos que o podia afogar debaixo deles. Agora peço-vos desculpa como a um pai, mas, se ele não desistir, di-lo-ei ao meu marido e aos meus irmãos, haja o que houver. Prefiro, muito mais, que seja ele a receber afronta, se for necessário, do que ser eu a merecer reprovação por causa dele. Reverendo, é assim que está bem!” Dito isto, enquanto continuava a chorar copiosamente, tirou de baixo da capa uma lindíssima e rica bolsa e um belo e valioso cinto e atirou-os para o regaço do frade. Este acreditou plenamente no que a dama dizia, agarrou naqueles objectos, e extremamente irritado declarou: “Filhinha, não me admiro nem te posso censurar se te queixas dessas coisas; antes, louvo-te muito por teres seguido o meu conselho. No outro dia repreendi-o, mas ele, afinal, não cumpriu o que me prometeu. Por isso, pelas coisas que voltou novamente a fazer, estou convencido de que lhe irei aquecer de tal maneira as orelhas que ele não voltará a dar-te mais cuidados. E tu, com a bênção de Deus, não te deixes levar tanto pela ira, porque, se fosses contar a algum dos teus, poderia acontecer-te demasiado mal. Nem receies que alguma vez te venha daí qualquer reprovação, pois que eu serei sempre diante de Deus e dos homens uma inabalável testemunha da tua honestidade.” A dama fingiu conformar-se um pouco, deixou aquela conversa e, por conhecer bem a cupidez do frade e dos outros, disse: “Senhor, nas últimas noites apareceram-me vários dos meus parentes e parece-me que eles estão sofrendo penas muito dolorosas e que apenas suplicam esmolas, sobretudo a minha mãe, a qual me parece tão aflita e tão mísera que é um dó vê-la. Penso que ela sofre muitíssimo por me ver na tribulação em que me põe esse inimigo de Deus. Por isso, quero que digais pelas suas almas as quarenta missas de São Gregório (Nota 6) Devoção muito espalhada (o frade logo a confirmará com muitos exemplos) e destinada a salvar uma alma do purgatório mediante a intercessão de S. Gregório Magno, o famoso papa {590-604) que se dizia ter salvo do inferno a alma de Trajano (cf. Dante Purg., X, pp. 7 e segs.) (Fim da nota) e algumas orações vossas para que Deus as retire do fogo dos tormentos.” Dizendo isto, pôs-lhe na mão um florim. O santo frade agarrou a moeda jubilosamente e com boas palavras e muitos exemplos corroborou a devoção da dama, deu-lhe a bênção e deixou-a ir-se embora.
“Logo que a dama partiu e sem se aperceber da armadilha, o frade mandou chamar o amigo. Quando este veio e viu o frade irritado, imediatamente supôs haver notícias da dama e esperou o que o frade queria dizer. O religioso repetiu-lhe as palavras anteriormente ditas, falou-lhe novamente dum modo indignado e magoado, censurou-o profundamente por aquilo que a dama lhe dissera que ele tinha feito. O valoroso homem, ainda sem perceber aonde queria chegar o frade, ia recusando de forma pouco convincente ter mandado a bolsa e o cinto, para que o frade não deixasse de acreditar no caso de a dama lhe haver dado aqueles objectos. Mas o frade irritou-se bastante e disse: “Como podes tu negar, homem malvado? Aqui está o que ela mesma veio trazer-me chorando: vê lá se conheces!” O valoroso homem mostrou-se muito envergonhado e disse: “Sim, conheço e confesso-vos que fiz mal. Agora juro-vos que, uma vez que a sei com tal disposição, nunca mais ouvireis falar do assunto.” A conversa prolongou-se e, por fim, o estúpido frade entregou ao amigo a bolsa e o cinto, aconselhando-o muito e pedindo-lhe que não voltasse a cuidar de tais coisas. Depois de o amigo ter prometido, mandou-o embora. O valoroso homem, felicíssimo tanto pela certeza que lhe parecia ter quanto ao amor da dama, como pelo magnífico presente, logo que deixou o frade dirigiu-se a um local de onde pôde mostrar discretamente à sua dama que tinha os dois objectos. A dama ficou muito contente, sobretudo por lhe parecer que o seu estratagema ia de bem a melhor. A única coisa que esperava era que o marido saísse para qualquer lado, a fim de ela poder concluir o trabalho. De facto, não muito depois disto, aconteceu que o marido teve de ir a Génova por qualquer motivo. Mal pela manhã ele montou a cavalo e partiu, logo a dama foi procurar o frade e, depois de muitas queixas, disse-lhe chorando: “Meu padre, agora é que vos posso bem dizer que não aguento mais. Mas como, outro dia, vos prometi não fazer nada sem falar primeiro convosco, vim pedir-vos perdão. Para que vejais como tenho razão de chorar e de lamentar-me, quero contar-vos o que o vosso amigo, antes um diabo do inferno, me fez esta manhã, pouco antes de matinas. Não sei que má ventura o levou a saber que o meu marido tinha partido ontem de manhã para Génova. O que sei é que esta manhã, à hora que vos disse, ele entrou num meu jardim e trepou por uma árvore até à janela do meu quarto que dá para os jardins. Já tinha aberto a janela e ia para entrar no quarto quando acordei e me levantei imediatamente. Pus-me a gritar e continuaria se ele, que ainda não entrara, não me tivesse pedido perdão por amor de Deus e de vós, dizendo-me quem era. Então eu, quando o ouvi, calei-me por amor de vós e, nua como vim ao mundo, corri a fechar-lhe a janela na cara. Julgo que ele foi para o diabo, pois não o senti mais. Ora vede lá vós se isto é uma coisa bonita e de aturar. Por mim tenciono não lhe suportar mais nada. Até já lhe suportei demasiado por amor de vós.” O frade, quando ouviu aquilo, tornou-se o homem mais furioso do mundo e não sabia que dizer. Apenas lhe perguntou repetidas vezes se ela reparara bem ter sido ele e não outro. Respondeu-lhe a dama: “Deus seja louvado se eu ainda não o consigo distinguir de qualquer outro! Digo-vos que foi ele e, mesmo que negasse, não o acrediteis.” Disse, então, o frade: “Filhinha, não há outra coisa a dizer senão que foi demasiado atrevimento e coisa muitíssimo mal feita e fizeste o que tinhas a fazer ao mandá-lo embora. Mas quero pedir-te, já que Deus te guardou da vergonha, que sigas o meu conselho como já seguiste duas vezes: não te queixes a nenhum dos teus parentes e deixa-me tratar a mim do assunto para ver se consigo refrear esse diabo à solta que eu supunha ser um santo. Se conseguir fazer de tal modo que o arranque a essa brutalidade, tanto melhor; se nada conseguir, desde já te digo que faças com a minha bênção aquilo que a tua alma achar ser bem feito.” “Ainda por esta vez – disse a dama – não vos quero deixar aborrecido nem desobedecer. Mas esforçai-vos para que ele não volte mais a incomodar-me, que eu prometo nunca mais voltar a procurar-vos por esta causa.” Sem dizer mais nada e mostrando-se irritada, deixou o frade e abalou.
“Mal a dama tinha acabado de sair da igreja, apareceu o valoroso homem. O frade chamou-o e, levando-o à parte, disse-lhe as piores injúrias que jamais foram ditas a um homem, chamando--lhe desleal, perjuro e traidor. O homem, que já por duas vezes vira o que significavam as críticas do frade, pôs-se...
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