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O DESERTO, LONGE DE CALDWELL, BOSTON, OU LONGE DA... SANIDADE
Cerca de dois anos após o que aconteceu, quando Jim Heron já não estava mais atuando nos operações especiais, ele pensaria que Isaac Rothe, Matthias, o filho da mãe, e ele mesmo tiveram suas vidas transformadas na noite em que aquela bomba explodiu na areia.
Claro, naquela época, ninguém sabia o que tudo aquilo significava ou no que resultaria. Mas assim era a vida: ninguém tinha um guia turístico de seu próprio parque temático. Você tinha que participar dos passeios tal como eram apresentados, sem saber se ia gostar daquilo pelo que esperava na fila... ou se algum bastardo ia fazer você vomitar seu cachorro-quente ou seu algodão-doce.
Contudo, talvez aquilo fosse melhor assim. Será que, no passado, ele acreditaria que acabaria lutando com um demônio ao tentar salvar o mundo da condenação eterna?
Pois é.
Mas, naquela noite, no frio seco que banhou o local no segundo em que o sol se pôs atrás das dunas, ele e seu chefe andaram sobre um campo minado... e apenas um tinha saído dali.
O outro? Nem tanto...
– Chegamos. – Matthias disse enquanto subiam a uma vila abandonada que era da cor do caramelo em um grande sundae.
Eles estavam a mais de vinte quilômetros do alojamento em que dormiam, nas barracas cheias de garotos do exército. Uma vez que Jim e seu chefe atuavam em operações extraoficiais, eles permaneciam à margem corpo militar oficial, o que era uma vantagem: soldados como eles portavam identidades de todos os ramos de atividades do serviço militar e as usavam sempre que fosse necessário.
Na “vila”, havia quatro estruturas de pedra em ruínas e um punhado de barracos de madeira e lona. Quando eles se aproximaram, as bolas de Jim ficaram tensas no momento em que seus óculos de visão noturna captaram movimentos em toda parte. Ele odiava aquelas malditas lonas – elas se agitavam no vento, lançando sombras ao redor como se fossem pessoas armadas andando rápido. Com granadas. E com todos os tipos de coisas pontiagudas e brilhantes.
Nesse caso, eram coisas enlameadas e arenosas.
Ele odiava missões no deserto; era melhor matar em meio à civilização. Apesar de uma missão propriamente urbana ou mesmo suburbana implicar em maior exposição, pelo menos você tinha a chance de saber o que estava vindo até você. Aqui, as pessoas tinham recursos com os quais ele não estava familiarizado e que sempre o faziam ficar tenso.
Além disso, ele não confiava no homem que estava ao seu lado. Matthias era o líder da organização e tinha uma ligação direta com Deus e Jim tinha feito o treinamento junto com o cara. Mas, no fim, ele terminou sendo subordinado dele ao longo da última década.
Mas tudo isso apenas fez com que ele tivesse mais certeza de que não queria estar sozinho com o grandão – e, ainda assim, lá estavam eles, em uma “vila” no belo povoado de “Nada nem ninguém é encontrado aqui”.
Uma rajada de vento assolou a paisagem plana, correndo sobre a areia, pegando as pequenas partículas e carregando todas elas até os colarinhos de suas fardas camufladas. Debaixo de suas botas pretas bem amarradas, o chão mudava constantemente, como se eles fossem formigas andando nas costas de um gigante, e estivessem irritando profundamente o animal.
Você começa a sentir que, a qualquer minuto, a grande palma de uma mão pode descer do céu e atingi-lo.
Esta caminhada para o leste foi ideia de Matthias. Algo que não poderia ser discutido em qualquer outro lugar. Então, naturalmente, Jim vestia um colete a prova de balas de Kevlar e quase vinte quilos de armas. Também levava água. E refeições instantâneas.
Ele era um animal de carga. Definitivamente.
– Por aqui – Matthias disse, esquivando-se para a entrada sem porta de uma das estruturas de pedra.
Jim se deteve e olhou em volta. Nada além de lonas ao longo do caminho, até onde ele podia ver.
Ele sacou as duas armas que carregava antes de entrar. Moral da história? Este era o local perfeito para uma inquisição forçada. Ele não tinha ideia do que tinha feito ou do que tinha aprendido a fazer para garantir seu desempenho em um interrogatório, mas uma coisa estava clara: não havia motivos para correr. Essa era a “razão” pela qual tinha sido levado até ali, ele encontraria no local mais dois ou três caras que executavam operações extraoficiais para torturá-lo enquanto Matthias fazia as perguntas. E se ele fugisse? Eles o caçariam até o fim do mundo, mesmo que levasse semanas.
Isso explicava porque Isaac Rothe tinha aparecido esta tarde junto ao protegido de Matthias e segundo na linha de comando. Aqueles dois eram verdadeiros assassinos, dois pit bulls prontos para atacar a garganta de qualquer um.
Sim, isso fazia sentido e ele deveria ter percebido antes – contudo, mesmo se tivesse, não haveria como escapar de um julgamento. Ninguém saía vivo das operações extraoficiais. Não os agentes, não os caras da inteligência, nem os chefes. Morrer de botas era sua sentença – não que você pudesse saber o que iria acontecer.
E a coisa toda era: ele estava pensando em maneiras de sair. Matar pessoas para viver era tudo o que ele sabia fazer, mas aquilo estava começando a esmagar sua cabeça. Talvez Matthias tivesse adivinhado isso de alguma maneira.
Hora de dançar conforme a música, Jim pensou enquanto entrava.
Poderia lutar com eles...
Mas apenas Matthias estava lá dentro. Ninguém mais.
Jim baixou as armas lentamente e esquadrinhou o espaço apertado novamente. De acordo com seus óculos noturnos, havia apenas o outro homem. Pressionando um botão, ele mudou o modo de busca para termossensível. Nada além de Matthias. Ainda.
– O que está acontecendo? – Jim perguntou.
Matthias estava em um canto mais afastado; a uns três metros de distância dele. Quando as mãos do homem se posicionaram na cintura, Jim colocou suas armas SIGs de volta à posição de tiro... mas tudo que seu chefe fez foi balançar a cabeça e soltar o cinturão de armas. Um lance rápido e o objeto estava na areia.
E, então, ele deu um passo adiante, abrindo a boca para dizer algo em voz baixa...
Luz. Som. Uma explosão de energia.
Então... não havia nada além de uma chuva suave de areia e destroços.
Jim recobrou a consciência momentos depois. A explosão o lançou contra a parede de pedra, fazendo com que batesse com força, e considerando a maneira como ele estava rígido, entendeu que ficou um tempo fora de si.
Depois de alguns minutos xingando, ele se sentou com cuidado, pensando se tinha quebrado alguma coisa...
Do outro lado, havia uma pilha de trapos onde Matthias estava.
– Jesus Cristo... – Jim reposicionou seus óculos de busca noturnos e recuperou suas armas, então rastejou pela areia até seu chefe.
– Matthias... Oh, mas que droga de...
A perna do homem parecia uma raiz que tinha sido arrancada do chão, o membro não era nada além de um toco irregular que foi retalhado no final. E havia manchas escuras em seu uniforme que só podiam ser de sangue.
Jim checou o pulso no pescoço. Sentiu alguma coisa, mas estava fraco e irregular.
Desafivelando e afastando seu cinto, girou o couro em torno da parte superior da panturrilha de Matthias e puxou firme, fazendo um torniquete com o membro. Então, ele procurou rapidamente outro ferimen...
Droga. Quando Matthias foi lançado, caiu em uma estaca de madeira. A porcaria atravessou seu corpo, como o palito de dente que segura o enroladinho de salsicha.
Jim deu uma olhada em volta para descobrir se poderia ficar no local e tentar tirar Matthias dali...
Parecia estar tudo livre. Bom.
– Danny ... meu garoto Jim franziu a testa e olhou para seu chefe.
– O quê?
Os olhos de Matthias se abriram como se suas pálpebras fossem venezianas de aço, mal conseguia levantá-las.
– Deixe-me... aqui...
– Você está sangrando pra caramba...
– Deixe-me...
– Dane-se – Jim pegou seu radiotransmissor e rezou para que Isaac, não aquele cara estranho que era o segundo na linha de comando, atendesse.
– Vamos... Vamos...
– Do que precisam? – O sotaque sulista suave que ele escutava em seu fone de ouvido era uma boa notícia.
Graças a Deus por Isaac.
– Matthias foi atingido. Bomba. Certifique-se de que não seremos alvos ao entrarmos em campo.
– Como ele está?
– Mal.
– Onde vocês estão? Vou mandar uma Land Rover para pegá-los.
– Estamos quarenta e seis graus nor...
A arma disparou do outro lado, uma bala passou raspando a orelha de Jim – até ele concluir que tinha sido atingido na cabeça e que a dor viria em seguida. Enquanto ele tocava o ferimento com a palma da mão, Matthias deixou sua arma cair para o lado... mas, veja só, Jim não caiu por causa de um tiro na cabeça. Foi apenas um tiro de aviso, com certeza.
O olho de seu chefe que estava enxergando brilhou com uma luz profana.
– Fuja... vivo... daqui...
Antes que Jim dissesse a Matthias que calasse a maldita boca, ele percebeu que alguma coisa estava batendo na mão que estava solta. Levantando a coisa, descobriu que... era parte do detonador da bomba.
Virando a coisa várias vezes, ele não entendeu, em um primeiro momento, para o que estava olhando.
E, então, soube muito bem o que era.
Estreitando os olhos em Matthias, colocou o fragmento no bolso da frente e se arrastou até seu chefe.
– Não vai me incriminar assim – disse Jim, severamente. – Não dessa maldita maneira.
Matthias começou a balbuciar assim que palavrões começaram a sair do rádio transmissor.
– Eu estou bem – Jim disse a Isaac. – Foi um tiro de raspão. Estou voltando para o acampamento. Certifique-se de que não levaremos um tiro ao nos aproximarmos.
A voz sulista ficou instantaneamente forte e estável, assim como a mão de um assassino.
– Onde vocês estão? Vou mandar uma...
– Não. Fique onde está. Encontre um médico em segredo e certifique-se de que ele consegue manter a boca fechada. E vamos precisar de um helicóptero. Ele precisará ser levado por um transporte aéreo – discretamente. Ninguém pode saber sobre isso.
A última coisa de que ele precisava era Isaac fora do acampamento, no meio da noite, procurando por ele. O cara era a única coisa entre ele e a acusação de ter assassinado o líder da organização mais sombria e mortal do governo dos Estados Unidos.
Ele não sobreviveria se fosse acusado Mas, pelo menos, aquela confusão não seria transformada em notícia. Manter segredo sobre toda aquela merda era o modus operandi das operações extraoficiais – ninguém sabia quantos agentes havia, aonde eles iriam, o que eles faziam, se usavam o próprio nome ou um pseudônimo.
– Você me ouviu, Isaac? – ele perguntou. – Consiga o que eu preciso. Ou ele será um homem morto.
– Entendido – veio a resposta no fone de ouvido. – Câmbio e desligo.
Depois de confiscar a arma de Matthias, Jim pegou seu chefe, colocou o peso quase morto, escorrendo sangue, em seus ombros e começou a andar.
Estavam fora da cabana de pedra. Fora do alvoroço, iam em direção à noite gélida. Para o outro lado das dunas de areia.
Sua bússola o manteve no caminho certo, o norte o orientava e o levava através da escuridão. Não fosse esse ponto de referência, ele estaria completamente perdido – uma vez que o deserto é uma paisagem espelhada, com nada além de um reflexo de si mesmo em todas as direções.
Dane-se esse Matthias.
Maldito seja.
Por outro lado, concluía que se o cara sobrevivesse, ele daria o passaporte para que Jim saísse das operações extraoficiais... portanto, de certa maneira, ele devia sua vida ao cara: a bomba pertencia a Matthias e ele soube precisamente onde colocar o pé na areia. E isso só acontece quando alguém quer explodir a si mesmo.
Pelo visto, Jim não era o único que queria ser livre.
Mas que surpresa.
CAPÍTULO 1
SOUTH BOSTON, DIAS ATUAIS
– Ei! Espere... economize essa força para o ringue! – Isaac Rothe jogou o panfleto sobre o capô do carro, pronto para dar um murro no veículo, se fosse preciso.
– O que minha foto está fazendo nisso?
O promotor de lutas parecia mais interessado no dano causado ao seu Mustang, então, Isaac se inclinou e agarrou o cara pelo colarinho de sua jaqueta.
– Eu perguntei, o que minha cara está fazendo aqui?
– Relaxe, eu vou...
Isaac puxou-o para mais perto e inalou o cheiro que vinha do cigarro do filho da mãe.
– Eu disse. Nada de fotos minhas. Nunca.
As mãos do promotor se levantaram fazendo um sinal que equivalia a uma rendição.
– Sinto muito... mesmo... Olhe, você é meu melhor lutador... Você atrai multidões. É como a estrela do meu...
Isaac apertou bem o punho para cortar a onda do cara de ficar afagando seu ego.
– Sem fotos. Ou não haverá luta. Estamos entendidos?
O promotor engoliu em seco e guinchou.
– Sim, desculpe.
Isaac o soltou e amassou o papel com a imagem de seu rosto até chegar ao formato de uma bola. Olhando ao redor do estacionamento do armazém abandonado, ele amaldiçoou a si mesmo. Estúpido. Mas que tremenda estupidez ter confiado no maldito puxa-saco.
O problema era o seguinte: nomes não eram tão importantes. Qualquer um poderia criar um Tom, Dick ou um Harry em uma identidade, em uma certidão de nascimento ou em um passaporte. Tudo o que precisava era a fonte certa e uma máquina de laminar capaz de fazer hologramas. Mas a sua foto, seu rosto, sua fuça, sua cara... a menos que tivesse dinheiro suficiente e contatos para fazer uma cirurgia plástica, esse era o único e verdadeiro traço que o identificava.
E seu rosto tinha acabado de ser impresso inúmeras vezes em uma gráfica. Só Deus sabia quantas pessoas já tinham visto.
Ou a quem seu paradeiro teria chamado atenção.
– Olhe, eu só estava fazendo um favor – o promotor sorriu, fazendo reluzir um dente de ouro – Quanto maior a multidão, mais dinheiro você ganha...
Isaac enfiou o dedo indicador no nariz do cara.
– Você precisa calar essa maldita boca agora mesmo. E lembre-se do que eu disse.
– Sim. Claro. Com certeza.
Houve alguns “sim claro”, “sem problemas” e “como quiser,” mas Isaac virou as costas para todo aquele falatório.
Ao seu redor, homens estavam saindo dos carros e empurravam uns aos outros como se tivessem quinze anos. Havia também o grupo dos mais animados, todos eles reforçavam a multidão e formavam a plateia. O mais próximo que poderiam chegar do octógono da luta era sentando do lado de fora da corda.
O fato de que Isaac estava quase desistindo daquela máquina de fazer dinheiro do submundo das lutas era irrelevante. As pessoas que estavam procurando por ele não precisavam de qualquer ajuda – e aquela bela foto de seu rosto, junto ao código de área 617, era exatamente o que ele não queria.
A última coisa de que ele precisava era um agente ou... Deus o livrasse, o segundo homem na linha de comando de Matthias... aparecendo por ali.
Além disso, foi simplesmente muita idiotice do promotor dele. Não se deve fazer propaganda de lutas clandestinas e apostas ilegais – o boca a boca funciona muito bem, considerando a quantidade de gente que aparece nas lutas.
Contudo, o cara encarregado disso era um idiota ganancioso.
E a questão agora era: Isaac lutava ou não? Os folhetos já tinham sido distribuídos... e quando lembrou de todo o dinheiro que tinha torrado, pensou que seria bom ganhar um ou dois mil extras.
Ele olhou em volta e soube que tinha de entrar no octógono. Droga... mais uma vez para que pudesse encher sua carteira e, então, ele iria embora.
Só mais uma vez.
Avançando ao longo da entrada dos fundos do armazém, ele ignorou as exclamações, os dedos apontados em sua direção e os É ele. A multidão tinha comparecido para assisti-lo vencer aquela maldita série de caras durante todo o mês passado e, evidentemente, isso fez dele um herói aos olhos da plateia.
O que era uma denominação muito estranha, até onde ele entendia. Ele estava longe de ser um herói.
Os seguranças na porta dos fundos se afastaram para dar passagem e ele acenou com a cabeça para eles. Esta era a primeira luta naquela “instalação”, mas, na verdade, os locais eram todos iguais. Em Boston e nas suas redondezas, havia muitos galpões abandonados, armazéns e qualquer coisa parecida onde cinquenta caras com desejo de sangue poderiam assistir a uma meia dúzia de homens se agitarem em círculos dentro de uma gaiola de combate improvisada. E essa conta simples se somava ao motivo pelo qual o promotor tinha reproduzido o rosto de Isaac. Ao contrário dos outros lutadores sem luva, ele sabia o que estava fazendo.
Apesar de levar em consideração a quantidade de dinheiro que o governo dos EUA havia investido em seu treinamento, ele teve de se autocontrolar para não rachar alguns crânios como se fossem ovos, até agora.
E seriam essas mesmas habilidades, assim como tantas outras, que iriam ajudá-lo a permanecer na deserção.
Se Deus quisesse, aquilo ajudaria – foi o que pensou ao entrar no local.
A reprodução malfeita de um cassino de Las Vegas tinha quase 200 metros quadrados – pelos quais o ar frio percorria ao longo de um piso de concreto e quatro paredes com algumas janelas sujas. O “octógono” foi colocado em uma das extremidades, o ringue de oito lados foi aparafusado e era surpreendente como parecia rígido.
Fazia sentido, pois havia vários operários que estavam envolvidos naquela montagem.
Isaac passou pelos caras de pescoço grosso que estavam cuidando das apostas e até eles o respeitavam, perguntando se precisava de algo para beber, comer ou qualquer outra coisa. Balançando a cabeça, ele foi para seu canto atrás do ringue e se acomodou, suas costas se apoiaram na junção de duas paredes. Ele sempre era o último a lutar, pois era a grande atração, mas ninguém dizia quando ele subiria. A maioria dos “lutadores” não durava muito, mas de vez em quando havia uma dupla que resistia – até um deles agarrar o outro como um urso para ouvir os gritos: chega, já chega.
Não havia juízes e as coisas só paravam quando uma expressão grave, ruborizada, tomava a face de um idiota com olhos arregalados deitado de costas para o guerreiro urbano vencedor e grandalhão, suando até os pés. Você poderia apostar qualquer coisa, incluindo o fígado e as joias da família, e truques sujos eram encorajados. A única regra era lutar com aquilo que o bom Deus deu a você quando nasceu: não era permitido levar protetores para os punhos, correntes, facas, areia, ou qualquer porcaria assim para dentro da corda.
Enquanto o primeiro round se desenvolvia, Isaac garimpava os rostos na multidão ao invés de prestar atenção no que estava acontecendo no ringue. Desde que tinha saído, procurava por alguém que estivesse deslocado, por olhos que se detinham nele, por algum rosto que conhecesse há cinco anos, ao invés dos que conhecia a cinco semanas.
Cara, ele sabia que não deveria usar seu nome verdadeiro. Quando tirou sua identidade falsa, sabia que devia ter escolhido outro. Claro, o número de seu seguro social não era o mesmo, mas o nome...
Contudo, isso parecia importante. Uma maneira de demarcar território, de assinalar esse novo início à sua maneira.
E talvez isso soasse como uma provocação. Um “venha me pegar, se acha que pode”.
Agora, porém, ele se martirizava. Princípios, escrúpulos e toda aquela bobagem ideológica não eram mais tão valiosos quanto um possível batimento cardíaco.
E ele ainda achava que o promotor era um babaca?
Mais ou menos quarenta e cinco minutos depois, o promotor das lutas levantou-se sobre a corda e posicionou as mãos próximas à boca para projetar a voz pela multidão.
– E agora nossa atração principal...
Enquanto a multidão na plateia ia à loucura, Isaac tirava sua blusa com capuz e a pendurava do lado de fora do ringue. Ele sempre lutava com uma regata, calças de ginástica folgadas e com os pés descalços, algo que era exigido – mas aquilo constituía todo seu guarda-roupa.
Ao entrar pelo portão do octógono, manteve suas costas contra a extremidade do armazém e esperou calmamente para ver qual seria o prato de entrada.
Ah sim. Outro Sr. Valentão com problemas nas glândulas: no instante em que o adversário entrou no ringue, começou a saltar como se tivesse um pula-pula apoiado na barriga e o pré-show acabou com ele rasgando a camiseta pela metade e socando o próprio rosto.
O idiota continuou assim e Isaac não ia precisar fazer nada além de assoprar para jogar o traseiro do cara no chão.
Quando o sinal para iniciar a luta tocou, Isaac se aproximou, erguendo os punhos até a altura de seu peitoral, mas mantendo-os bem próximos ao tronco. Por pouco mais de um minuto, ele deixou o adversário se exibir e lançar golpes no ar que eram feitos com a precisão de um cego regando o jardim com uma mangueira.
Seria muito fácil.
Mas, enquanto a multidão gritava, Isaac pensou em quantas impressões uma máquina de fotocópia poderia fazer em sessenta segundos e decidiu levar a coisa a sério. Lançando um golpe de esquerda, pegou o tórax do cara, congelando temporariamente o coração que batia por trás daquele osso. Em seguida, um gancho de direita atingiu o pula-pula bem no queixo, fazendo com que os dentes do homem se chocassem e que a tensão atingisse a coluna, bem atrás da cabeça.
A deixa do espetáculo ficou por conta do sapateado: o Sr. Valentão foi incrível e deslizou para trás até o limite das cordas. Enquanto o rugido da plateia enchia o espaço e ecoava em toda parte, Isaac se aproximou e providenciou que o pobre bastardo saísse daquela sem querer mais dar uma de pula-pula – o cara parecia um bêbado cambaleando, cuja cabeça girava muito rápido para acompanhar o corpo. E no momento em que ele estava prestes a desmaiar, Isaac virou de costas e deixou o homem recuperar o fôlego.
Para ganhar os mil extras, ele deveria ter certeza de que aquilo levaria mais de três minutos.
Andando em volta, ele contou mentalmente até cinco. Então voltou para...
A faca girou em um grande círculo e deslizou ao longo da testa de Isaac, acertando apenas o couro cabeludo. O sangue fluiu e nublou sua visão – o tipo de coisa que ele teria chamado de estratégia se o cara tivesse alguma ideia do que estava fazendo. Contudo, dada a forma como alguns socos se seguiram, era evidente que foi apenas um golpe de sorte.
Ao vaiar da multidão, Isaac começou a ganhar tempo. Um idiota com uma faca era quase tão perigoso quanto alguém que realmente sabia o que estava fazendo com uma coisa assim – e ele não queria fazer uma cirurgia plástica com aquele desgraçado.
– Como se sente? – bradou o adversário. Na verdade, aquilo soou mais como um “Como fe fente?”, devido ao seu lábio inchado.
Foram as últimas três palavras que o cara disse no ringue.
Quando Isaac lançou um chute no ar, seu próprio sangue espirrou pela multidão e o impacto jogou a arma das mãos do rapaz longe. Então, foi uma questão de um, dois... três socos na cabeça e toda aquela pretensão caiu mais rápido que um pedaço de carne em um frigorífico...
Isso aconteceu exatamente no momento em que os excelentes homens e mulheres do Departamento de Polícia de Boston invadiram o armazém.
Caos. Imediato.
E, claro, Isaac estava preso na jaula de luta.
Pulando sobre o corpo inerte do adversário, agarrou-se à lateral do ringue de pouco mais de um metro e oitenta e saltou por cima do topo. Quando colocou os dois pés no chão, congelou.
Todos estavam se movimentando em total confusão, exceto um homem que estava parado bem na lateral, seu rosto familiar e pescoço tatuado estavam salpicados com o sangue de Isaac.
O segundo homem na linha de comando de Matthias ainda era alto, forte e mortal... e o filho da mãe sorria como se tivesse encontrado o ovo dourado em uma manhã de Páscoa.
Oh, droga, Isaac pensou. Falando no diabo...
– Você está preso – a voz simpática do policial veio atrás dele e, menos de uma batida de coração depois, ele estava algemado.
– Qualquer coisa que disser pode e será usada contra você no...
Isaac lançou um olhar ao oficial e, em seguida, procurou o outro soldado. Mas o número dois das operações extraoficiais tinha desaparecido como se nunca tivesse estado ali.
Filho da mãe. Seu antigo chefe sabia onde ele estava agora.
O que significava que o fato de toda a unidade policial de Boston estar atrás dele era o menor de seus problemas.
CAPÍTULO 2
CALDWELL, NOVA YORK
Enquanto Jim Heron permanecia em pé em frente à Casa Funerária McCready, em Caldwell, ele podia imaginar o interior como se já tivesse estado dentro da construção de tijolos à vista: tapetes orientais no chão, pinturas de arranjos de flores cobertos por névoa nas paredes, muitas salas com portas duplas e muito espaço.
Considerando o que aprendeu com sua experiência limitada sobre isso, as casas funerárias eram como restaurantes fast-food: todos pareciam iguais. Então, mais uma vez, ele achava que aquilo fazia sentido. Assim como havia um número limitado de maneiras de comer um hambúrguer, ele imaginava que seria a mesma coisa com os cadáveres.
Droga... ele não conseguia acreditar que estava indo ver seu próprio cadáver.
Ele tinha mesmo morrido há dois dias? Aquela era sua vida agora?
Da maneira como as coisas estavam acontecendo, ele se sentia como um maldito mauricinho que tinha acordado em uma cama estranha e que se perguntava: Essas são minhas roupas? Eu me diverti na noite passada?
Pelo menos ele conseguia responder essas: a jaqueta de couro e as botas de combate que ele estava usando eram dele, e ele não tinha se divertido na noite passada. Ele era responsável por lutar contra um demônio a fim de salvar a alma de sete pessoas e, embora tivesse vencido a primeira batalha, estava avançando para a próxima tarefa sem saber quem era seu alvo. E ainda estava aprendendo os truques dos negócios angelicais. E, ora essa, agora ele tinhas asas.
Asas.
Embora pudesse pensar que tudo aquilo era uma mentira, seu par de penas mágicas nada convencionais já tinha o levado daqui para Boston, em Massachusetts, a mil por hora.
Moral da história? Até onde sabia, o mundo que ele conhecia tinha desaparecido e o novo que ficou no lugar fazia com que seus anos como um assassino em operações extraoficiais parecessem um trabalho de secretária.
– Cara, isso é demais. Eu amo esse clima assustador.
Jim olhou sobre o ombro. Adrian, cujo o último nome era Vogel, era precisamente o tipo de louco que acharia legal visitar um bando de cadáveres no necrotério: cheio de brincos, tatuagens e vestindo roupas de couro, Ad gostava do lado negro e, levando em conta o que seu maior inimigo tinha feito ao anjo na noite anterior, aquilo era uma via de mão dupla: o lado negro gostava dele também.
Pobre bastardo.
Jim esfregou os olhos e observou o mais sensato dos dois caras que o acompanhava.
– Obrigado pelo apoio. Isso não vai demorar muito.
Eddie Blackhawk assentiu com a cabeça.
– Sem problemas.
Parado sentindo aquele vento forte de abril, Eddie estava com seu jeito usual de motociclista introspectivo: sua grossa trança descia pelas costas da jaqueta de couro. Com seu queixo quadrado, sua pele bronzeada e seus olhos vermelhos, ele fez Jim se lembrar de um deus Inca – o filho da mãe tinha punhos do tamanho da cabeça de muitos homens e ombros tão largos que um avião poderia aterrissar neles. E como pode imaginar, ele não era exatamente um escoteiro, mesmo tendo um coração de ouro.
– Certo, vamos ao trabalho – Jim murmurou, sabendo que aquela infiltração estava fora das atribuições de seu “trabalho”, então, era melhor que eles usassem as pernas. Mas, pelo menos, seu novo chefe de operações não tinha problema com isso: Nigel, o arcanjo britânico todo certinho, tinha permitido esse desvio mórbido, mas não havia motivo para tirar vantagem dessa liberdade.
Quando Jim e seus garotos desmaterializaram através da parede de tijolos e voltaram a tomar forma... sim, sim, um grande hall de entrada com um candelabro e um monte de tapetes sisudos e espaço suficiente para uma festa... ele olhou ao redor, imaginando onde diabos os corpos eram mantidos.
Só estar no local já reafirmava o fato de que aquele desvio era algo que simplesmente precisava fazer. Ele poderia estar no negócio de salvar almas, mas agora mesmo a vida de um homem estava em jogo: Isaac Rothe tinha fugido das operações extraoficiais e Jim deveria matá-lo por isso.
Sem chance.
Só que havia um problema: a maneira como Matthias, o filho da mãe, trabalhava, fazia com que, se Jim não eliminasse o soldado desertor, outra pessoa o mataria... e, em seguida, algum agente poderia vir atrás de Jim.
Um pouco tarde para isso, rapazes – ele já estava morto.
Seu objetivo imediato? Enganar seu antigo chefe e encontrar Isaac. Assim, ele iria tirar aquele soldado do país em segurança... isso antes de retornar à sua rotina de trabalho, que era enfrentar Devina.
Ele odiava o atraso porque, sem dúvida nenhuma, o demônio já estava se preparando para sua próxima batalha. Mas sair de uma vida e entrar em outra nunca foi simples e nunca foi algo que se pode levar a ferro e fogo. Era inevitável, havia tentáculos de passado que estariam diante de você, que precisariam ser cortados para conseguir se desvencilhar de tudo – e isso levava tempo.
A verdade era: ele devia algo a Rothe. Há dois anos atrás no deserto, quando Jim precisou de ajuda, o cara esteve ali e fez isso por ele – e essa era uma dívida da qual não se podia fugir.
Provavelmente, esse era o motivo pelo qual Matthias havia designado a tarefa a Jim. O filho da mãe sabia muito bem da conexão que havia entre eles e do que ocorrera naquela noite, no outro lado do globo: no dia, seu chefe alternou momentos conscientes e inconscientes, mas passou tempo suficiente sendo transportado durante aquelas horas escuras, depois no voo e recebendo intervenção médica para saber quem estava em volta dele e o que estavam fazendo.
Certo. Foco. Onde estavam os cadáveres?
– Lá embaixo. – Ele disse aos seus colegas enquanto caminhava em direção a um sinal de “Saída.”
No caminho para as escadas, os três passaram por todos os tipos de detectores de movimento sem ativar o funcionamento de qualquer um deles e, então, um a um, passaram como fantasmas através de uma porta fechada.
Trazer Adrian e Eddie nesta pequena excursão fazia dela mais segura, pois só Deus sabia que Devina poderia estar em qualquer lugar, a qualquer momento – além disso, Jim ainda estava aprendendo sobre os truques que poderia fazer ao se tornar um anjo caído e Eddie era mestre em todos eles. Encantos, poções, mágica – tudo isso era a especialidade de Eddie.
Com certeza ele fez PhD em abracadabra – e não era daqueles que qualquer idiota conseguiria fazer.
No porão, tudo era inóspito e limpo, o chão era de cimento e as paredes pintadas de cinza. O cheiro doce de fluídos para o processo de embalsamar fez com que Jim fosse para a direita e, enquanto ele caminhava, sentia como se tivesse voltado no tempo. Estranho demais. Essa rotina de se esgueirar era exatamente o que ele fazia de melhor durante todos aqueles anos com Matthias – e precisamente do que ele tinha se proposto a fugir.
Em sua primeira batalha com Devina, ele precisou de algumas informações e Matthias, o filho da mãe, era o único a quem poderia recorrer. Naturalmente, tudo o que dizia respeito ao bastardo estava relacionado estritamente a uma troca de favores, assim, se você quer alguma coisa, precisa dar outra em troca – e a “troca” em questão era matar Isaac. Afinal, não havia nenhuma carta de recomendação para os demitidos ou um Rolex de ouro para os aposentados das operações extraoficiais – você ganhava um tiro na cabeça e, se tivesse sorte, talvez um caixão para seu cadáver.
E, mesmo assim, era curiosamente gratificante: ser designado para assassinar o cara era a única maneira de ajudá-lo; caso contrário, não haveria nenhum modo de saber que Isaac tinha saído e era um homem caçado agora: Jim foi o único que saiu dessa inocentado.
Mas, então, sua situação era um “chute no saco” nas “circunstâncias extenuantes” de Matthias.
Ele parou em frente a uma porta dupla feita de aço inoxidável onde estava marcado APENAS FUNCIONÁRIOS e olhou por cima do ombro.
– Não toque em nada, Adrian.
Só Deus sabia que o anjo parecia querer tocar em tudo que se movia – o que o fazia se perguntar se coisas imóveis poderiam limitá-lo.
Com um palavrão, Adrian tomou uma atitude esnobe.
– Eu só toco se eles pedirem.
– Que alívio.
– Mas, você sabe, reanimá-los é possível.
– Não essa noite, não é mesmo? E, certamente, não neste lugar.
– Cara, você poderia acabar com a diversão em um clube de strippers.
– Não, obrigado.
Esquivando-se na grande sala da clínica, ficou muito óbvio por que filmes de terror utilizavam necrotérios como cenários. Entre a luz de segurança verde, as macas com rodinhas e os vãos por onde passavam os fluidos no chão, o local era perfeito para um caso de horror.
Mesmo que tivesse morrido e ido para o céu e toda aquela baboseira, suas glândulas suprarrenais ainda davam sinal de alerta. Mas, na verdade, os espasmos aconteciam não por causa dos outros caras mortos, mas pelo fato de que ele iria olhar o rosto de seu próprio cadáver.
Enquanto se dirigia para a unidade de refrigeração, com suas fileiras de superfícies planas e gélidas, ele sabia exatamente o que estava fazendo. Se ele não matasse Isaac dentro do prazo, duas coisas iriam acontecer: alguém faria isso e alguém seria enviado para procurar Jim.
E essa era a razão pela qual estavam ali. Seu antigo chefe ia querer ter certeza de que Jim tinha batido as botas, por assim dizer: Matthias não acreditava em certidões de óbito, laudos de necropsia ou fotografias, pois ele sabia muito bem como era fácil forjar esse tipo de documentação. Ele também não confiava em funerais, cemitérios ou viúvas e mães chorando, pois ele já tinha substituído corpos demais ao longo dos anos. A verificação face a face era a única maneira de ter certeza de algo assim, segundo sua cartilha.
Geralmente, Matthias enviava o segundo cara na linha de comando para fazer a dupla checagem, mas Jim tinha certeza de que o maioral seria o único a verificar o fato nesse caso. Era muito raro o bastardo sair de seu esconderijo e Jim precisava encontrá-lo cara a cara.
E a única maneira de fazer isso era usar seu próprio corpo congelado como isca.
E um pouco da mágica de Eddie.
Verificando as placas de identificação colocadas na frente das portas, ele encontrou seu nome entre Agnes D’Arterio e James Rutherford.
Girando o trinco, abriu a porta de 90 por 60 centímetros... e puxou o corpo para fora da geladeira. Havia um lençol que o cobria da cabeça aos pés e seus braços tinham sido cuidadosamente inseridos nas laterais. O ar que saía flutuando do vão da gaveta era frio e seco e cheirava a anticongelante.
Cara, mesmo tendo visto tantos cadáveres ao longo de sua vida violenta e cheia de sangue, aquilo o arrepiava.
– Diga o que eu devo fazer – disse a Eddie de maneira sombria.
– Você tem o objeto de invocação? – o anjo perguntou, colocando-se do outro lado.
Jim colocou a mão no bolso e pegou uma pequena peça de madeira que tinha sido esculpida há muitos, muitos anos, nos trópicos, do outro lado do planeta. Ele e Matthias nem sempre estiveram em desavença e Matthias nem sempre foi o chefe.
E, naquela época, quando os dois estavam no mesmo nível das operações extraoficiais, Jim ensinou o cara a esculpir.
A miniatura de um cavalo foi feita com uma competência surpreendente, considerando que foi a primeira e única coisa que Matthias tinha esculpido. Se a memória não o enganava, aquilo tinha levado umas duas horas – o que constituía a razão pela qual estava sendo usada: aparentemente, objetos inanimados tinham outras funções além de acumular poeira. Eles absorviam a essência de qualquer pessoa a quem tinham pertencido ou que o tinham fabricado e o que permanecia no espaço entre as moléculas era muito útil se você soubesse o que fazer com isso.
Jim segurou o cavalo.
– E agora?
Eddie arrancou o lençol do rosto cinza e manchado de Jim. Por um momento, era difícil se concentrar em qualquer coisa além de que estava morto havia 48 horas. Mas que inferno, a morte com certeza não nos deixa mais bonitos. Até mesmo os góticos teriam uma cor de pele melhor.
– Ei, não fale assim dos meus colegas – Adrian interrompeu. – Eu prefiro qualquer uma das nossas a uma idiota do sul da Califórnia com melões de plástico e cheia de spray bronzeador.
– Pare de ler minha mente, filho da mãe. E, de qualquer maneira, você transaria com a idiota.
Adrian sorriu e flexionou os grandes braços.
– Sim. Eu transaria. E com a irmã dela também.
Sim, aquele anjo parecia ter superado tudo o que o demônio Devina tinha feito a ele na noite da “morte” oficial de Jim. Era isso, ou ele foi automedicado com várias Barbies bem vivas e respirando, que eliminou qualquer tipo de introspecção.
Eddie tirou um pedaço de metal do bolso e mostrou o que fazer primeiro.
– Raspe um pouco o objeto com isso sobre o corpo. Qualquer lugar está bom.
Jim escolheu as superfícies planas de seu peito e os sons eram suaves dentro daquela fria caverna de azulejos.
Eddie pegou a ferramenta de volta.
– Onde está sua faca?
Jim pegou a faca de caça que foi dada a ele na época em que entrou no serviço militar. Matthias ganhou outra arma idêntica ao mesmo tempo – e a usou para esculpir o cavalo, isso era fato.
– Corte a palma de sua mão e segure firme o objeto. Ao fazê-lo, imagine claramente a pessoa que você quer ver aqui. Lembre-se do som de sua voz. Procure vê-lo em lembranças específicas. Veja como ele se movimenta, os gestos que faz, as roupas que veste, o cheiro da colônia que usa.
Forçando sua mente para se concentrar, Jim tentou chamar à memória alguma coisa, qualquer coisa, sobre Matthias, o filho da mãe...
A imagem que veio à sua mente era de uma clareza surpreendente: ele estava de volta ao deserto naquela noite, com o cheiro do produto químico explosivo em seu nariz e o som de “hora de fazer alguma coisa” em seus ouvidos. Matthias estava sem pernas, seu olho esquerdo tinha praticamente desaparecido no globo ocular e seu uniforme militar estava coberto por uma poeira clara e sangue vermelho brilhante.
– Danny... meu garoto... Danny... – ele dizia.
Jim colocou a lâmina no centro da palma de sua mão e a arrastou através de sua pele, deixando escapar um leve ruído quando o aço cortou fundo e com precisão.
A voz de Eddie interrompeu a lembrança e a dor gelada.
– Agora pegue sua mão e esfregue sobre as lascas de madeira. Então, pegue seu isqueiro e as aqueça. Levante a mão, sopre o fogo e a superfície do corpo, mantendo a imagem em sua mente.
Jim fez como ele orientou... e foi espantoso ver o brilho azul crescente na ponta de seu isqueiro Bic, era como se a coisa tivesse se transformado magicamente em um maçarico. E a expressão de “ei, veja só isso” não parou por ali. A chama que foi colocada em volta de seu corpo o cobriu por inteiro, com uma luz oscilante.
– Só isso – disse Eddie.
Jim acendeu o isqueiro e apenas olhou para si mesmo, perguntando-se o que Matthias ia pensar.
Houve um tempo, há muito tempo, quando ele e o cara tinham sido próximos um do outro. Mas, conforme os anos se passaram, o bastardo seguiu um caminho e Jim outro. E isso foi antes de toda aquela coisa de estar morto e ser um anjo caído.
Mas não se tratava dele e de Matthias.
Jim colocou o lençol de volta no lugar, cobrindo seu rosto e se perguntando quanto tempo levaria para a magia trazer Matthias até ali e para Jim ver o cara novamente.
Ele deslizou a mesa para dentro do refrigerador e fechou a porta, interrompendo aquele brilho azul fosforescente.
– Vamos dar o fora daqui.
Ele ficou em silêncio ao longo do caminho de saída, perdido em más recordações sobre o que tinha feito e quem tinha matado enquanto atuava nas operações extraoficiais. Dá para imaginar. Além da sua adrenalina, parecia que seus demônios pessoais também tinham sobrevivido à morte. Na verdade, ele tinha um pressentimento de que seus arrependimentos seriam um fardo eterno: a parte não muito legal de ser imortal era que o fim do jogo não existia, nenhuma perspectiva de pular fora da viagem quando as coisas ficarem difíceis e esmagadoras... e você passa a desprezar a si mesmo.
Quando ele e seus companheiros ressurgiram no gramado do lado de fora da funerária, estavam de volta à caça de Isaac Rothe.
– Tenho que encontrar aquele homem – ele disse de maneira severa. Contudo, era muito improvável que tivessem esquecido o que estavam fazendo.
Fechando os olhos, ele se concentrou naquilo que o levaria a percorrer quilômetros de distância entre Caldwell e o local onde Isaac foi visto pela última vez...
As enormes asas de Jim desfraldaram em suas costas, o caminho de penas que refletia as cores do arco-íris se estendia e flexionava como se fosse um membro que se comprimia. Quando levantou os olhos, Eddie e Adrian estavam movimentando as asas deles também, dois anjos caídos magnificentes e etéreos sob a iluminação das ruas.
Quando um carro passou, não houve qualquer guincho de freada ou um desvio no caminho. As asas, assim como ele, Eddie e Adrian, estavam e não estavam ali, eram reais e irreais, tangíveis e intocáveis.
Eram apenas o que eram.
– Pronto? – Eddie perguntou.
Jim lançou um olhar para trás, para o local onde sua antiga forma humana estava agora, forma que não era apenas um cadáver congelado, mas também uma isca para o homem a quem ele odiava.
Mesmo tendo salvado a vida do filho da mãe.
– Sim, vamos lá.
Para o alto, avante e toda aquela baboseira: em um piscar de olhos eles estavam voando através da escuridão dos céus e das estrelas cintilantes nas fortes e inabaláveis asas da Angel Airlines, como ele as chamava.
Das alturas e vivo, ele retomou sua busca por um homem que já estava sendo caçado... seguiu em direção a Boston com todas as suas notórias armas em chamas.
CAPÍTULO 3
Devina era um demônio tão poderoso que perdia apenas para Aquele que criou os céus e a Terra: ela poderia assumir todos os tipos de rostos e corpos, tornando-se outra pessoa a qualquer hora e em qualquer lugar. Ela poderia aprisionar almas por toda eternidade. Ela comandava um exército de mortos-vivos.
E se cruzasse o caminho dela, poderia fazer com que a vida se tornasse um inferno. Literalmente. Mas ela tinha um pequeno problema.
– Desculpe, estou atrasada – disse ao entrar correndo no aconchegante escritório vermelho. – Tive um compromisso que levou mais tempo do que eu esperava.
Sua terapeuta sorriu da poltrona.
– Não se preocupe. Precisa de alguns momentos para se recompor?
Devina estava realmente atrasada e, quando se sentou, colocou sua bolsa Prada ao seu lado. Respirando fundo, ela arrumou seus cabelos morenos – ilusão corpórea que a mulher humana conseguia ver – e empurrou as calças de couro de lagarto – que realmente existiam.
– O trabalho tem sido um inferno – ela disse, olhando para baixo e verificando mais uma vez se o zíper da bolsa estava fechado. Havia manchas de sangue na blusa com capuz que estava dentro dela e a última coisa que precisava era ter de se explicar. – Simplesmente um inferno.
– Fiquei contente por ter pedido uma sessão noturna extra. Depois da semana passada, estive pensando em você e no que aconteceu. Como você está?
Devina desacelerou um pouco do caos de que tinha acabado de sair e se concentrou em si mesma. O que não era algo muito alegre. Imediatamente, lágrimas escorreram de seus olhos.
– Eu estou...
Nada bem.
Ela se esforçou para dizer alguma coisa.
– O pessoal da mudança colocou tudo no novo local onde vou morar agora e a maioria das coisas ainda está em caixas. Passei a tarde tentando desempacotar tudo, mas tem muita coisa e eu preciso ter certeza de que está tudo no lugar certo. Eu preciso verificar se o meu...
– Devina, pare de falar sobre coisas. – A terapeuta fez uma pequena anotação em seu caderno preto. – Nós podemos pensar nisso mais para o fim da sessão. Eu quero saber como você está. Diga como você se sente.
Devina olhou o tapete bordado e se perguntou, não pela primeira vez, o que a mulher iria pensar se ela soubesse que estava tratando de um demônio. Desde que Devina tinha chegado a Caldwell, fazia terapia com uma psicóloga e isso já somava mais de um ano. Ela manteve sua verdadeira identidade oculta sob sua forma favorita: de uma mulher morena, elegante e sexy. Mas por baixo disso... especialmente depois de sua primeira perda para Jim Heron... tudo estava uma tremenda bagunça.
E aquela humana estava realmente ajudando.
Devina puxou um lenço de papel da caixa sobre a mesa ao lado dela.
– É que eu simplesmente... odeio me mudar. Sinto que estou totalmente fora de controle. E perdida. E... assustada.
– Sei que está. – Havia de fato um calor que emanava dos poros da mulher. – Mudar-se é uma das coisas mais difíceis a se fazer para uma pessoa como você. Estou muito orgulhosa.
– Não tenho tempo. Não tenho tempo para fazer isso direito. – Mais lágrimas. Algo que ela odiava. Mas, Deus, ela tinha que arrumar rapidamente todas as suas coleções no lugar certo em questão de horas, misturando tudo, jogando as coisas em caixas.
– Eu ainda não consegui ordenar tudo e me certificar de que nada foi quebrado ou perdido.
Oh, Deus... perdido.
O pânico se espalhou em seu peito e fez o coração que possuía começar a bater três vezes mais rápido.
– Devina, olhe para mim.
Ela forçou seus olhos a se concentrarem mesmo em meio ao ataque de pânico.
– Sinto muito – ela soluçou.
– Devina, a ansiedade não é sobre as coisas. É sobre seu lugar nesse mundo. É sobre o local que você declara como sendo emocional e espiritualmente seu. Você precisa se lembrar de que não precisa de objetos para justificar sua existência ou para fazer com que se sinta sã e salva.
Certo, tudo aquilo soava muito bem, tudo muito bom, mas as coisas dela na Terra eram o que a ligava às almas que pertenciam a ela, a única ligação que ela tinha com suas “crianças”. Ao longo dos séculos, ela tinha acumulado possessões pessoais de cada alma que tomou: botões, abotoaduras, anéis, brincos, dedais, agulhas de tricô, óculos, chaves, canetas, relógios... a lista continuava. Ela preferia coisas feitas de metal precioso, mas qualquer tipo de metal servia: assim como a maneira que o material refletia a luz, ele também emanava as vibrações de quem tinha possuído, vestido ou usado o objeto.
A marca que irradiava daqueles seres humanos era a única coisa que a acalmava quando não conseguia chegar até seu santuário para uma visita pessoal.
Deus, ela odiava ter que trabalhar na Terra. Com um tremor de mãos, ela limpou as lágrimas.
– É que eu simplesmente não consigo suportar ficar tanto tempo longe delas.
– Contudo, você precisa trabalhar. Você mesma disse. E seu ex-marido está mais bem preparado para lidar com o cuidado diário das crianças.
– Ele está. – Ela teve que inventar uma história que se parecesse de alguma maneira com uma situação humana. Não havia ex-marido, nem precisava dizer, mas quanto ao trabalho paralelo: suas almas estavam seguras onde as tinha deixado. É que ficar longe delas simplesmente a matava. Não havia qualquer outro lugar em que ela preferisse estar ao fundo do seu poço, vendo as contorções, os gritos da multidão presa para sempre em seus muros.
Brincar com eles era divertido, também.
– Então, como você ficou? – a terapeuta perguntou. – Depois que seu namorado e você decidiram terminar o relacionamento, para qual lugar da cidade você se mudou?
Agora, sua ansiedade se transformou em raiva. Ela não conseguia acreditar que tinha perdido a primeira batalha com Jim Heron... ou com aquele bastardo idiota que tinha invadido seu espaço particular. Graças a ele e àqueles outros dois anjos, ela teve de pegar tudo o que tinha e evacuar aquele galpão a toque de caixa.
– Tenho um amigo que tem um edifício vago. – Na verdade, não era bem um amigo. Era apenas um cara com quem ela tinha transado até que ele assinasse os papéis. Então, ela o matou, colocou o corpo dentro de um latão de lixo e selou a tampa. Ele estava em seu próprio porão agora, se decompondo bem devagar.
– E a mudança está completa?
– Sim, está tudo lá. Mas, como disse, eu ainda não organizei tudo de maneira adequada. – Contudo, ela tinha encontrado outra virgem, que foi cuidadosamente sacrificada e colocada como uma boa proteção para o espelho que a levava de volta ao inferno.
– Porém, instalei um sistema de segurança.
Se alguém violasse o selo de sangue que tinha posto no quarto onde a maioria de suas posses de valor estavam, ela descobriria num piscar de olhos. Foi assim que soube o instante em que Jim e seus camaradas anjos violaram seu espaço. Era assim que protegia suas coisas.
Porém, virgens eram difíceis de encontrar hoje em dia. Com todo mundo fazendo tanto sexo, o que era muito fácil de conseguir antes agora se tornava cada vez mais raro. Ela nunca matava crianças; era errado demais – seria como se alguém tirasse uma das almas dela. Mas tentava encontrar alguém por volta dos dezoito anos que ainda não tinha transado. Precisava ficar nisso por dias.
Vida longa ao movimento de abstinência, era tudo o que ela poderia dizer.
– Espere, edifício? – a terapeuta disse. – Você não está morando num prédio qualquer, está?
– Ah, não. Estou em um hotel por enquanto. Eu preciso sair da cidade a trabalho. Na verdade, preciso ir a Boston. – Pois era tempo da segunda batalha com seu maior inimigo.
Ah! Maldito seja, ela iria ganhar dessa vez.
– Devina, está fazendo um ótimo trabalho. – A terapeuta bateu uma de suas mãos no joelho dela e sorriu. – Você vai morar longe de suas coisas. Fez um importante avanço.
Não era bem assim, considerando que ela poderia estar em qualquer lugar em um piscar de olhos.
– Agora me diga, como está seu trabalho? Sei que a semana passada foi difícil.
A mão de Devina encontrou sua bolsa e tocou o couro macio.
– Vai melhorar. Vou dar o meu melhor.
– Tem um novo parceiro no trabalho. Como estão as coisas com ele? Sei que há um desgaste inicial.
Desgaste? Sim, pode-se dizer assim.
Ela pensou em si e em Jim Heron no estacionamento do Iron Mask, onde ele a penetrou profundamente, ela cavalgou com firmeza em cima dele. Apesar do fato de odiá-lo intensamente, não se importaria em ter um simples momento mais íntimo com ele.
Devina endireitou as costas.
– Ele não vai se tornar o vice-presidente. Não importa o que eu tenha de fazer, mas eu trabalhei muito durante muito tempo para ver um cara caindo de paraquedas na minha área e tomando tudo o que é meu.
Sete almas. Sete chances para o bem ou o mal vencer. E a primeira tinha sido favorável ao outro lado. Mas três que fossem a favor de Jim Heron e ela não estaria apenas fora do “trabalho”, mas os anjos tomariam conta da Terra e cada uma de suas almas seria redimida.
Todo aquele esforço para nada: suas coleções desapareceriam. Seu exército também. Ela mesma... desapareceria.
Deixava encarou a terapeuta.
– Não vou permitir que ele vença.
A mulher assentiu com a cabeça.
– Você tem um plano?
Devina deu um tapinha em sua bolsa.
– Sim, tenho. Tenho mesmo.
Depois da sessão, Devina se dirigiu para o norte e para o leste, esvaindo-se no ar como uma sombra escura e voando pelo seu caminho através da noite. Ela reassumiu sua forma na Rua Boylston, em frente ao Jardim Público de Boston, onde os salgueiros-chorões ao longo da lagoa já estavam esverdeados.
A modesta parede de tijolos do Hotel Four Seasons, com sua entrada, seu pórtico para carruagens e as janelas de seu restaurante, ocupava quase todo o quarteirão. Ainda que o exterior fosse bastante simples, o interior era todo revestido de madeira e um elegante brocado, e sempre havia flores frescas.
Ela poderia ter ido direto para o quarto, mas era um desperdício não mostrar suas roupas: a calça de couro de lagarto Prüne e a blusa Chanel estavam um espetáculo, sem falar no seu sobretudo Stella McCartney.
E, como pode imaginar, era apenas sua segunda noite aqui e os porteiros e o pessoal da recepção já a cumprimentavam enquanto deslizava ao longo da entrada, seus sapatos Louboutins ecoando sobre o mármore.
O que a fazia se lembrar de algo que ela já sabia: de todas as formas de carne humana que já tinha usado, essa – a de uma mulher morena com pernas irresistíveis e um par de seios que faziam os homens humanos delirarem – era a que melhor se adaptava a ela. Ainda que tecnicamente fosse um ser assexuado, sua experiência comprovava que seu arsenal de armas era mais bem empunhado por uma mão bem cuidada em uma manicure. Além disso, ela gostava mais das roupas femininas.
E do sexo também.
Sua suíte no piso superior tinha uma vista magnífica do jardim e da cidade de Boston e muitos cômodos enormes – assim como um excelente serviço de quarto. O buquê de rosas era um detalhe agradável e fornecido como cortesia do hotel.
Isso era o que se recebia ao pagar milhares e milhares de dólares por um local para morar.
Ela atravessou a sala e o quarto principal com banheira de mármore. Colocou a bolsa sobre o balcão entre as duas pias e tirou a blusa com capuz que tinha conseguido no octógono onde aconteciam as lutas clandestinas. O moletom era da cor de um nevoeiro e o tamanho era extra G. Poderia ser encontrado em qualquer loja Wal-Mart ou outra de departamento, era uma daquelas roupas anônimas que poderia ter sido usada por qualquer homem, era fácil de encontrar, fácil de comprar. Nada especial.
Só que aquele era único. Especialmente devido às manchas de sangue.
Graças a Deus que aqueles policiais apareceram naquele momento. Caso contrário, ela teria perdido completamente a hora com sua terapeuta.
Tirando as roupas rapidamente, tentou deixá-las bagunçadas e bem amassadas... isso durou cerca de um minuto e meio. A desordem fez a cabeça dela reclamar e ela teve que tirar tudo dali, levou direto para o armário e pendurou tudo o que podia nos cabides. Ela usava um sutiã, que foi colocado em uma gaveta. Nada de calcinhas para se preocupar.
Ela estava realmente mais calma quando voltou ao trabalho no balcão do banheiro.
Retirando uma tesoura dourada de sua caixa de maquiagem, cortou um círculo no moletom no local sobre o qual o coração do homem que o usava ficou. Então, desfiou o tecido, as fibras de algodão cederam facilmente e caíram sobre o mármore liso formando uma pequena pilha.
Ela usou um dos lados da tesoura para cortar uma das palmas de sua mão e seu sangue adquiriu um tom acinzentado e sujo ao cair sobre o ninho de fibras que tinha feito.
Por um momento, foi trespassada pela frustração. Ela queria que o sangue ficasse vermelho – muito mais atraente.
Para dizer a verdade, Devina odiava sua real aparência. Esse corpo era muito melhor. E os outros também.
Pegando as fibras da blusa e misturando-as bem ao sangue podre de sua mão, ela imaginou o homem que teve o tecido contra sua carne, vendo seu rosto rígido e seu corte de cabelo curto que já estava crescendo e as tatuagens de seu corpo.
Ainda se ocupando do processo de mistura e mantendo a imagem de Isaac Rothe em sua mente, Devina andou nua até o quarto e sentou-se sobre o edredom. Na mesa ao lado, ela abriu uma caixa redonda e pequena de ébano e retirou uma peça de xadrez esculpida a mão – a representação de uma rainha não era tão bonita quanto seu pedaço de carne. Ela não tinha visto Jim Heron talhar a grande dama, mas ele tinha e o imaginou fazendo isso em sua mente, o imaginou segurando firme ao redor de uma faca afiada, suas mãos empunhando a ponta do aço para revelar o objeto de madeira. Pressionando o objeto que ele tinha feito em sua mão que sangrava, junto com as fibras da blusa de capuz, ela os fundiu e os integrou. Então, inclinou-se e pegou uma vela, que iluminava seu desejo. Deitada, ela soprava a chama, a essência misturada dos três fluía sobre o fogo.
O brilho púrpuro que emanou a cobriu, envolvendo-a em uma luz fosforescente... gritando pelos donos dos objetos... conclamando-os até ela.
Jim Heron não ia saber o que o atingiria dessa vez. Ele poderia ter vencido o primeiro round, mas isso não ia acontecer de novo.
CAPÍTULO 4
Quando você trabalha na central de processamento de dados da cadeia de Suffolk, no centro da cidade de Boston, você vê muita porcaria. E algumas delas eram o tipo de coisa que faz você perder o apetite.
Alguns tipos... eram simplesmente bizarros.
Billy McCray foi um policial que fez ronda por muito tempo para a primeira companhia de polícia de Southie*, servindo ao lado de seus irmãos, primos e de seu velho pai. Depois de ter sido baleado em serviço, há quinze anos, o sargento conseguiu um trabalho interno para ele – e ele não só encaixava muito bem sua cadeira de rodas sob o balcão como também tinha a mesma habilidade para lidar com papéis. Ele começou fazendo o registro das detenções e tirando fotos dos infratores, mas agora estava encarregado de tudo.
Ninguém sequer assoava o nariz no local sem que Billy dissesse que não havia problemas em pegar um lenço de papel.
E ele adorava o que fazia, mesmo que isso parecesse muito estranho às vezes.
Como a primeira coisa que aconteceu essa manhã. Às seis horas. Ele registrou uma mulher branca que usava um par de latas de Coca-Cola como tapa-sexo, os dois pedaços de alumínio estavam fixados em seus mamilos e colados em linha reta. Ele tinha um pressentimento de que aquela foto para registro policial ia acabar na Internet e, provavelmente, ela iria gostar da exposição: antes de tirar a foto, ele ofereceu uma camiseta ou qualquer coisa assim, mas não, ela queria mostrar suas... digamos, latas.
South Boston, chamada por seus moradores de “Southie”. É uma região da cidade de Boston conhecida por sua população de trabalhadores descendentes de irlandeses. [N.R.]
Pessoas. Francamente.
Tirar a cola que fixava os objetos de seu corpo era fácil, mas eles a serviam apenas com um único copo descartável, para o caso dela ter outra ideia brilhante...
Quando a porta de aço se abriu no final do corredor de entrada, Billy endireitou-se em sua cadeira.
A mulher que entrou era um espetáculo, sim, mas não da maneira como a maioria dos malucos que estavam ali. Do ângulo que McCray observava, ela parecia ter mais de três metros e um cabelo loiro que estava amarrado em um coque no alto da cabeça. Usando um tailleur perfeitamente cortado e um casaco longo e formal, ele sabia sem que nada dissessem que a bolsa dela valia mais do que ele tinha em seu plano de previdência privada.
Sem falar naquele cordão de ouro enorme em volta de seu pescoço.
Quando dois guardas passaram por ela, eles também se endireitaram e firmaram a voz... e, imediatamente, olharam por cima dos ombros para dar uma conferida na parte de trás da mulher.
E quando ela chegou à repartição de acrílico que havia em frente dele, ficou feliz em já ter deslizado a cadeira para trás, pois conseguiu sentir seu perfume.
Deus... era sempre a mesma coisa. O perfume caro dos ricos.
– Oi Billy, como Tom está indo na academia de polícia?
Com um traço muito característico da região nobre de Boston, a entonação da advogada Grier Childe fazia uma simples pergunta soar melhor do que algo escrito por Shakespeare. Mas, ao contrário daqueles riquinhos, ela não era uma idiota e seu sorriso era genuíno. Ela sempre perguntava por seu filho e sua esposa e olhava mesmo para ele, encontrava seus olhos e não o tratava apenas como alguém que ficava atrás de uma mesa o dia todo.
– Ele está indo muito bem. – Billy sorriu e cruzou os braços sobre seu peito inchado. – Ele se forma em junho. Vai trabalhar em Southie. Ele é um bom atirador, como o pai – o garoto poderia acertar uma lata a um quilômetro de distância.
Infelizmente, aquilo o lembrou da garota com as latas de Coca, mas ele afastou a imagem da cabeça. Era muito melhor aproveitar a visão da senhorita Childe, lembrava algo nobre.
– Não me surpreende que Tommy seja um perito em tiros. – Ela assinou o registro e apoiou o quadril no balcão. – Como disse, ele puxou a você.
Mesmo depois de dois anos, ele ainda não conseguia acreditar que ela parava para conversar com ele. Sim, claro, os promotores e os defensores públicos conversavam, mas ela trabalhava para empresas mais tradicionais, que atuavam há séculos em Boston – e, geralmente, isso significava que falavam apenas o necessário.
– E como vai sua Sara? – ela perguntou.
Enquanto conversavam, ele digitava seu nome no sistema para puxar suas atribuições. A cada seis meses ou mais, ela atuava em um sistema rotativo como defensora pública. Naturalmente, aquilo era um trabalho voluntário para ela. Sem dúvida, sua hora devia ser tão cara que ele tinha certeza de que os clientes que chegavam ali não poderiam pagar mais de duas palavras dela, muito menos uma hora... ou, meu Deus, o valor equivalente ao tempo gasto em um caso.
Quando viu o nome que estava próximo ao dela, ele franziu a testa.
– Está tudo bem? – ela perguntou.
Bem, não, não estava.
– Sim. Tudo bem.
Isso porque ele estava providenciando para que tudo ficasse bem para ela.
Ele alcançou a lateral de uma pilha de arquivos.
– Aqui está a documentação do seu cliente. Se você for até a sala número um, posso trazê-lo até você.
– Obrigada, Billy. Você é o melhor.
Depois de anunciá-la na porta principal da recepção na unidade de recepção e processamento de dados da cadeia, ela caminhou até a sala que ele providenciou – e que ficava bem ao lado de seu escritório. Fazendo uma observação em seu computador, ele pegou o telefone e discou para a unidade de detenção.
Quando Shawn C. atendeu, ele disse: – Traga aqui para cima o número cinco, quatro, oito, nove, setenta, sobrenome Rothe. É para nossa senhorita Childe.
Breve silêncio.
– Ele é um dos grandes.
– Sim, ouça, você poderia conversar com ele? Talvez lembrá-lo de que se for educado com a advogada, poderemos facilitar sua vida depois.
Houve outra pausa.
– Eu ficarei do lado de fora da porta quando ele estiver lá dentro com ela. Tony vai me dar cobertura aqui em baixo.
– Bom. Sim, muito bom. Obrigado.
Quando Billy desligou, posicionou sua cadeira de rodas para observar as telas que monitoravam a segurança. Na tela do canto inferior esquerdo, ele observou que a senhorita Childe sentou em uma mesa, abriu o arquivo e olhou os relatórios.
Ele ia ficar de olho nela até que saísse dali em segurança.
A questão era, lá em baixo, na cadeia, havia dois tipos de pessoas: os experientes e os inexperientes. Os experientes eram tratados com educação e tudo mais, mas os inexperientes... particularmente os mais jovens, legais, com belos sorrisos e muita classe... esses precisavam ter cuidado.
E isso significava que Shawn C., o guarda, ficaria parado na entrada, olhando através da janela o tempo todo para observar como aquele maníaco homicida que foi preso por lutar ilegalmente agiria com a menina deles.
Se aquele filho da mãe respirasse errado perto dela, bem... basta dizer que na área de Billy, ninguém estava imune de uma pequena ação corretiva. Todos os guardas e os funcionários sabiam do canto escuro no porão onde não havia câmeras de segurança e ninguém conseguia ouvir um grito sequer de um idiota recebendo o que merecia.
Billy se recostou na cadeira e balançou a cabeça. Havia uma boa menina lá dentro, muito boa mesmo. Claro, considerando o que tinha acontecido com seu irmão... há males que vêm para o bem, não é mesmo?
Grier Childe sentou-se em frente a uma mesa de aço inoxidável em uma cadeira fria do mesmo material. Toda a mobília estava aparafusada ao chão e os outros itens eram as câmeras de segurança em uma extremidade da sala e uma lâmpada no teto que tinha uma gaiola em torno dela. As paredes eram de blocos de concreto que tinham sido pintados tantas vezes que quase produzia o efeito de um papel de parede macio e o ar cheirava a algum tipo de produto de limpeza para chão com álcool, a colônia do último advogado ainda estava na sala e também um velho odor de fumaça de cigarro.
O lugar não poderia ser mais diferente de todos os outros que ela trabalhava normalmente. Escritórios de Boston como Palmer, Lords, Childe, Stinston & Dodd pareciam um museu de arte e mobília do século dezenove. O PLCS&D não tinha seguranças armados, nem detectores de metais e nada era aparafusado para impedir que algo fosse roubado ou jogado em alguém.
Os uniformes nesses lugares vinham da Brooks Brothers e da Burberry.
Ela fazia defensoria pública voluntária havia dois anos e levou pelo menos doze meses para se dar bem com a recepção, os funcionários e com os guardas. Mas agora, sempre que chegava, era como se estivesse em casa – e ela gostava mesmo do pessoal.
Muita gente boa trabalhava duro no sistema.
Abrindo o arquivo de seu novo cliente, ela reviu as acusações, o formulário de admissão e o histórico: Isaac Rothe, 26 anos, apartamento na Rua Tremont. Desempregado. Sem antecedentes. Preso junto com outras oito pessoas por fazer parte de uma confusão na noite anterior em um local clandestino de lutas e apostas. Não houve necessidade de um mandado, pois os lutadores tinham invadido propriedade privada. De acordo com o relatório da polícia, seu cliente estava no ringue no momento em que os policiais invadiram. Aparentemente, o cara com quem ele lutava estava sendo tratado no Hospital Mass General...
São nove horas da manhã de um sábado... Você não tem vida?
Mantendo a cabeça baixa, Grier apertou os olhos.
– Agora não, Daniel.
Só estou dizendo. Enquanto a voz de seu irmão morto entrava e saía vagando em sua mente, aquele som que já não existia mais a enlouquecia. Você tem 32 anos e, ao invés de estar confortável na cama de algum garotão, fica sentada na delegacia com um café fedorento.
– Não estou tomando café nenhum.
Naquele momento, a porta foi escancarada e Billy entrou.
– Achei que gostaria de algo para despertar.
Bingo, seu irmão disse.
Cale a boca. Ela respondeu em pensamento.
– Billy, que gentileza – ela pegou o que o supervisor oferecia, o calor do café atravessou a xícara até sua mão.
– Bem, você sabe, é água de batata. Todos nós odiamos. – Billy sorriu. – Mas é uma tradição.
– Claro. – Ela franziu a testa ao vê-lo hesitar. – Há algo de errado?
Billy deu um tapa de leve na cadeira vaga próxima a ele.
– Você se importaria em sentar aqui?
Grier apoiou a xícara.
– Claro que não, mas por quê...
– Obrigada, querida.
Houve uma pausa. Estava claro que Billy esperava que ela mudasse de lugar e não estava inclinado a se explicar.
Empurrando o arquivo sobre a mesa, ela foi ao outro banco que ficava de costas para a porta.
– Boa garota – deu um apertão em seu braço e soltou.
A mudança de posição significava que ela conseguiria ver uma tênue aparição de seu amado irmão mais novo. Daniel estava recostado no canto da sala, pés cruzados sobre os tornozelos, braços sobre o peito. Seu cabelo loiro estava brilhante e limpo e usava uma camisa polo coral e um bermudão largo.
Ele parecia um modelo morto-vivo em um anúncio da Ralph Lauren, um tipo muito americano, privilegiado com um bronzeado por ter velejado em alguma região litorânea.
Só que ele não sorria para ela, como costumavam fazer. Eles querem que o cara fique de frente para a porta, assim, o guarda lá fora pode ficar de olho nele. E eles não querem que você fique presa na sala. Se ele for agressivo, você terá mais facilidade de sair daqui assim.
Esquecendo a câmera de segurança e o fato de que não se dirigia a nada além do ar, ela se inclinou.
“Ninguém vai...”
Você tem que parar com isso. Pare de tentar salvar as pessoas e aproveite a vida.
O mesmo digo a você. Pare de me assombrar e aproveite a eternidade.
Eu iria. Mas você não vai me deixar ir.
Naquele momento, a porta atrás dela se abriu e seu irmão desapareceu.
Grier se enrijeceu quando ouviu o som do tilintar das correntes e do arrastar dos pés.
E, então, ela o viu.
Santa... Maria... mãe... de...
O que foi trazido escoltado por Shawn C. tinha quase dois metros de puro músculo. Seu cliente estava “vestido”, o que significava que estava com seu uniforme da prisão. Suas mãos e pés estavam atados por uma corrente de aço que pendia em frente a suas pernas e envolvia a cintura. Seu rosto rígido tinha o tipo de bochechas ocas resultantes de ter zero por cento de gordura corporal e seu cabelo escuro estava aparado com um corte militar. Havia algumas contusões desbotadas ao redor dos olhos, uma bandagem branca brilhante assentada próxima ao seu couro cabeludo... e havia uma vermelhidão ao redor do pescoço, como se tivesse sido maltratado muito, e muito recentemente.
O primeiro pensamento dela foi: estava contente pelo bom e velho Billy McCray ter trocado ela de lugar. Ela não tinha certeza de como sabia, mas tinha a sensação de que, se seu cliente quisesse, poderia derrubar Shawn C. em um piscar de olhos – a despeito das algemas e do fato de que o guarda tinha a constituição de um buldogue e anos de experiência com homens grandes e inconstantes.
Os olhos de seu cliente não encontraram os dela, mas permaneceram fixados no chão enquanto o guarda o empurrava para dentro do espaço apertado entre a cadeira vazia e a mesa.
Shawn C. inclinou-se até o ouvido do homem e sussurrou alguma coisa.
Resmungou alguma coisa, melhor dizendo.
Em seguida, o guarda lançou um olhar para Grier e sorriu com força, como se não estivesse gostando daquela coisa toda mas tinha que agir como um profissional.
– Olha, vou ficar do lado de fora da porta. Precisa de alguma coisa? Se precisar, é só gritar que estarei aqui.
Com uma voz mais baixa, disse: – Vou ficar de olho em você, garoto.
De alguma maneira, ela não ficou surpresa com as precauções. Apenas sentar em frente ao seu cliente fazia com que ficasse preocupada. Ela não conseguia imaginá-lo se deslocando ao redor do presídio.
Deus, ele era grande.
– Obrigada, Sr. Shawn – ela disse em voz baixa.
E, então, ela ficou sozinha com o Sr. Isaac Rothe.
Medindo a circunferência de seus ombros enormes, ela observou que não estavam se contorcendo ou mostrando alguma inquietação, o que ela considerou ser um bom sinal – com sorte, não havia metanfetamina ou cocaína no corpo. E ele não a encarava de maneira inconveniente, nem examinava suas roupas ou lambia os lábios.
Na verdade, ele não olhou para ela, seus olhos permaneceram na mesa em frente dele.
– Meu nome é Grier Childe e fui designada para cuidar do seu caso. – Quando ele não levantou os olhos ou assentiu, ela continuou. – Tudo o que disser a mim é confidencial, o que significa que, segundo a lei, não vou revelar nada a ninguém. Além disso, aquela câmera de segurança logo ali não tem áudio, então, ninguém mais pode ouvir o que você me disser.
Ela esperou... e ainda assim não houve resposta. Ele apenas ficou ali sentado, respirando de maneira estável, toda sua força contida nas mãos algemadas colocadas sobre a mesa e seu grande corpo comprimido na cadeira.
Na primeira reunião, a maioria dos clientes com quem lidou ali ficava largada na cadeira e seguia a rotina carrancuda ou mostrava que estava muito indignada e ofendida, falando qualquer coisa para se defender. Ele não fez nada disso. Sua coluna permaneceu ereta como uma flecha, ele estava totalmente alerta, mas não disse uma palavra.
Ela limpou a garganta.
– As acusações contra você são sérias. O cara com quem estava lutando deu entrada no hospital com uma hemorragia cerebral. Neste momento, você responde por agressão de segundo grau e tentativa de homicídio, mas, se ele morrer, será acusado de assassinato de segundo grau ou homicídio culposo.
Nada.
– Sr. Rothe, gostaria de fazer algumas perguntas, pode ser?
Nenhuma resposta.
Grier recostou-se.
– Está me ouvindo?
Assim que ela começou a se perguntar se ele tinha alguma deficiência reprimida, ele falou.
– Sim, senhora.
Sua voz era tão profunda e cativante que ela perdeu a respiração. Essas duas palavras foram pronunciadas com uma suavidade que estava em desacordo total com o tamanho de seu corpo e a rigidez de seu rosto. E o sotaque dele... um tanto sulista, ela concluiu.
– Estou aqui para ajudá-lo, Sr. Rothe. Entende isso, não entende?
– Sem querer desrespeitá-la, senhora, mas não acredito que consiga.
Era mesmo sulista. Um sotaque sulista muito bonito, para dizer a verdade.
Balançando a cabeça com veemência, ela disse: – Antes de me dispensar, sugiro que considere duas coisas. Neste momento, não há fiança fixada para você, então, vai ficar preso aqui enquanto seu caso avança. E isso pode levar meses. Além disso, quem representa a si mesmo, na verdade, tem um tolo como cliente e isso não são apenas palavras. Eu não sou sua inimiga. Estou aqui para...
Ele finalmente olhou para ela.
Seus olhos eram da cor de uma geada no vidro da janela e estavam cheios das sombras que mancharam sua alma. E quando aquele olhar exausto e sombrio a cortou, aquilo congelou seu coração: ela soube imediatamente que ele não era apenas um vândalo das ruas.
Ele foi um soldado, pensou. Tinha que ter sido: seu pai tinha o mesmo olhar durante as noites silenciosas.
A guerra fazia isso às pessoas.
– Iraque? – ela perguntou em voz baixa. – Ou Afeganistão?
Suas sobrancelhas se ergueram um pouco, mas essa foi a única resposta que ela teve.
Grier deu um tapinha no arquivo dele.
– Deixe-me estabelecer uma fiança para você. Vamos começar assim, certo? Não precisa dizer nada sobre o motivo pelo qual foi preso ou o que aconteceu. Eu só preciso saber sobre seu vínculo com a comunidade e um pouco mais sobre onde você mora. Sem antecedentes, acho que temos uma chance de...
Ela parou quando percebeu que ele tinha fechado os olhos.
Certo. Era a primeira vez que um cliente dela tirava um cochilo no meio de uma reunião. Talvez Billy e Shawn C. tivessem menos com o que se preocupar do que poderiam imaginar.
– Estou lhe entediando, Sr. Rothe? – ela perguntou depois de um momento.
CAPÍTULO 5
– Estou lhe entediando, Sr. Rothe?
Não. Não mesmo.
A voz da sua defensora pública era um tipo de canção de ninar para os ouvidos de Isaac, sua inflexão aristocrática e a gramática perfeita o acalmavam tanto que ele chegava a sentir um estranho medo dela. A princípio, ele fechou os olhos por ela ser bonita demais para se olhar, mas houve um benefício adicional em desligar assim. Sem se distrair com seu rosto perfeito e seu olhar inteligente, ele era capaz de se concentrar completamente em suas palavras.
A maneira como ela falava era poética. Mesmo para um cara que nunca se viu envolvido por corações e flores.
– Sr. Rothe.
Não era uma pergunta, era uma exigência. Era evidente que ela estava ficando farta com sua atitude.
Ao cerrar os olhos, ele percebeu o impacto que ela causou nele – e tentou dizer a si mesmo que aquilo surtiu tamanho efeito por ter se passado anos desde que esteve próximo de uma verdadeira dama. Afinal, a maioria das mulheres com quem ele transou ou trabalhou eram tão casca-grossa quanto ele. Portanto, aquele penteado tão benfeito, aquele alto grau de instrução e o perfume exótico que atravessava a mesa lhe causavam um tipo de deslumbre incomum.
Deus, provavelmente ela iria desmaiar se visse sua tatuagem.
E sairia correndo, gritando, se soubesse o que tinha feito para viver nos últimos cinco anos.
– Deixe-me tentar estabelecer uma fiança para você – ela repetiu. – E, então, veremos o que vamos fazer.
Ele teve que se perguntar por que ela se preocupava tanto com uma pessoa insignificante que nunca tinha visto antes, mas era inegável que havia uma missão em seu olhar e, talvez, aquilo explicasse tudo: era evidente que descer até ali, junto à ralé, exorcizava algum tipo de demônio dela. Talvez fosse um caso de culpa pela riqueza. Talvez fosse alguma motivação religiosa. Seja lá o que fosse, ela estava extremamente determinada.
– Sr. Rothe. Deixe-me ajudá-lo.
Ele não tinha qualquer intenção de vê-la envolvida em seu caso... mas se ela pudesse libertá-lo, ele sairia dali e estaria, sem dúvida, muito mais seguro lá fora: seu antigo chefe não teria nenhum problema em mandar um homem para a cadeia sob uma acusação qualquer e engenhar um assassinato bem debaixo do nariz dos guardas.
Para Matthias, isso seria brincadeira de criança.
Isaac sentiu sua consciência pesar, o que produziu um longo silêncio, seguido por um grito interno. Mas havia uma lógica nisso: ela parecia o tipo de advogada que poderia atuar dentro do sistema e, por mais que odiasse ter que envolvê-la na bagunça em que se encontrava, queria, pelo menos, permanecer vivo.
– Ficaria muito grato se pudesse fazer isso, senhora.
Ela respirou fundo, como se tivesse dado um tempo para descansar no meio de uma maratona.
– Bom. Então, tudo bem. Agora, aqui diz que você mora nos arredores de Tremont. Há quanto tempo mora lá?
– Apenas há umas duas semanas.
Ele percebeu quando as sobrancelhas dela se uniram que aquilo não iria ajudá-lo muito.
– Está desempregado?
O termo técnico era “desertado”, ele pensou.
– Sim, senhora.
– Tem algum familiar? Aqui ou em algum lugar do estado?
– Não. – Seu pai e irmãos pensavam que ele estava morto, e Isaac não se importava com isso. E, muito provavelmente, eles também não.
– Pelo menos, você não tem antecedentes. – Ela fechou o arquivo. – Vou me reunir com o juiz em mais ou menos meia hora. O processo da fiança vai ser iniciado... conheço alguns fiadores que podem emprestar o dinheiro.
– Quanto a senhora acha que vai custar?
– Vinte mil, se tiver sorte.
– Posso pagar isso.
Outro franzir de testa e ela reabriu o arquivo, dando uma segunda olhada na sua documentação.
– Você declarou aqui que não tinha qualquer rendimento ou economias.
Como ele ficou calado, ela não lhe deu importância e não parecia surpresa. Sem dúvida, estava acostumada com mentiras de pessoas como ele, mas, infelizmente, ele poderia apostar sua vida que aquilo que escondia era muito, muito mais mortal do que toda aquela experiência como boa samaritana poderia ter lhe mostrado.
Droga. Na verdade, ele estava apostando sua vida nisso, não estava? Matthias lançava uma grande rede quando se tratava de missões e qualquer um que estivesse ao lado de Isaac corria o risco de estar na sua mira.
Só que, uma vez que ele conseguisse ir embora, nunca mais iria vê-la novamente.
– Como está seu rosto? – ela perguntou depois de um momento.
– Bem.
– Parece que está doendo. Quer um analgésico? Eu tenho um aqui.
Isaac encarou suas mãos machucadas.
– Não, senhora. Mas obrigado.
Ele ouviu o tilintar de seus saltos ao ficar em pé.
– Voltarei depois que...
A porta se abriu e o cara musculoso que tinha escoltado ele até ali entrou de uma vez.
– Estou saindo para falar com o juiz. – Ela disse ao guarda. – E ele é um perfeito cavalheiro.
Isaac permitiu-se se inclinar um pouco na vertical, mas ele não estava prestando atenção no oficial. Ele observava sua defensora pública. Ela também andava como uma dama...
Seu braço recebeu um soco forte.
– Não olhe para ela – o guarda disse. – Caras como você não devem nem seque olhar para alguém como ela.
A repreensão do Sr. Boas Maneiras foi um pouco desagradável, mas não dava importância alguma para a opinião do filho da mãe.
Mesmo que ele tivesse apenas problemas com alcoolismo e algumas multas por excesso velocidade, Isaac não chegaria nem perto do nível daquela mulher. Inferno, ele nem sequer praticaria o mesmo esporte.
CAPÍTULO 6
Jim Heron sabia há muito tempo que havia dois tipos de treinamentos físicos no mundo: o comercial e o das antigas. O primeiro tinha um esquema de cores coordenadas, as mulheres faziam aulas de spinning cheias de maquiagem e os caras, com tatuagens de carpa como as de John Mayer, levantavam pesos com luvas almofadadas. Você deveria limpar os aparelhos depois de usá-los e treinadores joviais e bronzeados verificavam suas medidas ao entrar e ao sair.
Ele tentou fazer uma dessas aulas depois que saiu das operações extraoficiais. Aquilo quase o transformou num grande preguiçoso.
O condicionamento físico das antigas era mais a praia dele e era exatamente o que ele, Adrian e Eddie iriam fazer em South Boston. A academia do Mike era um mundo de homens, meu caro: o lugar cheirava a suor, tinha paredes que eram dignas de uma prisão e fotos de Arnold dos anos oitenta penduradas nelas. As esteiras eram de neon azul, os pesos eram de ferro e a única bicicleta ergométrica em uma extremidade do local era daquelas que resistiam a furacões, com grade na ventoinha.
A maldita coisa era uma relíquia e tinha poeira no assento.
Os homens que faziam os circuitos nas máquinas ou com pesos livres eram grandes, quietos e tinham tatuagens da Virgem Maria, de Jesus e da cruz. Havia muitos narizes quebrados que foram curados fora do lugar e algumas dentaduras e dentes de ouro que eram, sem dúvida, resultado de jogos de hóquei e lutas de bar.
E claro, todos se conheciam, pois todos tinham algum tipo de vínculo.
Quando chegou à recepção, sentiu-se como se estivesse em casa. O cara atrás do balcão tinha uns sessenta anos, talvez sessenta e cinco, pele avermelhada, olhos azuis claros e cabelos mais brancos que a espuma de uma cerveja.
– O que posso fazer por vocês, rapazes? – o homem disse, colocando a edição do jornal Boston Herald sobre o balcão.
Alguns membros do lugar olharam e ficaram encarando. Jim e seus seguranças não eram pesos-leves, mas eram desconhecidos, o que os colocava no território do quem diabos são vocês?
– Estou procurando um cara – Jim disse quando pegou a foto de Isaac em um folheto e o abriu em cima do balcão de fórmica lascada. – Por um acaso você o viu por aí?
– Não, não vi. – O cara respondeu sem olhar para baixo. – Não vi ninguém.
Jim olhou em volta. Muito mais olhares estavam sobre eles e muitos pesos estavam parando de se movimentar. Era evidente que pressionar o velho homem não era algo inteligente a se fazer se ele não quisesse ter que sair dali às pressas.
– OK. Obrigado.
– Sem problemas. – O Herald voltou ao lugar onde estava.
Jim virou-se e redobrou a imagem de Isaac. Enquanto ia para porta, xingou em voz baixa. Este era o terceiro lugar que tinha tentado e eles não tinham conseguido nada além de embromação.
– Ei. Eu o conheço.
Jim parou e olhou sobre o ombro. Um cara com uma camiseta do Departamento de Bombeiros de Boston se aproximou.
– Meu pai não gosta de se envolver. – O cara acenou com a cabeça em direção ao folheto. – O que ele é seu?
– Meu irmão. – E essa não era uma mentira total. Eles tinham uma relação muito próxima devido ao que ele e Isaac tinham passado nas operações extraoficiais. Além disso, tinha toda aquela coisa de ele estar em débito com o cara.
– Ele foi preso na noite passada.
As sobrancelhas de Jim se ergueram.
– Não brinca?
– Tenho muitos primos que são policiais e eles invadiram um ringue de luta. Seu irmão luta demais. A única razão pela qual alguém entrava com ele no octógono era a boa recompensa, mas ele nunca perdeu. Nem uma só vez.
– Há quanto tempo ele está na cidade?
– Acho que só o vi lutando umas três vezes. – O sujeito tinha um sotaque forte. – Escute, por aqui há um monte de idiotas que gostam de se reunir para socar um ao outro, os deixamos fazer isso. Mas você tem que manter o jogo limpo – é por isso que houve a invasão. O promotor divulgava torneios apenas quando seu garoto estava dentro.
O cara estava muito ferrado. Isaac no sistema não era uma coisa boa.
– Pai, posso dar uma olhada no jornal? – o cara se aproximou do pai, pegou o jornal e passou os olhos nas páginas. – Aqui.
Jim leu o artigo rapidamente. Luta alternativa, blablablá... Isaac Rothe? Espere, ele estava usando o nome verdadeiro?
Pense em um alvo no seu peito: Matthias poderia facilmente enviar alguém para se infiltrar no sistema penal e acabar com o filho da mãe.
– Se quiser encontrar seu irmão... – O rosto do bombeiro assumiu uma expressão calculista. – Posso dizer onde ele vai estar assim que for solto.
Não mais de duas horas depois de Grier deixar seu cliente e falar com o juiz, ela estava de volta ao volante de seu Audi A6, presa no trânsito dos arredores de Boston. Felizmente, o ritmo recuperava velocidade em Chinatown e, em seguida, ela já estaria do outro lado na Rua Tremont.
Parte de sua pressa era por que realmente não tinha tempo para fazer esse desvio. Ela tinha uma reunião com uma das empresas Fortune Fifty, a uma hora em ponto, em seu escritório, no Distrito Financeiro... e todos aqueles arranha-céus estavam sendo refletidos no seu espelho retrovisor e ficando cada vez menores.
Mas ela precisava saber mais.
O que constituía a outra metade das razões de sua pressa.
Quando praguejou contra si mesma, preparou-se para que Daniel fizesse uma aparição e a encarasse do assento traseiro. Quando ele não apareceu, ela respirou fundo.
Ela realmente não precisava do seu conselheiro editorial metafísico naquele momento.
Daniel tinha morrido há dois anos e meio e ele veio até ela em um sonho pela primeira vez na noite anterior ao seu funeral. Foi um alívio tão grande vê-lo com saúde e limpo e sem qualquer sinal de heroína e, no seu sonho, eles conversaram como faziam antes do vício o ter derrubado. O chamado para a “vida real” aconteceu mais ou menos seis meses depois. Em uma manhã, ela estava conversando com ele e seu despertador tocou. Sem pensar duas vezes, ela se aproximou e silenciou a coisa... apenas para perceber que ela estava acordada e ele ainda bem presente ao lado dela.
Daniel sorriu quando ela deu um pulo – como se estivesse orgulhoso de si mesmo. E, então, à sua maneira descontraída, ele a informou que não estava louca. Havia, de fato, uma vida após a morte e ele estava vivendo isso.
Levou um tempo para se acostumar, mas depois de dois anos, ela não questionava mais suas aparições para dizer “Oi, tudo bem?” – contudo, ela mantinha aquelas visitas em segredo. Afinal, apenas por que ela não se considerava louca, isso não queria dizer que outras pessoas concordariam... e quem precisava se explicar? Além disso, se ele fosse uma alucinação e ela estivesse se transformando em uma personagem do filme Uma mente brilhante, bem... ela não tinha problemas com isso, então, para o inferno com os especialistas de saúde mental: ela sentia tanta falta de Daniel e ela o queria de volta de alguma maneira.
Voltando a se concentrar nas escadarias de tijolos que davam acesso às entradas dos edifícios dos dois lados da Rua Tremont, ela localizou os números quando viu que estavam próximos às portas. De alguma maneira, ela não acreditava que tinha conseguido estabelecer a fiança para seu cliente, mas a falta de antecedentes e a superlotação do sistema carcerário contribuíram a seu favor.
Por outro lado, o Sr. Rothe não pareceu surpreso nem satisfeito quando deu a notícia. Ele apenas pediu, à sua maneira calma e educada, para que ela fosse até seu apartamento e pegasse 25 mil dólares em dinheiro... pois não havia ninguém a quem ele pudesse atribuir esse tipo de tarefa.
Claro. Sem problemas. Certo.
Pois manipular dinheiro ilícito não faria dela cúmplice ou ameaçaria sua credibilidade de maneira alguma.
Ela ainda estava balançando a cabeça devido à situação quando diminuiu a velocidade em frente a uma casa de três andares que havia sido dividida em apartamentos. Não havia espaço para estacionar ao longo de quilômetros de distância – claro. Xingando um pouco, ela deu a volta no quarteirão algumas vezes, questionando-se se ousaria estacionar em fila dupla quando... aleluia! Alguém saiu de uma vaga do outro lado da rua. Levou um segundo e meio para que ela fizesse uma manobra ilegal e encaixasse seu sedã na vaga. Ela não tinha permissão para estacionar ali, pois não era moradora, mas não ia demorar e, pelo menos, ela não estava em frente a um hidrante.
Saindo, ela se encolheu dentro de seu casaco de lã fina. Abril naquela região podia ser traduzido como um mês de vento forte e úmido que congela seus ossos e causa estragos nos cabelos. E isso não era o pior: havia poças d’água por toda parte, mesmo quando não chovia. Tudo na cidade parecia escorrer, como se fosse uma esponja que tinha ultrapassado sua capacidade... os carros, os edifícios, as árvores finas, tudo isso absorvia a umidade do ar e se infiltrava no asfalto e no concreto, permanentemente úmidos embaixo dos seus pés.
Definitivamente, era mais o estilo das roupas de invernos esportivas da L.L. Bean do que dos saltos altos da Louboutin.
Na porta de frente da casa, ela esticou o pescoço para observar melhor um interfone dos anos setenta que tinha três pequenos botões. Seguindo instruções de Isaac, ela deu um soco no botão na parte inferior do aparelho.
Um momento depois, a campainha foi atendida por uma mulher vestida com uma bata afegã com cores chocantes do tamanho de um lençol. Seu cabelo estava torcido em um coque cheio de pequenos cachos que eram da cor de uma abóbora de Halloween e havia um cigarro entre seus dedos, com unhas pintadas, da mão direita.
Evidentemente, sua aparência era de quem tinha ficado presa na mesma época do interfone.
– Você é a garota de Isaac?
Grier estendeu a mão e não corrigiu a afirmação. Achou que era melhor que “advogada”.
– Sou Grier.
– Ele ligou para cá. – A mulher deu um passo para trás. – Disse para deixar você entrar. Sabe, você não parece ser o tipo dele.
Uma rápida imagem do homem sentado tão silencioso e mortal passou como um relâmpago pela mente de Grier: seguindo a lógica daquela cena, o cara deveria estar namorando uma arma.
– Os opostos se atraem. – Ela disse enquanto olhava por cima dos ombros da senhoria. Ao final do corredor apertado, a escada se erguia à distância, como um farol espiritual, pois era ao mesmo tempo visível e inatingível.
– Bem... – a senhoria recostou-se contra seu papel de parede flocado. – Há opostos, como uma pessoa que fala muito e outra que não é assim. E há opostos. Como vocês se conheceram?
Quando o olhar intrometido fixou-se no colar de ouro de Grier, teve a tentação de responder “em meio ao sistema penal”, só para ver até que ponto os olhos da mulher se arregalariam.
– Sites de relacionamento.
– Oh, como o eHarmony?
– Exatamente – as principais exigências de compatibilidade dele foram alguém com um diploma de direito para conseguir sua fiança e ela tinha doutorado em Harvard.
– Posso entrar agora?
– Você está com pressa. Sabe, minha irmã tentou o eHarmony. O cara que ela encontrou era um idiota estranho.
Acontece que levar a senhoria para o andar de cima exigiu mais esforço que jogá-la sobre o ombro e carregá-la até o terceiro andar. No entanto, depois de dez minutos tentando se esquivar dela, estavam finalmente à porta de Isaac.
– Olha – a senhoria disse enquanto pegava as chaves e destrancava as coisas, – você deveria pensar em...
– Muito obrigada por sua ajuda – Grier disse enquanto deslizava para dentro do quarto e fechava a mulher para o lado de fora do corredor.
Encostada sobre alguns painéis de madeira, ela respirou fundo e escutou as reclamações da senhoria descendo pelas escadas.
E, então, ela se virou... Oh, Deus.
O quarto estava tão desfalecido e solitário quanto um homem velho provando que a pobreza, assim como a idade, era um grande equalizador – aquilo poderia ser qualquer cortiço ou casa de drogas, ou prédio condenado de qualquer parte da cidade ou de qualquer país: os velhos pisos de pinho tinham o brilho de uma folha de lixa e no teto havia manchas de água nos cantos que eram da cor de urina. Não havia mobília à vista, nem sequer uma mesa ou cadeira ou TV. Apenas um saco de dormir, um par de botas de combate e algumas roupas colocadas em pilhas de maneira precisa.
O travesseiro de Isaac Rothe não era nada além de um casaco com capuz.
Quando ela se viu em pé dentro do apartamento, tudo o que conseguia pensar era no último lugar em que seu irmão tinha ficado. Pelo menos, seu cliente estava limpo e não havia agulhas hipodérmicas e colheres sujas por toda parte: as coisas espalhadas não pareciam ser resultado das prioridades de alguém inclinado ao vício.
Mas, bom Deus... ainda era uma choque lembrar-se de onde Daniel tinha acabado. A sujeira... as baratas... a comida podre...
Obrigando-se a começar a se mexer, ela entrou na cozinha e não ficou surpresa ao encontrar todos os armários, gavetas e a geladeira vazios. No banheiro, havia uma navalha, um creme de barbear, uma escova de dentes e um sabonete.
Ela entrou no closet do quarto que estava completamente desocupado e utilizou a lanterna em seu chaveiro para olhar ao redor. O painel que Isaac tinha descrito estava à esquerda e ela o abriu sem problemas.
E sim, ali estava, de fato, uma sacola de plástico de supermercado com 25 mil dólares em dinheiro, escondida em um espaço empoeirado entre as placas que estruturavam a casa. Ou, pelo menos, esse valor podia ser estimado pelo peso da coleção de notas soltas...
Ela ouviu algo.
Grier congelou.
Prestou mais atenção ao ouvir.
Lançando um olhar sobre seus ombros, ela parou de respirar. Mas tudo que ouvia era o trovoar do seu coração.
Quando o silêncio persistiu, ela empurrou a sacola de volta para onde estava, recolocou o painel e trancou novamente o closet; então, ela foi até a janela que havia do outro lado. O vidro estava tão leitoso de sujeira que não tinha como alguém enxergar nada do lado de fora e, ainda assim, ela se sentia como se estivesse sendo vigiada...
Alguma coisa brilhou e ela se inclinou, aproximando-se.
No topo da janela, um par de placas de metal minúsculo estava preso próximo às rachaduras da pintura, uma estava na esquadria e a outra sobre o vidro. Havia outro jogo na parte inferior e as coisas pareciam ser feitas de cobre revestido com algum tipo de acabamento fosco. Se ela não tivesse se aproximado, nunca teria notado.
Grier verificou a sala, cozinha e banheiro e encontrou a mesma coisa em cada janela. No vidro superior e inferior, dois conjuntos. E as portas foram equipadas da mesma maneira – todas elas, internas e externas.
Ela sabia exatamente o que eram aquelas placas.
Sua casa multimilionária na Louisburg Square, em Beacon Hill, possuía aquele equipamento nas janelas e batentes. Eram o que havia de mais avançado em sistemas de alarme de segurança.
Em pé no centro do apartamento, sua mente tentava encontrar uma lógica: um galpão vazio, um saco de dormir de quarenta dólares como cama, sem telefone... mas o local estava equipado com um sistema de segurança que soaria como se ali fosse um banco.
Hora de agir.
Usando o pano macio que usava para limpar seus óculos de sol, averiguou os objetos de uso pessoal de seu cliente sem deixar impressões digitais para trás – e encontrou o receptor do alarme em meio às dobras do saco de dormir. Bem como um par de pistolas de calibre quarenta que tinham sido equipadas com silenciadores, e não tinham os números de série, e uma faca de caça que estava bem embrulhada, mas bastante afiada.
– Jesus... Cristo – ela sussurrou, colocando tudo de volta onde tinha encontrado.
Saindo de sua posição agachada e afastando-se da “cama”, ela foi até a cozinha. Ao verificar os espaços, ela limpava sistematicamente cada alça de suas impressões e depois olhou embaixo da pia e atrás da geladeira. A próxima parada foi o banheiro, e suas mãos estavam trêmulas ao se livrar de todos os traços que poderia ter deixado para trás e, ao mesmo tempo, iluminava cada canto com sua lanterna.
Em meio ao seu ataque de suspeitas, ela tinha plena consciência de que estava violando a privacidade de seu cliente, mas o cão de caça que havia dentro dela não conseguia parar – a busca frenética era como um músculo que não vinha sendo utilizado e que precisava de exercício. Ela tinha feito aquilo tantas vezes no apartamento e carros de Daniel que, finalmente, ao terminar de verificar a casa de Isaac Rothe, sentia-se suada e um pouco enjoada de uma maneira muito familiar.
Contudo, não havia drogas. Em lugar algum.
Voltando à sala, ela verificou as janelas mais uma vez. Os 25 mil valiam a pena ser protegidos... mas o sistema de segurança não tinha sido ativado.
O que significava que era utilizado como alerta apenas quando Isaac estava dormindo.
Pelo que sabia por sua experiência, o único tipo de criminoso com acesso a equipamento deste calibre era um grande traficante de drogas ou alguém no mais alto nível dos chefões da Máfia. A aparência física do seu cliente não combinava com nenhum desses perfis – normalmente, esses criminosos eram homens mais velhos, e não tinham menos de trinta anos e não eram comandados.
Contudo, havia outra explicação possível.
Ela pegou seu celular e discou um número para o qual tinha ligado muitas vezes no passado.
Quando a ligação foi atendida, ela respirou fundo, uma respiração longa e sentiu-se como se estivesse saltando de um penhasco.
– Oi, Louie, como vai meu investigador favorito? ... Ah, que gentil... Uh-Huh... Estou bem.
Mas que mentira foi essa. Mentira, mentira.
Enquanto os dois continuavam nesse jogo de elogios, ela voltou para o esconderijo do dinheiro e limpou a maçaneta da porta do armário com seu pedaço de pano.
– O fato é que preciso de uma coisa. Se você tiver um tempo, tenho alguém que gostaria que você verificasse para mim, por favor.
Depois que ela disse a Louie tudo o que sabia sobre seu cliente, o que não era mais que um nome, a data de nascimento e aquele endereço absurdo, ela desligou.
Com toda certeza, a questão era: e agora?
Ela mal conseguiu acreditar quando Isaac Rothe disse a ela que tinha o dinheiro.
Então, ela mesma afixou a fiança dele.
Essa era sua única opção: o tribunal estava disposto a liberar seu cliente, mas o responsável por estabelecer a fiança não iria tocar no caso. Era algo arriscado demais.
O que sugeria que o juiz estava fora de si ao tomar essa decisão.
Oh, espere... aquela era sua situação.
Olhando ao redor do apartamento vazio, ela percebeu que seu cliente era tão bem definido quanto um rascunho. Não tinha como ele ser pego de calças curtas.
Que inferno, provavelmente ele não ficaria mais de um minuto ali quando fosse liberado. Era evidente que tinha recursos e suas coisas poderiam ser levadas em uma mochila.
Ela observou a porta.
Ainda bem que ela podia se dar ao luxo de dispor daqueles 25 mil. O plano era fazer disso um voto de confiança para que ele pudesse deixá-la ajudar.
Mas, provavelmente, a lição de não investir em pessoas que não conhece e em quem não deveria confiar acabaria se mostrando muito cara.
CAPÍTULO 7
Eram seis horas da tarde quando Isaac foi finalmente levado para fora acompanhado por um guarda. Apesar do tempo que levaram para entrar e sair com ele – e tinha a impressão de que os funcionários da cadeia aproveitaram esse tempo para fazer alguma outra coisa –, depois que tomaram a decisão de liberá-lo, o processo foi calmo e rápido: as algemas – deles – foram abertas. As assinaturas – dele – foram feitas à tinta. As roupas – deles – foram trocadas. Outras roupas – as dele – foram vestidas. A carteira foi devolvida.
Tudo o que ele conseguia pensar era em sua advogada. Ele não conseguia acreditar que ela tinha pagado sua fiança.
Ou que foi buscar o dinheiro para ele.
Cara, ele estava em débito com ela.
Sem Grier Childe, ele não estaria prestes a desfrutar daquela liberdade que o manteria vivo.
Ele não a via desde que veio lhe dizer que tinha sido bem-sucedida com o juiz, mas era evidente que tinha resolvido as coisas com o dinheiro dele ou não estaria livre.
A parte do confinamento de presos no tribunal era separada do setor público por uma série de portas que o levava a passar pela sala onde tinha se reunido com ela. Ele ouviu a última série de “nem pense nisso” quando passou pela central de processamento, onde tinha sido detido e fotografado.
Deus, ele ainda conseguia sentir seu perfume.
Com um “clanc”, o bloqueio de aço foi suspenso e o guarda lhe deu um empurrão no lugar de um “até breve”...
– Precisa de uma carona?
Isaac parou como uma estaca dentro da sala de espera. A senhorita Childe estava em pé sobre o piso de linóleo, parecendo que pertencia a um ambiente de festa e não à cadeia do condado: o cabelo dela estava arrumado com o mesmo coque torcido, mas ela não estava mais vestida com um terno. Estava usando algo do tipo “vestidinho preto básico”... e também um par de meias pretas que o fizeram engolir em seco para não gemer.
Que mulher.
– Precisa? – ela perguntou.
Sentindo-se como um homem das cavernas por arregalar os olhos ao vê-la, ele balançou a cabeça.
– Não, obrigado, senhora.
Ela andou até a saída e abriu o caminho, parando em pé do outro lado, parecendo algo que valia um milhão de dólares... e como se não tivesse nada melhor para fazer com seu tempo além de segurar a porta para ele.
Isaac saiu da sala de espera e entrou em um corredor onde havia apenas uma porta de elevadores e uma saída de incêndio.
– Deixe eu te dar uma carona – ela disse enquanto pressionava com força a seta que indicava para baixo.
– Sei onde você mora, lembra? E vai ser difícil pegar um táxi no horário de pico.
Era verdade. Além disso, ele só tinha cinco dólares em dinheiro com ele.
– Dou um jeito nisso.
– Exatamente. Deixando com que eu te leve. Está frio e você não está de blusa, pelo amor de Deus.
Também era verdade. Ele tinha perdido sua blusa com capuz na confusão do momento em que foi algemado. Mas como tudo o mais que se referia a ele, isso não era problema dela.
Quando ela se virou, como se a decisão tivesse sido tomada, ele olhou para os complicados redemoinhos que havia em seu cabelo. Ele não conseguia ver qualquer grampo ou coisa assim e, ainda assim, não parecia algo duro fixado com gel ou spray.
Mágica, ele pensou.
Sem se dar conta, ele ergueu sua mão calejada como se fosse tocar a nuca dela. Conteve-se a tempo.
E, no momento seguinte, ele foi se esquivando silenciosamente pelo caminho da escada.
Onde havia uma porta quadrada já aberta. Perfeito.
Ele não fez barulho quando atirou seu corpo sobre o corrimão e deixou-se cair dois andares abaixo, firmando-se bem a tempo de agarrá-lo e, em seguida, balançar o tronco. Ele aterrissou em um baque silencioso e não esperou sequer o tempo de uma batida de coração antes de fazer os últimos movimentos para um último salto e alcançar a saída. Quando sentiu a liberdade no vento frio de abril, assustou os fumantes que estavam do lado de fora antes de deixá-los para trás na poeira.
Correndo muito, acabou seguindo um caminho que o levou através de um labirinto de edifícios escuros e, então, seguiu as ruas onde havia lojas de joias e lojas de departamento como a Macy’s e Filene’s. A hora do pico significava que as ruas estavam cheias de profissionais que foram expelidos do Distrito Financeiro, eles lotavam as estações de metrô ou fluíam como formigas pelos estacionamentos. Felizmente, havia menos confusão de pedestres em Chinatown, apesar de ter mais carros – o que melhorou a corrida dele.
Enquanto acelerava até sua casa, o esforço ajudou o fato de que não vestia nada além de uma camisa regata, contudo a umidade gélida no ar piorou as contusões e o corte na testa por se agitar demais. Quando chegou ao quarteirão onde morava, ficou quase desapontado por diminuir a velocidade – o exercício era bom para acalmar sua mente e deixar os problemas de lado.
Aproximando-se por trás do prédio de três andares, ele entrava e saía dos quintais dos vizinhos para cortar caminho e parou a quase dez metros da porta dos fundos. As luzes da janela da senhoria e do segundo andar estavam acesas, mas tudo estava apagado em seu andar.
Ao ter uma certeza razoável de que não tinha sido seguido, ele se abaixou e pegou uma pedra. Permanecendo um pouco nas sombras, ele se aproximou, depois lançou o braço para trás e arremessou a pedra na lâmpada de um poste, apagando a iluminação externa.
Isaac esperou, segurando firme onde estava: a velocidade muitas vezes era sua aliada, mas nem sempre era assim. Algumas vezes, ir devagar era a única razão de acordar na manhã seguinte.
No andar debaixo, uma sombra se levantou e passou de janela em janela, em seguida, voltou a se aproximar do brilho da televisão. Isso não era um bom sinal, mas também não era surpresa. Sra. Mulcany nunca deixava seu poleiro a não ser para comprar comida – e ela era o tipo de senhoria inconveniente, que o fez considerar os benefícios de dormir no banco de um parque. Esta noite, contudo, ela não era o motivo pelo qual ele se esquivava no próprio lugar onde morava: havia uma grande possibilidade de que, com seu nome no sistema penal, seu endereço tivesse sido rastreado pelas operações extraoficiais – e isso significava que aquele local não era mais seguro.
Ele tinha que entrar e sair dali rapidamente.
Dez minutos depois, precisou voltar seguindo os passos que tinha dado antes. Colocou a chave na fechadura. Esquivou-se pela escada.
E em seu caminho para o andar de cima, ele evitava os degraus que faziam chiados – o que eliminava três de quatro de uma vez.
A porta do seu apartamento se abriu sem fazer ruído, pois ele tinha lubrificado as dobradiças na noite em que se mudou, e com um rápido giro na fechadura, ele se trancou por dentro. Prestando atenção nos sons ao redor, pôde concluir que não havia nada além da televisão do andar debaixo, mas ele permaneceu onde estava por um minuto ou mais só para ter certeza.
Quando percebeu que não havia nada fora de normal, começou a agir.
Sua velocidade era a da luz. Um sussurro silencioso era a maneira como se movimentava.
Passou pela cozinha. Entrou na sala da frente.
Ele deu uma olhada nas suas coisas e soube que Grier tinha passado por ali – a mudança na posição da pilhas de roupas era tão sutil que só ele poderia perceber, mas a maneira como dobrara suas coisas tinha exatamente essa finalidade.
Ele vestiu a blusa de capuz que usava como travesseiro, colocou suas duas armas calibre quarenta nos bolsos da frente e enfiou suas botas de combate. A munição, a lâmina de caça e o telefone celular foram colocados nas calças e, em seguida, vestiu seu sobretudo preto, que, era tudo o que tinha.
Entrou no quarto. Dentro do armário.
Havia 27 mil, oitocentos e cinquenta e três dólares em seu esconderijo, então ele ainda deveria ter alguma coisa guardada depois de ter pagado a fiança.
Bateu com força o painel e alcançou o...
– Droga.
Ele não precisou abrir a sacola da Star Market e contar; apenas pelo peso ele soube que Grier não tinha pegado nem um dólar sequer dos rolos de notas de cem e vinte ou do emaranhado fofo de notas soltas.
Mas ela esteve ali – Matthias teria pegado as armas para deixá-lo menos perigoso. E teria esperado para atirar em sua cabeça.
Droga... a porcaria do dinheiro intacto significava que havia um fiador envolvido... ou que ela pagou sua fiança com o dinheiro dela. E quando ele foi liberado, não divulgaram se houve um terceiro interessado em protegê-lo. Então, deve ter sido ela.
Maldição.
De volta a ação, ele pegou a sacola e recolocou a placa do vão. Então, ele percorreu as janelas e portas, puxando os receptores com a faca e colocando as placas de metal nos bolsos. Não mais que três minutos depois, ele saiu por onde tinha entrado: saiu pelos fundos e em silêncio como fumaça.
Os quinhentos dólares que ele deixou sobre o balcão da cozinha iam cobrir as taxas por ter quebrado seu contrato de aluguel e a Sra. Mulcany teria de descobrir isso sozinha quando não houvesse mais sinal dele por alguns dias.
Quanto menos contato ela tivesse com ele, mais segura estaria.
A mesma coisa com a advogada.
Mas que maldição.
Embaixo, no quintal, os sentidos de Isaac foram precisos ao se esquivar pela lateral da casa e voltar a correr. Ele não diminuiu o ritmo até que estivesse a alguns quilômetros de distância.
Escondendo-se em um beco, a ligação que ele fez foi atendida no segundo toque: – Sim.
– É o Rothe.
O promotor de lutas animou-se na mesma hora.
– Jesus Cristo, ouvi dizer que você estava preso. Ouça: não posso pagar sua fiança...
– Já estou fora. Temos luta hoje à noite?
– Droga, sim! Teremos que mudar daquele local de qualquer maneira. Isso é incrível. Como você saiu dessa?
– Qual é o endereço e como eu chego lá?
O local era a quase dez quilômetros de distância em uma cidade chamada Malden, o que fazia sentido – os policiais em Southie estavam obviamente fartos de lutas em seu território. E como o promotor de eventos não tinha sido preso era um mistério. A menos, claro, que ele tenha feito a denúncia e fugido a tempo.
Você nunca sabia o que esperar de pessoas como aquele cara.
Depois que Isaac desligou, seu próximo passo foi encontrar um ponto de ônibus com uma tabela de horários. Quando o ônibus de dez rodas passou, ele embarcou e sentou-se junto à janela onde havia a saída de emergência.
Ao observar os apartamentos, empresas e edifícios pelos quais passava, teve vontade de gritar.
Ele estava saindo das operações extraoficiais, pois tinha se conscientizado, e isso significava que não poderia sustentar aquela situação de Grier Childe ter dado cobertura a ele até aquele ponto. Ela parecia rica, mas 25 mil era muito dinheiro não importava o quanto você valesse a pena.
Inferno, ele não se sentiria bem nem mesmo se um agiota pagasse essa dívida. Mas e aquela mulher elegante a quem ele mentiu? E envolveu em uma missão suja?
Não. Ele não estava disposto a deixá-la em apuros.
E aquilo simplesmente complicava tudo.
Duas horas depois de ter saído da prisão sem o seu cliente ao lado ou sem sequer ter uma ideia de onde ele tinha ido, Grier foi a um baile cheio de pessoas que, sem dúvida, faziam parte da sua tribo. Todos ali tinham o dinheiro mais tradicional de Boston e tinham ascendências em comum que remontavam ao Mayflower*.
Sim, Deus os amava, mas alguns daqueles homens de sangue azul tinham idade suficiente para ter viajado no navio em si.
Contudo, sua mente não estava no salão de festas do Four Seasons. Nem prestava atenção no homem em frente a ela que conversava sobre... Qual era a razão daquela festa? Era algum evento do Museu de Artes ou do balé?
Ela deu uma olhada nos cartazes que estavam sendo fixados. Reproduções de Degas. O que não ajudava necessariamente a responder sua pergunta: todos aqueles tutus felpudos poderiam se encaixar em eventos nos dois locais.
Enquanto a gravata apertada que havia na frente dela continuava a conversar, ela não acompanhava. Sua mente estava presa naquele corredor do tribunal... quando ela se virou dos elevadores e viu-se sozinha.
Ela não ouviu o movimento de Isaac, quanto mais perceber a sua partida. Em um momento ele estava atrás dela, no outro, não havia nada além do ar que a cercava antes. Era surpreendente como alguém daquele tamanho poderia desaparecer daquela maneira.
É claro que não precisava ser um gênio para deduzir que ele tinha saído pela escada que havia atrás – então, ela entrou pela porta da saída de emergência e foi atrás dele, tirou o salto alto e começou a correr apenas de meias. Ela percorreu todo o caminho até o fim das escadas, passou pela saída e viu um cara que estava acendendo um cigarro. Quando ela perguntou se ele tinha visto um homem grande saindo, ele apenas encolheu os ombros, soprou uma nuvem de fumaça branca e leitosa no ar e saiu andando.
Depois de ter colocado os saltos de volta, foi até a garagem subterrânea, entrou no carro e dirigiu novamente até o apartamento de seu cliente. Estava tudo apagado, mas ela não esperava por nada diferente disso. O último lugar que alguém em fuga iria seria ao endereço que tinha dado à polícia.
Mayflower: navio que transportou os Peregrinos em 1620, do porto de Southampton, Inglaterra, até o Novo Mundo. Chegando ao Cabo Cod, atual estado de Massachusetts. [N.T.]
Ela sabia que seu cliente era um fugitivo em potencial. O que ela não contava era que ele fosse como a fumaça daquele cigarro, que desaparecia na brisa, saindo de vista tão rápido quanto entrava.
Voltando ao presente, Grier colocou seu vinho Chardonnay já quente na bandeja de um garçom que passava por ela – nesse exato momento, seu celular começou a vibrar contra seu quadril.
Desculpando-se, ela se afastou pelo corredor.
– Alô?
– Oi, senhorita Childe. Tudo bem?
– Esperando por sua ligação quase sem ar de tanta ansiedade, Louie, é assim que estou.
– Ah, que gentil, muito mesmo. Você é uma boa mulher. – Louie pulou aquela rotina afável e foi ao que interessava. – Você não vai gostar do que tenho para lhe dizer.
Por que não estou surpresa? Ela pensou.
– Vamos lá, então.
– Ele é um fantasma.
Ela não discordava. Ainda assim, considerando que ela conversava com seu irmão morto ultimamente, fantasmas poderiam ser reais.
– Parecia bem real para mim quando me sentei em frente dele.
– Bem, o Isaac Rothe que consegui encontrar morreu há cinco anos. No Mississippi. Ele foi encontrado morto em uma vala, numa fazenda de gado e tinha dezenove anos na época. Os artigos de jornal que li diziam que ele foi agredido até ficar irreconhecível, mas a foto de quando ainda era vivo e que consta na certidão de óbito corresponde à foto do criminoso que foi tirada na delegacia ontem à noite. É o mesmo cara.
– Jesus...
– Não é por nada, mas esse processo de desaparecer com uma pessoa foi caro e longo. Quer dizer, como ele pode ter durado tanto tempo disfarçado? Claro, você até pode fazer isso, este é uma país grande e tudo mais, mas precisa ser cuidadoso, pois há muitas centrais de banco de dados. Ele não deve utilizar seu próprio número de seguro social, mas um que é diferente daquele com o nome original, assim, isso pode ser uma explicação de como ele permaneceu desaparecido. Mas a impressão que tenho é que ele sabe o que está fazendo. E ele tem um apoio importante.
– Que tipo de apoio importante?
– Vou dar as iniciais: E, U e A.
– Primeiro nome “governo dos”?
– Eu diria Tio Sam, mas sim, isso serve.
– Contudo, eu não concordo. Se ele queria permanecer desaparecido, por que deu seu verdadeiro nome? Você tem que comprar um número de seguro social novo, geralmente vem com um nome e sobrenome diferentes do que você possui, não é?
– Você deve perguntar a ele os porquês. Mas a primeira coisa que vem à minha mente: ele não esperava ser encontrado nunca. E vou dizer uma coisa... tomaria cuidado com ele. Aquele corpo naquela vala no Mississipi não chegou lá por acidente. Eu apostaria todo meu salário no fato de que alguém matou um garoto branco parecido o suficiente para que pudesse passar por ele em um caixão lacrado e adivinha: seu cliente ainda está respirando. Então, esse filho da mãe pode ser um assassino.
Grier fechou os olhos. Ótimo. Isso está ficando simplesmente cada vez melhor: ela não só afiançou um fugitivo em potencial que realmente fugiu, como também esse era um homem que poderia ter matado alguém e forjado sua própria morte.
Estava ferrada e mal paga, ela pensou, se perguntando como alguém como ela, que tinha obtido a máxima qualificação possível em sua área com honras, poderia ter sido tão estúpida.
Naquele momento, a multidão se afastou para revelar Daniel vestindo um smoking e bem descontraído ao lado de um daqueles Degas. Quando ele fez o aceno de um brinde para ela com uma taça de champanhe, seu belo rosto parecia ser um papel de parede onde se lia “eu disse”.
O filho da mãe morto tinha um propósito. Mesmo depois de ter morrido há dois anos, ela ainda fazia um tipo de procedimento de emergência com ele: desesperada por trazê-lo de volta à vida real, ela começou a se envolver no drama de outras pessoas, aquela vontade de se envolver e ajudar era, algumas vezes, a única coisa que a fazia continuar.
– Você está bem, moça?
Ela agarrou seu telefone celular com mais força e se perguntou o que o investigador diria se soubesse que estava olhando bem dentro dos olhos do seu falecido irmão.
– Não exatamente, Louie.
– Ele enganou você?
– Eu enganei a mim mesma.
– Bem, tenho outra pequena informação para você. Contudo, não tenho certeza se quero contar. Parece que você já está muito abalada.
Preparando-se, ela murmurou.
– Diga. Eu preciso saber de tudo.
CAPÍTULO 8
PARAÍSO, JARDIM NORTE
Acima dos céus e da terra, no reino celestial, o arcanjo Nigel andava a passos largos ao longo do gramado verde, as mãos cruzadas atrás das costas, cabeça baixa, olhos fixos à sua frente. Suas bolas de críquete brancas não foram utilizadas de maneira adequada, sua falta de concentração o tornava um competidor lamentável com relação às habilidades prodigiosas do arcanjo Colin com um taco em forma de marreta.
Na verdade, as bolas de Nigel tinham rolado para cá e para lá, indo a todos os lugares, exceto através dos arcos.
Em dado momento, ele desistiu de tentar. Não havia como treinar sua mente a se dispersar de algo que o irritava tanto e, portanto, ele era inútil para fazer qualquer coisa além de andar à toa e reclamar.
Mas que maldição, as regras precisavam ser seguidas. Era por isso que, nos jogos de estratégia, elas eram estabelecidas antes de começar a disputa, por isso não havia dúvidas ou erros de interpretação durante o jogo. Na verdade, ele sempre acreditou que uma competição justa requeria duas coisas: adversários de habilidades equivalentes e parâmetros bem definidos.
E naquele caso específico, especialmente por se tratar do futuro da humanidade, o primeiro critério foi cumprido de maneira específica. Seu lado e o do demônio Devina eram iguais em forças, fraquezas e objetivos.
Mais especificamente a parte dos objetivos, uma vez que as duas “equipes” sabiam muito bem como as apostas eram altas: todo o futuro do mundo pendia em uma balança, a paciência do grande Criador estava sendo testada ao longo de um conflito demorado e inconclusivo entre o bem e o mal no planeta. Há poucas semanas, foi declarado lá do alto que haveria sete oportunidades finais de prevalecer – e como consequência de uma simples maioria de vitórias, o domínio seria conquistado não apenas no mundo físico, mas também no bucólico céu e nas profundezas do inferno ardente.
Nigel era responsável pelo lado “bom”. Devina comandava o “mal”.
E esse demônio indecente estava trapaceando.
As regras da partida estabeleciam que Nigel e Devina escolhessem as almas “em jogo” e, então, deveriam sentar e assistir Jim Heron interagir e orientar o curso dos acontecimentos de tal forma que tudo resultaria em redenção ou condenação.
Sete chances. E a primeira tinha sido resolvida a favor de Nigel.
As próximas seis seriam realizadas em uma verdadeira arena. E, durante o curso dos acontecimentos, era permitido a Nigel e Devina certa quantidade de “treinamento”. Como Nigel tinha ganhado no cara e coroa, foi permitido que ele se aproximasse de Jim primeiro e, para que a equivalência fosse preservada, Devina também foi autorizada a interagir com o homem. Mas agora eles deveriam estar fora de campo e nos bastidores na maior parte do tempo, com interação limitada até o intervalo e a repescagem final da partida que poderia ser feita por qualquer lado que vencesse.
Contudo, Devina estava lá embaixo. Lá embaixo e jogando sujo.
– Você também interferiu.
Nigel se deteve, mas não se virou para encarar Colin.
– Meu caro garoto, vá se ferrar.
A risada de Colin foi profunda e pela primeira vez sem qualquer sarcasmo.
– Ah! Aí está o rapaz que conhecemos e amamos. Eu queria saber onde ele tinha ido parar, dada a forma como você jogou mal.
Mantendo-se de costas para seu melhor companheiro de jogo, Nigel olhou ao longo do gramado, para os altos muros do castelo que cercavam a Mansão das Almas. Para além da vasta fortificação de pedra, em uma mansão infinita de acabamento refinado e com acessórios para atividades de lazer, estavam as luzes da vida eterna daqueles que provaram sua boa índole durante seu tempo na Terra.
Se os anjos não prevalecessem, todos aqueles que eram tão merecedores daquilo que tinham agora estariam perdidos nas profundezas do Inferno. Assim como todos estariam, inclusive ele e seus três sócios.
– Adrian e Edward não estão dentro das regras – Colin assinalou.
– Eles o direcionam. É bem diferente do que ela está fazendo.
– Certo. Mas não estamos sem representantes lá embaixo.
– Ela está brincando com os fundamentos do conflito.
– Você ficou mesmo surpreso. – O tom de voz de Colin, que era sempre cortante, tornou-se mortal. – Nós lutamos com ela há muito tempo para não estarmos conscientes de sua duplicidade. O que talvez seja o motivo pelo qual o Criador permite que mantenhamos nossos dois emissários.
– Talvez o Criador deseje a nossa vitória.
Nigel se esforçou para começar a andar novamente e ele não conseguia afastar seus olhos da ponte sobre o fosso e da forte entrada da mansão. A visão do portal monumental e trancado, do qual apenas ele tinha a chave metafísica, reafirmou suas convicções, mas, lamentavelmente, não foi por uma boa razão. As almas estariam seguras apenas se aquelas batalhas fossem vencidas.
– Você vai tomar alguma providência extra? – Colin perguntou ao dar uma grande volta sobre o gramado e se dirigir para a mesa em que o chá estava servido.
– Como posso fazer isso?
– Você vai se arriscar a perder apenas para ser honesto?
Nigel acenou para Bertie e Byron, que estavam sentados mais adiante em frente a um bule de chá e um carrossel de sanduíches minúsculos. Como era de se esperar, eles não tinham nem se servido de chá, nem consumido nada e não fariam isso até que as outras duas cadeiras da mesa estivessem ocupadas. Enquanto isso, Tarquin, o amado wolfhound irlandês de Bertie, estava enrolado em si mesmo ao lado do assento do arcanjo, o grande animal olhava para Colin e Nigel, seus olhos sábios e calmos não perdiam nada.
Nigel ocupava-se com sua gravata.
– A vitória e a trapaça são incompatíveis. E Adrian e Edward foram ideia sua. Eu não sei por que aceito isso.
Colin soltou um xingamento, sua entonação aristocrática acrescentava uma ênfase precisa nas palavras desagradáveis.
– Você sabe que não temos qualquer chance, a menos que também quebremos as regras. É por isso que consente.
A resposta de Nigel foi nada além do som de uma tosse, seu sinal de que a conversa tinha acabado ali e, com ele à frente, os dois seguiram para a mesa que foi providenciada de acordo com sua vontade e desapareceria da mesma maneira.
Nigel, assim como os outros, não vivia de fato ou respirava; ele simplesmente existia. E com a comida era a mesma coisa: nem necessária, nem existente. Isso também acontecia com a paisagem e com tudo o que os quatro faziam para passar a eternidade. Mas era preciso levar em conta importantes detalhes de uma vida tão graciosa. Na verdade, os quartos que dividia com Colin eram bem decorados e o tempo que ficavam dentro deles não era para suprir qualquer necessidade de sono, mas para recarregar um tipo diferente de força.
A guerra era exaustiva, seus encargos nunca terminavam e, às vezes, alguém precisava de socorro físico.
Quando Nigel tomou seu lugar à mesa, ele reassumiu sua força e retomou o manto da liderança enquanto Byron sorria e o servia. Na frente dos outros dois, ele era sempre o que tinha que ser. No entanto, com Colin era diferente – contudo, isso acontecia apenas quando estavam sozinhos.
Nunca acontecia se havia outras pessoas presentes.
Quando ele ergueu a xícara de porcelana chinesa fina do pires, o vapor perfumado do chá inglês percorreu seu nariz, mas, sob aquela aparente calma, ele estava preocupado.
Ele não poderia arriscar perder nem mesmo uma dessas batalhas, mas um cavalheiro não jogava sujo.
Ele tinha seus padrões para praticar a arte do jogo.
Maldição.
CAPÍTULO 9
Em Malden, subúrbio de Boston, Jim, Adrian e Eddie não eram nada além de sombras nas densas trevas que havia ao se aproximarem de um edifício semiacabado. A estrutura fazia parte de um empreendimento desordenado e abandonado que tinha quinze ou mais divisões de encanamento... e nenhuma delas estava em uso ou sequer concluída. O que sugeria que o financiador/proprietário estava enforcado com relação a sua conta bancária.
A unidade que tinha vindo verificar era circundada por um gramado que percorria até uma clareira na parte de trás da floresta, havia três árvores que se erguiam ao redor do edifício, compondo a paisagem: o esqueleto do prédio de cinco andares estava acima de tudo isso e selado com vidros de janelas da cor de ameixas, mas não havia luzes acesas e nada além de terra batida no espaço para o estacionamento nos fundos.
O local estava completamente abandonado.
Bem, era assim para visitantes legais.
Invasores ilegais circulavam pelo local, seus carros e caminhonetes formavam uma fila surpreendentemente ordenada não muito distante de onde Jim e os rapazes estavam.
Parecia que a informação daquele bombeiro na academia era verdadeira.
– Sabe? – Adrian disse. – Eu poderia entrar no ringue. Dar alguns golpes. Talvez em um humano ou dois.
Jim balançou a cabeça.
– Acho que não precisamos disso agora.
– Você foi algum tipo de freio na vida passada?
– Que tal um muro de tijolos? Chega, vamos entrar.
Misturando-se entre os outros homens que se dirigiam para a entrada dos fundos, Jim procurava por Isaac... no caso improvável do cara ter saído da cadeia e ainda querer lutar. Mas, de maneira mais significante, ele mantinha os olhos abertos para encontrar alguém que se parecesse com um soldado: rígido, firme e que tinha um trabalho a fazer ao invés de ser um mero espectador da luta.
Ele estava atrás daquele que deveria matar Isaac.
Da maneira como a equipe das operações extraoficiais trabalhava, seria alguém com quem os dois já tinham trabalhado: dada a quantidade do processo de seleção, treinamento e período de testes que se tinha que passar para entrar na equipe, havia um número limitado de caras que conseguiam fazer isso – e levava anos para conseguir e desenvolver novos recrutas. Jim tinha saído há apenas seis meses; ele reconheceria o assassino.
E Isaac também.
– Vocês vão entrar – ele disse aos seus amigos ao chegarem a uma porta aberta apoiada por um bloco de concreto. – Eu vou ficar aqui. Mas me informe se virem Rothe.
Só que ele podia apostar que não veriam. Se o soldado estivesse ali apesar de tudo, estaria escondido em algum lugar, sondando quem chegava antes de se mostrar. Afinal, não precisava ser um gênio para descobrir que ser pego pela polícia era o mesmo que pregar um alvo vermelho nas costas.
Razão pela qual, em alguns aspectos, interceptar o assassino era ainda mais importante que correr atrás de Isaac.
Depois que Eddie e Ad entraram pela porta de emergência, Jim voltou a ficar em pé em uma parte do edifício que o abrigava do vento. O que era mais por hábito do que por necessidade: ninguém conseguia vê-lo ali.
Outro benefício de ser um anjo: ele podia escolher quando ser visível para os mortais.
Acendendo um cigarro que ele mantinha tão oculto aos olhos humanos quanto sua jaqueta e suas botas de combate, acompanhava a multidão que enchia o local. O público de hoje era formado pelos idiotas mais comuns: universitários ou colegiais beberrões que faziam parte de algum time e que em cinco anos seriam campeões estaduais. Só se via bonés dos Patriots e do Red Sox. Alguns blusões com capuz do Colégio Chelmsford.
Quando a multidão terminou de entrar no prédio, Jim queria soltar um palavrão. Talvez devesse ter se infiltrado na prisão, afinal – apesar de que também seria complicado. Havia muitas pessoas naquele ringue, e mesmo que pudesse ficar invisível, o que faria se tivesse que matar ou salvar alguém?
Um homem solitário surgiu atrás das árvores. Ele era enorme e o blusão preto que usava não diminuía nem um pouco o tamanho de seus ombros. Ao se aproximar, ele andou como o soldado que foi treinado para ser, percorrendo o olhar ao redor e mantendo as duas mãos no bolso – como se estivesse segurando uma ou duas armas.
– Olá, Isaac... – Assim que pronunciou aquele nome, Jim foi atingido por um impulso poderoso e inescapável que fazia daquele homem não apenas um alvo, mas um destino.
O plano original era encontrar o cara e colocá-lo em um avião para fora do país com algum recurso financeiro – apenas para ajudá-lo em seu caminho.
Contudo, agora ele percebia que precisava fazer mais que isso.
Atravessando aquele mar de gente para ver Rothe pela primeira vez desde aquela noite no deserto, Jim não correu até o cara, gritou seu nome ou fez qualquer coisa que assustasse o filho da mãe. Ao invés disso, ele concentrou um tipo de iluminação em si, retirando-se da escuridão ao agitar as moléculas em volta de seu corpo.
Ele se certificou de que suas mãos estavam para cima e as palmas vazias. E que Isaac seria o único a vê-lo.
A cabeça de Isaac percorreu o local. E uma arma surgiu de seu blusão.
Jim não se moveu, apenas balançou a cabeça, fazendo o sinal universal de “Não estou aqui pra ferrar você.”
Quando Isaac finalmente se aproximou, ele não quis arriscar. Ao dar um passo adiante, outra arma saiu de um bolso para ficar pendente de maneira discreta ao seu lado. As duas armas possuíam silenciadores e se camuflavam na sua calça com faixas pretas.
Por um momento, os dois apenas encararam um ao outro como idiotas e Jim teve um impulso absurdo de abraçar o filho da mãe – contudo, ele reprimiu aquilo rapidamente. Primeiro, não havia razão para dar uma de efeminado. E, segundo, isso faria com que ele fosse baleado à queima-roupa: os soldados das operações extraoficiais não eram inclinados a abraços – a menos que estivessem planejando matar alguém.
– Ei! – Jim disse de maneira rude.
Isaac limpou a garganta. Duas vezes.
– O que você está fazendo aqui?
– Estava passando por aqui. E pensei em te chamar pra jantar.
Isso resultou em um sorriso lento, do tipo que lembrava o passado.
– Como retribuição?
– Sim. – Os olhos de Jim observaram o espaço atrás dele e viu que havia apenas alguns vagabundos. – Você pode chamar assim.
– Pensei que você estava fora.
– Eu estou.
– Então... – Quando Jim não respondeu imediatamente, os olhos frios do cara cresceram de maneira astuta. – Ele o enviou para me matar, não foi?
– Eu precisei de um favor e isso custou caro.
– Então, por que estamos conversando?
– Eu não recebo mais ordens do Matthias.
Isaac franziu a testa.
– Idiota! Agora ele vai caçar você também. A menos que exploda minha cabeça aqui e agora.
Jim colocou seu cigarro entre os dentes e manteve as mãos expostas.
– Estou desarmado. Pode me revistar.
Não foi surpresa quando Isaac guardou uma de suas armas e, com a mão livre, fez uma rápida revista em Jim.
Isso fez com que o cara franzisse a testa com ainda mais força.
– Que porcaria você tem na cabeça?
– Nesse momento? Bem... vamos ver, que você não deveria estar lutando aqui, pra começar. Afinal, estou concluindo que você não está aqui para fazer parte do pessoal que vai ficar comendo pipoca e chocolate na plateia. Ao invés disso, eu gostaria que você viesse comigo e me deixasse ajudá-lo a sair do país em segurança.
Ao balançar a cabeça a voz de Isaac soou como de uma pessoa mais velha.
– Sabe que não posso confiar em você. Desculpe, cara. Mas não posso.
Mas que inferno.
Porém, a moral da história é que não se podia criticar o raciocínio dele: nas operações extraoficiais, mesmo quando você estava em missões com seus compadres, era cada um por si. Decidiu abandonar a instituição? Se for inteligente, você não colocaria sua vida ou sua fé nem nas mãos de sua própria mãe.
Jim deu uma tragada e focou o rosto do outro homem, sentindo que aquele impulso em seu peito ficava cada vez mais forte. Difícil explicar o “porquê” disso... mas ele não poderia desistir agora que encontrou Isaac. Mesmo que isso comprometesse sua batalha com Devina. Mesmo se Isaac não quisesse sua ajuda. Mesmo que isso o colocasse em perigo.
Isaac Rothe precisava ser salvo.
– Sinto muito – ele ouviu a si mesmo dizendo. – Mas preciso te ajudar. E você vai deixar que eu faça isso.
Os olhos do outro homem se estreitaram como se fossem fendas.
– Como?
Jim olhou para a porta. Adrian e Eddie tinham reaparecido e... os dois estavam olhando como se tudo aquilo devesse mesmo estar acontecendo. Como se já soubessem muito bem que Isaac apareceria ali. E que Jim iria conversar com o cara. E...
Com um rápido inclinar de sua cabeça, Jim observou o céu escuro e pensou sobre a maneira como sua primeira missão tinha acontecido: não houve coincidências em qualquer momento da cadeia de acontecimentos. Tudo e todos com quem ele se encontrou estavam entranhados em sua tarefa. E, nossa! Meu Deus! Não era difícil imaginar que Matthias estava jogando no time de Devina. O cara praticava o mal onde quer que fosse, cometendo atos de violência e fraudes que tiveram um efeito em escala global assim como alteraram vidas para sempre.
Jim voltou a se concentrar em Isaac. Talvez o comprometimento com aquele soldado desertor não estivesse relacionado apenas com uma página de seu passado... Inferno, Nigel, seu novo chefe, não era nem um pouco fácil e, ainda assim, o arcanjo ficou muito tranquilo no instante em que Jim anunciou que iria atrás de Isaac: o que não é o tipo de reação que se tem quando é o capitão de um time e seu zagueiro começa a correr em direção a um objetivo particular.
É exatamente o tipo de reação que se tem se seu garoto está onde você quer que ele esteja.
Mas que droga... Isaac era sua nova missão.
Cara, aquela droga que ele fez com seu próprio corpo na funerária se revelaria um golpe de gênio.
– Você vai precisar de mim – ele pronunciou.
– Posso cuidar de mim mesmo.
Quando Isaac começou a se afastar, Jim agarrou o braço dele.
– Você sabe que não pode fazer isso sozinho. Não seja imbecil.
Passou-se um longo momento.
– No que você está pensando, Jim? – os olhos claros do cara estavam assombrados. – Você estava fora. Estava livre. Foi o único que conseguiu sair. Por que voltaria a esse inferno?
Jim precisava seguir uma lógica que o outro poderia acreditar e que também era verdade; claro que não era a única verdade.
– Devo essa a você. Sabe disso. Devo por causa daquela noite.
Jim Heron estava exatamente como Isaac se lembrava dele: grande, disposto, e não tratava de nada além de negócios. Os olhos azuis eram os mesmos, o cabelo loiro ainda era bem cortado, o rosto recém-barbeado como sempre. Ele tinha até mesmo um Marlboro que queimava tranquilamente em sua mão.
Mas havia algo um pouco diferente, algum tipo de vibração que estava simplesmente... fora do normal, mas não no mal sentido.
Talvez o sortudo estivesse, de fato, dormindo à noite, ao invés de manter uma arma na mão e acordar com qualquer ruído.
Nossa, quando ele ouviu que Heron tinha saído das operações extraoficiais... ele nunca esperava ver o cara de novo – tanto por Matthias talvez ter repensado o cartão de despedida que deu a ele e, na verdade, resolvido enfiar uma bala no meio da cabeça dele ou por Jim ter sido esperto o suficiente e ficado longe de qualquer coisa ou pessoa que tivesse relação com sua vida passada.
E, ainda assim, lá estava ele.
Quando Isaac olhou bem nos olhos do cara, ele acreditou, tanto quanto fosse possível, que Heron estava ali para ajudá-lo por causa da dívida que tinha feito na terra do sol e da areia. Além disso, se o filho da mãe queria Isaac morto, isso já teria acontecido muito antes daquela conversa começar.
– Se eu tivesse vindo te matar – Jim murmurou – você já estaria no chão.
Bingo.
– Certo – disse Isaac. – Você me dá cobertura enquanto eu luto. Podemos começar agora.
Bem, aquilo atraía um não bem grande.
– Você não pode entrar naquele ringue. Por causa do folheto que vi e da prisão, é como se tivesse um rastreador de GPS enfiado no meio da sua cara.
– Preciso do dinheiro.
– Eu tenho dinheiro.
Isaac lançou um olhar na saída e percebeu que havia dois homens grandes esperando na porta. Quando ergueram as mãos o cumprimentando, ele perguntou: – Estão com você?
Jim pareceu surpreso.
– Ah, sim. Estão.
– Está formando sua própria equipe? Vai trabalhar por conta?
– Pode chamar assim. Mas estávamos falando sobre você e em como não vai lutar.
Para o inferno com aquele conversa. Não era ele quem estava devendo 25 mil para aquela advogada, e os dois mil dólares que restariam não o levariam muito longe. E, apesar de Matthias poder enviar um cara para matá-lo no ringue e ainda assim fazer parecer um acidente, que escolha ele tinha? Ele não precisava de caridade de ninguém – tinha aprendido isso há muito tempo – e ele não estava disposto e se endividar também com Jim apenas para resolver outra dívida.
Em dez minutos ele poderia ganhar mais um ou dois mil. E se ele levasse uma rasteira do segundo na linha de comando de Matthias, aquele que apareceu na noite passada? Isso não importava realmente. Ele sabia no momento em que tinha desertado da equipe que um funeral estava esperando por ele, só que ele era uma pessoa com uma doença mortal: a cura por ser um desertor era terrível e provavelmente iria matá-lo, mas, pelo menos, ele estava lutando e morrendo segundo suas próprias regras.
Permanecer nas operações extraoficiais? Droga, ele estava morrendo naquilo mesmo com o coração batendo.
Ele estava tão vazio naquela época que poderia muito bem estar em uma sepultura.
– Vou lutar – ele disse. – E vou te dar as minhas coisas para segurar enquanto estiver no ringue. Esse é o máximo de ajuda que vou aceitar hoje à noite.
Não havia razão para dizer a quantidade de dinheiro que tinha no blusão. E Heron já sabia das armas, mas era evidente que usá-las não passava pela sua cabeça.
– Esse é um grande erro.
Isaac franziu a testa.
– Muitas pessoas teriam lhe dito para deixar Matthias naquele deserto para morrer, mas você o trouxe de volta por que tinha que fazer isso e não permitiria que ninguém o contradissesse. A mesma coisa está acontecendo aqui. Ou embarca nessa ou sai do meu caminho.
Um palavrão. Em seguida, outro. Finalmente, Jim inalou o cigarro uma última vez e jogou a bituca na terra, debaixo de sua bota de combate.
– Tudo bem. Mas eu vou interceder, estamos entendidos? Você entra no ringue e se fizer qualquer idiotice, eu encerro a luta.
– Por que infernos você está fazendo isso? – Isaac disse com voz rouca.
– Por que infernos você saiu aquela noite para encontrar Matthias e eu?
Memórias de dois anos atrás vieram à tona e Isaac voltou ao deserto, ao momento em que o rádio criptografado gritou e ele pegou e ouviu a voz de Jim.
Dez minutos foram suficientes para organizar tudo: um médico na tenda em que ficavam, o transporte aéreo os aguardava e uma equipe de paramédicos estava na fronteira. E, então, ele se sentou ali e esperou por mais ou menos um minuto e meio.
A Land Rover que ele arranjou estava estacionada com as chaves no contato e Isaac sentou atrás do volante e saiu à toda. O que Jim não sabia era que quando ele e Matthias saíram, Isaac os seguiu por um momento e viu a direção que tinham tomado.
Alguma coisa estava errada com aquela viagem até as dunas: ninguém ia a qualquer lugar sozinho com Matthias. Era como pedir para que um paciente com ebola tossisse em você.
Fazendo grandes varreduras fora do acampamento, ele os encontrou uma hora depois a uns bons oito quilômetros de distância de onde tinha começado a procurar: com seus óculos de visão noturna ele localizou alguma coisa se movendo lentamente ao longo de uma elevação e, considerando que aquela forma de ogro não existia de fato, ele só podia concluir que era um homem levando outro no ombro ao longo da areia.
Ao se dirigir até eles, ele pensou em como o deserto era engraçado: a certa distância, assim como seu extremo oposto, o oceano, ele se funde com o céu durante a noite e isso acontecia até que se tivesse um ponto de referência, como um arbusto ou um navio – ou o resultado da ideia idiota de Jim ser um salvador. Aquilo era a confirmação visual de que a Terra era, de fato, redonda e não quadrada.
E a confirmação de que o lugar onde você se encontrava não era o céu.
Ele estava viajando de faróis apagados e não ia acendê-los. Ao invés disso, ele pegou uma camiseta branca e segurou a coisa para fora da janela, sabendo que Jim veria aquilo e, com sorte, concluiria que não era o inimigo. O filho da mãe tinha se armado até os dentes ao deixar o acampamento.
Quando Isaac diminuiu até parar, ele saiu com as duas mãos completamente visíveis e permitiu que Jim se aproximasse. O cara parecia exausto, mas ele já tinha carregado o peso morto de Matthias em suas costas por sabe-se lá quantos quilômetros, sobre a areia, em constante movimento.
Não tinha sido uma surpresa Jim aparecer na rotina de um cavaleiro de armadura reluzente, a despeito das condições de seu chefe que eram evidentemente críticas.
Estava passando por aqui, Isaac tinha dito. E pensei em te chamar pra jantar.
Sacudindo-se, ele voltou à noite em que estavam, ali em... Onde ele estava? Malden?
A voz dele soava com a mesma exaustão que a voz de Jim expressou naquela noite.
– Não deixem que te matem por minha causa, okay?
Jim murmurou alguma coisa que soava como, Um pouco tarde para isso. Mas é claro que não tinham sido essas palavras.
Esforçando-se para se concentrar novamente no jogo, Isaac deixou seu passado e emoções naquela areia, seu foco foi colocado no presente quando se virou e começou a andar em direção à entrada do edifício.
Quando entrou, Jim e seus dois colegas estavam bem atrás dele e ele teve que se perguntar por que Heron não estava usando sequer um boné para esconder seu rosto ou qualquer coisa que disfarçasse quem ele era. Idiota filho da mãe. Ficou livre... apenas para voltar atrás.
Louco.
Doido de pedra.
Mas ele tinha seus próprios problemas com que se preocupar e Deus era testemunha de que Jim era um adulto e, portanto, poderia se permitir ser um idiota quando se tratava de sua própria vida.
Enquanto Isaac continuava, o corredor da retaguarda do edifício abandonado mostrava ser uma pista de obstáculos, isso graças a inúmeros baldes de tinta vazios e mil garrafas de refrigerante consumidas pela metade. Tinha se passado um tempo desde a última vez que alguém levantou um dedo para fazer algo ali – havia poeira em todo aquele entulho.
Era evidente que o dinheiro tinha acabado na construção antes do pessoal do acabamento ser contratado: fios elétricos desencapados serpenteavam ao longo do teto que pendia juntamente aos dutos de ventilação parcialmente concluídos e os tubos de canalização. A iluminação vinha de lanternas à pilha colocadas a um metro e meio de distância uma das outras e o ar era frio a ponto de congelar alguém. Isso até que entraram no enorme saguão do local. Apesar do teto ser tão alto quanto o de uma catedral, os cinquenta rapazes ou mais que se amontoavam no chão de concreto aumentavam a temperatura do local graças ao calor do corpo.
Estava claro que aquele era o lugar perfeito para lutar: os arquitetos tinham planejado algum tipo de extravagância com os vidros na entrada da frente, mas como tantas outras coisas, não estava concluído. Ao invés de painéis transparentes, havia folhas de madeiras pregadas sobre as vigas.
Assim, a luta e a multidão estavam ocultas.
O octógono tinha sido colocado no centro do espaço e assim que Isaac percorreu a multidão, a torcida começou. Quando pessoas estranhas começaram a lhe dar tapas nas costas e parabenizá-lo por ter saído da prisão, os telefones celulares se aproximaram de todos os tipos de orelhas, aquela rede de comunicação se estenderia pela cidade, com a notícia de que ele estava bem mesmo depois daquela invasão.
O promotor de eventos correu até ele.
– Mas que coisa, eles já estão com tudo! Isso é demais...!
Blablablá.
Isaac percorreu os rostos ao se dirigir para uma das extremidades do ringue e se acomodar ali para esperar. Quando Jim se apoiou ao seu lado, Isaac disse: – Um velho amigo nosso apareceu ontem a noite.
– Quem?
– E como pode imaginar – Isaac disse severamente – ele está de volta.
Próximo ao local onde os seguranças estavam pegando o dinheiro das apostas e dos ingressos da luta, o segundo homem de Matthias estava pegando uma carteira do bolso. Quando o dinheiro trocou de mãos, o cara olhou e sorriu como um crocodilo.
Em seguida, ele apontou direto para o peito de Isaac.
– Você não vai entrar naquele ringue. – Jim saiu de seu lugar, se colocou na frente dele e bloqueou seu campo de visão. Isaac olhou por cima do ombro pesado de Heron, encarando bem o rosto do homem que tinha sido enviado para matá-lo.
– Sim, eu vou.