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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DESAFIA-ME
DESAFIA-ME

 

 

                                                                                                                                                

 

 

 

 

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

CONTINUA

Minha respiração fica presa na minha garganta com um suspiro quase audível. Uma única lágrima escapa pela minha bochecha e eu a limpo, mesmo quando olho para ele. Eu não posso ajudar, não posso desviar o olhar. Ele tem o tipo de cara que eu nunca vi na vida real. Ele é mais bonito que o comandante. Mais bonito. Ainda assim, há algo desconcertante sobre ele, algo frio e estranho em seu rosto que o torna difícil de olhar. Ele é quase perfeito demais. Ele tem um queixo afiado e maçãs do rosto afiadas e um nariz pontudo e reto. Tudo sobre ele me lembra uma lâmina. Seu rosto está pálido. Seus olhos são de um verde deslumbrante e claro, e ele tem um rico cabelo dourado. E ele está olhando para mim, seus olhos arregalados com uma emoção que não consigo decifrar.

Uma garganta limpa.

O feitiço está quebrado.

Calor inunda meu rosto e eu desvio meus olhos, mortificado Eu não desviei o olhar mais cedo.

Eu ouço o comandante resmungar com raiva em voz baixa.

— Inacreditável — diz ele. — Sempre a mesma coisa.

Eu olho para cima.

— Aaron — diz ele bruscamente. — Saia.

O garoto – seu nome deve ser Aaron – se assusta. Ele olha para o comandante por um segundo e depois olha para a porta. Mas ele não se move.

— Delalieu, por favor, escolte meu filho do quarto, pois ele parece incapaz de lembrar como mover as pernas.

O filho dele.

Uau. Isso explica o rosto.

— Sim, senhor, claro, senhor.

A expressão de Aaron é impossível de ler. Eu o pego olhando para mim, só mais uma vez, e quando ele me vê encarando, ele franze a testa. Não é um olhar indelicado.

Ainda assim, eu me afasto.

Ele e Delalieu passam por mim quando saem e eu finjo não notar quando o ouço sussurrar...

— Quem é ela?

... quando eles se afastam.

— Ella? Você está bem?

Eu pisco, lentamente limpando a teia de escuridão obscurecendo minha visão. Estrelas explodem e desaparecem por trás dos meus olhos e eu tento me levantar, o tapete pressionando impressões de pipoca em minhas palmas, metal cavando em minha carne. Eu estou usando algemas, punhos brilhantes que emitem uma luz azul suave que tira a vida da minha pele, faz minhas próprias mãos parecerem sinistras.

A mulher na minha porta está olhando para mim. Ela sorri.

— Seu pai e eu achamos que você pode estar com fome — diz ela. — Nós fizemos o jantar.

Eu não posso me mexer. Meus pés parecem aparafusados no lugar, os rosas e roxos das paredes e pisos me agredindo de todos os cantos. Estou no meio do bizarro museu do que provavelmente foi meu quarto de infância – olhando para o que poderia ser minha mãe biológica – e sinto que posso vomitar. As luzes são de repente muito brilhantes, as vozes muito altas. Alguém caminha na minha direção e o movimento parece exagerado, os passos batendo forte e rápido em meus ouvidos. Minha visão entra e sai e as paredes parecem tremer. O chão se desloca, se inclina para trás.

Eu caio com força no chão.

Por um minuto, eu não ouço nada além do meu batimento cardíaco. Alto, tão alto, pressionando-me, me agredindo com uma cacofonia de som tão perturbador que me dobrei, pressionei meu rosto no tapete e gritei.

Eu sou histérica, meus ossos tremem em minha pele, e a mulher me pega, me enrola e eu rasgo, ainda gritando...

— Onde está todo mundo? — Eu grito. — O que está acontecendo comigo? — Eu grito. — Onde estou? Onde estão Warner e Kenji e ah meu Deus, ah meu Deus, todas essas pessoas, todas aquelas pessoas que eu matei...

O vômito sobe pela minha garganta, me sufocando, e eu tento reprimir as imagens, as horríveis imagens aterrorizantes de corpos abertos, sangue serpenteando por cordas de carne mal rasgada e algo perfura minha mente, algo agudo e ofuscante e de repente eu Estou de joelhos, levantando o conteúdo escasso do meu estômago em uma cesta rosa.

Eu mal posso respirar.

Meus pulmões estão sobrecarregados, meu estômago ainda está ameaçando me trair, e eu estou ofegante, minhas mãos tremendo enquanto tento me levantar. Eu giro ao redor, a sala se movendo mais rápido do que eu, e vejo apenas flashes de rosa, flashes de roxo.

Eu balanço

Alguém me pega de novo, desta vez novos braços, e o homem que me chama de filha me segura como se eu fosse sua filha e ele diz:

— Querida, você não precisa mais pensar neles. Você está segura agora.

— Segura? — Eu volto, olhos selvagens. — Quem é Você...?

A mulher pega minha mão. Aperta meus dedos enquanto me liberto de seu aperto.

— Eu sou sua mãe — diz ela. — E eu decidi que é hora de você voltar para casa.

— O que... — eu pego dois punhados de sua camisa. — O que você fez com meus amigos? — Eu grito. E então eu a sacudo, sacudo ela com tanta força que ela realmente parece assustada por um segundo, e então eu tento pegá-la e jogá-la na parede, mas lembro, com um começo, que meus poderes foram cortados, que eu tenho confiar na mera raiva e adrenalina e eu me viro, de repente furiosa, sentindo-me mais segura no segundo em que comecei a ter alucinações, alucinações, quando

inesperadamente

ela me dá um tapa na cara.

Duro.

Eu pisco, atordoado, mas consigo ficar de pé.

— Ella Sommers — ela diz bruscamente. — Você vai se recompor. — Seus olhos brilham enquanto ela me avalia. — O que é esse comportamento ridículo e dramático? Preocupada com seus amigos? Essas pessoas não são seus amigos.

Minha bochecha queima e metade da minha boca parece dormente, mas eu digo:

— Sim, sim, eles são meus...

Ela me bate de novo.

Meus olhos se fecham. Reabro. Sinto-me subitamente tonta.

— Nós somos seus pais — diz ela em um sussurro áspero. — Seu pai e eu te trouxemos para casa. Você deveria ser grata.

Eu sinto sangue. Eu alcanço, toco meu lábio. Meus dedos saem vermelhos.

— Onde está Emmaline? — Sangue está acumulando na minha boca e eu cuspo, no chão. — Você também a sequestrou? Ela sabe o que você fez? Que você nos doou para o restabelecimento? Vendeu nossos corpos para o mundo?

Um terceiro tapa rápida.

Eu sinto isso tocar no meu crânio.

— Como você se atreve. — O rosto da minha mãe fica vermelho. — Como você se atreve... Você não tem ideia do que nós construímos, todos esses anos – Os sacrifícios que fizemos para o nosso futuro...

— Agora, Evie — meu pai diz, e coloca uma mão calmante em seu ombro. — Tudo vai ficar bem. Ella só precisa de um pouco de tempo para se estabelecer, isso é tudo. Ele olha para mim. — Não é verdade, Ella?

Isso me atinge então, naquele momento. Tudo. Isso me atinge de repente, com uma força assustadora e desestabilizadora...

Fui raptada por um par de malucos e talvez nunca mais veja meus amigos. Na verdade, meus amigos podem estar mortos. Meus pais podem tê-los matado. Todos eles.

A realização é como sufocamento.

Lágrimas enchem minha garganta, minha boca, meus olhos.

— Onde — eu digo, meu peito arfando. — Está Warner? O que você fez com ele?

A expressão de Evie é repentinamente assassina.

— Você e aquele maldito garoto. Se eu tiver que ouvir o nome dele mais uma vez...

— Onde está Warner? — Estou gritando de novo. — Onde ele está? Onde está o Kenji? O que você fez com eles?

Evie parece subitamente esgotada. Ela aperta a ponte do nariz entre o polegar e o indicador.

— Querido — ela diz, mas ela não está olhando para mim, ela está olhando para o meu pai. — Você vai lidar com isso, por favor?

Eu tenho uma dor de cabeça terrível e vários telefonemas urgentes para retornar.

— Claro, meu amor. — E ele puxa uma seringa do bolso e esfaqueia-a, rapidamente, no meu pescoço.


Kenji

A sala comum está realmente crescendo em mim.

Eu costumava passar o tempo todo, e me pergunto por que a Warner pensou que precisávamos de uma sala comum desse tamanho. Há toneladas de assentos e muito espaço para se espalhar, mas eu sempre achei que era um desperdício de espaço. Eu secretamente desejei que Warner tivesse usado a metragem quadrada de nossos quartos.

Agora eu entendi.

Quando Nazeera e eu entramos, dez minutos atrasados para a festa da pizza improvisada, todo mundo está aqui. Brendan está aqui. Ele está sentado em um canto sendo fustigado por Castle e Alia, e eu quase o enfrento. Não, claro, porque é óbvio que ele ainda está em recuperação, mas fico aliviado ao descobrir que ele está bem. Na maioria das vezes ele parece torcido, mas ele não está usando uma tipóia nem nada, então eu acho que as garotas não tiveram nenhum problema quando estavam remendando ele. Isso é um ótimo sinal.

Eu vejo Winston andando pela sala e eu o alcanço, bato nas costas dele.

— Ei — eu digo, quando ele se vira. — Você está bem?

Ele está equilibrando um par de pratos de papel, os quais já estão cedendo sob o peso de muita pizza, e ele sorri com todo o seu rosto quando diz:

— Eu odeio hoje. Hoje é um incêndio de lixo. Eu odeio tudo sobre hoje, exceto pelo fato de que Brendan está bem e temos pizza. Fora isso, hoje pode ir direto para o inferno.

— Sim. Eu sinto muito isso. — E então, depois de uma pausa, eu digo baixinho: — Então, eu estou supondo que você nunca teve essa conversa com Brendan, hein?

Winston fica de repente rosa.

— Eu disse que estava esperando o momento certo. Este parece ser o momento certo para você?

— Bom ponto. — Eu suspiro. — Eu acho que estava apenas esperando que você tivesse boas notícias. Todos nós poderíamos usar algumas boas notícias agora mesmo.

Winston me lança um olhar simpático.

— Nenhuma palavra sobre Juliette?

Eu sacudo minha cabeça. Sinto-me subitamente doente.

— Alguém lhe disse que seu nome verdadeiro é Ella?

— Eu ouvi — diz Winston, levantando as sobrancelhas. — Essa história toda é besteira.

— Sim — eu digo. — Hoje é o pior.

— Foda-se hoje — diz Winston.

— Não se esqueça do amanhã — eu digo. — Amanhã vai ser horrível também.

— O que? Por quê? — Os pratos de papel nas mãos de Winston estão ficando translúcidas com graxa de pizza. — O que está acontecendo amanhã?

— A última vez que ouvi que estaríamos pulando do navio — eu digo. — Correndo por nossas vidas. Eu estou supondo que vai ser terrível.

— Merda. — Winston quase deixa cair seus pratos. — Sério? Brendan precisa de mais tempo para descansar. — Então, depois de uma pausa: — Para onde estamos indo?

— Para o outro lado do continente, aparentemente — diz Ian enquanto se aproxima.

Ele me entrega um prato de pizza. Eu murmuro um rápido agradecimento e olho para a pizza, me perguntando se eu seria capaz de enfiar a coisa toda na minha boca de uma só vez. Provavelmente não.

— Você sabe de alguma coisa que não sabemos? — Diz Winston a Ian, com os óculos escorregando pela ponta do nariz. Winston tenta, sem sucesso, empurrá-los de volta com o antebraço, e Ian se aproxima para fazer isso por ele.

— Eu sei muitas coisas que você não sabe — diz Ian. — A primeira delas é que Kenji estava definitivamente se conectando com Nazeera, cinco segundos atrás.

Minha boca quase se abre antes que eu me lembre de que há comida nela. Eu engulo muito rápido e engasgo. Ainda tusso enquanto olho em volta, em pânico de que a Nazeera possa estar ao alcance da voz. Só quando a vejo do outro lado da sala falando com Sonya e Sara eu finalmente relaxo.

Eu olho para Ian.

— Que diabos tem de errado com você?

Winston, pelo menos, tem a decência de sussurrar quando ele diz:

— Você estava ficando com a Nazeera? Nós só saímos algumas horas!

— Eu não fiquei com Nazeera — eu minto.

Ian dá uma mordida na pizza.

— Seja como for, mano. Nenhum julgamento. O mundo está em chamas. Se divirta.

— Nós não... — eu suspiro, olho para longe. — Não foi assim. é nem nada. Nós estávamos apenas, tipo... — Faço um gesto aleatório com a mão que significa exatamente nada.

Ian levanta as sobrancelhas.

— Ok — diz Winston, atirando-me um olhar. — Nós vamos falar sobre a coisa da Nazeera mais tarde. — Ele se vira para Ian. — O que está acontecendo amanhã?

— Nós saímos — diz Ian. — Esteja pronto para ir de madrugada.

— Certo, ouvi essa parte — diz Winston, — mas para onde estamos indo?

Ian encolhe os ombros.

— Castle tem a notícia — diz ele. — Isso é tudo que eu ouvi. Ele estava esperando que Kenji e Nazeera colocassem suas roupas de volta antes de contar a todos os detalhes.

Eu inclino minha cabeça para Ian, ameaçando-o com um único olhar.

— Nada está acontecendo comigo e Nazeera — eu digo. — Esqueça.

— Tudo bem — diz ele, pegando sua pizza. — Faz sentido. Quer dizer, ela nem é tão bonita assim.

Meu prato cai da minha mão. Pizza bate no chão. Sinto uma necessidade súbita e indesejada de dar um soco no rosto de Ian.

— Você está... você está fora de si? Nem mesmo... ela é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida, e você está aqui dizendo que ela nem é tão bonita? Você já...

— Veja o que estou dizendo? — Ian me interrompe. Ele está olhando para Winston.

— Uau — diz Winston, olhando solenemente para a pizza no chão. — Sim, Kenji é definitivamente cheio de merda.

Eu arrasto a mão pelo meu rosto.

— Eu odeio vocês.

— De qualquer forma — diz Ian, — ouvi dizer que as notícias de Castle têm algo a ver com Nouria.

Minha cabeça se levanta de novo.

Nouria.

Eu quase esqueci. Esta manhã, pouco antes do simpósio, as gêmeas me disseram que haviam descoberto algo – algo a ver com o veneno nas balas que Juliette tinha levado – que as levaram de volta a Nouria.

Mas muita coisa aconteceu hoje e eu nunca tive a chance de acompanhar. Descobrir o que aconteceu.

— Você ouviu sobre isso? — Ian me pergunta, levantando uma sobrancelha. — Ela enviou uma mensagem, aparentemente. É o que as garotas estão dizendo.

— Sim — eu digo e franzo a testa. — Eu ouvi.

Eu honestamente não tenho ideia de como isso pode ser resolvido.

Faz pelo menos dez anos desde a última vez em que Castle viu sua filha, Nouria. Darrence e Jabari, seus dois filhos, foram assassinados por policiais quando se recusaram a deixar os homens entrarem em suas casas sem um mandado. Isso foi antes que O Restabelecimento assumisse.

Castle não estava em casa naquele dia, mas Nouria estava.

Ela assistiu isso acontecer. Castle disse que sentiu como se tivesse perdido três filhos naquele dia. Nouria nunca se recuperou. Em vez disso, ela se destacou. Apática. Ela parou de chegar em casa no horário normal e então – um dia – ela desapareceu. O Restabelecimento sempre escolhia crianças da rua e as despachava onde quer que sentissem necessidade de encher. Nouria foi coletada contra sua vontade; pega e empacotada para outro setor. Castle sabia com certeza que isso aconteceu, porque O Restabelecimento lhe enviou um recibo para sua filha. Um recibo de merda.

Todos do Ponto conheciam a história de Castle. Ele sempre fez um esforço para ser honesto, para compartilhar as memórias mais difíceis e dolorosas de sua vida, para que o resto de nós não sentisse que estávamos sofrendo sozinhos.

Castle achou que nunca mais veria Nouria.

Então, se ela está chegando agora...

Só então, Castle me chama a atenção. Ele olha para mim e depois para Nazeera. Uma sugestão de um sorriso toca seus lábios e então se vai, sua espinha reta enquanto ele se dirige ao quarto. Ele parece bem, eu percebo. Ele parece brilhante, vivo como eu não o vejo há anos. Seus bloqueios são puxados para trás, amarrados na base de seu pescoço. Seu desbotado blazer azul ainda lhe cabe perfeitamente, mesmo depois de todos esses anos.

— Eu tenho novidades — diz ele.

Mas tenho certeza que sei o que vem a seguir.

Nouria vive no Setor 241, a milhares de quilômetros de distância, e a comunicação intersetorial é quase inédita. Apenas os grupos rebeldes são corajosos o suficiente para arriscar o envio de mensagens codificadas pelo continente. Ian e Winston sabem disso. Eu sei isso.

Todo mundo sabe disso.

O que significa que Castle provavelmente está aqui para nos dizer que Nouria foi desonesta.

Ha.

Tal pai, tal filha.


Warner

— Oi — eu digo.

Ela se vira ao som da minha voz e se assusta quando ela vê meu rosto. Seus olhos se arregalam. E eu sinto isso imediatamente quando as emoções dela mudam.

Ela é atraída por mim.

Ela é atraída por mim e a revelação me deixa feliz. Eu não sei porque. Não é novidade. Eu aprendi, há muito tempo, que muitas pessoas me acham atraente. Homens. Mulheres. Especialmente mulheres mais velhas, um fenômeno que eu ainda não entendo. Mas isso...

Isto me faz feliz. Ela me acha atraente.

— Oi — ela diz, mas ela não olha para mim.

Eu percebo que ela está corando. Estou surpreso. Há algo doce nela, algo gentil e doce que eu não estava realmente esperando.

— Você está indo bem? — Eu pergunto.

É uma pergunta estúpida. A garota está claramente em uma posição horrível. Agora ela está apenas sob nossa custódia enquanto for preciso para que meu pai decida o que fazer com ela. Ela está atualmente em uma instalação de alojamento bastante confortável aqui na base, mas ela provavelmente acabará em um centro de detenção juvenil. Não tenho certeza. Eu ouvi meu pai falar sobre fazer mais testes nela primeiro. Seus pais são aparentemente histéricos, desesperados por nós a aceitarmos e lidarmos com ela. Oferecer um diagnóstico. Eles acham que ela matou o menino de propósito. Eles acham que a filha deles é louca.

Eu acho que ela parece bem.

Melhor que bem.

Eu não consigo parar de olhar para ela. Meus olhos percorrem seu rosto mais de uma vez, estudando seus traços com cuidado. Ela parece tão familiar para mim, como se eu pudesse tê-la visto antes. Talvez em um sonho.

Eu estou ciente, mesmo quando penso, que meus pensamentos são ridículos.

Mas eu fui atraído para cá, magnetizado para ela por algo além do meu controle. Eu sei que não deveria ter vindo. Eu não tenho nenhum negócio falando com ela, e se meu pai me encontrasse aqui, ele provavelmente iria me matar. Mas eu tentei, por dias, esquecer o rosto dela, e não consegui. Eu tento dormir à noite e sua semelhança se materializa na escuridão. Eu precisava vê-la novamente.

Eu não sei como defender isso.

Finalmente, ela fala e eu me liberto do meu devaneio. Eu me lembro de ter feito uma pergunta a ela.

— Sim, obrigada — diz ela, com os olhos no chão. — Eu estou bem.

Ela está mentindo.

Eu quero que ela olhe para cima, para encontrar meus olhos. Ela não faz, e eu acho isso frustrante.

— Você vai olhar para mim? — Eu digo.

Isso funciona bem o suficiente.

Mas quando ela me olha diretamente nos olhos, sinto meu coração ir de repente, terrivelmente imóvel. Uma batida pulada. Um momento de morte.

E depois...

Rápido. Meu coração está acelerado demais.

Eu nunca entendi a minha capacidade de estar ciente dos outros, mas muitas vezes me serviu bem. Na maioria dos casos, isso me oferece uma vantagem. Neste caso, é nada menos que esmagador.

Agora, tudo está me atingindo duas vezes mais. Sinto dois conjuntos de emoções... as dela e as minhas, as duas entrelaçadas. Parece que estamos sentindo as mesmas coisas ao mesmo tempo. É desorientador, tão inebriante que mal consigo recuperar o fôlego. Sinto um desejo surpreendente de tocá-la. Eu quero...

— Por quê? — Ela diz.

Eu pisco.

— O que?

— Por que você quer que eu olhe para você?

Eu respiro. Limpo minha cabeça, considero minhas opções. Eu poderia dizer a verdade. Eu poderia dizer uma mentira. Eu poderia ser evasivo, mudar de assunto.

Finalmente, eu digo:

— Eu te conheço?

Ela ri e olha para longe.

— Não — diz ela. — Definitivamente não.

Ela morde o lábio e eu sinto seu nervosismo repentino, ouço o pico de sua respiração. Eu me aproximo dela quase sem perceber.

Ela olha para mim e percebo, com uma emoção, o quão perto estamos. Há um calor palpável entre nossos corpos, e seus olhos são grandes e bonitos, verde azulados. Como o globo, eu acho. Como o mundo inteiro.

Ela está olhando para mim e de repente me sinto desequilibrado.

— O que há de errado? — Ela diz.

Eu tenho que me afastar dela.

— Eu não... — Eu olho para ela novamente. — Tem certeza de que não te conheço?

E ela sorri. Sorri para mim e meu coração se despedaça.

— Confie em mim — diz ela. — Eu me lembraria de você.


Kenji

Delalieu.

Não acredito que nos esquecemos de Delalieu.

Eu pensei que as notícias de Castle seriam sobre Nouria. Eu pensei que ele ia nos dizer que ela estendeu a mão para dizer que ela era uma líder de resistência sofisticada agora, que seríamos bem-vindos para ficar em sua casa por um tempo. Em vez disso, as notícias de Castle era...

Delalieu.

Ele entra em cena.

Castle fica de lado e permite que o tenente entre na sala, e embora pareça rígido e fora de lugar, Delalieu parece genuinamente chateado. Eu sinto isso, como um soco no estômago, no momento em que vejo seu rosto. Luto.

Ele limpa a garganta duas ou três vezes.

Quando ele finalmente fala, sua voz é mais firme do que eu já ouvi.

— Eu vim para tranquilizá-los — diz ele. — Em pessoa, que vou garantir que o seu grupo permaneça seguro aqui, pelo tempo que eu conseguir. — Uma pausa. — Eu não sei ainda exatamente o que está acontecendo agora, mas sei que não pode ser bom. Estou preocupado que não acabe bem se vocês ficarem, e eu estou comprometido em ajudá-los enquanto vocês planejam sua fuga.

Todo mundo está quieto.

— Hm, obrigado — eu digo, quebrando o silêncio. Eu olho ao redor da sala quando digo: — Nós realmente apreciamos isso. Mas quanto tempo nós temos?

Delalieu balança a cabeça.

— Receio não poder garantir sua segurança por mais de uma semana. Mas espero que o descanso de alguns dias lhe dê o tempo necessário para descobrir seus próximos passos. Encontrar um lugar seguro para ir. Enquanto isso, fornecerei a assistência que puder.

— Ok — diz Ian, mas ele parece cético. — Isso é realmente... generoso.

Delalieu pigarreia novamente.

— Deve ser difícil saber se você deve confiar em mim. Eu entendo suas preocupações. Mas temo que fiquei em silêncio por muito tempo — diz ele, sua voz perdendo sua firmeza. — E agora, com... com o que aconteceu com Warner e com a senhorita Ferrars... — Ele para, com a voz quebrando na última palavra. Ele olha para cima, me olha nos olhos. — Eu tenho certeza que Warner nunca disse a nenhum de vocês que eu sou seu avô.

Meu queixo cai aberto. De verdade, cai aberto.

Castle é a única pessoa na sala que não parece chocada.

— Você é o avô de Warner? — Adam diz, ficando de pé. O olhar aterrorizado em seus olhos quebra meu coração.

— Sim — diz Delalieu em voz baixa. — Do lado de sua mãe. — Ele encontra os olhos de Adam, reconhecendo, silenciosamente, que ele sabe. Sabe que Adam é filho ilegítimo de Anderson. Que ele sabe tudo.

Adam se senta de novo, um alívio aparente em seu rosto.

— Eu só posso imaginar a vida infeliz que você deve ter tido — diz Brendan. Eu me viro para olhá-lo, surpreso ao ouvir sua voz. Ele está tão quieto todo esse tempo. Mas então, claro, Brendan seria compassivo. Mesmo para alguém como Delalieu, que se afastou e não disse nada enquanto Anderson incendiava o mundo. — Mas agradeço, todos somos gratos — diz Brendan, — pela sua ajuda hoje.

Delalieu consegue sorrir.

— É o mínimo que posso fazer — diz ele, e se vira para ir.

— Você a conhece? — Lily diz, sua voz aguda. — Como Ella?

Delalieu congela no lugar, ainda meio virado para a saída.

— Porque se você é avô de Warner — diz Lily, — e você tem trabalhado com Anderson por tanto tempo, você deve tê-la conhecido.

Lentamente, muito devagar, Delalieu se vira para nos encarar. Ele parece tenso, nervoso como se nunca vi. Ele não diz nada, mas a resposta está escrita em todo o seu rosto. A contração nas mãos dele.

Jesus.

— Quanto tempo? — Eu digo, raiva crescendo dentro de mim. — Quanto tempo você a conhece e não disse nada?

— Eu não.. eu n... não...

— Quanto tempo? — Eu digo, minha mão já alcançando a arma enfiada no cós da minha calça.

Delalieu dá um passo brusco para trás.

— Por favor, não — diz ele, com os olhos selvagens. — Por favor, não peça isso de mim. Eu posso te dar ajuda. Eu posso te fornecer armas e transporte – qualquer coisa que você precise... mas eu não posso... você não entende...

— Covarde — diz Nazeera, levantando-se. Ela parece impressionante, alta, forte e firme. Eu amo assistir aquela garota se mexer. Conversar. Respirar. Tanto faz. — Você assistiu e não disse nada enquanto Anderson torturava seus próprios filhos. Não foi?

— Não — Delalieu diz desesperadamente, seu rosto corando com emoção que eu nunca vi nele antes. — Não, isso não é...

Castle pega uma cadeira com um único movimento da mão e a joga sem a menor cerimônia na frente de Delalieu.

— Sente-se — ele diz, uma raiva violenta e desprevenida piscando em seus olhos.

Delalieu obedece.

— Quanto tempo? — Eu digo novamente. — Há quanto tempo você a conhece como Ella?

— Eu... eu tenho... — Dalelieu hesita, olha em volta — Eu conheço Ella... desde que ela era uma criança — ele diz finalmente.

Eu sinto o sangue deixar meu corpo.

Sua confissão clara e explícita é demais. Isso significa muito. Eu corto sob o peso disso – as mentiras, as conspirações. Eu afundo de volta na minha cadeira e meu coração se despedaça por Juliette, por tudo que ela sofreu nas mãos das pessoas destinadas a protegê-la. Eu não posso formar as palavras que preciso dizer a Delalieu que ele é um pedaço de merda sem valor. É Nazeera que ainda tem a presença de espírito para lançá-lo.

Sua voz é suave – letal – quando fala.

— Você conhece Ella desde criança — diz Nazeera. — Você esteve aqui, trabalhando aqui, ajudando Anderson desde que Ella era criança. Isso significa que você ajudou Anderson a colocá-la sob a custódia de pais adotivos abusivos e você ficou ao lado enquanto a torturavam, enquanto Anderson a torturava repetidamente...

— Não — exclama Delalieu. — Eu não aceitei nada disso. Ella deveria crescer em um ambiente doméstico normal. Ela deveria ter pais carinhosos e uma educação estável. Esses foram os termos que todos concordaram...

— Besteira — diz Nazeera, com os olhos piscando. — Você sabe tão bem quanto eu que seus pais adotivos eram monstros...

— Paris mudou os termos do acordo — grita Delalieu com raiva.

Nazeera levanta uma sobrancelha, indiferente.

Mas algo parece ter soltado a língua de Delalieu, algo como medo ou culpa ou raiva acumulada, porque de repente as palavras saem correndo dele.

— Paris voltou a sua palavra assim que Ella estava sob sua custódia — diz ele. — Ele achou que ninguém descobriria. Naquela época, ele e eu éramos os mesmos, no que diz respeito à posição, no Restabelecimento. Muitas vezes trabalhamos juntos por causa de nossos laços familiares e, como resultado, ficamos a par das escolhas que ele fez.

Delalieu balança a cabeça.

— Mas descobri tarde demais que ele propositadamente escolheu pais adotivos que exibiam comportamento abusivo e perigoso. Quando o confrontei, ele argumentou que qualquer abuso que Ella sofresse nas mãos de seus pais substitutos só encorajaria seus poderes a se manifestarem, e ele tinha as estatísticas para apoiar sua reivindicação. Tentei expressar minhas preocupações – relatei a ele; eu disse ao conselho de comandantes que ele estava machucando-a, quebrando-a – mas ele fez minhas preocupações soarem como o desesperado histrionismo de alguém que não estava disposto a fazer o que era necessário para a causa.

Eu posso ver a cor subindo pelo pescoço de Delalieu, sua raiva mal contida.

— Eu fui repetidamente rejeitado. Rebaixado. Fui punido por questionar suas táticas. Mas eu sabia que Paris estava errado — diz ele em voz baixa. — Ella murchou. Quando a conheci ela era uma garota forte com um espírito alegre. Ela foi infalivelmente gentil e otimista. — Ele hesita. — Não demorou muito para que ela ficasse fria e fechada. Retirada Paris subiu na posição rapidamente, e logo fui relegado a pouco mais que a mão direita. Fui eu quem ele enviou para verificar ela em casa, na escola. Recebi ordens para monitorar seu comportamento, escrever os relatórios descrevendo seu progresso. Mas não houve resultados. Seu espírito havia sido quebrado. Eu implorei a Paris para colocá-la em outro lugar – para, no mínimo, devolvê-la a uma instalação regular, que eu poderia supervisionar pessoalmente – e ainda insistia, repetidamente, que o abuso que ela sofreria estimularia resultados. — Delalieu está de pé agora, andando de um lado para o outro. — Ele esperava impressionar o conselho, esperando que seus esforços fossem recompensados com mais uma promoção. Logo se tornou sua tarefa única de esperar, para que eu assistisse Ella de perto, por desenvolvimentos, por qualquer sinal de que ela tivesse mudado. Evoluído. — Ele para no lugar. Engole, duro. — Mas Paris foi descuidado.

Delalieu deixa cair a cabeça nas mãos.

A sala ao nosso redor ficou tão quieta que quase posso ouvir os segundos passarem. Estamos todos esperando que ele continue, mas ele não levanta a cabeça. Eu estou estudando ele – suas mãos trêmulas, o tremor em suas pernas, sua perda geral de compostura – e meu coração martela no meu peito. Eu sinto que ele está prestes a quebrar. Como se ele estivesse perto de nos contar algo importante.

— O que você quer dizer? — Eu digo em voz baixa. — Descuidado como?

Delalieu olha para cima, com os olhos avermelhados e selvagens.

— Quero dizer que era o seu único trabalho — diz ele, batendo com o punho contra a parede. Ele bate com força, os nós dos dedos quebrando o gesso e, por um momento, estou genuinamente atordoado. Eu não achava que Delalieu tinha isso nele. — Você não entende — diz ele, perdendo o fogo. Ele tropeça para trás e afunda-se contra a parede. — Meu maior arrependimento na vida foi ver essas crianças sofrerem e não fazerem nada a respeito.

— Espere — diz Winston. — Quais crianças? De quem você está falando?

Mas Delalieu não parece ouvi-lo. Ele só balança a cabeça.

— Paris nunca levou a tarefa de Ella a sério. Foi culpa dele que ela perdeu o controle. Era culpa dele que ela não soubesse mais, era culpa dele não ter sido preparada, treinada ou mantida adequadamente. Foi culpa dele que ela matou aquele garotinho — ele diz, agora tão quebrado que sua voz está tremendo. — O que ela fez naquele dia quase a destruiu. Quase arruinou toda a operação. Quase nos expôs ao mundo.

Ele fecha os olhos e pressiona os dedos nas têmporas. E então ele afunda em sua cadeira. Ele parece desimpedido.

Castle e eu compartilhamos um olhar conhecedor do outro lado da sala. Algo está acontecendo. Algo está prestes a acontecer.

Delalieu é um recurso que nunca percebemos que tínhamos. E, apesar de todos os seus protestos, parece que ele quer conversar. Talvez Delalieu seja a chave. Talvez ele possa nos dizer o que precisamos saber... sobre tudo. Sobre Juliette, sobre Anderson, sobre O Restabelecimento. É óbvio que uma represa se rompeu em Delalieu. Eu só espero que possamos mantê-lo falando.

É Adam quem diz:

— Se você odiava tanto Anderson, por que você não o impediu quando teve a chance?

— Você não entende? — Delalieu diz, seus olhos grandes e redondos e tristes. — Eu nunca tive a chance. Eu não tinha autoridade e só fomos votados no poder. Leila – minha filha – estava mais doente a cada dia e eu estava... eu não era eu mesmo. Eu estava me desfazendo. Eu suspeitava de um crime em sua doença, mas não tinha provas. Passei minhas horas de trabalho supervisionando a saúde mental e física de uma jovem inocente, e passei minhas horas livres vendo minha filha morrer.

— Essas são desculpas — diz Nazeera friamente. — Você era um covarde.

Ele olha para cima.

— Sim — diz ele. — Isso é verdade. Eu era um covarde. — Ele balança a cabeça e se afasta. — Eu não disse nada, nem mesmo quando Paris transformou a tragédia de Ella em uma vitória. Ele disse a todos que o que Ella fez com aquele menino foi uma bênção disfarçada. Isso, na verdade, era exatamente o que ele estava trabalhando. Ele argumentou que o que ela fez naquele dia, independentemente das consequências, foi a manifestação exata de seus poderes que ele esperava o tempo todo. — Delalieu parece subitamente doente. — Ele fugiu com tudo. Tudo o que ele sempre quis, o foi dado. E ele sempre foi imprudente. Ele fez um trabalho preguiçoso, o tempo todo usando Ella como um peão para satisfazer seus próprios desejos sádicos.

— Por favor, seja mais específico — Castle diz friamente. — Anderson tinha muitos desejos sádicos. A que você está se referindo?

Delalieu fica pálido. Sua voz é mais baixa, mais fraca, quando ele diz:

— Paris sempre foi perversamente afeiçoado a destruir seu próprio filho. Eu nunca entendi isso. Eu nunca entendi sua necessidade de quebrar aquele garoto. Ele o torturou de mil maneiras diferentes, mas quando Paris descobriu a profundidade da ligação emocional de Aaron com Ella, ele usou para levar aquele garoto para perto da loucura.

— É por isso que ele atirou nela — eu digo, lembrando o que Juliette – Ella – me disse depois que o Ponto Ômega foi bombardeado. — Anderson queria matá-la para ensinar uma lição à Warner. Certo?

Mas algo muda no rosto de Delalieu. Transforma ele, afunda ele. E então ele ri – uma risada triste e quebrada.

— Você não entende, você não entende, você não entende — ele chora, balançando a cabeça. — Você acha que esses eventos recentes são tudo. Você acha que Aaron se apaixonou por sua amiga há alguns meses, uma garota rebelde chamada Juliette. Você não sabe. Você não sabe. Você não sabe que Aaron está apaixonado por Ella pela maior parte de sua vida inteira. Eles se conhecem desde a infância.

Adam faz um som. Um som atordoado de descrença.

— Ok, eu tenho que ser honesto... eu não entendo — diz Ian. Ele rouba um olhar cauteloso para Nazeera antes de dizer: — Nazeera disse que Anderson está limpando suas memórias. Se isso é verdade, então como Warner poderia estar apaixonado por ela por tanto tempo? Por que Anderson limparia suas memórias, contaria a todos sobre como eles se conheciam e então apagaria suas memórias de novo?

Delalieu está balançando a cabeça. Um sorriso estranho começa a se formar em seu rosto, o tipo de sorriso trêmulo e aterrorizado que não é um sorriso.

— Não. Não. Você não... — Ele suspira, olha para o lado. — Paris nunca contou a nenhum deles sobre sua história compartilhada. A razão pela qual ele tinha que continuar limpando suas memórias era porque não importava quantas vezes ele redefiniu a história ou refez as apresentações... Aaron sempre se apaixonou por ela. Toda vez. No começo, Paris achou que era um acaso. Ele achou quase engraçado. Divertido. Mas quanto mais aconteceu, mais começou a enlouquecer Paris. Ele pensou que havia algo errado com Aaron... que havia algo errado com ele em um nível genético, que ele tinha sido atormentado por uma doença. Ele queria esmagar o que ele via como uma fraqueza.

— Espere — Adam diz, levantando as mãos. — O que você quer dizer, quanto mais aconteceu? Quantas vezes isso aconteceu?

— Pelo menos várias vezes.

Adam parece em estado de choque.

— Eles se conheceram e se apaixonaram várias vezes?

Delalieu respira fundo.

— Eu não sei se eles sempre se apaixonaram, exatamente.

Paris raramente os deixa passar tanto tempo sozinhos. Mas eles sempre foram atraídos juntos. Era óbvio que, toda vez que ele os colocava na mesma sala, eles ficavam tipo... — Delalieu junta as mãos — ...ímãs.

Delalieu balança a cabeça para Adam.

— Sinto muito por ser o único a lhe dizer tudo isso. Tenho certeza que é doloroso ouvir, especialmente considerando sua história com Ella. Não é justo que você tenha entrado nos jogos de Paris. Ele nunca deveria ter...

— Whoa, whoa... espere. Que jogos? — Adam diz, atordoado. — Do que você está falando?

Delalieu passa a mão pela testa suada. Parece que ele está derretendo, desmoronando sob pressão. Talvez alguém devesse pegar um pouco de água.

— Há muito — diz ele, cansado. — Muito para contar. Muito para explicar. — Ele balança a cabeça. — Me desculpe eu...

— Eu preciso que você tente — Adam diz, seus olhos brilhando. — Você está dizendo que nosso relacionamento era falso? Que tudo o que ela disse... tudo o que ela sentia era falso?

— Não — Delalieu diz rapidamente, mesmo quando ele usa a manga da camisa para limpar o suor do rosto. — Não. Tanto quanto sei, os sentimentos dela por você eram tão reais quanto qualquer outra coisa. Você entrou em sua vida em um momento particularmente difícil, e sua gentileza e afeto, sem dúvida, significaram muito para ela. — Ele suspira. — Eu só quero dizer que não foi coincidência que ambos os garotos de Paris se apaixonaram pela mesma garota. Paris gostava de brincar com as coisas. Ele gostava de abrir as coisas para estudá-las. Ele gostava de experimentos. E Paris coloca você e Warner um contra o outro de propósito.

— Ele plantou o soldado em sua mesa de almoço que deixou escapar que Warner estava monitorando uma garota com um toque letal. Ele enviou outro para falar com você, para perguntar sobre sua história com ela, para apelar à sua natureza protetora, discutindo os planos de Aaron para ela – você se lembra? Você foi persuadido, de todos os ângulos, a se candidatar à posição. Quando você o fez, Paris retirou seu pedido da pilha e incentivou Aaron a entrevistá-lo. Ele então deixou claro que você deveria ser escolhido como companheiro de cela dela. Deixou Aaron pensar que estava tomando todas as suas próprias decisões como CCR do Setor 45 – mas Paris estava sempre lá, manipulando tudo. Eu assisti isso acontecer.

Adam parece tão atordoado que leva um momento para falar.

— Então... ele sabia? Meu pai sempre soube de mim? Sabia onde eu estava, o que eu estava fazendo?

— Sabia? — Delalieu franze a testa. — Paris orquestrou suas vidas. Esse foi o plano, desde o começo. — Ele olha para Nazeera. — Todos os filhos dos comandantes supremos deveriam se tornar estudos de caso. Você foi projetado para ser soldado. Você e James — ele diz para Adam, — foram inesperados, mas ele fez planos para vocês também.

— O que? — Adam fica branco. — Qual é o plano dele para mim e James?

— Isso, eu sinceramente não sei.

Adam senta na cadeira, parecendo de repente doente.

— Onde está Ella agora? — Diz Winston bruscamente. — Você sabe onde eles estão mantendo ela?

Delalieu balança a cabeça.

— Tudo o que sei é que ela não pode estar morta.

— O que você quer dizer com ela não pode estar morta? — Eu pergunto. — Por que não?

— Os poderes de Ella e Emmaline são críticos para o regime — diz ele. — Críticos à continuação de tudo em que trabalhamos. O Restabelecimento foi construído com a promessa de Ella e Emmaline. Sem elas, a Operação Síntese não significa nada.

Castle se ergue. Seus olhos estão arregalados.

— Operação Síntese — diz ele sem fôlego, — tem a ver com Ella?

— O Arquiteto e o Executor — diz Delalieu. — Isto...

Delalieu recua com um pequeno e surpreso suspiro, a cabeça batendo nas costas da cadeira. Tudo, de repente, parece desacelerar.

Eu sinto meu ritmo cardíaco lento. Eu sinto o mundo lento. Eu me sinto formado a partir da água, observando a cena se desenrolar em câmera lenta, quadro a quadro.

Uma bala entre os olhos.

Sangue escorrendo pela testa.

Um grito curto e agudo.

— Seu filho da puta traidor — diz alguém.

Eu estou vendo, mas eu não acredito.

Anderson está aqui.


Juliette

Não tenho explicações.

Meu pai não me convida para jantar, como Evie prometeu. Ele não senta comigo para me oferecer longas histórias sobre a minha presença ou a dele; ele não revela informações inovadoras sobre a minha vida ou sobre os outros comandantes supremos, ou mesmo sobre as quase seiscentas pessoas que acabei de assassinar. Ele e Evie estão agindo como se os horrores dos últimos dezessete anos nunca tivessem acontecido. Como se nada de estranho tivesse acontecido, como se eu nunca tivesse deixado de ser sua filha – não da maneira que importa, de qualquer forma.

Eu não sei o que estava nessa seringa, mas os efeitos são diferentes de tudo que eu já experimentei. Eu me sinto acordada e adormecida, como se estivesse girando no lugar, como se houvesse muita gordura girando as rodas no meu cérebro e eu tento falar e percebo que meus lábios não se movem mais no comando. Meu pai carrega meu corpo flácido para uma sala incrivelmente prata, me apoia em uma cadeira, me prende, e o pânico entra em mim, quente e aterrorizante, inundando minha mente. Eu tento gritar. Falho. Meu cérebro está lentamente se desconectando do meu corpo, como se eu estivesse sendo removida de mim mesmo. Apenas funções básicas e instintivas parecem funcionar. Engolir. Respirar..

Chorar.

Lágrimas caem baixinho pelo meu rosto e meu pai assobia uma melodia, seus movimentos leves e fáceis, mesmo quando ele faz um gotejamento intravenoso. Ele se move com uma eficiência tão surpreendente que nem percebo que ele removeu minhas algemas até ver o bisturi.

Um flash de prata.

A lâmina é tão afiada que ele não encontra resistência enquanto corta linhas limpas em meus antebraços e sangue, sangue, pesado e quente, derrama nos meus pulsos e nas minhas palmas abertas e não parece real, nem mesmo quando ele apunhala várias fios na minha carne exposta.

A dor chega apenas alguns segundos depois.

Dor.

Começa aos meus pés, floresce nas minhas pernas, se desenrola no meu estômago e sobe pela minha garganta apenas para explodir atrás dos meus olhos, dentro do meu cérebro, e eu grito, mas só na minha mente, minhas mãos inúteis ainda frouxas nos apoios de braços, e tenho tanta certeza de que ele vai me matar...

mas então ele sorri.

E então ele se foi.

Eu deito em agonia pelo que parecem horas.

Eu assisto, através de uma névoa delirante, como o sangue escorre das pontas dos meus dedos, cada gota alimentando as piscinas vermelhas que crescem nas dobras das minhas calças. Visões me assaltam, memórias de uma garota que eu poderia ter sido, cenas com pessoas que eu poderia conhecer. Eu quero acreditar que elas são alucinações, mas eu não posso ter mais certeza de nada. Eu não sei se Max e Evie estão plantando coisas na minha mente. Eu não sei se posso confiar em qualquer coisa que eu já acreditei em mim.

Eu não consigo parar de pensar em Emmaline.

Estou à deriva, suspensa em uma piscina de insensatez, mas alguma coisa nela continua puxando, despertando meus nervos, correntes errantes me empurrando para a superfície de alguma coisa – uma revelação emocional – que treme para existir apenas para evaporar, segundos depois, como se pudesse estar com medo de existir.

Isso continua e continua e continua e continua Anos luz.

Eternidades.

de novo

e

de novo

sussurros de clareza

s u s p i r o s d e o x i g ê n i o

e eu sou jogada de volta ao mar.

Brilhantes luzes brancas piscam acima da minha cabeça, zumbindo em uníssono com o zumbido baixo e constante de motores e unidades de resfriamento. Tudo cheira bem, como antisséptico. A náusea faz minha cabeça nadar. Eu fecho meus olhos, o único comando que meu corpo vai obedecer.

Eu e Emmaline no zoológico

Eu e Emmaline, primeira viagem em um avião

Eu e Emmaline, aprendendo a nadar

Eu e Emmaline, cortando o cabelo

Imagens de Emmaline preenchem minha mente, momentos dos primeiros anos de nossas vidas, detalhes de seu rosto que eu nunca soube que poderia evocar. Eu não entendo isso. Eu não sei de onde eles estão vindo. Eu só posso imaginar que Evie colocou essas imagens aqui, mas por que Evie quer que eu veja isso, eu não entendo. Cenas tocam na minha cabeça como se eu estivesse folheando um álbum de fotos, e elas me fazem sentir falta da minha irmã. Eles me fazem lembrar de Evie como minha mãe. Fazem-me lembrar que eu tinha uma família.

Talvez Evie queira que eu relembre.

Meu sangue bate no chão. Eu ouço isto, o gotejamento familiar, o som como uma torneira quebrada, o lento

toque

toque

de líquido tépido na telha.

Emmaline e eu demos as mãos em todos os lugares que fomos, muitas vezes vestindo roupas combinando. Nós tínhamos o mesmo cabelo castanho longo, mas os olhos dela eram puro azul, e ela era alguns centímetros mais alta que eu. Tínhamos apenas um anos de diferença, mas ela parecia muito mais velha. Mesmo assim, havia algo em seus olhos que parecia duro. Sério. Ela segurou minha mão como se estivesse tentando me proteger. Como se talvez ela soubesse mais do que eu.

Onde está você? Eu me pergunto. O que eles fizeram com você?

Eu não tenho ideia de onde estou. Não faço ideia do que eles fizeram comigo. Nenhuma ideia da hora ou do dia e dor em todo lugar. Eu me sinto como um fio vivo, como se meus nervos tivessem sido grampeados para o lado de fora do meu corpo, sensíveis a cada mudança de minuto no ambiente. Eu exalo e isso dói. Mexo e tira o meu fôlego.

E então, em um flash de movimento, minha mãe retorna.

A porta se abre e o movimento força uma suave corrente de ar para dentro do quarto, um sussurro de uma brisa suave, mesmo enquanto roça minha pele, e de alguma forma a sensação é tão insuportável que tenho certeza que vou gritar.

Eu não grito.

— Está se sentindo melhor? — Ela diz.

Evie está segurando uma caixa de prata. Eu tento olhar mais de perto, mas a dor está em meus olhos agora. Cauterizando.

— Você deve estar se perguntando por que você está aqui — diz ela suavemente. Eu a ouço trabalhando em algo, vidro e metal tocando juntos, desmoronando, tocando juntos, desmoronando. — Mas você deve ser paciente, passarinho. Você pode nem conseguir ficar.

Eu fecho meus olhos.

Eu sinto seus dedos frios e finos no meu rosto apenas alguns segundos antes de ela puxar minhas pálpebras para cima. Rapidamente, ela substitui seus dedos com afiados grampos de aço, e eu consigo apenas um som baixo e gutural de agonia.

— Mantenha seus olhos abertos, Ella. Agora não é hora de adormecer.

Mesmo assim, naquele momento doloroso e aterrorizante, as palavras soam familiares. Estranho e familiar. Eu não consigo descobrir o porquê.

— Antes de fazermos planos concretos para mantê-la aqui, preciso ter certeza... — ela puxa um par de luvas de látex. — ...Que você ainda é viável. Ver como você resistiu depois de todos esses anos.

Suas palavras enviam ondas de medo correndo por mim.

Nada mudou.

Nada mudou.

Eu ainda não sou mais que um receptáculo. Meu corpo troca mãos troca mãos em troca do que...

Minha mãe não tem amor por mim.

O que ela fez com a minha irmã?

— Onde está Emmaline? — Eu tento gritar, mas as palavras não saem da minha boca. Elas se expandem em minha cabeça, explosivas e raivosas, pressionando contra os cumes da minha mente, mesmo quando meus lábios se recusam a me obedecer.

Morrendo.

A palavra me ocorre de repente, como se fosse algo que eu acabei de lembrar, a resposta para uma pergunta que eu esqueci existia.

Eu não entendo isso.

Evie está na minha frente novamente.

Ela toca meu cabelo, vasculha os fios curtos e grosseiros como se estivesse procurando ouro. O contato físico é excruciante.

— Inaceitável — diz ela. — Isso é inaceitável.

Ela se afasta, faz anotações em um tablet que ela tira do jaleco. Aproximadamente, ela pega meu queixo na mão, levanta meu rosto para o dela.

Evie conta meus dentes. Corre a ponta de um dedo ao longo das minhas gengivas. Ela examina o interior das minhas bochechas, a parte inferior da minha língua. Satisfeita, ela rasga as luvas, o látex faz sons duros que colidem e ecoam, quebrando o ar ao meu redor.

Um ronronar mecânico enche meus ouvidos e percebo que Evie está ajustando minha cadeira. Eu estava anteriormente em uma posição reclinada, agora estou deitada de costas. Ela leva um par de tesouras para minhas roupas, cortando direto minhas calças, minha camisa, minhas mangas.

O medo ameaça rasgar meu peito, mas só me deito ali, um vegetal perfeito, enquanto ela me desnuda.

Finalmente, Evie recua.

Eu não vejo o que está acontecendo. O zumbido de um motor se transforma em um rugido. Soa como tesoura, cortando o ar. E então: Folhas de vidro se materializam nas bordas da minha visão, movem-se para mim de todos os lados. Eles se encaixam facilmente, costuras fechadas com um som de clique legal.

Estou sendo queimada viva.

Calor como nunca soube, fogo que não consigo ver nem parar. Eu não sei como isso está acontecendo, mas eu sinto isso. Eu sinto o cheiro. O cheiro de carne queimada enche meu nariz, ameaça derrubar o conteúdo do meu estômago. A camada superior da pele está sendo lentamente queimada do meu corpo. Grânulos de sangue ao longo do meu corpo como o orvalho da manhã, e uma fina névoa segue o calor, limpeza e resfriamento. O vapor enevoa o vidro ao meu redor e, em seguida, quando eu penso que posso morrer de dor, as fissuras de vidro se abrem com um suspiro repentino.

Eu gostaria que ela simplesmente me matasse.

Em vez disso, Evie é meticulosa. Ela cataloga todos os meus detalhes físicos, fazendo anotações, constantemente, em seu tablet de bolso. Na maioria das vezes, ela parece frustrada com sua avaliação. Meus braços e pernas estão muito fracos, ela diz. Meus ombros muito tensos, meu cabelo muito curto, minhas mãos muito cicatrizadas, minhas unhas também lascadas, meus lábios também rachados, meu torso longo demais.

— Nós fizemos você muito bonita — diz ela, balançando a cabeça para o meu corpo nu. Ela cutuca meus quadris, as solas dos meus pés. — A beleza pode ser uma arma aterrorizante, se você souber usá-la. Mas tudo isso parece profundamente desnecessário agora. — Ela faz outra anotação.

Quando ela olha para mim de novo, ela parece pensativa.

— Eu dei isso para você — diz ela. — Você entende? Este contêiner em que você vive. Eu formei, modelei. Você pertence a mim. Sua vida pertence a mim. É muito importante que você entenda isso.

Raiva, afiada e quente, queima meu peito.

Com cuidado, Evie abre a caixa de prata. Dentro há dezenas de cilindros de vidro finos.

— Você sabe o que são? — Diz ela, levantando alguns frascos de líquido branco brilhante. — Claro que você não sabe.

Evie me estuda por um tempo.

— Nós fizemos errado na primeira vez — ela finalmente diz. — Não esperávamos que a saúde emocional substituísse o físico de maneira tão dramática. Nós esperávamos mentes mais fortes, de vocês duas. É claro que... — Evie hesita. — Ela era o espécime superior, sua irmã. Infinitamente superior. Você sempre foi um pouco de olhos de criança. Um pouco mais lunar do que eu gostaria. Emmaline, por outro lado, era puro fogo. Nós nunca sonhamos que ela se deterioraria tão rapidamente. Seus fracassos foram uma grande decepção pessoal.

Eu inalo agudamente e engasgo com algo quente e molhado na minha garganta. Sangue. Tanto sangue.

— Mas então — Evie diz com um suspiro, — essa é a situação. Nós devemos ser adaptáveis ao inesperado. Receptivos para mudar quando necessário.

Evie aperta um botão e algo se apaga dentro de mim. Eu sinto minha espinha endireitar, meu queixo fica frouxo. O sangue agora está borbulhando na minha garganta de verdade, e eu não sei se vou desistir ou engoli-lo. Eu tusso violentamente e sangue espirra no meu rosto. Meus braços. Pinga meu peito, minha pele rosa fresca.

Minha mãe se agacha. Ela pega meu queixo na mão e me força a olhar para ela.

— Você está muito cheia de emoção — diz ela suavemente. — Você sente muito por este mundo. Você chama as pessoas de seus amigos. Você se imagina apaixonada. — Ela balança a cabeça devagar. — Esse nunca foi o plano para você, passarinho. Você foi feita para uma existência solitária. Nós a colocamos em isolamento de propósito. — Ela pisca. — Você entende?

Mal estou respirando. Minha língua parece áspera e pesada, estranha na minha boca. Eu engulo meu próprio sangue e é revoltante, grosso e morno, gelatinoso com saliva.

— Se Aaron fosse filho de outra pessoa — ela diz, — eu o teria executado. Eu o teria executado agora, se pudesse. Infelizmente, eu não tenho autoridade.

Uma força de sentimento agarra meu corpo.

Eu sou meio horror, meio alegria. Eu não sabia que tinha alguma esperança de que Warner estivesse vivo até esse momento.

O sentimento é explosivo.

Ele se enraíza dentro de mim. A esperança pega fogo no meu sangue, um sentimento mais poderoso que essas drogas, mais poderoso que eu. Agarro-me a ela de todo o coração e, de repente, sinto as minhas mãos. Eu não sei porque ou como, mas sinto uma força silenciosa subir pela minha espinha.

Evie não percebe.

— Eu lamento nossos erros — ela está dizendo. — Eu lamento os descuidos que parecem tão óbvios agora. Nós não poderíamos saber há tantos anos que as coisas acabariam assim. Nós não esperamos ser surpreendidos por algo tão frágil quanto suas emoções. Nós não poderíamos saber, no início, que as coisas aumentariam dessa forma. Paris — ela diz, — convenceu a todos de que trazer você para a base do setor 45 seria benéfico para todos nós, que ele seria capaz de monitorar você em um novo ambiente repleto de experiências que motivariam seus poderes a evoluir. Seu pai e eu pensamos que era um plano estúpido, ainda mais estúpido para colocá-lo sob a supervisão direta de um garoto de 19 anos com quem sua história era... complicada. — Ela olha para longe. Sacode a cabeça. — Mas Anderson entregou resultados. Com Aaron, você progrediu em um ritmo com o qual nós apenas sonhamos, e fomos forçados a deixar isso acontecer. Ainda assim, — ela diz. — Isso saiu pela culatra.

Seus olhos permanecem, por um momento, na minha cabeça raspada.

— Há poucas pessoas, mesmo em nosso círculo interno, que realmente entendem o que estamos fazendo aqui. Seu pai entende. Ibrahim entende. Mas Paris, por razões de segurança, nunca contamos a ele tudo sobre você. Ele ainda não era um comandante supremo quando lhe demos o emprego e decidimos mantê-lo informado de acordo com a necessidade de saber. Outro erro. — Evie diz, sua voz triste e aterrorizante.

Ela pressiona as costas da mão na testa.

— Seis meses e tudo desmorona. Você foge. Você se junta a alguma gangue ridícula. Você arrasta Aaron para tudo isso e Paris, o tolo alheio, tenta matar você. Duas vezes. Eu quase cortei sua garganta por sua idiotice, mas minha misericórdia pode muito bem ter sido por nada, com sua tentativa de assassiná-lo. Ah, Ella, — ela diz e suspira. — Você me causou muitos problemas este ano. A papelada sozinha. — Ela fecha os olhos. — Eu tive a mesma dor de cabeça por seis meses.

Ela abre os olhos. Olha para mim há muito tempo.

— E agora — ela diz, apontando para mim com o tablet na mão. — Tem isso. Emmaline precisa ser substituída, e não temos certeza se você é uma substituta adequada. Seu corpo está operando com talvez sessenta e cinco por cento de eficiência, e sua mente é um desastre completo. — Ela para. Uma veia salta na testa dela. — Talvez seja impossível para você entender como estou me sentindo agora. Talvez você não se importe em saber a profundidade das minhas decepções. Mas você e Emmaline são o trabalho da minha vida. Fui eu quem encontrou uma maneira de isolar o gene que estava causando transformações generalizadas na população. Fui eu quem conseguiu recriar a transformação. Fui eu quem reescreveu seu código genético. — Ela franze a testa para mim, parecendo, pela primeira vez, como uma pessoa real. Sua voz suaviza. — Eu refiz você, Ella. Você e sua irmã foram as maiores realizações da minha carreira. Seus fracassos — ela sussurra, tocando as pontas dos dedos no meu rosto. — São meus fracassos.

Eu faço um som áspero e involuntário.

Ela se levanta.

— Isso vai ser desconfortável para você. Eu não vou fingir de outra forma. Mas temo que não temos escolha. Se isso funcionar, precisarei que você tenha uma mente saudável e não poluída. Temos que começar de novo. Quando terminarmos, você não se lembrará de nada além do que eu digo para você lembrar. Você entende?

Meu coração aperta e ouço suas batidas erráticas e selvagens amplificadas em um monitor próximo. Os sons ecoam pela sala como uma sirene.

— Sua temperatura está aumentando — diz Evie bruscamente. — Não há necessidade de pânico. Essa é a opção misericordiosa. Paris ainda está clamando para matar você, afinal. Mas Paris... — ela hesita, — Paris pode ser melodramático. Todos nós sabemos o quanto ele te odeia pelo seu efeito em Aaron. Ele culpa você, você sabe. — Evie inclina a cabeça para mim. — Ele acha que você faz parte do motivo pelo qual Aaron é tão fraco. Honestamente, às vezes me pergunto se ele está certo.

Meu coração está batendo rápido demais agora. Meus pulmões estão prontos para explodir. As luzes brilhantes acima da minha cabeça sangra nos meus olhos, no meu cérebro...

— Agora. Vou fazer o download desta informação — ouço ela tocar na caixa de prata. — Diretamente na sua mente. São muitos dados para processar e seu corpo precisará de algum tempo para aceitar tudo. — Uma longa pausa. — Sua mente pode tentar rejeitar isso, mas cabe a você deixar as coisas seguirem o seu curso, entendeu? Não queremos arriscar emendar o passado e o presente. É doloroso nas primeiras horas, mas se você conseguir sobreviver a essas primeiras horas, seus receptores de dor começarão a falhar, e o restante dos dados deverá ser enviado sem incidentes.

Eu quero gritar.

Em vez disso, eu faço um som fraco e asfixiante. Lágrimas escorrem pelas minhas bochechas e minha mãe está lá, com os dedos pequenos e estranhos no meu rosto, e eu vejo, mas não consigo sentir, a agulha enorme entrando na carne macia da minha têmpora. Ela esvazia e reabastece a seringa o que parece mil vezes, e cada vez é como estar submergido debaixo d'água, como se eu estivesse me afogando lentamente, sufocando uma e outra vez e nunca me permitindo morrer. Eu me deito ali, indefesa e muda, pega em uma agonia tão insuportável que eu não respiro mais, mas grosa, quando ela se inclina sobre mim para assistir.

— Você está certa — ela diz suavemente. — Talvez isso seja cruel. Talvez teria sido mais gentil simplesmente deixar você morrer. Mas isso não é sobre você, Ella. Isso é sobre mim. E agora — ela diz, acariciando meu cabelo. — É disso que eu preciso.


Kenji

A coisa toda acontece tão rapidamente que me leva um segundo para registrar exatamente o que aconteceu.

Delalieu está morto.

Delalieu está morto e Anderson está vivo.

Anderson está de volta dos mortos.

Quero dizer, agora ele está no chão, enterrado sob o peso de cada peça de mobília nesta sala. Castle olha, atentamente, do outro lado do espaço, e quando ouço Anderson ofegando, percebo que Castle não está tentando matá-lo; ele está apenas usando os móveis para contê-lo.

Eu me aproximo da multidão formando em torno da figura ofegante de Anderson. E então noto, com um sobressalto, que Adam está encostado na parede como uma estátua, o rosto congelado de horror.

Meu coração se parte por ele.

Estou tão feliz por Adam ter arrastado James para a cama horas atrás. Tão feliz que o garoto não precisa ver nada disso agora.

Castle finalmente atravessa a sala. Ele está parado a poucos metros de distância da figura de Anderson quando ele faz a pergunta que todos estamos pensando:

— Como você ainda está vivo?

Anderson tenta um sorriso. Sai torto. Louco.

— Você sabe o que sempre foi tão bom em você, Castle? — Ele diz o nome de Castle como se fosse engraçado, como se ele estivesse dizendo em voz alta pela primeira vez. Ele toma um fôlego apertado e desigual. — Você é tão previsível. Você gosta de coletar animais perdidos. Você ama uma boa história triste.

Anderson grita com uma exalação súbita e áspera, e percebo que Castle provavelmente aumentou a pressão. Quando Anderson recupera o fôlego, ele diz:

— Você é um idiota. Você é um idiota por confiar tão facilmente.

Outro suspiro duro e doloroso.

— Quem você acha que me chamou aqui? — Ele diz, lutando para falar agora. — Quem você acha que me manteve informado... — outra respiração tensa. — De todas as coisas que você tem discutido?

Eu congelo.

Uma sensação horrível e doentia se acumula no meu peito.

Nós todos nos voltamos, como um grupo, para encarar a Nazeera. Ela está se destacando de todos os outros, a personificação da intensidade calma e coletada. Ela não tem expressão no rosto. Ela olha para mim como se eu fosse uma parede.

Por uma fração de segundo eu me sinto tão tonto que acho que posso desmaiar de verdade.

Pensamento desejoso;

É isso... é isso que faz. Uma sala cheia de pessoas extremamente poderosas e, no entanto, é este momento, este breve momento de choque, que acaba com todos nós. Eu sinto a agulha no meu pescoço antes mesmo de registrar o que está acontecendo, e tenho apenas alguns segundos para examinar o quarto – vislumbrando o horror nos rostos dos meus amigos – antes que eu caia.


Warner

Estou sentado no meu escritório ouvindo um disco antigo quando recebo a ligação. Eu me preocupo, a princípio, que possa ser Lena, implorando para eu voltar para ela, mas meu sentimento de repulsa rapidamente se transforma em ódio quando ouço a voz na linha. Meu pai. Ele me quer lá embaixo.

O simples som de sua voz me enche de uma sensação tão violenta que me leva um minuto para me controlar.

Dois anos atrás.

Dois anos se tornando o monstro que meu pai sempre quis que eu fosse. Eu olho no espelho, me odeio com uma intensidade nova e profunda que eu nunca tinha experimentado antes. Toda manhã eu acordo esperando apenas morrer. Para acabar com esta vida, com estes dias.

Ele sabia, quando ele fez esse acordo, o que ele estava me pedindo para fazer. Eu não sabia. Eu tinha dezesseis anos, ainda jovem o suficiente para acreditar na esperança, e ele se aproveitou da minha ingenuidade. Ele sabia o que isso faria comigo. Ele sabia que iria me quebrar. E foi tudo que ele sempre quis.

Minha alma.

Eu vendi minha alma por alguns anos com minha mãe, e agora, depois de tudo, eu nem sei se valerá a pena. Eu não sei se vou conseguir salvá-la. Eu estive longe por muito tempo. Eu senti muita falta. Minha mãe está pior agora e nenhum médico conseguiu ajudá-la. Nada ajudou. Meus esforços foram piores do que fúteis.

Eu desisti de tudo... por nada.

Eu gostaria de saber como esses dois anos me mudariam. Eu gostaria de saber o quão difícil seria viver comigo mesmo, olhar no espelho. Ninguém me avisou sobre os pesadelos, os ataques de pânico ou os pensamentos sombrios e destrutivos que se seguiriam. Ninguém me explicou como a escuridão funciona, como se banqueteia ou como se agita. Eu mal me reconheço ultimamente. Tornar-se um instrumento de tortura destruiu o que restou da minha mente.

E agora, isso: me sinto esgotado o tempo todo. Esvaziado.

Além da redenção.

Eu não queria voltar aqui. Eu queria andar diretamente para o oceano. Eu queria desaparecer no horizonte. Eu queria desaparecer.

Claro, ele nunca deixaria isso acontecer.

Ele me arrastou de volta até aqui e me deu um título. Eu fui recompensado por ser um animal. Comemorado pelos meus esforços como um monstro. Não importa o fato de eu acordar no meio de toda noite estrangulado por medos irracionais e um súbito desejo violento de derrubar o conteúdo do meu estômago.

Não importa que eu não consiga tirar essas imagens da minha cabeça.

Eu olho para a cara garrafa de uísque que meu pai deixou para mim no meu quarto e me sinto subitamente enojado. Eu não quero ser como ele. Eu não quero o seu ópio, sua forma preferida de esquecimento.

Pelo menos, em breve, meu pai vai embora. Qualquer dia, ele terá desaparecido e esse setor se tornará meu domínio. Eu finalmente estarei sozinho.

Ou algo próximo disso.

Relutantemente, pego meu blazer e desço o elevador.

Quando eu finalmente chego em seus aposentos, como ele pediu, ele me poupa apenas o mais breve olhar.

— Bom — diz ele. — Você veio.

Não digo nada.

Ele sorri.

— Onde estão suas maneiras? Você não vai cumprimentar nossa convidada?

Confuso, sigo sua linha de visão. Há uma jovem sentada em uma cadeira no canto mais distante da sala e, a princípio, eu não a reconheço.

Quando eu faço, o sangue drena do meu rosto.

Meu pai ri.

— Vocês crianças lembram um do outro, certo?

Ela estava sentada tão quieta, tão imóvel e pequena que eu quase não a notei. Meu coração morto salta com a visão de sua pequena estrutura, uma centelha de vida tentando, desesperadamente, acender.

— Juliette — eu sussurro.

Minha última lembrança dela foi de dois anos atrás, pouco antes de eu sair de casa para a tarefa doentia e sádica de meu pai. Ele a puxou para longe de mim. Literalmente a arrancou dos meus braços. Eu nunca vi esse tipo de raiva em seus olhos, não desse jeito, não sobre algo tão inocente.

Mas ele era selvagem.

Fora de sua mente.

Ela e eu não tínhamos feito mais do que conversar um com o outro. Eu comecei a invadir seu quarto sempre que podia sair e enganar os feeds da câmera para nos dar privacidade. Nós conversávamos, às vezes por horas. Ela se tornou minha amiga.

Eu nunca toquei nela.

Ela disse que depois do que aconteceu com o menino, ela teve medo de tocar em alguém. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo com ela e não confiava mais em si mesma. Eu perguntei se ela queria me tocar, testar e ver se alguma coisa aconteceria, e ela parecia assustada e eu disse para ela não se preocupar. Eu prometi que tudo ficaria bem. E quando eu peguei a mão dela, hesitante, esperando pelo desastre...

Nada aconteceu.

Nada aconteceu, exceto que ela começou a chorar. Ela se jogou em meus braços e chorou e me disse que estava com medo de que havia algo errado com ela, que ela se transformou em um monstro.

Nós só tivemos um mês, no total.

Mas havia algo nela que parecia certo para mim desde o começo. Eu confiei nela. Ela parecia sentia familiar, como se eu sempre a conhecesse. Mas eu também sabia que parecia um tipo dramático de pensamento, então guardei para mim mesmo.

Ela me contou sobre sua vida. Seus pais horríveis. Ela compartilhou seus medos comigo, então eu compartilhei os meus. Eu contei a ela sobre a minha mãe, como eu não sabia o que estava acontecendo com ela, como eu estava preocupado que ela iria morrer.

Juliette se importava comigo. Me escutou do jeito que ninguém mais fez.

Foi o relacionamento mais inocente que eu já tive, mas significou mais para mim do que qualquer coisa. Pela primeira vez em anos, me senti menos sozinho.

No dia em que descobri que ela estava finalmente sendo transferida, eu a puxei para perto. Eu pressionei meu rosto em seu cabelo e a respirei e ela chorou. Ela me disse que estava com medo e eu prometi que tentaria fazer alguma coisa – prometi conversar com meu pai mesmo sabendo que ele não ligaria.

E então, de repente, ele estava lá.

Ele arrancou-a dos meus braços, e notei então que ele estava usando luvas.

— Que diabos você está fazendo? — Ele gritou. — Você perdeu a cabeça? Você se perdeu completamente?

— Pai — eu disse, entrando em pânico. — Nada aconteceu. Eu estava dizendo adeus para ela.

Seus olhos se arregalaram, redondos de choque. E quando ele falou, suas palavras eram sussurros.

— Você estava apenas... Você estava dizendo adeus a ela?

— Ela está indo embora — eu disse estupidamente.

— Você acha que eu não sei disso?

Eu engoli em seco.

— Jesus — disse ele, passando a mão pela boca. — Há quanto tempo você vem fazendo isso? Há quanto tempo você vem aqui?

Meu coração estava acelerado. Medo pulsou através de mim. Eu estava balançando a cabeça, incapaz de falar.

— O que você fez? — Meu pai exigiu, seus olhos piscando. — Você tocou nela?

— Não. — A raiva surgiu através de mim, me devolvendo a minha voz, mesmo quando meu rosto ficou vermelho de vergonha. — Não, claro que não.

— Você tem certeza?

— Pai, por que você está... — eu balancei a cabeça, confuso. — Eu não entendo porque você está tão chateado. Você tem me pressionado junto a Lena há meses, embora eu tenha dito cem vezes que não gosto dela, mas agora, quando na verdade... — Hesitei, olhando para Juliette, o rosto meio escondido atrás do meu pai. — Eu estava apenas começando a conhecê-la. Isso é tudo.

— Você estava apenas começando a conhecê-la? — Ele olhou para mim, enojado. — De todas as garotas do mundo, você se apaixona por essa? A assassina de crianças a caminho da prisão? O provável teste insano do tubo de ensaio? O que há de errado com você?

— Pai, por favor... nada aconteceu. Nós somos apenas amigos. Nós apenas conversamos às vezes.

— Apenas amigos — disse ele, e riu. O som estava demente. — Você sabe o que? Eu vou deixar você levar isso com você. Vou deixar você ficar com esta enquanto você estiver fora. Deixar ficar com você. Deixar isto te ensinar uma lição.

— O que? Levar o que comigo?

— Um aviso. — Ele nivelou-me com um olhar letal. — Tente algo assim novamente, — ele disse. — E eu vou matá-la. E vou me certificar de que você possa assistir.

Eu olhei para ele, meu coração batendo no meu peito. Isso foi insano. Nós nem tínhamos feito nada. Eu sabia que meu pai provavelmente estaria com raiva, mas nunca pensei que ele ameaçaria matá-la. Se eu soubesse, nunca arriscaria. E agora...

Minha cabeça estava girando. Eu não entendi. Ele estava arrastando-a pelo corredor e eu não entendi.

De repente, ela gritou.

Ela gritou e eu fiquei lá, indefeso enquanto ele a arrastava para longe. Ela chamou meu nome – gritou por mim – e ele a sacudiu, disse para ela calar a boca, e eu senti algo dentro de mim morrer. Eu senti isso como aconteceu. Senti algo se quebrando dentro de mim enquanto eu a observava ir.

Eu nunca me odiei tanto. Eu nunca fui tão covarde.

E agora aqui estamos.

Esse dia parece uma vida inteira atrás. Eu nunca pensei que a veria novamente.

Juliette olha para mim agora, e ela parece diferente. Seus olhos estão vidrados de lágrimas. Sua pele perdeu sua palidez; o cabelo dela perdeu o brilho. Ela parece mais magra. Ela me lembra de mim mesmo.

Oca.

— Oi — eu sussurro.

Lágrimas escorrem silenciosamente por suas bochechas.

Eu tenho que me forçar a permanecer calmo. Eu tenho que me forçar a não perder a cabeça. Minha mãe me alertou, anos atrás, para esconder meu coração do meu pai, e toda vez que eu escorregava – toda vez que eu deixava que ele não fosse um monstro – ele me punia impiedosamente.

Eu não ia deixar que ele fizesse isso comigo de novo. Eu não queria que ele soubesse o quanto doía vê-la assim. Como foi doloroso sentar-me ao lado dela e não dizer nada. Fazer nada.

— O que ela está fazendo aqui? — Eu pergunto, dificilmente reconhecendo minha própria voz.

— Ela está aqui — ele diz, — porque eu a recolhi para nós.

— Recolheu para quê? Você disse...

— Eu sei o que eu disse. — Ele encolhe os ombros. — Mas eu queria ver esse momento. Seu encontro. Eu estou sempre interessado em seus encontros. Eu acho a dinâmica do seu relacionamento fascinante.

Eu olho para ele, sinto meu peito explodir de raiva e de alguma forma, luto de volta.

— Você a trouxe de volta aqui apenas para me torturar?

— Você se ilude, filho.

— Então o que?

— Eu tenho a primeira tarefa para você — diz ele, empurrando uma pilha de arquivos em sua mesa. — Sua primeira verdadeira missão como comandante chefe e regente deste setor.

Meus lábios se separam, surpresos.

— O que isso tem a ver com ela?

Os olhos do meu pai se iluminam.

— Tudo.

Não digo nada.

— Eu tenho um plano — diz ele. — Um que vai exigir sua ajuda. Esses arquivos, — ele acena para a pilha na minha frente. — É tudo que você precisa saber sobre sua doença. Todo relatório médico, todo rastro de papel. Eu quero que você faça a reforma da garota. Reabilite-a. E então eu quero que você arme suas habilidades para nosso próprio uso.

Eu encontro seus olhos, não escondendo meu horror com a sugestão.

— Por quê? Por que você viria a mim com isso? Por que você me pede para fazer algo assim, quando conhece a nossa história?

— Você é singularmente adequado para o trabalho. Parece bobo desperdiçar meu tempo explicando isso para você agora, já que você não vai se lembrar da maior parte dessa conversa amanhã...

— O quê? — Eu franzo a testa. — Por que eu não faria isso?

— ...Mas vocês dois parecem ter algum tipo de conexão imutável, que pode, espero, inspirar suas habilidades a se desenvolverem mais plenamente. Mais rapidamente.

— Isso não faz qualquer sentido.

Ele me ignora. Olha para Juliette. Seus olhos estão fechados, a cabeça apoiada na parede atrás dela. Ela parece quase adormecida, exceto pelas lágrimas que ainda correm suavemente pelo rosto.

Me mata só de olhar para ela.

— Como você pode ver — diz meu pai. — Ela está um pouco fora de si agora. Fortemente sedada. Ela passou por muito nesses dois últimos anos. Não tivemos escolha a não ser transformá-la em uma espécie de cobaia. Tenho certeza de que você pode imaginar como isso acontece.

Ele olha para mim com um leve sorriso no rosto. Eu sei que ele está esperando por algo. Uma reação. Minha raiva.

Eu me recuso a dar a ele.

Seu sorriso se alarga.

— De qualquer forma — ele diz alegremente. — Eu vou colocá-la de volta em isolamento pelos próximos seis meses – talvez um ano, dependendo de como as coisas se desenvolvem. Você pode usar essa oportunidade para se preparar. Observá-la.

Mas ainda estou lutando contra minha raiva. Eu não consigo falar.

— Há algum problema? — Ele diz.

— Não.

— Você se lembra, claro, do aviso que lhe dei na última vez que esteve aqui.

— Claro — eu digo, minha voz plana. Morta.

E então, como se do nada:

— Como está a Lena, a propósito? Espero que ela esteja bem.

— Eu não saberia.

Está quase lá, mas percebo a súbita mudança na voz dele. A raiva quando ele diz:

— E por que isso?

— Eu terminei as coisas com ela na semana passada.

— E você não pensou em me dizer?

Finalmente, encontro seus olhos.

— Eu nunca entendi porque você queria que ficássemos juntos. Ela não é certa para mim. Ela nunca foi.

— Você não a ama, você quer dizer.

— Eu não posso imaginar como alguém amaria.

— Isso — diz ele. — É exatamente o motivo pelo qual ela é perfeita para você.

Eu pisco para ele, pego de surpresa. Por um momento, quase soou como se meu pai se importasse comigo. Como se ele estivesse tentando me proteger de algum jeito perverso e idiota.

Eventualmente, ele suspira.

Ele pega uma caneta e um bloco de papel e começa a escrever alguma coisa.

— Verei o que posso fazer para reparar o dano que você causou. A mãe de Lena deve estar histérica. Até lá, comece a trabalhar. — Ele acena para a pilha de arquivos que ele colocou diante de mim.

Relutantemente, eu escolho uma pasta do topo.

Eu olho através dos documentos, examinando o esboço geral da missão, e então eu olho para ele, atordoado.

— Por que a papelada faz parecer que esta foi a minha ideia?

Ele hesita. Abaixa sua caneta.

— Porque você não confia em mim.

Eu olho para ele, lutando para entender.

Ele inclina a cabeça.

— Se você soubesse que essa era a minha ideia, você nunca confiaria nela, não é? Você procuraria muito de perto por buracos. Conspirações. Você nunca seguiria o caminho que eu quero que você faça. Além disso — ele diz, pegando a caneta novamente. — Dois pássaros. Uma pedra. É hora de finalmente quebrar o ciclo.

Eu substituo a pasta na pilha. Tenho o cuidado de moderar o tom da minha voz quando digo:

— Não faço ideia do que você está falando.

— Eu estou falando sobre o seu novo experimento — diz ele friamente. — Sua pequena tragédia. Isso — ele diz, gesticulando entre mim e Juliette. — Isso precisa acabar. E é improvável que ela retorne sua afeição quando ela acordar e descobrir que você não é seu amigo, mas sim seu opressor. Não é?

E eu não posso mais manter a fúria ou a histeria fora da minha voz quando eu digo:

— Por que você está fazendo isso comigo? Por que você está propositadamente me torturando?

— É tão louco imaginar que eu poderia estar tentando te fazer um favor? — Meu pai sorri. — Olhe mais de perto para esses arquivos, filho. Se você já quis ter uma chance de salvar sua mãe, pode ser isso.

Eu me tornei obcecado com o tempo.

Ainda assim, eu só posso adivinhar quanto tempo eu estive aqui, encarando essas paredes sem descanso. Nenhuma voz, apenas os ocasionais sons distorcidos de fala distante. Sem rostos, nem uma única pessoa para me dizer onde estou ou o que me espera. Eu observei as sombras perseguirem a luz dentro e fora da minha cela por semanas, seus movimentos através da pequena janela minha única esperança para marcar os dias.

Uma fenda fina e retangular na minha porta se abre com uma força súbita e surpreendente, a abertura é disparada com o que parece ser luz artificial do outro lado.

Eu faço uma anotação mental.

Um único pão de forma fumegante – sem bandeja, sem papel alumínio, sem utensílios – é empurrado pela fenda e meus reflexos ainda são rápidos o suficiente para pegar o pão antes que ele toque o chão imundo. Tenho o bom senso de entender que a pouca comida que me dão todos os dias é envenenada. Não o suficiente para me matar. Apenas o suficiente para me atrasar. Pequenos tremores balançam meu corpo, mas eu forço meus olhos a ficarem abertos quando eu viro o pão macio ao redor da minha mão, procurando por sua pele escamosa por informações. Não é marcado. Extraordinário. Isso não pode significar nada.

Não há como ter certeza.

Este ritual acontece exatamente duas vezes ao dia. Eu sou alimentado com uma porção insignificante e insípida de comida duas vezes ao dia. Por horas a fio meus pensamentos se agitam; minha mente nada e alucina. Eu estou lento. Lerdo.

Na maioria dos dias, eu jejuo.

Para limpar minha mente, limpar meu corpo do veneno e coletar informações. Preciso sair daqui antes que seja tarde demais.

Algumas noites, quando estou mais fraco, minha imaginação corre solta; minha mente é atormentada por visões horríveis do que poderia ter acontecido com ela. É uma tortura não saber o que eles fizeram com ela. Não sabendo onde ela está, sem saber como ela está, sem saber se alguém a está machucando.

Mas os pesadelos são talvez os mais desconcertantes.

Pelo menos, acho que são pesadelos. É difícil separar fato da ficção, sonhos da realidade; Eu gasto muito tempo com veneno correndo pelas minhas veias. Mas as palavras de Nazeera para mim antes do simpósio – o aviso dela de que Juliette era outra pessoa, que Max e Evie são seus verdadeiros pais biológicos...

Eu não queria acreditar então.

Parecia uma possibilidade perversa demais para ser real. Até meu pai tinha linhas que ele não atravessaria, eu disse a mim mesmo. Até mesmo O Restabelecimento tinha algum senso de moralidade inventada, eu disse a mim mesmo.

Mas eu os vi quando fui levado embora – vi os rostos familiares de Evie e Maximillian Sommers – a comandante suprema da Oceania e seu marido. E eu tenho pensado neles desde então.

Eles eram os principais cientistas do nosso grupo, os cérebros quietos do Restabelecimento. Eles eram militares, sim, mas eram médicos. A dupla costumava se manter. Eu tive poucas lembranças deles até muito recentemente.

Até que Ella apareceu em minha mente.

Mas eu não sei como ter certeza de que o que estou vendo é real. Não tenho como saber que isso não é simplesmente outra parte da tortura. É impossível saber. É agonia, aborrecendo um buraco através de mim. Eu sinto que estou sendo agredido dos dois lados – mental e físico – e não sei onde ou como começar a lutar. Eu comecei a cerrar os dentes com tanta força que está me causando enxaqueca. Exaustão se banha lentamente em minha mente. Tenho certeza de que tenho pelo menos duas costelas fraturadas e minhas únicas horas de descanso são conseguidas em pé, a posição única que facilita a dor no meu torso. Seria fácil ceder. Desistir. Mas eu não posso me perder para esses jogos mentais.

Eu não vou.

Então eu compilo dados.

Passei toda a minha vida me preparando para momentos como esse por pessoas assim e eles vão tirar o máximo proveito desse conhecimento. Eu sei que eles vão esperar que eu prove que eu mereço sobreviver, e – inesperadamente – saber disso me traz uma sensação muito necessária de calma. Não sinto nada da minha habitual ansiedade aqui, sendo cuidadosamente envenenado até a morte.

Em vez disso, me sinto em casa. Familiar.

Fortificado pela adrenalina.

Sob quaisquer outras circunstâncias, eu presumo que minhas refeições foram oferecidas uma vez pela manhã e uma à noite—mas eu sei que não devo assumir mais nada. Eu tenho mapeado as sombras por tempo suficiente para saber que nunca fui alimentado em horários regulares e que o cronograma errático é intencional. Deve haver uma mensagem aqui: uma sequência de números, um padrão de informação, algo que não estou entendendo—porque sei que isso, como tudo o mais, é um teste.

Eu estou sob custódia de um comandante supremo.

Não pode haver acidentes.

Eu me forço a comer o pão quente e sem sabor, odiando a maneira como o pão gomoso, excessivamente processado, gruda no céu da boca. Isso me faz desejar uma escova de dentes. Eles me deram minha própria pia e vaso sanitário, mas eu tenho pouco mais para manter meus padrões de higiene intactos, o que é possivelmente a maior indignidade aqui. Eu luto contra uma onda de náusea enquanto engulo a última mordida de pão e um calor súbito e espinhento inunda meu corpo. Gotas de suor rolam pelas minhas costas e cerro os punhos para não sucumbir muito rapidamente às drogas.

Eu preciso de um pouco mais de tempo.

Há uma mensagem aqui, em algum lugar, mas ainda não decidi onde. Talvez esteja nos movimentos das sombras. Ou no número de vezes que a fresta abre e fecha. Pode ser nos nomes dos alimentos que eu sou forçado a comer, ou no número exato de passos que ouço todos os dias – ou talvez seja ocasionalmente, uma batida na minha porta que acompanha o silêncio.

Há algo aqui, algo que eles estão tentando me dizer, algo que eu deveria decifrar – eu suspiro, estendo a mão cegamente quando um choque de dor passa através do meu intestino...

Eu posso descobrir isso, penso, mesmo quando a droga me arrasta para baixo. Eu caio para trás, para os cotovelos. Meus olhos se abrem e fecham e minha mente se afoga enquanto conto os sons do lado de fora da minha porta...

um passo difícil

dois passos arrastados

um passo difícil

E há algo lá, algo deliberado no movimento que fala comigo. Eu sei isso. Eu conheço essa língua, sei o nome dela, está bem na ponta da minha língua, mas parece que não consigo entender.

Já me esqueci do que estava tentando fazer.

Meus braços desistem. Minha cabeça bate no chão com um baque surdo. Meus pensamentos se dissolvem na escuridão.

Os pesadelos me levam pela garganta.


Kenji

Eu pensei que tinha passado um tempo em alguns lugares bem difíceis da minha vida, mas essa merda é como nada mais. Escuridão perfeita. Não há sons a não ser os gritos torturados e distantes de outros prisioneiros. Comida é uma nojenta poça empurrada através de uma fresta na porta. Não há banheiros, exceto que eles abrem as portas uma vez por dia, apenas o tempo suficiente para você se matar tentando encontrar os chuveiros e banheiros nojentos. Eu sei o que é isso. Eu lembro quando Juliette...

Ella. Ella.

Ella costumava me contar sobre esse lugar.

Algumas noites nós ficávamos acordados por horas falando sobre isso. Eu queria saber. Eu queria saber tudo. E essas conversas são a única razão pela qual eu sabia o que a porta aberta significa.

Eu realmente não sei há quanto tempo estou aqui – uma semana? Talvez duas? Eu não entendo porque eles não me matam. Eu tento dizer a mim mesmo, a cada minuto de cada maldito dia, que eles estão apenas fazendo isso para mexer com nossas cabeças, que a mente torturada é um destino pior do que uma bala no cérebro, mas eu não posso mentir. Este lugar está começando a chegar a mim.

Eu me sinto começando a ficar estranho.

Estou começando a ouvir coisas. Ver as coisas. Estou começando a surtar com o que poderia ter acontecido com meus amigos ou se eu nunca vou sair daqui.

Eu tento não pensar em Nazeera.

Quando penso em Nazeera, quero me dar um soco no rosto. Eu quero atirar na minha garganta.

Quando penso em Nazeera, sinto uma raiva tão aguda que, de fato, estou convencido, por um minuto, que talvez eu consiga me libertar dessas algemas de néon com nada além de força bruta. Mas isso nunca acontece. Essas coisas são inquebráveis, mesmo enquanto tiram meus poderes. E emitem um brilho azul suave e pulsante, a única luz que vejo.

J me disse que sua cela tinha uma janela. A minha não.

Um som áspero de zumbido enche minha cela. Eu ouço um clique suave na porta de metal pesado. Eu pulo para os meus pés.

A porta se abre.

Sinto meu caminho pelo corredor gotejante, a luz fraca e pulsante de meus punhos fazendo pouco para guiar meu caminho.

O chuveiro é rápido e frio. Horrível em todos os sentidos. Não há toalhas neste buraco, então eu estou sempre congelando até que eu possa voltar para o meu quarto e me envolver no cobertor puído. Estou pensando nesse cobertor agora, tentando manter meus pensamentos focados e meus dentes batendo enquanto eu desço pelos túneis escuros.

Eu não vejo o que acontece a seguir.

Alguém vem em cima de mim por trás e me estrangula, me sufocando com uma técnica tão perfeita que eu nem sei se vale a pena lutar. Eu estou definitivamente prestes a morrer.

Super estranho caminho a percorrer, mas é isso. Terminei.

Merda.


Juliette Ella

O Sr. Anderson disse que posso almoçar em sua casa antes de conhecer minha nova família. Não foi ideia dele, mas quando Aaron, seu filho – esse era o nome do garoto – sugeriu, o Sr. Anderson parecia bem com isso.

Sou grata.

Eu não estou pronta para ir viver com um monte de estranhos ainda. Estou com medo, nervosa e preocupada com tantas coisas, nem sei por onde começar. Principalmente, sinto raiva. Estou com raiva dos meus pais por morrerem. Irritada com eles por me deixar para trás.

Eu sou uma órfã agora.

Mas talvez eu tenha um novo amigo. Aaron disse que ele tinha oito anos de idade, cerca de dois anos mais velho do que eu, então não há nenhuma chance de estarmos no mesmo ano, mas quando eu disse que provavelmente iríamos para a mesma escola de qualquer maneira, ele disse que não, nós não iríamos. Ele disse que não frequentava escola pública. Ele disse que seu pai era muito particular sobre esse tipo de coisa e que ele estudou em casa com tutores particulares a vida toda.

Estamos sentados um ao lado do outro na viagem de carro até a casa dele quando ele diz baixinho:

— Meu pai nunca me deixa convidar pessoas para a nossa casa. Ele deve gostar de você.

Eu sorrio, secretamente aliviada. Eu realmente espero que isso signifique que eu tenha um novo amigo. Eu estava com tanto medo de me mudar para cá, com tanto medo de estar em algum lugar novo e estar sozinha, mas agora, sentado ao lado desse garoto loiro e estranho com olhos verdes claros, estou começando a sentir que as coisas podem estar bem.

Pelo menos agora, mesmo que eu não goste dos meus novos pais, eu sei que não estou completamente sozinha. O pensamento me faz feliz e triste.

Eu olho para Aaron e sorrio. Ele sorri de volta.

 

 

                              CONTINUA