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CAPÍTULO 30
PARAÍSO, JARDIM SUL
Nigel concedeu uma audiência antecipada a seus dois anjos guerreiros favoritos não por causa da bondade que havia em seu coração – apesar do fato de ele, Colin, Bertie e Byron estarem no meio de uma refeição. Contudo, não haveria como mandar esses visitantes embora: ele sabia por que Edward e Adrian estavam chegando e eles não iam gostar do que ele tinha para lhes dizer.
Assim, ele sentia que precisava tratar disso pessoalmente.
E, de fato, quando os dois anjos tomaram forma do outro lado do gramado, caminharam ao longo do bosque como os vingadores que eram.
– Sinto muito mesmo – Nigel murmurou para seus assessores. – Mas poderiam, por favor, me dar licença um minuto.
Ele dobrou seu guardanapo damasco e se levantou, pensando que não havia razão para arruinar a refeição dos outros – e o que estava prestes a acontecer verbalmente seria um assassinato gastronômico do tipo mais sangrento.
Colin se levantou também. Nigel preferia fazer isso sozinho, mas não havia como dissuadir o anjo. Nada nem ninguém poderia mudar as ideias de Colin sobre o que teria de sobremesa, muito menos sobre questões de real importância.
Ele e Colin se encontraram com seus visitantes a meio caminho entre o local onde os dois haviam entrado e onde a mesa estava colocada entre as árvores.
– Ela o tem – Edward disse quando os quatro se aproximaram. – Não sabemos como isso aconteceu...
Nigel interrompeu o anjo.
– Ele se entregou para que outra pessoa tivesse uma chance na vida.
– Ele não deveria ter feito isso. Ele é valioso demais.
Nigel olhou na direção de Adrian e viu que o anjo estava em silêncio pela primeira vez. O que era o sinal mais concreto de que havia problemas.
Nigel puxou suas abotoaduras, alisando as mangas de sua camisa de seda dentro de seu terno de linho.
– Ela não vai matá-lo. Não pode.
– Tem certeza disso?
– Há poucas coisas confiáveis nela, mas as regras não foram impostas por ela. Se matar Jim, ela perde não só a rodada, mas o jogo na sua totalidade. Isso vai mantê-la em cheque.
A voz de Adrian percorreu o ar, fina e dura.
– Há algumas coisas piores que a morte.
– Com certeza, você está certo.
– Então, faça alguma maldita coisa. – O anjo vibrava por completo, seu corpo era um presente de natal prestes a ser rasgado em pedaços com ansiedade.
– Porém, nós poderíamos tirá-lo de lá – Edward disse. – Não é contra as regras.
– Claro que poderiam.
Longo silêncio.
Edward limpou a garganta e pareceu dobrar a língua numa contenção educada.
– A imagem que ela nos enviou sugere que ele está preso no mundo dela.
– Ele não está sobre a terra, é verdade.
– Então, como podemos chegar até ele?
– Não podem.
Quando Adrian soltou um palavrão, Edward segurou o braço do outro anjo, mas isso não o calou.
– Você disse que poderíamos tirá-lo de lá.
– Adrian, eu disse “poderiam” no sentido de permissão. Vocês têm permissão de fazer isso dentro das regras. No entanto, eu não fiz um comentário sobre suas habilidades. Neste caso, vocês são incapazes de alcançá-lo sem sacrificarem a si mesmos, deixando-o sem apoio e orientação durante esses momentos inicias e cruciais...
– Seu imbecil.
Antes que Adrian pudesse fazer algo estúpido, Edward transferiu sua força para o pesado peito do cara e o deteve.
Nigel levantou uma sobrancelha para os dois.
– Eu não faço as regras e eu tenho tanta intenção de ser desqualificado quanto meu adversário.
– Você tem... – Adrian engasgou com as palavras e teve que respirar fundo para terminar. – Você tem alguma ideia do que ela está fazendo com ele? Agora mesmo? Enquanto estamos parados em seu maldito gramado e o jantar está esperando por você?
Nigel escolheu as palavras com cuidado. A última coisa que ele precisava era dos dois fazendo justiça com as próprias mãos. Eles já tinham cometido esse erro uma vez, não tinham?
– Eu sei exatamente o que ela está fazendo sobre aquela mesa, por assim dizer. E também sei que Jim é muito forte... o que é a pior tragédia de todas. Pois ela vai recorrer a torturas que... – Não havia razão para continuar: os olhos de Adrian ficaram vítreos como se fosse alguém revivendo um pesadelo. – Eu diria, porém, que Devina não pode mantê-lo por muito tempo ou ela corre o risco de perder. As coisas estão chegando a um limite e, se ela impedir Jim de participar plenamente do que está por vir, então, não haverá uma competição justa.
– E quanto a Jim? – Adrian exigiu, libertando-se do seu melhor amigo. – E quanto ao sofrimento dele? E quanto a ele?
Nigel olhou para Colin, que estava completamente em silêncio. Mais uma vez, sua bela e familiar expressão facial dizia tudo: sua fúria era tão grande e profunda que os oceanos ficariam rasos, se comparados a ela. Ele sempre odiou Devina e isso não serviria de auxílio naquele momento.
No entanto, havia bastante exaltação ali.
Nigel balançou a cabeça com uma sincera decepção.
– Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito. Minhas mãos estão atadas.
– Você sente muito? Você sente muito, seu maldito? – Adrian cuspiu no chão. – Sim, você parece mesmo, seu bastardo frio. Você parece muito desapontado. Imbecil.
Com isso, o anjo se desmaterializou.
– Droga. – Edward murmurou.
– Um palavrão, mas uma palavra adequada para isso. – Nigel olhou para o espaço que Adrian tinha preenchido antes. – É cedo para ele estar tão cansado e frágil com a batalha. Isso não é nada bom.
– Você está brincando comigo, certo?
Ele encarou o anjo.
– Com certeza você deve enxergar a loucura que há nele...
– Para sua informação, chefia, não faz nem quatro dias que Devina usou o cara ao seu bel-prazer. E você acha que ele não vai perder a cabeça agora que Jim está passando pela mesma máquina de tortura? Está falando sério?
– Gostaria de lembrá-lo que você jurou que ele poderia lidar com isso. – Nigel viu-se inclinado para frente em posição de confronto. Afinal, ele poderia ser o capitão deste lado, mas isso não queria dizer que estava isento de socos. – Você me disse que ele poderia suportar o estresse. Você me prometeu e eu acreditei em você. E se acha que vai ficar mais fácil à medida que avançamos, então você está tão louco quanto ele aparenta estar.
Edward ergueu o braço e o puxou para trás como se fosse lhe dar um soco.
– Vá se ferrar, Nigel...
Colin investiu contra o anjo em um piscar de olhos, atacando pela direita, como no futebol americano, derrubou o homem e o imobilizou de bruços sobre a brilhante grama verde.
– Você não toca nele, companheiro – Colin grunhiu. – Eu sei que está chateado e deseja libertar Jim, mas não posso deixar que bata em Nigel. Não vai acontecer.
Nigel olhou para a mesa de jantar. Como Bertie e Byron se viraram para olhar, ele viu que eles estavam sentados como pássaros preocupados, seus corpos se estenderam, os braços caíram nas laterais, os olhos arregalados.
Tarquin tinha deitado no chão e colocado seu longo focinho sob a toalha para que não conseguisse ver nada.
A refeição estava mais que arruinada. E não apenas porque o espetáculo que aconteceu ali foi um desastre de se assistir: na verdade, Nigel não ia ser capaz de colocar nada no estômago. Esse jogo com Devina estava tomando péssimas direções de tantas maneiras... e ele estava paralisado pelas regras.
– Solte-me – Edward resmungou.
Colin deveria ter uma estrutura duas vezes mais leve que a do outro anjo, mas tinha uma força elástica além da média.
– Você vai ser legal, companheiro. Nada mais de socos ou vai ser derrubado outra vez.
– Está bem.
As palavras não foram qualquer tipo de rendição, mas Colin saiu de cima dele de qualquer maneira... provavelmente por saber que só poderia subjugar o homem de novo se fosse necessário.
Edward tirou os pedaços de grama verde que ficaram presos em seu casaco de couro como se fossem lantejoulas.
– Só por que Jim pode sobreviver a isso não significa que seja justo.
Com isso, ele desapareceu no ar.
Após um palavrão silencioso, Nigel observou o desaparecimento da marca deixada pelo corpo pesado de Edward, a grama se erguia, endireitava-se.
– Eles têm razão – Colin disse asperamente. – E a vadia não está jogando limpo.
– Jim se voluntariou para ela.
– Em uma situação que ela projetou. Não está certo e você sabe disso.
– Você quer que nós corramos o risco da derrota? – Ele o encarou. – Você quer perder por causa disso?
Colin espalmou a grama de suas mãos.
– Inferno. Mas que maldito inferno. – Nigel olhou para a marca do corpo que desaparecia em seu gramado.
– Concordo plenamente.
CAPÍTULO 31
A adega não era um lugar aonde Grier ia com frequência. Em primeiro lugar, as garrafas de vinte dólares que enchiam suas taças todas as noites mal valiam o subir e descer de escadas. Em segundo, com sua porta que era como um cofre de banco, seu teto baixo e estantes que percorriam todas as paredes, ela sempre sentia como se lá fosse uma prisão.
E, como pode imaginar... quando seu pai fechou os três no caixão apertado, o peso da presença de Isaac diminuiu o local para o tamanho de uma caixa de lenços de papel e ela sentiu como se não pudesse respirar.
Havia uma mesa polida no centro do espaço e ela ocupou uma das quatro cadeiras. Quando Isaac se sentou à frente dela, foi difícil não se lembrar de quando o encontrou na cadeia: tinha sido bem assim, os dois frente a frente.
Só que agora, apesar do fato que nenhum dos dois estava algemado, ela não conseguia deixar de ter a sensação de que os dois estavam amarrados juntos... e que as rolhas em todas as garrafas eram um pelotão de fuzilamento na iminência de obedecer ao sinal para atirar.
Deus, quando ele foi trazido para se encontrar com ela pela primeira vez, ela não tinha ideia de onde estava se metendo.
Mas, alguém já soube? Quando as pessoas passam por suas vidas cotidianas, escolhas rápidas e eventos aleatórios podem, algumas vezes, girar em um tipo de força centrífuga que as suga e, depois, as expele em um endereço totalmente diferente de onde começaram.
Mesmo quando nunca saem de casa.
Seu pai sentou-se mais próximo da porta e uniu as mãos quando colocou os cotovelos no topo da mesa.
– Estamos seguros aqui embaixo – disse ele, apontando para uma saída de ar no pequeno teto que tinha duas bandeiras vermelhas tremendo com a brisa. – O sistema de ventilação é iniciado a vários quarteirões de distância daqui, assim, não há preocupação com uma contaminação. Há também um túnel e um transmissor de ondas de rádio que irá embaralhar nossas vozes se estivermos sendo gravados.
O túnel era uma novidade e Grier olhou em volta. Até onde ela poderia ver, todas as prateleiras estavam fixadas na parede e o chão era de pedra, mas dado os outros pequenos truques na casa, ela não poderia afirmar que estava surpresa.
Isaac se manifestou.
– Se eu tivesse que ir até alguém e conversar com essa pessoa, quem seria?
– Isso depende de como...
– E quanto à mamãe? – Quando Grier cortou, interrompeu, descarrilou, ela olhou para o rosto de seu pai, procurando por contrações ao redor dos olhos e da boca. – E quando ela morreu? Foi mesmo de câncer?
Embora tivesse sido há sete anos, aqueles dias finais horríveis ainda estavam tão vívidos e ela se infiltrou neles, procurando por rachaduras nas paredes dos acontecimentos, em busca de lugares onde as coisas que pareciam de um jeito pudessem ser de outro.
– Sim. – Seu pai disse. – Sim... ela... Sim, aquilo foi câncer. Eu juro.
Grier exalou e achou difícil imaginar que ela estivesse realmente aliviada por ter sido aquela doença horrível. Mas era muito melhor a Mãe Natureza ter sido a culpada. Muito melhor que aquela tragédia não precisasse ser reescrita. Uma era mais do que suficiente.
Ela limpou a garganta. Assentiu.
– Tudo bem, então. Tudo bem.
Uma mão quente cobriu a dela e a apertou. Como as mãos de seu pai estavam sobre a mesa, ela percebeu que era Isaac. Quando ela olhou para ele, Isaac quebrou a ligação, seu toque durou apenas o suficiente para que ela soubesse que ele estava ali com ela, mas não de maneira que ela se sentisse reprimida.
Deus, as contradições que havia nele. Brutal. Sensual. Protetor.
Com um tapa mental, ela voltou a se concentrar em seu pai.
– Você estava dizendo alguma coisa?
Ele balançou a cabeça e se recompôs antes de olhar para Isaac de novo.
– Até que ponto você está disposto a ir?
– Eu não vou comentar sobre os outros soldados em atividade – disse Isaac. – Mas quanto ao que se tratar das minhas atribuições, vou até o fim. As coisas que fiz para Matthias. O que sei sobre ele e sobre o segundo na linha de comando. Onde os dois me enviaram. O problema é: isso é uma colcha de retalhos... Há muita coisa a qual só conheço em parte.
– Deixe-me mostrar uma coisa.
Seu pai se levantou da mesa e, antes que ela pudesse ver o que ele fez, uma seção de prateleiras veio para frente e deslizou à esquerda, expondo um conjunto de segurança em meio à parede de pedra. A porta resistente foi aberta pelas impressões de toda a palma de sua mão em um painel e o interior não era muito grande – um pouco maior que um bloco de notas na horizontal e não tinha mais que quinze centímetros de altura.
Ele voltou à mesa com uma pasta grossa.
– Isso foi tudo o que consegui reunir. Nomes. Datas. Pessoas. Lugares. Talvez isso ajude a ativar sua memória. – Ele bateu sobre a capa da frente. – E vou descobrir a quem recorrer. Não há como saber com certeza quem está envolvido no círculo de relações de Matthias: conspirações governamentais têm grossas raízes, mas também possuem garras que você não consegue ver. A Casa Branca não é uma opção e é uma questão federal, então, contatos da União não vão nos ajudar. Mas eis o que eu penso...
A voz de seu pai tornava-se mais poderosa a cada palavra, a força crescente do propósito o transformava no pilar que ela sempre acreditou que fosse. E, enquanto ele descrevia os planos, ela sentiu uma mudança no centro de seu coração.
Embora isso se devesse muito a algo que Isaac havia falado. Nenhum de nós sabe no que está entrando até ser tarde demais...
O irmão dela tinha sido um drogado muito amado, um viciado de primeira ordem que teria morrido pelas suas próprias mãos em algum momento – embora essa não fosse uma justificativa para o que tinha sido feito com ele, era a simples realidade da situação. E ela se surpreendeu, na época, em como seu pai ficou desesperado com a perda. Ele e Daniel não mantinham contato há pelo menos um ano antes daquela noite terrível: depois da última internação em mais uma clínica de reabilitação caríssima ter caído no esquecimento, o pai atingiu seu limite assim como muitos pais e familiares faziam. Ele ofereceu tudo o que podia para seu filho, andou com toda dificuldade por uma década nos caminhos da recuperação que deram uma esperança traiçoeira, mas era inevitável que se seguissem longos e obscuros meses em que ninguém sabia onde Daniel estava ou, até mesmo, se estava vivo.
Contudo, seu pai estava inconsolável em sua morte. Ao ponto dele passar uma semana em uma cadeira com nada além de uma garrafa de gim ao seu lado.
E agora ela sabia o porquê. Ele acreditava que era inteiramente responsável.
Enquanto ela o observava falar, notava a idade em seu rosto... as rugas ao redor dos cantos dos olhos e da boca, a ligeira inclinação na linha do queixo. Ele ainda era um homem bonito e, ainda assim, nunca se casou de novo. Será que foi pela bagunça na qual estava envolvido? Provavelmente.
Definitivamente.
Aqueles sinais da idade nele não eram apenas uma questão do tempo. Foi estresse, dor de cabeça e...
Mudando seu foco para Isaac, seu olhar estreito e parecendo um laser era intenso; sua íris pálida brilhava muito com uma luz de “vamos à guerra”. Engraçado, ele não tinha nada a ver com seu pai em termos de antecedentes, educação escolar, exposição, experiência. E, ainda assim, eles eram idênticos em muitos aspectos.
Especialmente unidos na missão comum de fazer o certo.
– Grier?
Sacudindo-se, ela olhou para seu pai. Ele estava segurando algo em sua direção... um lenço? Mas por quê...
Quando ela sentiu algo atingir seu antebraço, olhou para baixo. Uma lágrima prateada se recolhia após a queda de seu olho, aglomerando-se em um pequeno círculo brilhante em sua pele.
Outra escorreu e atrapalhou todo seu esforço – mas, então, as duas uniram forças e a massa duplicou.
Ela pegou o lenço e enxugou suas lágrimas.
– Eu sinto tanto – seu pai disse.
Ela enxugou o rosto e redobrou o linho fino, lembrando-se dele fazendo a mesma coisa quando estavam na cozinha.
– Sabe? – ela murmurou. – Desculpas não significam nada. – Ela apoiou a mão na pasta que ele tinha colocado na mesa. – Isso... o que vocês dois estão fazendo... isso é tudo.
A única coisa que poderia consertar qualquer aspecto sobre isso.
Para interromper a conversa mental, abriu a capa...
Ela franziu a testa e se inclinou. A primeira página era uma impressão da imagem de quatro fotografias de rosto. Todos homens. Todos eles pareciam diferentes versões étnicas de Isaac. Embaixo das imagens, com a caligrafia de seu pai, havia nomes, datas de nascimento, números de cadastro na segurança social, a última vez que foram vistos... embora nem todos os dados estivessem concluídos. E três deles tinham a palavra FALECIDO embaixo de suas fotos.
Ela virou para próxima página e a próxima. A mesma coisa. Tantos rostos.
– Eu quero que Jim Heron entre nessa – Isaac disse. – Quanto mais estiver disposto a ir adiante, melhor...
– Jim Heron? – o pai dela disse. – Você quer dizer Zacarias?
– Sim. Eu o vi mais cedo essa noite e na noite anterior. Eu pensei que ele tinha sido enviado para me matar, mas, ao que parece, ele quer me ajudar... ou é assim que diz.
– Você o viu?
– Ele estava com dois rapazes. Eu nãos os reconheci, mas parecem com caras que poderiam ser das operações extraoficiais.
– Mas...
– Oh, meu Deus. – Grier sussurrou, aproximando uma das páginas. – É ele.
Quando ela apontou para uma das fotos, ouviu seu pai dizendo: – Jim Heron está morto. Atiraram nele em Caldwell, Nova York. Há quatro noites.
– É ele. – Ela repetiu, batendo na foto.
A voz de Isaac soou confusa.
– Como sabia? Grier... como você sabia?
Ela olhou para ele.
– Sabia o que?
– Que era Jim Heron.
Movendo seu dedo, ela viu o nome Zacarias abaixo da foto.
– Bem, eu não sei quem ele é, mas esse é o homem que apareceu no meu quarto na noite passada. Como um anjo.
CAPÍTULO 32
Aquilo não estava funcionando.
Lá no fundo do Inferno, onde ela mantinha suas almas capturadas e onde o ar rarefeito ecoava os gemidos de seus servos oleosos, Devina estava sofrendo de um caso grave de mau humor.
Razão pela qual ela mandou todos embora.
Parando de repente, ela observou o pedaço de carne amarrado com um fio metálico em sua mesa. À luz das velas, Jim Heron era uma obra ao estilo Pollock com sangue, cera negra e outros líquidos de vários tipos, e ele estava tendo dificuldades para respirar através de seus lábios inchados e rachados. Em seu estômago, havia um roteiro de escavações que ela tinha feito com suas próprias garras e as coxas dele estavam bem marcadas com seu nome e seus símbolos.
Seu pênis tinha sido utilizado até ficar tão em carne viva quanto o resto do corpo dele.
E, ainda assim, ele não chorou ou implorou ou sequer abriu os olhos. Nenhuma blasfêmia, nada de lágrimas. Nada.
Ela não tinha certeza se deveria ficar chateada consigo e com seus ajudantes por não terem se esforçado o suficiente... ou se estava se apaixonando pelo bastardo.
De qualquer maneira, ela tinha a determinação de conseguir um pedaço dele. A questão era como.
Devina estava bem consciente de que havia duas maneiras de quebrar alguém. A primeira era de fora para dentro: você esculpia a pele, os ossos e o sexo do indivíduo até que a dor física, a exaustão e a vergonha aniquilavam seu núcleo mental. A segunda era o inverso: encontrar a fenda que havia dentro da pessoa e martelar com palavras até que tudo desmoronasse.
Normalmente, a primeira era suficiente para ela, tendo em conta todas as ferramentas à sua disposição – e também era divertido e, portanto, era por onde ela sempre começava. A segunda era mais complicada, embora não menos satisfatória à sua maneira. Todas as pessoas tinham chaves para abrir suas portas internas; ela só precisava classificá-las e descobrir aquela que a levaria para dentro da mente e do coração do indivíduo.
No caso de Jim Heron... Bem, estava claro que ele ia dar trabalho. E aquilo ainda abriria uma competição pelo brinquedo favorito com Adrian.
O que escolher, o que escolher...
A mãe dele. Sua mãe era uma boa, mas Devina não era capaz de ficar calma para se aproximar da realidade e ele deveria ser inteligente o suficiente para descobrir que ela estava fingindo...
Felizmente, havia outra solução que estava sob seu controle.
Fora do alcance da luz das velas, presas em suas paredes viscosas, as almas daqueles que ela capturou se contorciam. Mãos, pernas, pés e cabeças faziam aparições ondulantes que nunca quebravam a superfície suspensa, o torturado sempre procurava por uma saída.
A satisfação de ver sua coleção a distraiu, mas também a deixou faminta: ela tinha que ter Jim também como um troféu entre os outros. Estava desesperada para tê-lo dentro dela. No início, tinha sido um mero jogo; agora, depois daquela sessão, era muito mais que isso.
Ela queria obtê-lo.
Voltando a focar o rosto dele, ela achou sua expressão quase impossível de compreender. Como um homem poderia ter passado por tanta coisa... e sem sequer fazer uma careta. E também sem medo do que estava por vir.
Contudo, ela ia consertar isso.
E ela gostava de pensar que esse poder nele vinha daquela porção que ela compunha. Aqueles anjos de corações sangrando com sua contenção e moral sacrossantas... fracos, tão fracos. Ao ponto de ela não querer perder o jogo contra Nigel não apenas porque poderia governar a terra e os céus e tudo o que havia entre o sol e a lua... mas porque um bom tapa no traseiro daqueles maricas seria demais.
Contudo, Jim... ele era melhor que isso. Ele era mais parecido com ela no fundo de seu ser.
Que tragédia ter que enviá-lo à Terra em breve; mas o jogo, afinal, tinha que ser retomado. Entretanto, antes de ir, ela estava determinada em fazer uma impressão nele, dar a ele mais um pouco do que seria o Inferno Eterno. Afinal, os cortes em sua pele eram relativamente rasos. Porém, marcas na mente eram muito, muito mais profundas.
E imortais eram especialmente gratificantes nesse sentido, pois, conforme o cérebro persistia, assim era a memória – e isso significava que ela poderia deixar cicatrizes eternas.
Olhando a parede, que se estendia quilômetros acima dela, Devina pensou em sua terapeuta e no trabalho que estavam fazendo juntas. Aquele era um domínio que estava fora dos limites de sua “recuperação”, e sua situação com Jim era mais uma prova de como seu probleminha de acumular objetos viria a calhar.
Você nunca sabe do que pode precisar.
Estendendo a mão, puxou uma das formas mais esbeltas, movendo-a dentre as outras almas, chamando-a até ela. Quando estava no chão, ela convocou a alma e a vestiu da forma corpórea que costumava exibir na Terra.
Devina sorriu frente a isso. Tanta utilidade em um pacotinho tão insosso e esquecível.
Voltando-se para a mesa, ela disse: – Jim? Tenho alguém aqui que você vai querer ver.
Deitado sobre a mesa de Devina, ele duvidou. Duvidou disso, de maneira muito sincera.
Além disso, naquele ponto, visões provavelmente não eram convidativas.
Nada mais doía, o que tornava aquela droga toda muito mais fácil. No entanto, a troca que fez por aquela feliz dormência foi sua consciência recolhida a um canto escuro de seu interior. Ele ainda não tinha deitado a cabeça para tirar um cochilo, mas estava chegando lá: a audição tinha atingido a fase do algodão, onde tudo estava abafado e as coisas estavam bem frias dentro de sua pele.
Os sinais clássicos do choque faziam com que ele se perguntasse se ela tinha, de fato, a capacidade de matá-lo.
Ela não tinha finalizado Adrian, mas será que aquilo não seria um capricho do afeto?
– Vou deixar vocês dois se conhecerem.
A satisfação de Devina não era uma boa notícia, considerando que ela fez todo o inumano possível para acabar com ele afinal... Por quanto tempo? Horas? Tinha que ser.
Passos. Recuando.
Uma porta. Fechada.
Silêncio.
Contudo, alguma coisa estava com ele. Ele conseguia sentir a presença à sua esquerda.
Atrás de suas pálpebras fechadas, ele tinha certeza de duas coisas: Devina não devia ter ido muito longe e, seja lá o que foi que ela trancou com ele, estava perto.
A respiração foi a primeira coisa que ele notou. Macia, suspensa. Do tipo que você pratica quando está em modo de recuperação. Será que era sua própria respiração?
Não. O ritmo era diferente.
Ele virou a cabeça com cuidado em direção a coisa e babou, sua boca se livrou do que ele não conseguia engolir por causa do fio em volta do seu pescoço.
Seja lá o que estava com ele, soltou outra respiração suspensa. E, então, ele ouviu um sutil estalo.
Que diabos era aquilo?
Em dado momento, a curiosidade prevaleceu e ele rompeu uma de suas pálpebras... ou deu uma chance a elas, por assim dizer. Precisou de duas tentativas e ele teve que empurrar as sobrancelhas em direção à testa antes que as porcarias se abrissem...
No início, Jim não conseguiu compreender o que estava olhando. Mas o cabelo loiro não podia ser negado... aqueles cabelos longos e loiros que caiam sobre ombros frágeis.
A última vez que os viu tinha sido há dois dias. No banheiro de Devina.
Estava banhado de sangue.
A garota que tinha sido sacrificada para proteger o espelho de Devina estava vestida com uma capa manchada, seus braços finos cobriam os seios, uma pequena mão protegia a junção de suas coxas. Parecia, como milagre, que ela não estava marcada, mas o trauma estava ali: seus olhos estavam arregalados e horrorizados...
Só que eles não estavam na sala. Eles estavam nele... em seu corpo e nos restos brilhantes e pegajosos de tudo o que tinham feito com ele.
– Não... – A voz dele estava tão fraca que ele precisou puxar mais ar através daquela barreira de arame em sua garganta. – Não olhe... para mim. Afaste-se... Pelo amor de Deus, afaste-se...
Droga. Ele precisava de mais oxigênio, precisava fazer com que ela...
Os olhos dela encontraram os dele. O choque e o terror em sua face disseram mais do que ele precisava saber, não apenas do que tinha sido feito com ela por Devina, mas sobre o que a visão dele estava fazendo com aquela pobre garota.
– Não olhe para mim!
Quando ela se encolheu e retraiu-se, seu temperamento vacilou. Não que houvesse muito para conter – mas ele usou toda sua força naquele grito.
– Cubra o rosto – ele disse com a voz rouca. – Afaste-se e apenas... cubra o rosto.
A garota ergueu as mãos e se virou, sua coluna delicada destacava-se contra a capa conforme tremia.
Jim tinha puxado suas amarras involuntariamente durante a pequena sessão de exercícios com Devina. Agora, ele as empurrava.
– Você está se machucando – ela disse enquanto ele grunhia. – Por favor... pare.
A dor interrompia sua capacidade de fala e levou um tempo para dizer alguma coisa.
– Onde... Onde ela a mantém? Aqui embaixo?
– Na... na... – Sua voz era tão débil e, entre as palavras, seus dentes batiam, o que explicava o clique que ele tinha ouvido. – Na parede...
Seus olhos se atiraram em direção à escuridão, mas a luz das velas formava um bloqueio luminoso que seus olhos não conseguiam ultrapassar.
– Como ela faz isso? – Sem correntes, ele esperava.
E, droga, ele ia ferrar Devina por isso.
– Eu não sei – a garota disse. – Onde estou?
No inferno. Mas ele manteve isso para si.
– Eu vou tirá-la daqui.
– Minha mãe e meu pai... – ela caiu em lágrimas. – Eles não sabem onde estou.
– Vou dizer a eles.
– Como... – Quando ela olhou sobre seu ombro, seus olhos se fixaram sobre seu dorso degradado e ela empalideceu.
Ele balançou a cabeça.
– Não olhe. Prometa... não olhe mais para mim.
Mãos pálidas voltaram àquele belo rosto e ela assentiu.
– Meu nome é Cecilia. Sissy Barten, com ‘e’. Tenho 19 anos. Quase vinte.
– Você mora em Caldwell?
– Sim. Estou morta?
– Quero que faça uma coisa por mim.
Agora, ela deixou cair os braços e olhou para ele com firmeza.
– Estou morta?
– Sim.
Ela fechou os olhos como se outra onda de agitação atingisse seu corpo.
– Esse não é o Céu. Eu acredito no Céu. O que eu fiz de errado?
Jim sentiu algo quente no canto dos dois olhos.
– Nada. Você não fez nada de errado. E eu vou te levar para lá.
Nem que fosse a última maldita coisa que fizesse.
– Quem é você?
– Sou um soldado.
– Como no Iraque?
– Costumava ser. Agora eu luto contra essa vadia... ah, mulher que fez isso a você.
– Eu pensei que estava ajudando... quando a moça me pediu para carregar uma bolsa para ela. Eu pensei que estava ajudando... – Ela inspirou com força como se estivesse tentando se recompor. – Você não pode sair daqui. Eu tentei.
– Eu vou salvá-la.
De repente, a voz dela ficou mais forte.
– Eles machucaram você.
Droga, ela estava olhando para ele de novo.
– Não se preocupe comigo... tem que se preocupar consigo mesma.
Um som, como de algo caindo ou talvez uma porta de metal se fechando, ecoou, assustando a garota e focando Jim. Sem dúvida, Devina chegaria logo e colocaria Sissy de volta ao seu lugar, então, ele tinha que agir rápido. Ele não sabia quando voltaria ali ou como exatamente poderia libertar sua garota.
Sissy, era esse o nome.
– É ela? – Sissy perguntou tensa ao ouvir o som de passos ao longe. – É ela, não é? Eu não quero voltar para a parede... por favor, não deixe que ela...
– Sissy, ouça. Eu preciso que você se acalme. – Ela tinha que ter algo para focar, algo para manter sua mente sã enquanto ele descobria como voltar ali para salvá-la. Sondando sua mente, ele tentou criar uma imagem, algo para acalmá-la.
– Eu preciso que me ouça com atenção.
– Eu não posso voltar para lá!
Droga, o que fazer para que ela se concentre?
– Eu tenho um cachorro – ele desabafou.
Houve uma agitação, como se ele a tivesse surpreendido.
– Você tem?
Quando os passos se aproximaram, ele quis soltar um palavrão.
– Sim, eu tenho.
– Eu gosto de cachorros – ela disse em voz baixa, seus olhos fixos nele.
– Ele é cinza, meio loiro e peludo. Seu pelo... – os passos foram ficando cada vez mais altos e Jim falou rápido. – Seu pelo é grosso, como se fosse feito das sobrancelhas de um senhor idoso e ele tem patinhas. Ele gosta de sentar no meu colo. Ele tem uma perna manca que aparece quando ele corre rápido demais e ele gosta de comer minhas meias.
Uma fungada e uma respiração suspensa. Como se soubesse o que estava se aproximando e ela ia fazer o melhor que podia para segurar a corda de segurança que ele estava tentando oferecer.
– Qual o nome dele?
– Cachorro. Eu o chamo de Cachorro. Ele come pizza e sanduíche de peru e dorme no meu peito. – Mais rápido. Mais rápido com as palavras. – Você vai conhecê-lo, ok? Você vai levá-lo para passear em um gramado e... Sabe quando se dobra uma meia dentro de outra?
– Sim. – Agora havia urgência. Como se ela quisesse o máximo que ele poderia dar. – Uma bola de meia.
– Bolas de meia... é isso. – Rápido, rápido, rápido. – Você vai pegar uma bola de meia, vai jogar e ele vai trazê-la de volta para você. O sol é alto, Sissy. Você pode senti-lo em seu rosto...
– Quando você volta? – ela sussurrou.
– Assim que eu puder. – Ele estava falando de maneira confusa agora, os passos se aproximavam e ele sabia que estavam usando saltos agulha afiados e pontudos.
– Lembre-se do Cachorro. Está me ouvindo? Quando sentir que está perdendo, lembre-se do meu cachorro...
– Não me deixe aqui...
– Vou voltar por você...
O rosto de Sissy estava cheio de lágrimas quando ela estendeu a mão para ele.
– Não me deixe aqui!
Em um instante, ela assumiu a forma que tinha quando ele a viu sobre a banheira, aquela capa desapareceu, deixando-a nua, seu corpo estava profanado, seus cabelos loiros desgrenhados e emaranhados com sangue.
De repente, seus olhos saltaram para um canto distante e seus lábios manchados começaram a tremer.
– Não!
Ela colocou as mãos para cima como se quisesse afastar golpes, curvando-se para se afastar deles...
Dessa maneira, ela se foi. E Devina, a bela e diabólica Devina, entrou sob a luz das velas.
Jim perdeu essa.
Parou na metade.
Perdeu como um filho da mãe.
Quando ele xingou a assassina sangrenta, era tudo sobre a menina. A moça inocente que tinha sido tirada de sua família por um demônio, puxada para um buraco e aprisionada ali... e obrigada a ver o que restou de um homem torturado.
A raiva era uma bomba nuclear que explodia dentro dele...
A luz branca entornou de suas órbitas, explodindo na sala, iluminando as brilhantes paredes pretas que se estendiam para cima em direção ao infinito. A liberação da luz consumiu sua forma física, libertando-o das amarras de Devina, levando-o a percorrer o espaço em uma rajada de moléculas soltas que sopraram as velas e derrubaram seus suportes.
Aglutinando sua forma intensamente, ele se virou... e foi ao ataque de Devina.
Agora, era ela quem se preparava para o impacto, seu cabelo moreno foi arrancado de seu couro cabeludo com o furacão explosivo que ele produziu, a pele de seu rosto foi de encontro a sua estrutura óssea quando ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre o chão de pedra.
Assim que ele a alcançou, Jim reuniu sua nova forma em uma lança certeira e atirou-se direto em direção ao peito dela.
Jim entrou no corpo dela e lançou a vadia longe, todas as partes dela saíram voando, pedaços de sua pele, emaranhados de entranhas escorregadias e quilos de carne vermelha escura se espalharam pelas paredes de sua masmorra.
O que sobrou foi um buraco negro da mesma massa e energia que o compuseram – ele estava pronto para atacá-la assim.
Só que, evidentemente, ela não estava interessada em uma luta corpo a corpo: sua sombra distorcida saiu da sala e desceu um corredor, iniciando uma fuga.
Mas que... Droga!
Jim correu atrás dela...
E se chocou com o equivalente metafísico de uma casa de tijolos.
O impacto chocante da barreira invisível o enviou para trás e ele assumiu sua forma corpórea mais uma vez ao deslizar em carne viva no chão de pedra.
Ele teve um breve momento para soltar um “mas que inferno!” antes que o sinal de fim de jogo do seu corpo piscasse e ele caísse de costa em exaustão absoluta.
Quando sua raiva passou, nada mais havia nele e um cansaço fatal sangrou de seu coração que batia de maneira estranha e se espalhou por ele como uma erva daninha que se enraíza e floresce. Não mais sendo capaz de erguer a cabeça, ele deixou a coisa descansar na pedra e apenas respirou, mal notando que o ar estava saturado com cheiro de morte recente e com uma pitada acre da fumaça das velas.
– Sissy – ele disse na escuridão. – Estou bem aqui...
Ele não tinha ideia de se ela podia ouvi-lo e não houve resposta. Apenas um som estranho, fundido... sem dúvida, as almas tentando se livrar de sua prisão.
Ele odiava pensar que sua garota estava presa lá.
Odiava o fato de tê-lo visto daquela maneira.
Com esse pensamento, a dor o incomodou como se tivesse sido esfaqueado com uma barra de ferro. Oh, Deus... aquela pobre criança...
Um aumento súbito de emoção veio sobre ele em uma onda: nu, arrasado e imundo, Jim encolheu-se para um lado e chorou sufocado e com grande sofrimento, suas lágrimas quentes e salgadas percorriam a pele de seu rosto arrasado.
Ele nunca se preocupou em se machucar. Nunca. Mas suas falhas... seus fracassos eram insuportáveis. E agora havia duas mulheres que ele não tinha sido capaz de salvar: sua amada mãe e Sissy... Nas duas ocasiões, ele chegou tarde demais no local, nas duas ocasiões, o dano já havia sido feito antes dele chegar.
Com uma precisão horrível, ele viu sua mãe no chão da cozinha da fazenda, nada além de estraçalhada... e Sissy sobre a banheira.
Agora Sissy também, tentando se afastar do demônio.
Era demais para suportar, o peso de suas falhas era grande demais para suportar, quanto mais para continuar a lutar...
O som de seu nome abriu seus olhos e diminuíram os soluços.
Com um esforço enorme, ele virou a cabeça e olhou para cima.
Muito, muito, muito acima, a uma galáxia de distância de onde ele estava, um pontinho de luz se recolhia e ficava mais forte, começando de novo como se fosse a cintilação minúscula de um pisca-pisca na árvore de Natal... e, então, se intensificou para 25, depois 60 e, então, parecia uma lâmpada de 100 watts.
A iluminação caía sobre ele com a velocidade e a eficiência de uma pluma através do fino ar... dentes de leão soprados pela boca de uma criança... flores do campo sob uma brisa suave...
Levou um tempo bastante longo para que sua mente abrangesse a desconexão entre seu desespero épico e o delicado caminho de luz. Fechando os olhos, ele parou de assistir e se entregou ao estremecer aleatório de seu corpo espancado.
– Jim.
Uma voz masculina. Sobre ele.
Jim abriu as pálpebras para ver que a luz havia se tornado um homem de cabelos escuros com asas douradas magníficas.
Colin.
O arcanjo número dois.
– Ei, companheiro – o cara disse ao se ajoelhar. – Eu vim para te tirar daqui.
De algum lugar, só Deus sabe de onde, Jim convocou energia suficiente para falar.
– Leve-a no meu lugar. Deixe-me aqui... leve-a no meu lugar. Sissy. A menina...
– Isso eu não posso fazer. Eu não deveria estar aqui agora. – O anjo se inclinou e reuniu a forma arrasada de Jim em seus braços. – Mas você vai precisar de um tempo para se recuperar antes que possa sequer se sentar, quanto mais sair daqui por si mesmo. E a guerra continua sem você.
Nenhum argumento para seu nível de energia, mas Deus, ele gostaria que Sissy estivesse um milhão de quilômetros longe dali.
– Deixe-me – ele gemeu.
– Não nessa vida. Você quer Sissy liberta? Derrote Devina. É assim que vai libertar sua garota desse pesadelo.
Quando começaram a levitar, a cabeça de Jim pendeu para um lado e ele os viu subir, subir, afastando-se metros e metros – inferno, eram quilômetros – das paredes negras. Ao longo do caminho, a forma brilhante de Colin iluminava o deslocamento, agitando a superfície, e rostos se sobressaíam na opacidade, através da barreira líquida, como se aqueles que estavam presos tentassem vê-los, pegá-los, juntar-se a eles na fuga. De todas as direções, mãos se estendiam. Contorcendo-se em formas grotescas como se a barreira maleável da prisão provasse ser rígida demais para ser trespassada.
Onde estava a garota dele? Sua bela e inocente garota que...
O cérebro de Jim estava esgotado, a trama de seus pensamentos se desembaraçava, a consciência começou a desistir daquele fantasma e se aprofundou no berço rígido das paredes de seu crânio.
Enquanto desmaiava, sua última missiva mental foi uma oração: que Sissy se lembrasse do Cachorro e se agarrasse a essa esperança até que Jim pudesse fazer disso realidade.
CAPÍTULO 33
Na adega, com a imagem de Jim Heron exposta no dossiê, Isaac estava certo que os dois Childes tinham perdido a cabeça.
– Ele não está morto. – Isaac lançou olhares para pai e filha. – Eu não tenho certeza do que você viu ou o que ouviu...
– Ele esteve no meu quarto. – Grier balançou a cabeça. – Foi assim que fiquei sabendo que você estava tendo o pesadelo. Ele apontou o caminho e, em seguida, eu fui até você. Pensei que era um sonho, mas por que identifiquei o rosto dele na foto de maneira tão clara?
– Porque você o viu. Ontem à noite, na luta. Ele estava comigo.
– Não, ele não estava.
Certo. O cara esteve bem na frente dela.
– Você disse que era um anjo.
– Bem, parece que ele tinha asas.
Teoricamente, era possível que Heron tivesse feito uma visita a ela – mas com o alarme de segurança, era possível concluir que ele deve ter ficado distante das portas francesas da sacada. Ao acordar e ficar meio desorientada, ela concluiu que Jim estava do lado de dentro. E isso foi apenas uma coincidência com o pesadelo... Assim como as asas? Jim Heron nunca foi santo, muito menos um anjo. Seja lá o que ela tinha visto, devem ter sido reflexos dos vidros. Tinha que ser.
O pai de Grier falou.
– Estou dizendo, ele está morto. Eu recebo um alerta de rastreadores na internet com os nomes dos agentes que conheço... e ele levou um tiro em Caldwell, Nova York, há quatro dias.
Isaac revirou os olhos.
– Não acredite em tudo que lê. Eu falei com o cara no jardim dos fundos ao anoitecer. Frente a frente. Confie em mim, ele está vivo e precisamos dele. – Isaac ficou em pé. – Os amigos dele estão vigiando a casa enquanto conversamos e, pessoalmente, acho que Heron declarou uma guerra velada a Matthias, então, tenho plena certeza de que podemos chamá-lo para trabalhar conosco, concluindo que eles ainda não o mataram. Acredito que o status dele é de desaparecido em ação, no momento.
– Espero que possa agregá-los, então, pois quanto mais pessoas para acompanhá-lo, melhor. – Childe bateu uma de suas mãos sobre os dossiês. – Deve revisar tudo isso essa noite, preencher as lacunas, tentar encaixar o que sabe... mesmo que não queira entregar seus companheiros soldados, isso pode ajudar nas suas lembranças. Vou subir até o corredor do banheiro e usar meu telefone de segurança para fazer algumas ligações e estabelecer as coisas o mais rápido que puder.
– Entendido. Mas eu gostaria que o senhor ficasse longe das janelas e não saísse da casa.
– Vou ser cuidadoso. – Childe lançou um olhar à sua filha. – Prometo.
Quando o pai de Grier desapareceu escada acima, Isaac verificou o transmissor de alerta. O aparelho ainda mostrava que o sinal tinha sido enviado, mas ainda não tinha recebido resposta. O que significava que ele ou estava muito abaixo do solo naquela adega para receber isso... ou Matthias estava dando um tempinho para entrar em contato.
Ele olhou para Grier.
– É melhor eu ficar lá em cima por um tempo no caso deles tentarem entrar em contato comigo.
– O que você vai fazer? Se eles quiserem se encontrar com você imediatamente?
– Tenho uma margem de tempo até eu me entregar. Mas seu pai precisa fazer alguns milagres rapidamente. – E, por favor, Deus, faça com que Jim Heron esteja bem... e que apareça logo.
Ela acariciou os dossiês com sua mão elegante.
– Ele é bom com milagres. Na verdade, é a especialidade dele. Você deveria vê-lo negociando. – Seus olhos baixaram até a pasta. – Vou ficar aqui. Quero ver se reconheço algum desses homens. Havia muitos que batiam na porta durante a minha infância e eu sempre me perguntei quem eles eram.
Quando ela ficou em silêncio, ele deu um passo adiante. E depois outro. Em volta da mesa, até que estivesse ao lado dela.
Quando ela levantou o olhar para ele, Isaac colocou para trás com cuidado uma mecha de cabelo que estava em seu rosto.
– Não vou perguntar se está bem, pois como poderia, não é?
– Você já sentiu... como se não reconhecesse sua própria vida?
– Sim. E isso foi o que me levou a mudar.
Bem, aquele tinha sido o primeiro passo. Ele estava começando a acreditar que ela era o segundo. E com o pai dela e Jim Heron... três era o número mágico. Se Deus quisesse.
– Sabe de uma coisa? – ela disse. – Estou realmente feliz em ter te conhecido.
Isaac recuou.
– Pelo amor de Deus, como pode dizer isso?
– Você foi a chave que destrancou as mentiras. – Ela voltou a encarar a foto de Jim Heron. – Acho que sem você nada disso seria esclarecido. Apenas algo que pudesse estilhaçar assim...
Quando ela não completou, ele deu um passo para trás.
– Sim. Esse sou eu.
Ela assentiu de maneira distraída, virou a página e se perdeu nos rostos dos homens que eram exatamente como ele... homens que haviam arruinado a família dela.
Estilhaçado.
Será que os agentes que tinham matado seu irmão estavam ali? Com algumas notas?
De alguma maneira, ele duvidava que o pai os colocasse ali.
– Posso lhe servir um pouco de vinho? – ele perguntou, antes de sair.
Grier sorriu um pouco.
– Estou cercada disso.
– Verdade. – Ele deveria ter oferecido café. Água. Cerveja. Uma troca de óleo. Qualquer coisa que ele pudesse fazer por ela ou dar a ela para acalmá-la.
Bem, agora, com essa brecha, havia algo melhor que poderia fazer. Ele poderia deixá-la.
– Vou estar lá em cima. – Quando ele alcançou a porta, olhou para trás. Ela estava enterrada nos dossiês, sobrancelhas tensas, braços no colo ao inclinar-se sobre a mesa.
Sim, deixá-la tornaria as coisas muito melhor.
Ele se virou e subiu as escadas para a cozinha de dois em dois degraus. Parando na base da escada, ele ouviu alguma coisa. Não um som. O que fazia sentido uma vez que o pai dela tinha se trancado em um banheiro protegido.
Droga, ele não acreditava que estava prestes a denunciar Matthias. Mas, às vezes, a morte natural era boa demais para alguém. Melhor que apodrecer atrás das grades ou ficar tão aceso quanto a Times Square em uma cadeira elétrica.
Era quase como se ele estivesse destinado a encontrar Grier e seu pai nesse exato momento de sua vida – os dois tinham sido predestinados a lhe mostrar algo muito mais honroso do que havia planejado fazer.
Contudo, Jim Heron se mostraria importante também.
Apalpando uma de suas armas, saiu para o jardim pela porta dos fundos.
Evitando a luz que era sensível ao movimento, ele aguardou nas sombras sem fazer barulhos e, claro, um dos amigos de Jim se aproximou um momento depois. No instante em que colocou os olhos no cara, estava claro que o clima permanecia ruim: o cara com a trança tinha os lábios apertados e o olhar rígido como de um homem que ainda não sabia onde um dos membros de seu time estava.
– Jim ainda não pôde vir? – Isaac perguntou. Mesmo sabendo que a resposta era um claro “não”, dado àquela expressão.
– Espero que possa vê-lo pela manhã.
Isaac olhou para seu relógio.
– Não sei se tenho todo esse tempo.
– Arranje algum.
Fácil para ele dizer.
– Vai me dizer se ele aparecer?
Quando o cara assentiu, Isaac ficou muito preocupado.
– Ele está bem? – Quando o cara balançou a cabeça devagar, Isaac soltou um palavrão.
– Você vai me dizer o que está acontecendo? – Silêncio. – Sabe? Para sua informação, as pessoas pensam que ele morreu.
– Tudo que posso dizer é que... neste momento, ele gostaria de estar morto.
Adrian observou enquanto Eddie conversava com Rothe perto da porta dos fundos e mesmo Ad sendo intrometido como ninguém, ele não se importava com o que estavam dizendo.
Nigel. Aquele filho da mãe do Nigel.
Pensava que era o “Sr. Acima de Tudo Quanto é Mais Sagrado”.
Que estava mais que disposto a deixar seu maior trunfo ser usado e abusado pelo inimigo apenas porque era bichinha demais para arregaçar as mangas e nocautear Devina.
Enquanto isso, Jim era um equipamento de ginástica para um bando de babacas pervertidos.
Cara, ele apenas veio com aquela história de não poder fazer nada. Se Ad tivesse um de seus amigos capturado e ele pudesse libertá-lo? Não importava o que ele tivesse que fazer, o sacrifício que isso fosse requerer, por onde tivesse que passar: ele traria o pobre filho da mãe de volta. E onde estava seu chefe agora? Jantando.
Aquilo fazia com que ele desejasse enfiar a sobremesa no traseiro de Nigel.
Adrian esfregou o rosto com tanta força que quase arrancou o nariz. O problema era: a pequena oficina de Devina não era acessível a ele ou a Eddie, a menos que saltassem através de seu espelho – caso contrário, ela tinha que levá-lo até lá... e ela o liberava dali apenas quando estivesse bem satisfeita.
Nunca antes.
Foi por isso que eles foram até Nigel. Havia rumores de que arcanjos poderiam descer ao inferno sob certas circunstâncias – ninguém sabia exatamente o que aquelas mocinhas tinham que fazer ou como funcionava. Contudo, a moral da história era que aqueles quatro pesos-pena eram sua única esperança...
Como se seu nome tivesse sido pronunciado em vão, Colin apareceu do nada, os cabelos escuros do arcanjo surgiram em frente ao rosto de Adrian.
– Droga! – Ad falou entre dentes ao pular para trás e segurar-se em um arbusto – que rapidamente se quebrou ao meio com seu corpo pesado.
Ele aterrissou como um saco de areia, mas não ficou parado. Levantando-se, assumiu uma postura que exigia uma explicação: aqueles rapazes não costumavam aparecer à toa na Terra.
– O que você está...
– Eu o tirei de lá.
Ad piscou, de repente ele não entendia o idioma. Espere um minuto. Ele tinha acabado de ouvir que...
– Jim? Você está falando de Jim?
– Está livre.
– Mas Nigel disse...
– Não estou discutindo isso. Eu tinha a opção de tirar alguém do covil de Devina e coloquei o pobre rapaz no hotel em que estão hospedados... ele precisa de cuidados.
Eddie se aproximou.
– Você o tirou de lá? Mas eu pensei que Nigel...
– Eu tenho que ir. – Colin deu um passo para trás e começou a desaparecer. – Vão ajudá-lo. Ele precisa.
– Obrigado. – Ad respirou, aliviado e enjoado: a recuperação de alguém que passou por uma das sessões de Devina era terrível. Principalmente porque as memórias daqueles momentos eram muito vívidas.
Colin balançou a cabeça ao desaparecer, sua voz era demorada: – Isso simplesmente não foi certo.
– Estou indo para o hotel – Adrian disse, desfraldando suas asas para se elevar no ar. – Fique de olho em Isaac...
Eddie segurou o braço dele com força.
– Deixe-me cuidar de Jim.
– Não.
– Essa não é bem sua área, Adrian. – O aperto de Eddie o manteve no chão, aquela grande mão espremia seus ossos e músculos. – E sabe disso.
– Pro inferno que não é.
Libertando-se, ele deu três saltos e saiu voando pelo ar, aprofundando-se na noite e impulsionando-se para oeste. O voo de volta para onde estavam hospedados foi irregular e acidentando – mas não por causa do vento. Era mais porque Eddie tinha razão, o filho da mãe.
Quando Ad chegou ao hotel, ele queria ir até os quartos atravessando as paredes, mas decidiu não arriscar: uma vez que o papel de bala interior que o envolvia estava solto e se debatendo, ele caiu no gramado e seguiu pela recepção. Ele tinha a sensação de que estava distraído e enjoado demais para atravessar madeira e concreto com sucesso.
O problema era: ele sabia exatamente como Jim estava.
Ao alcançar a recepção, uma mulher simpática atrás da mesa o cumprimentou: – Boa-noite, senhor. – Mas ele apenas acenou e iniciou uma corrida. Não houve espera pelo elevador, um casal estava fazendo check-in com seus filhos e tinham um carrinho cheio de bagagens. Mas mesmo com aquela situação tão conveniente, ele não era capaz de esperar tanto tempo para que as portas se abrissem para ele.
Pelas escadas. De dois em dois degraus. Algumas vezes três.
Quando chegou ao último andar, seu coração estava a mil por hora e não apenas porque tinha se exercitado. Ele não tinha a chave do quarto de Jim, então, pegou a sua mesmo e deslizou no vão da fechadura.
Ele abriu o caminho como uma explosão.
– Jim? Jim?
O brilho do banheiro iluminava a cama desarrumada onde ele e Eddie tinham estado com aquela garota na noite anterior, as roupas também estavam espalhadas por toda parte.
A porta que levava ao quarto de Jim estava meio aberta, o quarto estava escuro.
– Jim...?
Ele sabia que o anjo estava lá. Ele podia sentir o cheiro da fumaça de vela, do sangue fresco e de... outras coisas.
A pressa que havia no rapaz evaporou quando a realidade do que estava prestes a ver agarrou seu peito e o sufocou. Mas ele não ia voltar atrás. Ele era um idiota de primeira ordem, sempre foi. Contudo, não era um maricas para fugir de situações difíceis.
Adrian passou pela porta entre os dois quartos e se inclinou.
– Jim.
A luz no banheiro atrás dele cortava um caminho ao longo da escuridão e parava aos pés da cama do anjo como se fosse educada demais para mostrar sua condição.
Depois que Adrian atravessou o batente, precisou de um momento para que seus olhos se ajustassem.
Com um sussurro, ele prometeu: – Eu vou matar aquela vadia...
Jim estava deitado de lado, enrolado em si mesmo, como se tentasse conservar seu próprio calor, e tremia por completo. Um cobertor foi puxado – sem dúvida, pelo arcanjo – sobre seu corpo grande e maltratado e o Cachorro estava bem próximo de seu rosto, ajeitado em formato de bola, sem se mover.
Quando Adrian se aproximou, o animal se moveu um pouco, mas não levantou a cabeça, permanecendo nariz a nariz com Jim.
O anjo parecia estar respirando, seu peito subia e descia, um chiado suave saía por sua boca machucada. Seu cabelo estava embaraçado e havia sangue em seu rosto, feições que, há não muito tempo eram suas, desapareceram graças às feridas enormes.
Adrian sentou-se lentamente.
– Jim?
Sem resposta, então, ele tentou repetir o nome de guerra mais algumas vezes. Em dado momento, as pálpebras de Jim se ergueram.
– Ei... – Adrian sussurrou.
Ele gemeu e, em seguida, seus olhos se fecharam e o corpo estremeceu sob o cobertor como se estivesse tendo um ataque.
Se aquilo era algo parecido com o que Adrian passou – e dada a forma como o cara aparentava, era quase idêntico –, o que Jim realmente queria era uma banheira de água quente seguida por uma ducha. Mas era cedo demais para isso. Medicar primeiro – havia muitos ossos quebrados e contusões para tratar – o que era o peso da dupla natureza de um anjo: ser real e irreal ao mesmo tempo significava que pelo menos metade de você poderia se ferrar muito e a droga não se revertia imediatamente.
Adrian se levantou e foi até o aquecedor que estava debaixo da janela. Girando o botão para o modo “sauna”, ele tirou a jaqueta de couro e fechou a porta que dava para o outro quarto, trancando-os ali. Então, ele sentou na cama, se estendeu sobre o fino cobertor e colocou seu peito nas costa do anjo para aquecê-lo.
Enquanto estava deitado, ouvindo um zumbido que vinha do aquecedor, sentia os tremores ao longo do tronco e dos outros membros de Jim. Parte disso era o processo de cura, que de algumas maneiras era mais doloroso que o surgimento das lesões. E outra parte disso era o frio do choque traumático.
E outra parte eram as memórias, sem dúvida.
Ele queria colocar um braço em volta do cara, mas isso faria com que Jim se sentisse muito desconfortável: quando esteve nessa condição, ele deitou nu, sem sequer um lençol sobre sua pele arranhada.
Depois de um tempo, o calor crescente que se espalhou do aquecedor os alcançou, fazendo arcos e descendo pelo ar. Jim, obviamente, sentiu o fluxo, pois respirou longamente e exalou em um vago suspiro.
Deitando ao lado do outro anjo, Adrian já tinha esperado uma vez que seria assim que Jim acabaria e foi o que aconteceu mesmo, até certo ponto. Ele sabia que Devina queria o cara... desde a primeira missão, desde àquela primeira noite no clube em Caldwell. E ele serviu Jim de bandeja para ela.
Com direito a tudo, até a uma etiqueta indicando “DE/PARA”.
Difícil não se sentir responsável por isso.
Difícil mesmo.
– Vou cuidar de você, Jim – ele disse com voz rouca. – Estou aqui por você, cara.
CAPÍTULO 34
Na adega, Grier passava os dossiês um por um enquanto esperava... e esperava... e esperava mais um pouco...
Finalmente.
– Por que você não me disse? – ela perguntou, sem olhar para trás.
Daniel levou um longo tempo para responder, mas ele não desapareceu: sempre que ele estava por perto, ela conseguia sentir uma pequena brisa e enquanto aquilo acariciava sua nuca, ela sabia que ele ainda estava com ela.
Pensei que ia odiá-lo. E, então, você e ele não teriam mais ninguém.
– Então, você sabia o que aconteceu?
Daniel andou em volta da mesa, com uma de suas mãos plantada no quadril e a outra enterrada em seu cabelo de maneira que os cachos formassem um halo.
Eu estava drogado quando tudo aconteceu... então, achei tudo muito engraçado, papai entrando com tudo com três caras de preto. Achei que aquilo era sua versão de uma intervenção para me ajudar – uma história em quadrinhos barra pesada. Mas quando eles colocaram a agulha no meu braço ele começou a gritar e foi aí que percebi... aquilo não era engraçado.
Os olhos de Daniel encontraram os dela.
Eu nunca o vi daquela maneira antes. Para mim, ele era sempre tão distante e sem emoção. Foi... a reação que procurei durante toda minha vida, o amor visceral pelo qual buscava. Entenda, eu era como a mamãe, não como você e ele. Eu queria mais do que aquela desaprovação fria – e consegui, só que já era tarde demais. Ele deu de ombros. Olhando para trás, vejo que eu era carente demais e ele não sabia o que fazer com um filho que não tinha sido feito para usar um uniforme militar. Água e óleo. Eu deveria ter lidado com isso de maneira diferente, mas não o fiz.
– E ele também não.
Não é culpa de ninguém. Foi... o que foi.
Grier inclinou-se em sua cadeira, pensando na maneira como seus familiares tinham se alinhado na vida: ela e seu pai de um lado; Daniel e sua mãe de outro.
Não foi culpa dele – seu irmão disse com um tom severo que ela nunca tinha ouvido dele antes. A forma como acabei minha vida... ele gritava, Grier... e, então, eu estava morrendo, e o ouvi dizendo várias vezes: “Danny... oh, Danny, meu garoto... meu garoto...”
Quando a voz de Daniel se quebrantou, ela foi compelida a se levantar e se aproximar dele. Antes que percebesse o que estava fazendo ela envolveu os braços em volta...
De si mesma.
Por favor, não me odeie – ele disse do outro lado, tendo mudado de lugar tão rápido quanto um piscar de olhos.
– Por favor, não fuja – ela respondeu.
Desculpe... Tenho que ir...
Ele desapareceu diante dela como se não pudesse mais conter suas emoções, seu desespero permaneceu no rastro frio que ele deixou para trás.
Ela ficou em pé por um tempo, olhando para o espaço vazio que ele tinha acabado de ocupar. Ela e seu pai eram do mesmo tipo e fizeram um acordo intelectual onde trancavam os outros do lado de fora, não foi isso? Sua mãe e irmão tinham seus vícios enquanto ela e seu pai estavam em sintonia com a lei, suas carreiras e suas paixões externas.
Ela sabia disso de alguma maneira... e talvez aquilo tenha feito parte de sua corrida para salvar Daniel. O vício de seu irmão e seus esforços para tirá-lo disso tinha sido a ligação que não tiveram durante a infância: ela sempre se culpava... e, por um breve momento, naquela noite, ela culpou seu pai.
Agora... ela tinha raiva do homem com o tapa-olho. Uma raiva terrível. Se Daniel estivesse vivo, talvez eles tivessem resolvido tudo isso. Os três perdoariam um ao outro dos erros do passado. E se dirigiriam a... a algo que sua família desfrutava apenas superficialmente. Afinal, privilégios, dinheiro e educação poderiam cobrir uma infinidade de problemas... e não garantiam que a proximidade vista em um cartão de Natal fosse realmente mais que uma mera pose feita uma vez por ano para um fotógrafo.
Balançando a cabeça, ela voltou para sua cadeira e encarou os dossiês.
Isaac ia igualar o placar da família, ela pensou. Por ter revelado o bastardo maníaco que assassinou seu irmão e não fez nada além de arruinar seu pai.
Folheando as fotografias, ela reconhecia cada homem, pois tinha analisado cada página repetidas vezes enquanto esperava pela aparição de Daniel. Havia uma centena de fotos ou mais, mas havia um total de uns quarenta homens, capturados em vários ângulos, ilustrando as páginas produzidas ao longo de anos. Dentre os muitos rostos, havia cinco que ela reconheceu... ou pelo menos achou que os tinha visto antes. Difícil saber... de alguma maneira, eles pareciam tão semelhantes.
A fotografia de Isaac estava lá e ela voltou a revê-la. A foto era clara, capturada bem em cheio. Ele estava olhando diretamente para a câmera, mas ela tinha a impressão que ele não sabia que estava sendo fotografado.
Sério. Deus, ele parecia tão sério. Como se estivesse preparado para matar.
A data de nascimento sob seu nome confirmava a idade que ela já sabia e havia algumas anotações sobre países estrangeiros onde ele tinha estado. E, em seguida, havia uma linha que ela tentava entender: Correção moral necessária. Ela tinha visto a frase apenas em dois outros perfis.
– O que você está segurando?
Grier pulou ao som da voz de Isaac, a cadeira gritou ao arranhar o chão. Agarrando seu peito, ela disse: – Jesus... como você faz isso?
Pois, considerando tudo, ela preferia não ser pega encarando a foto dele.
– Desculpe, só pensei que gostaria de um café. – Ele se aproximou, apoiou uma caneca e, em seguida, voltou à porta. – Eu deveria ter batido.
Ao fazer uma pausa entre os batentes da porta, vestia apenas o moletom de capuz que usava como travesseiro, seus ombros eram muito largos ao longo da extensão de tecido cinza. E considerando as últimas quarenta e oito horas, ele parecia incrivelmente forte e focado.
Seus olhos se voltaram para o café. Tão pensativa. Muito pensativa mesmo.
– Obrigada... e desculpe. Acho que apenas não estou acostumada com... – um homem como ele.
– Vou anunciar minha presença de agora em diante.
Ela pegou a caneca e tomou um gole. Perfeito: simplesmente com a quantidade certa de açúcar que ela gostava. Ele a observou, ela pensou. Viu o quanto ela adicionou em algum momento, mesmo não estando consciente disso. E ele se lembrou.
– Está olhando para mim? – Quando ela levantou o olhar, ele assentiu com a cabeça em direção aos dossiês. – Para minha foto?
– Ah... sim. – Grier interrompeu a frase. – O que isso significa exatamente?
Ele andou em sua direção e se inclinou. Quando encarou os detalhes descritos sob seu rosto, a tensão nele era palpável, todo seu grande corpo ficou rígido.
– Eles tiveram que me dar um motivo.
– Antes de você matar alguém.
Ele assentiu e começou a andar ao redor, indo em direção às garrafas de vinho. Ele pegou uma, olhou o rótulo, voltou a colocar no lugar... passou uma a uma.
– Que tipo de motivos eles lhe deram? – ela perguntou, bem ciente de que as respostas dele sobre isso significava muito para ela.
Ele fez uma pausa com uma embalagem de Bordeaux nas mãos.
– Do tipo que faz com que isso pareça certo.
– Como o quê?
Seus olhos viraram em direção a ela e Grier fez uma pausa. Eles estavam tão tristes e vazios.
– Diga-me – ela sussurrou.
Ele colocou a garrafa de volta no lugar. Distanciou-se um pouco das prateleiras de madeira.
– Eu só fazia isso com homens. Nenhuma mulher. Havia alguns que conseguiam fazer isso com mulheres, mas eu não. E eu não vou lhe dar exemplos específicos, mas o absurdo de uma filiação política não era suficiente para mim. Matar um monte de gente ou estuprar mulheres ou explodir algumas mer... er... coisas? É uma história bem diferente. E eu precisava visualizar algumas provas com meus próprios olhos... vídeo, fotografia... corpos que foram marcados.
– Você já recusou alguma tarefa?
– Sim.
– Então, você não mataria meu irmão.
– Nunca – ele disse sem hesitar. – E eles nem sequer teriam me pedido. Da maneira como Matthias encarava isso, eu era uma arma que funcionava sob determinadas circunstâncias e ele me tirava do coldre em momentos apropriados. E, você sabe... Eu percebi que tinha que sair das operações extraoficiais quando me dei conta de que não era diferente das outras pessoas que eu matava. Todos eles sentiam como se as atrocidades que cometiam eram justificáveis. Bem, então, aquilo fazia de nós espelhos que refletiam um ao outro. Claro, de um ponto de vista objetivo, qualquer um concordaria comigo sobre isso, mas não era o suficiente.
Grier exalou longamente. Ele era aquilo em que sempre acreditou, pensou ela.
– Como assim? – ela disse.
De repente, ela achou que tinha pensado em voz alta.
– Eu sempre disse a Daniel... – Ela fez uma pausa, perguntando-se se estava tudo claro dentro dela para continuar. – Eu dizia que nunca era tarde demais. Que as coisas que ele tinha feito no passado não definiam o futuro. Acho que no final, ele desistiu de si mesmo. Ele roubava do meu pai, de mim e de seus amigos. Ele foi preso assaltando uma casa e também por roubar um automóvel, em seguida, ao tentar saquear uma loja de bebidas. Foi assim que me envolvi com as causas voluntárias. Eu entrava e saía de várias cadeias nos últimos cinco anos antes de sua morte. Eu sentia que estava ajudando... mas talvez eu pudesse fazer isso com outra pessoa, sabe? E eu fiz... Eu ajudei outras pessoas.
– Grier...
Ela fez um gesto com a mão quando sua voz ficou embargada. Ela terminou de falar chorando. Não passaria disso e nada mais poderia ser mudado.
– Você quer continuar com isso?
Quando ela indicou os dossiês, ele deu de ombros e foi até a porta, ficando exposto apenas por um pequeno vão contra o batente.
– Eu só vim mesmo para ver como você estava.
No ar rarefeito, seus olhos de pálpebras baixas a aqueceram de dentro para fora. Ele era uma grande contradição... entre seu trabalho onde foi treinado para matar e seu coração de escoteiro.
Ela deu uma olhada para a foto dele.
– Parece que está procurando alguma coisa aqui.
– Na verdade, eu estava prestes a embarcar em um avião. Tive a sensação de que alguém estava olhando, mas não conseguia dizer de onde vinha esse olhar. Estava esperando em uma base aérea para viajar ao exterior. – Ele limpou a garganta como se estivesse varrendo a memória de sua mente. – Seu pai dormiu lá em cima. Ele passou uma duas horas no telefone, até onde vi.
– Já passou tanto tempo? – Ela olhou para seu relógio e ao movimentar o pulso, tomou consciência de cada articulação de seu corpo. Esticando os braços sobre a cabeça, sua coluna estalou.
– Como as coisas estão indo?
– Eu não sei. Antes de deitar, ele me disse que se conseguirmos fazer tudo até amanhã à noite, estaremos bem. Ele fez múltiplos contatos desde a CIA, Departamento de Segurança Nacional e gabinete presidencial e ficaremos bem aqui para que eu não precise me deslocar. A peça que falta é Jim Heron – nós ainda estamos esperando que ele volte – embora, se for preciso, seguiremos sem ele.
– Você recebeu alguma... resposta? Deles?
– Não.
O medo passou por suas costelas e atingiu seu coração como uma carga de bateria.
– Você pode ficar até amanhã à noite?
– Se for para ser dessa maneira, sim.
Ele parecia tão seguro e ela precisava acreditar naquela confiança: seria uma tragédia sem limites para ele ser interrompido agora, quando estava tão perto da liberdade que desejava.
Estranho que alguém que tinha conhecido há apenas alguns dias tivesse se tornado tão importante para ela.
– Eu estou orgulhosa de você – disse ela, deslizando o dedo sobre sua fotografia.
– Isso significa muito para mim. – Pausa. – E obrigado por me mostrar o caminho. Eu não seria capaz de fazer isso sem você.
– Sem meu pai, você quer dizer – ela contradisse suavemente. – Ele tem os contatos.
– Não. Você é a única.
Ela franziu a testa, pensando que era um jeito engraçado de responder.
– Quero que responda algo para mim.
– Diga.
Seus olhos encontraram os dele.
– Quais são as suas chances. De fato.
– De sair dessa com vida?
– Sim. – Quando ele apenas balançou a cabeça, ela franziu a testa para ele. – Lembre-se, acabamos com toda aquela coisa de “proteger a garota frágil”.
– Meio a meio.
Bem, não é que aquilo deu um nó em sua garganta?
– Isso é ruim, hum?
– Quer alguma coisa para comer com o café? Não sou nenhum chefe de cozinha, mas vi algumas sobras na geladeira e posso colocar no micro-ondas. – Quando ela recusou com a cabeça, ele insistiu. – Você tem que comer.
– Eu prefiro fazer sexo com você – ela soltou.
Isaac tossiu. Na verdade, tossia como se alguém tivesse dado um soco em seu peito.
– Desculpe ser tão direta. – Ela deu de ombros. – Mas convenções sociais estão bem longe da minha lista de prioridades agora. E eu tenho a sensação de que não vou te ver depois de amanhã à noite, tanto por que você pode ser tomado sob custódia federal, quanto por... – Ela respirou fundo. – Quero um bom pedaço de você antes que se vá. Algo para lembrar-me de você em minha pele, não apenas em meu cérebro. Lá em cima foi tudo tão rápido e furioso... Eu quero prestar atenção e me lembrar.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
– Achei que você gostaria de se esquecer disso o máximo possível.
– Não de você... eu não quero me esquecer de você. – O canto de sua boca se ergueu um pouco. – Embora eu não acredite ser possível.
Quando ele ficou onde estava, ela empurrou a cadeira para trás e se levantou. A distância entre eles era de três passos e quando ela veio em direção a ele, Isaac se endireitou e puxou seu blusão para baixo como se estivesse se arrumando.
Grier ergueu-se na ponta dos pés e tocou o rosto dele, colocando a palma de suas mãos na sua barba por fazer.
– Eu nunca vou esquecê-lo.
Quando ele lambeu os lábios, como se estivesse com fome daquilo que exatamente ela queria, Grier pegou a mão dele e o levou para o local mais fundo da adega, ao puxá-lo para dentro, os fechou ali.
Ao contrário da primeira vez, quando ela estava ferida e procurava apenas mais do ciclone, agora era apenas ele, o homem, que o impulsionava – não seu zumbido interno.
Ele estava todo ali.
Quando ela se inclinou para beijá-lo, ele colocou suas mãos grandes em seus pulsos e os segurou delicadamente.
– Isso não ajudou lá em cima.
– Sim. Ajudou. Você apenas não acreditou em mim.
– Grier... – O nome dela soou com uma combinação de confusão e desespero: pois as cinco letras foram pronunciadas, ao invés das três habitualmente ouvidas.
– Eu não quero mais falar – ela murmurou, aproximando-se de sua boca.
– Tem certeza?
Quando ela assentiu, ele se inclinou e apertou os lábios contra os dela, puxando-a para mais perto dele.
Ele estava completamente excitado, mais que pronto para ela e, ainda assim, ele recuou.
Antes que ela pudesse protestar, ouviu o clique da fechadura dando a volta e, em seguida, aquelas mãos quentes deslizaram sob sua camisa e em volta de sua caixa torácica, indo até o fim de suas costas. Ao sentir uma pressão suave e gentil, seus pés saíram do chão e ela foi carregada até a mesa.
Afastando os dossiês para um lado, Isaac a deitou, as palmas de suas mãos se movimentavam sobre seus seios enquanto ele se inclinava sobre ela e mantinha suas bocas unidas. Suas calças de ioga estavam fora de suas pernas um momento depois, mas, ao invés de jogá-las, ele as colocou sobre a cadeira onde ela estava sentada. Esperto. Ela poderia ter que se vestir rapidamente.
Um impulso sutil e seus quadris estavam na beirada da mesa... e, em seguida, ele separou o beijo deles e aproximou-se sobre os joelhos.
Se ela achava que já tinha visto os olhos dele queimarem antes, aquilo era nada comparado ao que estavam fazendo agora. Um local de baixa temperatura nunca foi tão quente.
Quando ela se deu conta de onde ele estava se dirigindo, ela se sentou.
– Mas eu quero que seja bom para nós dois...
– Você disse que queria se lembrar de algo. – As mãos dele deslizaram até o topo de suas coxas e as apertaram. – Então, deite de costas e deixe-me fazer meu trabalho. – A língua dele reapareceu – e não é que aquilo a fez aderir ao plano dele?
– Vamos lá, agora – ele murmurou com aquele sotaque sulista. – Deite-se e deixe-me cuidar de você. Prometo ir devagar... bem devagar.
Suas mãos desceram até seus joelhos e abriram suas pernas... e ela se entregou a ele. Seguindo suas instruções ao pé da letra, ela sentiu a rígida mesa contra seus ombros, o ar fresco em suas coxas e um calor selvagem em seu sangue.
Quando ele a encarou através das sobrancelhas, Isaac olhou como se fosse consumi-la.
E ela estava pronta para ser sua refeição.
Abaixando a cabeça, ele foi direto até onde ela necessitava dele, colocando sua boca no sexo dela através da fina calcinha de seda que usava. Uma onda de calor delicioso floresceu e sua mão se esticou, agarrou as calças, as puxou e as colocou na boca para que fosse impedida de gritar.
Se isso já a fazia se sentir tão bem, ela ia fazer barulho: sim, a porta da adega era pesada e seu pai deveria estar dormindo, mas ela não queria correr nenhum risco.
Isaac gemeu contra ela ao se aninhar na seda e, então, ele passou a língua sobre a delicada faixa de tecido que a cobria. Com um palavrão, ela se arqueou de maneira rígida, as unhas arranharam a madeira embaixo dela enquanto as mãos dele mergulharam em suas coxas e os dentes dela mordiam o algodão. E, então, não havia mais nada os separando. Em um momento, sua boca estava sobre a seda, no próximo, ela sentiu um puxão em seus quadris e ouviu o som de algo se rasgando quando a calcinha cedeu...
Oh, Deus... sua língua molhada deslizou direto até seu cerne e se arrastou para cima, partindo-a, deslizando com lambidas seguidas.
Ele foi devagar.
Quando suas grandes mãos se fecharam em sua cintura e a firmaram para baixo, ele produziu um momento doce, a beijando e sugando, aquela língua dele funcionava como mágica que apenas podia ser substituída pela sucção quente e firme de seus lábios. Todo o tempo, ele olhava para ela, olhava seus seios enquanto ela se contorcia sob sua boca.
De repente, como se precisasse tocar aquilo que estava observando, as mãos dele subiram sob a camiseta dela em direção ao que parecia o fascinar. Abrindo o fecho frontal do sutiã, ele tomou posse de seus dois seios, os polegares esfregavam seus mamilos.
Sua respiração bombeava para dentro e para fora através de sua boca aberta e assim que ela estava prestes a chegar ao orgasmo, Isaac recuou e lambeu os lábios brilhantes.
– Venha para mim – disse ele. – Eu quero sentir isso.
E, em seguida, ele estava contra ela mais uma vez, sua língua a penetrava – o que foi o suficiente. A sensação foi liberada, minando para fora de seu sexo e tomando conta de cada centímetro de seu corpo. Quando o turbilhão de faíscas a consumiu, ela estava vagamente consciente de que ele gemia, como se sentisse aquele prazer em primeira mão.
Ele não parou por aí. Fluía em círculos, lambia, chupava... ele continuou abrindo ainda mais as pernas dela, segurando-a no lugar, marcando aquilo na memória dela assim como marcava em seu sexo. Ela nunca iria esquecer...
Um de seus longos dedos, ou talvez dois, penetrou dentro dela e a pressão e o alcance a enviou direto para o topo novamente. Quando outro orgasmo disparou, as mãos dela se fecharam em seu antebraço, suas unhas afundaram em sua carne enquanto sua coluna se contorcia e aquela explosão de prazer a inundava de dentro para fora.
E ele ainda não parou.
Ele era quente, selvagem e implacável.
Ele era o amante que ela nunca, jamais iria esquecer.
Muito menos superar – e isso era o que temia.
Oh, meu bom Jesus...
Isaac olhou por entre as pernas de Grier e quase chegou ao clímax apenas com aquela visão. Ela era uma mulher totalmente desfeita, os restos de sua calcinha branca em volta de seus quadris, sua camisa preta em volta do pescoço, o sutiã pendia para os lados. Seus seios estavam rígidos nas pontas rosadas, seu rosto estava corado e sua barriga se movia em um ritmo de surtos e abrandamentos conforme trabalhava contra ele.
Aquela calcinha na boca dele foi uma das coisas mais sensuais de tudo.
E o gosto dela era ainda mais quente do que isso.
Isaac poderia ficar ali por horas, mas a cada momento ele corria o risco de uma interrupção e ele queria terminar aquilo direito.
Subindo e pairando acima dela, inclinou os joelhos dela até o peito, com isso, seu membro se contorceu até ficar à beira do orgasmo com a visão do sexo dela reluzente todo inchado e aberto para ele. Não houve chances para que as calças fossem forçadas... ele as puxou para baixo o suficiente para que a ereção saltasse... da qual surgiu uma gota na ponta quando ele pensou sobre onde estava indo. Passando a mão sobre sua boca molhada, ele a colocou sobre a cabeça de seu membro, escorregando ainda mais o corpo antes de contorcer a coluna e unir as mãos ao órgão.
Empurrando, ele a observou ao fazer a conexão, olhando-a para acomodar seu membro e ouvindo o gemido dela ao ir mais fundo, atendendo seus desejos.
– Ah, caralh... – O cavalheiro nele engoliu o palavrão. Já o homem das cavernas que havia nele tinha que continuar falando. – Olhe para você... Quero deixar algo para trás... em você.
Ele atirou seus olhos nos dela e começou a se mover, bombando para dentro e para fora, dentro e fora... e, então, ele voltou a olhar para o local onde tinham se unido, o brilho naquilo fez suas bolas ficarem rígidas. Curvando-se para os seios, ele sugou um mamilo e trabalhou nisso com a língua... até que o ritmo abaixo tornasse impossível manter aquela ligação: ele estava falando sério sobre ir devagar, mas a boa intenção não durou muito. O sexo tinha uma dinâmica própria e não passou muito tempo até que a mesa começasse a gemer sob a força de seus golpes e ele teve que abraçar a cintura dela para mantê-la onde ele a queria.
Ao ficar rígida sob ele, Isaac também ficou, tencionando seus molares para não fazer barulho, suas pálpebras se fecharam com força embora quisesse ver o rosto dela ao dar mais uma dose de prazer.
Com seu corpo no dela e a preenchendo por completo... ele estava tão saciado quando um homem no deserto que tinha recebido um gole de água.
Ele não estava nem perto de acabar. Ela queria memórias? Entendido.
Mantendo-os juntos, ele puxou a calça para fora da boca dela, a ergueu e trouxe seus lábios até os dele, beijando-a profundamente enquanto carregava seu peso com facilidade para fora da mesa. Posicionando-a contra a porta lisa, ele agarrou a parte de trás de suas pernas e começou a se mover novamente. Com as mãos emaranhadas em seus cabelos, o calor abrasador e a sensação de urgência tomando conta mais uma vez, o beijo não poderia durar muito – e não durou muito mais que o selar dos lábios. Ele veio rígido dentro dela, promovendo um colapso enquanto seu próprio orgasmo escorria.
O alívio foi um luxo que ele não desfrutou, pois tinha plena consciência de seu peso sobre ela e do fato de que as costas dela estavam contra algo rígido e de que o pai dela estava em casa...
Havia tantas coisas entre eles.
Isaac a soltou lentamente até que seus pés tocassem o chão e, quando ele saiu dela, não gostou do ar frio em seu pênis. O sexo dela era muito melhor... muito, muito melhor.
Quando ele a beijou, a maneira como seus lábios se moviam sobre os dele lhe dizia que em um mundo diferente, em circunstâncias diferentes... este seria, com certeza, um começo para eles – apesar de tudo o que os separava como família, dinheiro e escolaridade.
Mas aquela não era a realidade deles, era?
– Deixe-me arranjar algo para limpar isso – ele disse calmamente enquanto puxava as calças de volta no lugar.
Depois de beijá-la mais uma vez, ele saiu pela porta e quando a fechou lá dentro ele parou e baixou a cabeça.
Ele mentiu para ela.
Suas chances não estavam nem perto de cinquenta por cento: Matthias iria pegá-lo com toda e absoluta certeza. A questão era apenas quanto tempo ele levaria para conversar com os ouvidos certos antes que seu velho chefe surgisse das sombras e o reclamasse. Algo que sempre foi verdade sobre o líder das operações extraoficiais: Matthias nunca desistia. Nunca. E mesmo que o mundo estivesse desmoronando em torno dele, continuaria a buscar sua vingança. De alguma forma, de alguma maneira.
Contudo, isso não ia impedir Isaac de continuar tentando com todas as suas armas.
Muito melhor morrer tentando fazer a coisa certa... e deixar sua mulher pensando algo menos ruim sobre ele.
Muito melhor.
CAPÍTULO 35
Quando o sol da manhã despertou de seu sono nublado e uma auréola de raios foi derramada sobre Caldwell, Nova York, dois garotos, com idades entre doze e nove anos, foram andando para a escola.
E nenhum dos dois estava impressionado com todo o “esplendor primaveril”.
Seja lá o que isso significasse.
A mãe deles repetia sempre algo sobre esplendor primaveril, esplendor primaveril... bah! O que interessava a Joey Mason era a educação física: geralmente ele tinha educação física às segundas feiras, mas hoje haveria uma assembleia especial. Então, não importava o quanto de “esplendor primaveril” houvesse lá fora, ele ainda estava a caminho de um dia na escola com nada de interessante para fazer.
Por outro lado, seu irmão mais novo, Tony, gostava mais de assembleias do que de educação física, então, ele estava empolgado. Mas ele era um nerd que dormia com livros, que outra coisa poderia interessá-lo?
A caminhada de casa para a escola era de uns oito quarteirões e não era nada demais... apenas descer a Rua São Francisco, passando pela igreja e alguns outros pontos. Eles deveriam ficar do lado direito, pois havia um posto de gasolina à esquerda por onde passavam muitos carros. E eles deveriam parar em cada esquina. O que Joey fazia – geralmente enquanto segurava o colarinho de Tony para impedi-lo de atingir um carro em cheio.
Tony sempre andava com um livro aberto. Também comia lendo, ia ao banheiro lendo e se vestia lendo.
Estúpido. Simplesmente estúpido, pois se perde muito quando não se olha em volta.
Como aquele carro legal que estava no caminho. As janelas eram pretas e a pintura também, e havia um número na placa: 010. Era só isso, sem letras. Joey olhou para seu irmão mais novo e percebeu que, com certeza, ele não tinha notado aquilo.
Perdeu mais uma.
A coisa parecia ser da polícia.
Quando chegaram até o carro, pegou o colarinho de seu irmão e o puxou para perto. Tony não questionou a parada – apenas virou outra página. Provavelmente ele pensou que estavam em outra esquina.
Joey se inclinou um pouco para ver o interior, preparando-se para ver alguma coisa relacionada a um uniforme sair e gritar com eles por serem intrometidos. Quando não viu nada e quando nada aconteceu, ele posicionou as mãos em formato de concha e as colocou contra o vidro frio...
Pulou para trás.
– Acho que tem alguém lá dentro.
– Não tem – Tony disse sem levantar a cabeça.
– Tem sim.
– Não tem.
– Tem sim. E como você pode saber que não tem?
– Não tem.
Certo, Tony não sabia do que estava falando e aquela discussão poderia durar para sempre. E, então, ele e seu irmão caçula se atrasariam para as aulas e ficariam de castigo. De novo.
Mas...
Seria tão legal se eles encontrassem um cadáver – bem em frente à funerária!
Jogando a mochila, Joey distanciou seu irmão do carro, levantando-o e redirecionando seus pés.
– Isso é perigoso. Eu não quero que você se machuque.
Isso finalmente fez com que Tony levantasse os olhos do livro.
– Tem mesmo alguém aí dentro?
– Para trás.
Era o tipo de coisa que seu pai teria dito e Joey se sentiu um homem com relação a isso – especialmente quando Tony assentiu e segurou seu livro contra o peito. Mas era assim que deveria ser. Joey faria treze anos em breve e ele era responsável quando não havia ninguém por perto. E, às vezes, mesmo quando havia outras pessoas no local.
Voltando a colocar as mãos em forma de concha, ele reassumiu sua posição contra o vidro e tentou ver através da escuridão...
– É um pirata.
– Você está mentindo.
– Não, não estou...
Um carro passou devagar em frente deles e uma senhora abriu a janela – era a Sra. Alonzo do outro lado da rua.
– O que vocês estão aprontando, meninos?
Como se tudo o que eles fizessem fosse esse tipo de coisa.
Parte de Joey queria que ela continuasse seu caminho e deixasse que ele resolvesse a situação. Mas a outra parte queria se mostrar.
– Tem um cara morto aqui.
Sentiu-se muito importante, pois ela ficou pálida e parecia nervosa. Cara, se ele soubesse que tudo isso iria acontecer, ele teria saído mais rápido de casa. Aquilo era muito melhor que educação física.
A não ser pelo fato de que Tony teve que se intrometer.
– É um pirata!
De repente, a Sra. Alonzo não parecia tão assustada.
– Um pirata.
Seu irmão era um idiota – e Joey não estava interessado em perder a atenção da plateia. Piratas eram coisas de criança. Um morto no carro? Isso era coisa de adulto e era isso o que ele queria ser.
– Veja por si mesma – ele disse.
A Sra. Alonzo estacionou em frente ao carro completamente preto e saiu, seus saltos altos faziam um som de galope de pônei na rua.
– Certo, já chega, garotos. Entrem e vou levá-los até a escola. Vocês vão se atrasar. – Ela estendeu seu telefone para Joey. – Ligue para sua mãe e diga que estou levando vocês. De novo.
Isso acontecia muito. A Sra. Alonzo era uma executiva cujo escritório ficava não muito longe da escola, eles se atrasavam muitas vezes e ela os levava. Mas essa manhã era diferente.
Ele cruzou os braços sobre o peito.
– Precisa olhar pela janela.
– Joey...
– Por favor. – Outra coisa adulta: por favor e obrigado.
– Tudo bem. Mas entrem no meu carro.
A Sra. Alonzo marchou em direção ao carro enquanto resmungava alguma coisa sobre ficar prestando serviço de táxi. E Tony, que sempre seguia as regras, levou seu livro até o assento da frente da SUV – só que ele ainda estava interessado no que estava acontecendo, pois ele não fechou a porta e o seu exemplar do livro Diário de um Banana: Dias de Cachorro permaneceu contra seu peito.
Joey ficou onde estava.
Normalmente, ele teria se chateado com Tony por pegar o melhor lugar no carro: irmão mais velho andava na frente; bebês menores ficavam atrás. Mas havia coisas mais importantes que isso agora, então, ele ficou onde estava na calçada, o telefone sem utilidade em sua mão.
Ele estava pensando no que tinha visto...
A Sra. Alonzo deu um salto tão grande que quase acabou no meio do trânsito, uma minivan buzinou para ela quando se desviou por pouco de seu corpo.
Ela correu e pegou o telefone, assim como o braço do garoto.
– Entre no carro, Joey.
– O que é isso? Um cara morto? – Meu Deus, e se fosse um pirata? Caramba!
A Sra. Alonzo colocou o telefone no ouvido enquanto o arrastava para o carro.
– Sim, é uma emergência. Há um homem em um caro em frente à casa funerária McCready na Rua São Francisco. Não sei se há algo de errado com ele, mas ele está atrás do volante e parece não se mexer... Estou com uma criancinha comigo e não quero abrir a porta... certo...
Criancinha. Deus, ele odiava aquela coisa de criancinha. Além disso, foi ele quem encontrou o cara. Quantos adultos passaram por ali a pé para ir ao trabalho e não o viram? Ou de bicicleta? Ou correndo?
O cara morto era dele.
– Meu nome é Margarita Alonzo. Sim, ficarei aqui até os paramédicos e a polícia chegarem.
Certo. Esta era, oficialmente, a melhor manhã da história de sua vida, Joey pensou enquanto pulava no banco de trás – o qual tinha a melhor visão ao se virar para ver lá fora.
Quando a Sra. Alonzo entrou e trancou as portas, ele imaginou os três ali até a meia noite, uma da manhã. Talvez precisassem de um McLanche Feliz para o almoço. Ele tinha a grande esperança de que a polícia não corresse...
A chatice de todas as chatices o atingiu quando ele ouviu a senhora Alonzo dizer: – Sara? Estou com seus meninos e eles estão bem. Mas há um pequeno problema e preciso que venha buscá-los.
Joey abaixou a cabeça no braço.
Sabendo da sorte que tinha, sua mãe correria até à cena e chegaria lá antes que ele descobrisse algo sobre o pirata morto no banco da frente daquele carro.
Arruinado. Simplesmente arruinado.
E, provavelmente, eles chegariam à escola a tempo de assistir a assembleia.
Quando Matthias dormiu atrás do volante de seu carro, ele sonhou com a noite em que Jim Heron salvou-lhe a vida várias e várias vezes. Os acontecimentos que o levaram até a bomba e a dolorosa caminhada para recuperar uma saúde relativa foram passados e repassados em sua mente, como se a agulha da sua velha vitrola mental estivesse presa em algum obstáculo no disco.
Matthias tinha atraído Jim Heron àquela cabana abandonada e empoeirada como testemunha, pois não havia mais ninguém nas operações extraoficiais cuja palavra houvesse mais peso e credibilidade. A ideia era que o soldado deixasse seu corpo na areia e fosse para a casa contar aos outros que tinha acontecido um terrível acidente: se alguém apresentasse um relatório como esse, a conclusão seria de que havia ocorrido um abate completo.
Contudo, não é o caso de Jim – ele era um atirador correto em um mundo cheio de curvas e nunca teve problemas em fazer o que tinha que ser feito, certo ou errado.
Prova de que havia um pouco de bondade em Matthias, afinal – pelo menos, ele não ia jogar a culpa de seu suicídio na cabeça de outro cara.
E sim, claro que ele poderia explodir a própria cabeça em um banheiro qualquer, mas mesmo sendo um suicida, ele tinha seu orgulho. Autoinjetar-se uma dose de chumbo seria fraqueza demais – muito melhor espalhar a porcaria gosmenta em algumas paredes de pedra e ser lamentado como o forte lutador que sempre tinha sido.
Contudo, o orgulho teve seu preço: ao invés de deixá-lo na areia, o idiota Heron o salvou – e descobriu seu segredinho. O explosivo foi a dica que faltava. Enquanto Matthias permanecia deitado e sangrava como um porco, Jim encontrou os restos da bomba e reconheceu o que eram. Ou seja, era um dos seus dispositivos.
O filho da mãe pegou os fragmentos, os colocou no bolso e tirou o cinto. Em seguida, fez um torniquete na perna de Matthias, o levantou e começou a puxá-lo. Ele ficou muito chateado e era evidente que as atitudes de seu salvador eram parte punição, parte recompensa – e completamente desgastante. O bastardo andou, andou e andou... até que, alguns momentos depois, Isaac Rothe apareceu dentre as dunas com uma Land Rover.
As exigências de Jim vieram semanas depois, em um hospital na Alemanha. Naquele ponto, a cabeça de Matthias não era nada além de um imenso balão de ar quente de agonia e ele estava tendo que se acostumar com apenas um olho funcionando. Heron se sentou à beira do leito e estabeleceu seus termos: fora. Livre e limpo. Ou pegava o que tinha restado da bomba e contaria a história para a única pessoa que poderia fazer algo sobre isso.
Olá, senhor presidente.
Ironia das ironias, se tivesse sido qualquer outro soldado, qualquer outro ser humano com um coração batendo e um dedo no gatilho, Matthias não teria se preocupado com a ameaça. Mas, Jim Heron – o bom e velho Zacarias – era uma daquelas malditas pessoas em quem as pessoas acreditavam. Fragmentos de bombas poderiam ser fabricados; e a credibilidade de um homem digno? Muito menos discutível.
E ele não poderia continuar sendo chefe se as pessoas achassem que não tinha mais coragem para o trabalho.
Naquele momento, Matthias sentiu como se não houvesse outra escolha e disse ao homem para que seguisse seu caminho.
Depois, a questão suicida veio à tona e ele teve que considerá-la seriamente. Mas, em seguida, seu segundo homem na linha de comando apareceu na hora certa – tinha certeza de que o cara sabia para onde estava indo.
Um homem muito persuasivo aquele. E quando se deu conta, Jim tinha salvado seu corpo, mas aquele segundo homem na linha de comando o trouxe, de alguma maneira, de volta à vida.
Apesar de a renovação ter tido consequências: quase imediatamente, Matthias abriu os olhos – ou um olho, melhor dizendo – para o erro de deixar Heron sair: aquele soldado estava solto pelo mundo com informações demais e a exposição não era aceitável.
O segundo na linha de comando concordou com isso e estava prestes a colocar as rodas de um carro em movimento para provocar um “acidente” quando Jim ligou procurando por informações sobre Marie-Terese Boudreau. Perfeito. Bem a tempo. O plano era que Jim entregasse Isaac em troca da informação que precisava – e, em seguida, seria o assassinato de Jim.
Só que alguém pegou Heron primeiro.
Morto. Jim estava morto. Matthias viu seu corpo com os próprios olhos. E, ainda assim... de alguma maneira ele sentia como se tivesse falado com o cara. Sim, ele sonhou que tinha conversado com Jim Heron...
Matthias acordou com a arma na mão, o gatilho armado e apontando para um homem de uniforme azul marinho – que tinha, dado a barra de ferro em sua mão, acabado de destrancar o carro e abrir a porta.
O paramédico congelou e colocou as mãos para cima.
– Eu só quero te ajudar, cara.
Provavelmente era verdade. Mas para o inferno, o parceiro do cara sem dúvida estava ligando para a polícia agora e, observação, fazer qualquer tipo de contato direto com um civil não era um benefício, segundo a cartilha de Matthias.
Ele baixou a arma.
– Sou um agente federal. – Ele colocou a mão no casaco e decidiu mostrar suas credenciais do FBI; que eram legítimas até certo ponto.
O paramédico se inclinou e olhou a fotografia, um nome qualquer no laminado e um brasão bem verdadeiro.
– Ah... desculpe, senhor. Recebemos um telefonema...
– Está tudo bem. É que passei três dias puxados na fronteira canadense e estou a caminho de Manhattan. Desci a estrada ao norte procurando algo para comer às quatro da manhã, mas não havia nada aberto e eu precisava dormir um pouco. Sabe como é.
– Ah, entendo muito bem.
Conversa fiada, conversa fiada, conversa fiada... blablablá...
Quando a polícia apareceu, eles colocaram seu número de identidade no sistema e, como num passe de mágica, tudo bateu. E sua história sobre estar em uma missão secreta e ter que parar um pouco por causa da exaustão foi engolida como um jantar de Ação de Graças: ele passou de criminoso à celebridade.
Gente estúpida.
Depois que os despistou, afastou-se e pegou o telefone. Havia uma série de mensagens de voz... e um alerta.
Bem, como pode imaginar... parece que Isaac Rothe tinha se entregado e sua localização era a casa de sua adorável e talentosa advogada. Que coisa mais perfeita: embora pudessem pegá-lo em pé na cozinha de Grier Childe se fosse preciso, aquilo faria das coisas muito menos complicadas.
Matthias ligou para seu segundo homem na linha de comando e quando o telefone soou ele pensou em quantas vezes tinha tido aquela conversa: vá. Pegue o bastardo. Acabe com ele. Dê um jeito no corpo.
Ele tinha feito isso tantas vezes.
Quando a dor do lado esquerdo do peito disparou novamente, ele ignorou a sensação...
– Sim? – o segundo na linha de comando respondeu.
– Isaac Rothe está pronto para você.
Não houve sequer uma pausa.
– O endereço é o de Beacon Hill?
– Sim. Vá até lá e pegue-o.
– Estou fora do estado.
– Bem, entre no estado. O mais rápido possível.
– Entendido. Onde você o quer?
Boa pergunta. Isaac não era conhecido por grandes fugas, sua reputação era de um assassino rápido e limpo que o fazia em circunstâncias extraordinárias. Mas você não conseguiria executar tarefas como as dele se não fosse muito imaginativo.
– Mantenha-o naquela casa para mim – Matthias disse de repente.
Quando levou em conta a situação, o instinto lhe disse que uma mudança na estratégia era apropriada. Afinal, seria útil puxar as rédeas de Grier Childe e seu pai – e nada chamava mais a atenção de um civil do que assistir a alguém sendo assassinado. O bom e velho Albie era uma prova disso...
Por alguma razão, a voz de Jim Heron estalou no cérebro de Matthias. Não havia palavras específicas, apenas um tom que se demorava, um tom grave, que implorava para que Matthias parasse com tudo e... fazer o que exatamente?
– Alô? – o homem do outro lado da linha perguntou, uma vez que o cara disse algo que não havia sido respondido ou que havia recebido nada além de silêncio por um tempo.
– Eu não quero que você o mate – Matthias se ouviu dizendo.
– Ah, entendo. Você quer fazer isso por si mesmo. – Satisfação. Tal satisfação era o objetivo do plano em todo o tempo.
Sem qualquer razão especial, o processador central do cérebro de Matthias começou a faiscar e sair fumaça, imagens voavam dentro e fora de sua mente em uma confusão louca que o fez pensar na rolagem de dados em uma mesa de feltro. E, então, em meio ao caos, ele viu Alistair Childe sendo segurado em um tapete sujo por dois agentes de preto enquanto era injetada em seu filho heroína suficiente para levar um elefante a ter uma overdose.
Danny... oh, Danny, meu garoto... Parecia uma música que poderia tocar em um bar irlandês, mas não soava nada musical uma vez que o pai gritava as palavras com voz rouca.
– Chefe – o segundo na linha de comando interrompeu. – Fale comigo. O que está acontecendo?
A voz era muito sonora, mas era um falso pragmatismo. Era evidente que o soldado estava preocupado de que as rodas estivessem saindo da estrada de novo – assim como tinha acontecido há dois anos, ele teria que arrastar Matthias para calçar suas botas de combate mais uma vez.
– Não o mate – Matthias ouviu-se repetir. – É uma ordem.
– Eu sei, assim você pode fazer isso. Ele é seu. Você tem que pegá-lo.
Por um momento, Matthias sentiu uma atração inevitável, tentadora...
– Não – ele exclamou, sacudindo-se. – Não, eu não tenho.
– Sim, você deve...
– Apenas siga a maldita ordem sem mais comentários ou encontro outra pessoa que o faça.
Com um palavrão, ele desligou, enviou um sinal de volta para Isaac e, em seguida, tentou encontrar um local sólido para se sustentar dentro de si mesmo. Droga, de repente, ele sentia como se houvesse duas vozes diferentes em sua cabeça e elas não apenas o direcionavam para caminhos opostos, o puxavam de fato.
Felizmente, o retorno da transmissão feita a Rothe interrompeu sua luta.
– Matthias – ele ouviu aquela velha voz familiar.
– Isaac. Como vai?
– Onde? Quando?
– Sempre indo direto ao ponto. – Matthias empurrou a parte inferior do volante para manter o sedã na estrada, enquanto massageava a dor que havia do lado esquerdo de seu peitoral.
– Estou mandando alguém até você. Então, fique onde está.
– Inaceitável. Não posso ser pego aqui.
– Ditando as regras? Eu acho que não.
– Grier Childe não vai ser envolvida nisso. Vou me entregar à meia-noite, amanhã, em um local público.
– E agora você quer me dizer quando? Vá se ferrar, Rothe. Se quiser que ela fique fora disso, fará o que vou lhe dizer. Ou você acha que não posso passar por esse sistema de segurança de luxo a qualquer hora da noite que eu quiser? – Silêncio. – Surpreso por eu saber sobre a maldita coisa? Bem, há outros truques nessa casa, Isaac. Fico me perguntando de quantos deles você tem conhecimento.
Vê, aquilo era bom. O movimento do jogo de poder limpava um pouco aquela porcaria distorcida, nebulosa e evasiva – e isso o lembrava da razão por trás da morte de Daniel Childe: a grande boca aberta do bom e velho Albie.
Um tiro de adrenalina o despertou ainda mais enquanto ele se perguntava exatamente que tipos de planos Isaac e o capitão aposentado poderiam ter tido enquanto ele estava desmaiado na estrada.
Ele limpou a garganta.
– Sim, fique onde está... e em caso de ter tramado alguma brilhante ideia com o pai dela, deixe-me esclarecer as coisas. Se você fizer qualquer coisa para expor a mim ou à organização, vou fazer coisas àquela mulher das quais ela vai sobreviver, mas nunca se curar. E saiba: meu alcance se estende além da sepultura. – Mais silêncio. – Você conheceu o pai dela... não negue isso. E tenho plena ciência de que ele vem coletando informações sobre as operações extraoficiais há décadas. Sem ideias brilhantes, Isaac. Pelo bem dela. Ou vou ignorá-lo e ir atrás dela. Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora...
– Ela não faz parte disso! – Rothe disse entre dentes. – Ela não tem nada a ver comigo ou com o maldito pai!
– Talvez. Mas acidentes acontecem. E eu atribuí seu caso a ela por um bom motivo, que acabou ficando melhor do que eu pensava. Eu nunca esperava que vocês dois ficassem tão pessoalmente envolvidos, ou você acha que eu não ouvi os dois subirem até aquele quarto de hóspedes dela ontem à noite? – Matthias lutou contra a dor em seu peito, sentia como se estivesse se afogando. – Não me faça machucá-la, Isaac. Estou ficando cansado de tudo isso, estou mesmo. Fique onde está. Estou enviando uma pessoa e você saberá quando chegar lá. E se você ou o pai dela não estiverem lá quando ele chegar, vou fazer com que procure por ela, não por você. Você segue as instruções e vou me certificar de que ninguém além de você se machuque.
Matthias apertou o botão end para finalizar a ligação e jogou o celular no banco do passageiro.
Estremecendo, ele lutou para manter o carro em linha reta enquanto a agonia por trás de sua caixa torácica aumentava para níveis incontroláveis. Com o ataque, ele pensou brevemente sobre dirigir até o Aeroporto Internacional de Caldwell, mas decidiu que precisava se recuperar e isso ia levar tempo. E privacidade.
Apertando o peito esquerdo, ele parou e tentou respirar em meio à dor. O que realmente não ajudou muito... ao ponto de se perguntar se era isso. O derradeiro. Assim como aquele que matou seu pai.
Olhando para fora do para-brisa dianteiro, ele percebeu que estava na frente de uma igreja.
Sem nenhuma razão aparente, ele desligou o motor, pegou sua bengala e saiu. Ele não pensava em nada nem sequer remotamente relacionado a Deus há anos e estar mancando em direção àquelas enormes portas duplas o fazia se sentir... errado de muitas maneiras. Especialmente levando em conta tudo o que estava esperando por ele em Boston. Mas seu segundo homem na linha de comando precisava de tempo para arranjar as coisas e Matthias... precisava desse ataque cardíaco seja para se organizar e chutar o balde ou para calar a maldita boca.
Lá dentro estava quente e cheirava a incenso e cera com aroma de limão. O lugar era enorme, com centenas e centenas de bancos que se espalhavam em três direções desde o altar.
Matthias não fez todo o caminho. Ele entrou em colapso em um banco mais ou menos na metade do corredor lateral, caiu por completo no banco de madeira.
Movendo sua bengala entre os joelhos, olhou para o crucifixo... e começou a chorar.
CAPÍTULO 36
Depois de terminar a comunicação com Matthias, Isaac guardou o transmissor de alerta em seu blusão. O que ele queria fazer era colocá-lo sobre o balcão de granito e esmagá-lo com seu punho. Em seguida, talvez, jogar os pedaços no fogo.
Apoiando as mãos sobre a pia da cozinha, ele se inclinou sobre os ombros e encarou o jardim. Quase oito horas da manhã e o local estava um poço de escuridão, pois as casas da vizinhança tinham sido construídas muito perto umas das outras. Não fazia ideia se os colegas de Jim estavam lá de volta. Nenhuma palavra sobre Jim.
Mas Isaac tinha outros problemas agora.
Droga. Levando tudo em consideração, o fato de Matthias suspeitar do que iria acontecer não era uma novidade. Mas aquilo o deixou tenso. Se ele fosse embora agora, ele corria o risco de Grier e seu pai serem massacrados. Se ele ficasse... provavelmente eles seriam obrigados a assistir a morte dele.
Filho da mãe!
– Eles entraram em contato com você?
Ele olhou sobre o ombro. Grier tinha acabado de sair do chuveiro, seus cabelos soltos secavam naturalmente.
– Isaac – o rosto dela ficou tenso. – Eles responderam?
– Não – ele disse. – Ainda não.
Para tornar a mentira mais convincente, ele puxou o transmissor e o balançou, apostando no fato de que ela não iria notar que a luz estava desligada.
– Essa coisa está funcionando?
– Sim. – Ele o guardou quando ela se aproximou. – Como está seu pai?
– No telefone do banheiro de novo. – Ela encarou o relógio. – Deus, pensei que essa noite nunca ia acabar.
– Eu só queria que Jim aparecesse – ele disse enquanto ela começava a fazer o café na pia.
– Você acha... que ele está mesmo morto?
Naquele momento... talvez.
– Não.
Sentando-se em um dos bancos, ele a observou estalar a abertura de uma lata de café e colocar o filtro no topo da máquina. Quando ela terminou a tarefa, a luz do sol em seu rosto o fez querer chorar, ela era tão bonita.
De alguma maneira, ele não podia acreditar que estava com ela – e não no sentido de que não era digno disso. Dã, isso era evidente. Mas ponderando tudo, o sexo quente e intenso parecia um sonho. Ela estava tão limpa, cheirando a xampu ao invés de suor, o cabelo liso, o rosto já não mais corado.
Ela tirava seu fôlego. Para Isaac, ela era uma prova definitiva que a vida valia o sacrifício que requeria das pessoas: apenas olhar para ela e estar no mesmo ambiente, ter as memórias que ele deu não só a ela, mas que ficaram dentro dele...
A ideia de que alguma coisa a machucasse um dia era simplesmente insuportável. E se ele fosse a causa disso?
Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora.
Não era uma ameaça. Não vindo de um cara como Matthias, que não estabelecia qualquer distinção para o sexo feminino. E ele a machucaria de maneira que aqueles momentos especiais que Isaac havia passado com ela na adega fossem impossíveis de serem vivenciados novamente.
Por mais que lhe doesse, ele tinha que ser realista: quando ele partisse, ela encontraria outro amor. Talvez alguém com quem se case e tenha filhos e com quem possa passar a velhice. E não haveria nada disso para ela a menos que ele ficasse ali, esperando... e rezando para que quando o agente de Matthias aparecesse, ele fosse capaz de matar o filho da mãe e, em seguida, desaparecer rapidamente.
Afinal, ele era um maldito de um assassino. Era o que ele fazia para viver.
Uma coisa era clara: não ia mais prosseguir com a divulgação de informações. De jeito nenhum. A vida de Grier valia mais que o respeito que ela tinha por ele e, depois que a poeira assentasse, qualquer coisa que tivesse sido acionada pelo pai dela poderia ser desfeita tão rápido quanto uma ligação telefônica – assim, eles pensariam que o plano ainda estava de pé até descobrirem que Isaac tinha sumido.
E quanto ao resto de sua vida? Ele ia se entregar a Matthias e prestar suas contas, mas seria em seus termos. O pai de Grier faria algo com aqueles dossiês e Jim Heron, ou qualquer um de seus colegas, era o tipo de cara que poderia guardar uma narração gravada, em primeira pessoa, de cada assassinato que Isaac já cometeu – isso proporcionaria a Grier e a seu pai uma morte de causas naturais.
Afinal, ele tinha a impressão de que confissões feitas à beira da morte eram admissíveis no tribunal, então, uma vez que Isaac confessasse que Matthias iria matá-lo em breve, isso teria muita influência, não teria? – pelo menos seria o suficiente para que abrissem uma grande investigação.
Seu depoimento seria o seguro de vida dela e de seu pai.
Do outro lado, Grier apertou o botão ligar do aparelho e quando a máquina começou a sibilar ela ficou onde estava, olhando para a coisa.
Compelido por algo que ela não questionou, Isaac ficou em pé e se colocou atrás dela, colocando seu peito contra suas costas. A respiração de Grier ficou tensa ao sentir o corpo dele e, embora tivesse se enrijecido, ela não se moveu.
Ele estendeu as mãos e tocou as ondas loiras que caiam sobre seus ombros, correndo os dedos sobre ele. Em seguida, ele deslizou as mechas lentamente para a lateral, expondo a nuca.
Deus, ele já tinha se decidido, não tinha?
Tinha escolhido seu caminho.
– Posso beijá-la? – ele disse com voz rouca. Pois era mais cavalheiro perguntar antes.
A cabeça dela pendeu.
– Por favor.
Ele foi até o pescoço encantador, pressionando seus lábios contra a pele dela. Aquilo não era o suficiente, mas ele não confiava em si mesmo para ir mais além ou sequer para colocar suas mãos na cintura dela – se ele o fizesse, não ia parar até que ela estivesse sob ele e, por sua vez, ele estivesse dentro dela mais uma vez.
– Grier – ele sussurrou com voz rouca.
– Sim...
– Preciso dizer uma coisa.
– O que?
Algumas vezes as emoções eram uma locomotiva para as palavras: uma vez que se há uma revelação para fazer, não há freios suficientemente fortes para mantê-la nos trilhos de sua garganta.
– Eu te amo – ele pronunciou mais com ar do que com sílabas.
Contudo, ela ouviu. Deus, ela ouviu, pois inalou com um silvo.
Grier se virou tão rápido que se formou uma curva em seus cabelos e mesmo com o coração batendo forte, Isaac não desviou o olhar.
Quando ela abriu a boca, ele colocou seu dedo sobre os lábios dela e balançou a cabeça.
– Eu só precisava que você soubesse. Uma vez. Eu só precisava dizer... uma vez. Eu sei que não a conheço há tempo suficiente ou bem o suficiente e tenho plena consciência de que não sou o homem certo para você, mas algumas coisas precisam ser ditas.
O que não precisava ser transmitido era o terror dentro de sua pele.
Por mais que ele quisesse fazer a coisa certa, seu antigo patrão o pegou pelos cabelos: não havia sacrifício grande demais para garantir a segurança de Grier. Até mesmo a salvação de Isaac não era demais. Nem mesmo a queda de Matthias.
Uma garganta pigarreando discretamente fez com que Isaac olhasse para cima. Através do vidro sobre a pia, ele viu o pai de Grier em pé na cozinha – e por respeito à filha do homem, ele recuou.
– Café, pai? – Grier disse com uma voz estável ao se inclinar para o lado e pegar duas canecas no armário.
– Sim, obrigado.
Isaac podia sentir os olhos do cara oscilando entre um e outro, mas ele tinha certeza de que não queria responder qualquer pergunta.
E era evidente que Grier também não.
– Vamos sentar? – ela perguntou.
Ao invés de responder, o homem clareou a garganta mais uma vez. Sem dúvida por estar chocado com a situação do dia anterior, quando disseram para que ficasse longe, e o sentimento de “não toque na minha filha”.
Mas ele não precisava se preocupar. Ele chegou tarde demais para a última alegação, mas a sensação que a primeira causava... dariam um jeito nela.
– Pai? Vamos sentar?
– Todos vão chegar amanhã de manhã...
– Amanhã de manhã?
– É uma situação delicada. É preciso dar desculpas adequadas – esses homens e mulheres não podem sair sem um bom motivo, sem que questionamentos sejam feitos.
Isaac podia sentir Grier olhando para ele, buscando um apoio para dizer um “não” veemente, mas era isso, ele discordava dela. Amanhã era perfeito.
Ele já teria partido até lá.
No hotel, Jim acordou em seu quarto pouco iluminado e sentiu como se tivesse sido vítima de um acidente de carro. Com um caminhão. E ele estava sem cinto de segurança.
Ele estava na cama, dormindo encolhido de lado, seu corpo pesado tinha esculpido uma parte do colchão e estava posicionado como um cão à espera da morte em uma floresta. Mas ele era imortal agora... e aquilo parecia significar que não importava o dano que fosse feito nele, ele seria curado.
Sim, só que aquilo não parecia o tipo de trabalho que requeria apenas um movimento de nariz da Feiticeira, onde tudo era resolvido em um passe de mágica. Ele se sentia muito humano com as dores e feridas, a respiração que fazia suas costelas queimarem, com os saltos de seu coração que mais pareciam o andar de um bêbado. Mas a pior parte disso não era física. Estava em sua mente.
A parte em que havia deixado Sissy para trás, no reino de Devina, o matava.
Abrindo os olhos, percebeu que era manhã; sobre o topo da cabeça encrespada do Cachorro, o alarme brilhava com números vermelhos. 7h52.
Hora de levantar, ele pensou ao se virar de costas com cuidado. Do outro lado, Adrian estava apagado como uma lâmpada, o anjo tinha uma respiração pesada, seus olhos se movimentavam por trás das pálpebras fechadas.
Dado o brilho em seu rosto, era evidente que ele não estava tendo bons momentos na terra dos sonhos.
Deus, que noite, Jim pensou. Depois que Colin o deixou ali ele achou que seria apenas ele e o Cachorro. Mas, então, alguém veio do outro quarto e ele poderia concluir que seria Eddie – a coisa toda de cuidados e enfermagem era mais a praia dele.
Mas não. Adrian foi quem entrou... e permaneceu ali.
No momento, Jim não teve forças para lidar com qualquer simpatia que pudesse sentir pelo cara, então, ele envolveu com cuidado um cobertor em volta de si e calmamente se colocou em pé com as pernas tão fortes quando dois lápis. Mancando até o laptop, ele estava muito tonto, e chegou à cadeira bem a tempo – contudo, mas que droga, seu traseiro doía demais.
Apesar do fato de precisar urinar como um cavalo de corrida, ele ligou o computador e esperou impaciente para que o navegador da Internet fosse iniciado. Para passar o tempo, ele deu uma olhada nas marcas deixadas por aquilo que prendia seus pulsos. Os dois tinham linhas tortuosas de um vermelho brilhante em volta, que reluziam e estavam em carne viva, o lembrete tangível de onde ele tinha estado e o que tinham feito com ele seduziu sua mente a fazer uma viagem ao campo do stress pós-traumático. Só que foi um deslize que ele se recusou a permitir.
Voltando a prestar atenção no que estava fazendo, ele começou a digitar. Contudo, uma vez que seus dedos estavam dormentes, levou uma eternidade para chegar ao site do jornal de Caldwell e pesquisar por Cecilia Barten...
Apareceu um artigo de cerca de duas semanas atrás e a imagem de Sissy trouxe um brilho aos seus olhos. Ela estava sorrindo para a câmera em pé no meio de vários jovens da idade dela. Não dizia quanto tempo havia se passado entre o momento em que a foto foi tirada e quando foi levada por Devina – mas o fato de que ela não tinha ideia do que a esperava ao virar a esquina fez com que seu coração desconfiado ficasse ainda mais focado no trabalho.
Provavelmente era melhor que não soubesse de nada.
E ele ia fazer com que Devina pagasse por isso.
O único artigo que havia além desse relatava que ela tinha desaparecido há uma semana e os dois juntos o fizeram perceber o porquê sua primeira pesquisa de dados havia falhado. Ele pediu que o computador procurasse por assassinatos ou garotas loiras mortas. Nada relacionado a desaparecimento.
Que erro idiota.
E os detalhes eram os que Sissy tinha dito: ela era caloura na Faculdade de Albany e estava passando as férias de primavera em Caldwell. A última vez em que a viram foi quando ela saiu do mercado local por volta das nove horas.
Nenhuma foto de seus pais. Contudo, ele iria encontrá-los.
– Você a viu? – Adrian disse com uma voz um tanto áspera.
– Sim. – Jim encarou a foto de sua garota sorrindo com seus amigos. Então, ele piscou e viu seus cabelos loiros emaranhados com sangue. – Como a tiro daquela parede?
A respiração do outro anjo era do tipo que se produzia quando não se tinha uma boa notícia para dar. De jeito nenhum. E você fica dolorido com isso.
– Você não pode.
– Inaceitável. Tem que haver um jeito.
– Não que eu saiba. – Houve um palavrão e, então, um estalo no colchão e uma variedade de estalos como se Ad estivesse se espreguiçando.
– Volto já.
Quando os passos pesados se dirigiram para o outro quarto, Jim não se deu conta da saída do cara. Mas quando o focinho do Cachorro cutucou sua perna nua, ele olhou para baixo.
Os grandes olhos castanhos olhavam de um rosto de pelo que parecia palha.
– Você sabe como tirá-la de lá? Ela não pertence àquele lugar. Ela não deveria ter terminado ali.
Jim considerou que o pequeno gemido do animal significava que concordava com ele – e que também precisava sair para fazer suas necessidades.
– Dois segundos – disse Jim, preparando-se para ficar em pé. – Preciso de um banho.
Levantando seu peso morto da cadeira, ele deixou cair o cobertor e entrou no banheiro que era de um tamanho modesto. Fechando-se lá dentro, ele acendeu a luz, deteve-se no banheiro e se perguntou se seu pênis ainda funcionava de alguma maneira.
O fluxo rosa que ele urinou respondeu a pergunta. E também sugeriu que seus rins foram danificados.
Depois que terminou, grunhiu ao se inclinar para apertar a descarga e depois se virou para ligar o chuveiro. Sabonete. Ele precisava de muito mais sabonete do que aquela metade já usada que estava ali...
Jim congelou ao se ver no espelho.
Ruim. Muito ruim.
Muito pior do que ele pensava.
Sua boca estava roxa e inchada por causa de toda porcaria que tinha sido empurrada dentro dela, seu peito e sua barriga eram nada além de carne viva. Quanto ao pênis... A maldita coisa estava pendurada em seus quadris como se tivesse perdido a vontade de viver. E ele não queria saber como a parte de trás de seu corpo estava.
Usado e abusado eram os termos corretos.
E seu único pensamento, o único... apenas um... era que odiava o fato de que Sissy o tinha visto assim.
Quando seu estômago vacilou em torno de sua cintura, ele se lembrou da expressão horrorizada no rosto dela ao olhar para ele. Pobre garota... Ele tinha sido treinado para toda aquela porcaria. Ele tinha passado por isso antes... bem, não exatamente pelo que Devina fez com ele, mas com certeza ele teve que lidar com isso algumas vezes com punhos e facas. Até mesmo com uma bala ou duas. Mas Sissy...
Ele quase não conseguiu voltar à bacia sanitária à tempo.
Quando seu corpo se inclinou e nada além de bile saiu de sua boca, seus olhos lacrimejaram pelo esforço.
Maldição, Sissy o viu daquele jeito. Violado sexualmente, sangrando, surrado...
Mais vômito.
Ele não teve certeza de quando exatamente Adrian entrou, pois no terceiro round de lances que saíam de sua boca ele se deu conta que não sabia se ela estava livre do que tinha feito com ele. Afinal, ela foi capturada. Ela estava presa naquele inferno. E Devina tinha muitas coisas que satisfariam o gênero masculino.
– Aqui – Adrian disse, passando-lhe um pano frio.
Jim não conseguia enxugar o rosto, pois doía demais, então, ele deu leves toques, sentindo a umidade fresca como um bálsamo contra seu rosto em chamas e lábios queimando.
Baixando a cabeça, ele percebeu que tinha deixado manchas de sangue fresco no piso creme, das feridas que tinham sido reabertas em seus joelhos.
Sim, imortal não significava embalsamado; isso era certeza.
Adrian sentou-se ao lado dele, com o rosto muito pálido enquanto olhava ao redor da bacia sanitária.
– Quer que eu o coloque no banho? Foi o que me ajudou quando ela...
Quando seus olhos se fecharam com força, a conversa era de sobrevivente para sobrevivente.
– Ah, droga... – Quando Jim falou, sua voz era rouca e parecia que tinham passado um desentupidor por sua garganta.
– Ela me viu assim. Sissy... ela viu isso.
Ele não podia acreditar que havia dito isso, mas manter dentro de si era inútil.
Incapaz de manter contato visual, Jim fechou suas pálpebras com força e encostou ao lado da banheira. Enquanto a água caía como a chuva atrás dele e o chão duro pressionava seu traseiro, ele sussurrou: – Ela me viu arruinado.
Foi a última coisa que disse antes de desmaiar.
CAPÍTULO 37
Você não deve ter pensando que uma casa com seiscentos metros de área construída, no centro da cidade, com três andares – quatro, se contar o porão com a adega – poderia ser estreita como uma caixa de sapato.
Mas, à medida que a manhã se arrastava e chegava o florescer do meio dia, Grier sentia como se não pudesse ter ar suficiente... ou algum momento à sós com Isaac. Seu pai era uma presença passiva com olhos de águia que parecia preencher todo o espaço, mesmo quando não estava nele. E Isaac estava tão ruim quanto ele, movendo-se constantemente, olhando pelas janelas, indo e voltando da frente da casa para a cozinha.
Por volta das duas horas, ela não aguentava mais e foi organizar seu armário no quarto. O que era ridículo, pois já estava arrumado – apesar de ser uma cura rápida para o que estava passando.
Depois de parar no meio do quarto e fazer um giro pelas fileiras de roupas penduradas por categoria, ela pegou cada blusa, saia, vestido, terno e par de calças das prateleiras e os colocou em uma pilha no chão. Aparentemente, ela estava reorganizando as várias sessões. Na realidade, ela estava dando a si mesma um pouco de bagunça para limpar para que pudesse desfrutar de um pouco de controle.
Cabide por cabide, item por item, ela começou a organizar seu guarda-roupa.
Deus... Isaac.
Se ela o ouviu direito, lá na cozinha, perto da cafeteira... ele disse que a amava.
Vamos lá... claro que ela ouviu direito. E seus olhos incríveis confirmaram o que seus ouvidos tinham lutado para compreender.
Contudo, havia muitos mas que a advogada que havia nela queria esquematizar. A questão era, a mulher por trás da advogada de defesa não se importava com nada daquilo: ela sentia algo tão forte quanto ele.
Naturalmente, a lógica dizia que não devia confiar na emoção nos dois casos, apontando que tudo era uma questão de circunstâncias, drama, tensão, sexo – Deus, o sexo. Só que seu coração tinha uma teoria diferente. Ela sentiu uma faísca entre eles no instante em que colocou os olhos nele e a decisão de Isaac de tomar a frente e fazer a coisa certa sobre seu chefe corrupto e perigoso... bem, isso foi ainda melhor que os incríveis orgasmos.
Ele ganhou todo o respeito dela com isso.
Ao pegar um de seus ternos pretos com risca de giz, ela se entreteve com uma breve fantasia onde eles acabavam juntos em uma ilha segura e remota com nada além do dilema sobre o que fazer para almoço e jantar para preocupar suas mentes. Um dia de sonho na Ilha da Fantasia com nada para ser questionado seria uma ótima diversão, mas ela não ia enganar a si mesma. Isaac ia desaparecer. O governo ia levá-lo e escondê-lo até que as audiências no Congresso ou os procedimentos judiciais fossem iniciados. E se ele não acabasse na cadeia pelas atrocidades de guerra nos Estados Unidos, seria extraditado para algum inferno no exterior.
E foi por isso que ele disse aquilo. Era seu adeus.
– Uau.
Grier girou sobre os calcanhares, o terno em suas mãos se levantou em um círculo em volta de seu corpo antes de ser colocado de volta no lugar – como se tivesse esquecido momentaneamente sua discrição e retomado sua compostura.
E não é que ela sabia como a coisa se sentia?
Isaac se amaldiçoou.
– Desculpe, eu realmente preciso aprender a bater.
Grier ficou mais aliviada.
– Eu também estou nervosa demais.
Franzindo a testa, ele mediu a pilha no meio do carpete creme.
– Muitas roupas.
– Provavelmente roupas demais. Eu preciso doar um pouco para alguma entidade.
Ele avançou e pegou um de seus vestidos. Era longo e preto, como todos os outros, pois ela não era do tipo de garota que gostava de cores e brilhos.
– Para onde vai esse?
– Ah... – Havia apenas uma seção com barras altas o suficiente para os longos. Então, ela havia os tirado por nada, apenas para colocá-los novamente. – Aqui. No canto, por favor.
Ele pegou o vestido feito para se usar à noite e o colocou no lugar onde já tinha estado antes. Então, ele se voltou para o próximo, endireitando as ombreiras em um cabide acolchoado de cetim. Antes de colocá-lo no lugar, ele se surpreendeu por baixar a cabeça e colocar seu nariz no decote.
– Tem o cheiro do seu perfume – ele murmurou antes de colocá-lo sobre a haste de bronze.
Foi o que bastou para que um arrepio percorresse dentro dela – no bom sentido. Infelizmente, o formigamento foi substituído por tudo o que estava pairando sobre eles.
– Você já recebeu algum contato... deles?
– Não.
– O que você vai fazer se eles não responderem?
– Eles vão.
Ele não disse mais nada, apenas pegou um vestido com um corpete de veludo e uma larga faixa.
– Vestido de Natal?
– Sim.
– É lindo.
– Obrigada. Isaac? – Quando ele olhou, ela disse: – Eu...
Ele a interrompeu.
– O que é esse som?
– Que som...
O terno caiu de suas mãos quando ela reconheceu o sutil sinal sonoro e se atrapalhou para tirar a corrente do sistema de segurança do bolso. Era certeza, uma luz vermelha estava piscando. “Havia alguém na casa.”
Ela interrompeu o barulho e começou a ir em direção ao telefone ao lado da cama, mas ele segurou seu braço.
– Não. Nada de polícia. Já tiramos vidas de inocentes o suficiente com isso.
Sua arma surgiu e expôs um tubo quase tão longo quando seu punho. Quando ele engatou o silenciador na ponta da arma, olhou em volta e seguiu até o espaço mais abaixo onde o mecanismo do sistema de segurança se encontrava.
Mantendo a arma em mãos, ele arrancou a superfície de metal.
– Entre aqui. E não saia até que eu...
– Eu posso ajudar...
A expressão nos rosto dele fez com que ela desse um passo para trás: seu olhar era frio e totalmente estranho – como se ela estivesse olhando para um vidro fosco... sem esperança de algum dia ver o que estava por trás dele de novo.
– Entre aí, agora.
Os olhos dela encararam a arma e depois se voltaram para sua face rígida e implacável. Era difícil saber o que era mais assustador: a ideia de que alguém estava em sua casa ou o estranho em pé na frente dela. E, então, ficou claro para ela...
– Oh, meu Deus, meu pai!
– Eu cuido dele. Mas não vou fazer isso direito se estiver preocupado com você. – A arma apontava para o buraco escuro que ele tinha aberto. – Vá, agora.
Depositando sua confiança nele, Grier se abaixou, esquivou-se dentro do local e respirou o ar bolorento dos beirais quando Isaac recolocou a grade no lugar. Houve um movimento, um clique, outro movimento, outro clique ao fixar a coisa na parede e, em seguida, pelas frestas, ela o viu sair correndo, silencioso como uma sombra.
Ela olhou o relógio. Ouvia com atenção.
O medo se comprimia com ela dentro dos limites apertados de seu esconderijo, ocupava mais espaço que ela, trazia à tona a imagem de Isaac como um estranho, até aquilo ser tudo o que conseguia ver.
Silêncio.
Mais silêncio.
Que foi prontamente interrompido por uma estridente paranoia em sua cabeça.
Oh, Deus... e se tudo isso não passou de uma armadilha? E se Isaac tinha sido enviado com o único propósito de seduzir seu pai e determinar o quão longe ele iria para expor a agência?
Só que foi ela quem sugeriu isso.
Ou será que a intenção dele era que ela acreditasse nisso?
Contudo, seu perfil dizia que ele precisava de uma motivação moral – e se fosse uma mentira? E se aquilo fazia dele o agente infiltrado perfeito? E se tudo aquilo não passasse de um jogo para que seu pai entregasse os dossiês... antes de o matarem.
E, ainda assim, Isaac a colocou ali para protegê-la.
Só que ela não o reconhecia no momento em que fez isso...
Meu bom Deus, o transmissor de alerta – a luz estava apagada, não estava? Quando ele balançou a coisa em frente a ela na cozinha esta manhã, a luz que ela tinha visto antes estava apagada. O que aquilo significava? E, pensando nisso, o lapso de tempo lhe parecia bizarro: entre o momento em que ele aparentemente se entregou até agora.
Ela tinha que sair dali. Conseguir ajuda.
Grier se contorceu e se apertou atrás dos componentes empilhados do centro nervoso do sistema de segurança. A escadaria oculta que corria no meio da casa fazia parte de sua construção original, foi feita por suspeita e desconfiança de que os britânicos ainda pudessem passar por ali em 1810, cerca de trinta anos depois da Revolução.
Os truques da casa acabaram sendo úteis no presente.
O brilho do sistema de segurança proporcionava iluminação suficiente para que ela encontrasse a lanterna coberta de poeira que ficava pendurada em um prego no topo da escada secreta. Acendendo a luz, ela tateou os degraus antigos, entalhados à mão, deixando suas impressões para trás na poeira. Ao prosseguir, teias de aranha grudaram em seus cabelos e os ombros foram arranhados pela áspera argamassa dos tijolos.
Quando chegou ao primeiro andar, fez uma pausa. É claro que ela não conseguia ouvir nada devido às grossas paredes, mas o pai dela tinha acrescentado um tubo que parecia fazer parte do sistema de ventilação. Na verdade, porém, servia como posto de vigilância secreto.
Grier subiu e se inclinou para o lado para conseguir enxergar direito, apoiando-se sobre alguns tijolos que estavam mais firmes que os outros.
Quando ela apertou os olhos, sua visão trespassou as ripas e focou-se na entrada da frente. Se ela se arqueasse um pouco mais e esticasse o pescoço, ela conseguiria ver a cozinha...
Grier abandonou a lanterna e apertou as mãos sobre a boca.
Para não gritar.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
PARAÍSO, JARDIM SUL
Nigel concedeu uma audiência antecipada a seus dois anjos guerreiros favoritos não por causa da bondade que havia em seu coração – apesar do fato de ele, Colin, Bertie e Byron estarem no meio de uma refeição. Contudo, não haveria como mandar esses visitantes embora: ele sabia por que Edward e Adrian estavam chegando e eles não iam gostar do que ele tinha para lhes dizer.
Assim, ele sentia que precisava tratar disso pessoalmente.
E, de fato, quando os dois anjos tomaram forma do outro lado do gramado, caminharam ao longo do bosque como os vingadores que eram.
– Sinto muito mesmo – Nigel murmurou para seus assessores. – Mas poderiam, por favor, me dar licença um minuto.
Ele dobrou seu guardanapo damasco e se levantou, pensando que não havia razão para arruinar a refeição dos outros – e o que estava prestes a acontecer verbalmente seria um assassinato gastronômico do tipo mais sangrento.
Colin se levantou também. Nigel preferia fazer isso sozinho, mas não havia como dissuadir o anjo. Nada nem ninguém poderia mudar as ideias de Colin sobre o que teria de sobremesa, muito menos sobre questões de real importância.
Ele e Colin se encontraram com seus visitantes a meio caminho entre o local onde os dois haviam entrado e onde a mesa estava colocada entre as árvores.
– Ela o tem – Edward disse quando os quatro se aproximaram. – Não sabemos como isso aconteceu...
Nigel interrompeu o anjo.
– Ele se entregou para que outra pessoa tivesse uma chance na vida.
– Ele não deveria ter feito isso. Ele é valioso demais.
Nigel olhou na direção de Adrian e viu que o anjo estava em silêncio pela primeira vez. O que era o sinal mais concreto de que havia problemas.
Nigel puxou suas abotoaduras, alisando as mangas de sua camisa de seda dentro de seu terno de linho.
– Ela não vai matá-lo. Não pode.
– Tem certeza disso?
– Há poucas coisas confiáveis nela, mas as regras não foram impostas por ela. Se matar Jim, ela perde não só a rodada, mas o jogo na sua totalidade. Isso vai mantê-la em cheque.
A voz de Adrian percorreu o ar, fina e dura.
– Há algumas coisas piores que a morte.
– Com certeza, você está certo.
– Então, faça alguma maldita coisa. – O anjo vibrava por completo, seu corpo era um presente de natal prestes a ser rasgado em pedaços com ansiedade.
– Porém, nós poderíamos tirá-lo de lá – Edward disse. – Não é contra as regras.
– Claro que poderiam.
Longo silêncio.
Edward limpou a garganta e pareceu dobrar a língua numa contenção educada.
– A imagem que ela nos enviou sugere que ele está preso no mundo dela.
– Ele não está sobre a terra, é verdade.
– Então, como podemos chegar até ele?
– Não podem.
Quando Adrian soltou um palavrão, Edward segurou o braço do outro anjo, mas isso não o calou.
– Você disse que poderíamos tirá-lo de lá.
– Adrian, eu disse “poderiam” no sentido de permissão. Vocês têm permissão de fazer isso dentro das regras. No entanto, eu não fiz um comentário sobre suas habilidades. Neste caso, vocês são incapazes de alcançá-lo sem sacrificarem a si mesmos, deixando-o sem apoio e orientação durante esses momentos inicias e cruciais...
– Seu imbecil.
Antes que Adrian pudesse fazer algo estúpido, Edward transferiu sua força para o pesado peito do cara e o deteve.
Nigel levantou uma sobrancelha para os dois.
– Eu não faço as regras e eu tenho tanta intenção de ser desqualificado quanto meu adversário.
– Você tem... – Adrian engasgou com as palavras e teve que respirar fundo para terminar. – Você tem alguma ideia do que ela está fazendo com ele? Agora mesmo? Enquanto estamos parados em seu maldito gramado e o jantar está esperando por você?
Nigel escolheu as palavras com cuidado. A última coisa que ele precisava era dos dois fazendo justiça com as próprias mãos. Eles já tinham cometido esse erro uma vez, não tinham?
– Eu sei exatamente o que ela está fazendo sobre aquela mesa, por assim dizer. E também sei que Jim é muito forte... o que é a pior tragédia de todas. Pois ela vai recorrer a torturas que... – Não havia razão para continuar: os olhos de Adrian ficaram vítreos como se fosse alguém revivendo um pesadelo. – Eu diria, porém, que Devina não pode mantê-lo por muito tempo ou ela corre o risco de perder. As coisas estão chegando a um limite e, se ela impedir Jim de participar plenamente do que está por vir, então, não haverá uma competição justa.
– E quanto a Jim? – Adrian exigiu, libertando-se do seu melhor amigo. – E quanto ao sofrimento dele? E quanto a ele?
Nigel olhou para Colin, que estava completamente em silêncio. Mais uma vez, sua bela e familiar expressão facial dizia tudo: sua fúria era tão grande e profunda que os oceanos ficariam rasos, se comparados a ela. Ele sempre odiou Devina e isso não serviria de auxílio naquele momento.
No entanto, havia bastante exaltação ali.
Nigel balançou a cabeça com uma sincera decepção.
– Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito. Minhas mãos estão atadas.
– Você sente muito? Você sente muito, seu maldito? – Adrian cuspiu no chão. – Sim, você parece mesmo, seu bastardo frio. Você parece muito desapontado. Imbecil.
Com isso, o anjo se desmaterializou.
– Droga. – Edward murmurou.
– Um palavrão, mas uma palavra adequada para isso. – Nigel olhou para o espaço que Adrian tinha preenchido antes. – É cedo para ele estar tão cansado e frágil com a batalha. Isso não é nada bom.
– Você está brincando comigo, certo?
Ele encarou o anjo.
– Com certeza você deve enxergar a loucura que há nele...
– Para sua informação, chefia, não faz nem quatro dias que Devina usou o cara ao seu bel-prazer. E você acha que ele não vai perder a cabeça agora que Jim está passando pela mesma máquina de tortura? Está falando sério?
– Gostaria de lembrá-lo que você jurou que ele poderia lidar com isso. – Nigel viu-se inclinado para frente em posição de confronto. Afinal, ele poderia ser o capitão deste lado, mas isso não queria dizer que estava isento de socos. – Você me disse que ele poderia suportar o estresse. Você me prometeu e eu acreditei em você. E se acha que vai ficar mais fácil à medida que avançamos, então você está tão louco quanto ele aparenta estar.
Edward ergueu o braço e o puxou para trás como se fosse lhe dar um soco.
– Vá se ferrar, Nigel...
Colin investiu contra o anjo em um piscar de olhos, atacando pela direita, como no futebol americano, derrubou o homem e o imobilizou de bruços sobre a brilhante grama verde.
– Você não toca nele, companheiro – Colin grunhiu. – Eu sei que está chateado e deseja libertar Jim, mas não posso deixar que bata em Nigel. Não vai acontecer.
Nigel olhou para a mesa de jantar. Como Bertie e Byron se viraram para olhar, ele viu que eles estavam sentados como pássaros preocupados, seus corpos se estenderam, os braços caíram nas laterais, os olhos arregalados.
Tarquin tinha deitado no chão e colocado seu longo focinho sob a toalha para que não conseguisse ver nada.
A refeição estava mais que arruinada. E não apenas porque o espetáculo que aconteceu ali foi um desastre de se assistir: na verdade, Nigel não ia ser capaz de colocar nada no estômago. Esse jogo com Devina estava tomando péssimas direções de tantas maneiras... e ele estava paralisado pelas regras.
– Solte-me – Edward resmungou.
Colin deveria ter uma estrutura duas vezes mais leve que a do outro anjo, mas tinha uma força elástica além da média.
– Você vai ser legal, companheiro. Nada mais de socos ou vai ser derrubado outra vez.
– Está bem.
As palavras não foram qualquer tipo de rendição, mas Colin saiu de cima dele de qualquer maneira... provavelmente por saber que só poderia subjugar o homem de novo se fosse necessário.
Edward tirou os pedaços de grama verde que ficaram presos em seu casaco de couro como se fossem lantejoulas.
– Só por que Jim pode sobreviver a isso não significa que seja justo.
Com isso, ele desapareceu no ar.
Após um palavrão silencioso, Nigel observou o desaparecimento da marca deixada pelo corpo pesado de Edward, a grama se erguia, endireitava-se.
– Eles têm razão – Colin disse asperamente. – E a vadia não está jogando limpo.
– Jim se voluntariou para ela.
– Em uma situação que ela projetou. Não está certo e você sabe disso.
– Você quer que nós corramos o risco da derrota? – Ele o encarou. – Você quer perder por causa disso?
Colin espalmou a grama de suas mãos.
– Inferno. Mas que maldito inferno. – Nigel olhou para a marca do corpo que desaparecia em seu gramado.
– Concordo plenamente.
CAPÍTULO 31
A adega não era um lugar aonde Grier ia com frequência. Em primeiro lugar, as garrafas de vinte dólares que enchiam suas taças todas as noites mal valiam o subir e descer de escadas. Em segundo, com sua porta que era como um cofre de banco, seu teto baixo e estantes que percorriam todas as paredes, ela sempre sentia como se lá fosse uma prisão.
E, como pode imaginar... quando seu pai fechou os três no caixão apertado, o peso da presença de Isaac diminuiu o local para o tamanho de uma caixa de lenços de papel e ela sentiu como se não pudesse respirar.
Havia uma mesa polida no centro do espaço e ela ocupou uma das quatro cadeiras. Quando Isaac se sentou à frente dela, foi difícil não se lembrar de quando o encontrou na cadeia: tinha sido bem assim, os dois frente a frente.
Só que agora, apesar do fato que nenhum dos dois estava algemado, ela não conseguia deixar de ter a sensação de que os dois estavam amarrados juntos... e que as rolhas em todas as garrafas eram um pelotão de fuzilamento na iminência de obedecer ao sinal para atirar.
Deus, quando ele foi trazido para se encontrar com ela pela primeira vez, ela não tinha ideia de onde estava se metendo.
Mas, alguém já soube? Quando as pessoas passam por suas vidas cotidianas, escolhas rápidas e eventos aleatórios podem, algumas vezes, girar em um tipo de força centrífuga que as suga e, depois, as expele em um endereço totalmente diferente de onde começaram.
Mesmo quando nunca saem de casa.
Seu pai sentou-se mais próximo da porta e uniu as mãos quando colocou os cotovelos no topo da mesa.
– Estamos seguros aqui embaixo – disse ele, apontando para uma saída de ar no pequeno teto que tinha duas bandeiras vermelhas tremendo com a brisa. – O sistema de ventilação é iniciado a vários quarteirões de distância daqui, assim, não há preocupação com uma contaminação. Há também um túnel e um transmissor de ondas de rádio que irá embaralhar nossas vozes se estivermos sendo gravados.
O túnel era uma novidade e Grier olhou em volta. Até onde ela poderia ver, todas as prateleiras estavam fixadas na parede e o chão era de pedra, mas dado os outros pequenos truques na casa, ela não poderia afirmar que estava surpresa.
Isaac se manifestou.
– Se eu tivesse que ir até alguém e conversar com essa pessoa, quem seria?
– Isso depende de como...
– E quanto à mamãe? – Quando Grier cortou, interrompeu, descarrilou, ela olhou para o rosto de seu pai, procurando por contrações ao redor dos olhos e da boca. – E quando ela morreu? Foi mesmo de câncer?
Embora tivesse sido há sete anos, aqueles dias finais horríveis ainda estavam tão vívidos e ela se infiltrou neles, procurando por rachaduras nas paredes dos acontecimentos, em busca de lugares onde as coisas que pareciam de um jeito pudessem ser de outro.
– Sim. – Seu pai disse. – Sim... ela... Sim, aquilo foi câncer. Eu juro.
Grier exalou e achou difícil imaginar que ela estivesse realmente aliviada por ter sido aquela doença horrível. Mas era muito melhor a Mãe Natureza ter sido a culpada. Muito melhor que aquela tragédia não precisasse ser reescrita. Uma era mais do que suficiente.
Ela limpou a garganta. Assentiu.
– Tudo bem, então. Tudo bem.
Uma mão quente cobriu a dela e a apertou. Como as mãos de seu pai estavam sobre a mesa, ela percebeu que era Isaac. Quando ela olhou para ele, Isaac quebrou a ligação, seu toque durou apenas o suficiente para que ela soubesse que ele estava ali com ela, mas não de maneira que ela se sentisse reprimida.
Deus, as contradições que havia nele. Brutal. Sensual. Protetor.
Com um tapa mental, ela voltou a se concentrar em seu pai.
– Você estava dizendo alguma coisa?
Ele balançou a cabeça e se recompôs antes de olhar para Isaac de novo.
– Até que ponto você está disposto a ir?
– Eu não vou comentar sobre os outros soldados em atividade – disse Isaac. – Mas quanto ao que se tratar das minhas atribuições, vou até o fim. As coisas que fiz para Matthias. O que sei sobre ele e sobre o segundo na linha de comando. Onde os dois me enviaram. O problema é: isso é uma colcha de retalhos... Há muita coisa a qual só conheço em parte.
– Deixe-me mostrar uma coisa.
Seu pai se levantou da mesa e, antes que ela pudesse ver o que ele fez, uma seção de prateleiras veio para frente e deslizou à esquerda, expondo um conjunto de segurança em meio à parede de pedra. A porta resistente foi aberta pelas impressões de toda a palma de sua mão em um painel e o interior não era muito grande – um pouco maior que um bloco de notas na horizontal e não tinha mais que quinze centímetros de altura.
Ele voltou à mesa com uma pasta grossa.
– Isso foi tudo o que consegui reunir. Nomes. Datas. Pessoas. Lugares. Talvez isso ajude a ativar sua memória. – Ele bateu sobre a capa da frente. – E vou descobrir a quem recorrer. Não há como saber com certeza quem está envolvido no círculo de relações de Matthias: conspirações governamentais têm grossas raízes, mas também possuem garras que você não consegue ver. A Casa Branca não é uma opção e é uma questão federal, então, contatos da União não vão nos ajudar. Mas eis o que eu penso...
A voz de seu pai tornava-se mais poderosa a cada palavra, a força crescente do propósito o transformava no pilar que ela sempre acreditou que fosse. E, enquanto ele descrevia os planos, ela sentiu uma mudança no centro de seu coração.
Embora isso se devesse muito a algo que Isaac havia falado. Nenhum de nós sabe no que está entrando até ser tarde demais...
O irmão dela tinha sido um drogado muito amado, um viciado de primeira ordem que teria morrido pelas suas próprias mãos em algum momento – embora essa não fosse uma justificativa para o que tinha sido feito com ele, era a simples realidade da situação. E ela se surpreendeu, na época, em como seu pai ficou desesperado com a perda. Ele e Daniel não mantinham contato há pelo menos um ano antes daquela noite terrível: depois da última internação em mais uma clínica de reabilitação caríssima ter caído no esquecimento, o pai atingiu seu limite assim como muitos pais e familiares faziam. Ele ofereceu tudo o que podia para seu filho, andou com toda dificuldade por uma década nos caminhos da recuperação que deram uma esperança traiçoeira, mas era inevitável que se seguissem longos e obscuros meses em que ninguém sabia onde Daniel estava ou, até mesmo, se estava vivo.
Contudo, seu pai estava inconsolável em sua morte. Ao ponto dele passar uma semana em uma cadeira com nada além de uma garrafa de gim ao seu lado.
E agora ela sabia o porquê. Ele acreditava que era inteiramente responsável.
Enquanto ela o observava falar, notava a idade em seu rosto... as rugas ao redor dos cantos dos olhos e da boca, a ligeira inclinação na linha do queixo. Ele ainda era um homem bonito e, ainda assim, nunca se casou de novo. Será que foi pela bagunça na qual estava envolvido? Provavelmente.
Definitivamente.
Aqueles sinais da idade nele não eram apenas uma questão do tempo. Foi estresse, dor de cabeça e...
Mudando seu foco para Isaac, seu olhar estreito e parecendo um laser era intenso; sua íris pálida brilhava muito com uma luz de “vamos à guerra”. Engraçado, ele não tinha nada a ver com seu pai em termos de antecedentes, educação escolar, exposição, experiência. E, ainda assim, eles eram idênticos em muitos aspectos.
Especialmente unidos na missão comum de fazer o certo.
– Grier?
Sacudindo-se, ela olhou para seu pai. Ele estava segurando algo em sua direção... um lenço? Mas por quê...
Quando ela sentiu algo atingir seu antebraço, olhou para baixo. Uma lágrima prateada se recolhia após a queda de seu olho, aglomerando-se em um pequeno círculo brilhante em sua pele.
Outra escorreu e atrapalhou todo seu esforço – mas, então, as duas uniram forças e a massa duplicou.
Ela pegou o lenço e enxugou suas lágrimas.
– Eu sinto tanto – seu pai disse.
Ela enxugou o rosto e redobrou o linho fino, lembrando-se dele fazendo a mesma coisa quando estavam na cozinha.
– Sabe? – ela murmurou. – Desculpas não significam nada. – Ela apoiou a mão na pasta que ele tinha colocado na mesa. – Isso... o que vocês dois estão fazendo... isso é tudo.
A única coisa que poderia consertar qualquer aspecto sobre isso.
Para interromper a conversa mental, abriu a capa...
Ela franziu a testa e se inclinou. A primeira página era uma impressão da imagem de quatro fotografias de rosto. Todos homens. Todos eles pareciam diferentes versões étnicas de Isaac. Embaixo das imagens, com a caligrafia de seu pai, havia nomes, datas de nascimento, números de cadastro na segurança social, a última vez que foram vistos... embora nem todos os dados estivessem concluídos. E três deles tinham a palavra FALECIDO embaixo de suas fotos.
Ela virou para próxima página e a próxima. A mesma coisa. Tantos rostos.
– Eu quero que Jim Heron entre nessa – Isaac disse. – Quanto mais estiver disposto a ir adiante, melhor...
– Jim Heron? – o pai dela disse. – Você quer dizer Zacarias?
– Sim. Eu o vi mais cedo essa noite e na noite anterior. Eu pensei que ele tinha sido enviado para me matar, mas, ao que parece, ele quer me ajudar... ou é assim que diz.
– Você o viu?
– Ele estava com dois rapazes. Eu nãos os reconheci, mas parecem com caras que poderiam ser das operações extraoficiais.
– Mas...
– Oh, meu Deus. – Grier sussurrou, aproximando uma das páginas. – É ele.
Quando ela apontou para uma das fotos, ouviu seu pai dizendo: – Jim Heron está morto. Atiraram nele em Caldwell, Nova York. Há quatro noites.
– É ele. – Ela repetiu, batendo na foto.
A voz de Isaac soou confusa.
– Como sabia? Grier... como você sabia?
Ela olhou para ele.
– Sabia o que?
– Que era Jim Heron.
Movendo seu dedo, ela viu o nome Zacarias abaixo da foto.
– Bem, eu não sei quem ele é, mas esse é o homem que apareceu no meu quarto na noite passada. Como um anjo.
CAPÍTULO 32
Aquilo não estava funcionando.
Lá no fundo do Inferno, onde ela mantinha suas almas capturadas e onde o ar rarefeito ecoava os gemidos de seus servos oleosos, Devina estava sofrendo de um caso grave de mau humor.
Razão pela qual ela mandou todos embora.
Parando de repente, ela observou o pedaço de carne amarrado com um fio metálico em sua mesa. À luz das velas, Jim Heron era uma obra ao estilo Pollock com sangue, cera negra e outros líquidos de vários tipos, e ele estava tendo dificuldades para respirar através de seus lábios inchados e rachados. Em seu estômago, havia um roteiro de escavações que ela tinha feito com suas próprias garras e as coxas dele estavam bem marcadas com seu nome e seus símbolos.
Seu pênis tinha sido utilizado até ficar tão em carne viva quanto o resto do corpo dele.
E, ainda assim, ele não chorou ou implorou ou sequer abriu os olhos. Nenhuma blasfêmia, nada de lágrimas. Nada.
Ela não tinha certeza se deveria ficar chateada consigo e com seus ajudantes por não terem se esforçado o suficiente... ou se estava se apaixonando pelo bastardo.
De qualquer maneira, ela tinha a determinação de conseguir um pedaço dele. A questão era como.
Devina estava bem consciente de que havia duas maneiras de quebrar alguém. A primeira era de fora para dentro: você esculpia a pele, os ossos e o sexo do indivíduo até que a dor física, a exaustão e a vergonha aniquilavam seu núcleo mental. A segunda era o inverso: encontrar a fenda que havia dentro da pessoa e martelar com palavras até que tudo desmoronasse.
Normalmente, a primeira era suficiente para ela, tendo em conta todas as ferramentas à sua disposição – e também era divertido e, portanto, era por onde ela sempre começava. A segunda era mais complicada, embora não menos satisfatória à sua maneira. Todas as pessoas tinham chaves para abrir suas portas internas; ela só precisava classificá-las e descobrir aquela que a levaria para dentro da mente e do coração do indivíduo.
No caso de Jim Heron... Bem, estava claro que ele ia dar trabalho. E aquilo ainda abriria uma competição pelo brinquedo favorito com Adrian.
O que escolher, o que escolher...
A mãe dele. Sua mãe era uma boa, mas Devina não era capaz de ficar calma para se aproximar da realidade e ele deveria ser inteligente o suficiente para descobrir que ela estava fingindo...
Felizmente, havia outra solução que estava sob seu controle.
Fora do alcance da luz das velas, presas em suas paredes viscosas, as almas daqueles que ela capturou se contorciam. Mãos, pernas, pés e cabeças faziam aparições ondulantes que nunca quebravam a superfície suspensa, o torturado sempre procurava por uma saída.
A satisfação de ver sua coleção a distraiu, mas também a deixou faminta: ela tinha que ter Jim também como um troféu entre os outros. Estava desesperada para tê-lo dentro dela. No início, tinha sido um mero jogo; agora, depois daquela sessão, era muito mais que isso.
Ela queria obtê-lo.
Voltando a focar o rosto dele, ela achou sua expressão quase impossível de compreender. Como um homem poderia ter passado por tanta coisa... e sem sequer fazer uma careta. E também sem medo do que estava por vir.
Contudo, ela ia consertar isso.
E ela gostava de pensar que esse poder nele vinha daquela porção que ela compunha. Aqueles anjos de corações sangrando com sua contenção e moral sacrossantas... fracos, tão fracos. Ao ponto de ela não querer perder o jogo contra Nigel não apenas porque poderia governar a terra e os céus e tudo o que havia entre o sol e a lua... mas porque um bom tapa no traseiro daqueles maricas seria demais.
Contudo, Jim... ele era melhor que isso. Ele era mais parecido com ela no fundo de seu ser.
Que tragédia ter que enviá-lo à Terra em breve; mas o jogo, afinal, tinha que ser retomado. Entretanto, antes de ir, ela estava determinada em fazer uma impressão nele, dar a ele mais um pouco do que seria o Inferno Eterno. Afinal, os cortes em sua pele eram relativamente rasos. Porém, marcas na mente eram muito, muito mais profundas.
E imortais eram especialmente gratificantes nesse sentido, pois, conforme o cérebro persistia, assim era a memória – e isso significava que ela poderia deixar cicatrizes eternas.
Olhando a parede, que se estendia quilômetros acima dela, Devina pensou em sua terapeuta e no trabalho que estavam fazendo juntas. Aquele era um domínio que estava fora dos limites de sua “recuperação”, e sua situação com Jim era mais uma prova de como seu probleminha de acumular objetos viria a calhar.
Você nunca sabe do que pode precisar.
Estendendo a mão, puxou uma das formas mais esbeltas, movendo-a dentre as outras almas, chamando-a até ela. Quando estava no chão, ela convocou a alma e a vestiu da forma corpórea que costumava exibir na Terra.
Devina sorriu frente a isso. Tanta utilidade em um pacotinho tão insosso e esquecível.
Voltando-se para a mesa, ela disse: – Jim? Tenho alguém aqui que você vai querer ver.
Deitado sobre a mesa de Devina, ele duvidou. Duvidou disso, de maneira muito sincera.
Além disso, naquele ponto, visões provavelmente não eram convidativas.
Nada mais doía, o que tornava aquela droga toda muito mais fácil. No entanto, a troca que fez por aquela feliz dormência foi sua consciência recolhida a um canto escuro de seu interior. Ele ainda não tinha deitado a cabeça para tirar um cochilo, mas estava chegando lá: a audição tinha atingido a fase do algodão, onde tudo estava abafado e as coisas estavam bem frias dentro de sua pele.
Os sinais clássicos do choque faziam com que ele se perguntasse se ela tinha, de fato, a capacidade de matá-lo.
Ela não tinha finalizado Adrian, mas será que aquilo não seria um capricho do afeto?
– Vou deixar vocês dois se conhecerem.
A satisfação de Devina não era uma boa notícia, considerando que ela fez todo o inumano possível para acabar com ele afinal... Por quanto tempo? Horas? Tinha que ser.
Passos. Recuando.
Uma porta. Fechada.
Silêncio.
Contudo, alguma coisa estava com ele. Ele conseguia sentir a presença à sua esquerda.
Atrás de suas pálpebras fechadas, ele tinha certeza de duas coisas: Devina não devia ter ido muito longe e, seja lá o que foi que ela trancou com ele, estava perto.
A respiração foi a primeira coisa que ele notou. Macia, suspensa. Do tipo que você pratica quando está em modo de recuperação. Será que era sua própria respiração?
Não. O ritmo era diferente.
Ele virou a cabeça com cuidado em direção a coisa e babou, sua boca se livrou do que ele não conseguia engolir por causa do fio em volta do seu pescoço.
Seja lá o que estava com ele, soltou outra respiração suspensa. E, então, ele ouviu um sutil estalo.
Que diabos era aquilo?
Em dado momento, a curiosidade prevaleceu e ele rompeu uma de suas pálpebras... ou deu uma chance a elas, por assim dizer. Precisou de duas tentativas e ele teve que empurrar as sobrancelhas em direção à testa antes que as porcarias se abrissem...
No início, Jim não conseguiu compreender o que estava olhando. Mas o cabelo loiro não podia ser negado... aqueles cabelos longos e loiros que caiam sobre ombros frágeis.
A última vez que os viu tinha sido há dois dias. No banheiro de Devina.
Estava banhado de sangue.
A garota que tinha sido sacrificada para proteger o espelho de Devina estava vestida com uma capa manchada, seus braços finos cobriam os seios, uma pequena mão protegia a junção de suas coxas. Parecia, como milagre, que ela não estava marcada, mas o trauma estava ali: seus olhos estavam arregalados e horrorizados...
Só que eles não estavam na sala. Eles estavam nele... em seu corpo e nos restos brilhantes e pegajosos de tudo o que tinham feito com ele.
– Não... – A voz dele estava tão fraca que ele precisou puxar mais ar através daquela barreira de arame em sua garganta. – Não olhe... para mim. Afaste-se... Pelo amor de Deus, afaste-se...
Droga. Ele precisava de mais oxigênio, precisava fazer com que ela...
Os olhos dela encontraram os dele. O choque e o terror em sua face disseram mais do que ele precisava saber, não apenas do que tinha sido feito com ela por Devina, mas sobre o que a visão dele estava fazendo com aquela pobre garota.
– Não olhe para mim!
Quando ela se encolheu e retraiu-se, seu temperamento vacilou. Não que houvesse muito para conter – mas ele usou toda sua força naquele grito.
– Cubra o rosto – ele disse com a voz rouca. – Afaste-se e apenas... cubra o rosto.
A garota ergueu as mãos e se virou, sua coluna delicada destacava-se contra a capa conforme tremia.
Jim tinha puxado suas amarras involuntariamente durante a pequena sessão de exercícios com Devina. Agora, ele as empurrava.
– Você está se machucando – ela disse enquanto ele grunhia. – Por favor... pare.
A dor interrompia sua capacidade de fala e levou um tempo para dizer alguma coisa.
– Onde... Onde ela a mantém? Aqui embaixo?
– Na... na... – Sua voz era tão débil e, entre as palavras, seus dentes batiam, o que explicava o clique que ele tinha ouvido. – Na parede...
Seus olhos se atiraram em direção à escuridão, mas a luz das velas formava um bloqueio luminoso que seus olhos não conseguiam ultrapassar.
– Como ela faz isso? – Sem correntes, ele esperava.
E, droga, ele ia ferrar Devina por isso.
– Eu não sei – a garota disse. – Onde estou?
No inferno. Mas ele manteve isso para si.
– Eu vou tirá-la daqui.
– Minha mãe e meu pai... – ela caiu em lágrimas. – Eles não sabem onde estou.
– Vou dizer a eles.
– Como... – Quando ela olhou sobre seu ombro, seus olhos se fixaram sobre seu dorso degradado e ela empalideceu.
Ele balançou a cabeça.
– Não olhe. Prometa... não olhe mais para mim.
Mãos pálidas voltaram àquele belo rosto e ela assentiu.
– Meu nome é Cecilia. Sissy Barten, com ‘e’. Tenho 19 anos. Quase vinte.
– Você mora em Caldwell?
– Sim. Estou morta?
– Quero que faça uma coisa por mim.
Agora, ela deixou cair os braços e olhou para ele com firmeza.
– Estou morta?
– Sim.
Ela fechou os olhos como se outra onda de agitação atingisse seu corpo.
– Esse não é o Céu. Eu acredito no Céu. O que eu fiz de errado?
Jim sentiu algo quente no canto dos dois olhos.
– Nada. Você não fez nada de errado. E eu vou te levar para lá.
Nem que fosse a última maldita coisa que fizesse.
– Quem é você?
– Sou um soldado.
– Como no Iraque?
– Costumava ser. Agora eu luto contra essa vadia... ah, mulher que fez isso a você.
– Eu pensei que estava ajudando... quando a moça me pediu para carregar uma bolsa para ela. Eu pensei que estava ajudando... – Ela inspirou com força como se estivesse tentando se recompor. – Você não pode sair daqui. Eu tentei.
– Eu vou salvá-la.
De repente, a voz dela ficou mais forte.
– Eles machucaram você.
Droga, ela estava olhando para ele de novo.
– Não se preocupe comigo... tem que se preocupar consigo mesma.
Um som, como de algo caindo ou talvez uma porta de metal se fechando, ecoou, assustando a garota e focando Jim. Sem dúvida, Devina chegaria logo e colocaria Sissy de volta ao seu lugar, então, ele tinha que agir rápido. Ele não sabia quando voltaria ali ou como exatamente poderia libertar sua garota.
Sissy, era esse o nome.
– É ela? – Sissy perguntou tensa ao ouvir o som de passos ao longe. – É ela, não é? Eu não quero voltar para a parede... por favor, não deixe que ela...
– Sissy, ouça. Eu preciso que você se acalme. – Ela tinha que ter algo para focar, algo para manter sua mente sã enquanto ele descobria como voltar ali para salvá-la. Sondando sua mente, ele tentou criar uma imagem, algo para acalmá-la.
– Eu preciso que me ouça com atenção.
– Eu não posso voltar para lá!
Droga, o que fazer para que ela se concentre?
– Eu tenho um cachorro – ele desabafou.
Houve uma agitação, como se ele a tivesse surpreendido.
– Você tem?
Quando os passos se aproximaram, ele quis soltar um palavrão.
– Sim, eu tenho.
– Eu gosto de cachorros – ela disse em voz baixa, seus olhos fixos nele.
– Ele é cinza, meio loiro e peludo. Seu pelo... – os passos foram ficando cada vez mais altos e Jim falou rápido. – Seu pelo é grosso, como se fosse feito das sobrancelhas de um senhor idoso e ele tem patinhas. Ele gosta de sentar no meu colo. Ele tem uma perna manca que aparece quando ele corre rápido demais e ele gosta de comer minhas meias.
Uma fungada e uma respiração suspensa. Como se soubesse o que estava se aproximando e ela ia fazer o melhor que podia para segurar a corda de segurança que ele estava tentando oferecer.
– Qual o nome dele?
– Cachorro. Eu o chamo de Cachorro. Ele come pizza e sanduíche de peru e dorme no meu peito. – Mais rápido. Mais rápido com as palavras. – Você vai conhecê-lo, ok? Você vai levá-lo para passear em um gramado e... Sabe quando se dobra uma meia dentro de outra?
– Sim. – Agora havia urgência. Como se ela quisesse o máximo que ele poderia dar. – Uma bola de meia.
– Bolas de meia... é isso. – Rápido, rápido, rápido. – Você vai pegar uma bola de meia, vai jogar e ele vai trazê-la de volta para você. O sol é alto, Sissy. Você pode senti-lo em seu rosto...
– Quando você volta? – ela sussurrou.
– Assim que eu puder. – Ele estava falando de maneira confusa agora, os passos se aproximavam e ele sabia que estavam usando saltos agulha afiados e pontudos.
– Lembre-se do Cachorro. Está me ouvindo? Quando sentir que está perdendo, lembre-se do meu cachorro...
– Não me deixe aqui...
– Vou voltar por você...
O rosto de Sissy estava cheio de lágrimas quando ela estendeu a mão para ele.
– Não me deixe aqui!
Em um instante, ela assumiu a forma que tinha quando ele a viu sobre a banheira, aquela capa desapareceu, deixando-a nua, seu corpo estava profanado, seus cabelos loiros desgrenhados e emaranhados com sangue.
De repente, seus olhos saltaram para um canto distante e seus lábios manchados começaram a tremer.
– Não!
Ela colocou as mãos para cima como se quisesse afastar golpes, curvando-se para se afastar deles...
Dessa maneira, ela se foi. E Devina, a bela e diabólica Devina, entrou sob a luz das velas.
Jim perdeu essa.
Parou na metade.
Perdeu como um filho da mãe.
Quando ele xingou a assassina sangrenta, era tudo sobre a menina. A moça inocente que tinha sido tirada de sua família por um demônio, puxada para um buraco e aprisionada ali... e obrigada a ver o que restou de um homem torturado.
A raiva era uma bomba nuclear que explodia dentro dele...
A luz branca entornou de suas órbitas, explodindo na sala, iluminando as brilhantes paredes pretas que se estendiam para cima em direção ao infinito. A liberação da luz consumiu sua forma física, libertando-o das amarras de Devina, levando-o a percorrer o espaço em uma rajada de moléculas soltas que sopraram as velas e derrubaram seus suportes.
Aglutinando sua forma intensamente, ele se virou... e foi ao ataque de Devina.
Agora, era ela quem se preparava para o impacto, seu cabelo moreno foi arrancado de seu couro cabeludo com o furacão explosivo que ele produziu, a pele de seu rosto foi de encontro a sua estrutura óssea quando ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre o chão de pedra.
Assim que ele a alcançou, Jim reuniu sua nova forma em uma lança certeira e atirou-se direto em direção ao peito dela.
Jim entrou no corpo dela e lançou a vadia longe, todas as partes dela saíram voando, pedaços de sua pele, emaranhados de entranhas escorregadias e quilos de carne vermelha escura se espalharam pelas paredes de sua masmorra.
O que sobrou foi um buraco negro da mesma massa e energia que o compuseram – ele estava pronto para atacá-la assim.
Só que, evidentemente, ela não estava interessada em uma luta corpo a corpo: sua sombra distorcida saiu da sala e desceu um corredor, iniciando uma fuga.
Mas que... Droga!
Jim correu atrás dela...
E se chocou com o equivalente metafísico de uma casa de tijolos.
O impacto chocante da barreira invisível o enviou para trás e ele assumiu sua forma corpórea mais uma vez ao deslizar em carne viva no chão de pedra.
Ele teve um breve momento para soltar um “mas que inferno!” antes que o sinal de fim de jogo do seu corpo piscasse e ele caísse de costa em exaustão absoluta.
Quando sua raiva passou, nada mais havia nele e um cansaço fatal sangrou de seu coração que batia de maneira estranha e se espalhou por ele como uma erva daninha que se enraíza e floresce. Não mais sendo capaz de erguer a cabeça, ele deixou a coisa descansar na pedra e apenas respirou, mal notando que o ar estava saturado com cheiro de morte recente e com uma pitada acre da fumaça das velas.
– Sissy – ele disse na escuridão. – Estou bem aqui...
Ele não tinha ideia de se ela podia ouvi-lo e não houve resposta. Apenas um som estranho, fundido... sem dúvida, as almas tentando se livrar de sua prisão.
Ele odiava pensar que sua garota estava presa lá.
Odiava o fato de tê-lo visto daquela maneira.
Com esse pensamento, a dor o incomodou como se tivesse sido esfaqueado com uma barra de ferro. Oh, Deus... aquela pobre criança...
Um aumento súbito de emoção veio sobre ele em uma onda: nu, arrasado e imundo, Jim encolheu-se para um lado e chorou sufocado e com grande sofrimento, suas lágrimas quentes e salgadas percorriam a pele de seu rosto arrasado.
Ele nunca se preocupou em se machucar. Nunca. Mas suas falhas... seus fracassos eram insuportáveis. E agora havia duas mulheres que ele não tinha sido capaz de salvar: sua amada mãe e Sissy... Nas duas ocasiões, ele chegou tarde demais no local, nas duas ocasiões, o dano já havia sido feito antes dele chegar.
Com uma precisão horrível, ele viu sua mãe no chão da cozinha da fazenda, nada além de estraçalhada... e Sissy sobre a banheira.
Agora Sissy também, tentando se afastar do demônio.
Era demais para suportar, o peso de suas falhas era grande demais para suportar, quanto mais para continuar a lutar...
O som de seu nome abriu seus olhos e diminuíram os soluços.
Com um esforço enorme, ele virou a cabeça e olhou para cima.
Muito, muito, muito acima, a uma galáxia de distância de onde ele estava, um pontinho de luz se recolhia e ficava mais forte, começando de novo como se fosse a cintilação minúscula de um pisca-pisca na árvore de Natal... e, então, se intensificou para 25, depois 60 e, então, parecia uma lâmpada de 100 watts.
A iluminação caía sobre ele com a velocidade e a eficiência de uma pluma através do fino ar... dentes de leão soprados pela boca de uma criança... flores do campo sob uma brisa suave...
Levou um tempo bastante longo para que sua mente abrangesse a desconexão entre seu desespero épico e o delicado caminho de luz. Fechando os olhos, ele parou de assistir e se entregou ao estremecer aleatório de seu corpo espancado.
– Jim.
Uma voz masculina. Sobre ele.
Jim abriu as pálpebras para ver que a luz havia se tornado um homem de cabelos escuros com asas douradas magníficas.
Colin.
O arcanjo número dois.
– Ei, companheiro – o cara disse ao se ajoelhar. – Eu vim para te tirar daqui.
De algum lugar, só Deus sabe de onde, Jim convocou energia suficiente para falar.
– Leve-a no meu lugar. Deixe-me aqui... leve-a no meu lugar. Sissy. A menina...
– Isso eu não posso fazer. Eu não deveria estar aqui agora. – O anjo se inclinou e reuniu a forma arrasada de Jim em seus braços. – Mas você vai precisar de um tempo para se recuperar antes que possa sequer se sentar, quanto mais sair daqui por si mesmo. E a guerra continua sem você.
Nenhum argumento para seu nível de energia, mas Deus, ele gostaria que Sissy estivesse um milhão de quilômetros longe dali.
– Deixe-me – ele gemeu.
– Não nessa vida. Você quer Sissy liberta? Derrote Devina. É assim que vai libertar sua garota desse pesadelo.
Quando começaram a levitar, a cabeça de Jim pendeu para um lado e ele os viu subir, subir, afastando-se metros e metros – inferno, eram quilômetros – das paredes negras. Ao longo do caminho, a forma brilhante de Colin iluminava o deslocamento, agitando a superfície, e rostos se sobressaíam na opacidade, através da barreira líquida, como se aqueles que estavam presos tentassem vê-los, pegá-los, juntar-se a eles na fuga. De todas as direções, mãos se estendiam. Contorcendo-se em formas grotescas como se a barreira maleável da prisão provasse ser rígida demais para ser trespassada.
Onde estava a garota dele? Sua bela e inocente garota que...
O cérebro de Jim estava esgotado, a trama de seus pensamentos se desembaraçava, a consciência começou a desistir daquele fantasma e se aprofundou no berço rígido das paredes de seu crânio.
Enquanto desmaiava, sua última missiva mental foi uma oração: que Sissy se lembrasse do Cachorro e se agarrasse a essa esperança até que Jim pudesse fazer disso realidade.
CAPÍTULO 33
Na adega, com a imagem de Jim Heron exposta no dossiê, Isaac estava certo que os dois Childes tinham perdido a cabeça.
– Ele não está morto. – Isaac lançou olhares para pai e filha. – Eu não tenho certeza do que você viu ou o que ouviu...
– Ele esteve no meu quarto. – Grier balançou a cabeça. – Foi assim que fiquei sabendo que você estava tendo o pesadelo. Ele apontou o caminho e, em seguida, eu fui até você. Pensei que era um sonho, mas por que identifiquei o rosto dele na foto de maneira tão clara?
– Porque você o viu. Ontem à noite, na luta. Ele estava comigo.
– Não, ele não estava.
Certo. O cara esteve bem na frente dela.
– Você disse que era um anjo.
– Bem, parece que ele tinha asas.
Teoricamente, era possível que Heron tivesse feito uma visita a ela – mas com o alarme de segurança, era possível concluir que ele deve ter ficado distante das portas francesas da sacada. Ao acordar e ficar meio desorientada, ela concluiu que Jim estava do lado de dentro. E isso foi apenas uma coincidência com o pesadelo... Assim como as asas? Jim Heron nunca foi santo, muito menos um anjo. Seja lá o que ela tinha visto, devem ter sido reflexos dos vidros. Tinha que ser.
O pai de Grier falou.
– Estou dizendo, ele está morto. Eu recebo um alerta de rastreadores na internet com os nomes dos agentes que conheço... e ele levou um tiro em Caldwell, Nova York, há quatro dias.
Isaac revirou os olhos.
– Não acredite em tudo que lê. Eu falei com o cara no jardim dos fundos ao anoitecer. Frente a frente. Confie em mim, ele está vivo e precisamos dele. – Isaac ficou em pé. – Os amigos dele estão vigiando a casa enquanto conversamos e, pessoalmente, acho que Heron declarou uma guerra velada a Matthias, então, tenho plena certeza de que podemos chamá-lo para trabalhar conosco, concluindo que eles ainda não o mataram. Acredito que o status dele é de desaparecido em ação, no momento.
– Espero que possa agregá-los, então, pois quanto mais pessoas para acompanhá-lo, melhor. – Childe bateu uma de suas mãos sobre os dossiês. – Deve revisar tudo isso essa noite, preencher as lacunas, tentar encaixar o que sabe... mesmo que não queira entregar seus companheiros soldados, isso pode ajudar nas suas lembranças. Vou subir até o corredor do banheiro e usar meu telefone de segurança para fazer algumas ligações e estabelecer as coisas o mais rápido que puder.
– Entendido. Mas eu gostaria que o senhor ficasse longe das janelas e não saísse da casa.
– Vou ser cuidadoso. – Childe lançou um olhar à sua filha. – Prometo.
Quando o pai de Grier desapareceu escada acima, Isaac verificou o transmissor de alerta. O aparelho ainda mostrava que o sinal tinha sido enviado, mas ainda não tinha recebido resposta. O que significava que ele ou estava muito abaixo do solo naquela adega para receber isso... ou Matthias estava dando um tempinho para entrar em contato.
Ele olhou para Grier.
– É melhor eu ficar lá em cima por um tempo no caso deles tentarem entrar em contato comigo.
– O que você vai fazer? Se eles quiserem se encontrar com você imediatamente?
– Tenho uma margem de tempo até eu me entregar. Mas seu pai precisa fazer alguns milagres rapidamente. – E, por favor, Deus, faça com que Jim Heron esteja bem... e que apareça logo.
Ela acariciou os dossiês com sua mão elegante.
– Ele é bom com milagres. Na verdade, é a especialidade dele. Você deveria vê-lo negociando. – Seus olhos baixaram até a pasta. – Vou ficar aqui. Quero ver se reconheço algum desses homens. Havia muitos que batiam na porta durante a minha infância e eu sempre me perguntei quem eles eram.
Quando ela ficou em silêncio, ele deu um passo adiante. E depois outro. Em volta da mesa, até que estivesse ao lado dela.
Quando ela levantou o olhar para ele, Isaac colocou para trás com cuidado uma mecha de cabelo que estava em seu rosto.
– Não vou perguntar se está bem, pois como poderia, não é?
– Você já sentiu... como se não reconhecesse sua própria vida?
– Sim. E isso foi o que me levou a mudar.
Bem, aquele tinha sido o primeiro passo. Ele estava começando a acreditar que ela era o segundo. E com o pai dela e Jim Heron... três era o número mágico. Se Deus quisesse.
– Sabe de uma coisa? – ela disse. – Estou realmente feliz em ter te conhecido.
Isaac recuou.
– Pelo amor de Deus, como pode dizer isso?
– Você foi a chave que destrancou as mentiras. – Ela voltou a encarar a foto de Jim Heron. – Acho que sem você nada disso seria esclarecido. Apenas algo que pudesse estilhaçar assim...
Quando ela não completou, ele deu um passo para trás.
– Sim. Esse sou eu.
Ela assentiu de maneira distraída, virou a página e se perdeu nos rostos dos homens que eram exatamente como ele... homens que haviam arruinado a família dela.
Estilhaçado.
Será que os agentes que tinham matado seu irmão estavam ali? Com algumas notas?
De alguma maneira, ele duvidava que o pai os colocasse ali.
– Posso lhe servir um pouco de vinho? – ele perguntou, antes de sair.
Grier sorriu um pouco.
– Estou cercada disso.
– Verdade. – Ele deveria ter oferecido café. Água. Cerveja. Uma troca de óleo. Qualquer coisa que ele pudesse fazer por ela ou dar a ela para acalmá-la.
Bem, agora, com essa brecha, havia algo melhor que poderia fazer. Ele poderia deixá-la.
– Vou estar lá em cima. – Quando ele alcançou a porta, olhou para trás. Ela estava enterrada nos dossiês, sobrancelhas tensas, braços no colo ao inclinar-se sobre a mesa.
Sim, deixá-la tornaria as coisas muito melhor.
Ele se virou e subiu as escadas para a cozinha de dois em dois degraus. Parando na base da escada, ele ouviu alguma coisa. Não um som. O que fazia sentido uma vez que o pai dela tinha se trancado em um banheiro protegido.
Droga, ele não acreditava que estava prestes a denunciar Matthias. Mas, às vezes, a morte natural era boa demais para alguém. Melhor que apodrecer atrás das grades ou ficar tão aceso quanto a Times Square em uma cadeira elétrica.
Era quase como se ele estivesse destinado a encontrar Grier e seu pai nesse exato momento de sua vida – os dois tinham sido predestinados a lhe mostrar algo muito mais honroso do que havia planejado fazer.
Contudo, Jim Heron se mostraria importante também.
Apalpando uma de suas armas, saiu para o jardim pela porta dos fundos.
Evitando a luz que era sensível ao movimento, ele aguardou nas sombras sem fazer barulhos e, claro, um dos amigos de Jim se aproximou um momento depois. No instante em que colocou os olhos no cara, estava claro que o clima permanecia ruim: o cara com a trança tinha os lábios apertados e o olhar rígido como de um homem que ainda não sabia onde um dos membros de seu time estava.
– Jim ainda não pôde vir? – Isaac perguntou. Mesmo sabendo que a resposta era um claro “não”, dado àquela expressão.
– Espero que possa vê-lo pela manhã.
Isaac olhou para seu relógio.
– Não sei se tenho todo esse tempo.
– Arranje algum.
Fácil para ele dizer.
– Vai me dizer se ele aparecer?
Quando o cara assentiu, Isaac ficou muito preocupado.
– Ele está bem? – Quando o cara balançou a cabeça devagar, Isaac soltou um palavrão.
– Você vai me dizer o que está acontecendo? – Silêncio. – Sabe? Para sua informação, as pessoas pensam que ele morreu.
– Tudo que posso dizer é que... neste momento, ele gostaria de estar morto.
Adrian observou enquanto Eddie conversava com Rothe perto da porta dos fundos e mesmo Ad sendo intrometido como ninguém, ele não se importava com o que estavam dizendo.
Nigel. Aquele filho da mãe do Nigel.
Pensava que era o “Sr. Acima de Tudo Quanto é Mais Sagrado”.
Que estava mais que disposto a deixar seu maior trunfo ser usado e abusado pelo inimigo apenas porque era bichinha demais para arregaçar as mangas e nocautear Devina.
Enquanto isso, Jim era um equipamento de ginástica para um bando de babacas pervertidos.
Cara, ele apenas veio com aquela história de não poder fazer nada. Se Ad tivesse um de seus amigos capturado e ele pudesse libertá-lo? Não importava o que ele tivesse que fazer, o sacrifício que isso fosse requerer, por onde tivesse que passar: ele traria o pobre filho da mãe de volta. E onde estava seu chefe agora? Jantando.
Aquilo fazia com que ele desejasse enfiar a sobremesa no traseiro de Nigel.
Adrian esfregou o rosto com tanta força que quase arrancou o nariz. O problema era: a pequena oficina de Devina não era acessível a ele ou a Eddie, a menos que saltassem através de seu espelho – caso contrário, ela tinha que levá-lo até lá... e ela o liberava dali apenas quando estivesse bem satisfeita.
Nunca antes.
Foi por isso que eles foram até Nigel. Havia rumores de que arcanjos poderiam descer ao inferno sob certas circunstâncias – ninguém sabia exatamente o que aquelas mocinhas tinham que fazer ou como funcionava. Contudo, a moral da história era que aqueles quatro pesos-pena eram sua única esperança...
Como se seu nome tivesse sido pronunciado em vão, Colin apareceu do nada, os cabelos escuros do arcanjo surgiram em frente ao rosto de Adrian.
– Droga! – Ad falou entre dentes ao pular para trás e segurar-se em um arbusto – que rapidamente se quebrou ao meio com seu corpo pesado.
Ele aterrissou como um saco de areia, mas não ficou parado. Levantando-se, assumiu uma postura que exigia uma explicação: aqueles rapazes não costumavam aparecer à toa na Terra.
– O que você está...
– Eu o tirei de lá.
Ad piscou, de repente ele não entendia o idioma. Espere um minuto. Ele tinha acabado de ouvir que...
– Jim? Você está falando de Jim?
– Está livre.
– Mas Nigel disse...
– Não estou discutindo isso. Eu tinha a opção de tirar alguém do covil de Devina e coloquei o pobre rapaz no hotel em que estão hospedados... ele precisa de cuidados.
Eddie se aproximou.
– Você o tirou de lá? Mas eu pensei que Nigel...
– Eu tenho que ir. – Colin deu um passo para trás e começou a desaparecer. – Vão ajudá-lo. Ele precisa.
– Obrigado. – Ad respirou, aliviado e enjoado: a recuperação de alguém que passou por uma das sessões de Devina era terrível. Principalmente porque as memórias daqueles momentos eram muito vívidas.
Colin balançou a cabeça ao desaparecer, sua voz era demorada: – Isso simplesmente não foi certo.
– Estou indo para o hotel – Adrian disse, desfraldando suas asas para se elevar no ar. – Fique de olho em Isaac...
Eddie segurou o braço dele com força.
– Deixe-me cuidar de Jim.
– Não.
– Essa não é bem sua área, Adrian. – O aperto de Eddie o manteve no chão, aquela grande mão espremia seus ossos e músculos. – E sabe disso.
– Pro inferno que não é.
Libertando-se, ele deu três saltos e saiu voando pelo ar, aprofundando-se na noite e impulsionando-se para oeste. O voo de volta para onde estavam hospedados foi irregular e acidentando – mas não por causa do vento. Era mais porque Eddie tinha razão, o filho da mãe.
Quando Ad chegou ao hotel, ele queria ir até os quartos atravessando as paredes, mas decidiu não arriscar: uma vez que o papel de bala interior que o envolvia estava solto e se debatendo, ele caiu no gramado e seguiu pela recepção. Ele tinha a sensação de que estava distraído e enjoado demais para atravessar madeira e concreto com sucesso.
O problema era: ele sabia exatamente como Jim estava.
Ao alcançar a recepção, uma mulher simpática atrás da mesa o cumprimentou: – Boa-noite, senhor. – Mas ele apenas acenou e iniciou uma corrida. Não houve espera pelo elevador, um casal estava fazendo check-in com seus filhos e tinham um carrinho cheio de bagagens. Mas mesmo com aquela situação tão conveniente, ele não era capaz de esperar tanto tempo para que as portas se abrissem para ele.
Pelas escadas. De dois em dois degraus. Algumas vezes três.
Quando chegou ao último andar, seu coração estava a mil por hora e não apenas porque tinha se exercitado. Ele não tinha a chave do quarto de Jim, então, pegou a sua mesmo e deslizou no vão da fechadura.
Ele abriu o caminho como uma explosão.
– Jim? Jim?
O brilho do banheiro iluminava a cama desarrumada onde ele e Eddie tinham estado com aquela garota na noite anterior, as roupas também estavam espalhadas por toda parte.
A porta que levava ao quarto de Jim estava meio aberta, o quarto estava escuro.
– Jim...?
Ele sabia que o anjo estava lá. Ele podia sentir o cheiro da fumaça de vela, do sangue fresco e de... outras coisas.
A pressa que havia no rapaz evaporou quando a realidade do que estava prestes a ver agarrou seu peito e o sufocou. Mas ele não ia voltar atrás. Ele era um idiota de primeira ordem, sempre foi. Contudo, não era um maricas para fugir de situações difíceis.
Adrian passou pela porta entre os dois quartos e se inclinou.
– Jim.
A luz no banheiro atrás dele cortava um caminho ao longo da escuridão e parava aos pés da cama do anjo como se fosse educada demais para mostrar sua condição.
Depois que Adrian atravessou o batente, precisou de um momento para que seus olhos se ajustassem.
Com um sussurro, ele prometeu: – Eu vou matar aquela vadia...
Jim estava deitado de lado, enrolado em si mesmo, como se tentasse conservar seu próprio calor, e tremia por completo. Um cobertor foi puxado – sem dúvida, pelo arcanjo – sobre seu corpo grande e maltratado e o Cachorro estava bem próximo de seu rosto, ajeitado em formato de bola, sem se mover.
Quando Adrian se aproximou, o animal se moveu um pouco, mas não levantou a cabeça, permanecendo nariz a nariz com Jim.
O anjo parecia estar respirando, seu peito subia e descia, um chiado suave saía por sua boca machucada. Seu cabelo estava embaraçado e havia sangue em seu rosto, feições que, há não muito tempo eram suas, desapareceram graças às feridas enormes.
Adrian sentou-se lentamente.
– Jim?
Sem resposta, então, ele tentou repetir o nome de guerra mais algumas vezes. Em dado momento, as pálpebras de Jim se ergueram.
– Ei... – Adrian sussurrou.
Ele gemeu e, em seguida, seus olhos se fecharam e o corpo estremeceu sob o cobertor como se estivesse tendo um ataque.
Se aquilo era algo parecido com o que Adrian passou – e dada a forma como o cara aparentava, era quase idêntico –, o que Jim realmente queria era uma banheira de água quente seguida por uma ducha. Mas era cedo demais para isso. Medicar primeiro – havia muitos ossos quebrados e contusões para tratar – o que era o peso da dupla natureza de um anjo: ser real e irreal ao mesmo tempo significava que pelo menos metade de você poderia se ferrar muito e a droga não se revertia imediatamente.
Adrian se levantou e foi até o aquecedor que estava debaixo da janela. Girando o botão para o modo “sauna”, ele tirou a jaqueta de couro e fechou a porta que dava para o outro quarto, trancando-os ali. Então, ele sentou na cama, se estendeu sobre o fino cobertor e colocou seu peito nas costa do anjo para aquecê-lo.
Enquanto estava deitado, ouvindo um zumbido que vinha do aquecedor, sentia os tremores ao longo do tronco e dos outros membros de Jim. Parte disso era o processo de cura, que de algumas maneiras era mais doloroso que o surgimento das lesões. E outra parte disso era o frio do choque traumático.
E outra parte eram as memórias, sem dúvida.
Ele queria colocar um braço em volta do cara, mas isso faria com que Jim se sentisse muito desconfortável: quando esteve nessa condição, ele deitou nu, sem sequer um lençol sobre sua pele arranhada.
Depois de um tempo, o calor crescente que se espalhou do aquecedor os alcançou, fazendo arcos e descendo pelo ar. Jim, obviamente, sentiu o fluxo, pois respirou longamente e exalou em um vago suspiro.
Deitando ao lado do outro anjo, Adrian já tinha esperado uma vez que seria assim que Jim acabaria e foi o que aconteceu mesmo, até certo ponto. Ele sabia que Devina queria o cara... desde a primeira missão, desde àquela primeira noite no clube em Caldwell. E ele serviu Jim de bandeja para ela.
Com direito a tudo, até a uma etiqueta indicando “DE/PARA”.
Difícil não se sentir responsável por isso.
Difícil mesmo.
– Vou cuidar de você, Jim – ele disse com voz rouca. – Estou aqui por você, cara.
CAPÍTULO 34
Na adega, Grier passava os dossiês um por um enquanto esperava... e esperava... e esperava mais um pouco...
Finalmente.
– Por que você não me disse? – ela perguntou, sem olhar para trás.
Daniel levou um longo tempo para responder, mas ele não desapareceu: sempre que ele estava por perto, ela conseguia sentir uma pequena brisa e enquanto aquilo acariciava sua nuca, ela sabia que ele ainda estava com ela.
Pensei que ia odiá-lo. E, então, você e ele não teriam mais ninguém.
– Então, você sabia o que aconteceu?
Daniel andou em volta da mesa, com uma de suas mãos plantada no quadril e a outra enterrada em seu cabelo de maneira que os cachos formassem um halo.
Eu estava drogado quando tudo aconteceu... então, achei tudo muito engraçado, papai entrando com tudo com três caras de preto. Achei que aquilo era sua versão de uma intervenção para me ajudar – uma história em quadrinhos barra pesada. Mas quando eles colocaram a agulha no meu braço ele começou a gritar e foi aí que percebi... aquilo não era engraçado.
Os olhos de Daniel encontraram os dela.
Eu nunca o vi daquela maneira antes. Para mim, ele era sempre tão distante e sem emoção. Foi... a reação que procurei durante toda minha vida, o amor visceral pelo qual buscava. Entenda, eu era como a mamãe, não como você e ele. Eu queria mais do que aquela desaprovação fria – e consegui, só que já era tarde demais. Ele deu de ombros. Olhando para trás, vejo que eu era carente demais e ele não sabia o que fazer com um filho que não tinha sido feito para usar um uniforme militar. Água e óleo. Eu deveria ter lidado com isso de maneira diferente, mas não o fiz.
– E ele também não.
Não é culpa de ninguém. Foi... o que foi.
Grier inclinou-se em sua cadeira, pensando na maneira como seus familiares tinham se alinhado na vida: ela e seu pai de um lado; Daniel e sua mãe de outro.
Não foi culpa dele – seu irmão disse com um tom severo que ela nunca tinha ouvido dele antes. A forma como acabei minha vida... ele gritava, Grier... e, então, eu estava morrendo, e o ouvi dizendo várias vezes: “Danny... oh, Danny, meu garoto... meu garoto...”
Quando a voz de Daniel se quebrantou, ela foi compelida a se levantar e se aproximar dele. Antes que percebesse o que estava fazendo ela envolveu os braços em volta...
De si mesma.
Por favor, não me odeie – ele disse do outro lado, tendo mudado de lugar tão rápido quanto um piscar de olhos.
– Por favor, não fuja – ela respondeu.
Desculpe... Tenho que ir...
Ele desapareceu diante dela como se não pudesse mais conter suas emoções, seu desespero permaneceu no rastro frio que ele deixou para trás.
Ela ficou em pé por um tempo, olhando para o espaço vazio que ele tinha acabado de ocupar. Ela e seu pai eram do mesmo tipo e fizeram um acordo intelectual onde trancavam os outros do lado de fora, não foi isso? Sua mãe e irmão tinham seus vícios enquanto ela e seu pai estavam em sintonia com a lei, suas carreiras e suas paixões externas.
Ela sabia disso de alguma maneira... e talvez aquilo tenha feito parte de sua corrida para salvar Daniel. O vício de seu irmão e seus esforços para tirá-lo disso tinha sido a ligação que não tiveram durante a infância: ela sempre se culpava... e, por um breve momento, naquela noite, ela culpou seu pai.
Agora... ela tinha raiva do homem com o tapa-olho. Uma raiva terrível. Se Daniel estivesse vivo, talvez eles tivessem resolvido tudo isso. Os três perdoariam um ao outro dos erros do passado. E se dirigiriam a... a algo que sua família desfrutava apenas superficialmente. Afinal, privilégios, dinheiro e educação poderiam cobrir uma infinidade de problemas... e não garantiam que a proximidade vista em um cartão de Natal fosse realmente mais que uma mera pose feita uma vez por ano para um fotógrafo.
Balançando a cabeça, ela voltou para sua cadeira e encarou os dossiês.
Isaac ia igualar o placar da família, ela pensou. Por ter revelado o bastardo maníaco que assassinou seu irmão e não fez nada além de arruinar seu pai.
Folheando as fotografias, ela reconhecia cada homem, pois tinha analisado cada página repetidas vezes enquanto esperava pela aparição de Daniel. Havia uma centena de fotos ou mais, mas havia um total de uns quarenta homens, capturados em vários ângulos, ilustrando as páginas produzidas ao longo de anos. Dentre os muitos rostos, havia cinco que ela reconheceu... ou pelo menos achou que os tinha visto antes. Difícil saber... de alguma maneira, eles pareciam tão semelhantes.
A fotografia de Isaac estava lá e ela voltou a revê-la. A foto era clara, capturada bem em cheio. Ele estava olhando diretamente para a câmera, mas ela tinha a impressão que ele não sabia que estava sendo fotografado.
Sério. Deus, ele parecia tão sério. Como se estivesse preparado para matar.
A data de nascimento sob seu nome confirmava a idade que ela já sabia e havia algumas anotações sobre países estrangeiros onde ele tinha estado. E, em seguida, havia uma linha que ela tentava entender: Correção moral necessária. Ela tinha visto a frase apenas em dois outros perfis.
– O que você está segurando?
Grier pulou ao som da voz de Isaac, a cadeira gritou ao arranhar o chão. Agarrando seu peito, ela disse: – Jesus... como você faz isso?
Pois, considerando tudo, ela preferia não ser pega encarando a foto dele.
– Desculpe, só pensei que gostaria de um café. – Ele se aproximou, apoiou uma caneca e, em seguida, voltou à porta. – Eu deveria ter batido.
Ao fazer uma pausa entre os batentes da porta, vestia apenas o moletom de capuz que usava como travesseiro, seus ombros eram muito largos ao longo da extensão de tecido cinza. E considerando as últimas quarenta e oito horas, ele parecia incrivelmente forte e focado.
Seus olhos se voltaram para o café. Tão pensativa. Muito pensativa mesmo.
– Obrigada... e desculpe. Acho que apenas não estou acostumada com... – um homem como ele.
– Vou anunciar minha presença de agora em diante.
Ela pegou a caneca e tomou um gole. Perfeito: simplesmente com a quantidade certa de açúcar que ela gostava. Ele a observou, ela pensou. Viu o quanto ela adicionou em algum momento, mesmo não estando consciente disso. E ele se lembrou.
– Está olhando para mim? – Quando ela levantou o olhar, ele assentiu com a cabeça em direção aos dossiês. – Para minha foto?
– Ah... sim. – Grier interrompeu a frase. – O que isso significa exatamente?
Ele andou em sua direção e se inclinou. Quando encarou os detalhes descritos sob seu rosto, a tensão nele era palpável, todo seu grande corpo ficou rígido.
– Eles tiveram que me dar um motivo.
– Antes de você matar alguém.
Ele assentiu e começou a andar ao redor, indo em direção às garrafas de vinho. Ele pegou uma, olhou o rótulo, voltou a colocar no lugar... passou uma a uma.
– Que tipo de motivos eles lhe deram? – ela perguntou, bem ciente de que as respostas dele sobre isso significava muito para ela.
Ele fez uma pausa com uma embalagem de Bordeaux nas mãos.
– Do tipo que faz com que isso pareça certo.
– Como o quê?
Seus olhos viraram em direção a ela e Grier fez uma pausa. Eles estavam tão tristes e vazios.
– Diga-me – ela sussurrou.
Ele colocou a garrafa de volta no lugar. Distanciou-se um pouco das prateleiras de madeira.
– Eu só fazia isso com homens. Nenhuma mulher. Havia alguns que conseguiam fazer isso com mulheres, mas eu não. E eu não vou lhe dar exemplos específicos, mas o absurdo de uma filiação política não era suficiente para mim. Matar um monte de gente ou estuprar mulheres ou explodir algumas mer... er... coisas? É uma história bem diferente. E eu precisava visualizar algumas provas com meus próprios olhos... vídeo, fotografia... corpos que foram marcados.
– Você já recusou alguma tarefa?
– Sim.
– Então, você não mataria meu irmão.
– Nunca – ele disse sem hesitar. – E eles nem sequer teriam me pedido. Da maneira como Matthias encarava isso, eu era uma arma que funcionava sob determinadas circunstâncias e ele me tirava do coldre em momentos apropriados. E, você sabe... Eu percebi que tinha que sair das operações extraoficiais quando me dei conta de que não era diferente das outras pessoas que eu matava. Todos eles sentiam como se as atrocidades que cometiam eram justificáveis. Bem, então, aquilo fazia de nós espelhos que refletiam um ao outro. Claro, de um ponto de vista objetivo, qualquer um concordaria comigo sobre isso, mas não era o suficiente.
Grier exalou longamente. Ele era aquilo em que sempre acreditou, pensou ela.
– Como assim? – ela disse.
De repente, ela achou que tinha pensado em voz alta.
– Eu sempre disse a Daniel... – Ela fez uma pausa, perguntando-se se estava tudo claro dentro dela para continuar. – Eu dizia que nunca era tarde demais. Que as coisas que ele tinha feito no passado não definiam o futuro. Acho que no final, ele desistiu de si mesmo. Ele roubava do meu pai, de mim e de seus amigos. Ele foi preso assaltando uma casa e também por roubar um automóvel, em seguida, ao tentar saquear uma loja de bebidas. Foi assim que me envolvi com as causas voluntárias. Eu entrava e saía de várias cadeias nos últimos cinco anos antes de sua morte. Eu sentia que estava ajudando... mas talvez eu pudesse fazer isso com outra pessoa, sabe? E eu fiz... Eu ajudei outras pessoas.
– Grier...
Ela fez um gesto com a mão quando sua voz ficou embargada. Ela terminou de falar chorando. Não passaria disso e nada mais poderia ser mudado.
– Você quer continuar com isso?
Quando ela indicou os dossiês, ele deu de ombros e foi até a porta, ficando exposto apenas por um pequeno vão contra o batente.
– Eu só vim mesmo para ver como você estava.
No ar rarefeito, seus olhos de pálpebras baixas a aqueceram de dentro para fora. Ele era uma grande contradição... entre seu trabalho onde foi treinado para matar e seu coração de escoteiro.
Ela deu uma olhada para a foto dele.
– Parece que está procurando alguma coisa aqui.
– Na verdade, eu estava prestes a embarcar em um avião. Tive a sensação de que alguém estava olhando, mas não conseguia dizer de onde vinha esse olhar. Estava esperando em uma base aérea para viajar ao exterior. – Ele limpou a garganta como se estivesse varrendo a memória de sua mente. – Seu pai dormiu lá em cima. Ele passou uma duas horas no telefone, até onde vi.
– Já passou tanto tempo? – Ela olhou para seu relógio e ao movimentar o pulso, tomou consciência de cada articulação de seu corpo. Esticando os braços sobre a cabeça, sua coluna estalou.
– Como as coisas estão indo?
– Eu não sei. Antes de deitar, ele me disse que se conseguirmos fazer tudo até amanhã à noite, estaremos bem. Ele fez múltiplos contatos desde a CIA, Departamento de Segurança Nacional e gabinete presidencial e ficaremos bem aqui para que eu não precise me deslocar. A peça que falta é Jim Heron – nós ainda estamos esperando que ele volte – embora, se for preciso, seguiremos sem ele.
– Você recebeu alguma... resposta? Deles?
– Não.
O medo passou por suas costelas e atingiu seu coração como uma carga de bateria.
– Você pode ficar até amanhã à noite?
– Se for para ser dessa maneira, sim.
Ele parecia tão seguro e ela precisava acreditar naquela confiança: seria uma tragédia sem limites para ele ser interrompido agora, quando estava tão perto da liberdade que desejava.
Estranho que alguém que tinha conhecido há apenas alguns dias tivesse se tornado tão importante para ela.
– Eu estou orgulhosa de você – disse ela, deslizando o dedo sobre sua fotografia.
– Isso significa muito para mim. – Pausa. – E obrigado por me mostrar o caminho. Eu não seria capaz de fazer isso sem você.
– Sem meu pai, você quer dizer – ela contradisse suavemente. – Ele tem os contatos.
– Não. Você é a única.
Ela franziu a testa, pensando que era um jeito engraçado de responder.
– Quero que responda algo para mim.
– Diga.
Seus olhos encontraram os dele.
– Quais são as suas chances. De fato.
– De sair dessa com vida?
– Sim. – Quando ele apenas balançou a cabeça, ela franziu a testa para ele. – Lembre-se, acabamos com toda aquela coisa de “proteger a garota frágil”.
– Meio a meio.
Bem, não é que aquilo deu um nó em sua garganta?
– Isso é ruim, hum?
– Quer alguma coisa para comer com o café? Não sou nenhum chefe de cozinha, mas vi algumas sobras na geladeira e posso colocar no micro-ondas. – Quando ela recusou com a cabeça, ele insistiu. – Você tem que comer.
– Eu prefiro fazer sexo com você – ela soltou.
Isaac tossiu. Na verdade, tossia como se alguém tivesse dado um soco em seu peito.
– Desculpe ser tão direta. – Ela deu de ombros. – Mas convenções sociais estão bem longe da minha lista de prioridades agora. E eu tenho a sensação de que não vou te ver depois de amanhã à noite, tanto por que você pode ser tomado sob custódia federal, quanto por... – Ela respirou fundo. – Quero um bom pedaço de você antes que se vá. Algo para lembrar-me de você em minha pele, não apenas em meu cérebro. Lá em cima foi tudo tão rápido e furioso... Eu quero prestar atenção e me lembrar.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
– Achei que você gostaria de se esquecer disso o máximo possível.
– Não de você... eu não quero me esquecer de você. – O canto de sua boca se ergueu um pouco. – Embora eu não acredite ser possível.
Quando ele ficou onde estava, ela empurrou a cadeira para trás e se levantou. A distância entre eles era de três passos e quando ela veio em direção a ele, Isaac se endireitou e puxou seu blusão para baixo como se estivesse se arrumando.
Grier ergueu-se na ponta dos pés e tocou o rosto dele, colocando a palma de suas mãos na sua barba por fazer.
– Eu nunca vou esquecê-lo.
Quando ele lambeu os lábios, como se estivesse com fome daquilo que exatamente ela queria, Grier pegou a mão dele e o levou para o local mais fundo da adega, ao puxá-lo para dentro, os fechou ali.
Ao contrário da primeira vez, quando ela estava ferida e procurava apenas mais do ciclone, agora era apenas ele, o homem, que o impulsionava – não seu zumbido interno.
Ele estava todo ali.
Quando ela se inclinou para beijá-lo, ele colocou suas mãos grandes em seus pulsos e os segurou delicadamente.
– Isso não ajudou lá em cima.
– Sim. Ajudou. Você apenas não acreditou em mim.
– Grier... – O nome dela soou com uma combinação de confusão e desespero: pois as cinco letras foram pronunciadas, ao invés das três habitualmente ouvidas.
– Eu não quero mais falar – ela murmurou, aproximando-se de sua boca.
– Tem certeza?
Quando ela assentiu, ele se inclinou e apertou os lábios contra os dela, puxando-a para mais perto dele.
Ele estava completamente excitado, mais que pronto para ela e, ainda assim, ele recuou.
Antes que ela pudesse protestar, ouviu o clique da fechadura dando a volta e, em seguida, aquelas mãos quentes deslizaram sob sua camisa e em volta de sua caixa torácica, indo até o fim de suas costas. Ao sentir uma pressão suave e gentil, seus pés saíram do chão e ela foi carregada até a mesa.
Afastando os dossiês para um lado, Isaac a deitou, as palmas de suas mãos se movimentavam sobre seus seios enquanto ele se inclinava sobre ela e mantinha suas bocas unidas. Suas calças de ioga estavam fora de suas pernas um momento depois, mas, ao invés de jogá-las, ele as colocou sobre a cadeira onde ela estava sentada. Esperto. Ela poderia ter que se vestir rapidamente.
Um impulso sutil e seus quadris estavam na beirada da mesa... e, em seguida, ele separou o beijo deles e aproximou-se sobre os joelhos.
Se ela achava que já tinha visto os olhos dele queimarem antes, aquilo era nada comparado ao que estavam fazendo agora. Um local de baixa temperatura nunca foi tão quente.
Quando ela se deu conta de onde ele estava se dirigindo, ela se sentou.
– Mas eu quero que seja bom para nós dois...
– Você disse que queria se lembrar de algo. – As mãos dele deslizaram até o topo de suas coxas e as apertaram. – Então, deite de costas e deixe-me fazer meu trabalho. – A língua dele reapareceu – e não é que aquilo a fez aderir ao plano dele?
– Vamos lá, agora – ele murmurou com aquele sotaque sulista. – Deite-se e deixe-me cuidar de você. Prometo ir devagar... bem devagar.
Suas mãos desceram até seus joelhos e abriram suas pernas... e ela se entregou a ele. Seguindo suas instruções ao pé da letra, ela sentiu a rígida mesa contra seus ombros, o ar fresco em suas coxas e um calor selvagem em seu sangue.
Quando ele a encarou através das sobrancelhas, Isaac olhou como se fosse consumi-la.
E ela estava pronta para ser sua refeição.
Abaixando a cabeça, ele foi direto até onde ela necessitava dele, colocando sua boca no sexo dela através da fina calcinha de seda que usava. Uma onda de calor delicioso floresceu e sua mão se esticou, agarrou as calças, as puxou e as colocou na boca para que fosse impedida de gritar.
Se isso já a fazia se sentir tão bem, ela ia fazer barulho: sim, a porta da adega era pesada e seu pai deveria estar dormindo, mas ela não queria correr nenhum risco.
Isaac gemeu contra ela ao se aninhar na seda e, então, ele passou a língua sobre a delicada faixa de tecido que a cobria. Com um palavrão, ela se arqueou de maneira rígida, as unhas arranharam a madeira embaixo dela enquanto as mãos dele mergulharam em suas coxas e os dentes dela mordiam o algodão. E, então, não havia mais nada os separando. Em um momento, sua boca estava sobre a seda, no próximo, ela sentiu um puxão em seus quadris e ouviu o som de algo se rasgando quando a calcinha cedeu...
Oh, Deus... sua língua molhada deslizou direto até seu cerne e se arrastou para cima, partindo-a, deslizando com lambidas seguidas.
Ele foi devagar.
Quando suas grandes mãos se fecharam em sua cintura e a firmaram para baixo, ele produziu um momento doce, a beijando e sugando, aquela língua dele funcionava como mágica que apenas podia ser substituída pela sucção quente e firme de seus lábios. Todo o tempo, ele olhava para ela, olhava seus seios enquanto ela se contorcia sob sua boca.
De repente, como se precisasse tocar aquilo que estava observando, as mãos dele subiram sob a camiseta dela em direção ao que parecia o fascinar. Abrindo o fecho frontal do sutiã, ele tomou posse de seus dois seios, os polegares esfregavam seus mamilos.
Sua respiração bombeava para dentro e para fora através de sua boca aberta e assim que ela estava prestes a chegar ao orgasmo, Isaac recuou e lambeu os lábios brilhantes.
– Venha para mim – disse ele. – Eu quero sentir isso.
E, em seguida, ele estava contra ela mais uma vez, sua língua a penetrava – o que foi o suficiente. A sensação foi liberada, minando para fora de seu sexo e tomando conta de cada centímetro de seu corpo. Quando o turbilhão de faíscas a consumiu, ela estava vagamente consciente de que ele gemia, como se sentisse aquele prazer em primeira mão.
Ele não parou por aí. Fluía em círculos, lambia, chupava... ele continuou abrindo ainda mais as pernas dela, segurando-a no lugar, marcando aquilo na memória dela assim como marcava em seu sexo. Ela nunca iria esquecer...
Um de seus longos dedos, ou talvez dois, penetrou dentro dela e a pressão e o alcance a enviou direto para o topo novamente. Quando outro orgasmo disparou, as mãos dela se fecharam em seu antebraço, suas unhas afundaram em sua carne enquanto sua coluna se contorcia e aquela explosão de prazer a inundava de dentro para fora.
E ele ainda não parou.
Ele era quente, selvagem e implacável.
Ele era o amante que ela nunca, jamais iria esquecer.
Muito menos superar – e isso era o que temia.
Oh, meu bom Jesus...
Isaac olhou por entre as pernas de Grier e quase chegou ao clímax apenas com aquela visão. Ela era uma mulher totalmente desfeita, os restos de sua calcinha branca em volta de seus quadris, sua camisa preta em volta do pescoço, o sutiã pendia para os lados. Seus seios estavam rígidos nas pontas rosadas, seu rosto estava corado e sua barriga se movia em um ritmo de surtos e abrandamentos conforme trabalhava contra ele.
Aquela calcinha na boca dele foi uma das coisas mais sensuais de tudo.
E o gosto dela era ainda mais quente do que isso.
Isaac poderia ficar ali por horas, mas a cada momento ele corria o risco de uma interrupção e ele queria terminar aquilo direito.
Subindo e pairando acima dela, inclinou os joelhos dela até o peito, com isso, seu membro se contorceu até ficar à beira do orgasmo com a visão do sexo dela reluzente todo inchado e aberto para ele. Não houve chances para que as calças fossem forçadas... ele as puxou para baixo o suficiente para que a ereção saltasse... da qual surgiu uma gota na ponta quando ele pensou sobre onde estava indo. Passando a mão sobre sua boca molhada, ele a colocou sobre a cabeça de seu membro, escorregando ainda mais o corpo antes de contorcer a coluna e unir as mãos ao órgão.
Empurrando, ele a observou ao fazer a conexão, olhando-a para acomodar seu membro e ouvindo o gemido dela ao ir mais fundo, atendendo seus desejos.
– Ah, caralh... – O cavalheiro nele engoliu o palavrão. Já o homem das cavernas que havia nele tinha que continuar falando. – Olhe para você... Quero deixar algo para trás... em você.
Ele atirou seus olhos nos dela e começou a se mover, bombando para dentro e para fora, dentro e fora... e, então, ele voltou a olhar para o local onde tinham se unido, o brilho naquilo fez suas bolas ficarem rígidas. Curvando-se para os seios, ele sugou um mamilo e trabalhou nisso com a língua... até que o ritmo abaixo tornasse impossível manter aquela ligação: ele estava falando sério sobre ir devagar, mas a boa intenção não durou muito. O sexo tinha uma dinâmica própria e não passou muito tempo até que a mesa começasse a gemer sob a força de seus golpes e ele teve que abraçar a cintura dela para mantê-la onde ele a queria.
Ao ficar rígida sob ele, Isaac também ficou, tencionando seus molares para não fazer barulho, suas pálpebras se fecharam com força embora quisesse ver o rosto dela ao dar mais uma dose de prazer.
Com seu corpo no dela e a preenchendo por completo... ele estava tão saciado quando um homem no deserto que tinha recebido um gole de água.
Ele não estava nem perto de acabar. Ela queria memórias? Entendido.
Mantendo-os juntos, ele puxou a calça para fora da boca dela, a ergueu e trouxe seus lábios até os dele, beijando-a profundamente enquanto carregava seu peso com facilidade para fora da mesa. Posicionando-a contra a porta lisa, ele agarrou a parte de trás de suas pernas e começou a se mover novamente. Com as mãos emaranhadas em seus cabelos, o calor abrasador e a sensação de urgência tomando conta mais uma vez, o beijo não poderia durar muito – e não durou muito mais que o selar dos lábios. Ele veio rígido dentro dela, promovendo um colapso enquanto seu próprio orgasmo escorria.
O alívio foi um luxo que ele não desfrutou, pois tinha plena consciência de seu peso sobre ela e do fato de que as costas dela estavam contra algo rígido e de que o pai dela estava em casa...
Havia tantas coisas entre eles.
Isaac a soltou lentamente até que seus pés tocassem o chão e, quando ele saiu dela, não gostou do ar frio em seu pênis. O sexo dela era muito melhor... muito, muito melhor.
Quando ele a beijou, a maneira como seus lábios se moviam sobre os dele lhe dizia que em um mundo diferente, em circunstâncias diferentes... este seria, com certeza, um começo para eles – apesar de tudo o que os separava como família, dinheiro e escolaridade.
Mas aquela não era a realidade deles, era?
– Deixe-me arranjar algo para limpar isso – ele disse calmamente enquanto puxava as calças de volta no lugar.
Depois de beijá-la mais uma vez, ele saiu pela porta e quando a fechou lá dentro ele parou e baixou a cabeça.
Ele mentiu para ela.
Suas chances não estavam nem perto de cinquenta por cento: Matthias iria pegá-lo com toda e absoluta certeza. A questão era apenas quanto tempo ele levaria para conversar com os ouvidos certos antes que seu velho chefe surgisse das sombras e o reclamasse. Algo que sempre foi verdade sobre o líder das operações extraoficiais: Matthias nunca desistia. Nunca. E mesmo que o mundo estivesse desmoronando em torno dele, continuaria a buscar sua vingança. De alguma forma, de alguma maneira.
Contudo, isso não ia impedir Isaac de continuar tentando com todas as suas armas.
Muito melhor morrer tentando fazer a coisa certa... e deixar sua mulher pensando algo menos ruim sobre ele.
Muito melhor.
CAPÍTULO 35
Quando o sol da manhã despertou de seu sono nublado e uma auréola de raios foi derramada sobre Caldwell, Nova York, dois garotos, com idades entre doze e nove anos, foram andando para a escola.
E nenhum dos dois estava impressionado com todo o “esplendor primaveril”.
Seja lá o que isso significasse.
A mãe deles repetia sempre algo sobre esplendor primaveril, esplendor primaveril... bah! O que interessava a Joey Mason era a educação física: geralmente ele tinha educação física às segundas feiras, mas hoje haveria uma assembleia especial. Então, não importava o quanto de “esplendor primaveril” houvesse lá fora, ele ainda estava a caminho de um dia na escola com nada de interessante para fazer.
Por outro lado, seu irmão mais novo, Tony, gostava mais de assembleias do que de educação física, então, ele estava empolgado. Mas ele era um nerd que dormia com livros, que outra coisa poderia interessá-lo?
A caminhada de casa para a escola era de uns oito quarteirões e não era nada demais... apenas descer a Rua São Francisco, passando pela igreja e alguns outros pontos. Eles deveriam ficar do lado direito, pois havia um posto de gasolina à esquerda por onde passavam muitos carros. E eles deveriam parar em cada esquina. O que Joey fazia – geralmente enquanto segurava o colarinho de Tony para impedi-lo de atingir um carro em cheio.
Tony sempre andava com um livro aberto. Também comia lendo, ia ao banheiro lendo e se vestia lendo.
Estúpido. Simplesmente estúpido, pois se perde muito quando não se olha em volta.
Como aquele carro legal que estava no caminho. As janelas eram pretas e a pintura também, e havia um número na placa: 010. Era só isso, sem letras. Joey olhou para seu irmão mais novo e percebeu que, com certeza, ele não tinha notado aquilo.
Perdeu mais uma.
A coisa parecia ser da polícia.
Quando chegaram até o carro, pegou o colarinho de seu irmão e o puxou para perto. Tony não questionou a parada – apenas virou outra página. Provavelmente ele pensou que estavam em outra esquina.
Joey se inclinou um pouco para ver o interior, preparando-se para ver alguma coisa relacionada a um uniforme sair e gritar com eles por serem intrometidos. Quando não viu nada e quando nada aconteceu, ele posicionou as mãos em formato de concha e as colocou contra o vidro frio...
Pulou para trás.
– Acho que tem alguém lá dentro.
– Não tem – Tony disse sem levantar a cabeça.
– Tem sim.
– Não tem.
– Tem sim. E como você pode saber que não tem?
– Não tem.
Certo, Tony não sabia do que estava falando e aquela discussão poderia durar para sempre. E, então, ele e seu irmão caçula se atrasariam para as aulas e ficariam de castigo. De novo.
Mas...
Seria tão legal se eles encontrassem um cadáver – bem em frente à funerária!
Jogando a mochila, Joey distanciou seu irmão do carro, levantando-o e redirecionando seus pés.
– Isso é perigoso. Eu não quero que você se machuque.
Isso finalmente fez com que Tony levantasse os olhos do livro.
– Tem mesmo alguém aí dentro?
– Para trás.
Era o tipo de coisa que seu pai teria dito e Joey se sentiu um homem com relação a isso – especialmente quando Tony assentiu e segurou seu livro contra o peito. Mas era assim que deveria ser. Joey faria treze anos em breve e ele era responsável quando não havia ninguém por perto. E, às vezes, mesmo quando havia outras pessoas no local.
Voltando a colocar as mãos em forma de concha, ele reassumiu sua posição contra o vidro e tentou ver através da escuridão...
– É um pirata.
– Você está mentindo.
– Não, não estou...
Um carro passou devagar em frente deles e uma senhora abriu a janela – era a Sra. Alonzo do outro lado da rua.
– O que vocês estão aprontando, meninos?
Como se tudo o que eles fizessem fosse esse tipo de coisa.
Parte de Joey queria que ela continuasse seu caminho e deixasse que ele resolvesse a situação. Mas a outra parte queria se mostrar.
– Tem um cara morto aqui.
Sentiu-se muito importante, pois ela ficou pálida e parecia nervosa. Cara, se ele soubesse que tudo isso iria acontecer, ele teria saído mais rápido de casa. Aquilo era muito melhor que educação física.
A não ser pelo fato de que Tony teve que se intrometer.
– É um pirata!
De repente, a Sra. Alonzo não parecia tão assustada.
– Um pirata.
Seu irmão era um idiota – e Joey não estava interessado em perder a atenção da plateia. Piratas eram coisas de criança. Um morto no carro? Isso era coisa de adulto e era isso o que ele queria ser.
– Veja por si mesma – ele disse.
A Sra. Alonzo estacionou em frente ao carro completamente preto e saiu, seus saltos altos faziam um som de galope de pônei na rua.
– Certo, já chega, garotos. Entrem e vou levá-los até a escola. Vocês vão se atrasar. – Ela estendeu seu telefone para Joey. – Ligue para sua mãe e diga que estou levando vocês. De novo.
Isso acontecia muito. A Sra. Alonzo era uma executiva cujo escritório ficava não muito longe da escola, eles se atrasavam muitas vezes e ela os levava. Mas essa manhã era diferente.
Ele cruzou os braços sobre o peito.
– Precisa olhar pela janela.
– Joey...
– Por favor. – Outra coisa adulta: por favor e obrigado.
– Tudo bem. Mas entrem no meu carro.
A Sra. Alonzo marchou em direção ao carro enquanto resmungava alguma coisa sobre ficar prestando serviço de táxi. E Tony, que sempre seguia as regras, levou seu livro até o assento da frente da SUV – só que ele ainda estava interessado no que estava acontecendo, pois ele não fechou a porta e o seu exemplar do livro Diário de um Banana: Dias de Cachorro permaneceu contra seu peito.
Joey ficou onde estava.
Normalmente, ele teria se chateado com Tony por pegar o melhor lugar no carro: irmão mais velho andava na frente; bebês menores ficavam atrás. Mas havia coisas mais importantes que isso agora, então, ele ficou onde estava na calçada, o telefone sem utilidade em sua mão.
Ele estava pensando no que tinha visto...
A Sra. Alonzo deu um salto tão grande que quase acabou no meio do trânsito, uma minivan buzinou para ela quando se desviou por pouco de seu corpo.
Ela correu e pegou o telefone, assim como o braço do garoto.
– Entre no carro, Joey.
– O que é isso? Um cara morto? – Meu Deus, e se fosse um pirata? Caramba!
A Sra. Alonzo colocou o telefone no ouvido enquanto o arrastava para o carro.
– Sim, é uma emergência. Há um homem em um caro em frente à casa funerária McCready na Rua São Francisco. Não sei se há algo de errado com ele, mas ele está atrás do volante e parece não se mexer... Estou com uma criancinha comigo e não quero abrir a porta... certo...
Criancinha. Deus, ele odiava aquela coisa de criancinha. Além disso, foi ele quem encontrou o cara. Quantos adultos passaram por ali a pé para ir ao trabalho e não o viram? Ou de bicicleta? Ou correndo?
O cara morto era dele.
– Meu nome é Margarita Alonzo. Sim, ficarei aqui até os paramédicos e a polícia chegarem.
Certo. Esta era, oficialmente, a melhor manhã da história de sua vida, Joey pensou enquanto pulava no banco de trás – o qual tinha a melhor visão ao se virar para ver lá fora.
Quando a Sra. Alonzo entrou e trancou as portas, ele imaginou os três ali até a meia noite, uma da manhã. Talvez precisassem de um McLanche Feliz para o almoço. Ele tinha a grande esperança de que a polícia não corresse...
A chatice de todas as chatices o atingiu quando ele ouviu a senhora Alonzo dizer: – Sara? Estou com seus meninos e eles estão bem. Mas há um pequeno problema e preciso que venha buscá-los.
Joey abaixou a cabeça no braço.
Sabendo da sorte que tinha, sua mãe correria até à cena e chegaria lá antes que ele descobrisse algo sobre o pirata morto no banco da frente daquele carro.
Arruinado. Simplesmente arruinado.
E, provavelmente, eles chegariam à escola a tempo de assistir a assembleia.
Quando Matthias dormiu atrás do volante de seu carro, ele sonhou com a noite em que Jim Heron salvou-lhe a vida várias e várias vezes. Os acontecimentos que o levaram até a bomba e a dolorosa caminhada para recuperar uma saúde relativa foram passados e repassados em sua mente, como se a agulha da sua velha vitrola mental estivesse presa em algum obstáculo no disco.
Matthias tinha atraído Jim Heron àquela cabana abandonada e empoeirada como testemunha, pois não havia mais ninguém nas operações extraoficiais cuja palavra houvesse mais peso e credibilidade. A ideia era que o soldado deixasse seu corpo na areia e fosse para a casa contar aos outros que tinha acontecido um terrível acidente: se alguém apresentasse um relatório como esse, a conclusão seria de que havia ocorrido um abate completo.
Contudo, não é o caso de Jim – ele era um atirador correto em um mundo cheio de curvas e nunca teve problemas em fazer o que tinha que ser feito, certo ou errado.
Prova de que havia um pouco de bondade em Matthias, afinal – pelo menos, ele não ia jogar a culpa de seu suicídio na cabeça de outro cara.
E sim, claro que ele poderia explodir a própria cabeça em um banheiro qualquer, mas mesmo sendo um suicida, ele tinha seu orgulho. Autoinjetar-se uma dose de chumbo seria fraqueza demais – muito melhor espalhar a porcaria gosmenta em algumas paredes de pedra e ser lamentado como o forte lutador que sempre tinha sido.
Contudo, o orgulho teve seu preço: ao invés de deixá-lo na areia, o idiota Heron o salvou – e descobriu seu segredinho. O explosivo foi a dica que faltava. Enquanto Matthias permanecia deitado e sangrava como um porco, Jim encontrou os restos da bomba e reconheceu o que eram. Ou seja, era um dos seus dispositivos.
O filho da mãe pegou os fragmentos, os colocou no bolso e tirou o cinto. Em seguida, fez um torniquete na perna de Matthias, o levantou e começou a puxá-lo. Ele ficou muito chateado e era evidente que as atitudes de seu salvador eram parte punição, parte recompensa – e completamente desgastante. O bastardo andou, andou e andou... até que, alguns momentos depois, Isaac Rothe apareceu dentre as dunas com uma Land Rover.
As exigências de Jim vieram semanas depois, em um hospital na Alemanha. Naquele ponto, a cabeça de Matthias não era nada além de um imenso balão de ar quente de agonia e ele estava tendo que se acostumar com apenas um olho funcionando. Heron se sentou à beira do leito e estabeleceu seus termos: fora. Livre e limpo. Ou pegava o que tinha restado da bomba e contaria a história para a única pessoa que poderia fazer algo sobre isso.
Olá, senhor presidente.
Ironia das ironias, se tivesse sido qualquer outro soldado, qualquer outro ser humano com um coração batendo e um dedo no gatilho, Matthias não teria se preocupado com a ameaça. Mas, Jim Heron – o bom e velho Zacarias – era uma daquelas malditas pessoas em quem as pessoas acreditavam. Fragmentos de bombas poderiam ser fabricados; e a credibilidade de um homem digno? Muito menos discutível.
E ele não poderia continuar sendo chefe se as pessoas achassem que não tinha mais coragem para o trabalho.
Naquele momento, Matthias sentiu como se não houvesse outra escolha e disse ao homem para que seguisse seu caminho.
Depois, a questão suicida veio à tona e ele teve que considerá-la seriamente. Mas, em seguida, seu segundo homem na linha de comando apareceu na hora certa – tinha certeza de que o cara sabia para onde estava indo.
Um homem muito persuasivo aquele. E quando se deu conta, Jim tinha salvado seu corpo, mas aquele segundo homem na linha de comando o trouxe, de alguma maneira, de volta à vida.
Apesar de a renovação ter tido consequências: quase imediatamente, Matthias abriu os olhos – ou um olho, melhor dizendo – para o erro de deixar Heron sair: aquele soldado estava solto pelo mundo com informações demais e a exposição não era aceitável.
O segundo na linha de comando concordou com isso e estava prestes a colocar as rodas de um carro em movimento para provocar um “acidente” quando Jim ligou procurando por informações sobre Marie-Terese Boudreau. Perfeito. Bem a tempo. O plano era que Jim entregasse Isaac em troca da informação que precisava – e, em seguida, seria o assassinato de Jim.
Só que alguém pegou Heron primeiro.
Morto. Jim estava morto. Matthias viu seu corpo com os próprios olhos. E, ainda assim... de alguma maneira ele sentia como se tivesse falado com o cara. Sim, ele sonhou que tinha conversado com Jim Heron...
Matthias acordou com a arma na mão, o gatilho armado e apontando para um homem de uniforme azul marinho – que tinha, dado a barra de ferro em sua mão, acabado de destrancar o carro e abrir a porta.
O paramédico congelou e colocou as mãos para cima.
– Eu só quero te ajudar, cara.
Provavelmente era verdade. Mas para o inferno, o parceiro do cara sem dúvida estava ligando para a polícia agora e, observação, fazer qualquer tipo de contato direto com um civil não era um benefício, segundo a cartilha de Matthias.
Ele baixou a arma.
– Sou um agente federal. – Ele colocou a mão no casaco e decidiu mostrar suas credenciais do FBI; que eram legítimas até certo ponto.
O paramédico se inclinou e olhou a fotografia, um nome qualquer no laminado e um brasão bem verdadeiro.
– Ah... desculpe, senhor. Recebemos um telefonema...
– Está tudo bem. É que passei três dias puxados na fronteira canadense e estou a caminho de Manhattan. Desci a estrada ao norte procurando algo para comer às quatro da manhã, mas não havia nada aberto e eu precisava dormir um pouco. Sabe como é.
– Ah, entendo muito bem.
Conversa fiada, conversa fiada, conversa fiada... blablablá...
Quando a polícia apareceu, eles colocaram seu número de identidade no sistema e, como num passe de mágica, tudo bateu. E sua história sobre estar em uma missão secreta e ter que parar um pouco por causa da exaustão foi engolida como um jantar de Ação de Graças: ele passou de criminoso à celebridade.
Gente estúpida.
Depois que os despistou, afastou-se e pegou o telefone. Havia uma série de mensagens de voz... e um alerta.
Bem, como pode imaginar... parece que Isaac Rothe tinha se entregado e sua localização era a casa de sua adorável e talentosa advogada. Que coisa mais perfeita: embora pudessem pegá-lo em pé na cozinha de Grier Childe se fosse preciso, aquilo faria das coisas muito menos complicadas.
Matthias ligou para seu segundo homem na linha de comando e quando o telefone soou ele pensou em quantas vezes tinha tido aquela conversa: vá. Pegue o bastardo. Acabe com ele. Dê um jeito no corpo.
Ele tinha feito isso tantas vezes.
Quando a dor do lado esquerdo do peito disparou novamente, ele ignorou a sensação...
– Sim? – o segundo na linha de comando respondeu.
– Isaac Rothe está pronto para você.
Não houve sequer uma pausa.
– O endereço é o de Beacon Hill?
– Sim. Vá até lá e pegue-o.
– Estou fora do estado.
– Bem, entre no estado. O mais rápido possível.
– Entendido. Onde você o quer?
Boa pergunta. Isaac não era conhecido por grandes fugas, sua reputação era de um assassino rápido e limpo que o fazia em circunstâncias extraordinárias. Mas você não conseguiria executar tarefas como as dele se não fosse muito imaginativo.
– Mantenha-o naquela casa para mim – Matthias disse de repente.
Quando levou em conta a situação, o instinto lhe disse que uma mudança na estratégia era apropriada. Afinal, seria útil puxar as rédeas de Grier Childe e seu pai – e nada chamava mais a atenção de um civil do que assistir a alguém sendo assassinado. O bom e velho Albie era uma prova disso...
Por alguma razão, a voz de Jim Heron estalou no cérebro de Matthias. Não havia palavras específicas, apenas um tom que se demorava, um tom grave, que implorava para que Matthias parasse com tudo e... fazer o que exatamente?
– Alô? – o homem do outro lado da linha perguntou, uma vez que o cara disse algo que não havia sido respondido ou que havia recebido nada além de silêncio por um tempo.
– Eu não quero que você o mate – Matthias se ouviu dizendo.
– Ah, entendo. Você quer fazer isso por si mesmo. – Satisfação. Tal satisfação era o objetivo do plano em todo o tempo.
Sem qualquer razão especial, o processador central do cérebro de Matthias começou a faiscar e sair fumaça, imagens voavam dentro e fora de sua mente em uma confusão louca que o fez pensar na rolagem de dados em uma mesa de feltro. E, então, em meio ao caos, ele viu Alistair Childe sendo segurado em um tapete sujo por dois agentes de preto enquanto era injetada em seu filho heroína suficiente para levar um elefante a ter uma overdose.
Danny... oh, Danny, meu garoto... Parecia uma música que poderia tocar em um bar irlandês, mas não soava nada musical uma vez que o pai gritava as palavras com voz rouca.
– Chefe – o segundo na linha de comando interrompeu. – Fale comigo. O que está acontecendo?
A voz era muito sonora, mas era um falso pragmatismo. Era evidente que o soldado estava preocupado de que as rodas estivessem saindo da estrada de novo – assim como tinha acontecido há dois anos, ele teria que arrastar Matthias para calçar suas botas de combate mais uma vez.
– Não o mate – Matthias ouviu-se repetir. – É uma ordem.
– Eu sei, assim você pode fazer isso. Ele é seu. Você tem que pegá-lo.
Por um momento, Matthias sentiu uma atração inevitável, tentadora...
– Não – ele exclamou, sacudindo-se. – Não, eu não tenho.
– Sim, você deve...
– Apenas siga a maldita ordem sem mais comentários ou encontro outra pessoa que o faça.
Com um palavrão, ele desligou, enviou um sinal de volta para Isaac e, em seguida, tentou encontrar um local sólido para se sustentar dentro de si mesmo. Droga, de repente, ele sentia como se houvesse duas vozes diferentes em sua cabeça e elas não apenas o direcionavam para caminhos opostos, o puxavam de fato.
Felizmente, o retorno da transmissão feita a Rothe interrompeu sua luta.
– Matthias – ele ouviu aquela velha voz familiar.
– Isaac. Como vai?
– Onde? Quando?
– Sempre indo direto ao ponto. – Matthias empurrou a parte inferior do volante para manter o sedã na estrada, enquanto massageava a dor que havia do lado esquerdo de seu peitoral.
– Estou mandando alguém até você. Então, fique onde está.
– Inaceitável. Não posso ser pego aqui.
– Ditando as regras? Eu acho que não.
– Grier Childe não vai ser envolvida nisso. Vou me entregar à meia-noite, amanhã, em um local público.
– E agora você quer me dizer quando? Vá se ferrar, Rothe. Se quiser que ela fique fora disso, fará o que vou lhe dizer. Ou você acha que não posso passar por esse sistema de segurança de luxo a qualquer hora da noite que eu quiser? – Silêncio. – Surpreso por eu saber sobre a maldita coisa? Bem, há outros truques nessa casa, Isaac. Fico me perguntando de quantos deles você tem conhecimento.
Vê, aquilo era bom. O movimento do jogo de poder limpava um pouco aquela porcaria distorcida, nebulosa e evasiva – e isso o lembrava da razão por trás da morte de Daniel Childe: a grande boca aberta do bom e velho Albie.
Um tiro de adrenalina o despertou ainda mais enquanto ele se perguntava exatamente que tipos de planos Isaac e o capitão aposentado poderiam ter tido enquanto ele estava desmaiado na estrada.
Ele limpou a garganta.
– Sim, fique onde está... e em caso de ter tramado alguma brilhante ideia com o pai dela, deixe-me esclarecer as coisas. Se você fizer qualquer coisa para expor a mim ou à organização, vou fazer coisas àquela mulher das quais ela vai sobreviver, mas nunca se curar. E saiba: meu alcance se estende além da sepultura. – Mais silêncio. – Você conheceu o pai dela... não negue isso. E tenho plena ciência de que ele vem coletando informações sobre as operações extraoficiais há décadas. Sem ideias brilhantes, Isaac. Pelo bem dela. Ou vou ignorá-lo e ir atrás dela. Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora...
– Ela não faz parte disso! – Rothe disse entre dentes. – Ela não tem nada a ver comigo ou com o maldito pai!
– Talvez. Mas acidentes acontecem. E eu atribuí seu caso a ela por um bom motivo, que acabou ficando melhor do que eu pensava. Eu nunca esperava que vocês dois ficassem tão pessoalmente envolvidos, ou você acha que eu não ouvi os dois subirem até aquele quarto de hóspedes dela ontem à noite? – Matthias lutou contra a dor em seu peito, sentia como se estivesse se afogando. – Não me faça machucá-la, Isaac. Estou ficando cansado de tudo isso, estou mesmo. Fique onde está. Estou enviando uma pessoa e você saberá quando chegar lá. E se você ou o pai dela não estiverem lá quando ele chegar, vou fazer com que procure por ela, não por você. Você segue as instruções e vou me certificar de que ninguém além de você se machuque.
Matthias apertou o botão end para finalizar a ligação e jogou o celular no banco do passageiro.
Estremecendo, ele lutou para manter o carro em linha reta enquanto a agonia por trás de sua caixa torácica aumentava para níveis incontroláveis. Com o ataque, ele pensou brevemente sobre dirigir até o Aeroporto Internacional de Caldwell, mas decidiu que precisava se recuperar e isso ia levar tempo. E privacidade.
Apertando o peito esquerdo, ele parou e tentou respirar em meio à dor. O que realmente não ajudou muito... ao ponto de se perguntar se era isso. O derradeiro. Assim como aquele que matou seu pai.
Olhando para fora do para-brisa dianteiro, ele percebeu que estava na frente de uma igreja.
Sem nenhuma razão aparente, ele desligou o motor, pegou sua bengala e saiu. Ele não pensava em nada nem sequer remotamente relacionado a Deus há anos e estar mancando em direção àquelas enormes portas duplas o fazia se sentir... errado de muitas maneiras. Especialmente levando em conta tudo o que estava esperando por ele em Boston. Mas seu segundo homem na linha de comando precisava de tempo para arranjar as coisas e Matthias... precisava desse ataque cardíaco seja para se organizar e chutar o balde ou para calar a maldita boca.
Lá dentro estava quente e cheirava a incenso e cera com aroma de limão. O lugar era enorme, com centenas e centenas de bancos que se espalhavam em três direções desde o altar.
Matthias não fez todo o caminho. Ele entrou em colapso em um banco mais ou menos na metade do corredor lateral, caiu por completo no banco de madeira.
Movendo sua bengala entre os joelhos, olhou para o crucifixo... e começou a chorar.
CAPÍTULO 36
Depois de terminar a comunicação com Matthias, Isaac guardou o transmissor de alerta em seu blusão. O que ele queria fazer era colocá-lo sobre o balcão de granito e esmagá-lo com seu punho. Em seguida, talvez, jogar os pedaços no fogo.
Apoiando as mãos sobre a pia da cozinha, ele se inclinou sobre os ombros e encarou o jardim. Quase oito horas da manhã e o local estava um poço de escuridão, pois as casas da vizinhança tinham sido construídas muito perto umas das outras. Não fazia ideia se os colegas de Jim estavam lá de volta. Nenhuma palavra sobre Jim.
Mas Isaac tinha outros problemas agora.
Droga. Levando tudo em consideração, o fato de Matthias suspeitar do que iria acontecer não era uma novidade. Mas aquilo o deixou tenso. Se ele fosse embora agora, ele corria o risco de Grier e seu pai serem massacrados. Se ele ficasse... provavelmente eles seriam obrigados a assistir a morte dele.
Filho da mãe!
– Eles entraram em contato com você?
Ele olhou sobre o ombro. Grier tinha acabado de sair do chuveiro, seus cabelos soltos secavam naturalmente.
– Isaac – o rosto dela ficou tenso. – Eles responderam?
– Não – ele disse. – Ainda não.
Para tornar a mentira mais convincente, ele puxou o transmissor e o balançou, apostando no fato de que ela não iria notar que a luz estava desligada.
– Essa coisa está funcionando?
– Sim. – Ele o guardou quando ela se aproximou. – Como está seu pai?
– No telefone do banheiro de novo. – Ela encarou o relógio. – Deus, pensei que essa noite nunca ia acabar.
– Eu só queria que Jim aparecesse – ele disse enquanto ela começava a fazer o café na pia.
– Você acha... que ele está mesmo morto?
Naquele momento... talvez.
– Não.
Sentando-se em um dos bancos, ele a observou estalar a abertura de uma lata de café e colocar o filtro no topo da máquina. Quando ela terminou a tarefa, a luz do sol em seu rosto o fez querer chorar, ela era tão bonita.
De alguma maneira, ele não podia acreditar que estava com ela – e não no sentido de que não era digno disso. Dã, isso era evidente. Mas ponderando tudo, o sexo quente e intenso parecia um sonho. Ela estava tão limpa, cheirando a xampu ao invés de suor, o cabelo liso, o rosto já não mais corado.
Ela tirava seu fôlego. Para Isaac, ela era uma prova definitiva que a vida valia o sacrifício que requeria das pessoas: apenas olhar para ela e estar no mesmo ambiente, ter as memórias que ele deu não só a ela, mas que ficaram dentro dele...
A ideia de que alguma coisa a machucasse um dia era simplesmente insuportável. E se ele fosse a causa disso?
Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora.
Não era uma ameaça. Não vindo de um cara como Matthias, que não estabelecia qualquer distinção para o sexo feminino. E ele a machucaria de maneira que aqueles momentos especiais que Isaac havia passado com ela na adega fossem impossíveis de serem vivenciados novamente.
Por mais que lhe doesse, ele tinha que ser realista: quando ele partisse, ela encontraria outro amor. Talvez alguém com quem se case e tenha filhos e com quem possa passar a velhice. E não haveria nada disso para ela a menos que ele ficasse ali, esperando... e rezando para que quando o agente de Matthias aparecesse, ele fosse capaz de matar o filho da mãe e, em seguida, desaparecer rapidamente.
Afinal, ele era um maldito de um assassino. Era o que ele fazia para viver.
Uma coisa era clara: não ia mais prosseguir com a divulgação de informações. De jeito nenhum. A vida de Grier valia mais que o respeito que ela tinha por ele e, depois que a poeira assentasse, qualquer coisa que tivesse sido acionada pelo pai dela poderia ser desfeita tão rápido quanto uma ligação telefônica – assim, eles pensariam que o plano ainda estava de pé até descobrirem que Isaac tinha sumido.
E quanto ao resto de sua vida? Ele ia se entregar a Matthias e prestar suas contas, mas seria em seus termos. O pai de Grier faria algo com aqueles dossiês e Jim Heron, ou qualquer um de seus colegas, era o tipo de cara que poderia guardar uma narração gravada, em primeira pessoa, de cada assassinato que Isaac já cometeu – isso proporcionaria a Grier e a seu pai uma morte de causas naturais.
Afinal, ele tinha a impressão de que confissões feitas à beira da morte eram admissíveis no tribunal, então, uma vez que Isaac confessasse que Matthias iria matá-lo em breve, isso teria muita influência, não teria? – pelo menos seria o suficiente para que abrissem uma grande investigação.
Seu depoimento seria o seguro de vida dela e de seu pai.
Do outro lado, Grier apertou o botão ligar do aparelho e quando a máquina começou a sibilar ela ficou onde estava, olhando para a coisa.
Compelido por algo que ela não questionou, Isaac ficou em pé e se colocou atrás dela, colocando seu peito contra suas costas. A respiração de Grier ficou tensa ao sentir o corpo dele e, embora tivesse se enrijecido, ela não se moveu.
Ele estendeu as mãos e tocou as ondas loiras que caiam sobre seus ombros, correndo os dedos sobre ele. Em seguida, ele deslizou as mechas lentamente para a lateral, expondo a nuca.
Deus, ele já tinha se decidido, não tinha?
Tinha escolhido seu caminho.
– Posso beijá-la? – ele disse com voz rouca. Pois era mais cavalheiro perguntar antes.
A cabeça dela pendeu.
– Por favor.
Ele foi até o pescoço encantador, pressionando seus lábios contra a pele dela. Aquilo não era o suficiente, mas ele não confiava em si mesmo para ir mais além ou sequer para colocar suas mãos na cintura dela – se ele o fizesse, não ia parar até que ela estivesse sob ele e, por sua vez, ele estivesse dentro dela mais uma vez.
– Grier – ele sussurrou com voz rouca.
– Sim...
– Preciso dizer uma coisa.
– O que?
Algumas vezes as emoções eram uma locomotiva para as palavras: uma vez que se há uma revelação para fazer, não há freios suficientemente fortes para mantê-la nos trilhos de sua garganta.
– Eu te amo – ele pronunciou mais com ar do que com sílabas.
Contudo, ela ouviu. Deus, ela ouviu, pois inalou com um silvo.
Grier se virou tão rápido que se formou uma curva em seus cabelos e mesmo com o coração batendo forte, Isaac não desviou o olhar.
Quando ela abriu a boca, ele colocou seu dedo sobre os lábios dela e balançou a cabeça.
– Eu só precisava que você soubesse. Uma vez. Eu só precisava dizer... uma vez. Eu sei que não a conheço há tempo suficiente ou bem o suficiente e tenho plena consciência de que não sou o homem certo para você, mas algumas coisas precisam ser ditas.
O que não precisava ser transmitido era o terror dentro de sua pele.
Por mais que ele quisesse fazer a coisa certa, seu antigo patrão o pegou pelos cabelos: não havia sacrifício grande demais para garantir a segurança de Grier. Até mesmo a salvação de Isaac não era demais. Nem mesmo a queda de Matthias.
Uma garganta pigarreando discretamente fez com que Isaac olhasse para cima. Através do vidro sobre a pia, ele viu o pai de Grier em pé na cozinha – e por respeito à filha do homem, ele recuou.
– Café, pai? – Grier disse com uma voz estável ao se inclinar para o lado e pegar duas canecas no armário.
– Sim, obrigado.
Isaac podia sentir os olhos do cara oscilando entre um e outro, mas ele tinha certeza de que não queria responder qualquer pergunta.
E era evidente que Grier também não.
– Vamos sentar? – ela perguntou.
Ao invés de responder, o homem clareou a garganta mais uma vez. Sem dúvida por estar chocado com a situação do dia anterior, quando disseram para que ficasse longe, e o sentimento de “não toque na minha filha”.
Mas ele não precisava se preocupar. Ele chegou tarde demais para a última alegação, mas a sensação que a primeira causava... dariam um jeito nela.
– Pai? Vamos sentar?
– Todos vão chegar amanhã de manhã...
– Amanhã de manhã?
– É uma situação delicada. É preciso dar desculpas adequadas – esses homens e mulheres não podem sair sem um bom motivo, sem que questionamentos sejam feitos.
Isaac podia sentir Grier olhando para ele, buscando um apoio para dizer um “não” veemente, mas era isso, ele discordava dela. Amanhã era perfeito.
Ele já teria partido até lá.
No hotel, Jim acordou em seu quarto pouco iluminado e sentiu como se tivesse sido vítima de um acidente de carro. Com um caminhão. E ele estava sem cinto de segurança.
Ele estava na cama, dormindo encolhido de lado, seu corpo pesado tinha esculpido uma parte do colchão e estava posicionado como um cão à espera da morte em uma floresta. Mas ele era imortal agora... e aquilo parecia significar que não importava o dano que fosse feito nele, ele seria curado.
Sim, só que aquilo não parecia o tipo de trabalho que requeria apenas um movimento de nariz da Feiticeira, onde tudo era resolvido em um passe de mágica. Ele se sentia muito humano com as dores e feridas, a respiração que fazia suas costelas queimarem, com os saltos de seu coração que mais pareciam o andar de um bêbado. Mas a pior parte disso não era física. Estava em sua mente.
A parte em que havia deixado Sissy para trás, no reino de Devina, o matava.
Abrindo os olhos, percebeu que era manhã; sobre o topo da cabeça encrespada do Cachorro, o alarme brilhava com números vermelhos. 7h52.
Hora de levantar, ele pensou ao se virar de costas com cuidado. Do outro lado, Adrian estava apagado como uma lâmpada, o anjo tinha uma respiração pesada, seus olhos se movimentavam por trás das pálpebras fechadas.
Dado o brilho em seu rosto, era evidente que ele não estava tendo bons momentos na terra dos sonhos.
Deus, que noite, Jim pensou. Depois que Colin o deixou ali ele achou que seria apenas ele e o Cachorro. Mas, então, alguém veio do outro quarto e ele poderia concluir que seria Eddie – a coisa toda de cuidados e enfermagem era mais a praia dele.
Mas não. Adrian foi quem entrou... e permaneceu ali.
No momento, Jim não teve forças para lidar com qualquer simpatia que pudesse sentir pelo cara, então, ele envolveu com cuidado um cobertor em volta de si e calmamente se colocou em pé com as pernas tão fortes quando dois lápis. Mancando até o laptop, ele estava muito tonto, e chegou à cadeira bem a tempo – contudo, mas que droga, seu traseiro doía demais.
Apesar do fato de precisar urinar como um cavalo de corrida, ele ligou o computador e esperou impaciente para que o navegador da Internet fosse iniciado. Para passar o tempo, ele deu uma olhada nas marcas deixadas por aquilo que prendia seus pulsos. Os dois tinham linhas tortuosas de um vermelho brilhante em volta, que reluziam e estavam em carne viva, o lembrete tangível de onde ele tinha estado e o que tinham feito com ele seduziu sua mente a fazer uma viagem ao campo do stress pós-traumático. Só que foi um deslize que ele se recusou a permitir.
Voltando a prestar atenção no que estava fazendo, ele começou a digitar. Contudo, uma vez que seus dedos estavam dormentes, levou uma eternidade para chegar ao site do jornal de Caldwell e pesquisar por Cecilia Barten...
Apareceu um artigo de cerca de duas semanas atrás e a imagem de Sissy trouxe um brilho aos seus olhos. Ela estava sorrindo para a câmera em pé no meio de vários jovens da idade dela. Não dizia quanto tempo havia se passado entre o momento em que a foto foi tirada e quando foi levada por Devina – mas o fato de que ela não tinha ideia do que a esperava ao virar a esquina fez com que seu coração desconfiado ficasse ainda mais focado no trabalho.
Provavelmente era melhor que não soubesse de nada.
E ele ia fazer com que Devina pagasse por isso.
O único artigo que havia além desse relatava que ela tinha desaparecido há uma semana e os dois juntos o fizeram perceber o porquê sua primeira pesquisa de dados havia falhado. Ele pediu que o computador procurasse por assassinatos ou garotas loiras mortas. Nada relacionado a desaparecimento.
Que erro idiota.
E os detalhes eram os que Sissy tinha dito: ela era caloura na Faculdade de Albany e estava passando as férias de primavera em Caldwell. A última vez em que a viram foi quando ela saiu do mercado local por volta das nove horas.
Nenhuma foto de seus pais. Contudo, ele iria encontrá-los.
– Você a viu? – Adrian disse com uma voz um tanto áspera.
– Sim. – Jim encarou a foto de sua garota sorrindo com seus amigos. Então, ele piscou e viu seus cabelos loiros emaranhados com sangue. – Como a tiro daquela parede?
A respiração do outro anjo era do tipo que se produzia quando não se tinha uma boa notícia para dar. De jeito nenhum. E você fica dolorido com isso.
– Você não pode.
– Inaceitável. Tem que haver um jeito.
– Não que eu saiba. – Houve um palavrão e, então, um estalo no colchão e uma variedade de estalos como se Ad estivesse se espreguiçando.
– Volto já.
Quando os passos pesados se dirigiram para o outro quarto, Jim não se deu conta da saída do cara. Mas quando o focinho do Cachorro cutucou sua perna nua, ele olhou para baixo.
Os grandes olhos castanhos olhavam de um rosto de pelo que parecia palha.
– Você sabe como tirá-la de lá? Ela não pertence àquele lugar. Ela não deveria ter terminado ali.
Jim considerou que o pequeno gemido do animal significava que concordava com ele – e que também precisava sair para fazer suas necessidades.
– Dois segundos – disse Jim, preparando-se para ficar em pé. – Preciso de um banho.
Levantando seu peso morto da cadeira, ele deixou cair o cobertor e entrou no banheiro que era de um tamanho modesto. Fechando-se lá dentro, ele acendeu a luz, deteve-se no banheiro e se perguntou se seu pênis ainda funcionava de alguma maneira.
O fluxo rosa que ele urinou respondeu a pergunta. E também sugeriu que seus rins foram danificados.
Depois que terminou, grunhiu ao se inclinar para apertar a descarga e depois se virou para ligar o chuveiro. Sabonete. Ele precisava de muito mais sabonete do que aquela metade já usada que estava ali...
Jim congelou ao se ver no espelho.
Ruim. Muito ruim.
Muito pior do que ele pensava.
Sua boca estava roxa e inchada por causa de toda porcaria que tinha sido empurrada dentro dela, seu peito e sua barriga eram nada além de carne viva. Quanto ao pênis... A maldita coisa estava pendurada em seus quadris como se tivesse perdido a vontade de viver. E ele não queria saber como a parte de trás de seu corpo estava.
Usado e abusado eram os termos corretos.
E seu único pensamento, o único... apenas um... era que odiava o fato de que Sissy o tinha visto assim.
Quando seu estômago vacilou em torno de sua cintura, ele se lembrou da expressão horrorizada no rosto dela ao olhar para ele. Pobre garota... Ele tinha sido treinado para toda aquela porcaria. Ele tinha passado por isso antes... bem, não exatamente pelo que Devina fez com ele, mas com certeza ele teve que lidar com isso algumas vezes com punhos e facas. Até mesmo com uma bala ou duas. Mas Sissy...
Ele quase não conseguiu voltar à bacia sanitária à tempo.
Quando seu corpo se inclinou e nada além de bile saiu de sua boca, seus olhos lacrimejaram pelo esforço.
Maldição, Sissy o viu daquele jeito. Violado sexualmente, sangrando, surrado...
Mais vômito.
Ele não teve certeza de quando exatamente Adrian entrou, pois no terceiro round de lances que saíam de sua boca ele se deu conta que não sabia se ela estava livre do que tinha feito com ele. Afinal, ela foi capturada. Ela estava presa naquele inferno. E Devina tinha muitas coisas que satisfariam o gênero masculino.
– Aqui – Adrian disse, passando-lhe um pano frio.
Jim não conseguia enxugar o rosto, pois doía demais, então, ele deu leves toques, sentindo a umidade fresca como um bálsamo contra seu rosto em chamas e lábios queimando.
Baixando a cabeça, ele percebeu que tinha deixado manchas de sangue fresco no piso creme, das feridas que tinham sido reabertas em seus joelhos.
Sim, imortal não significava embalsamado; isso era certeza.
Adrian sentou-se ao lado dele, com o rosto muito pálido enquanto olhava ao redor da bacia sanitária.
– Quer que eu o coloque no banho? Foi o que me ajudou quando ela...
Quando seus olhos se fecharam com força, a conversa era de sobrevivente para sobrevivente.
– Ah, droga... – Quando Jim falou, sua voz era rouca e parecia que tinham passado um desentupidor por sua garganta.
– Ela me viu assim. Sissy... ela viu isso.
Ele não podia acreditar que havia dito isso, mas manter dentro de si era inútil.
Incapaz de manter contato visual, Jim fechou suas pálpebras com força e encostou ao lado da banheira. Enquanto a água caía como a chuva atrás dele e o chão duro pressionava seu traseiro, ele sussurrou: – Ela me viu arruinado.
Foi a última coisa que disse antes de desmaiar.
CAPÍTULO 37
Você não deve ter pensando que uma casa com seiscentos metros de área construída, no centro da cidade, com três andares – quatro, se contar o porão com a adega – poderia ser estreita como uma caixa de sapato.
Mas, à medida que a manhã se arrastava e chegava o florescer do meio dia, Grier sentia como se não pudesse ter ar suficiente... ou algum momento à sós com Isaac. Seu pai era uma presença passiva com olhos de águia que parecia preencher todo o espaço, mesmo quando não estava nele. E Isaac estava tão ruim quanto ele, movendo-se constantemente, olhando pelas janelas, indo e voltando da frente da casa para a cozinha.
Por volta das duas horas, ela não aguentava mais e foi organizar seu armário no quarto. O que era ridículo, pois já estava arrumado – apesar de ser uma cura rápida para o que estava passando.
Depois de parar no meio do quarto e fazer um giro pelas fileiras de roupas penduradas por categoria, ela pegou cada blusa, saia, vestido, terno e par de calças das prateleiras e os colocou em uma pilha no chão. Aparentemente, ela estava reorganizando as várias sessões. Na realidade, ela estava dando a si mesma um pouco de bagunça para limpar para que pudesse desfrutar de um pouco de controle.
Cabide por cabide, item por item, ela começou a organizar seu guarda-roupa.
Deus... Isaac.
Se ela o ouviu direito, lá na cozinha, perto da cafeteira... ele disse que a amava.
Vamos lá... claro que ela ouviu direito. E seus olhos incríveis confirmaram o que seus ouvidos tinham lutado para compreender.
Contudo, havia muitos mas que a advogada que havia nela queria esquematizar. A questão era, a mulher por trás da advogada de defesa não se importava com nada daquilo: ela sentia algo tão forte quanto ele.
Naturalmente, a lógica dizia que não devia confiar na emoção nos dois casos, apontando que tudo era uma questão de circunstâncias, drama, tensão, sexo – Deus, o sexo. Só que seu coração tinha uma teoria diferente. Ela sentiu uma faísca entre eles no instante em que colocou os olhos nele e a decisão de Isaac de tomar a frente e fazer a coisa certa sobre seu chefe corrupto e perigoso... bem, isso foi ainda melhor que os incríveis orgasmos.
Ele ganhou todo o respeito dela com isso.
Ao pegar um de seus ternos pretos com risca de giz, ela se entreteve com uma breve fantasia onde eles acabavam juntos em uma ilha segura e remota com nada além do dilema sobre o que fazer para almoço e jantar para preocupar suas mentes. Um dia de sonho na Ilha da Fantasia com nada para ser questionado seria uma ótima diversão, mas ela não ia enganar a si mesma. Isaac ia desaparecer. O governo ia levá-lo e escondê-lo até que as audiências no Congresso ou os procedimentos judiciais fossem iniciados. E se ele não acabasse na cadeia pelas atrocidades de guerra nos Estados Unidos, seria extraditado para algum inferno no exterior.
E foi por isso que ele disse aquilo. Era seu adeus.
– Uau.
Grier girou sobre os calcanhares, o terno em suas mãos se levantou em um círculo em volta de seu corpo antes de ser colocado de volta no lugar – como se tivesse esquecido momentaneamente sua discrição e retomado sua compostura.
E não é que ela sabia como a coisa se sentia?
Isaac se amaldiçoou.
– Desculpe, eu realmente preciso aprender a bater.
Grier ficou mais aliviada.
– Eu também estou nervosa demais.
Franzindo a testa, ele mediu a pilha no meio do carpete creme.
– Muitas roupas.
– Provavelmente roupas demais. Eu preciso doar um pouco para alguma entidade.
Ele avançou e pegou um de seus vestidos. Era longo e preto, como todos os outros, pois ela não era do tipo de garota que gostava de cores e brilhos.
– Para onde vai esse?
– Ah... – Havia apenas uma seção com barras altas o suficiente para os longos. Então, ela havia os tirado por nada, apenas para colocá-los novamente. – Aqui. No canto, por favor.
Ele pegou o vestido feito para se usar à noite e o colocou no lugar onde já tinha estado antes. Então, ele se voltou para o próximo, endireitando as ombreiras em um cabide acolchoado de cetim. Antes de colocá-lo no lugar, ele se surpreendeu por baixar a cabeça e colocar seu nariz no decote.
– Tem o cheiro do seu perfume – ele murmurou antes de colocá-lo sobre a haste de bronze.
Foi o que bastou para que um arrepio percorresse dentro dela – no bom sentido. Infelizmente, o formigamento foi substituído por tudo o que estava pairando sobre eles.
– Você já recebeu algum contato... deles?
– Não.
– O que você vai fazer se eles não responderem?
– Eles vão.
Ele não disse mais nada, apenas pegou um vestido com um corpete de veludo e uma larga faixa.
– Vestido de Natal?
– Sim.
– É lindo.
– Obrigada. Isaac? – Quando ele olhou, ela disse: – Eu...
Ele a interrompeu.
– O que é esse som?
– Que som...
O terno caiu de suas mãos quando ela reconheceu o sutil sinal sonoro e se atrapalhou para tirar a corrente do sistema de segurança do bolso. Era certeza, uma luz vermelha estava piscando. “Havia alguém na casa.”
Ela interrompeu o barulho e começou a ir em direção ao telefone ao lado da cama, mas ele segurou seu braço.
– Não. Nada de polícia. Já tiramos vidas de inocentes o suficiente com isso.
Sua arma surgiu e expôs um tubo quase tão longo quando seu punho. Quando ele engatou o silenciador na ponta da arma, olhou em volta e seguiu até o espaço mais abaixo onde o mecanismo do sistema de segurança se encontrava.
Mantendo a arma em mãos, ele arrancou a superfície de metal.
– Entre aqui. E não saia até que eu...
– Eu posso ajudar...
A expressão nos rosto dele fez com que ela desse um passo para trás: seu olhar era frio e totalmente estranho – como se ela estivesse olhando para um vidro fosco... sem esperança de algum dia ver o que estava por trás dele de novo.
– Entre aí, agora.
Os olhos dela encararam a arma e depois se voltaram para sua face rígida e implacável. Era difícil saber o que era mais assustador: a ideia de que alguém estava em sua casa ou o estranho em pé na frente dela. E, então, ficou claro para ela...
– Oh, meu Deus, meu pai!
– Eu cuido dele. Mas não vou fazer isso direito se estiver preocupado com você. – A arma apontava para o buraco escuro que ele tinha aberto. – Vá, agora.
Depositando sua confiança nele, Grier se abaixou, esquivou-se dentro do local e respirou o ar bolorento dos beirais quando Isaac recolocou a grade no lugar. Houve um movimento, um clique, outro movimento, outro clique ao fixar a coisa na parede e, em seguida, pelas frestas, ela o viu sair correndo, silencioso como uma sombra.
Ela olhou o relógio. Ouvia com atenção.
O medo se comprimia com ela dentro dos limites apertados de seu esconderijo, ocupava mais espaço que ela, trazia à tona a imagem de Isaac como um estranho, até aquilo ser tudo o que conseguia ver.
Silêncio.
Mais silêncio.
Que foi prontamente interrompido por uma estridente paranoia em sua cabeça.
Oh, Deus... e se tudo isso não passou de uma armadilha? E se Isaac tinha sido enviado com o único propósito de seduzir seu pai e determinar o quão longe ele iria para expor a agência?
Só que foi ela quem sugeriu isso.
Ou será que a intenção dele era que ela acreditasse nisso?
Contudo, seu perfil dizia que ele precisava de uma motivação moral – e se fosse uma mentira? E se aquilo fazia dele o agente infiltrado perfeito? E se tudo aquilo não passasse de um jogo para que seu pai entregasse os dossiês... antes de o matarem.
E, ainda assim, Isaac a colocou ali para protegê-la.
Só que ela não o reconhecia no momento em que fez isso...
Meu bom Deus, o transmissor de alerta – a luz estava apagada, não estava? Quando ele balançou a coisa em frente a ela na cozinha esta manhã, a luz que ela tinha visto antes estava apagada. O que aquilo significava? E, pensando nisso, o lapso de tempo lhe parecia bizarro: entre o momento em que ele aparentemente se entregou até agora.
Ela tinha que sair dali. Conseguir ajuda.
Grier se contorceu e se apertou atrás dos componentes empilhados do centro nervoso do sistema de segurança. A escadaria oculta que corria no meio da casa fazia parte de sua construção original, foi feita por suspeita e desconfiança de que os britânicos ainda pudessem passar por ali em 1810, cerca de trinta anos depois da Revolução.
Os truques da casa acabaram sendo úteis no presente.
O brilho do sistema de segurança proporcionava iluminação suficiente para que ela encontrasse a lanterna coberta de poeira que ficava pendurada em um prego no topo da escada secreta. Acendendo a luz, ela tateou os degraus antigos, entalhados à mão, deixando suas impressões para trás na poeira. Ao prosseguir, teias de aranha grudaram em seus cabelos e os ombros foram arranhados pela áspera argamassa dos tijolos.
Quando chegou ao primeiro andar, fez uma pausa. É claro que ela não conseguia ouvir nada devido às grossas paredes, mas o pai dela tinha acrescentado um tubo que parecia fazer parte do sistema de ventilação. Na verdade, porém, servia como posto de vigilância secreto.
Grier subiu e se inclinou para o lado para conseguir enxergar direito, apoiando-se sobre alguns tijolos que estavam mais firmes que os outros.
Quando ela apertou os olhos, sua visão trespassou as ripas e focou-se na entrada da frente. Se ela se arqueasse um pouco mais e esticasse o pescoço, ela conseguiria ver a cozinha...
Grier abandonou a lanterna e apertou as mãos sobre a boca.
Para não gritar.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
PARAÍSO, JARDIM SUL
Nigel concedeu uma audiência antecipada a seus dois anjos guerreiros favoritos não por causa da bondade que havia em seu coração – apesar do fato de ele, Colin, Bertie e Byron estarem no meio de uma refeição. Contudo, não haveria como mandar esses visitantes embora: ele sabia por que Edward e Adrian estavam chegando e eles não iam gostar do que ele tinha para lhes dizer.
Assim, ele sentia que precisava tratar disso pessoalmente.
E, de fato, quando os dois anjos tomaram forma do outro lado do gramado, caminharam ao longo do bosque como os vingadores que eram.
– Sinto muito mesmo – Nigel murmurou para seus assessores. – Mas poderiam, por favor, me dar licença um minuto.
Ele dobrou seu guardanapo damasco e se levantou, pensando que não havia razão para arruinar a refeição dos outros – e o que estava prestes a acontecer verbalmente seria um assassinato gastronômico do tipo mais sangrento.
Colin se levantou também. Nigel preferia fazer isso sozinho, mas não havia como dissuadir o anjo. Nada nem ninguém poderia mudar as ideias de Colin sobre o que teria de sobremesa, muito menos sobre questões de real importância.
Ele e Colin se encontraram com seus visitantes a meio caminho entre o local onde os dois haviam entrado e onde a mesa estava colocada entre as árvores.
– Ela o tem – Edward disse quando os quatro se aproximaram. – Não sabemos como isso aconteceu...
Nigel interrompeu o anjo.
– Ele se entregou para que outra pessoa tivesse uma chance na vida.
– Ele não deveria ter feito isso. Ele é valioso demais.
Nigel olhou na direção de Adrian e viu que o anjo estava em silêncio pela primeira vez. O que era o sinal mais concreto de que havia problemas.
Nigel puxou suas abotoaduras, alisando as mangas de sua camisa de seda dentro de seu terno de linho.
– Ela não vai matá-lo. Não pode.
– Tem certeza disso?
– Há poucas coisas confiáveis nela, mas as regras não foram impostas por ela. Se matar Jim, ela perde não só a rodada, mas o jogo na sua totalidade. Isso vai mantê-la em cheque.
A voz de Adrian percorreu o ar, fina e dura.
– Há algumas coisas piores que a morte.
– Com certeza, você está certo.
– Então, faça alguma maldita coisa. – O anjo vibrava por completo, seu corpo era um presente de natal prestes a ser rasgado em pedaços com ansiedade.
– Porém, nós poderíamos tirá-lo de lá – Edward disse. – Não é contra as regras.
– Claro que poderiam.
Longo silêncio.
Edward limpou a garganta e pareceu dobrar a língua numa contenção educada.
– A imagem que ela nos enviou sugere que ele está preso no mundo dela.
– Ele não está sobre a terra, é verdade.
– Então, como podemos chegar até ele?
– Não podem.
Quando Adrian soltou um palavrão, Edward segurou o braço do outro anjo, mas isso não o calou.
– Você disse que poderíamos tirá-lo de lá.
– Adrian, eu disse “poderiam” no sentido de permissão. Vocês têm permissão de fazer isso dentro das regras. No entanto, eu não fiz um comentário sobre suas habilidades. Neste caso, vocês são incapazes de alcançá-lo sem sacrificarem a si mesmos, deixando-o sem apoio e orientação durante esses momentos inicias e cruciais...
– Seu imbecil.
Antes que Adrian pudesse fazer algo estúpido, Edward transferiu sua força para o pesado peito do cara e o deteve.
Nigel levantou uma sobrancelha para os dois.
– Eu não faço as regras e eu tenho tanta intenção de ser desqualificado quanto meu adversário.
– Você tem... – Adrian engasgou com as palavras e teve que respirar fundo para terminar. – Você tem alguma ideia do que ela está fazendo com ele? Agora mesmo? Enquanto estamos parados em seu maldito gramado e o jantar está esperando por você?
Nigel escolheu as palavras com cuidado. A última coisa que ele precisava era dos dois fazendo justiça com as próprias mãos. Eles já tinham cometido esse erro uma vez, não tinham?
– Eu sei exatamente o que ela está fazendo sobre aquela mesa, por assim dizer. E também sei que Jim é muito forte... o que é a pior tragédia de todas. Pois ela vai recorrer a torturas que... – Não havia razão para continuar: os olhos de Adrian ficaram vítreos como se fosse alguém revivendo um pesadelo. – Eu diria, porém, que Devina não pode mantê-lo por muito tempo ou ela corre o risco de perder. As coisas estão chegando a um limite e, se ela impedir Jim de participar plenamente do que está por vir, então, não haverá uma competição justa.
– E quanto a Jim? – Adrian exigiu, libertando-se do seu melhor amigo. – E quanto ao sofrimento dele? E quanto a ele?
Nigel olhou para Colin, que estava completamente em silêncio. Mais uma vez, sua bela e familiar expressão facial dizia tudo: sua fúria era tão grande e profunda que os oceanos ficariam rasos, se comparados a ela. Ele sempre odiou Devina e isso não serviria de auxílio naquele momento.
No entanto, havia bastante exaltação ali.
Nigel balançou a cabeça com uma sincera decepção.
– Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito. Minhas mãos estão atadas.
– Você sente muito? Você sente muito, seu maldito? – Adrian cuspiu no chão. – Sim, você parece mesmo, seu bastardo frio. Você parece muito desapontado. Imbecil.
Com isso, o anjo se desmaterializou.
– Droga. – Edward murmurou.
– Um palavrão, mas uma palavra adequada para isso. – Nigel olhou para o espaço que Adrian tinha preenchido antes. – É cedo para ele estar tão cansado e frágil com a batalha. Isso não é nada bom.
– Você está brincando comigo, certo?
Ele encarou o anjo.
– Com certeza você deve enxergar a loucura que há nele...
– Para sua informação, chefia, não faz nem quatro dias que Devina usou o cara ao seu bel-prazer. E você acha que ele não vai perder a cabeça agora que Jim está passando pela mesma máquina de tortura? Está falando sério?
– Gostaria de lembrá-lo que você jurou que ele poderia lidar com isso. – Nigel viu-se inclinado para frente em posição de confronto. Afinal, ele poderia ser o capitão deste lado, mas isso não queria dizer que estava isento de socos. – Você me disse que ele poderia suportar o estresse. Você me prometeu e eu acreditei em você. E se acha que vai ficar mais fácil à medida que avançamos, então você está tão louco quanto ele aparenta estar.
Edward ergueu o braço e o puxou para trás como se fosse lhe dar um soco.
– Vá se ferrar, Nigel...
Colin investiu contra o anjo em um piscar de olhos, atacando pela direita, como no futebol americano, derrubou o homem e o imobilizou de bruços sobre a brilhante grama verde.
– Você não toca nele, companheiro – Colin grunhiu. – Eu sei que está chateado e deseja libertar Jim, mas não posso deixar que bata em Nigel. Não vai acontecer.
Nigel olhou para a mesa de jantar. Como Bertie e Byron se viraram para olhar, ele viu que eles estavam sentados como pássaros preocupados, seus corpos se estenderam, os braços caíram nas laterais, os olhos arregalados.
Tarquin tinha deitado no chão e colocado seu longo focinho sob a toalha para que não conseguisse ver nada.
A refeição estava mais que arruinada. E não apenas porque o espetáculo que aconteceu ali foi um desastre de se assistir: na verdade, Nigel não ia ser capaz de colocar nada no estômago. Esse jogo com Devina estava tomando péssimas direções de tantas maneiras... e ele estava paralisado pelas regras.
– Solte-me – Edward resmungou.
Colin deveria ter uma estrutura duas vezes mais leve que a do outro anjo, mas tinha uma força elástica além da média.
– Você vai ser legal, companheiro. Nada mais de socos ou vai ser derrubado outra vez.
– Está bem.
As palavras não foram qualquer tipo de rendição, mas Colin saiu de cima dele de qualquer maneira... provavelmente por saber que só poderia subjugar o homem de novo se fosse necessário.
Edward tirou os pedaços de grama verde que ficaram presos em seu casaco de couro como se fossem lantejoulas.
– Só por que Jim pode sobreviver a isso não significa que seja justo.
Com isso, ele desapareceu no ar.
Após um palavrão silencioso, Nigel observou o desaparecimento da marca deixada pelo corpo pesado de Edward, a grama se erguia, endireitava-se.
– Eles têm razão – Colin disse asperamente. – E a vadia não está jogando limpo.
– Jim se voluntariou para ela.
– Em uma situação que ela projetou. Não está certo e você sabe disso.
– Você quer que nós corramos o risco da derrota? – Ele o encarou. – Você quer perder por causa disso?
Colin espalmou a grama de suas mãos.
– Inferno. Mas que maldito inferno. – Nigel olhou para a marca do corpo que desaparecia em seu gramado.
– Concordo plenamente.
CAPÍTULO 31
A adega não era um lugar aonde Grier ia com frequência. Em primeiro lugar, as garrafas de vinte dólares que enchiam suas taças todas as noites mal valiam o subir e descer de escadas. Em segundo, com sua porta que era como um cofre de banco, seu teto baixo e estantes que percorriam todas as paredes, ela sempre sentia como se lá fosse uma prisão.
E, como pode imaginar... quando seu pai fechou os três no caixão apertado, o peso da presença de Isaac diminuiu o local para o tamanho de uma caixa de lenços de papel e ela sentiu como se não pudesse respirar.
Havia uma mesa polida no centro do espaço e ela ocupou uma das quatro cadeiras. Quando Isaac se sentou à frente dela, foi difícil não se lembrar de quando o encontrou na cadeia: tinha sido bem assim, os dois frente a frente.
Só que agora, apesar do fato que nenhum dos dois estava algemado, ela não conseguia deixar de ter a sensação de que os dois estavam amarrados juntos... e que as rolhas em todas as garrafas eram um pelotão de fuzilamento na iminência de obedecer ao sinal para atirar.
Deus, quando ele foi trazido para se encontrar com ela pela primeira vez, ela não tinha ideia de onde estava se metendo.
Mas, alguém já soube? Quando as pessoas passam por suas vidas cotidianas, escolhas rápidas e eventos aleatórios podem, algumas vezes, girar em um tipo de força centrífuga que as suga e, depois, as expele em um endereço totalmente diferente de onde começaram.
Mesmo quando nunca saem de casa.
Seu pai sentou-se mais próximo da porta e uniu as mãos quando colocou os cotovelos no topo da mesa.
– Estamos seguros aqui embaixo – disse ele, apontando para uma saída de ar no pequeno teto que tinha duas bandeiras vermelhas tremendo com a brisa. – O sistema de ventilação é iniciado a vários quarteirões de distância daqui, assim, não há preocupação com uma contaminação. Há também um túnel e um transmissor de ondas de rádio que irá embaralhar nossas vozes se estivermos sendo gravados.
O túnel era uma novidade e Grier olhou em volta. Até onde ela poderia ver, todas as prateleiras estavam fixadas na parede e o chão era de pedra, mas dado os outros pequenos truques na casa, ela não poderia afirmar que estava surpresa.
Isaac se manifestou.
– Se eu tivesse que ir até alguém e conversar com essa pessoa, quem seria?
– Isso depende de como...
– E quanto à mamãe? – Quando Grier cortou, interrompeu, descarrilou, ela olhou para o rosto de seu pai, procurando por contrações ao redor dos olhos e da boca. – E quando ela morreu? Foi mesmo de câncer?
Embora tivesse sido há sete anos, aqueles dias finais horríveis ainda estavam tão vívidos e ela se infiltrou neles, procurando por rachaduras nas paredes dos acontecimentos, em busca de lugares onde as coisas que pareciam de um jeito pudessem ser de outro.
– Sim. – Seu pai disse. – Sim... ela... Sim, aquilo foi câncer. Eu juro.
Grier exalou e achou difícil imaginar que ela estivesse realmente aliviada por ter sido aquela doença horrível. Mas era muito melhor a Mãe Natureza ter sido a culpada. Muito melhor que aquela tragédia não precisasse ser reescrita. Uma era mais do que suficiente.
Ela limpou a garganta. Assentiu.
– Tudo bem, então. Tudo bem.
Uma mão quente cobriu a dela e a apertou. Como as mãos de seu pai estavam sobre a mesa, ela percebeu que era Isaac. Quando ela olhou para ele, Isaac quebrou a ligação, seu toque durou apenas o suficiente para que ela soubesse que ele estava ali com ela, mas não de maneira que ela se sentisse reprimida.
Deus, as contradições que havia nele. Brutal. Sensual. Protetor.
Com um tapa mental, ela voltou a se concentrar em seu pai.
– Você estava dizendo alguma coisa?
Ele balançou a cabeça e se recompôs antes de olhar para Isaac de novo.
– Até que ponto você está disposto a ir?
– Eu não vou comentar sobre os outros soldados em atividade – disse Isaac. – Mas quanto ao que se tratar das minhas atribuições, vou até o fim. As coisas que fiz para Matthias. O que sei sobre ele e sobre o segundo na linha de comando. Onde os dois me enviaram. O problema é: isso é uma colcha de retalhos... Há muita coisa a qual só conheço em parte.
– Deixe-me mostrar uma coisa.
Seu pai se levantou da mesa e, antes que ela pudesse ver o que ele fez, uma seção de prateleiras veio para frente e deslizou à esquerda, expondo um conjunto de segurança em meio à parede de pedra. A porta resistente foi aberta pelas impressões de toda a palma de sua mão em um painel e o interior não era muito grande – um pouco maior que um bloco de notas na horizontal e não tinha mais que quinze centímetros de altura.
Ele voltou à mesa com uma pasta grossa.
– Isso foi tudo o que consegui reunir. Nomes. Datas. Pessoas. Lugares. Talvez isso ajude a ativar sua memória. – Ele bateu sobre a capa da frente. – E vou descobrir a quem recorrer. Não há como saber com certeza quem está envolvido no círculo de relações de Matthias: conspirações governamentais têm grossas raízes, mas também possuem garras que você não consegue ver. A Casa Branca não é uma opção e é uma questão federal, então, contatos da União não vão nos ajudar. Mas eis o que eu penso...
A voz de seu pai tornava-se mais poderosa a cada palavra, a força crescente do propósito o transformava no pilar que ela sempre acreditou que fosse. E, enquanto ele descrevia os planos, ela sentiu uma mudança no centro de seu coração.
Embora isso se devesse muito a algo que Isaac havia falado. Nenhum de nós sabe no que está entrando até ser tarde demais...
O irmão dela tinha sido um drogado muito amado, um viciado de primeira ordem que teria morrido pelas suas próprias mãos em algum momento – embora essa não fosse uma justificativa para o que tinha sido feito com ele, era a simples realidade da situação. E ela se surpreendeu, na época, em como seu pai ficou desesperado com a perda. Ele e Daniel não mantinham contato há pelo menos um ano antes daquela noite terrível: depois da última internação em mais uma clínica de reabilitação caríssima ter caído no esquecimento, o pai atingiu seu limite assim como muitos pais e familiares faziam. Ele ofereceu tudo o que podia para seu filho, andou com toda dificuldade por uma década nos caminhos da recuperação que deram uma esperança traiçoeira, mas era inevitável que se seguissem longos e obscuros meses em que ninguém sabia onde Daniel estava ou, até mesmo, se estava vivo.
Contudo, seu pai estava inconsolável em sua morte. Ao ponto dele passar uma semana em uma cadeira com nada além de uma garrafa de gim ao seu lado.
E agora ela sabia o porquê. Ele acreditava que era inteiramente responsável.
Enquanto ela o observava falar, notava a idade em seu rosto... as rugas ao redor dos cantos dos olhos e da boca, a ligeira inclinação na linha do queixo. Ele ainda era um homem bonito e, ainda assim, nunca se casou de novo. Será que foi pela bagunça na qual estava envolvido? Provavelmente.
Definitivamente.
Aqueles sinais da idade nele não eram apenas uma questão do tempo. Foi estresse, dor de cabeça e...
Mudando seu foco para Isaac, seu olhar estreito e parecendo um laser era intenso; sua íris pálida brilhava muito com uma luz de “vamos à guerra”. Engraçado, ele não tinha nada a ver com seu pai em termos de antecedentes, educação escolar, exposição, experiência. E, ainda assim, eles eram idênticos em muitos aspectos.
Especialmente unidos na missão comum de fazer o certo.
– Grier?
Sacudindo-se, ela olhou para seu pai. Ele estava segurando algo em sua direção... um lenço? Mas por quê...
Quando ela sentiu algo atingir seu antebraço, olhou para baixo. Uma lágrima prateada se recolhia após a queda de seu olho, aglomerando-se em um pequeno círculo brilhante em sua pele.
Outra escorreu e atrapalhou todo seu esforço – mas, então, as duas uniram forças e a massa duplicou.
Ela pegou o lenço e enxugou suas lágrimas.
– Eu sinto tanto – seu pai disse.
Ela enxugou o rosto e redobrou o linho fino, lembrando-se dele fazendo a mesma coisa quando estavam na cozinha.
– Sabe? – ela murmurou. – Desculpas não significam nada. – Ela apoiou a mão na pasta que ele tinha colocado na mesa. – Isso... o que vocês dois estão fazendo... isso é tudo.
A única coisa que poderia consertar qualquer aspecto sobre isso.
Para interromper a conversa mental, abriu a capa...
Ela franziu a testa e se inclinou. A primeira página era uma impressão da imagem de quatro fotografias de rosto. Todos homens. Todos eles pareciam diferentes versões étnicas de Isaac. Embaixo das imagens, com a caligrafia de seu pai, havia nomes, datas de nascimento, números de cadastro na segurança social, a última vez que foram vistos... embora nem todos os dados estivessem concluídos. E três deles tinham a palavra FALECIDO embaixo de suas fotos.
Ela virou para próxima página e a próxima. A mesma coisa. Tantos rostos.
– Eu quero que Jim Heron entre nessa – Isaac disse. – Quanto mais estiver disposto a ir adiante, melhor...
– Jim Heron? – o pai dela disse. – Você quer dizer Zacarias?
– Sim. Eu o vi mais cedo essa noite e na noite anterior. Eu pensei que ele tinha sido enviado para me matar, mas, ao que parece, ele quer me ajudar... ou é assim que diz.
– Você o viu?
– Ele estava com dois rapazes. Eu nãos os reconheci, mas parecem com caras que poderiam ser das operações extraoficiais.
– Mas...
– Oh, meu Deus. – Grier sussurrou, aproximando uma das páginas. – É ele.
Quando ela apontou para uma das fotos, ouviu seu pai dizendo: – Jim Heron está morto. Atiraram nele em Caldwell, Nova York. Há quatro noites.
– É ele. – Ela repetiu, batendo na foto.
A voz de Isaac soou confusa.
– Como sabia? Grier... como você sabia?
Ela olhou para ele.
– Sabia o que?
– Que era Jim Heron.
Movendo seu dedo, ela viu o nome Zacarias abaixo da foto.
– Bem, eu não sei quem ele é, mas esse é o homem que apareceu no meu quarto na noite passada. Como um anjo.
CAPÍTULO 32
Aquilo não estava funcionando.
Lá no fundo do Inferno, onde ela mantinha suas almas capturadas e onde o ar rarefeito ecoava os gemidos de seus servos oleosos, Devina estava sofrendo de um caso grave de mau humor.
Razão pela qual ela mandou todos embora.
Parando de repente, ela observou o pedaço de carne amarrado com um fio metálico em sua mesa. À luz das velas, Jim Heron era uma obra ao estilo Pollock com sangue, cera negra e outros líquidos de vários tipos, e ele estava tendo dificuldades para respirar através de seus lábios inchados e rachados. Em seu estômago, havia um roteiro de escavações que ela tinha feito com suas próprias garras e as coxas dele estavam bem marcadas com seu nome e seus símbolos.
Seu pênis tinha sido utilizado até ficar tão em carne viva quanto o resto do corpo dele.
E, ainda assim, ele não chorou ou implorou ou sequer abriu os olhos. Nenhuma blasfêmia, nada de lágrimas. Nada.
Ela não tinha certeza se deveria ficar chateada consigo e com seus ajudantes por não terem se esforçado o suficiente... ou se estava se apaixonando pelo bastardo.
De qualquer maneira, ela tinha a determinação de conseguir um pedaço dele. A questão era como.
Devina estava bem consciente de que havia duas maneiras de quebrar alguém. A primeira era de fora para dentro: você esculpia a pele, os ossos e o sexo do indivíduo até que a dor física, a exaustão e a vergonha aniquilavam seu núcleo mental. A segunda era o inverso: encontrar a fenda que havia dentro da pessoa e martelar com palavras até que tudo desmoronasse.
Normalmente, a primeira era suficiente para ela, tendo em conta todas as ferramentas à sua disposição – e também era divertido e, portanto, era por onde ela sempre começava. A segunda era mais complicada, embora não menos satisfatória à sua maneira. Todas as pessoas tinham chaves para abrir suas portas internas; ela só precisava classificá-las e descobrir aquela que a levaria para dentro da mente e do coração do indivíduo.
No caso de Jim Heron... Bem, estava claro que ele ia dar trabalho. E aquilo ainda abriria uma competição pelo brinquedo favorito com Adrian.
O que escolher, o que escolher...
A mãe dele. Sua mãe era uma boa, mas Devina não era capaz de ficar calma para se aproximar da realidade e ele deveria ser inteligente o suficiente para descobrir que ela estava fingindo...
Felizmente, havia outra solução que estava sob seu controle.
Fora do alcance da luz das velas, presas em suas paredes viscosas, as almas daqueles que ela capturou se contorciam. Mãos, pernas, pés e cabeças faziam aparições ondulantes que nunca quebravam a superfície suspensa, o torturado sempre procurava por uma saída.
A satisfação de ver sua coleção a distraiu, mas também a deixou faminta: ela tinha que ter Jim também como um troféu entre os outros. Estava desesperada para tê-lo dentro dela. No início, tinha sido um mero jogo; agora, depois daquela sessão, era muito mais que isso.
Ela queria obtê-lo.
Voltando a focar o rosto dele, ela achou sua expressão quase impossível de compreender. Como um homem poderia ter passado por tanta coisa... e sem sequer fazer uma careta. E também sem medo do que estava por vir.
Contudo, ela ia consertar isso.
E ela gostava de pensar que esse poder nele vinha daquela porção que ela compunha. Aqueles anjos de corações sangrando com sua contenção e moral sacrossantas... fracos, tão fracos. Ao ponto de ela não querer perder o jogo contra Nigel não apenas porque poderia governar a terra e os céus e tudo o que havia entre o sol e a lua... mas porque um bom tapa no traseiro daqueles maricas seria demais.
Contudo, Jim... ele era melhor que isso. Ele era mais parecido com ela no fundo de seu ser.
Que tragédia ter que enviá-lo à Terra em breve; mas o jogo, afinal, tinha que ser retomado. Entretanto, antes de ir, ela estava determinada em fazer uma impressão nele, dar a ele mais um pouco do que seria o Inferno Eterno. Afinal, os cortes em sua pele eram relativamente rasos. Porém, marcas na mente eram muito, muito mais profundas.
E imortais eram especialmente gratificantes nesse sentido, pois, conforme o cérebro persistia, assim era a memória – e isso significava que ela poderia deixar cicatrizes eternas.
Olhando a parede, que se estendia quilômetros acima dela, Devina pensou em sua terapeuta e no trabalho que estavam fazendo juntas. Aquele era um domínio que estava fora dos limites de sua “recuperação”, e sua situação com Jim era mais uma prova de como seu probleminha de acumular objetos viria a calhar.
Você nunca sabe do que pode precisar.
Estendendo a mão, puxou uma das formas mais esbeltas, movendo-a dentre as outras almas, chamando-a até ela. Quando estava no chão, ela convocou a alma e a vestiu da forma corpórea que costumava exibir na Terra.
Devina sorriu frente a isso. Tanta utilidade em um pacotinho tão insosso e esquecível.
Voltando-se para a mesa, ela disse: – Jim? Tenho alguém aqui que você vai querer ver.
Deitado sobre a mesa de Devina, ele duvidou. Duvidou disso, de maneira muito sincera.
Além disso, naquele ponto, visões provavelmente não eram convidativas.
Nada mais doía, o que tornava aquela droga toda muito mais fácil. No entanto, a troca que fez por aquela feliz dormência foi sua consciência recolhida a um canto escuro de seu interior. Ele ainda não tinha deitado a cabeça para tirar um cochilo, mas estava chegando lá: a audição tinha atingido a fase do algodão, onde tudo estava abafado e as coisas estavam bem frias dentro de sua pele.
Os sinais clássicos do choque faziam com que ele se perguntasse se ela tinha, de fato, a capacidade de matá-lo.
Ela não tinha finalizado Adrian, mas será que aquilo não seria um capricho do afeto?
– Vou deixar vocês dois se conhecerem.
A satisfação de Devina não era uma boa notícia, considerando que ela fez todo o inumano possível para acabar com ele afinal... Por quanto tempo? Horas? Tinha que ser.
Passos. Recuando.
Uma porta. Fechada.
Silêncio.
Contudo, alguma coisa estava com ele. Ele conseguia sentir a presença à sua esquerda.
Atrás de suas pálpebras fechadas, ele tinha certeza de duas coisas: Devina não devia ter ido muito longe e, seja lá o que foi que ela trancou com ele, estava perto.
A respiração foi a primeira coisa que ele notou. Macia, suspensa. Do tipo que você pratica quando está em modo de recuperação. Será que era sua própria respiração?
Não. O ritmo era diferente.
Ele virou a cabeça com cuidado em direção a coisa e babou, sua boca se livrou do que ele não conseguia engolir por causa do fio em volta do seu pescoço.
Seja lá o que estava com ele, soltou outra respiração suspensa. E, então, ele ouviu um sutil estalo.
Que diabos era aquilo?
Em dado momento, a curiosidade prevaleceu e ele rompeu uma de suas pálpebras... ou deu uma chance a elas, por assim dizer. Precisou de duas tentativas e ele teve que empurrar as sobrancelhas em direção à testa antes que as porcarias se abrissem...
No início, Jim não conseguiu compreender o que estava olhando. Mas o cabelo loiro não podia ser negado... aqueles cabelos longos e loiros que caiam sobre ombros frágeis.
A última vez que os viu tinha sido há dois dias. No banheiro de Devina.
Estava banhado de sangue.
A garota que tinha sido sacrificada para proteger o espelho de Devina estava vestida com uma capa manchada, seus braços finos cobriam os seios, uma pequena mão protegia a junção de suas coxas. Parecia, como milagre, que ela não estava marcada, mas o trauma estava ali: seus olhos estavam arregalados e horrorizados...
Só que eles não estavam na sala. Eles estavam nele... em seu corpo e nos restos brilhantes e pegajosos de tudo o que tinham feito com ele.
– Não... – A voz dele estava tão fraca que ele precisou puxar mais ar através daquela barreira de arame em sua garganta. – Não olhe... para mim. Afaste-se... Pelo amor de Deus, afaste-se...
Droga. Ele precisava de mais oxigênio, precisava fazer com que ela...
Os olhos dela encontraram os dele. O choque e o terror em sua face disseram mais do que ele precisava saber, não apenas do que tinha sido feito com ela por Devina, mas sobre o que a visão dele estava fazendo com aquela pobre garota.
– Não olhe para mim!
Quando ela se encolheu e retraiu-se, seu temperamento vacilou. Não que houvesse muito para conter – mas ele usou toda sua força naquele grito.
– Cubra o rosto – ele disse com a voz rouca. – Afaste-se e apenas... cubra o rosto.
A garota ergueu as mãos e se virou, sua coluna delicada destacava-se contra a capa conforme tremia.
Jim tinha puxado suas amarras involuntariamente durante a pequena sessão de exercícios com Devina. Agora, ele as empurrava.
– Você está se machucando – ela disse enquanto ele grunhia. – Por favor... pare.
A dor interrompia sua capacidade de fala e levou um tempo para dizer alguma coisa.
– Onde... Onde ela a mantém? Aqui embaixo?
– Na... na... – Sua voz era tão débil e, entre as palavras, seus dentes batiam, o que explicava o clique que ele tinha ouvido. – Na parede...
Seus olhos se atiraram em direção à escuridão, mas a luz das velas formava um bloqueio luminoso que seus olhos não conseguiam ultrapassar.
– Como ela faz isso? – Sem correntes, ele esperava.
E, droga, ele ia ferrar Devina por isso.
– Eu não sei – a garota disse. – Onde estou?
No inferno. Mas ele manteve isso para si.
– Eu vou tirá-la daqui.
– Minha mãe e meu pai... – ela caiu em lágrimas. – Eles não sabem onde estou.
– Vou dizer a eles.
– Como... – Quando ela olhou sobre seu ombro, seus olhos se fixaram sobre seu dorso degradado e ela empalideceu.
Ele balançou a cabeça.
– Não olhe. Prometa... não olhe mais para mim.
Mãos pálidas voltaram àquele belo rosto e ela assentiu.
– Meu nome é Cecilia. Sissy Barten, com ‘e’. Tenho 19 anos. Quase vinte.
– Você mora em Caldwell?
– Sim. Estou morta?
– Quero que faça uma coisa por mim.
Agora, ela deixou cair os braços e olhou para ele com firmeza.
– Estou morta?
– Sim.
Ela fechou os olhos como se outra onda de agitação atingisse seu corpo.
– Esse não é o Céu. Eu acredito no Céu. O que eu fiz de errado?
Jim sentiu algo quente no canto dos dois olhos.
– Nada. Você não fez nada de errado. E eu vou te levar para lá.
Nem que fosse a última maldita coisa que fizesse.
– Quem é você?
– Sou um soldado.
– Como no Iraque?
– Costumava ser. Agora eu luto contra essa vadia... ah, mulher que fez isso a você.
– Eu pensei que estava ajudando... quando a moça me pediu para carregar uma bolsa para ela. Eu pensei que estava ajudando... – Ela inspirou com força como se estivesse tentando se recompor. – Você não pode sair daqui. Eu tentei.
– Eu vou salvá-la.
De repente, a voz dela ficou mais forte.
– Eles machucaram você.
Droga, ela estava olhando para ele de novo.
– Não se preocupe comigo... tem que se preocupar consigo mesma.
Um som, como de algo caindo ou talvez uma porta de metal se fechando, ecoou, assustando a garota e focando Jim. Sem dúvida, Devina chegaria logo e colocaria Sissy de volta ao seu lugar, então, ele tinha que agir rápido. Ele não sabia quando voltaria ali ou como exatamente poderia libertar sua garota.
Sissy, era esse o nome.
– É ela? – Sissy perguntou tensa ao ouvir o som de passos ao longe. – É ela, não é? Eu não quero voltar para a parede... por favor, não deixe que ela...
– Sissy, ouça. Eu preciso que você se acalme. – Ela tinha que ter algo para focar, algo para manter sua mente sã enquanto ele descobria como voltar ali para salvá-la. Sondando sua mente, ele tentou criar uma imagem, algo para acalmá-la.
– Eu preciso que me ouça com atenção.
– Eu não posso voltar para lá!
Droga, o que fazer para que ela se concentre?
– Eu tenho um cachorro – ele desabafou.
Houve uma agitação, como se ele a tivesse surpreendido.
– Você tem?
Quando os passos se aproximaram, ele quis soltar um palavrão.
– Sim, eu tenho.
– Eu gosto de cachorros – ela disse em voz baixa, seus olhos fixos nele.
– Ele é cinza, meio loiro e peludo. Seu pelo... – os passos foram ficando cada vez mais altos e Jim falou rápido. – Seu pelo é grosso, como se fosse feito das sobrancelhas de um senhor idoso e ele tem patinhas. Ele gosta de sentar no meu colo. Ele tem uma perna manca que aparece quando ele corre rápido demais e ele gosta de comer minhas meias.
Uma fungada e uma respiração suspensa. Como se soubesse o que estava se aproximando e ela ia fazer o melhor que podia para segurar a corda de segurança que ele estava tentando oferecer.
– Qual o nome dele?
– Cachorro. Eu o chamo de Cachorro. Ele come pizza e sanduíche de peru e dorme no meu peito. – Mais rápido. Mais rápido com as palavras. – Você vai conhecê-lo, ok? Você vai levá-lo para passear em um gramado e... Sabe quando se dobra uma meia dentro de outra?
– Sim. – Agora havia urgência. Como se ela quisesse o máximo que ele poderia dar. – Uma bola de meia.
– Bolas de meia... é isso. – Rápido, rápido, rápido. – Você vai pegar uma bola de meia, vai jogar e ele vai trazê-la de volta para você. O sol é alto, Sissy. Você pode senti-lo em seu rosto...
– Quando você volta? – ela sussurrou.
– Assim que eu puder. – Ele estava falando de maneira confusa agora, os passos se aproximavam e ele sabia que estavam usando saltos agulha afiados e pontudos.
– Lembre-se do Cachorro. Está me ouvindo? Quando sentir que está perdendo, lembre-se do meu cachorro...
– Não me deixe aqui...
– Vou voltar por você...
O rosto de Sissy estava cheio de lágrimas quando ela estendeu a mão para ele.
– Não me deixe aqui!
Em um instante, ela assumiu a forma que tinha quando ele a viu sobre a banheira, aquela capa desapareceu, deixando-a nua, seu corpo estava profanado, seus cabelos loiros desgrenhados e emaranhados com sangue.
De repente, seus olhos saltaram para um canto distante e seus lábios manchados começaram a tremer.
– Não!
Ela colocou as mãos para cima como se quisesse afastar golpes, curvando-se para se afastar deles...
Dessa maneira, ela se foi. E Devina, a bela e diabólica Devina, entrou sob a luz das velas.
Jim perdeu essa.
Parou na metade.
Perdeu como um filho da mãe.
Quando ele xingou a assassina sangrenta, era tudo sobre a menina. A moça inocente que tinha sido tirada de sua família por um demônio, puxada para um buraco e aprisionada ali... e obrigada a ver o que restou de um homem torturado.
A raiva era uma bomba nuclear que explodia dentro dele...
A luz branca entornou de suas órbitas, explodindo na sala, iluminando as brilhantes paredes pretas que se estendiam para cima em direção ao infinito. A liberação da luz consumiu sua forma física, libertando-o das amarras de Devina, levando-o a percorrer o espaço em uma rajada de moléculas soltas que sopraram as velas e derrubaram seus suportes.
Aglutinando sua forma intensamente, ele se virou... e foi ao ataque de Devina.
Agora, era ela quem se preparava para o impacto, seu cabelo moreno foi arrancado de seu couro cabeludo com o furacão explosivo que ele produziu, a pele de seu rosto foi de encontro a sua estrutura óssea quando ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre o chão de pedra.
Assim que ele a alcançou, Jim reuniu sua nova forma em uma lança certeira e atirou-se direto em direção ao peito dela.
Jim entrou no corpo dela e lançou a vadia longe, todas as partes dela saíram voando, pedaços de sua pele, emaranhados de entranhas escorregadias e quilos de carne vermelha escura se espalharam pelas paredes de sua masmorra.
O que sobrou foi um buraco negro da mesma massa e energia que o compuseram – ele estava pronto para atacá-la assim.
Só que, evidentemente, ela não estava interessada em uma luta corpo a corpo: sua sombra distorcida saiu da sala e desceu um corredor, iniciando uma fuga.
Mas que... Droga!
Jim correu atrás dela...
E se chocou com o equivalente metafísico de uma casa de tijolos.
O impacto chocante da barreira invisível o enviou para trás e ele assumiu sua forma corpórea mais uma vez ao deslizar em carne viva no chão de pedra.
Ele teve um breve momento para soltar um “mas que inferno!” antes que o sinal de fim de jogo do seu corpo piscasse e ele caísse de costa em exaustão absoluta.
Quando sua raiva passou, nada mais havia nele e um cansaço fatal sangrou de seu coração que batia de maneira estranha e se espalhou por ele como uma erva daninha que se enraíza e floresce. Não mais sendo capaz de erguer a cabeça, ele deixou a coisa descansar na pedra e apenas respirou, mal notando que o ar estava saturado com cheiro de morte recente e com uma pitada acre da fumaça das velas.
– Sissy – ele disse na escuridão. – Estou bem aqui...
Ele não tinha ideia de se ela podia ouvi-lo e não houve resposta. Apenas um som estranho, fundido... sem dúvida, as almas tentando se livrar de sua prisão.
Ele odiava pensar que sua garota estava presa lá.
Odiava o fato de tê-lo visto daquela maneira.
Com esse pensamento, a dor o incomodou como se tivesse sido esfaqueado com uma barra de ferro. Oh, Deus... aquela pobre criança...
Um aumento súbito de emoção veio sobre ele em uma onda: nu, arrasado e imundo, Jim encolheu-se para um lado e chorou sufocado e com grande sofrimento, suas lágrimas quentes e salgadas percorriam a pele de seu rosto arrasado.
Ele nunca se preocupou em se machucar. Nunca. Mas suas falhas... seus fracassos eram insuportáveis. E agora havia duas mulheres que ele não tinha sido capaz de salvar: sua amada mãe e Sissy... Nas duas ocasiões, ele chegou tarde demais no local, nas duas ocasiões, o dano já havia sido feito antes dele chegar.
Com uma precisão horrível, ele viu sua mãe no chão da cozinha da fazenda, nada além de estraçalhada... e Sissy sobre a banheira.
Agora Sissy também, tentando se afastar do demônio.
Era demais para suportar, o peso de suas falhas era grande demais para suportar, quanto mais para continuar a lutar...
O som de seu nome abriu seus olhos e diminuíram os soluços.
Com um esforço enorme, ele virou a cabeça e olhou para cima.
Muito, muito, muito acima, a uma galáxia de distância de onde ele estava, um pontinho de luz se recolhia e ficava mais forte, começando de novo como se fosse a cintilação minúscula de um pisca-pisca na árvore de Natal... e, então, se intensificou para 25, depois 60 e, então, parecia uma lâmpada de 100 watts.
A iluminação caía sobre ele com a velocidade e a eficiência de uma pluma através do fino ar... dentes de leão soprados pela boca de uma criança... flores do campo sob uma brisa suave...
Levou um tempo bastante longo para que sua mente abrangesse a desconexão entre seu desespero épico e o delicado caminho de luz. Fechando os olhos, ele parou de assistir e se entregou ao estremecer aleatório de seu corpo espancado.
– Jim.
Uma voz masculina. Sobre ele.
Jim abriu as pálpebras para ver que a luz havia se tornado um homem de cabelos escuros com asas douradas magníficas.
Colin.
O arcanjo número dois.
– Ei, companheiro – o cara disse ao se ajoelhar. – Eu vim para te tirar daqui.
De algum lugar, só Deus sabe de onde, Jim convocou energia suficiente para falar.
– Leve-a no meu lugar. Deixe-me aqui... leve-a no meu lugar. Sissy. A menina...
– Isso eu não posso fazer. Eu não deveria estar aqui agora. – O anjo se inclinou e reuniu a forma arrasada de Jim em seus braços. – Mas você vai precisar de um tempo para se recuperar antes que possa sequer se sentar, quanto mais sair daqui por si mesmo. E a guerra continua sem você.
Nenhum argumento para seu nível de energia, mas Deus, ele gostaria que Sissy estivesse um milhão de quilômetros longe dali.
– Deixe-me – ele gemeu.
– Não nessa vida. Você quer Sissy liberta? Derrote Devina. É assim que vai libertar sua garota desse pesadelo.
Quando começaram a levitar, a cabeça de Jim pendeu para um lado e ele os viu subir, subir, afastando-se metros e metros – inferno, eram quilômetros – das paredes negras. Ao longo do caminho, a forma brilhante de Colin iluminava o deslocamento, agitando a superfície, e rostos se sobressaíam na opacidade, através da barreira líquida, como se aqueles que estavam presos tentassem vê-los, pegá-los, juntar-se a eles na fuga. De todas as direções, mãos se estendiam. Contorcendo-se em formas grotescas como se a barreira maleável da prisão provasse ser rígida demais para ser trespassada.
Onde estava a garota dele? Sua bela e inocente garota que...
O cérebro de Jim estava esgotado, a trama de seus pensamentos se desembaraçava, a consciência começou a desistir daquele fantasma e se aprofundou no berço rígido das paredes de seu crânio.
Enquanto desmaiava, sua última missiva mental foi uma oração: que Sissy se lembrasse do Cachorro e se agarrasse a essa esperança até que Jim pudesse fazer disso realidade.
CAPÍTULO 33
Na adega, com a imagem de Jim Heron exposta no dossiê, Isaac estava certo que os dois Childes tinham perdido a cabeça.
– Ele não está morto. – Isaac lançou olhares para pai e filha. – Eu não tenho certeza do que você viu ou o que ouviu...
– Ele esteve no meu quarto. – Grier balançou a cabeça. – Foi assim que fiquei sabendo que você estava tendo o pesadelo. Ele apontou o caminho e, em seguida, eu fui até você. Pensei que era um sonho, mas por que identifiquei o rosto dele na foto de maneira tão clara?
– Porque você o viu. Ontem à noite, na luta. Ele estava comigo.
– Não, ele não estava.
Certo. O cara esteve bem na frente dela.
– Você disse que era um anjo.
– Bem, parece que ele tinha asas.
Teoricamente, era possível que Heron tivesse feito uma visita a ela – mas com o alarme de segurança, era possível concluir que ele deve ter ficado distante das portas francesas da sacada. Ao acordar e ficar meio desorientada, ela concluiu que Jim estava do lado de dentro. E isso foi apenas uma coincidência com o pesadelo... Assim como as asas? Jim Heron nunca foi santo, muito menos um anjo. Seja lá o que ela tinha visto, devem ter sido reflexos dos vidros. Tinha que ser.
O pai de Grier falou.
– Estou dizendo, ele está morto. Eu recebo um alerta de rastreadores na internet com os nomes dos agentes que conheço... e ele levou um tiro em Caldwell, Nova York, há quatro dias.
Isaac revirou os olhos.
– Não acredite em tudo que lê. Eu falei com o cara no jardim dos fundos ao anoitecer. Frente a frente. Confie em mim, ele está vivo e precisamos dele. – Isaac ficou em pé. – Os amigos dele estão vigiando a casa enquanto conversamos e, pessoalmente, acho que Heron declarou uma guerra velada a Matthias, então, tenho plena certeza de que podemos chamá-lo para trabalhar conosco, concluindo que eles ainda não o mataram. Acredito que o status dele é de desaparecido em ação, no momento.
– Espero que possa agregá-los, então, pois quanto mais pessoas para acompanhá-lo, melhor. – Childe bateu uma de suas mãos sobre os dossiês. – Deve revisar tudo isso essa noite, preencher as lacunas, tentar encaixar o que sabe... mesmo que não queira entregar seus companheiros soldados, isso pode ajudar nas suas lembranças. Vou subir até o corredor do banheiro e usar meu telefone de segurança para fazer algumas ligações e estabelecer as coisas o mais rápido que puder.
– Entendido. Mas eu gostaria que o senhor ficasse longe das janelas e não saísse da casa.
– Vou ser cuidadoso. – Childe lançou um olhar à sua filha. – Prometo.
Quando o pai de Grier desapareceu escada acima, Isaac verificou o transmissor de alerta. O aparelho ainda mostrava que o sinal tinha sido enviado, mas ainda não tinha recebido resposta. O que significava que ele ou estava muito abaixo do solo naquela adega para receber isso... ou Matthias estava dando um tempinho para entrar em contato.
Ele olhou para Grier.
– É melhor eu ficar lá em cima por um tempo no caso deles tentarem entrar em contato comigo.
– O que você vai fazer? Se eles quiserem se encontrar com você imediatamente?
– Tenho uma margem de tempo até eu me entregar. Mas seu pai precisa fazer alguns milagres rapidamente. – E, por favor, Deus, faça com que Jim Heron esteja bem... e que apareça logo.
Ela acariciou os dossiês com sua mão elegante.
– Ele é bom com milagres. Na verdade, é a especialidade dele. Você deveria vê-lo negociando. – Seus olhos baixaram até a pasta. – Vou ficar aqui. Quero ver se reconheço algum desses homens. Havia muitos que batiam na porta durante a minha infância e eu sempre me perguntei quem eles eram.
Quando ela ficou em silêncio, ele deu um passo adiante. E depois outro. Em volta da mesa, até que estivesse ao lado dela.
Quando ela levantou o olhar para ele, Isaac colocou para trás com cuidado uma mecha de cabelo que estava em seu rosto.
– Não vou perguntar se está bem, pois como poderia, não é?
– Você já sentiu... como se não reconhecesse sua própria vida?
– Sim. E isso foi o que me levou a mudar.
Bem, aquele tinha sido o primeiro passo. Ele estava começando a acreditar que ela era o segundo. E com o pai dela e Jim Heron... três era o número mágico. Se Deus quisesse.
– Sabe de uma coisa? – ela disse. – Estou realmente feliz em ter te conhecido.
Isaac recuou.
– Pelo amor de Deus, como pode dizer isso?
– Você foi a chave que destrancou as mentiras. – Ela voltou a encarar a foto de Jim Heron. – Acho que sem você nada disso seria esclarecido. Apenas algo que pudesse estilhaçar assim...
Quando ela não completou, ele deu um passo para trás.
– Sim. Esse sou eu.
Ela assentiu de maneira distraída, virou a página e se perdeu nos rostos dos homens que eram exatamente como ele... homens que haviam arruinado a família dela.
Estilhaçado.
Será que os agentes que tinham matado seu irmão estavam ali? Com algumas notas?
De alguma maneira, ele duvidava que o pai os colocasse ali.
– Posso lhe servir um pouco de vinho? – ele perguntou, antes de sair.
Grier sorriu um pouco.
– Estou cercada disso.
– Verdade. – Ele deveria ter oferecido café. Água. Cerveja. Uma troca de óleo. Qualquer coisa que ele pudesse fazer por ela ou dar a ela para acalmá-la.
Bem, agora, com essa brecha, havia algo melhor que poderia fazer. Ele poderia deixá-la.
– Vou estar lá em cima. – Quando ele alcançou a porta, olhou para trás. Ela estava enterrada nos dossiês, sobrancelhas tensas, braços no colo ao inclinar-se sobre a mesa.
Sim, deixá-la tornaria as coisas muito melhor.
Ele se virou e subiu as escadas para a cozinha de dois em dois degraus. Parando na base da escada, ele ouviu alguma coisa. Não um som. O que fazia sentido uma vez que o pai dela tinha se trancado em um banheiro protegido.
Droga, ele não acreditava que estava prestes a denunciar Matthias. Mas, às vezes, a morte natural era boa demais para alguém. Melhor que apodrecer atrás das grades ou ficar tão aceso quanto a Times Square em uma cadeira elétrica.
Era quase como se ele estivesse destinado a encontrar Grier e seu pai nesse exato momento de sua vida – os dois tinham sido predestinados a lhe mostrar algo muito mais honroso do que havia planejado fazer.
Contudo, Jim Heron se mostraria importante também.
Apalpando uma de suas armas, saiu para o jardim pela porta dos fundos.
Evitando a luz que era sensível ao movimento, ele aguardou nas sombras sem fazer barulhos e, claro, um dos amigos de Jim se aproximou um momento depois. No instante em que colocou os olhos no cara, estava claro que o clima permanecia ruim: o cara com a trança tinha os lábios apertados e o olhar rígido como de um homem que ainda não sabia onde um dos membros de seu time estava.
– Jim ainda não pôde vir? – Isaac perguntou. Mesmo sabendo que a resposta era um claro “não”, dado àquela expressão.
– Espero que possa vê-lo pela manhã.
Isaac olhou para seu relógio.
– Não sei se tenho todo esse tempo.
– Arranje algum.
Fácil para ele dizer.
– Vai me dizer se ele aparecer?
Quando o cara assentiu, Isaac ficou muito preocupado.
– Ele está bem? – Quando o cara balançou a cabeça devagar, Isaac soltou um palavrão.
– Você vai me dizer o que está acontecendo? – Silêncio. – Sabe? Para sua informação, as pessoas pensam que ele morreu.
– Tudo que posso dizer é que... neste momento, ele gostaria de estar morto.
Adrian observou enquanto Eddie conversava com Rothe perto da porta dos fundos e mesmo Ad sendo intrometido como ninguém, ele não se importava com o que estavam dizendo.
Nigel. Aquele filho da mãe do Nigel.
Pensava que era o “Sr. Acima de Tudo Quanto é Mais Sagrado”.
Que estava mais que disposto a deixar seu maior trunfo ser usado e abusado pelo inimigo apenas porque era bichinha demais para arregaçar as mangas e nocautear Devina.
Enquanto isso, Jim era um equipamento de ginástica para um bando de babacas pervertidos.
Cara, ele apenas veio com aquela história de não poder fazer nada. Se Ad tivesse um de seus amigos capturado e ele pudesse libertá-lo? Não importava o que ele tivesse que fazer, o sacrifício que isso fosse requerer, por onde tivesse que passar: ele traria o pobre filho da mãe de volta. E onde estava seu chefe agora? Jantando.
Aquilo fazia com que ele desejasse enfiar a sobremesa no traseiro de Nigel.
Adrian esfregou o rosto com tanta força que quase arrancou o nariz. O problema era: a pequena oficina de Devina não era acessível a ele ou a Eddie, a menos que saltassem através de seu espelho – caso contrário, ela tinha que levá-lo até lá... e ela o liberava dali apenas quando estivesse bem satisfeita.
Nunca antes.
Foi por isso que eles foram até Nigel. Havia rumores de que arcanjos poderiam descer ao inferno sob certas circunstâncias – ninguém sabia exatamente o que aquelas mocinhas tinham que fazer ou como funcionava. Contudo, a moral da história era que aqueles quatro pesos-pena eram sua única esperança...
Como se seu nome tivesse sido pronunciado em vão, Colin apareceu do nada, os cabelos escuros do arcanjo surgiram em frente ao rosto de Adrian.
– Droga! – Ad falou entre dentes ao pular para trás e segurar-se em um arbusto – que rapidamente se quebrou ao meio com seu corpo pesado.
Ele aterrissou como um saco de areia, mas não ficou parado. Levantando-se, assumiu uma postura que exigia uma explicação: aqueles rapazes não costumavam aparecer à toa na Terra.
– O que você está...
– Eu o tirei de lá.
Ad piscou, de repente ele não entendia o idioma. Espere um minuto. Ele tinha acabado de ouvir que...
– Jim? Você está falando de Jim?
– Está livre.
– Mas Nigel disse...
– Não estou discutindo isso. Eu tinha a opção de tirar alguém do covil de Devina e coloquei o pobre rapaz no hotel em que estão hospedados... ele precisa de cuidados.
Eddie se aproximou.
– Você o tirou de lá? Mas eu pensei que Nigel...
– Eu tenho que ir. – Colin deu um passo para trás e começou a desaparecer. – Vão ajudá-lo. Ele precisa.
– Obrigado. – Ad respirou, aliviado e enjoado: a recuperação de alguém que passou por uma das sessões de Devina era terrível. Principalmente porque as memórias daqueles momentos eram muito vívidas.
Colin balançou a cabeça ao desaparecer, sua voz era demorada: – Isso simplesmente não foi certo.
– Estou indo para o hotel – Adrian disse, desfraldando suas asas para se elevar no ar. – Fique de olho em Isaac...
Eddie segurou o braço dele com força.
– Deixe-me cuidar de Jim.
– Não.
– Essa não é bem sua área, Adrian. – O aperto de Eddie o manteve no chão, aquela grande mão espremia seus ossos e músculos. – E sabe disso.
– Pro inferno que não é.
Libertando-se, ele deu três saltos e saiu voando pelo ar, aprofundando-se na noite e impulsionando-se para oeste. O voo de volta para onde estavam hospedados foi irregular e acidentando – mas não por causa do vento. Era mais porque Eddie tinha razão, o filho da mãe.
Quando Ad chegou ao hotel, ele queria ir até os quartos atravessando as paredes, mas decidiu não arriscar: uma vez que o papel de bala interior que o envolvia estava solto e se debatendo, ele caiu no gramado e seguiu pela recepção. Ele tinha a sensação de que estava distraído e enjoado demais para atravessar madeira e concreto com sucesso.
O problema era: ele sabia exatamente como Jim estava.
Ao alcançar a recepção, uma mulher simpática atrás da mesa o cumprimentou: – Boa-noite, senhor. – Mas ele apenas acenou e iniciou uma corrida. Não houve espera pelo elevador, um casal estava fazendo check-in com seus filhos e tinham um carrinho cheio de bagagens. Mas mesmo com aquela situação tão conveniente, ele não era capaz de esperar tanto tempo para que as portas se abrissem para ele.
Pelas escadas. De dois em dois degraus. Algumas vezes três.
Quando chegou ao último andar, seu coração estava a mil por hora e não apenas porque tinha se exercitado. Ele não tinha a chave do quarto de Jim, então, pegou a sua mesmo e deslizou no vão da fechadura.
Ele abriu o caminho como uma explosão.
– Jim? Jim?
O brilho do banheiro iluminava a cama desarrumada onde ele e Eddie tinham estado com aquela garota na noite anterior, as roupas também estavam espalhadas por toda parte.
A porta que levava ao quarto de Jim estava meio aberta, o quarto estava escuro.
– Jim...?
Ele sabia que o anjo estava lá. Ele podia sentir o cheiro da fumaça de vela, do sangue fresco e de... outras coisas.
A pressa que havia no rapaz evaporou quando a realidade do que estava prestes a ver agarrou seu peito e o sufocou. Mas ele não ia voltar atrás. Ele era um idiota de primeira ordem, sempre foi. Contudo, não era um maricas para fugir de situações difíceis.
Adrian passou pela porta entre os dois quartos e se inclinou.
– Jim.
A luz no banheiro atrás dele cortava um caminho ao longo da escuridão e parava aos pés da cama do anjo como se fosse educada demais para mostrar sua condição.
Depois que Adrian atravessou o batente, precisou de um momento para que seus olhos se ajustassem.
Com um sussurro, ele prometeu: – Eu vou matar aquela vadia...
Jim estava deitado de lado, enrolado em si mesmo, como se tentasse conservar seu próprio calor, e tremia por completo. Um cobertor foi puxado – sem dúvida, pelo arcanjo – sobre seu corpo grande e maltratado e o Cachorro estava bem próximo de seu rosto, ajeitado em formato de bola, sem se mover.
Quando Adrian se aproximou, o animal se moveu um pouco, mas não levantou a cabeça, permanecendo nariz a nariz com Jim.
O anjo parecia estar respirando, seu peito subia e descia, um chiado suave saía por sua boca machucada. Seu cabelo estava embaraçado e havia sangue em seu rosto, feições que, há não muito tempo eram suas, desapareceram graças às feridas enormes.
Adrian sentou-se lentamente.
– Jim?
Sem resposta, então, ele tentou repetir o nome de guerra mais algumas vezes. Em dado momento, as pálpebras de Jim se ergueram.
– Ei... – Adrian sussurrou.
Ele gemeu e, em seguida, seus olhos se fecharam e o corpo estremeceu sob o cobertor como se estivesse tendo um ataque.
Se aquilo era algo parecido com o que Adrian passou – e dada a forma como o cara aparentava, era quase idêntico –, o que Jim realmente queria era uma banheira de água quente seguida por uma ducha. Mas era cedo demais para isso. Medicar primeiro – havia muitos ossos quebrados e contusões para tratar – o que era o peso da dupla natureza de um anjo: ser real e irreal ao mesmo tempo significava que pelo menos metade de você poderia se ferrar muito e a droga não se revertia imediatamente.
Adrian se levantou e foi até o aquecedor que estava debaixo da janela. Girando o botão para o modo “sauna”, ele tirou a jaqueta de couro e fechou a porta que dava para o outro quarto, trancando-os ali. Então, ele sentou na cama, se estendeu sobre o fino cobertor e colocou seu peito nas costa do anjo para aquecê-lo.
Enquanto estava deitado, ouvindo um zumbido que vinha do aquecedor, sentia os tremores ao longo do tronco e dos outros membros de Jim. Parte disso era o processo de cura, que de algumas maneiras era mais doloroso que o surgimento das lesões. E outra parte disso era o frio do choque traumático.
E outra parte eram as memórias, sem dúvida.
Ele queria colocar um braço em volta do cara, mas isso faria com que Jim se sentisse muito desconfortável: quando esteve nessa condição, ele deitou nu, sem sequer um lençol sobre sua pele arranhada.
Depois de um tempo, o calor crescente que se espalhou do aquecedor os alcançou, fazendo arcos e descendo pelo ar. Jim, obviamente, sentiu o fluxo, pois respirou longamente e exalou em um vago suspiro.
Deitando ao lado do outro anjo, Adrian já tinha esperado uma vez que seria assim que Jim acabaria e foi o que aconteceu mesmo, até certo ponto. Ele sabia que Devina queria o cara... desde a primeira missão, desde àquela primeira noite no clube em Caldwell. E ele serviu Jim de bandeja para ela.
Com direito a tudo, até a uma etiqueta indicando “DE/PARA”.
Difícil não se sentir responsável por isso.
Difícil mesmo.
– Vou cuidar de você, Jim – ele disse com voz rouca. – Estou aqui por você, cara.
CAPÍTULO 34
Na adega, Grier passava os dossiês um por um enquanto esperava... e esperava... e esperava mais um pouco...
Finalmente.
– Por que você não me disse? – ela perguntou, sem olhar para trás.
Daniel levou um longo tempo para responder, mas ele não desapareceu: sempre que ele estava por perto, ela conseguia sentir uma pequena brisa e enquanto aquilo acariciava sua nuca, ela sabia que ele ainda estava com ela.
Pensei que ia odiá-lo. E, então, você e ele não teriam mais ninguém.
– Então, você sabia o que aconteceu?
Daniel andou em volta da mesa, com uma de suas mãos plantada no quadril e a outra enterrada em seu cabelo de maneira que os cachos formassem um halo.
Eu estava drogado quando tudo aconteceu... então, achei tudo muito engraçado, papai entrando com tudo com três caras de preto. Achei que aquilo era sua versão de uma intervenção para me ajudar – uma história em quadrinhos barra pesada. Mas quando eles colocaram a agulha no meu braço ele começou a gritar e foi aí que percebi... aquilo não era engraçado.
Os olhos de Daniel encontraram os dela.
Eu nunca o vi daquela maneira antes. Para mim, ele era sempre tão distante e sem emoção. Foi... a reação que procurei durante toda minha vida, o amor visceral pelo qual buscava. Entenda, eu era como a mamãe, não como você e ele. Eu queria mais do que aquela desaprovação fria – e consegui, só que já era tarde demais. Ele deu de ombros. Olhando para trás, vejo que eu era carente demais e ele não sabia o que fazer com um filho que não tinha sido feito para usar um uniforme militar. Água e óleo. Eu deveria ter lidado com isso de maneira diferente, mas não o fiz.
– E ele também não.
Não é culpa de ninguém. Foi... o que foi.
Grier inclinou-se em sua cadeira, pensando na maneira como seus familiares tinham se alinhado na vida: ela e seu pai de um lado; Daniel e sua mãe de outro.
Não foi culpa dele – seu irmão disse com um tom severo que ela nunca tinha ouvido dele antes. A forma como acabei minha vida... ele gritava, Grier... e, então, eu estava morrendo, e o ouvi dizendo várias vezes: “Danny... oh, Danny, meu garoto... meu garoto...”
Quando a voz de Daniel se quebrantou, ela foi compelida a se levantar e se aproximar dele. Antes que percebesse o que estava fazendo ela envolveu os braços em volta...
De si mesma.
Por favor, não me odeie – ele disse do outro lado, tendo mudado de lugar tão rápido quanto um piscar de olhos.
– Por favor, não fuja – ela respondeu.
Desculpe... Tenho que ir...
Ele desapareceu diante dela como se não pudesse mais conter suas emoções, seu desespero permaneceu no rastro frio que ele deixou para trás.
Ela ficou em pé por um tempo, olhando para o espaço vazio que ele tinha acabado de ocupar. Ela e seu pai eram do mesmo tipo e fizeram um acordo intelectual onde trancavam os outros do lado de fora, não foi isso? Sua mãe e irmão tinham seus vícios enquanto ela e seu pai estavam em sintonia com a lei, suas carreiras e suas paixões externas.
Ela sabia disso de alguma maneira... e talvez aquilo tenha feito parte de sua corrida para salvar Daniel. O vício de seu irmão e seus esforços para tirá-lo disso tinha sido a ligação que não tiveram durante a infância: ela sempre se culpava... e, por um breve momento, naquela noite, ela culpou seu pai.
Agora... ela tinha raiva do homem com o tapa-olho. Uma raiva terrível. Se Daniel estivesse vivo, talvez eles tivessem resolvido tudo isso. Os três perdoariam um ao outro dos erros do passado. E se dirigiriam a... a algo que sua família desfrutava apenas superficialmente. Afinal, privilégios, dinheiro e educação poderiam cobrir uma infinidade de problemas... e não garantiam que a proximidade vista em um cartão de Natal fosse realmente mais que uma mera pose feita uma vez por ano para um fotógrafo.
Balançando a cabeça, ela voltou para sua cadeira e encarou os dossiês.
Isaac ia igualar o placar da família, ela pensou. Por ter revelado o bastardo maníaco que assassinou seu irmão e não fez nada além de arruinar seu pai.
Folheando as fotografias, ela reconhecia cada homem, pois tinha analisado cada página repetidas vezes enquanto esperava pela aparição de Daniel. Havia uma centena de fotos ou mais, mas havia um total de uns quarenta homens, capturados em vários ângulos, ilustrando as páginas produzidas ao longo de anos. Dentre os muitos rostos, havia cinco que ela reconheceu... ou pelo menos achou que os tinha visto antes. Difícil saber... de alguma maneira, eles pareciam tão semelhantes.
A fotografia de Isaac estava lá e ela voltou a revê-la. A foto era clara, capturada bem em cheio. Ele estava olhando diretamente para a câmera, mas ela tinha a impressão que ele não sabia que estava sendo fotografado.
Sério. Deus, ele parecia tão sério. Como se estivesse preparado para matar.
A data de nascimento sob seu nome confirmava a idade que ela já sabia e havia algumas anotações sobre países estrangeiros onde ele tinha estado. E, em seguida, havia uma linha que ela tentava entender: Correção moral necessária. Ela tinha visto a frase apenas em dois outros perfis.
– O que você está segurando?
Grier pulou ao som da voz de Isaac, a cadeira gritou ao arranhar o chão. Agarrando seu peito, ela disse: – Jesus... como você faz isso?
Pois, considerando tudo, ela preferia não ser pega encarando a foto dele.
– Desculpe, só pensei que gostaria de um café. – Ele se aproximou, apoiou uma caneca e, em seguida, voltou à porta. – Eu deveria ter batido.
Ao fazer uma pausa entre os batentes da porta, vestia apenas o moletom de capuz que usava como travesseiro, seus ombros eram muito largos ao longo da extensão de tecido cinza. E considerando as últimas quarenta e oito horas, ele parecia incrivelmente forte e focado.
Seus olhos se voltaram para o café. Tão pensativa. Muito pensativa mesmo.
– Obrigada... e desculpe. Acho que apenas não estou acostumada com... – um homem como ele.
– Vou anunciar minha presença de agora em diante.
Ela pegou a caneca e tomou um gole. Perfeito: simplesmente com a quantidade certa de açúcar que ela gostava. Ele a observou, ela pensou. Viu o quanto ela adicionou em algum momento, mesmo não estando consciente disso. E ele se lembrou.
– Está olhando para mim? – Quando ela levantou o olhar, ele assentiu com a cabeça em direção aos dossiês. – Para minha foto?
– Ah... sim. – Grier interrompeu a frase. – O que isso significa exatamente?
Ele andou em sua direção e se inclinou. Quando encarou os detalhes descritos sob seu rosto, a tensão nele era palpável, todo seu grande corpo ficou rígido.
– Eles tiveram que me dar um motivo.
– Antes de você matar alguém.
Ele assentiu e começou a andar ao redor, indo em direção às garrafas de vinho. Ele pegou uma, olhou o rótulo, voltou a colocar no lugar... passou uma a uma.
– Que tipo de motivos eles lhe deram? – ela perguntou, bem ciente de que as respostas dele sobre isso significava muito para ela.
Ele fez uma pausa com uma embalagem de Bordeaux nas mãos.
– Do tipo que faz com que isso pareça certo.
– Como o quê?
Seus olhos viraram em direção a ela e Grier fez uma pausa. Eles estavam tão tristes e vazios.
– Diga-me – ela sussurrou.
Ele colocou a garrafa de volta no lugar. Distanciou-se um pouco das prateleiras de madeira.
– Eu só fazia isso com homens. Nenhuma mulher. Havia alguns que conseguiam fazer isso com mulheres, mas eu não. E eu não vou lhe dar exemplos específicos, mas o absurdo de uma filiação política não era suficiente para mim. Matar um monte de gente ou estuprar mulheres ou explodir algumas mer... er... coisas? É uma história bem diferente. E eu precisava visualizar algumas provas com meus próprios olhos... vídeo, fotografia... corpos que foram marcados.
– Você já recusou alguma tarefa?
– Sim.
– Então, você não mataria meu irmão.
– Nunca – ele disse sem hesitar. – E eles nem sequer teriam me pedido. Da maneira como Matthias encarava isso, eu era uma arma que funcionava sob determinadas circunstâncias e ele me tirava do coldre em momentos apropriados. E, você sabe... Eu percebi que tinha que sair das operações extraoficiais quando me dei conta de que não era diferente das outras pessoas que eu matava. Todos eles sentiam como se as atrocidades que cometiam eram justificáveis. Bem, então, aquilo fazia de nós espelhos que refletiam um ao outro. Claro, de um ponto de vista objetivo, qualquer um concordaria comigo sobre isso, mas não era o suficiente.
Grier exalou longamente. Ele era aquilo em que sempre acreditou, pensou ela.
– Como assim? – ela disse.
De repente, ela achou que tinha pensado em voz alta.
– Eu sempre disse a Daniel... – Ela fez uma pausa, perguntando-se se estava tudo claro dentro dela para continuar. – Eu dizia que nunca era tarde demais. Que as coisas que ele tinha feito no passado não definiam o futuro. Acho que no final, ele desistiu de si mesmo. Ele roubava do meu pai, de mim e de seus amigos. Ele foi preso assaltando uma casa e também por roubar um automóvel, em seguida, ao tentar saquear uma loja de bebidas. Foi assim que me envolvi com as causas voluntárias. Eu entrava e saía de várias cadeias nos últimos cinco anos antes de sua morte. Eu sentia que estava ajudando... mas talvez eu pudesse fazer isso com outra pessoa, sabe? E eu fiz... Eu ajudei outras pessoas.
– Grier...
Ela fez um gesto com a mão quando sua voz ficou embargada. Ela terminou de falar chorando. Não passaria disso e nada mais poderia ser mudado.
– Você quer continuar com isso?
Quando ela indicou os dossiês, ele deu de ombros e foi até a porta, ficando exposto apenas por um pequeno vão contra o batente.
– Eu só vim mesmo para ver como você estava.
No ar rarefeito, seus olhos de pálpebras baixas a aqueceram de dentro para fora. Ele era uma grande contradição... entre seu trabalho onde foi treinado para matar e seu coração de escoteiro.
Ela deu uma olhada para a foto dele.
– Parece que está procurando alguma coisa aqui.
– Na verdade, eu estava prestes a embarcar em um avião. Tive a sensação de que alguém estava olhando, mas não conseguia dizer de onde vinha esse olhar. Estava esperando em uma base aérea para viajar ao exterior. – Ele limpou a garganta como se estivesse varrendo a memória de sua mente. – Seu pai dormiu lá em cima. Ele passou uma duas horas no telefone, até onde vi.
– Já passou tanto tempo? – Ela olhou para seu relógio e ao movimentar o pulso, tomou consciência de cada articulação de seu corpo. Esticando os braços sobre a cabeça, sua coluna estalou.
– Como as coisas estão indo?
– Eu não sei. Antes de deitar, ele me disse que se conseguirmos fazer tudo até amanhã à noite, estaremos bem. Ele fez múltiplos contatos desde a CIA, Departamento de Segurança Nacional e gabinete presidencial e ficaremos bem aqui para que eu não precise me deslocar. A peça que falta é Jim Heron – nós ainda estamos esperando que ele volte – embora, se for preciso, seguiremos sem ele.
– Você recebeu alguma... resposta? Deles?
– Não.
O medo passou por suas costelas e atingiu seu coração como uma carga de bateria.
– Você pode ficar até amanhã à noite?
– Se for para ser dessa maneira, sim.
Ele parecia tão seguro e ela precisava acreditar naquela confiança: seria uma tragédia sem limites para ele ser interrompido agora, quando estava tão perto da liberdade que desejava.
Estranho que alguém que tinha conhecido há apenas alguns dias tivesse se tornado tão importante para ela.
– Eu estou orgulhosa de você – disse ela, deslizando o dedo sobre sua fotografia.
– Isso significa muito para mim. – Pausa. – E obrigado por me mostrar o caminho. Eu não seria capaz de fazer isso sem você.
– Sem meu pai, você quer dizer – ela contradisse suavemente. – Ele tem os contatos.
– Não. Você é a única.
Ela franziu a testa, pensando que era um jeito engraçado de responder.
– Quero que responda algo para mim.
– Diga.
Seus olhos encontraram os dele.
– Quais são as suas chances. De fato.
– De sair dessa com vida?
– Sim. – Quando ele apenas balançou a cabeça, ela franziu a testa para ele. – Lembre-se, acabamos com toda aquela coisa de “proteger a garota frágil”.
– Meio a meio.
Bem, não é que aquilo deu um nó em sua garganta?
– Isso é ruim, hum?
– Quer alguma coisa para comer com o café? Não sou nenhum chefe de cozinha, mas vi algumas sobras na geladeira e posso colocar no micro-ondas. – Quando ela recusou com a cabeça, ele insistiu. – Você tem que comer.
– Eu prefiro fazer sexo com você – ela soltou.
Isaac tossiu. Na verdade, tossia como se alguém tivesse dado um soco em seu peito.
– Desculpe ser tão direta. – Ela deu de ombros. – Mas convenções sociais estão bem longe da minha lista de prioridades agora. E eu tenho a sensação de que não vou te ver depois de amanhã à noite, tanto por que você pode ser tomado sob custódia federal, quanto por... – Ela respirou fundo. – Quero um bom pedaço de você antes que se vá. Algo para lembrar-me de você em minha pele, não apenas em meu cérebro. Lá em cima foi tudo tão rápido e furioso... Eu quero prestar atenção e me lembrar.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
– Achei que você gostaria de se esquecer disso o máximo possível.
– Não de você... eu não quero me esquecer de você. – O canto de sua boca se ergueu um pouco. – Embora eu não acredite ser possível.
Quando ele ficou onde estava, ela empurrou a cadeira para trás e se levantou. A distância entre eles era de três passos e quando ela veio em direção a ele, Isaac se endireitou e puxou seu blusão para baixo como se estivesse se arrumando.
Grier ergueu-se na ponta dos pés e tocou o rosto dele, colocando a palma de suas mãos na sua barba por fazer.
– Eu nunca vou esquecê-lo.
Quando ele lambeu os lábios, como se estivesse com fome daquilo que exatamente ela queria, Grier pegou a mão dele e o levou para o local mais fundo da adega, ao puxá-lo para dentro, os fechou ali.
Ao contrário da primeira vez, quando ela estava ferida e procurava apenas mais do ciclone, agora era apenas ele, o homem, que o impulsionava – não seu zumbido interno.
Ele estava todo ali.
Quando ela se inclinou para beijá-lo, ele colocou suas mãos grandes em seus pulsos e os segurou delicadamente.
– Isso não ajudou lá em cima.
– Sim. Ajudou. Você apenas não acreditou em mim.
– Grier... – O nome dela soou com uma combinação de confusão e desespero: pois as cinco letras foram pronunciadas, ao invés das três habitualmente ouvidas.
– Eu não quero mais falar – ela murmurou, aproximando-se de sua boca.
– Tem certeza?
Quando ela assentiu, ele se inclinou e apertou os lábios contra os dela, puxando-a para mais perto dele.
Ele estava completamente excitado, mais que pronto para ela e, ainda assim, ele recuou.
Antes que ela pudesse protestar, ouviu o clique da fechadura dando a volta e, em seguida, aquelas mãos quentes deslizaram sob sua camisa e em volta de sua caixa torácica, indo até o fim de suas costas. Ao sentir uma pressão suave e gentil, seus pés saíram do chão e ela foi carregada até a mesa.
Afastando os dossiês para um lado, Isaac a deitou, as palmas de suas mãos se movimentavam sobre seus seios enquanto ele se inclinava sobre ela e mantinha suas bocas unidas. Suas calças de ioga estavam fora de suas pernas um momento depois, mas, ao invés de jogá-las, ele as colocou sobre a cadeira onde ela estava sentada. Esperto. Ela poderia ter que se vestir rapidamente.
Um impulso sutil e seus quadris estavam na beirada da mesa... e, em seguida, ele separou o beijo deles e aproximou-se sobre os joelhos.
Se ela achava que já tinha visto os olhos dele queimarem antes, aquilo era nada comparado ao que estavam fazendo agora. Um local de baixa temperatura nunca foi tão quente.
Quando ela se deu conta de onde ele estava se dirigindo, ela se sentou.
– Mas eu quero que seja bom para nós dois...
– Você disse que queria se lembrar de algo. – As mãos dele deslizaram até o topo de suas coxas e as apertaram. – Então, deite de costas e deixe-me fazer meu trabalho. – A língua dele reapareceu – e não é que aquilo a fez aderir ao plano dele?
– Vamos lá, agora – ele murmurou com aquele sotaque sulista. – Deite-se e deixe-me cuidar de você. Prometo ir devagar... bem devagar.
Suas mãos desceram até seus joelhos e abriram suas pernas... e ela se entregou a ele. Seguindo suas instruções ao pé da letra, ela sentiu a rígida mesa contra seus ombros, o ar fresco em suas coxas e um calor selvagem em seu sangue.
Quando ele a encarou através das sobrancelhas, Isaac olhou como se fosse consumi-la.
E ela estava pronta para ser sua refeição.
Abaixando a cabeça, ele foi direto até onde ela necessitava dele, colocando sua boca no sexo dela através da fina calcinha de seda que usava. Uma onda de calor delicioso floresceu e sua mão se esticou, agarrou as calças, as puxou e as colocou na boca para que fosse impedida de gritar.
Se isso já a fazia se sentir tão bem, ela ia fazer barulho: sim, a porta da adega era pesada e seu pai deveria estar dormindo, mas ela não queria correr nenhum risco.
Isaac gemeu contra ela ao se aninhar na seda e, então, ele passou a língua sobre a delicada faixa de tecido que a cobria. Com um palavrão, ela se arqueou de maneira rígida, as unhas arranharam a madeira embaixo dela enquanto as mãos dele mergulharam em suas coxas e os dentes dela mordiam o algodão. E, então, não havia mais nada os separando. Em um momento, sua boca estava sobre a seda, no próximo, ela sentiu um puxão em seus quadris e ouviu o som de algo se rasgando quando a calcinha cedeu...
Oh, Deus... sua língua molhada deslizou direto até seu cerne e se arrastou para cima, partindo-a, deslizando com lambidas seguidas.
Ele foi devagar.
Quando suas grandes mãos se fecharam em sua cintura e a firmaram para baixo, ele produziu um momento doce, a beijando e sugando, aquela língua dele funcionava como mágica que apenas podia ser substituída pela sucção quente e firme de seus lábios. Todo o tempo, ele olhava para ela, olhava seus seios enquanto ela se contorcia sob sua boca.
De repente, como se precisasse tocar aquilo que estava observando, as mãos dele subiram sob a camiseta dela em direção ao que parecia o fascinar. Abrindo o fecho frontal do sutiã, ele tomou posse de seus dois seios, os polegares esfregavam seus mamilos.
Sua respiração bombeava para dentro e para fora através de sua boca aberta e assim que ela estava prestes a chegar ao orgasmo, Isaac recuou e lambeu os lábios brilhantes.
– Venha para mim – disse ele. – Eu quero sentir isso.
E, em seguida, ele estava contra ela mais uma vez, sua língua a penetrava – o que foi o suficiente. A sensação foi liberada, minando para fora de seu sexo e tomando conta de cada centímetro de seu corpo. Quando o turbilhão de faíscas a consumiu, ela estava vagamente consciente de que ele gemia, como se sentisse aquele prazer em primeira mão.
Ele não parou por aí. Fluía em círculos, lambia, chupava... ele continuou abrindo ainda mais as pernas dela, segurando-a no lugar, marcando aquilo na memória dela assim como marcava em seu sexo. Ela nunca iria esquecer...
Um de seus longos dedos, ou talvez dois, penetrou dentro dela e a pressão e o alcance a enviou direto para o topo novamente. Quando outro orgasmo disparou, as mãos dela se fecharam em seu antebraço, suas unhas afundaram em sua carne enquanto sua coluna se contorcia e aquela explosão de prazer a inundava de dentro para fora.
E ele ainda não parou.
Ele era quente, selvagem e implacável.
Ele era o amante que ela nunca, jamais iria esquecer.
Muito menos superar – e isso era o que temia.
Oh, meu bom Jesus...
Isaac olhou por entre as pernas de Grier e quase chegou ao clímax apenas com aquela visão. Ela era uma mulher totalmente desfeita, os restos de sua calcinha branca em volta de seus quadris, sua camisa preta em volta do pescoço, o sutiã pendia para os lados. Seus seios estavam rígidos nas pontas rosadas, seu rosto estava corado e sua barriga se movia em um ritmo de surtos e abrandamentos conforme trabalhava contra ele.
Aquela calcinha na boca dele foi uma das coisas mais sensuais de tudo.
E o gosto dela era ainda mais quente do que isso.
Isaac poderia ficar ali por horas, mas a cada momento ele corria o risco de uma interrupção e ele queria terminar aquilo direito.
Subindo e pairando acima dela, inclinou os joelhos dela até o peito, com isso, seu membro se contorceu até ficar à beira do orgasmo com a visão do sexo dela reluzente todo inchado e aberto para ele. Não houve chances para que as calças fossem forçadas... ele as puxou para baixo o suficiente para que a ereção saltasse... da qual surgiu uma gota na ponta quando ele pensou sobre onde estava indo. Passando a mão sobre sua boca molhada, ele a colocou sobre a cabeça de seu membro, escorregando ainda mais o corpo antes de contorcer a coluna e unir as mãos ao órgão.
Empurrando, ele a observou ao fazer a conexão, olhando-a para acomodar seu membro e ouvindo o gemido dela ao ir mais fundo, atendendo seus desejos.
– Ah, caralh... – O cavalheiro nele engoliu o palavrão. Já o homem das cavernas que havia nele tinha que continuar falando. – Olhe para você... Quero deixar algo para trás... em você.
Ele atirou seus olhos nos dela e começou a se mover, bombando para dentro e para fora, dentro e fora... e, então, ele voltou a olhar para o local onde tinham se unido, o brilho naquilo fez suas bolas ficarem rígidas. Curvando-se para os seios, ele sugou um mamilo e trabalhou nisso com a língua... até que o ritmo abaixo tornasse impossível manter aquela ligação: ele estava falando sério sobre ir devagar, mas a boa intenção não durou muito. O sexo tinha uma dinâmica própria e não passou muito tempo até que a mesa começasse a gemer sob a força de seus golpes e ele teve que abraçar a cintura dela para mantê-la onde ele a queria.
Ao ficar rígida sob ele, Isaac também ficou, tencionando seus molares para não fazer barulho, suas pálpebras se fecharam com força embora quisesse ver o rosto dela ao dar mais uma dose de prazer.
Com seu corpo no dela e a preenchendo por completo... ele estava tão saciado quando um homem no deserto que tinha recebido um gole de água.
Ele não estava nem perto de acabar. Ela queria memórias? Entendido.
Mantendo-os juntos, ele puxou a calça para fora da boca dela, a ergueu e trouxe seus lábios até os dele, beijando-a profundamente enquanto carregava seu peso com facilidade para fora da mesa. Posicionando-a contra a porta lisa, ele agarrou a parte de trás de suas pernas e começou a se mover novamente. Com as mãos emaranhadas em seus cabelos, o calor abrasador e a sensação de urgência tomando conta mais uma vez, o beijo não poderia durar muito – e não durou muito mais que o selar dos lábios. Ele veio rígido dentro dela, promovendo um colapso enquanto seu próprio orgasmo escorria.
O alívio foi um luxo que ele não desfrutou, pois tinha plena consciência de seu peso sobre ela e do fato de que as costas dela estavam contra algo rígido e de que o pai dela estava em casa...
Havia tantas coisas entre eles.
Isaac a soltou lentamente até que seus pés tocassem o chão e, quando ele saiu dela, não gostou do ar frio em seu pênis. O sexo dela era muito melhor... muito, muito melhor.
Quando ele a beijou, a maneira como seus lábios se moviam sobre os dele lhe dizia que em um mundo diferente, em circunstâncias diferentes... este seria, com certeza, um começo para eles – apesar de tudo o que os separava como família, dinheiro e escolaridade.
Mas aquela não era a realidade deles, era?
– Deixe-me arranjar algo para limpar isso – ele disse calmamente enquanto puxava as calças de volta no lugar.
Depois de beijá-la mais uma vez, ele saiu pela porta e quando a fechou lá dentro ele parou e baixou a cabeça.
Ele mentiu para ela.
Suas chances não estavam nem perto de cinquenta por cento: Matthias iria pegá-lo com toda e absoluta certeza. A questão era apenas quanto tempo ele levaria para conversar com os ouvidos certos antes que seu velho chefe surgisse das sombras e o reclamasse. Algo que sempre foi verdade sobre o líder das operações extraoficiais: Matthias nunca desistia. Nunca. E mesmo que o mundo estivesse desmoronando em torno dele, continuaria a buscar sua vingança. De alguma forma, de alguma maneira.
Contudo, isso não ia impedir Isaac de continuar tentando com todas as suas armas.
Muito melhor morrer tentando fazer a coisa certa... e deixar sua mulher pensando algo menos ruim sobre ele.
Muito melhor.
CAPÍTULO 35
Quando o sol da manhã despertou de seu sono nublado e uma auréola de raios foi derramada sobre Caldwell, Nova York, dois garotos, com idades entre doze e nove anos, foram andando para a escola.
E nenhum dos dois estava impressionado com todo o “esplendor primaveril”.
Seja lá o que isso significasse.
A mãe deles repetia sempre algo sobre esplendor primaveril, esplendor primaveril... bah! O que interessava a Joey Mason era a educação física: geralmente ele tinha educação física às segundas feiras, mas hoje haveria uma assembleia especial. Então, não importava o quanto de “esplendor primaveril” houvesse lá fora, ele ainda estava a caminho de um dia na escola com nada de interessante para fazer.
Por outro lado, seu irmão mais novo, Tony, gostava mais de assembleias do que de educação física, então, ele estava empolgado. Mas ele era um nerd que dormia com livros, que outra coisa poderia interessá-lo?
A caminhada de casa para a escola era de uns oito quarteirões e não era nada demais... apenas descer a Rua São Francisco, passando pela igreja e alguns outros pontos. Eles deveriam ficar do lado direito, pois havia um posto de gasolina à esquerda por onde passavam muitos carros. E eles deveriam parar em cada esquina. O que Joey fazia – geralmente enquanto segurava o colarinho de Tony para impedi-lo de atingir um carro em cheio.
Tony sempre andava com um livro aberto. Também comia lendo, ia ao banheiro lendo e se vestia lendo.
Estúpido. Simplesmente estúpido, pois se perde muito quando não se olha em volta.
Como aquele carro legal que estava no caminho. As janelas eram pretas e a pintura também, e havia um número na placa: 010. Era só isso, sem letras. Joey olhou para seu irmão mais novo e percebeu que, com certeza, ele não tinha notado aquilo.
Perdeu mais uma.
A coisa parecia ser da polícia.
Quando chegaram até o carro, pegou o colarinho de seu irmão e o puxou para perto. Tony não questionou a parada – apenas virou outra página. Provavelmente ele pensou que estavam em outra esquina.
Joey se inclinou um pouco para ver o interior, preparando-se para ver alguma coisa relacionada a um uniforme sair e gritar com eles por serem intrometidos. Quando não viu nada e quando nada aconteceu, ele posicionou as mãos em formato de concha e as colocou contra o vidro frio...
Pulou para trás.
– Acho que tem alguém lá dentro.
– Não tem – Tony disse sem levantar a cabeça.
– Tem sim.
– Não tem.
– Tem sim. E como você pode saber que não tem?
– Não tem.
Certo, Tony não sabia do que estava falando e aquela discussão poderia durar para sempre. E, então, ele e seu irmão caçula se atrasariam para as aulas e ficariam de castigo. De novo.
Mas...
Seria tão legal se eles encontrassem um cadáver – bem em frente à funerária!
Jogando a mochila, Joey distanciou seu irmão do carro, levantando-o e redirecionando seus pés.
– Isso é perigoso. Eu não quero que você se machuque.
Isso finalmente fez com que Tony levantasse os olhos do livro.
– Tem mesmo alguém aí dentro?
– Para trás.
Era o tipo de coisa que seu pai teria dito e Joey se sentiu um homem com relação a isso – especialmente quando Tony assentiu e segurou seu livro contra o peito. Mas era assim que deveria ser. Joey faria treze anos em breve e ele era responsável quando não havia ninguém por perto. E, às vezes, mesmo quando havia outras pessoas no local.
Voltando a colocar as mãos em forma de concha, ele reassumiu sua posição contra o vidro e tentou ver através da escuridão...
– É um pirata.
– Você está mentindo.
– Não, não estou...
Um carro passou devagar em frente deles e uma senhora abriu a janela – era a Sra. Alonzo do outro lado da rua.
– O que vocês estão aprontando, meninos?
Como se tudo o que eles fizessem fosse esse tipo de coisa.
Parte de Joey queria que ela continuasse seu caminho e deixasse que ele resolvesse a situação. Mas a outra parte queria se mostrar.
– Tem um cara morto aqui.
Sentiu-se muito importante, pois ela ficou pálida e parecia nervosa. Cara, se ele soubesse que tudo isso iria acontecer, ele teria saído mais rápido de casa. Aquilo era muito melhor que educação física.
A não ser pelo fato de que Tony teve que se intrometer.
– É um pirata!
De repente, a Sra. Alonzo não parecia tão assustada.
– Um pirata.
Seu irmão era um idiota – e Joey não estava interessado em perder a atenção da plateia. Piratas eram coisas de criança. Um morto no carro? Isso era coisa de adulto e era isso o que ele queria ser.
– Veja por si mesma – ele disse.
A Sra. Alonzo estacionou em frente ao carro completamente preto e saiu, seus saltos altos faziam um som de galope de pônei na rua.
– Certo, já chega, garotos. Entrem e vou levá-los até a escola. Vocês vão se atrasar. – Ela estendeu seu telefone para Joey. – Ligue para sua mãe e diga que estou levando vocês. De novo.
Isso acontecia muito. A Sra. Alonzo era uma executiva cujo escritório ficava não muito longe da escola, eles se atrasavam muitas vezes e ela os levava. Mas essa manhã era diferente.
Ele cruzou os braços sobre o peito.
– Precisa olhar pela janela.
– Joey...
– Por favor. – Outra coisa adulta: por favor e obrigado.
– Tudo bem. Mas entrem no meu carro.
A Sra. Alonzo marchou em direção ao carro enquanto resmungava alguma coisa sobre ficar prestando serviço de táxi. E Tony, que sempre seguia as regras, levou seu livro até o assento da frente da SUV – só que ele ainda estava interessado no que estava acontecendo, pois ele não fechou a porta e o seu exemplar do livro Diário de um Banana: Dias de Cachorro permaneceu contra seu peito.
Joey ficou onde estava.
Normalmente, ele teria se chateado com Tony por pegar o melhor lugar no carro: irmão mais velho andava na frente; bebês menores ficavam atrás. Mas havia coisas mais importantes que isso agora, então, ele ficou onde estava na calçada, o telefone sem utilidade em sua mão.
Ele estava pensando no que tinha visto...
A Sra. Alonzo deu um salto tão grande que quase acabou no meio do trânsito, uma minivan buzinou para ela quando se desviou por pouco de seu corpo.
Ela correu e pegou o telefone, assim como o braço do garoto.
– Entre no carro, Joey.
– O que é isso? Um cara morto? – Meu Deus, e se fosse um pirata? Caramba!
A Sra. Alonzo colocou o telefone no ouvido enquanto o arrastava para o carro.
– Sim, é uma emergência. Há um homem em um caro em frente à casa funerária McCready na Rua São Francisco. Não sei se há algo de errado com ele, mas ele está atrás do volante e parece não se mexer... Estou com uma criancinha comigo e não quero abrir a porta... certo...
Criancinha. Deus, ele odiava aquela coisa de criancinha. Além disso, foi ele quem encontrou o cara. Quantos adultos passaram por ali a pé para ir ao trabalho e não o viram? Ou de bicicleta? Ou correndo?
O cara morto era dele.
– Meu nome é Margarita Alonzo. Sim, ficarei aqui até os paramédicos e a polícia chegarem.
Certo. Esta era, oficialmente, a melhor manhã da história de sua vida, Joey pensou enquanto pulava no banco de trás – o qual tinha a melhor visão ao se virar para ver lá fora.
Quando a Sra. Alonzo entrou e trancou as portas, ele imaginou os três ali até a meia noite, uma da manhã. Talvez precisassem de um McLanche Feliz para o almoço. Ele tinha a grande esperança de que a polícia não corresse...
A chatice de todas as chatices o atingiu quando ele ouviu a senhora Alonzo dizer: – Sara? Estou com seus meninos e eles estão bem. Mas há um pequeno problema e preciso que venha buscá-los.
Joey abaixou a cabeça no braço.
Sabendo da sorte que tinha, sua mãe correria até à cena e chegaria lá antes que ele descobrisse algo sobre o pirata morto no banco da frente daquele carro.
Arruinado. Simplesmente arruinado.
E, provavelmente, eles chegariam à escola a tempo de assistir a assembleia.
Quando Matthias dormiu atrás do volante de seu carro, ele sonhou com a noite em que Jim Heron salvou-lhe a vida várias e várias vezes. Os acontecimentos que o levaram até a bomba e a dolorosa caminhada para recuperar uma saúde relativa foram passados e repassados em sua mente, como se a agulha da sua velha vitrola mental estivesse presa em algum obstáculo no disco.
Matthias tinha atraído Jim Heron àquela cabana abandonada e empoeirada como testemunha, pois não havia mais ninguém nas operações extraoficiais cuja palavra houvesse mais peso e credibilidade. A ideia era que o soldado deixasse seu corpo na areia e fosse para a casa contar aos outros que tinha acontecido um terrível acidente: se alguém apresentasse um relatório como esse, a conclusão seria de que havia ocorrido um abate completo.
Contudo, não é o caso de Jim – ele era um atirador correto em um mundo cheio de curvas e nunca teve problemas em fazer o que tinha que ser feito, certo ou errado.
Prova de que havia um pouco de bondade em Matthias, afinal – pelo menos, ele não ia jogar a culpa de seu suicídio na cabeça de outro cara.
E sim, claro que ele poderia explodir a própria cabeça em um banheiro qualquer, mas mesmo sendo um suicida, ele tinha seu orgulho. Autoinjetar-se uma dose de chumbo seria fraqueza demais – muito melhor espalhar a porcaria gosmenta em algumas paredes de pedra e ser lamentado como o forte lutador que sempre tinha sido.
Contudo, o orgulho teve seu preço: ao invés de deixá-lo na areia, o idiota Heron o salvou – e descobriu seu segredinho. O explosivo foi a dica que faltava. Enquanto Matthias permanecia deitado e sangrava como um porco, Jim encontrou os restos da bomba e reconheceu o que eram. Ou seja, era um dos seus dispositivos.
O filho da mãe pegou os fragmentos, os colocou no bolso e tirou o cinto. Em seguida, fez um torniquete na perna de Matthias, o levantou e começou a puxá-lo. Ele ficou muito chateado e era evidente que as atitudes de seu salvador eram parte punição, parte recompensa – e completamente desgastante. O bastardo andou, andou e andou... até que, alguns momentos depois, Isaac Rothe apareceu dentre as dunas com uma Land Rover.
As exigências de Jim vieram semanas depois, em um hospital na Alemanha. Naquele ponto, a cabeça de Matthias não era nada além de um imenso balão de ar quente de agonia e ele estava tendo que se acostumar com apenas um olho funcionando. Heron se sentou à beira do leito e estabeleceu seus termos: fora. Livre e limpo. Ou pegava o que tinha restado da bomba e contaria a história para a única pessoa que poderia fazer algo sobre isso.
Olá, senhor presidente.
Ironia das ironias, se tivesse sido qualquer outro soldado, qualquer outro ser humano com um coração batendo e um dedo no gatilho, Matthias não teria se preocupado com a ameaça. Mas, Jim Heron – o bom e velho Zacarias – era uma daquelas malditas pessoas em quem as pessoas acreditavam. Fragmentos de bombas poderiam ser fabricados; e a credibilidade de um homem digno? Muito menos discutível.
E ele não poderia continuar sendo chefe se as pessoas achassem que não tinha mais coragem para o trabalho.
Naquele momento, Matthias sentiu como se não houvesse outra escolha e disse ao homem para que seguisse seu caminho.
Depois, a questão suicida veio à tona e ele teve que considerá-la seriamente. Mas, em seguida, seu segundo homem na linha de comando apareceu na hora certa – tinha certeza de que o cara sabia para onde estava indo.
Um homem muito persuasivo aquele. E quando se deu conta, Jim tinha salvado seu corpo, mas aquele segundo homem na linha de comando o trouxe, de alguma maneira, de volta à vida.
Apesar de a renovação ter tido consequências: quase imediatamente, Matthias abriu os olhos – ou um olho, melhor dizendo – para o erro de deixar Heron sair: aquele soldado estava solto pelo mundo com informações demais e a exposição não era aceitável.
O segundo na linha de comando concordou com isso e estava prestes a colocar as rodas de um carro em movimento para provocar um “acidente” quando Jim ligou procurando por informações sobre Marie-Terese Boudreau. Perfeito. Bem a tempo. O plano era que Jim entregasse Isaac em troca da informação que precisava – e, em seguida, seria o assassinato de Jim.
Só que alguém pegou Heron primeiro.
Morto. Jim estava morto. Matthias viu seu corpo com os próprios olhos. E, ainda assim... de alguma maneira ele sentia como se tivesse falado com o cara. Sim, ele sonhou que tinha conversado com Jim Heron...
Matthias acordou com a arma na mão, o gatilho armado e apontando para um homem de uniforme azul marinho – que tinha, dado a barra de ferro em sua mão, acabado de destrancar o carro e abrir a porta.
O paramédico congelou e colocou as mãos para cima.
– Eu só quero te ajudar, cara.
Provavelmente era verdade. Mas para o inferno, o parceiro do cara sem dúvida estava ligando para a polícia agora e, observação, fazer qualquer tipo de contato direto com um civil não era um benefício, segundo a cartilha de Matthias.
Ele baixou a arma.
– Sou um agente federal. – Ele colocou a mão no casaco e decidiu mostrar suas credenciais do FBI; que eram legítimas até certo ponto.
O paramédico se inclinou e olhou a fotografia, um nome qualquer no laminado e um brasão bem verdadeiro.
– Ah... desculpe, senhor. Recebemos um telefonema...
– Está tudo bem. É que passei três dias puxados na fronteira canadense e estou a caminho de Manhattan. Desci a estrada ao norte procurando algo para comer às quatro da manhã, mas não havia nada aberto e eu precisava dormir um pouco. Sabe como é.
– Ah, entendo muito bem.
Conversa fiada, conversa fiada, conversa fiada... blablablá...
Quando a polícia apareceu, eles colocaram seu número de identidade no sistema e, como num passe de mágica, tudo bateu. E sua história sobre estar em uma missão secreta e ter que parar um pouco por causa da exaustão foi engolida como um jantar de Ação de Graças: ele passou de criminoso à celebridade.
Gente estúpida.
Depois que os despistou, afastou-se e pegou o telefone. Havia uma série de mensagens de voz... e um alerta.
Bem, como pode imaginar... parece que Isaac Rothe tinha se entregado e sua localização era a casa de sua adorável e talentosa advogada. Que coisa mais perfeita: embora pudessem pegá-lo em pé na cozinha de Grier Childe se fosse preciso, aquilo faria das coisas muito menos complicadas.
Matthias ligou para seu segundo homem na linha de comando e quando o telefone soou ele pensou em quantas vezes tinha tido aquela conversa: vá. Pegue o bastardo. Acabe com ele. Dê um jeito no corpo.
Ele tinha feito isso tantas vezes.
Quando a dor do lado esquerdo do peito disparou novamente, ele ignorou a sensação...
– Sim? – o segundo na linha de comando respondeu.
– Isaac Rothe está pronto para você.
Não houve sequer uma pausa.
– O endereço é o de Beacon Hill?
– Sim. Vá até lá e pegue-o.
– Estou fora do estado.
– Bem, entre no estado. O mais rápido possível.
– Entendido. Onde você o quer?
Boa pergunta. Isaac não era conhecido por grandes fugas, sua reputação era de um assassino rápido e limpo que o fazia em circunstâncias extraordinárias. Mas você não conseguiria executar tarefas como as dele se não fosse muito imaginativo.
– Mantenha-o naquela casa para mim – Matthias disse de repente.
Quando levou em conta a situação, o instinto lhe disse que uma mudança na estratégia era apropriada. Afinal, seria útil puxar as rédeas de Grier Childe e seu pai – e nada chamava mais a atenção de um civil do que assistir a alguém sendo assassinado. O bom e velho Albie era uma prova disso...
Por alguma razão, a voz de Jim Heron estalou no cérebro de Matthias. Não havia palavras específicas, apenas um tom que se demorava, um tom grave, que implorava para que Matthias parasse com tudo e... fazer o que exatamente?
– Alô? – o homem do outro lado da linha perguntou, uma vez que o cara disse algo que não havia sido respondido ou que havia recebido nada além de silêncio por um tempo.
– Eu não quero que você o mate – Matthias se ouviu dizendo.
– Ah, entendo. Você quer fazer isso por si mesmo. – Satisfação. Tal satisfação era o objetivo do plano em todo o tempo.
Sem qualquer razão especial, o processador central do cérebro de Matthias começou a faiscar e sair fumaça, imagens voavam dentro e fora de sua mente em uma confusão louca que o fez pensar na rolagem de dados em uma mesa de feltro. E, então, em meio ao caos, ele viu Alistair Childe sendo segurado em um tapete sujo por dois agentes de preto enquanto era injetada em seu filho heroína suficiente para levar um elefante a ter uma overdose.
Danny... oh, Danny, meu garoto... Parecia uma música que poderia tocar em um bar irlandês, mas não soava nada musical uma vez que o pai gritava as palavras com voz rouca.
– Chefe – o segundo na linha de comando interrompeu. – Fale comigo. O que está acontecendo?
A voz era muito sonora, mas era um falso pragmatismo. Era evidente que o soldado estava preocupado de que as rodas estivessem saindo da estrada de novo – assim como tinha acontecido há dois anos, ele teria que arrastar Matthias para calçar suas botas de combate mais uma vez.
– Não o mate – Matthias ouviu-se repetir. – É uma ordem.
– Eu sei, assim você pode fazer isso. Ele é seu. Você tem que pegá-lo.
Por um momento, Matthias sentiu uma atração inevitável, tentadora...
– Não – ele exclamou, sacudindo-se. – Não, eu não tenho.
– Sim, você deve...
– Apenas siga a maldita ordem sem mais comentários ou encontro outra pessoa que o faça.
Com um palavrão, ele desligou, enviou um sinal de volta para Isaac e, em seguida, tentou encontrar um local sólido para se sustentar dentro de si mesmo. Droga, de repente, ele sentia como se houvesse duas vozes diferentes em sua cabeça e elas não apenas o direcionavam para caminhos opostos, o puxavam de fato.
Felizmente, o retorno da transmissão feita a Rothe interrompeu sua luta.
– Matthias – ele ouviu aquela velha voz familiar.
– Isaac. Como vai?
– Onde? Quando?
– Sempre indo direto ao ponto. – Matthias empurrou a parte inferior do volante para manter o sedã na estrada, enquanto massageava a dor que havia do lado esquerdo de seu peitoral.
– Estou mandando alguém até você. Então, fique onde está.
– Inaceitável. Não posso ser pego aqui.
– Ditando as regras? Eu acho que não.
– Grier Childe não vai ser envolvida nisso. Vou me entregar à meia-noite, amanhã, em um local público.
– E agora você quer me dizer quando? Vá se ferrar, Rothe. Se quiser que ela fique fora disso, fará o que vou lhe dizer. Ou você acha que não posso passar por esse sistema de segurança de luxo a qualquer hora da noite que eu quiser? – Silêncio. – Surpreso por eu saber sobre a maldita coisa? Bem, há outros truques nessa casa, Isaac. Fico me perguntando de quantos deles você tem conhecimento.
Vê, aquilo era bom. O movimento do jogo de poder limpava um pouco aquela porcaria distorcida, nebulosa e evasiva – e isso o lembrava da razão por trás da morte de Daniel Childe: a grande boca aberta do bom e velho Albie.
Um tiro de adrenalina o despertou ainda mais enquanto ele se perguntava exatamente que tipos de planos Isaac e o capitão aposentado poderiam ter tido enquanto ele estava desmaiado na estrada.
Ele limpou a garganta.
– Sim, fique onde está... e em caso de ter tramado alguma brilhante ideia com o pai dela, deixe-me esclarecer as coisas. Se você fizer qualquer coisa para expor a mim ou à organização, vou fazer coisas àquela mulher das quais ela vai sobreviver, mas nunca se curar. E saiba: meu alcance se estende além da sepultura. – Mais silêncio. – Você conheceu o pai dela... não negue isso. E tenho plena ciência de que ele vem coletando informações sobre as operações extraoficiais há décadas. Sem ideias brilhantes, Isaac. Pelo bem dela. Ou vou ignorá-lo e ir atrás dela. Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora...
– Ela não faz parte disso! – Rothe disse entre dentes. – Ela não tem nada a ver comigo ou com o maldito pai!
– Talvez. Mas acidentes acontecem. E eu atribuí seu caso a ela por um bom motivo, que acabou ficando melhor do que eu pensava. Eu nunca esperava que vocês dois ficassem tão pessoalmente envolvidos, ou você acha que eu não ouvi os dois subirem até aquele quarto de hóspedes dela ontem à noite? – Matthias lutou contra a dor em seu peito, sentia como se estivesse se afogando. – Não me faça machucá-la, Isaac. Estou ficando cansado de tudo isso, estou mesmo. Fique onde está. Estou enviando uma pessoa e você saberá quando chegar lá. E se você ou o pai dela não estiverem lá quando ele chegar, vou fazer com que procure por ela, não por você. Você segue as instruções e vou me certificar de que ninguém além de você se machuque.
Matthias apertou o botão end para finalizar a ligação e jogou o celular no banco do passageiro.
Estremecendo, ele lutou para manter o carro em linha reta enquanto a agonia por trás de sua caixa torácica aumentava para níveis incontroláveis. Com o ataque, ele pensou brevemente sobre dirigir até o Aeroporto Internacional de Caldwell, mas decidiu que precisava se recuperar e isso ia levar tempo. E privacidade.
Apertando o peito esquerdo, ele parou e tentou respirar em meio à dor. O que realmente não ajudou muito... ao ponto de se perguntar se era isso. O derradeiro. Assim como aquele que matou seu pai.
Olhando para fora do para-brisa dianteiro, ele percebeu que estava na frente de uma igreja.
Sem nenhuma razão aparente, ele desligou o motor, pegou sua bengala e saiu. Ele não pensava em nada nem sequer remotamente relacionado a Deus há anos e estar mancando em direção àquelas enormes portas duplas o fazia se sentir... errado de muitas maneiras. Especialmente levando em conta tudo o que estava esperando por ele em Boston. Mas seu segundo homem na linha de comando precisava de tempo para arranjar as coisas e Matthias... precisava desse ataque cardíaco seja para se organizar e chutar o balde ou para calar a maldita boca.
Lá dentro estava quente e cheirava a incenso e cera com aroma de limão. O lugar era enorme, com centenas e centenas de bancos que se espalhavam em três direções desde o altar.
Matthias não fez todo o caminho. Ele entrou em colapso em um banco mais ou menos na metade do corredor lateral, caiu por completo no banco de madeira.
Movendo sua bengala entre os joelhos, olhou para o crucifixo... e começou a chorar.
CAPÍTULO 36
Depois de terminar a comunicação com Matthias, Isaac guardou o transmissor de alerta em seu blusão. O que ele queria fazer era colocá-lo sobre o balcão de granito e esmagá-lo com seu punho. Em seguida, talvez, jogar os pedaços no fogo.
Apoiando as mãos sobre a pia da cozinha, ele se inclinou sobre os ombros e encarou o jardim. Quase oito horas da manhã e o local estava um poço de escuridão, pois as casas da vizinhança tinham sido construídas muito perto umas das outras. Não fazia ideia se os colegas de Jim estavam lá de volta. Nenhuma palavra sobre Jim.
Mas Isaac tinha outros problemas agora.
Droga. Levando tudo em consideração, o fato de Matthias suspeitar do que iria acontecer não era uma novidade. Mas aquilo o deixou tenso. Se ele fosse embora agora, ele corria o risco de Grier e seu pai serem massacrados. Se ele ficasse... provavelmente eles seriam obrigados a assistir a morte dele.
Filho da mãe!
– Eles entraram em contato com você?
Ele olhou sobre o ombro. Grier tinha acabado de sair do chuveiro, seus cabelos soltos secavam naturalmente.
– Isaac – o rosto dela ficou tenso. – Eles responderam?
– Não – ele disse. – Ainda não.
Para tornar a mentira mais convincente, ele puxou o transmissor e o balançou, apostando no fato de que ela não iria notar que a luz estava desligada.
– Essa coisa está funcionando?
– Sim. – Ele o guardou quando ela se aproximou. – Como está seu pai?
– No telefone do banheiro de novo. – Ela encarou o relógio. – Deus, pensei que essa noite nunca ia acabar.
– Eu só queria que Jim aparecesse – ele disse enquanto ela começava a fazer o café na pia.
– Você acha... que ele está mesmo morto?
Naquele momento... talvez.
– Não.
Sentando-se em um dos bancos, ele a observou estalar a abertura de uma lata de café e colocar o filtro no topo da máquina. Quando ela terminou a tarefa, a luz do sol em seu rosto o fez querer chorar, ela era tão bonita.
De alguma maneira, ele não podia acreditar que estava com ela – e não no sentido de que não era digno disso. Dã, isso era evidente. Mas ponderando tudo, o sexo quente e intenso parecia um sonho. Ela estava tão limpa, cheirando a xampu ao invés de suor, o cabelo liso, o rosto já não mais corado.
Ela tirava seu fôlego. Para Isaac, ela era uma prova definitiva que a vida valia o sacrifício que requeria das pessoas: apenas olhar para ela e estar no mesmo ambiente, ter as memórias que ele deu não só a ela, mas que ficaram dentro dele...
A ideia de que alguma coisa a machucasse um dia era simplesmente insuportável. E se ele fosse a causa disso?
Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora.
Não era uma ameaça. Não vindo de um cara como Matthias, que não estabelecia qualquer distinção para o sexo feminino. E ele a machucaria de maneira que aqueles momentos especiais que Isaac havia passado com ela na adega fossem impossíveis de serem vivenciados novamente.
Por mais que lhe doesse, ele tinha que ser realista: quando ele partisse, ela encontraria outro amor. Talvez alguém com quem se case e tenha filhos e com quem possa passar a velhice. E não haveria nada disso para ela a menos que ele ficasse ali, esperando... e rezando para que quando o agente de Matthias aparecesse, ele fosse capaz de matar o filho da mãe e, em seguida, desaparecer rapidamente.
Afinal, ele era um maldito de um assassino. Era o que ele fazia para viver.
Uma coisa era clara: não ia mais prosseguir com a divulgação de informações. De jeito nenhum. A vida de Grier valia mais que o respeito que ela tinha por ele e, depois que a poeira assentasse, qualquer coisa que tivesse sido acionada pelo pai dela poderia ser desfeita tão rápido quanto uma ligação telefônica – assim, eles pensariam que o plano ainda estava de pé até descobrirem que Isaac tinha sumido.
E quanto ao resto de sua vida? Ele ia se entregar a Matthias e prestar suas contas, mas seria em seus termos. O pai de Grier faria algo com aqueles dossiês e Jim Heron, ou qualquer um de seus colegas, era o tipo de cara que poderia guardar uma narração gravada, em primeira pessoa, de cada assassinato que Isaac já cometeu – isso proporcionaria a Grier e a seu pai uma morte de causas naturais.
Afinal, ele tinha a impressão de que confissões feitas à beira da morte eram admissíveis no tribunal, então, uma vez que Isaac confessasse que Matthias iria matá-lo em breve, isso teria muita influência, não teria? – pelo menos seria o suficiente para que abrissem uma grande investigação.
Seu depoimento seria o seguro de vida dela e de seu pai.
Do outro lado, Grier apertou o botão ligar do aparelho e quando a máquina começou a sibilar ela ficou onde estava, olhando para a coisa.
Compelido por algo que ela não questionou, Isaac ficou em pé e se colocou atrás dela, colocando seu peito contra suas costas. A respiração de Grier ficou tensa ao sentir o corpo dele e, embora tivesse se enrijecido, ela não se moveu.
Ele estendeu as mãos e tocou as ondas loiras que caiam sobre seus ombros, correndo os dedos sobre ele. Em seguida, ele deslizou as mechas lentamente para a lateral, expondo a nuca.
Deus, ele já tinha se decidido, não tinha?
Tinha escolhido seu caminho.
– Posso beijá-la? – ele disse com voz rouca. Pois era mais cavalheiro perguntar antes.
A cabeça dela pendeu.
– Por favor.
Ele foi até o pescoço encantador, pressionando seus lábios contra a pele dela. Aquilo não era o suficiente, mas ele não confiava em si mesmo para ir mais além ou sequer para colocar suas mãos na cintura dela – se ele o fizesse, não ia parar até que ela estivesse sob ele e, por sua vez, ele estivesse dentro dela mais uma vez.
– Grier – ele sussurrou com voz rouca.
– Sim...
– Preciso dizer uma coisa.
– O que?
Algumas vezes as emoções eram uma locomotiva para as palavras: uma vez que se há uma revelação para fazer, não há freios suficientemente fortes para mantê-la nos trilhos de sua garganta.
– Eu te amo – ele pronunciou mais com ar do que com sílabas.
Contudo, ela ouviu. Deus, ela ouviu, pois inalou com um silvo.
Grier se virou tão rápido que se formou uma curva em seus cabelos e mesmo com o coração batendo forte, Isaac não desviou o olhar.
Quando ela abriu a boca, ele colocou seu dedo sobre os lábios dela e balançou a cabeça.
– Eu só precisava que você soubesse. Uma vez. Eu só precisava dizer... uma vez. Eu sei que não a conheço há tempo suficiente ou bem o suficiente e tenho plena consciência de que não sou o homem certo para você, mas algumas coisas precisam ser ditas.
O que não precisava ser transmitido era o terror dentro de sua pele.
Por mais que ele quisesse fazer a coisa certa, seu antigo patrão o pegou pelos cabelos: não havia sacrifício grande demais para garantir a segurança de Grier. Até mesmo a salvação de Isaac não era demais. Nem mesmo a queda de Matthias.
Uma garganta pigarreando discretamente fez com que Isaac olhasse para cima. Através do vidro sobre a pia, ele viu o pai de Grier em pé na cozinha – e por respeito à filha do homem, ele recuou.
– Café, pai? – Grier disse com uma voz estável ao se inclinar para o lado e pegar duas canecas no armário.
– Sim, obrigado.
Isaac podia sentir os olhos do cara oscilando entre um e outro, mas ele tinha certeza de que não queria responder qualquer pergunta.
E era evidente que Grier também não.
– Vamos sentar? – ela perguntou.
Ao invés de responder, o homem clareou a garganta mais uma vez. Sem dúvida por estar chocado com a situação do dia anterior, quando disseram para que ficasse longe, e o sentimento de “não toque na minha filha”.
Mas ele não precisava se preocupar. Ele chegou tarde demais para a última alegação, mas a sensação que a primeira causava... dariam um jeito nela.
– Pai? Vamos sentar?
– Todos vão chegar amanhã de manhã...
– Amanhã de manhã?
– É uma situação delicada. É preciso dar desculpas adequadas – esses homens e mulheres não podem sair sem um bom motivo, sem que questionamentos sejam feitos.
Isaac podia sentir Grier olhando para ele, buscando um apoio para dizer um “não” veemente, mas era isso, ele discordava dela. Amanhã era perfeito.
Ele já teria partido até lá.
No hotel, Jim acordou em seu quarto pouco iluminado e sentiu como se tivesse sido vítima de um acidente de carro. Com um caminhão. E ele estava sem cinto de segurança.
Ele estava na cama, dormindo encolhido de lado, seu corpo pesado tinha esculpido uma parte do colchão e estava posicionado como um cão à espera da morte em uma floresta. Mas ele era imortal agora... e aquilo parecia significar que não importava o dano que fosse feito nele, ele seria curado.
Sim, só que aquilo não parecia o tipo de trabalho que requeria apenas um movimento de nariz da Feiticeira, onde tudo era resolvido em um passe de mágica. Ele se sentia muito humano com as dores e feridas, a respiração que fazia suas costelas queimarem, com os saltos de seu coração que mais pareciam o andar de um bêbado. Mas a pior parte disso não era física. Estava em sua mente.
A parte em que havia deixado Sissy para trás, no reino de Devina, o matava.
Abrindo os olhos, percebeu que era manhã; sobre o topo da cabeça encrespada do Cachorro, o alarme brilhava com números vermelhos. 7h52.
Hora de levantar, ele pensou ao se virar de costas com cuidado. Do outro lado, Adrian estava apagado como uma lâmpada, o anjo tinha uma respiração pesada, seus olhos se movimentavam por trás das pálpebras fechadas.
Dado o brilho em seu rosto, era evidente que ele não estava tendo bons momentos na terra dos sonhos.
Deus, que noite, Jim pensou. Depois que Colin o deixou ali ele achou que seria apenas ele e o Cachorro. Mas, então, alguém veio do outro quarto e ele poderia concluir que seria Eddie – a coisa toda de cuidados e enfermagem era mais a praia dele.
Mas não. Adrian foi quem entrou... e permaneceu ali.
No momento, Jim não teve forças para lidar com qualquer simpatia que pudesse sentir pelo cara, então, ele envolveu com cuidado um cobertor em volta de si e calmamente se colocou em pé com as pernas tão fortes quando dois lápis. Mancando até o laptop, ele estava muito tonto, e chegou à cadeira bem a tempo – contudo, mas que droga, seu traseiro doía demais.
Apesar do fato de precisar urinar como um cavalo de corrida, ele ligou o computador e esperou impaciente para que o navegador da Internet fosse iniciado. Para passar o tempo, ele deu uma olhada nas marcas deixadas por aquilo que prendia seus pulsos. Os dois tinham linhas tortuosas de um vermelho brilhante em volta, que reluziam e estavam em carne viva, o lembrete tangível de onde ele tinha estado e o que tinham feito com ele seduziu sua mente a fazer uma viagem ao campo do stress pós-traumático. Só que foi um deslize que ele se recusou a permitir.
Voltando a prestar atenção no que estava fazendo, ele começou a digitar. Contudo, uma vez que seus dedos estavam dormentes, levou uma eternidade para chegar ao site do jornal de Caldwell e pesquisar por Cecilia Barten...
Apareceu um artigo de cerca de duas semanas atrás e a imagem de Sissy trouxe um brilho aos seus olhos. Ela estava sorrindo para a câmera em pé no meio de vários jovens da idade dela. Não dizia quanto tempo havia se passado entre o momento em que a foto foi tirada e quando foi levada por Devina – mas o fato de que ela não tinha ideia do que a esperava ao virar a esquina fez com que seu coração desconfiado ficasse ainda mais focado no trabalho.
Provavelmente era melhor que não soubesse de nada.
E ele ia fazer com que Devina pagasse por isso.
O único artigo que havia além desse relatava que ela tinha desaparecido há uma semana e os dois juntos o fizeram perceber o porquê sua primeira pesquisa de dados havia falhado. Ele pediu que o computador procurasse por assassinatos ou garotas loiras mortas. Nada relacionado a desaparecimento.
Que erro idiota.
E os detalhes eram os que Sissy tinha dito: ela era caloura na Faculdade de Albany e estava passando as férias de primavera em Caldwell. A última vez em que a viram foi quando ela saiu do mercado local por volta das nove horas.
Nenhuma foto de seus pais. Contudo, ele iria encontrá-los.
– Você a viu? – Adrian disse com uma voz um tanto áspera.
– Sim. – Jim encarou a foto de sua garota sorrindo com seus amigos. Então, ele piscou e viu seus cabelos loiros emaranhados com sangue. – Como a tiro daquela parede?
A respiração do outro anjo era do tipo que se produzia quando não se tinha uma boa notícia para dar. De jeito nenhum. E você fica dolorido com isso.
– Você não pode.
– Inaceitável. Tem que haver um jeito.
– Não que eu saiba. – Houve um palavrão e, então, um estalo no colchão e uma variedade de estalos como se Ad estivesse se espreguiçando.
– Volto já.
Quando os passos pesados se dirigiram para o outro quarto, Jim não se deu conta da saída do cara. Mas quando o focinho do Cachorro cutucou sua perna nua, ele olhou para baixo.
Os grandes olhos castanhos olhavam de um rosto de pelo que parecia palha.
– Você sabe como tirá-la de lá? Ela não pertence àquele lugar. Ela não deveria ter terminado ali.
Jim considerou que o pequeno gemido do animal significava que concordava com ele – e que também precisava sair para fazer suas necessidades.
– Dois segundos – disse Jim, preparando-se para ficar em pé. – Preciso de um banho.
Levantando seu peso morto da cadeira, ele deixou cair o cobertor e entrou no banheiro que era de um tamanho modesto. Fechando-se lá dentro, ele acendeu a luz, deteve-se no banheiro e se perguntou se seu pênis ainda funcionava de alguma maneira.
O fluxo rosa que ele urinou respondeu a pergunta. E também sugeriu que seus rins foram danificados.
Depois que terminou, grunhiu ao se inclinar para apertar a descarga e depois se virou para ligar o chuveiro. Sabonete. Ele precisava de muito mais sabonete do que aquela metade já usada que estava ali...
Jim congelou ao se ver no espelho.
Ruim. Muito ruim.
Muito pior do que ele pensava.
Sua boca estava roxa e inchada por causa de toda porcaria que tinha sido empurrada dentro dela, seu peito e sua barriga eram nada além de carne viva. Quanto ao pênis... A maldita coisa estava pendurada em seus quadris como se tivesse perdido a vontade de viver. E ele não queria saber como a parte de trás de seu corpo estava.
Usado e abusado eram os termos corretos.
E seu único pensamento, o único... apenas um... era que odiava o fato de que Sissy o tinha visto assim.
Quando seu estômago vacilou em torno de sua cintura, ele se lembrou da expressão horrorizada no rosto dela ao olhar para ele. Pobre garota... Ele tinha sido treinado para toda aquela porcaria. Ele tinha passado por isso antes... bem, não exatamente pelo que Devina fez com ele, mas com certeza ele teve que lidar com isso algumas vezes com punhos e facas. Até mesmo com uma bala ou duas. Mas Sissy...
Ele quase não conseguiu voltar à bacia sanitária à tempo.
Quando seu corpo se inclinou e nada além de bile saiu de sua boca, seus olhos lacrimejaram pelo esforço.
Maldição, Sissy o viu daquele jeito. Violado sexualmente, sangrando, surrado...
Mais vômito.
Ele não teve certeza de quando exatamente Adrian entrou, pois no terceiro round de lances que saíam de sua boca ele se deu conta que não sabia se ela estava livre do que tinha feito com ele. Afinal, ela foi capturada. Ela estava presa naquele inferno. E Devina tinha muitas coisas que satisfariam o gênero masculino.
– Aqui – Adrian disse, passando-lhe um pano frio.
Jim não conseguia enxugar o rosto, pois doía demais, então, ele deu leves toques, sentindo a umidade fresca como um bálsamo contra seu rosto em chamas e lábios queimando.
Baixando a cabeça, ele percebeu que tinha deixado manchas de sangue fresco no piso creme, das feridas que tinham sido reabertas em seus joelhos.
Sim, imortal não significava embalsamado; isso era certeza.
Adrian sentou-se ao lado dele, com o rosto muito pálido enquanto olhava ao redor da bacia sanitária.
– Quer que eu o coloque no banho? Foi o que me ajudou quando ela...
Quando seus olhos se fecharam com força, a conversa era de sobrevivente para sobrevivente.
– Ah, droga... – Quando Jim falou, sua voz era rouca e parecia que tinham passado um desentupidor por sua garganta.
– Ela me viu assim. Sissy... ela viu isso.
Ele não podia acreditar que havia dito isso, mas manter dentro de si era inútil.
Incapaz de manter contato visual, Jim fechou suas pálpebras com força e encostou ao lado da banheira. Enquanto a água caía como a chuva atrás dele e o chão duro pressionava seu traseiro, ele sussurrou: – Ela me viu arruinado.
Foi a última coisa que disse antes de desmaiar.
CAPÍTULO 37
Você não deve ter pensando que uma casa com seiscentos metros de área construída, no centro da cidade, com três andares – quatro, se contar o porão com a adega – poderia ser estreita como uma caixa de sapato.
Mas, à medida que a manhã se arrastava e chegava o florescer do meio dia, Grier sentia como se não pudesse ter ar suficiente... ou algum momento à sós com Isaac. Seu pai era uma presença passiva com olhos de águia que parecia preencher todo o espaço, mesmo quando não estava nele. E Isaac estava tão ruim quanto ele, movendo-se constantemente, olhando pelas janelas, indo e voltando da frente da casa para a cozinha.
Por volta das duas horas, ela não aguentava mais e foi organizar seu armário no quarto. O que era ridículo, pois já estava arrumado – apesar de ser uma cura rápida para o que estava passando.
Depois de parar no meio do quarto e fazer um giro pelas fileiras de roupas penduradas por categoria, ela pegou cada blusa, saia, vestido, terno e par de calças das prateleiras e os colocou em uma pilha no chão. Aparentemente, ela estava reorganizando as várias sessões. Na realidade, ela estava dando a si mesma um pouco de bagunça para limpar para que pudesse desfrutar de um pouco de controle.
Cabide por cabide, item por item, ela começou a organizar seu guarda-roupa.
Deus... Isaac.
Se ela o ouviu direito, lá na cozinha, perto da cafeteira... ele disse que a amava.
Vamos lá... claro que ela ouviu direito. E seus olhos incríveis confirmaram o que seus ouvidos tinham lutado para compreender.
Contudo, havia muitos mas que a advogada que havia nela queria esquematizar. A questão era, a mulher por trás da advogada de defesa não se importava com nada daquilo: ela sentia algo tão forte quanto ele.
Naturalmente, a lógica dizia que não devia confiar na emoção nos dois casos, apontando que tudo era uma questão de circunstâncias, drama, tensão, sexo – Deus, o sexo. Só que seu coração tinha uma teoria diferente. Ela sentiu uma faísca entre eles no instante em que colocou os olhos nele e a decisão de Isaac de tomar a frente e fazer a coisa certa sobre seu chefe corrupto e perigoso... bem, isso foi ainda melhor que os incríveis orgasmos.
Ele ganhou todo o respeito dela com isso.
Ao pegar um de seus ternos pretos com risca de giz, ela se entreteve com uma breve fantasia onde eles acabavam juntos em uma ilha segura e remota com nada além do dilema sobre o que fazer para almoço e jantar para preocupar suas mentes. Um dia de sonho na Ilha da Fantasia com nada para ser questionado seria uma ótima diversão, mas ela não ia enganar a si mesma. Isaac ia desaparecer. O governo ia levá-lo e escondê-lo até que as audiências no Congresso ou os procedimentos judiciais fossem iniciados. E se ele não acabasse na cadeia pelas atrocidades de guerra nos Estados Unidos, seria extraditado para algum inferno no exterior.
E foi por isso que ele disse aquilo. Era seu adeus.
– Uau.
Grier girou sobre os calcanhares, o terno em suas mãos se levantou em um círculo em volta de seu corpo antes de ser colocado de volta no lugar – como se tivesse esquecido momentaneamente sua discrição e retomado sua compostura.
E não é que ela sabia como a coisa se sentia?
Isaac se amaldiçoou.
– Desculpe, eu realmente preciso aprender a bater.
Grier ficou mais aliviada.
– Eu também estou nervosa demais.
Franzindo a testa, ele mediu a pilha no meio do carpete creme.
– Muitas roupas.
– Provavelmente roupas demais. Eu preciso doar um pouco para alguma entidade.
Ele avançou e pegou um de seus vestidos. Era longo e preto, como todos os outros, pois ela não era do tipo de garota que gostava de cores e brilhos.
– Para onde vai esse?
– Ah... – Havia apenas uma seção com barras altas o suficiente para os longos. Então, ela havia os tirado por nada, apenas para colocá-los novamente. – Aqui. No canto, por favor.
Ele pegou o vestido feito para se usar à noite e o colocou no lugar onde já tinha estado antes. Então, ele se voltou para o próximo, endireitando as ombreiras em um cabide acolchoado de cetim. Antes de colocá-lo no lugar, ele se surpreendeu por baixar a cabeça e colocar seu nariz no decote.
– Tem o cheiro do seu perfume – ele murmurou antes de colocá-lo sobre a haste de bronze.
Foi o que bastou para que um arrepio percorresse dentro dela – no bom sentido. Infelizmente, o formigamento foi substituído por tudo o que estava pairando sobre eles.
– Você já recebeu algum contato... deles?
– Não.
– O que você vai fazer se eles não responderem?
– Eles vão.
Ele não disse mais nada, apenas pegou um vestido com um corpete de veludo e uma larga faixa.
– Vestido de Natal?
– Sim.
– É lindo.
– Obrigada. Isaac? – Quando ele olhou, ela disse: – Eu...
Ele a interrompeu.
– O que é esse som?
– Que som...
O terno caiu de suas mãos quando ela reconheceu o sutil sinal sonoro e se atrapalhou para tirar a corrente do sistema de segurança do bolso. Era certeza, uma luz vermelha estava piscando. “Havia alguém na casa.”
Ela interrompeu o barulho e começou a ir em direção ao telefone ao lado da cama, mas ele segurou seu braço.
– Não. Nada de polícia. Já tiramos vidas de inocentes o suficiente com isso.
Sua arma surgiu e expôs um tubo quase tão longo quando seu punho. Quando ele engatou o silenciador na ponta da arma, olhou em volta e seguiu até o espaço mais abaixo onde o mecanismo do sistema de segurança se encontrava.
Mantendo a arma em mãos, ele arrancou a superfície de metal.
– Entre aqui. E não saia até que eu...
– Eu posso ajudar...
A expressão nos rosto dele fez com que ela desse um passo para trás: seu olhar era frio e totalmente estranho – como se ela estivesse olhando para um vidro fosco... sem esperança de algum dia ver o que estava por trás dele de novo.
– Entre aí, agora.
Os olhos dela encararam a arma e depois se voltaram para sua face rígida e implacável. Era difícil saber o que era mais assustador: a ideia de que alguém estava em sua casa ou o estranho em pé na frente dela. E, então, ficou claro para ela...
– Oh, meu Deus, meu pai!
– Eu cuido dele. Mas não vou fazer isso direito se estiver preocupado com você. – A arma apontava para o buraco escuro que ele tinha aberto. – Vá, agora.
Depositando sua confiança nele, Grier se abaixou, esquivou-se dentro do local e respirou o ar bolorento dos beirais quando Isaac recolocou a grade no lugar. Houve um movimento, um clique, outro movimento, outro clique ao fixar a coisa na parede e, em seguida, pelas frestas, ela o viu sair correndo, silencioso como uma sombra.
Ela olhou o relógio. Ouvia com atenção.
O medo se comprimia com ela dentro dos limites apertados de seu esconderijo, ocupava mais espaço que ela, trazia à tona a imagem de Isaac como um estranho, até aquilo ser tudo o que conseguia ver.
Silêncio.
Mais silêncio.
Que foi prontamente interrompido por uma estridente paranoia em sua cabeça.
Oh, Deus... e se tudo isso não passou de uma armadilha? E se Isaac tinha sido enviado com o único propósito de seduzir seu pai e determinar o quão longe ele iria para expor a agência?
Só que foi ela quem sugeriu isso.
Ou será que a intenção dele era que ela acreditasse nisso?
Contudo, seu perfil dizia que ele precisava de uma motivação moral – e se fosse uma mentira? E se aquilo fazia dele o agente infiltrado perfeito? E se tudo aquilo não passasse de um jogo para que seu pai entregasse os dossiês... antes de o matarem.
E, ainda assim, Isaac a colocou ali para protegê-la.
Só que ela não o reconhecia no momento em que fez isso...
Meu bom Deus, o transmissor de alerta – a luz estava apagada, não estava? Quando ele balançou a coisa em frente a ela na cozinha esta manhã, a luz que ela tinha visto antes estava apagada. O que aquilo significava? E, pensando nisso, o lapso de tempo lhe parecia bizarro: entre o momento em que ele aparentemente se entregou até agora.
Ela tinha que sair dali. Conseguir ajuda.
Grier se contorceu e se apertou atrás dos componentes empilhados do centro nervoso do sistema de segurança. A escadaria oculta que corria no meio da casa fazia parte de sua construção original, foi feita por suspeita e desconfiança de que os britânicos ainda pudessem passar por ali em 1810, cerca de trinta anos depois da Revolução.
Os truques da casa acabaram sendo úteis no presente.
O brilho do sistema de segurança proporcionava iluminação suficiente para que ela encontrasse a lanterna coberta de poeira que ficava pendurada em um prego no topo da escada secreta. Acendendo a luz, ela tateou os degraus antigos, entalhados à mão, deixando suas impressões para trás na poeira. Ao prosseguir, teias de aranha grudaram em seus cabelos e os ombros foram arranhados pela áspera argamassa dos tijolos.
Quando chegou ao primeiro andar, fez uma pausa. É claro que ela não conseguia ouvir nada devido às grossas paredes, mas o pai dela tinha acrescentado um tubo que parecia fazer parte do sistema de ventilação. Na verdade, porém, servia como posto de vigilância secreto.
Grier subiu e se inclinou para o lado para conseguir enxergar direito, apoiando-se sobre alguns tijolos que estavam mais firmes que os outros.
Quando ela apertou os olhos, sua visão trespassou as ripas e focou-se na entrada da frente. Se ela se arqueasse um pouco mais e esticasse o pescoço, ela conseguiria ver a cozinha...
Grier abandonou a lanterna e apertou as mãos sobre a boca.
Para não gritar.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
PARAÍSO, JARDIM SUL
Nigel concedeu uma audiência antecipada a seus dois anjos guerreiros favoritos não por causa da bondade que havia em seu coração – apesar do fato de ele, Colin, Bertie e Byron estarem no meio de uma refeição. Contudo, não haveria como mandar esses visitantes embora: ele sabia por que Edward e Adrian estavam chegando e eles não iam gostar do que ele tinha para lhes dizer.
Assim, ele sentia que precisava tratar disso pessoalmente.
E, de fato, quando os dois anjos tomaram forma do outro lado do gramado, caminharam ao longo do bosque como os vingadores que eram.
– Sinto muito mesmo – Nigel murmurou para seus assessores. – Mas poderiam, por favor, me dar licença um minuto.
Ele dobrou seu guardanapo damasco e se levantou, pensando que não havia razão para arruinar a refeição dos outros – e o que estava prestes a acontecer verbalmente seria um assassinato gastronômico do tipo mais sangrento.
Colin se levantou também. Nigel preferia fazer isso sozinho, mas não havia como dissuadir o anjo. Nada nem ninguém poderia mudar as ideias de Colin sobre o que teria de sobremesa, muito menos sobre questões de real importância.
Ele e Colin se encontraram com seus visitantes a meio caminho entre o local onde os dois haviam entrado e onde a mesa estava colocada entre as árvores.
– Ela o tem – Edward disse quando os quatro se aproximaram. – Não sabemos como isso aconteceu...
Nigel interrompeu o anjo.
– Ele se entregou para que outra pessoa tivesse uma chance na vida.
– Ele não deveria ter feito isso. Ele é valioso demais.
Nigel olhou na direção de Adrian e viu que o anjo estava em silêncio pela primeira vez. O que era o sinal mais concreto de que havia problemas.
Nigel puxou suas abotoaduras, alisando as mangas de sua camisa de seda dentro de seu terno de linho.
– Ela não vai matá-lo. Não pode.
– Tem certeza disso?
– Há poucas coisas confiáveis nela, mas as regras não foram impostas por ela. Se matar Jim, ela perde não só a rodada, mas o jogo na sua totalidade. Isso vai mantê-la em cheque.
A voz de Adrian percorreu o ar, fina e dura.
– Há algumas coisas piores que a morte.
– Com certeza, você está certo.
– Então, faça alguma maldita coisa. – O anjo vibrava por completo, seu corpo era um presente de natal prestes a ser rasgado em pedaços com ansiedade.
– Porém, nós poderíamos tirá-lo de lá – Edward disse. – Não é contra as regras.
– Claro que poderiam.
Longo silêncio.
Edward limpou a garganta e pareceu dobrar a língua numa contenção educada.
– A imagem que ela nos enviou sugere que ele está preso no mundo dela.
– Ele não está sobre a terra, é verdade.
– Então, como podemos chegar até ele?
– Não podem.
Quando Adrian soltou um palavrão, Edward segurou o braço do outro anjo, mas isso não o calou.
– Você disse que poderíamos tirá-lo de lá.
– Adrian, eu disse “poderiam” no sentido de permissão. Vocês têm permissão de fazer isso dentro das regras. No entanto, eu não fiz um comentário sobre suas habilidades. Neste caso, vocês são incapazes de alcançá-lo sem sacrificarem a si mesmos, deixando-o sem apoio e orientação durante esses momentos inicias e cruciais...
– Seu imbecil.
Antes que Adrian pudesse fazer algo estúpido, Edward transferiu sua força para o pesado peito do cara e o deteve.
Nigel levantou uma sobrancelha para os dois.
– Eu não faço as regras e eu tenho tanta intenção de ser desqualificado quanto meu adversário.
– Você tem... – Adrian engasgou com as palavras e teve que respirar fundo para terminar. – Você tem alguma ideia do que ela está fazendo com ele? Agora mesmo? Enquanto estamos parados em seu maldito gramado e o jantar está esperando por você?
Nigel escolheu as palavras com cuidado. A última coisa que ele precisava era dos dois fazendo justiça com as próprias mãos. Eles já tinham cometido esse erro uma vez, não tinham?
– Eu sei exatamente o que ela está fazendo sobre aquela mesa, por assim dizer. E também sei que Jim é muito forte... o que é a pior tragédia de todas. Pois ela vai recorrer a torturas que... – Não havia razão para continuar: os olhos de Adrian ficaram vítreos como se fosse alguém revivendo um pesadelo. – Eu diria, porém, que Devina não pode mantê-lo por muito tempo ou ela corre o risco de perder. As coisas estão chegando a um limite e, se ela impedir Jim de participar plenamente do que está por vir, então, não haverá uma competição justa.
– E quanto a Jim? – Adrian exigiu, libertando-se do seu melhor amigo. – E quanto ao sofrimento dele? E quanto a ele?
Nigel olhou para Colin, que estava completamente em silêncio. Mais uma vez, sua bela e familiar expressão facial dizia tudo: sua fúria era tão grande e profunda que os oceanos ficariam rasos, se comparados a ela. Ele sempre odiou Devina e isso não serviria de auxílio naquele momento.
No entanto, havia bastante exaltação ali.
Nigel balançou a cabeça com uma sincera decepção.
– Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito. Minhas mãos estão atadas.
– Você sente muito? Você sente muito, seu maldito? – Adrian cuspiu no chão. – Sim, você parece mesmo, seu bastardo frio. Você parece muito desapontado. Imbecil.
Com isso, o anjo se desmaterializou.
– Droga. – Edward murmurou.
– Um palavrão, mas uma palavra adequada para isso. – Nigel olhou para o espaço que Adrian tinha preenchido antes. – É cedo para ele estar tão cansado e frágil com a batalha. Isso não é nada bom.
– Você está brincando comigo, certo?
Ele encarou o anjo.
– Com certeza você deve enxergar a loucura que há nele...
– Para sua informação, chefia, não faz nem quatro dias que Devina usou o cara ao seu bel-prazer. E você acha que ele não vai perder a cabeça agora que Jim está passando pela mesma máquina de tortura? Está falando sério?
– Gostaria de lembrá-lo que você jurou que ele poderia lidar com isso. – Nigel viu-se inclinado para frente em posição de confronto. Afinal, ele poderia ser o capitão deste lado, mas isso não queria dizer que estava isento de socos. – Você me disse que ele poderia suportar o estresse. Você me prometeu e eu acreditei em você. E se acha que vai ficar mais fácil à medida que avançamos, então você está tão louco quanto ele aparenta estar.
Edward ergueu o braço e o puxou para trás como se fosse lhe dar um soco.
– Vá se ferrar, Nigel...
Colin investiu contra o anjo em um piscar de olhos, atacando pela direita, como no futebol americano, derrubou o homem e o imobilizou de bruços sobre a brilhante grama verde.
– Você não toca nele, companheiro – Colin grunhiu. – Eu sei que está chateado e deseja libertar Jim, mas não posso deixar que bata em Nigel. Não vai acontecer.
Nigel olhou para a mesa de jantar. Como Bertie e Byron se viraram para olhar, ele viu que eles estavam sentados como pássaros preocupados, seus corpos se estenderam, os braços caíram nas laterais, os olhos arregalados.
Tarquin tinha deitado no chão e colocado seu longo focinho sob a toalha para que não conseguisse ver nada.
A refeição estava mais que arruinada. E não apenas porque o espetáculo que aconteceu ali foi um desastre de se assistir: na verdade, Nigel não ia ser capaz de colocar nada no estômago. Esse jogo com Devina estava tomando péssimas direções de tantas maneiras... e ele estava paralisado pelas regras.
– Solte-me – Edward resmungou.
Colin deveria ter uma estrutura duas vezes mais leve que a do outro anjo, mas tinha uma força elástica além da média.
– Você vai ser legal, companheiro. Nada mais de socos ou vai ser derrubado outra vez.
– Está bem.
As palavras não foram qualquer tipo de rendição, mas Colin saiu de cima dele de qualquer maneira... provavelmente por saber que só poderia subjugar o homem de novo se fosse necessário.
Edward tirou os pedaços de grama verde que ficaram presos em seu casaco de couro como se fossem lantejoulas.
– Só por que Jim pode sobreviver a isso não significa que seja justo.
Com isso, ele desapareceu no ar.
Após um palavrão silencioso, Nigel observou o desaparecimento da marca deixada pelo corpo pesado de Edward, a grama se erguia, endireitava-se.
– Eles têm razão – Colin disse asperamente. – E a vadia não está jogando limpo.
– Jim se voluntariou para ela.
– Em uma situação que ela projetou. Não está certo e você sabe disso.
– Você quer que nós corramos o risco da derrota? – Ele o encarou. – Você quer perder por causa disso?
Colin espalmou a grama de suas mãos.
– Inferno. Mas que maldito inferno. – Nigel olhou para a marca do corpo que desaparecia em seu gramado.
– Concordo plenamente.
CAPÍTULO 31
A adega não era um lugar aonde Grier ia com frequência. Em primeiro lugar, as garrafas de vinte dólares que enchiam suas taças todas as noites mal valiam o subir e descer de escadas. Em segundo, com sua porta que era como um cofre de banco, seu teto baixo e estantes que percorriam todas as paredes, ela sempre sentia como se lá fosse uma prisão.
E, como pode imaginar... quando seu pai fechou os três no caixão apertado, o peso da presença de Isaac diminuiu o local para o tamanho de uma caixa de lenços de papel e ela sentiu como se não pudesse respirar.
Havia uma mesa polida no centro do espaço e ela ocupou uma das quatro cadeiras. Quando Isaac se sentou à frente dela, foi difícil não se lembrar de quando o encontrou na cadeia: tinha sido bem assim, os dois frente a frente.
Só que agora, apesar do fato que nenhum dos dois estava algemado, ela não conseguia deixar de ter a sensação de que os dois estavam amarrados juntos... e que as rolhas em todas as garrafas eram um pelotão de fuzilamento na iminência de obedecer ao sinal para atirar.
Deus, quando ele foi trazido para se encontrar com ela pela primeira vez, ela não tinha ideia de onde estava se metendo.
Mas, alguém já soube? Quando as pessoas passam por suas vidas cotidianas, escolhas rápidas e eventos aleatórios podem, algumas vezes, girar em um tipo de força centrífuga que as suga e, depois, as expele em um endereço totalmente diferente de onde começaram.
Mesmo quando nunca saem de casa.
Seu pai sentou-se mais próximo da porta e uniu as mãos quando colocou os cotovelos no topo da mesa.
– Estamos seguros aqui embaixo – disse ele, apontando para uma saída de ar no pequeno teto que tinha duas bandeiras vermelhas tremendo com a brisa. – O sistema de ventilação é iniciado a vários quarteirões de distância daqui, assim, não há preocupação com uma contaminação. Há também um túnel e um transmissor de ondas de rádio que irá embaralhar nossas vozes se estivermos sendo gravados.
O túnel era uma novidade e Grier olhou em volta. Até onde ela poderia ver, todas as prateleiras estavam fixadas na parede e o chão era de pedra, mas dado os outros pequenos truques na casa, ela não poderia afirmar que estava surpresa.
Isaac se manifestou.
– Se eu tivesse que ir até alguém e conversar com essa pessoa, quem seria?
– Isso depende de como...
– E quanto à mamãe? – Quando Grier cortou, interrompeu, descarrilou, ela olhou para o rosto de seu pai, procurando por contrações ao redor dos olhos e da boca. – E quando ela morreu? Foi mesmo de câncer?
Embora tivesse sido há sete anos, aqueles dias finais horríveis ainda estavam tão vívidos e ela se infiltrou neles, procurando por rachaduras nas paredes dos acontecimentos, em busca de lugares onde as coisas que pareciam de um jeito pudessem ser de outro.
– Sim. – Seu pai disse. – Sim... ela... Sim, aquilo foi câncer. Eu juro.
Grier exalou e achou difícil imaginar que ela estivesse realmente aliviada por ter sido aquela doença horrível. Mas era muito melhor a Mãe Natureza ter sido a culpada. Muito melhor que aquela tragédia não precisasse ser reescrita. Uma era mais do que suficiente.
Ela limpou a garganta. Assentiu.
– Tudo bem, então. Tudo bem.
Uma mão quente cobriu a dela e a apertou. Como as mãos de seu pai estavam sobre a mesa, ela percebeu que era Isaac. Quando ela olhou para ele, Isaac quebrou a ligação, seu toque durou apenas o suficiente para que ela soubesse que ele estava ali com ela, mas não de maneira que ela se sentisse reprimida.
Deus, as contradições que havia nele. Brutal. Sensual. Protetor.
Com um tapa mental, ela voltou a se concentrar em seu pai.
– Você estava dizendo alguma coisa?
Ele balançou a cabeça e se recompôs antes de olhar para Isaac de novo.
– Até que ponto você está disposto a ir?
– Eu não vou comentar sobre os outros soldados em atividade – disse Isaac. – Mas quanto ao que se tratar das minhas atribuições, vou até o fim. As coisas que fiz para Matthias. O que sei sobre ele e sobre o segundo na linha de comando. Onde os dois me enviaram. O problema é: isso é uma colcha de retalhos... Há muita coisa a qual só conheço em parte.
– Deixe-me mostrar uma coisa.
Seu pai se levantou da mesa e, antes que ela pudesse ver o que ele fez, uma seção de prateleiras veio para frente e deslizou à esquerda, expondo um conjunto de segurança em meio à parede de pedra. A porta resistente foi aberta pelas impressões de toda a palma de sua mão em um painel e o interior não era muito grande – um pouco maior que um bloco de notas na horizontal e não tinha mais que quinze centímetros de altura.
Ele voltou à mesa com uma pasta grossa.
– Isso foi tudo o que consegui reunir. Nomes. Datas. Pessoas. Lugares. Talvez isso ajude a ativar sua memória. – Ele bateu sobre a capa da frente. – E vou descobrir a quem recorrer. Não há como saber com certeza quem está envolvido no círculo de relações de Matthias: conspirações governamentais têm grossas raízes, mas também possuem garras que você não consegue ver. A Casa Branca não é uma opção e é uma questão federal, então, contatos da União não vão nos ajudar. Mas eis o que eu penso...
A voz de seu pai tornava-se mais poderosa a cada palavra, a força crescente do propósito o transformava no pilar que ela sempre acreditou que fosse. E, enquanto ele descrevia os planos, ela sentiu uma mudança no centro de seu coração.
Embora isso se devesse muito a algo que Isaac havia falado. Nenhum de nós sabe no que está entrando até ser tarde demais...
O irmão dela tinha sido um drogado muito amado, um viciado de primeira ordem que teria morrido pelas suas próprias mãos em algum momento – embora essa não fosse uma justificativa para o que tinha sido feito com ele, era a simples realidade da situação. E ela se surpreendeu, na época, em como seu pai ficou desesperado com a perda. Ele e Daniel não mantinham contato há pelo menos um ano antes daquela noite terrível: depois da última internação em mais uma clínica de reabilitação caríssima ter caído no esquecimento, o pai atingiu seu limite assim como muitos pais e familiares faziam. Ele ofereceu tudo o que podia para seu filho, andou com toda dificuldade por uma década nos caminhos da recuperação que deram uma esperança traiçoeira, mas era inevitável que se seguissem longos e obscuros meses em que ninguém sabia onde Daniel estava ou, até mesmo, se estava vivo.
Contudo, seu pai estava inconsolável em sua morte. Ao ponto dele passar uma semana em uma cadeira com nada além de uma garrafa de gim ao seu lado.
E agora ela sabia o porquê. Ele acreditava que era inteiramente responsável.
Enquanto ela o observava falar, notava a idade em seu rosto... as rugas ao redor dos cantos dos olhos e da boca, a ligeira inclinação na linha do queixo. Ele ainda era um homem bonito e, ainda assim, nunca se casou de novo. Será que foi pela bagunça na qual estava envolvido? Provavelmente.
Definitivamente.
Aqueles sinais da idade nele não eram apenas uma questão do tempo. Foi estresse, dor de cabeça e...
Mudando seu foco para Isaac, seu olhar estreito e parecendo um laser era intenso; sua íris pálida brilhava muito com uma luz de “vamos à guerra”. Engraçado, ele não tinha nada a ver com seu pai em termos de antecedentes, educação escolar, exposição, experiência. E, ainda assim, eles eram idênticos em muitos aspectos.
Especialmente unidos na missão comum de fazer o certo.
– Grier?
Sacudindo-se, ela olhou para seu pai. Ele estava segurando algo em sua direção... um lenço? Mas por quê...
Quando ela sentiu algo atingir seu antebraço, olhou para baixo. Uma lágrima prateada se recolhia após a queda de seu olho, aglomerando-se em um pequeno círculo brilhante em sua pele.
Outra escorreu e atrapalhou todo seu esforço – mas, então, as duas uniram forças e a massa duplicou.
Ela pegou o lenço e enxugou suas lágrimas.
– Eu sinto tanto – seu pai disse.
Ela enxugou o rosto e redobrou o linho fino, lembrando-se dele fazendo a mesma coisa quando estavam na cozinha.
– Sabe? – ela murmurou. – Desculpas não significam nada. – Ela apoiou a mão na pasta que ele tinha colocado na mesa. – Isso... o que vocês dois estão fazendo... isso é tudo.
A única coisa que poderia consertar qualquer aspecto sobre isso.
Para interromper a conversa mental, abriu a capa...
Ela franziu a testa e se inclinou. A primeira página era uma impressão da imagem de quatro fotografias de rosto. Todos homens. Todos eles pareciam diferentes versões étnicas de Isaac. Embaixo das imagens, com a caligrafia de seu pai, havia nomes, datas de nascimento, números de cadastro na segurança social, a última vez que foram vistos... embora nem todos os dados estivessem concluídos. E três deles tinham a palavra FALECIDO embaixo de suas fotos.
Ela virou para próxima página e a próxima. A mesma coisa. Tantos rostos.
– Eu quero que Jim Heron entre nessa – Isaac disse. – Quanto mais estiver disposto a ir adiante, melhor...
– Jim Heron? – o pai dela disse. – Você quer dizer Zacarias?
– Sim. Eu o vi mais cedo essa noite e na noite anterior. Eu pensei que ele tinha sido enviado para me matar, mas, ao que parece, ele quer me ajudar... ou é assim que diz.
– Você o viu?
– Ele estava com dois rapazes. Eu nãos os reconheci, mas parecem com caras que poderiam ser das operações extraoficiais.
– Mas...
– Oh, meu Deus. – Grier sussurrou, aproximando uma das páginas. – É ele.
Quando ela apontou para uma das fotos, ouviu seu pai dizendo: – Jim Heron está morto. Atiraram nele em Caldwell, Nova York. Há quatro noites.
– É ele. – Ela repetiu, batendo na foto.
A voz de Isaac soou confusa.
– Como sabia? Grier... como você sabia?
Ela olhou para ele.
– Sabia o que?
– Que era Jim Heron.
Movendo seu dedo, ela viu o nome Zacarias abaixo da foto.
– Bem, eu não sei quem ele é, mas esse é o homem que apareceu no meu quarto na noite passada. Como um anjo.
CAPÍTULO 32
Aquilo não estava funcionando.
Lá no fundo do Inferno, onde ela mantinha suas almas capturadas e onde o ar rarefeito ecoava os gemidos de seus servos oleosos, Devina estava sofrendo de um caso grave de mau humor.
Razão pela qual ela mandou todos embora.
Parando de repente, ela observou o pedaço de carne amarrado com um fio metálico em sua mesa. À luz das velas, Jim Heron era uma obra ao estilo Pollock com sangue, cera negra e outros líquidos de vários tipos, e ele estava tendo dificuldades para respirar através de seus lábios inchados e rachados. Em seu estômago, havia um roteiro de escavações que ela tinha feito com suas próprias garras e as coxas dele estavam bem marcadas com seu nome e seus símbolos.
Seu pênis tinha sido utilizado até ficar tão em carne viva quanto o resto do corpo dele.
E, ainda assim, ele não chorou ou implorou ou sequer abriu os olhos. Nenhuma blasfêmia, nada de lágrimas. Nada.
Ela não tinha certeza se deveria ficar chateada consigo e com seus ajudantes por não terem se esforçado o suficiente... ou se estava se apaixonando pelo bastardo.
De qualquer maneira, ela tinha a determinação de conseguir um pedaço dele. A questão era como.
Devina estava bem consciente de que havia duas maneiras de quebrar alguém. A primeira era de fora para dentro: você esculpia a pele, os ossos e o sexo do indivíduo até que a dor física, a exaustão e a vergonha aniquilavam seu núcleo mental. A segunda era o inverso: encontrar a fenda que havia dentro da pessoa e martelar com palavras até que tudo desmoronasse.
Normalmente, a primeira era suficiente para ela, tendo em conta todas as ferramentas à sua disposição – e também era divertido e, portanto, era por onde ela sempre começava. A segunda era mais complicada, embora não menos satisfatória à sua maneira. Todas as pessoas tinham chaves para abrir suas portas internas; ela só precisava classificá-las e descobrir aquela que a levaria para dentro da mente e do coração do indivíduo.
No caso de Jim Heron... Bem, estava claro que ele ia dar trabalho. E aquilo ainda abriria uma competição pelo brinquedo favorito com Adrian.
O que escolher, o que escolher...
A mãe dele. Sua mãe era uma boa, mas Devina não era capaz de ficar calma para se aproximar da realidade e ele deveria ser inteligente o suficiente para descobrir que ela estava fingindo...
Felizmente, havia outra solução que estava sob seu controle.
Fora do alcance da luz das velas, presas em suas paredes viscosas, as almas daqueles que ela capturou se contorciam. Mãos, pernas, pés e cabeças faziam aparições ondulantes que nunca quebravam a superfície suspensa, o torturado sempre procurava por uma saída.
A satisfação de ver sua coleção a distraiu, mas também a deixou faminta: ela tinha que ter Jim também como um troféu entre os outros. Estava desesperada para tê-lo dentro dela. No início, tinha sido um mero jogo; agora, depois daquela sessão, era muito mais que isso.
Ela queria obtê-lo.
Voltando a focar o rosto dele, ela achou sua expressão quase impossível de compreender. Como um homem poderia ter passado por tanta coisa... e sem sequer fazer uma careta. E também sem medo do que estava por vir.
Contudo, ela ia consertar isso.
E ela gostava de pensar que esse poder nele vinha daquela porção que ela compunha. Aqueles anjos de corações sangrando com sua contenção e moral sacrossantas... fracos, tão fracos. Ao ponto de ela não querer perder o jogo contra Nigel não apenas porque poderia governar a terra e os céus e tudo o que havia entre o sol e a lua... mas porque um bom tapa no traseiro daqueles maricas seria demais.
Contudo, Jim... ele era melhor que isso. Ele era mais parecido com ela no fundo de seu ser.
Que tragédia ter que enviá-lo à Terra em breve; mas o jogo, afinal, tinha que ser retomado. Entretanto, antes de ir, ela estava determinada em fazer uma impressão nele, dar a ele mais um pouco do que seria o Inferno Eterno. Afinal, os cortes em sua pele eram relativamente rasos. Porém, marcas na mente eram muito, muito mais profundas.
E imortais eram especialmente gratificantes nesse sentido, pois, conforme o cérebro persistia, assim era a memória – e isso significava que ela poderia deixar cicatrizes eternas.
Olhando a parede, que se estendia quilômetros acima dela, Devina pensou em sua terapeuta e no trabalho que estavam fazendo juntas. Aquele era um domínio que estava fora dos limites de sua “recuperação”, e sua situação com Jim era mais uma prova de como seu probleminha de acumular objetos viria a calhar.
Você nunca sabe do que pode precisar.
Estendendo a mão, puxou uma das formas mais esbeltas, movendo-a dentre as outras almas, chamando-a até ela. Quando estava no chão, ela convocou a alma e a vestiu da forma corpórea que costumava exibir na Terra.
Devina sorriu frente a isso. Tanta utilidade em um pacotinho tão insosso e esquecível.
Voltando-se para a mesa, ela disse: – Jim? Tenho alguém aqui que você vai querer ver.
Deitado sobre a mesa de Devina, ele duvidou. Duvidou disso, de maneira muito sincera.
Além disso, naquele ponto, visões provavelmente não eram convidativas.
Nada mais doía, o que tornava aquela droga toda muito mais fácil. No entanto, a troca que fez por aquela feliz dormência foi sua consciência recolhida a um canto escuro de seu interior. Ele ainda não tinha deitado a cabeça para tirar um cochilo, mas estava chegando lá: a audição tinha atingido a fase do algodão, onde tudo estava abafado e as coisas estavam bem frias dentro de sua pele.
Os sinais clássicos do choque faziam com que ele se perguntasse se ela tinha, de fato, a capacidade de matá-lo.
Ela não tinha finalizado Adrian, mas será que aquilo não seria um capricho do afeto?
– Vou deixar vocês dois se conhecerem.
A satisfação de Devina não era uma boa notícia, considerando que ela fez todo o inumano possível para acabar com ele afinal... Por quanto tempo? Horas? Tinha que ser.
Passos. Recuando.
Uma porta. Fechada.
Silêncio.
Contudo, alguma coisa estava com ele. Ele conseguia sentir a presença à sua esquerda.
Atrás de suas pálpebras fechadas, ele tinha certeza de duas coisas: Devina não devia ter ido muito longe e, seja lá o que foi que ela trancou com ele, estava perto.
A respiração foi a primeira coisa que ele notou. Macia, suspensa. Do tipo que você pratica quando está em modo de recuperação. Será que era sua própria respiração?
Não. O ritmo era diferente.
Ele virou a cabeça com cuidado em direção a coisa e babou, sua boca se livrou do que ele não conseguia engolir por causa do fio em volta do seu pescoço.
Seja lá o que estava com ele, soltou outra respiração suspensa. E, então, ele ouviu um sutil estalo.
Que diabos era aquilo?
Em dado momento, a curiosidade prevaleceu e ele rompeu uma de suas pálpebras... ou deu uma chance a elas, por assim dizer. Precisou de duas tentativas e ele teve que empurrar as sobrancelhas em direção à testa antes que as porcarias se abrissem...
No início, Jim não conseguiu compreender o que estava olhando. Mas o cabelo loiro não podia ser negado... aqueles cabelos longos e loiros que caiam sobre ombros frágeis.
A última vez que os viu tinha sido há dois dias. No banheiro de Devina.
Estava banhado de sangue.
A garota que tinha sido sacrificada para proteger o espelho de Devina estava vestida com uma capa manchada, seus braços finos cobriam os seios, uma pequena mão protegia a junção de suas coxas. Parecia, como milagre, que ela não estava marcada, mas o trauma estava ali: seus olhos estavam arregalados e horrorizados...
Só que eles não estavam na sala. Eles estavam nele... em seu corpo e nos restos brilhantes e pegajosos de tudo o que tinham feito com ele.
– Não... – A voz dele estava tão fraca que ele precisou puxar mais ar através daquela barreira de arame em sua garganta. – Não olhe... para mim. Afaste-se... Pelo amor de Deus, afaste-se...
Droga. Ele precisava de mais oxigênio, precisava fazer com que ela...
Os olhos dela encontraram os dele. O choque e o terror em sua face disseram mais do que ele precisava saber, não apenas do que tinha sido feito com ela por Devina, mas sobre o que a visão dele estava fazendo com aquela pobre garota.
– Não olhe para mim!
Quando ela se encolheu e retraiu-se, seu temperamento vacilou. Não que houvesse muito para conter – mas ele usou toda sua força naquele grito.
– Cubra o rosto – ele disse com a voz rouca. – Afaste-se e apenas... cubra o rosto.
A garota ergueu as mãos e se virou, sua coluna delicada destacava-se contra a capa conforme tremia.
Jim tinha puxado suas amarras involuntariamente durante a pequena sessão de exercícios com Devina. Agora, ele as empurrava.
– Você está se machucando – ela disse enquanto ele grunhia. – Por favor... pare.
A dor interrompia sua capacidade de fala e levou um tempo para dizer alguma coisa.
– Onde... Onde ela a mantém? Aqui embaixo?
– Na... na... – Sua voz era tão débil e, entre as palavras, seus dentes batiam, o que explicava o clique que ele tinha ouvido. – Na parede...
Seus olhos se atiraram em direção à escuridão, mas a luz das velas formava um bloqueio luminoso que seus olhos não conseguiam ultrapassar.
– Como ela faz isso? – Sem correntes, ele esperava.
E, droga, ele ia ferrar Devina por isso.
– Eu não sei – a garota disse. – Onde estou?
No inferno. Mas ele manteve isso para si.
– Eu vou tirá-la daqui.
– Minha mãe e meu pai... – ela caiu em lágrimas. – Eles não sabem onde estou.
– Vou dizer a eles.
– Como... – Quando ela olhou sobre seu ombro, seus olhos se fixaram sobre seu dorso degradado e ela empalideceu.
Ele balançou a cabeça.
– Não olhe. Prometa... não olhe mais para mim.
Mãos pálidas voltaram àquele belo rosto e ela assentiu.
– Meu nome é Cecilia. Sissy Barten, com ‘e’. Tenho 19 anos. Quase vinte.
– Você mora em Caldwell?
– Sim. Estou morta?
– Quero que faça uma coisa por mim.
Agora, ela deixou cair os braços e olhou para ele com firmeza.
– Estou morta?
– Sim.
Ela fechou os olhos como se outra onda de agitação atingisse seu corpo.
– Esse não é o Céu. Eu acredito no Céu. O que eu fiz de errado?
Jim sentiu algo quente no canto dos dois olhos.
– Nada. Você não fez nada de errado. E eu vou te levar para lá.
Nem que fosse a última maldita coisa que fizesse.
– Quem é você?
– Sou um soldado.
– Como no Iraque?
– Costumava ser. Agora eu luto contra essa vadia... ah, mulher que fez isso a você.
– Eu pensei que estava ajudando... quando a moça me pediu para carregar uma bolsa para ela. Eu pensei que estava ajudando... – Ela inspirou com força como se estivesse tentando se recompor. – Você não pode sair daqui. Eu tentei.
– Eu vou salvá-la.
De repente, a voz dela ficou mais forte.
– Eles machucaram você.
Droga, ela estava olhando para ele de novo.
– Não se preocupe comigo... tem que se preocupar consigo mesma.
Um som, como de algo caindo ou talvez uma porta de metal se fechando, ecoou, assustando a garota e focando Jim. Sem dúvida, Devina chegaria logo e colocaria Sissy de volta ao seu lugar, então, ele tinha que agir rápido. Ele não sabia quando voltaria ali ou como exatamente poderia libertar sua garota.
Sissy, era esse o nome.
– É ela? – Sissy perguntou tensa ao ouvir o som de passos ao longe. – É ela, não é? Eu não quero voltar para a parede... por favor, não deixe que ela...
– Sissy, ouça. Eu preciso que você se acalme. – Ela tinha que ter algo para focar, algo para manter sua mente sã enquanto ele descobria como voltar ali para salvá-la. Sondando sua mente, ele tentou criar uma imagem, algo para acalmá-la.
– Eu preciso que me ouça com atenção.
– Eu não posso voltar para lá!
Droga, o que fazer para que ela se concentre?
– Eu tenho um cachorro – ele desabafou.
Houve uma agitação, como se ele a tivesse surpreendido.
– Você tem?
Quando os passos se aproximaram, ele quis soltar um palavrão.
– Sim, eu tenho.
– Eu gosto de cachorros – ela disse em voz baixa, seus olhos fixos nele.
– Ele é cinza, meio loiro e peludo. Seu pelo... – os passos foram ficando cada vez mais altos e Jim falou rápido. – Seu pelo é grosso, como se fosse feito das sobrancelhas de um senhor idoso e ele tem patinhas. Ele gosta de sentar no meu colo. Ele tem uma perna manca que aparece quando ele corre rápido demais e ele gosta de comer minhas meias.
Uma fungada e uma respiração suspensa. Como se soubesse o que estava se aproximando e ela ia fazer o melhor que podia para segurar a corda de segurança que ele estava tentando oferecer.
– Qual o nome dele?
– Cachorro. Eu o chamo de Cachorro. Ele come pizza e sanduíche de peru e dorme no meu peito. – Mais rápido. Mais rápido com as palavras. – Você vai conhecê-lo, ok? Você vai levá-lo para passear em um gramado e... Sabe quando se dobra uma meia dentro de outra?
– Sim. – Agora havia urgência. Como se ela quisesse o máximo que ele poderia dar. – Uma bola de meia.
– Bolas de meia... é isso. – Rápido, rápido, rápido. – Você vai pegar uma bola de meia, vai jogar e ele vai trazê-la de volta para você. O sol é alto, Sissy. Você pode senti-lo em seu rosto...
– Quando você volta? – ela sussurrou.
– Assim que eu puder. – Ele estava falando de maneira confusa agora, os passos se aproximavam e ele sabia que estavam usando saltos agulha afiados e pontudos.
– Lembre-se do Cachorro. Está me ouvindo? Quando sentir que está perdendo, lembre-se do meu cachorro...
– Não me deixe aqui...
– Vou voltar por você...
O rosto de Sissy estava cheio de lágrimas quando ela estendeu a mão para ele.
– Não me deixe aqui!
Em um instante, ela assumiu a forma que tinha quando ele a viu sobre a banheira, aquela capa desapareceu, deixando-a nua, seu corpo estava profanado, seus cabelos loiros desgrenhados e emaranhados com sangue.
De repente, seus olhos saltaram para um canto distante e seus lábios manchados começaram a tremer.
– Não!
Ela colocou as mãos para cima como se quisesse afastar golpes, curvando-se para se afastar deles...
Dessa maneira, ela se foi. E Devina, a bela e diabólica Devina, entrou sob a luz das velas.
Jim perdeu essa.
Parou na metade.
Perdeu como um filho da mãe.
Quando ele xingou a assassina sangrenta, era tudo sobre a menina. A moça inocente que tinha sido tirada de sua família por um demônio, puxada para um buraco e aprisionada ali... e obrigada a ver o que restou de um homem torturado.
A raiva era uma bomba nuclear que explodia dentro dele...
A luz branca entornou de suas órbitas, explodindo na sala, iluminando as brilhantes paredes pretas que se estendiam para cima em direção ao infinito. A liberação da luz consumiu sua forma física, libertando-o das amarras de Devina, levando-o a percorrer o espaço em uma rajada de moléculas soltas que sopraram as velas e derrubaram seus suportes.
Aglutinando sua forma intensamente, ele se virou... e foi ao ataque de Devina.
Agora, era ela quem se preparava para o impacto, seu cabelo moreno foi arrancado de seu couro cabeludo com o furacão explosivo que ele produziu, a pele de seu rosto foi de encontro a sua estrutura óssea quando ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre o chão de pedra.
Assim que ele a alcançou, Jim reuniu sua nova forma em uma lança certeira e atirou-se direto em direção ao peito dela.
Jim entrou no corpo dela e lançou a vadia longe, todas as partes dela saíram voando, pedaços de sua pele, emaranhados de entranhas escorregadias e quilos de carne vermelha escura se espalharam pelas paredes de sua masmorra.
O que sobrou foi um buraco negro da mesma massa e energia que o compuseram – ele estava pronto para atacá-la assim.
Só que, evidentemente, ela não estava interessada em uma luta corpo a corpo: sua sombra distorcida saiu da sala e desceu um corredor, iniciando uma fuga.
Mas que... Droga!
Jim correu atrás dela...
E se chocou com o equivalente metafísico de uma casa de tijolos.
O impacto chocante da barreira invisível o enviou para trás e ele assumiu sua forma corpórea mais uma vez ao deslizar em carne viva no chão de pedra.
Ele teve um breve momento para soltar um “mas que inferno!” antes que o sinal de fim de jogo do seu corpo piscasse e ele caísse de costa em exaustão absoluta.
Quando sua raiva passou, nada mais havia nele e um cansaço fatal sangrou de seu coração que batia de maneira estranha e se espalhou por ele como uma erva daninha que se enraíza e floresce. Não mais sendo capaz de erguer a cabeça, ele deixou a coisa descansar na pedra e apenas respirou, mal notando que o ar estava saturado com cheiro de morte recente e com uma pitada acre da fumaça das velas.
– Sissy – ele disse na escuridão. – Estou bem aqui...
Ele não tinha ideia de se ela podia ouvi-lo e não houve resposta. Apenas um som estranho, fundido... sem dúvida, as almas tentando se livrar de sua prisão.
Ele odiava pensar que sua garota estava presa lá.
Odiava o fato de tê-lo visto daquela maneira.
Com esse pensamento, a dor o incomodou como se tivesse sido esfaqueado com uma barra de ferro. Oh, Deus... aquela pobre criança...
Um aumento súbito de emoção veio sobre ele em uma onda: nu, arrasado e imundo, Jim encolheu-se para um lado e chorou sufocado e com grande sofrimento, suas lágrimas quentes e salgadas percorriam a pele de seu rosto arrasado.
Ele nunca se preocupou em se machucar. Nunca. Mas suas falhas... seus fracassos eram insuportáveis. E agora havia duas mulheres que ele não tinha sido capaz de salvar: sua amada mãe e Sissy... Nas duas ocasiões, ele chegou tarde demais no local, nas duas ocasiões, o dano já havia sido feito antes dele chegar.
Com uma precisão horrível, ele viu sua mãe no chão da cozinha da fazenda, nada além de estraçalhada... e Sissy sobre a banheira.
Agora Sissy também, tentando se afastar do demônio.
Era demais para suportar, o peso de suas falhas era grande demais para suportar, quanto mais para continuar a lutar...
O som de seu nome abriu seus olhos e diminuíram os soluços.
Com um esforço enorme, ele virou a cabeça e olhou para cima.
Muito, muito, muito acima, a uma galáxia de distância de onde ele estava, um pontinho de luz se recolhia e ficava mais forte, começando de novo como se fosse a cintilação minúscula de um pisca-pisca na árvore de Natal... e, então, se intensificou para 25, depois 60 e, então, parecia uma lâmpada de 100 watts.
A iluminação caía sobre ele com a velocidade e a eficiência de uma pluma através do fino ar... dentes de leão soprados pela boca de uma criança... flores do campo sob uma brisa suave...
Levou um tempo bastante longo para que sua mente abrangesse a desconexão entre seu desespero épico e o delicado caminho de luz. Fechando os olhos, ele parou de assistir e se entregou ao estremecer aleatório de seu corpo espancado.
– Jim.
Uma voz masculina. Sobre ele.
Jim abriu as pálpebras para ver que a luz havia se tornado um homem de cabelos escuros com asas douradas magníficas.
Colin.
O arcanjo número dois.
– Ei, companheiro – o cara disse ao se ajoelhar. – Eu vim para te tirar daqui.
De algum lugar, só Deus sabe de onde, Jim convocou energia suficiente para falar.
– Leve-a no meu lugar. Deixe-me aqui... leve-a no meu lugar. Sissy. A menina...
– Isso eu não posso fazer. Eu não deveria estar aqui agora. – O anjo se inclinou e reuniu a forma arrasada de Jim em seus braços. – Mas você vai precisar de um tempo para se recuperar antes que possa sequer se sentar, quanto mais sair daqui por si mesmo. E a guerra continua sem você.
Nenhum argumento para seu nível de energia, mas Deus, ele gostaria que Sissy estivesse um milhão de quilômetros longe dali.
– Deixe-me – ele gemeu.
– Não nessa vida. Você quer Sissy liberta? Derrote Devina. É assim que vai libertar sua garota desse pesadelo.
Quando começaram a levitar, a cabeça de Jim pendeu para um lado e ele os viu subir, subir, afastando-se metros e metros – inferno, eram quilômetros – das paredes negras. Ao longo do caminho, a forma brilhante de Colin iluminava o deslocamento, agitando a superfície, e rostos se sobressaíam na opacidade, através da barreira líquida, como se aqueles que estavam presos tentassem vê-los, pegá-los, juntar-se a eles na fuga. De todas as direções, mãos se estendiam. Contorcendo-se em formas grotescas como se a barreira maleável da prisão provasse ser rígida demais para ser trespassada.
Onde estava a garota dele? Sua bela e inocente garota que...
O cérebro de Jim estava esgotado, a trama de seus pensamentos se desembaraçava, a consciência começou a desistir daquele fantasma e se aprofundou no berço rígido das paredes de seu crânio.
Enquanto desmaiava, sua última missiva mental foi uma oração: que Sissy se lembrasse do Cachorro e se agarrasse a essa esperança até que Jim pudesse fazer disso realidade.
CAPÍTULO 33
Na adega, com a imagem de Jim Heron exposta no dossiê, Isaac estava certo que os dois Childes tinham perdido a cabeça.
– Ele não está morto. – Isaac lançou olhares para pai e filha. – Eu não tenho certeza do que você viu ou o que ouviu...
– Ele esteve no meu quarto. – Grier balançou a cabeça. – Foi assim que fiquei sabendo que você estava tendo o pesadelo. Ele apontou o caminho e, em seguida, eu fui até você. Pensei que era um sonho, mas por que identifiquei o rosto dele na foto de maneira tão clara?
– Porque você o viu. Ontem à noite, na luta. Ele estava comigo.
– Não, ele não estava.
Certo. O cara esteve bem na frente dela.
– Você disse que era um anjo.
– Bem, parece que ele tinha asas.
Teoricamente, era possível que Heron tivesse feito uma visita a ela – mas com o alarme de segurança, era possível concluir que ele deve ter ficado distante das portas francesas da sacada. Ao acordar e ficar meio desorientada, ela concluiu que Jim estava do lado de dentro. E isso foi apenas uma coincidência com o pesadelo... Assim como as asas? Jim Heron nunca foi santo, muito menos um anjo. Seja lá o que ela tinha visto, devem ter sido reflexos dos vidros. Tinha que ser.
O pai de Grier falou.
– Estou dizendo, ele está morto. Eu recebo um alerta de rastreadores na internet com os nomes dos agentes que conheço... e ele levou um tiro em Caldwell, Nova York, há quatro dias.
Isaac revirou os olhos.
– Não acredite em tudo que lê. Eu falei com o cara no jardim dos fundos ao anoitecer. Frente a frente. Confie em mim, ele está vivo e precisamos dele. – Isaac ficou em pé. – Os amigos dele estão vigiando a casa enquanto conversamos e, pessoalmente, acho que Heron declarou uma guerra velada a Matthias, então, tenho plena certeza de que podemos chamá-lo para trabalhar conosco, concluindo que eles ainda não o mataram. Acredito que o status dele é de desaparecido em ação, no momento.
– Espero que possa agregá-los, então, pois quanto mais pessoas para acompanhá-lo, melhor. – Childe bateu uma de suas mãos sobre os dossiês. – Deve revisar tudo isso essa noite, preencher as lacunas, tentar encaixar o que sabe... mesmo que não queira entregar seus companheiros soldados, isso pode ajudar nas suas lembranças. Vou subir até o corredor do banheiro e usar meu telefone de segurança para fazer algumas ligações e estabelecer as coisas o mais rápido que puder.
– Entendido. Mas eu gostaria que o senhor ficasse longe das janelas e não saísse da casa.
– Vou ser cuidadoso. – Childe lançou um olhar à sua filha. – Prometo.
Quando o pai de Grier desapareceu escada acima, Isaac verificou o transmissor de alerta. O aparelho ainda mostrava que o sinal tinha sido enviado, mas ainda não tinha recebido resposta. O que significava que ele ou estava muito abaixo do solo naquela adega para receber isso... ou Matthias estava dando um tempinho para entrar em contato.
Ele olhou para Grier.
– É melhor eu ficar lá em cima por um tempo no caso deles tentarem entrar em contato comigo.
– O que você vai fazer? Se eles quiserem se encontrar com você imediatamente?
– Tenho uma margem de tempo até eu me entregar. Mas seu pai precisa fazer alguns milagres rapidamente. – E, por favor, Deus, faça com que Jim Heron esteja bem... e que apareça logo.
Ela acariciou os dossiês com sua mão elegante.
– Ele é bom com milagres. Na verdade, é a especialidade dele. Você deveria vê-lo negociando. – Seus olhos baixaram até a pasta. – Vou ficar aqui. Quero ver se reconheço algum desses homens. Havia muitos que batiam na porta durante a minha infância e eu sempre me perguntei quem eles eram.
Quando ela ficou em silêncio, ele deu um passo adiante. E depois outro. Em volta da mesa, até que estivesse ao lado dela.
Quando ela levantou o olhar para ele, Isaac colocou para trás com cuidado uma mecha de cabelo que estava em seu rosto.
– Não vou perguntar se está bem, pois como poderia, não é?
– Você já sentiu... como se não reconhecesse sua própria vida?
– Sim. E isso foi o que me levou a mudar.
Bem, aquele tinha sido o primeiro passo. Ele estava começando a acreditar que ela era o segundo. E com o pai dela e Jim Heron... três era o número mágico. Se Deus quisesse.
– Sabe de uma coisa? – ela disse. – Estou realmente feliz em ter te conhecido.
Isaac recuou.
– Pelo amor de Deus, como pode dizer isso?
– Você foi a chave que destrancou as mentiras. – Ela voltou a encarar a foto de Jim Heron. – Acho que sem você nada disso seria esclarecido. Apenas algo que pudesse estilhaçar assim...
Quando ela não completou, ele deu um passo para trás.
– Sim. Esse sou eu.
Ela assentiu de maneira distraída, virou a página e se perdeu nos rostos dos homens que eram exatamente como ele... homens que haviam arruinado a família dela.
Estilhaçado.
Será que os agentes que tinham matado seu irmão estavam ali? Com algumas notas?
De alguma maneira, ele duvidava que o pai os colocasse ali.
– Posso lhe servir um pouco de vinho? – ele perguntou, antes de sair.
Grier sorriu um pouco.
– Estou cercada disso.
– Verdade. – Ele deveria ter oferecido café. Água. Cerveja. Uma troca de óleo. Qualquer coisa que ele pudesse fazer por ela ou dar a ela para acalmá-la.
Bem, agora, com essa brecha, havia algo melhor que poderia fazer. Ele poderia deixá-la.
– Vou estar lá em cima. – Quando ele alcançou a porta, olhou para trás. Ela estava enterrada nos dossiês, sobrancelhas tensas, braços no colo ao inclinar-se sobre a mesa.
Sim, deixá-la tornaria as coisas muito melhor.
Ele se virou e subiu as escadas para a cozinha de dois em dois degraus. Parando na base da escada, ele ouviu alguma coisa. Não um som. O que fazia sentido uma vez que o pai dela tinha se trancado em um banheiro protegido.
Droga, ele não acreditava que estava prestes a denunciar Matthias. Mas, às vezes, a morte natural era boa demais para alguém. Melhor que apodrecer atrás das grades ou ficar tão aceso quanto a Times Square em uma cadeira elétrica.
Era quase como se ele estivesse destinado a encontrar Grier e seu pai nesse exato momento de sua vida – os dois tinham sido predestinados a lhe mostrar algo muito mais honroso do que havia planejado fazer.
Contudo, Jim Heron se mostraria importante também.
Apalpando uma de suas armas, saiu para o jardim pela porta dos fundos.
Evitando a luz que era sensível ao movimento, ele aguardou nas sombras sem fazer barulhos e, claro, um dos amigos de Jim se aproximou um momento depois. No instante em que colocou os olhos no cara, estava claro que o clima permanecia ruim: o cara com a trança tinha os lábios apertados e o olhar rígido como de um homem que ainda não sabia onde um dos membros de seu time estava.
– Jim ainda não pôde vir? – Isaac perguntou. Mesmo sabendo que a resposta era um claro “não”, dado àquela expressão.
– Espero que possa vê-lo pela manhã.
Isaac olhou para seu relógio.
– Não sei se tenho todo esse tempo.
– Arranje algum.
Fácil para ele dizer.
– Vai me dizer se ele aparecer?
Quando o cara assentiu, Isaac ficou muito preocupado.
– Ele está bem? – Quando o cara balançou a cabeça devagar, Isaac soltou um palavrão.
– Você vai me dizer o que está acontecendo? – Silêncio. – Sabe? Para sua informação, as pessoas pensam que ele morreu.
– Tudo que posso dizer é que... neste momento, ele gostaria de estar morto.
Adrian observou enquanto Eddie conversava com Rothe perto da porta dos fundos e mesmo Ad sendo intrometido como ninguém, ele não se importava com o que estavam dizendo.
Nigel. Aquele filho da mãe do Nigel.
Pensava que era o “Sr. Acima de Tudo Quanto é Mais Sagrado”.
Que estava mais que disposto a deixar seu maior trunfo ser usado e abusado pelo inimigo apenas porque era bichinha demais para arregaçar as mangas e nocautear Devina.
Enquanto isso, Jim era um equipamento de ginástica para um bando de babacas pervertidos.
Cara, ele apenas veio com aquela história de não poder fazer nada. Se Ad tivesse um de seus amigos capturado e ele pudesse libertá-lo? Não importava o que ele tivesse que fazer, o sacrifício que isso fosse requerer, por onde tivesse que passar: ele traria o pobre filho da mãe de volta. E onde estava seu chefe agora? Jantando.
Aquilo fazia com que ele desejasse enfiar a sobremesa no traseiro de Nigel.
Adrian esfregou o rosto com tanta força que quase arrancou o nariz. O problema era: a pequena oficina de Devina não era acessível a ele ou a Eddie, a menos que saltassem através de seu espelho – caso contrário, ela tinha que levá-lo até lá... e ela o liberava dali apenas quando estivesse bem satisfeita.
Nunca antes.
Foi por isso que eles foram até Nigel. Havia rumores de que arcanjos poderiam descer ao inferno sob certas circunstâncias – ninguém sabia exatamente o que aquelas mocinhas tinham que fazer ou como funcionava. Contudo, a moral da história era que aqueles quatro pesos-pena eram sua única esperança...
Como se seu nome tivesse sido pronunciado em vão, Colin apareceu do nada, os cabelos escuros do arcanjo surgiram em frente ao rosto de Adrian.
– Droga! – Ad falou entre dentes ao pular para trás e segurar-se em um arbusto – que rapidamente se quebrou ao meio com seu corpo pesado.
Ele aterrissou como um saco de areia, mas não ficou parado. Levantando-se, assumiu uma postura que exigia uma explicação: aqueles rapazes não costumavam aparecer à toa na Terra.
– O que você está...
– Eu o tirei de lá.
Ad piscou, de repente ele não entendia o idioma. Espere um minuto. Ele tinha acabado de ouvir que...
– Jim? Você está falando de Jim?
– Está livre.
– Mas Nigel disse...
– Não estou discutindo isso. Eu tinha a opção de tirar alguém do covil de Devina e coloquei o pobre rapaz no hotel em que estão hospedados... ele precisa de cuidados.
Eddie se aproximou.
– Você o tirou de lá? Mas eu pensei que Nigel...
– Eu tenho que ir. – Colin deu um passo para trás e começou a desaparecer. – Vão ajudá-lo. Ele precisa.
– Obrigado. – Ad respirou, aliviado e enjoado: a recuperação de alguém que passou por uma das sessões de Devina era terrível. Principalmente porque as memórias daqueles momentos eram muito vívidas.
Colin balançou a cabeça ao desaparecer, sua voz era demorada: – Isso simplesmente não foi certo.
– Estou indo para o hotel – Adrian disse, desfraldando suas asas para se elevar no ar. – Fique de olho em Isaac...
Eddie segurou o braço dele com força.
– Deixe-me cuidar de Jim.
– Não.
– Essa não é bem sua área, Adrian. – O aperto de Eddie o manteve no chão, aquela grande mão espremia seus ossos e músculos. – E sabe disso.
– Pro inferno que não é.
Libertando-se, ele deu três saltos e saiu voando pelo ar, aprofundando-se na noite e impulsionando-se para oeste. O voo de volta para onde estavam hospedados foi irregular e acidentando – mas não por causa do vento. Era mais porque Eddie tinha razão, o filho da mãe.
Quando Ad chegou ao hotel, ele queria ir até os quartos atravessando as paredes, mas decidiu não arriscar: uma vez que o papel de bala interior que o envolvia estava solto e se debatendo, ele caiu no gramado e seguiu pela recepção. Ele tinha a sensação de que estava distraído e enjoado demais para atravessar madeira e concreto com sucesso.
O problema era: ele sabia exatamente como Jim estava.
Ao alcançar a recepção, uma mulher simpática atrás da mesa o cumprimentou: – Boa-noite, senhor. – Mas ele apenas acenou e iniciou uma corrida. Não houve espera pelo elevador, um casal estava fazendo check-in com seus filhos e tinham um carrinho cheio de bagagens. Mas mesmo com aquela situação tão conveniente, ele não era capaz de esperar tanto tempo para que as portas se abrissem para ele.
Pelas escadas. De dois em dois degraus. Algumas vezes três.
Quando chegou ao último andar, seu coração estava a mil por hora e não apenas porque tinha se exercitado. Ele não tinha a chave do quarto de Jim, então, pegou a sua mesmo e deslizou no vão da fechadura.
Ele abriu o caminho como uma explosão.
– Jim? Jim?
O brilho do banheiro iluminava a cama desarrumada onde ele e Eddie tinham estado com aquela garota na noite anterior, as roupas também estavam espalhadas por toda parte.
A porta que levava ao quarto de Jim estava meio aberta, o quarto estava escuro.
– Jim...?
Ele sabia que o anjo estava lá. Ele podia sentir o cheiro da fumaça de vela, do sangue fresco e de... outras coisas.
A pressa que havia no rapaz evaporou quando a realidade do que estava prestes a ver agarrou seu peito e o sufocou. Mas ele não ia voltar atrás. Ele era um idiota de primeira ordem, sempre foi. Contudo, não era um maricas para fugir de situações difíceis.
Adrian passou pela porta entre os dois quartos e se inclinou.
– Jim.
A luz no banheiro atrás dele cortava um caminho ao longo da escuridão e parava aos pés da cama do anjo como se fosse educada demais para mostrar sua condição.
Depois que Adrian atravessou o batente, precisou de um momento para que seus olhos se ajustassem.
Com um sussurro, ele prometeu: – Eu vou matar aquela vadia...
Jim estava deitado de lado, enrolado em si mesmo, como se tentasse conservar seu próprio calor, e tremia por completo. Um cobertor foi puxado – sem dúvida, pelo arcanjo – sobre seu corpo grande e maltratado e o Cachorro estava bem próximo de seu rosto, ajeitado em formato de bola, sem se mover.
Quando Adrian se aproximou, o animal se moveu um pouco, mas não levantou a cabeça, permanecendo nariz a nariz com Jim.
O anjo parecia estar respirando, seu peito subia e descia, um chiado suave saía por sua boca machucada. Seu cabelo estava embaraçado e havia sangue em seu rosto, feições que, há não muito tempo eram suas, desapareceram graças às feridas enormes.
Adrian sentou-se lentamente.
– Jim?
Sem resposta, então, ele tentou repetir o nome de guerra mais algumas vezes. Em dado momento, as pálpebras de Jim se ergueram.
– Ei... – Adrian sussurrou.
Ele gemeu e, em seguida, seus olhos se fecharam e o corpo estremeceu sob o cobertor como se estivesse tendo um ataque.
Se aquilo era algo parecido com o que Adrian passou – e dada a forma como o cara aparentava, era quase idêntico –, o que Jim realmente queria era uma banheira de água quente seguida por uma ducha. Mas era cedo demais para isso. Medicar primeiro – havia muitos ossos quebrados e contusões para tratar – o que era o peso da dupla natureza de um anjo: ser real e irreal ao mesmo tempo significava que pelo menos metade de você poderia se ferrar muito e a droga não se revertia imediatamente.
Adrian se levantou e foi até o aquecedor que estava debaixo da janela. Girando o botão para o modo “sauna”, ele tirou a jaqueta de couro e fechou a porta que dava para o outro quarto, trancando-os ali. Então, ele sentou na cama, se estendeu sobre o fino cobertor e colocou seu peito nas costa do anjo para aquecê-lo.
Enquanto estava deitado, ouvindo um zumbido que vinha do aquecedor, sentia os tremores ao longo do tronco e dos outros membros de Jim. Parte disso era o processo de cura, que de algumas maneiras era mais doloroso que o surgimento das lesões. E outra parte disso era o frio do choque traumático.
E outra parte eram as memórias, sem dúvida.
Ele queria colocar um braço em volta do cara, mas isso faria com que Jim se sentisse muito desconfortável: quando esteve nessa condição, ele deitou nu, sem sequer um lençol sobre sua pele arranhada.
Depois de um tempo, o calor crescente que se espalhou do aquecedor os alcançou, fazendo arcos e descendo pelo ar. Jim, obviamente, sentiu o fluxo, pois respirou longamente e exalou em um vago suspiro.
Deitando ao lado do outro anjo, Adrian já tinha esperado uma vez que seria assim que Jim acabaria e foi o que aconteceu mesmo, até certo ponto. Ele sabia que Devina queria o cara... desde a primeira missão, desde àquela primeira noite no clube em Caldwell. E ele serviu Jim de bandeja para ela.
Com direito a tudo, até a uma etiqueta indicando “DE/PARA”.
Difícil não se sentir responsável por isso.
Difícil mesmo.
– Vou cuidar de você, Jim – ele disse com voz rouca. – Estou aqui por você, cara.
CAPÍTULO 34
Na adega, Grier passava os dossiês um por um enquanto esperava... e esperava... e esperava mais um pouco...
Finalmente.
– Por que você não me disse? – ela perguntou, sem olhar para trás.
Daniel levou um longo tempo para responder, mas ele não desapareceu: sempre que ele estava por perto, ela conseguia sentir uma pequena brisa e enquanto aquilo acariciava sua nuca, ela sabia que ele ainda estava com ela.
Pensei que ia odiá-lo. E, então, você e ele não teriam mais ninguém.
– Então, você sabia o que aconteceu?
Daniel andou em volta da mesa, com uma de suas mãos plantada no quadril e a outra enterrada em seu cabelo de maneira que os cachos formassem um halo.
Eu estava drogado quando tudo aconteceu... então, achei tudo muito engraçado, papai entrando com tudo com três caras de preto. Achei que aquilo era sua versão de uma intervenção para me ajudar – uma história em quadrinhos barra pesada. Mas quando eles colocaram a agulha no meu braço ele começou a gritar e foi aí que percebi... aquilo não era engraçado.
Os olhos de Daniel encontraram os dela.
Eu nunca o vi daquela maneira antes. Para mim, ele era sempre tão distante e sem emoção. Foi... a reação que procurei durante toda minha vida, o amor visceral pelo qual buscava. Entenda, eu era como a mamãe, não como você e ele. Eu queria mais do que aquela desaprovação fria – e consegui, só que já era tarde demais. Ele deu de ombros. Olhando para trás, vejo que eu era carente demais e ele não sabia o que fazer com um filho que não tinha sido feito para usar um uniforme militar. Água e óleo. Eu deveria ter lidado com isso de maneira diferente, mas não o fiz.
– E ele também não.
Não é culpa de ninguém. Foi... o que foi.
Grier inclinou-se em sua cadeira, pensando na maneira como seus familiares tinham se alinhado na vida: ela e seu pai de um lado; Daniel e sua mãe de outro.
Não foi culpa dele – seu irmão disse com um tom severo que ela nunca tinha ouvido dele antes. A forma como acabei minha vida... ele gritava, Grier... e, então, eu estava morrendo, e o ouvi dizendo várias vezes: “Danny... oh, Danny, meu garoto... meu garoto...”
Quando a voz de Daniel se quebrantou, ela foi compelida a se levantar e se aproximar dele. Antes que percebesse o que estava fazendo ela envolveu os braços em volta...
De si mesma.
Por favor, não me odeie – ele disse do outro lado, tendo mudado de lugar tão rápido quanto um piscar de olhos.
– Por favor, não fuja – ela respondeu.
Desculpe... Tenho que ir...
Ele desapareceu diante dela como se não pudesse mais conter suas emoções, seu desespero permaneceu no rastro frio que ele deixou para trás.
Ela ficou em pé por um tempo, olhando para o espaço vazio que ele tinha acabado de ocupar. Ela e seu pai eram do mesmo tipo e fizeram um acordo intelectual onde trancavam os outros do lado de fora, não foi isso? Sua mãe e irmão tinham seus vícios enquanto ela e seu pai estavam em sintonia com a lei, suas carreiras e suas paixões externas.
Ela sabia disso de alguma maneira... e talvez aquilo tenha feito parte de sua corrida para salvar Daniel. O vício de seu irmão e seus esforços para tirá-lo disso tinha sido a ligação que não tiveram durante a infância: ela sempre se culpava... e, por um breve momento, naquela noite, ela culpou seu pai.
Agora... ela tinha raiva do homem com o tapa-olho. Uma raiva terrível. Se Daniel estivesse vivo, talvez eles tivessem resolvido tudo isso. Os três perdoariam um ao outro dos erros do passado. E se dirigiriam a... a algo que sua família desfrutava apenas superficialmente. Afinal, privilégios, dinheiro e educação poderiam cobrir uma infinidade de problemas... e não garantiam que a proximidade vista em um cartão de Natal fosse realmente mais que uma mera pose feita uma vez por ano para um fotógrafo.
Balançando a cabeça, ela voltou para sua cadeira e encarou os dossiês.
Isaac ia igualar o placar da família, ela pensou. Por ter revelado o bastardo maníaco que assassinou seu irmão e não fez nada além de arruinar seu pai.
Folheando as fotografias, ela reconhecia cada homem, pois tinha analisado cada página repetidas vezes enquanto esperava pela aparição de Daniel. Havia uma centena de fotos ou mais, mas havia um total de uns quarenta homens, capturados em vários ângulos, ilustrando as páginas produzidas ao longo de anos. Dentre os muitos rostos, havia cinco que ela reconheceu... ou pelo menos achou que os tinha visto antes. Difícil saber... de alguma maneira, eles pareciam tão semelhantes.
A fotografia de Isaac estava lá e ela voltou a revê-la. A foto era clara, capturada bem em cheio. Ele estava olhando diretamente para a câmera, mas ela tinha a impressão que ele não sabia que estava sendo fotografado.
Sério. Deus, ele parecia tão sério. Como se estivesse preparado para matar.
A data de nascimento sob seu nome confirmava a idade que ela já sabia e havia algumas anotações sobre países estrangeiros onde ele tinha estado. E, em seguida, havia uma linha que ela tentava entender: Correção moral necessária. Ela tinha visto a frase apenas em dois outros perfis.
– O que você está segurando?
Grier pulou ao som da voz de Isaac, a cadeira gritou ao arranhar o chão. Agarrando seu peito, ela disse: – Jesus... como você faz isso?
Pois, considerando tudo, ela preferia não ser pega encarando a foto dele.
– Desculpe, só pensei que gostaria de um café. – Ele se aproximou, apoiou uma caneca e, em seguida, voltou à porta. – Eu deveria ter batido.
Ao fazer uma pausa entre os batentes da porta, vestia apenas o moletom de capuz que usava como travesseiro, seus ombros eram muito largos ao longo da extensão de tecido cinza. E considerando as últimas quarenta e oito horas, ele parecia incrivelmente forte e focado.
Seus olhos se voltaram para o café. Tão pensativa. Muito pensativa mesmo.
– Obrigada... e desculpe. Acho que apenas não estou acostumada com... – um homem como ele.
– Vou anunciar minha presença de agora em diante.
Ela pegou a caneca e tomou um gole. Perfeito: simplesmente com a quantidade certa de açúcar que ela gostava. Ele a observou, ela pensou. Viu o quanto ela adicionou em algum momento, mesmo não estando consciente disso. E ele se lembrou.
– Está olhando para mim? – Quando ela levantou o olhar, ele assentiu com a cabeça em direção aos dossiês. – Para minha foto?
– Ah... sim. – Grier interrompeu a frase. – O que isso significa exatamente?
Ele andou em sua direção e se inclinou. Quando encarou os detalhes descritos sob seu rosto, a tensão nele era palpável, todo seu grande corpo ficou rígido.
– Eles tiveram que me dar um motivo.
– Antes de você matar alguém.
Ele assentiu e começou a andar ao redor, indo em direção às garrafas de vinho. Ele pegou uma, olhou o rótulo, voltou a colocar no lugar... passou uma a uma.
– Que tipo de motivos eles lhe deram? – ela perguntou, bem ciente de que as respostas dele sobre isso significava muito para ela.
Ele fez uma pausa com uma embalagem de Bordeaux nas mãos.
– Do tipo que faz com que isso pareça certo.
– Como o quê?
Seus olhos viraram em direção a ela e Grier fez uma pausa. Eles estavam tão tristes e vazios.
– Diga-me – ela sussurrou.
Ele colocou a garrafa de volta no lugar. Distanciou-se um pouco das prateleiras de madeira.
– Eu só fazia isso com homens. Nenhuma mulher. Havia alguns que conseguiam fazer isso com mulheres, mas eu não. E eu não vou lhe dar exemplos específicos, mas o absurdo de uma filiação política não era suficiente para mim. Matar um monte de gente ou estuprar mulheres ou explodir algumas mer... er... coisas? É uma história bem diferente. E eu precisava visualizar algumas provas com meus próprios olhos... vídeo, fotografia... corpos que foram marcados.
– Você já recusou alguma tarefa?
– Sim.
– Então, você não mataria meu irmão.
– Nunca – ele disse sem hesitar. – E eles nem sequer teriam me pedido. Da maneira como Matthias encarava isso, eu era uma arma que funcionava sob determinadas circunstâncias e ele me tirava do coldre em momentos apropriados. E, você sabe... Eu percebi que tinha que sair das operações extraoficiais quando me dei conta de que não era diferente das outras pessoas que eu matava. Todos eles sentiam como se as atrocidades que cometiam eram justificáveis. Bem, então, aquilo fazia de nós espelhos que refletiam um ao outro. Claro, de um ponto de vista objetivo, qualquer um concordaria comigo sobre isso, mas não era o suficiente.
Grier exalou longamente. Ele era aquilo em que sempre acreditou, pensou ela.
– Como assim? – ela disse.
De repente, ela achou que tinha pensado em voz alta.
– Eu sempre disse a Daniel... – Ela fez uma pausa, perguntando-se se estava tudo claro dentro dela para continuar. – Eu dizia que nunca era tarde demais. Que as coisas que ele tinha feito no passado não definiam o futuro. Acho que no final, ele desistiu de si mesmo. Ele roubava do meu pai, de mim e de seus amigos. Ele foi preso assaltando uma casa e também por roubar um automóvel, em seguida, ao tentar saquear uma loja de bebidas. Foi assim que me envolvi com as causas voluntárias. Eu entrava e saía de várias cadeias nos últimos cinco anos antes de sua morte. Eu sentia que estava ajudando... mas talvez eu pudesse fazer isso com outra pessoa, sabe? E eu fiz... Eu ajudei outras pessoas.
– Grier...
Ela fez um gesto com a mão quando sua voz ficou embargada. Ela terminou de falar chorando. Não passaria disso e nada mais poderia ser mudado.
– Você quer continuar com isso?
Quando ela indicou os dossiês, ele deu de ombros e foi até a porta, ficando exposto apenas por um pequeno vão contra o batente.
– Eu só vim mesmo para ver como você estava.
No ar rarefeito, seus olhos de pálpebras baixas a aqueceram de dentro para fora. Ele era uma grande contradição... entre seu trabalho onde foi treinado para matar e seu coração de escoteiro.
Ela deu uma olhada para a foto dele.
– Parece que está procurando alguma coisa aqui.
– Na verdade, eu estava prestes a embarcar em um avião. Tive a sensação de que alguém estava olhando, mas não conseguia dizer de onde vinha esse olhar. Estava esperando em uma base aérea para viajar ao exterior. – Ele limpou a garganta como se estivesse varrendo a memória de sua mente. – Seu pai dormiu lá em cima. Ele passou uma duas horas no telefone, até onde vi.
– Já passou tanto tempo? – Ela olhou para seu relógio e ao movimentar o pulso, tomou consciência de cada articulação de seu corpo. Esticando os braços sobre a cabeça, sua coluna estalou.
– Como as coisas estão indo?
– Eu não sei. Antes de deitar, ele me disse que se conseguirmos fazer tudo até amanhã à noite, estaremos bem. Ele fez múltiplos contatos desde a CIA, Departamento de Segurança Nacional e gabinete presidencial e ficaremos bem aqui para que eu não precise me deslocar. A peça que falta é Jim Heron – nós ainda estamos esperando que ele volte – embora, se for preciso, seguiremos sem ele.
– Você recebeu alguma... resposta? Deles?
– Não.
O medo passou por suas costelas e atingiu seu coração como uma carga de bateria.
– Você pode ficar até amanhã à noite?
– Se for para ser dessa maneira, sim.
Ele parecia tão seguro e ela precisava acreditar naquela confiança: seria uma tragédia sem limites para ele ser interrompido agora, quando estava tão perto da liberdade que desejava.
Estranho que alguém que tinha conhecido há apenas alguns dias tivesse se tornado tão importante para ela.
– Eu estou orgulhosa de você – disse ela, deslizando o dedo sobre sua fotografia.
– Isso significa muito para mim. – Pausa. – E obrigado por me mostrar o caminho. Eu não seria capaz de fazer isso sem você.
– Sem meu pai, você quer dizer – ela contradisse suavemente. – Ele tem os contatos.
– Não. Você é a única.
Ela franziu a testa, pensando que era um jeito engraçado de responder.
– Quero que responda algo para mim.
– Diga.
Seus olhos encontraram os dele.
– Quais são as suas chances. De fato.
– De sair dessa com vida?
– Sim. – Quando ele apenas balançou a cabeça, ela franziu a testa para ele. – Lembre-se, acabamos com toda aquela coisa de “proteger a garota frágil”.
– Meio a meio.
Bem, não é que aquilo deu um nó em sua garganta?
– Isso é ruim, hum?
– Quer alguma coisa para comer com o café? Não sou nenhum chefe de cozinha, mas vi algumas sobras na geladeira e posso colocar no micro-ondas. – Quando ela recusou com a cabeça, ele insistiu. – Você tem que comer.
– Eu prefiro fazer sexo com você – ela soltou.
Isaac tossiu. Na verdade, tossia como se alguém tivesse dado um soco em seu peito.
– Desculpe ser tão direta. – Ela deu de ombros. – Mas convenções sociais estão bem longe da minha lista de prioridades agora. E eu tenho a sensação de que não vou te ver depois de amanhã à noite, tanto por que você pode ser tomado sob custódia federal, quanto por... – Ela respirou fundo. – Quero um bom pedaço de você antes que se vá. Algo para lembrar-me de você em minha pele, não apenas em meu cérebro. Lá em cima foi tudo tão rápido e furioso... Eu quero prestar atenção e me lembrar.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
– Achei que você gostaria de se esquecer disso o máximo possível.
– Não de você... eu não quero me esquecer de você. – O canto de sua boca se ergueu um pouco. – Embora eu não acredite ser possível.
Quando ele ficou onde estava, ela empurrou a cadeira para trás e se levantou. A distância entre eles era de três passos e quando ela veio em direção a ele, Isaac se endireitou e puxou seu blusão para baixo como se estivesse se arrumando.
Grier ergueu-se na ponta dos pés e tocou o rosto dele, colocando a palma de suas mãos na sua barba por fazer.
– Eu nunca vou esquecê-lo.
Quando ele lambeu os lábios, como se estivesse com fome daquilo que exatamente ela queria, Grier pegou a mão dele e o levou para o local mais fundo da adega, ao puxá-lo para dentro, os fechou ali.
Ao contrário da primeira vez, quando ela estava ferida e procurava apenas mais do ciclone, agora era apenas ele, o homem, que o impulsionava – não seu zumbido interno.
Ele estava todo ali.
Quando ela se inclinou para beijá-lo, ele colocou suas mãos grandes em seus pulsos e os segurou delicadamente.
– Isso não ajudou lá em cima.
– Sim. Ajudou. Você apenas não acreditou em mim.
– Grier... – O nome dela soou com uma combinação de confusão e desespero: pois as cinco letras foram pronunciadas, ao invés das três habitualmente ouvidas.
– Eu não quero mais falar – ela murmurou, aproximando-se de sua boca.
– Tem certeza?
Quando ela assentiu, ele se inclinou e apertou os lábios contra os dela, puxando-a para mais perto dele.
Ele estava completamente excitado, mais que pronto para ela e, ainda assim, ele recuou.
Antes que ela pudesse protestar, ouviu o clique da fechadura dando a volta e, em seguida, aquelas mãos quentes deslizaram sob sua camisa e em volta de sua caixa torácica, indo até o fim de suas costas. Ao sentir uma pressão suave e gentil, seus pés saíram do chão e ela foi carregada até a mesa.
Afastando os dossiês para um lado, Isaac a deitou, as palmas de suas mãos se movimentavam sobre seus seios enquanto ele se inclinava sobre ela e mantinha suas bocas unidas. Suas calças de ioga estavam fora de suas pernas um momento depois, mas, ao invés de jogá-las, ele as colocou sobre a cadeira onde ela estava sentada. Esperto. Ela poderia ter que se vestir rapidamente.
Um impulso sutil e seus quadris estavam na beirada da mesa... e, em seguida, ele separou o beijo deles e aproximou-se sobre os joelhos.
Se ela achava que já tinha visto os olhos dele queimarem antes, aquilo era nada comparado ao que estavam fazendo agora. Um local de baixa temperatura nunca foi tão quente.
Quando ela se deu conta de onde ele estava se dirigindo, ela se sentou.
– Mas eu quero que seja bom para nós dois...
– Você disse que queria se lembrar de algo. – As mãos dele deslizaram até o topo de suas coxas e as apertaram. – Então, deite de costas e deixe-me fazer meu trabalho. – A língua dele reapareceu – e não é que aquilo a fez aderir ao plano dele?
– Vamos lá, agora – ele murmurou com aquele sotaque sulista. – Deite-se e deixe-me cuidar de você. Prometo ir devagar... bem devagar.
Suas mãos desceram até seus joelhos e abriram suas pernas... e ela se entregou a ele. Seguindo suas instruções ao pé da letra, ela sentiu a rígida mesa contra seus ombros, o ar fresco em suas coxas e um calor selvagem em seu sangue.
Quando ele a encarou através das sobrancelhas, Isaac olhou como se fosse consumi-la.
E ela estava pronta para ser sua refeição.
Abaixando a cabeça, ele foi direto até onde ela necessitava dele, colocando sua boca no sexo dela através da fina calcinha de seda que usava. Uma onda de calor delicioso floresceu e sua mão se esticou, agarrou as calças, as puxou e as colocou na boca para que fosse impedida de gritar.
Se isso já a fazia se sentir tão bem, ela ia fazer barulho: sim, a porta da adega era pesada e seu pai deveria estar dormindo, mas ela não queria correr nenhum risco.
Isaac gemeu contra ela ao se aninhar na seda e, então, ele passou a língua sobre a delicada faixa de tecido que a cobria. Com um palavrão, ela se arqueou de maneira rígida, as unhas arranharam a madeira embaixo dela enquanto as mãos dele mergulharam em suas coxas e os dentes dela mordiam o algodão. E, então, não havia mais nada os separando. Em um momento, sua boca estava sobre a seda, no próximo, ela sentiu um puxão em seus quadris e ouviu o som de algo se rasgando quando a calcinha cedeu...
Oh, Deus... sua língua molhada deslizou direto até seu cerne e se arrastou para cima, partindo-a, deslizando com lambidas seguidas.
Ele foi devagar.
Quando suas grandes mãos se fecharam em sua cintura e a firmaram para baixo, ele produziu um momento doce, a beijando e sugando, aquela língua dele funcionava como mágica que apenas podia ser substituída pela sucção quente e firme de seus lábios. Todo o tempo, ele olhava para ela, olhava seus seios enquanto ela se contorcia sob sua boca.
De repente, como se precisasse tocar aquilo que estava observando, as mãos dele subiram sob a camiseta dela em direção ao que parecia o fascinar. Abrindo o fecho frontal do sutiã, ele tomou posse de seus dois seios, os polegares esfregavam seus mamilos.
Sua respiração bombeava para dentro e para fora através de sua boca aberta e assim que ela estava prestes a chegar ao orgasmo, Isaac recuou e lambeu os lábios brilhantes.
– Venha para mim – disse ele. – Eu quero sentir isso.
E, em seguida, ele estava contra ela mais uma vez, sua língua a penetrava – o que foi o suficiente. A sensação foi liberada, minando para fora de seu sexo e tomando conta de cada centímetro de seu corpo. Quando o turbilhão de faíscas a consumiu, ela estava vagamente consciente de que ele gemia, como se sentisse aquele prazer em primeira mão.
Ele não parou por aí. Fluía em círculos, lambia, chupava... ele continuou abrindo ainda mais as pernas dela, segurando-a no lugar, marcando aquilo na memória dela assim como marcava em seu sexo. Ela nunca iria esquecer...
Um de seus longos dedos, ou talvez dois, penetrou dentro dela e a pressão e o alcance a enviou direto para o topo novamente. Quando outro orgasmo disparou, as mãos dela se fecharam em seu antebraço, suas unhas afundaram em sua carne enquanto sua coluna se contorcia e aquela explosão de prazer a inundava de dentro para fora.
E ele ainda não parou.
Ele era quente, selvagem e implacável.
Ele era o amante que ela nunca, jamais iria esquecer.
Muito menos superar – e isso era o que temia.
Oh, meu bom Jesus...
Isaac olhou por entre as pernas de Grier e quase chegou ao clímax apenas com aquela visão. Ela era uma mulher totalmente desfeita, os restos de sua calcinha branca em volta de seus quadris, sua camisa preta em volta do pescoço, o sutiã pendia para os lados. Seus seios estavam rígidos nas pontas rosadas, seu rosto estava corado e sua barriga se movia em um ritmo de surtos e abrandamentos conforme trabalhava contra ele.
Aquela calcinha na boca dele foi uma das coisas mais sensuais de tudo.
E o gosto dela era ainda mais quente do que isso.
Isaac poderia ficar ali por horas, mas a cada momento ele corria o risco de uma interrupção e ele queria terminar aquilo direito.
Subindo e pairando acima dela, inclinou os joelhos dela até o peito, com isso, seu membro se contorceu até ficar à beira do orgasmo com a visão do sexo dela reluzente todo inchado e aberto para ele. Não houve chances para que as calças fossem forçadas... ele as puxou para baixo o suficiente para que a ereção saltasse... da qual surgiu uma gota na ponta quando ele pensou sobre onde estava indo. Passando a mão sobre sua boca molhada, ele a colocou sobre a cabeça de seu membro, escorregando ainda mais o corpo antes de contorcer a coluna e unir as mãos ao órgão.
Empurrando, ele a observou ao fazer a conexão, olhando-a para acomodar seu membro e ouvindo o gemido dela ao ir mais fundo, atendendo seus desejos.
– Ah, caralh... – O cavalheiro nele engoliu o palavrão. Já o homem das cavernas que havia nele tinha que continuar falando. – Olhe para você... Quero deixar algo para trás... em você.
Ele atirou seus olhos nos dela e começou a se mover, bombando para dentro e para fora, dentro e fora... e, então, ele voltou a olhar para o local onde tinham se unido, o brilho naquilo fez suas bolas ficarem rígidas. Curvando-se para os seios, ele sugou um mamilo e trabalhou nisso com a língua... até que o ritmo abaixo tornasse impossível manter aquela ligação: ele estava falando sério sobre ir devagar, mas a boa intenção não durou muito. O sexo tinha uma dinâmica própria e não passou muito tempo até que a mesa começasse a gemer sob a força de seus golpes e ele teve que abraçar a cintura dela para mantê-la onde ele a queria.
Ao ficar rígida sob ele, Isaac também ficou, tencionando seus molares para não fazer barulho, suas pálpebras se fecharam com força embora quisesse ver o rosto dela ao dar mais uma dose de prazer.
Com seu corpo no dela e a preenchendo por completo... ele estava tão saciado quando um homem no deserto que tinha recebido um gole de água.
Ele não estava nem perto de acabar. Ela queria memórias? Entendido.
Mantendo-os juntos, ele puxou a calça para fora da boca dela, a ergueu e trouxe seus lábios até os dele, beijando-a profundamente enquanto carregava seu peso com facilidade para fora da mesa. Posicionando-a contra a porta lisa, ele agarrou a parte de trás de suas pernas e começou a se mover novamente. Com as mãos emaranhadas em seus cabelos, o calor abrasador e a sensação de urgência tomando conta mais uma vez, o beijo não poderia durar muito – e não durou muito mais que o selar dos lábios. Ele veio rígido dentro dela, promovendo um colapso enquanto seu próprio orgasmo escorria.
O alívio foi um luxo que ele não desfrutou, pois tinha plena consciência de seu peso sobre ela e do fato de que as costas dela estavam contra algo rígido e de que o pai dela estava em casa...
Havia tantas coisas entre eles.
Isaac a soltou lentamente até que seus pés tocassem o chão e, quando ele saiu dela, não gostou do ar frio em seu pênis. O sexo dela era muito melhor... muito, muito melhor.
Quando ele a beijou, a maneira como seus lábios se moviam sobre os dele lhe dizia que em um mundo diferente, em circunstâncias diferentes... este seria, com certeza, um começo para eles – apesar de tudo o que os separava como família, dinheiro e escolaridade.
Mas aquela não era a realidade deles, era?
– Deixe-me arranjar algo para limpar isso – ele disse calmamente enquanto puxava as calças de volta no lugar.
Depois de beijá-la mais uma vez, ele saiu pela porta e quando a fechou lá dentro ele parou e baixou a cabeça.
Ele mentiu para ela.
Suas chances não estavam nem perto de cinquenta por cento: Matthias iria pegá-lo com toda e absoluta certeza. A questão era apenas quanto tempo ele levaria para conversar com os ouvidos certos antes que seu velho chefe surgisse das sombras e o reclamasse. Algo que sempre foi verdade sobre o líder das operações extraoficiais: Matthias nunca desistia. Nunca. E mesmo que o mundo estivesse desmoronando em torno dele, continuaria a buscar sua vingança. De alguma forma, de alguma maneira.
Contudo, isso não ia impedir Isaac de continuar tentando com todas as suas armas.
Muito melhor morrer tentando fazer a coisa certa... e deixar sua mulher pensando algo menos ruim sobre ele.
Muito melhor.
CAPÍTULO 35
Quando o sol da manhã despertou de seu sono nublado e uma auréola de raios foi derramada sobre Caldwell, Nova York, dois garotos, com idades entre doze e nove anos, foram andando para a escola.
E nenhum dos dois estava impressionado com todo o “esplendor primaveril”.
Seja lá o que isso significasse.
A mãe deles repetia sempre algo sobre esplendor primaveril, esplendor primaveril... bah! O que interessava a Joey Mason era a educação física: geralmente ele tinha educação física às segundas feiras, mas hoje haveria uma assembleia especial. Então, não importava o quanto de “esplendor primaveril” houvesse lá fora, ele ainda estava a caminho de um dia na escola com nada de interessante para fazer.
Por outro lado, seu irmão mais novo, Tony, gostava mais de assembleias do que de educação física, então, ele estava empolgado. Mas ele era um nerd que dormia com livros, que outra coisa poderia interessá-lo?
A caminhada de casa para a escola era de uns oito quarteirões e não era nada demais... apenas descer a Rua São Francisco, passando pela igreja e alguns outros pontos. Eles deveriam ficar do lado direito, pois havia um posto de gasolina à esquerda por onde passavam muitos carros. E eles deveriam parar em cada esquina. O que Joey fazia – geralmente enquanto segurava o colarinho de Tony para impedi-lo de atingir um carro em cheio.
Tony sempre andava com um livro aberto. Também comia lendo, ia ao banheiro lendo e se vestia lendo.
Estúpido. Simplesmente estúpido, pois se perde muito quando não se olha em volta.
Como aquele carro legal que estava no caminho. As janelas eram pretas e a pintura também, e havia um número na placa: 010. Era só isso, sem letras. Joey olhou para seu irmão mais novo e percebeu que, com certeza, ele não tinha notado aquilo.
Perdeu mais uma.
A coisa parecia ser da polícia.
Quando chegaram até o carro, pegou o colarinho de seu irmão e o puxou para perto. Tony não questionou a parada – apenas virou outra página. Provavelmente ele pensou que estavam em outra esquina.
Joey se inclinou um pouco para ver o interior, preparando-se para ver alguma coisa relacionada a um uniforme sair e gritar com eles por serem intrometidos. Quando não viu nada e quando nada aconteceu, ele posicionou as mãos em formato de concha e as colocou contra o vidro frio...
Pulou para trás.
– Acho que tem alguém lá dentro.
– Não tem – Tony disse sem levantar a cabeça.
– Tem sim.
– Não tem.
– Tem sim. E como você pode saber que não tem?
– Não tem.
Certo, Tony não sabia do que estava falando e aquela discussão poderia durar para sempre. E, então, ele e seu irmão caçula se atrasariam para as aulas e ficariam de castigo. De novo.
Mas...
Seria tão legal se eles encontrassem um cadáver – bem em frente à funerária!
Jogando a mochila, Joey distanciou seu irmão do carro, levantando-o e redirecionando seus pés.
– Isso é perigoso. Eu não quero que você se machuque.
Isso finalmente fez com que Tony levantasse os olhos do livro.
– Tem mesmo alguém aí dentro?
– Para trás.
Era o tipo de coisa que seu pai teria dito e Joey se sentiu um homem com relação a isso – especialmente quando Tony assentiu e segurou seu livro contra o peito. Mas era assim que deveria ser. Joey faria treze anos em breve e ele era responsável quando não havia ninguém por perto. E, às vezes, mesmo quando havia outras pessoas no local.
Voltando a colocar as mãos em forma de concha, ele reassumiu sua posição contra o vidro e tentou ver através da escuridão...
– É um pirata.
– Você está mentindo.
– Não, não estou...
Um carro passou devagar em frente deles e uma senhora abriu a janela – era a Sra. Alonzo do outro lado da rua.
– O que vocês estão aprontando, meninos?
Como se tudo o que eles fizessem fosse esse tipo de coisa.
Parte de Joey queria que ela continuasse seu caminho e deixasse que ele resolvesse a situação. Mas a outra parte queria se mostrar.
– Tem um cara morto aqui.
Sentiu-se muito importante, pois ela ficou pálida e parecia nervosa. Cara, se ele soubesse que tudo isso iria acontecer, ele teria saído mais rápido de casa. Aquilo era muito melhor que educação física.
A não ser pelo fato de que Tony teve que se intrometer.
– É um pirata!
De repente, a Sra. Alonzo não parecia tão assustada.
– Um pirata.
Seu irmão era um idiota – e Joey não estava interessado em perder a atenção da plateia. Piratas eram coisas de criança. Um morto no carro? Isso era coisa de adulto e era isso o que ele queria ser.
– Veja por si mesma – ele disse.
A Sra. Alonzo estacionou em frente ao carro completamente preto e saiu, seus saltos altos faziam um som de galope de pônei na rua.
– Certo, já chega, garotos. Entrem e vou levá-los até a escola. Vocês vão se atrasar. – Ela estendeu seu telefone para Joey. – Ligue para sua mãe e diga que estou levando vocês. De novo.
Isso acontecia muito. A Sra. Alonzo era uma executiva cujo escritório ficava não muito longe da escola, eles se atrasavam muitas vezes e ela os levava. Mas essa manhã era diferente.
Ele cruzou os braços sobre o peito.
– Precisa olhar pela janela.
– Joey...
– Por favor. – Outra coisa adulta: por favor e obrigado.
– Tudo bem. Mas entrem no meu carro.
A Sra. Alonzo marchou em direção ao carro enquanto resmungava alguma coisa sobre ficar prestando serviço de táxi. E Tony, que sempre seguia as regras, levou seu livro até o assento da frente da SUV – só que ele ainda estava interessado no que estava acontecendo, pois ele não fechou a porta e o seu exemplar do livro Diário de um Banana: Dias de Cachorro permaneceu contra seu peito.
Joey ficou onde estava.
Normalmente, ele teria se chateado com Tony por pegar o melhor lugar no carro: irmão mais velho andava na frente; bebês menores ficavam atrás. Mas havia coisas mais importantes que isso agora, então, ele ficou onde estava na calçada, o telefone sem utilidade em sua mão.
Ele estava pensando no que tinha visto...
A Sra. Alonzo deu um salto tão grande que quase acabou no meio do trânsito, uma minivan buzinou para ela quando se desviou por pouco de seu corpo.
Ela correu e pegou o telefone, assim como o braço do garoto.
– Entre no carro, Joey.
– O que é isso? Um cara morto? – Meu Deus, e se fosse um pirata? Caramba!
A Sra. Alonzo colocou o telefone no ouvido enquanto o arrastava para o carro.
– Sim, é uma emergência. Há um homem em um caro em frente à casa funerária McCready na Rua São Francisco. Não sei se há algo de errado com ele, mas ele está atrás do volante e parece não se mexer... Estou com uma criancinha comigo e não quero abrir a porta... certo...
Criancinha. Deus, ele odiava aquela coisa de criancinha. Além disso, foi ele quem encontrou o cara. Quantos adultos passaram por ali a pé para ir ao trabalho e não o viram? Ou de bicicleta? Ou correndo?
O cara morto era dele.
– Meu nome é Margarita Alonzo. Sim, ficarei aqui até os paramédicos e a polícia chegarem.
Certo. Esta era, oficialmente, a melhor manhã da história de sua vida, Joey pensou enquanto pulava no banco de trás – o qual tinha a melhor visão ao se virar para ver lá fora.
Quando a Sra. Alonzo entrou e trancou as portas, ele imaginou os três ali até a meia noite, uma da manhã. Talvez precisassem de um McLanche Feliz para o almoço. Ele tinha a grande esperança de que a polícia não corresse...
A chatice de todas as chatices o atingiu quando ele ouviu a senhora Alonzo dizer: – Sara? Estou com seus meninos e eles estão bem. Mas há um pequeno problema e preciso que venha buscá-los.
Joey abaixou a cabeça no braço.
Sabendo da sorte que tinha, sua mãe correria até à cena e chegaria lá antes que ele descobrisse algo sobre o pirata morto no banco da frente daquele carro.
Arruinado. Simplesmente arruinado.
E, provavelmente, eles chegariam à escola a tempo de assistir a assembleia.
Quando Matthias dormiu atrás do volante de seu carro, ele sonhou com a noite em que Jim Heron salvou-lhe a vida várias e várias vezes. Os acontecimentos que o levaram até a bomba e a dolorosa caminhada para recuperar uma saúde relativa foram passados e repassados em sua mente, como se a agulha da sua velha vitrola mental estivesse presa em algum obstáculo no disco.
Matthias tinha atraído Jim Heron àquela cabana abandonada e empoeirada como testemunha, pois não havia mais ninguém nas operações extraoficiais cuja palavra houvesse mais peso e credibilidade. A ideia era que o soldado deixasse seu corpo na areia e fosse para a casa contar aos outros que tinha acontecido um terrível acidente: se alguém apresentasse um relatório como esse, a conclusão seria de que havia ocorrido um abate completo.
Contudo, não é o caso de Jim – ele era um atirador correto em um mundo cheio de curvas e nunca teve problemas em fazer o que tinha que ser feito, certo ou errado.
Prova de que havia um pouco de bondade em Matthias, afinal – pelo menos, ele não ia jogar a culpa de seu suicídio na cabeça de outro cara.
E sim, claro que ele poderia explodir a própria cabeça em um banheiro qualquer, mas mesmo sendo um suicida, ele tinha seu orgulho. Autoinjetar-se uma dose de chumbo seria fraqueza demais – muito melhor espalhar a porcaria gosmenta em algumas paredes de pedra e ser lamentado como o forte lutador que sempre tinha sido.
Contudo, o orgulho teve seu preço: ao invés de deixá-lo na areia, o idiota Heron o salvou – e descobriu seu segredinho. O explosivo foi a dica que faltava. Enquanto Matthias permanecia deitado e sangrava como um porco, Jim encontrou os restos da bomba e reconheceu o que eram. Ou seja, era um dos seus dispositivos.
O filho da mãe pegou os fragmentos, os colocou no bolso e tirou o cinto. Em seguida, fez um torniquete na perna de Matthias, o levantou e começou a puxá-lo. Ele ficou muito chateado e era evidente que as atitudes de seu salvador eram parte punição, parte recompensa – e completamente desgastante. O bastardo andou, andou e andou... até que, alguns momentos depois, Isaac Rothe apareceu dentre as dunas com uma Land Rover.
As exigências de Jim vieram semanas depois, em um hospital na Alemanha. Naquele ponto, a cabeça de Matthias não era nada além de um imenso balão de ar quente de agonia e ele estava tendo que se acostumar com apenas um olho funcionando. Heron se sentou à beira do leito e estabeleceu seus termos: fora. Livre e limpo. Ou pegava o que tinha restado da bomba e contaria a história para a única pessoa que poderia fazer algo sobre isso.
Olá, senhor presidente.
Ironia das ironias, se tivesse sido qualquer outro soldado, qualquer outro ser humano com um coração batendo e um dedo no gatilho, Matthias não teria se preocupado com a ameaça. Mas, Jim Heron – o bom e velho Zacarias – era uma daquelas malditas pessoas em quem as pessoas acreditavam. Fragmentos de bombas poderiam ser fabricados; e a credibilidade de um homem digno? Muito menos discutível.
E ele não poderia continuar sendo chefe se as pessoas achassem que não tinha mais coragem para o trabalho.
Naquele momento, Matthias sentiu como se não houvesse outra escolha e disse ao homem para que seguisse seu caminho.
Depois, a questão suicida veio à tona e ele teve que considerá-la seriamente. Mas, em seguida, seu segundo homem na linha de comando apareceu na hora certa – tinha certeza de que o cara sabia para onde estava indo.
Um homem muito persuasivo aquele. E quando se deu conta, Jim tinha salvado seu corpo, mas aquele segundo homem na linha de comando o trouxe, de alguma maneira, de volta à vida.
Apesar de a renovação ter tido consequências: quase imediatamente, Matthias abriu os olhos – ou um olho, melhor dizendo – para o erro de deixar Heron sair: aquele soldado estava solto pelo mundo com informações demais e a exposição não era aceitável.
O segundo na linha de comando concordou com isso e estava prestes a colocar as rodas de um carro em movimento para provocar um “acidente” quando Jim ligou procurando por informações sobre Marie-Terese Boudreau. Perfeito. Bem a tempo. O plano era que Jim entregasse Isaac em troca da informação que precisava – e, em seguida, seria o assassinato de Jim.
Só que alguém pegou Heron primeiro.
Morto. Jim estava morto. Matthias viu seu corpo com os próprios olhos. E, ainda assim... de alguma maneira ele sentia como se tivesse falado com o cara. Sim, ele sonhou que tinha conversado com Jim Heron...
Matthias acordou com a arma na mão, o gatilho armado e apontando para um homem de uniforme azul marinho – que tinha, dado a barra de ferro em sua mão, acabado de destrancar o carro e abrir a porta.
O paramédico congelou e colocou as mãos para cima.
– Eu só quero te ajudar, cara.
Provavelmente era verdade. Mas para o inferno, o parceiro do cara sem dúvida estava ligando para a polícia agora e, observação, fazer qualquer tipo de contato direto com um civil não era um benefício, segundo a cartilha de Matthias.
Ele baixou a arma.
– Sou um agente federal. – Ele colocou a mão no casaco e decidiu mostrar suas credenciais do FBI; que eram legítimas até certo ponto.
O paramédico se inclinou e olhou a fotografia, um nome qualquer no laminado e um brasão bem verdadeiro.
– Ah... desculpe, senhor. Recebemos um telefonema...
– Está tudo bem. É que passei três dias puxados na fronteira canadense e estou a caminho de Manhattan. Desci a estrada ao norte procurando algo para comer às quatro da manhã, mas não havia nada aberto e eu precisava dormir um pouco. Sabe como é.
– Ah, entendo muito bem.
Conversa fiada, conversa fiada, conversa fiada... blablablá...
Quando a polícia apareceu, eles colocaram seu número de identidade no sistema e, como num passe de mágica, tudo bateu. E sua história sobre estar em uma missão secreta e ter que parar um pouco por causa da exaustão foi engolida como um jantar de Ação de Graças: ele passou de criminoso à celebridade.
Gente estúpida.
Depois que os despistou, afastou-se e pegou o telefone. Havia uma série de mensagens de voz... e um alerta.
Bem, como pode imaginar... parece que Isaac Rothe tinha se entregado e sua localização era a casa de sua adorável e talentosa advogada. Que coisa mais perfeita: embora pudessem pegá-lo em pé na cozinha de Grier Childe se fosse preciso, aquilo faria das coisas muito menos complicadas.
Matthias ligou para seu segundo homem na linha de comando e quando o telefone soou ele pensou em quantas vezes tinha tido aquela conversa: vá. Pegue o bastardo. Acabe com ele. Dê um jeito no corpo.
Ele tinha feito isso tantas vezes.
Quando a dor do lado esquerdo do peito disparou novamente, ele ignorou a sensação...
– Sim? – o segundo na linha de comando respondeu.
– Isaac Rothe está pronto para você.
Não houve sequer uma pausa.
– O endereço é o de Beacon Hill?
– Sim. Vá até lá e pegue-o.
– Estou fora do estado.
– Bem, entre no estado. O mais rápido possível.
– Entendido. Onde você o quer?
Boa pergunta. Isaac não era conhecido por grandes fugas, sua reputação era de um assassino rápido e limpo que o fazia em circunstâncias extraordinárias. Mas você não conseguiria executar tarefas como as dele se não fosse muito imaginativo.
– Mantenha-o naquela casa para mim – Matthias disse de repente.
Quando levou em conta a situação, o instinto lhe disse que uma mudança na estratégia era apropriada. Afinal, seria útil puxar as rédeas de Grier Childe e seu pai – e nada chamava mais a atenção de um civil do que assistir a alguém sendo assassinado. O bom e velho Albie era uma prova disso...
Por alguma razão, a voz de Jim Heron estalou no cérebro de Matthias. Não havia palavras específicas, apenas um tom que se demorava, um tom grave, que implorava para que Matthias parasse com tudo e... fazer o que exatamente?
– Alô? – o homem do outro lado da linha perguntou, uma vez que o cara disse algo que não havia sido respondido ou que havia recebido nada além de silêncio por um tempo.
– Eu não quero que você o mate – Matthias se ouviu dizendo.
– Ah, entendo. Você quer fazer isso por si mesmo. – Satisfação. Tal satisfação era o objetivo do plano em todo o tempo.
Sem qualquer razão especial, o processador central do cérebro de Matthias começou a faiscar e sair fumaça, imagens voavam dentro e fora de sua mente em uma confusão louca que o fez pensar na rolagem de dados em uma mesa de feltro. E, então, em meio ao caos, ele viu Alistair Childe sendo segurado em um tapete sujo por dois agentes de preto enquanto era injetada em seu filho heroína suficiente para levar um elefante a ter uma overdose.
Danny... oh, Danny, meu garoto... Parecia uma música que poderia tocar em um bar irlandês, mas não soava nada musical uma vez que o pai gritava as palavras com voz rouca.
– Chefe – o segundo na linha de comando interrompeu. – Fale comigo. O que está acontecendo?
A voz era muito sonora, mas era um falso pragmatismo. Era evidente que o soldado estava preocupado de que as rodas estivessem saindo da estrada de novo – assim como tinha acontecido há dois anos, ele teria que arrastar Matthias para calçar suas botas de combate mais uma vez.
– Não o mate – Matthias ouviu-se repetir. – É uma ordem.
– Eu sei, assim você pode fazer isso. Ele é seu. Você tem que pegá-lo.
Por um momento, Matthias sentiu uma atração inevitável, tentadora...
– Não – ele exclamou, sacudindo-se. – Não, eu não tenho.
– Sim, você deve...
– Apenas siga a maldita ordem sem mais comentários ou encontro outra pessoa que o faça.
Com um palavrão, ele desligou, enviou um sinal de volta para Isaac e, em seguida, tentou encontrar um local sólido para se sustentar dentro de si mesmo. Droga, de repente, ele sentia como se houvesse duas vozes diferentes em sua cabeça e elas não apenas o direcionavam para caminhos opostos, o puxavam de fato.
Felizmente, o retorno da transmissão feita a Rothe interrompeu sua luta.
– Matthias – ele ouviu aquela velha voz familiar.
– Isaac. Como vai?
– Onde? Quando?
– Sempre indo direto ao ponto. – Matthias empurrou a parte inferior do volante para manter o sedã na estrada, enquanto massageava a dor que havia do lado esquerdo de seu peitoral.
– Estou mandando alguém até você. Então, fique onde está.
– Inaceitável. Não posso ser pego aqui.
– Ditando as regras? Eu acho que não.
– Grier Childe não vai ser envolvida nisso. Vou me entregar à meia-noite, amanhã, em um local público.
– E agora você quer me dizer quando? Vá se ferrar, Rothe. Se quiser que ela fique fora disso, fará o que vou lhe dizer. Ou você acha que não posso passar por esse sistema de segurança de luxo a qualquer hora da noite que eu quiser? – Silêncio. – Surpreso por eu saber sobre a maldita coisa? Bem, há outros truques nessa casa, Isaac. Fico me perguntando de quantos deles você tem conhecimento.
Vê, aquilo era bom. O movimento do jogo de poder limpava um pouco aquela porcaria distorcida, nebulosa e evasiva – e isso o lembrava da razão por trás da morte de Daniel Childe: a grande boca aberta do bom e velho Albie.
Um tiro de adrenalina o despertou ainda mais enquanto ele se perguntava exatamente que tipos de planos Isaac e o capitão aposentado poderiam ter tido enquanto ele estava desmaiado na estrada.
Ele limpou a garganta.
– Sim, fique onde está... e em caso de ter tramado alguma brilhante ideia com o pai dela, deixe-me esclarecer as coisas. Se você fizer qualquer coisa para expor a mim ou à organização, vou fazer coisas àquela mulher das quais ela vai sobreviver, mas nunca se curar. E saiba: meu alcance se estende além da sepultura. – Mais silêncio. – Você conheceu o pai dela... não negue isso. E tenho plena ciência de que ele vem coletando informações sobre as operações extraoficiais há décadas. Sem ideias brilhantes, Isaac. Pelo bem dela. Ou vou ignorá-lo e ir atrás dela. Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora...
– Ela não faz parte disso! – Rothe disse entre dentes. – Ela não tem nada a ver comigo ou com o maldito pai!
– Talvez. Mas acidentes acontecem. E eu atribuí seu caso a ela por um bom motivo, que acabou ficando melhor do que eu pensava. Eu nunca esperava que vocês dois ficassem tão pessoalmente envolvidos, ou você acha que eu não ouvi os dois subirem até aquele quarto de hóspedes dela ontem à noite? – Matthias lutou contra a dor em seu peito, sentia como se estivesse se afogando. – Não me faça machucá-la, Isaac. Estou ficando cansado de tudo isso, estou mesmo. Fique onde está. Estou enviando uma pessoa e você saberá quando chegar lá. E se você ou o pai dela não estiverem lá quando ele chegar, vou fazer com que procure por ela, não por você. Você segue as instruções e vou me certificar de que ninguém além de você se machuque.
Matthias apertou o botão end para finalizar a ligação e jogou o celular no banco do passageiro.
Estremecendo, ele lutou para manter o carro em linha reta enquanto a agonia por trás de sua caixa torácica aumentava para níveis incontroláveis. Com o ataque, ele pensou brevemente sobre dirigir até o Aeroporto Internacional de Caldwell, mas decidiu que precisava se recuperar e isso ia levar tempo. E privacidade.
Apertando o peito esquerdo, ele parou e tentou respirar em meio à dor. O que realmente não ajudou muito... ao ponto de se perguntar se era isso. O derradeiro. Assim como aquele que matou seu pai.
Olhando para fora do para-brisa dianteiro, ele percebeu que estava na frente de uma igreja.
Sem nenhuma razão aparente, ele desligou o motor, pegou sua bengala e saiu. Ele não pensava em nada nem sequer remotamente relacionado a Deus há anos e estar mancando em direção àquelas enormes portas duplas o fazia se sentir... errado de muitas maneiras. Especialmente levando em conta tudo o que estava esperando por ele em Boston. Mas seu segundo homem na linha de comando precisava de tempo para arranjar as coisas e Matthias... precisava desse ataque cardíaco seja para se organizar e chutar o balde ou para calar a maldita boca.
Lá dentro estava quente e cheirava a incenso e cera com aroma de limão. O lugar era enorme, com centenas e centenas de bancos que se espalhavam em três direções desde o altar.
Matthias não fez todo o caminho. Ele entrou em colapso em um banco mais ou menos na metade do corredor lateral, caiu por completo no banco de madeira.
Movendo sua bengala entre os joelhos, olhou para o crucifixo... e começou a chorar.
CAPÍTULO 36
Depois de terminar a comunicação com Matthias, Isaac guardou o transmissor de alerta em seu blusão. O que ele queria fazer era colocá-lo sobre o balcão de granito e esmagá-lo com seu punho. Em seguida, talvez, jogar os pedaços no fogo.
Apoiando as mãos sobre a pia da cozinha, ele se inclinou sobre os ombros e encarou o jardim. Quase oito horas da manhã e o local estava um poço de escuridão, pois as casas da vizinhança tinham sido construídas muito perto umas das outras. Não fazia ideia se os colegas de Jim estavam lá de volta. Nenhuma palavra sobre Jim.
Mas Isaac tinha outros problemas agora.
Droga. Levando tudo em consideração, o fato de Matthias suspeitar do que iria acontecer não era uma novidade. Mas aquilo o deixou tenso. Se ele fosse embora agora, ele corria o risco de Grier e seu pai serem massacrados. Se ele ficasse... provavelmente eles seriam obrigados a assistir a morte dele.
Filho da mãe!
– Eles entraram em contato com você?
Ele olhou sobre o ombro. Grier tinha acabado de sair do chuveiro, seus cabelos soltos secavam naturalmente.
– Isaac – o rosto dela ficou tenso. – Eles responderam?
– Não – ele disse. – Ainda não.
Para tornar a mentira mais convincente, ele puxou o transmissor e o balançou, apostando no fato de que ela não iria notar que a luz estava desligada.
– Essa coisa está funcionando?
– Sim. – Ele o guardou quando ela se aproximou. – Como está seu pai?
– No telefone do banheiro de novo. – Ela encarou o relógio. – Deus, pensei que essa noite nunca ia acabar.
– Eu só queria que Jim aparecesse – ele disse enquanto ela começava a fazer o café na pia.
– Você acha... que ele está mesmo morto?
Naquele momento... talvez.
– Não.
Sentando-se em um dos bancos, ele a observou estalar a abertura de uma lata de café e colocar o filtro no topo da máquina. Quando ela terminou a tarefa, a luz do sol em seu rosto o fez querer chorar, ela era tão bonita.
De alguma maneira, ele não podia acreditar que estava com ela – e não no sentido de que não era digno disso. Dã, isso era evidente. Mas ponderando tudo, o sexo quente e intenso parecia um sonho. Ela estava tão limpa, cheirando a xampu ao invés de suor, o cabelo liso, o rosto já não mais corado.
Ela tirava seu fôlego. Para Isaac, ela era uma prova definitiva que a vida valia o sacrifício que requeria das pessoas: apenas olhar para ela e estar no mesmo ambiente, ter as memórias que ele deu não só a ela, mas que ficaram dentro dele...
A ideia de que alguma coisa a machucasse um dia era simplesmente insuportável. E se ele fosse a causa disso?
Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora.
Não era uma ameaça. Não vindo de um cara como Matthias, que não estabelecia qualquer distinção para o sexo feminino. E ele a machucaria de maneira que aqueles momentos especiais que Isaac havia passado com ela na adega fossem impossíveis de serem vivenciados novamente.
Por mais que lhe doesse, ele tinha que ser realista: quando ele partisse, ela encontraria outro amor. Talvez alguém com quem se case e tenha filhos e com quem possa passar a velhice. E não haveria nada disso para ela a menos que ele ficasse ali, esperando... e rezando para que quando o agente de Matthias aparecesse, ele fosse capaz de matar o filho da mãe e, em seguida, desaparecer rapidamente.
Afinal, ele era um maldito de um assassino. Era o que ele fazia para viver.
Uma coisa era clara: não ia mais prosseguir com a divulgação de informações. De jeito nenhum. A vida de Grier valia mais que o respeito que ela tinha por ele e, depois que a poeira assentasse, qualquer coisa que tivesse sido acionada pelo pai dela poderia ser desfeita tão rápido quanto uma ligação telefônica – assim, eles pensariam que o plano ainda estava de pé até descobrirem que Isaac tinha sumido.
E quanto ao resto de sua vida? Ele ia se entregar a Matthias e prestar suas contas, mas seria em seus termos. O pai de Grier faria algo com aqueles dossiês e Jim Heron, ou qualquer um de seus colegas, era o tipo de cara que poderia guardar uma narração gravada, em primeira pessoa, de cada assassinato que Isaac já cometeu – isso proporcionaria a Grier e a seu pai uma morte de causas naturais.
Afinal, ele tinha a impressão de que confissões feitas à beira da morte eram admissíveis no tribunal, então, uma vez que Isaac confessasse que Matthias iria matá-lo em breve, isso teria muita influência, não teria? – pelo menos seria o suficiente para que abrissem uma grande investigação.
Seu depoimento seria o seguro de vida dela e de seu pai.
Do outro lado, Grier apertou o botão ligar do aparelho e quando a máquina começou a sibilar ela ficou onde estava, olhando para a coisa.
Compelido por algo que ela não questionou, Isaac ficou em pé e se colocou atrás dela, colocando seu peito contra suas costas. A respiração de Grier ficou tensa ao sentir o corpo dele e, embora tivesse se enrijecido, ela não se moveu.
Ele estendeu as mãos e tocou as ondas loiras que caiam sobre seus ombros, correndo os dedos sobre ele. Em seguida, ele deslizou as mechas lentamente para a lateral, expondo a nuca.
Deus, ele já tinha se decidido, não tinha?
Tinha escolhido seu caminho.
– Posso beijá-la? – ele disse com voz rouca. Pois era mais cavalheiro perguntar antes.
A cabeça dela pendeu.
– Por favor.
Ele foi até o pescoço encantador, pressionando seus lábios contra a pele dela. Aquilo não era o suficiente, mas ele não confiava em si mesmo para ir mais além ou sequer para colocar suas mãos na cintura dela – se ele o fizesse, não ia parar até que ela estivesse sob ele e, por sua vez, ele estivesse dentro dela mais uma vez.
– Grier – ele sussurrou com voz rouca.
– Sim...
– Preciso dizer uma coisa.
– O que?
Algumas vezes as emoções eram uma locomotiva para as palavras: uma vez que se há uma revelação para fazer, não há freios suficientemente fortes para mantê-la nos trilhos de sua garganta.
– Eu te amo – ele pronunciou mais com ar do que com sílabas.
Contudo, ela ouviu. Deus, ela ouviu, pois inalou com um silvo.
Grier se virou tão rápido que se formou uma curva em seus cabelos e mesmo com o coração batendo forte, Isaac não desviou o olhar.
Quando ela abriu a boca, ele colocou seu dedo sobre os lábios dela e balançou a cabeça.
– Eu só precisava que você soubesse. Uma vez. Eu só precisava dizer... uma vez. Eu sei que não a conheço há tempo suficiente ou bem o suficiente e tenho plena consciência de que não sou o homem certo para você, mas algumas coisas precisam ser ditas.
O que não precisava ser transmitido era o terror dentro de sua pele.
Por mais que ele quisesse fazer a coisa certa, seu antigo patrão o pegou pelos cabelos: não havia sacrifício grande demais para garantir a segurança de Grier. Até mesmo a salvação de Isaac não era demais. Nem mesmo a queda de Matthias.
Uma garganta pigarreando discretamente fez com que Isaac olhasse para cima. Através do vidro sobre a pia, ele viu o pai de Grier em pé na cozinha – e por respeito à filha do homem, ele recuou.
– Café, pai? – Grier disse com uma voz estável ao se inclinar para o lado e pegar duas canecas no armário.
– Sim, obrigado.
Isaac podia sentir os olhos do cara oscilando entre um e outro, mas ele tinha certeza de que não queria responder qualquer pergunta.
E era evidente que Grier também não.
– Vamos sentar? – ela perguntou.
Ao invés de responder, o homem clareou a garganta mais uma vez. Sem dúvida por estar chocado com a situação do dia anterior, quando disseram para que ficasse longe, e o sentimento de “não toque na minha filha”.
Mas ele não precisava se preocupar. Ele chegou tarde demais para a última alegação, mas a sensação que a primeira causava... dariam um jeito nela.
– Pai? Vamos sentar?
– Todos vão chegar amanhã de manhã...
– Amanhã de manhã?
– É uma situação delicada. É preciso dar desculpas adequadas – esses homens e mulheres não podem sair sem um bom motivo, sem que questionamentos sejam feitos.
Isaac podia sentir Grier olhando para ele, buscando um apoio para dizer um “não” veemente, mas era isso, ele discordava dela. Amanhã era perfeito.
Ele já teria partido até lá.
No hotel, Jim acordou em seu quarto pouco iluminado e sentiu como se tivesse sido vítima de um acidente de carro. Com um caminhão. E ele estava sem cinto de segurança.
Ele estava na cama, dormindo encolhido de lado, seu corpo pesado tinha esculpido uma parte do colchão e estava posicionado como um cão à espera da morte em uma floresta. Mas ele era imortal agora... e aquilo parecia significar que não importava o dano que fosse feito nele, ele seria curado.
Sim, só que aquilo não parecia o tipo de trabalho que requeria apenas um movimento de nariz da Feiticeira, onde tudo era resolvido em um passe de mágica. Ele se sentia muito humano com as dores e feridas, a respiração que fazia suas costelas queimarem, com os saltos de seu coração que mais pareciam o andar de um bêbado. Mas a pior parte disso não era física. Estava em sua mente.
A parte em que havia deixado Sissy para trás, no reino de Devina, o matava.
Abrindo os olhos, percebeu que era manhã; sobre o topo da cabeça encrespada do Cachorro, o alarme brilhava com números vermelhos. 7h52.
Hora de levantar, ele pensou ao se virar de costas com cuidado. Do outro lado, Adrian estava apagado como uma lâmpada, o anjo tinha uma respiração pesada, seus olhos se movimentavam por trás das pálpebras fechadas.
Dado o brilho em seu rosto, era evidente que ele não estava tendo bons momentos na terra dos sonhos.
Deus, que noite, Jim pensou. Depois que Colin o deixou ali ele achou que seria apenas ele e o Cachorro. Mas, então, alguém veio do outro quarto e ele poderia concluir que seria Eddie – a coisa toda de cuidados e enfermagem era mais a praia dele.
Mas não. Adrian foi quem entrou... e permaneceu ali.
No momento, Jim não teve forças para lidar com qualquer simpatia que pudesse sentir pelo cara, então, ele envolveu com cuidado um cobertor em volta de si e calmamente se colocou em pé com as pernas tão fortes quando dois lápis. Mancando até o laptop, ele estava muito tonto, e chegou à cadeira bem a tempo – contudo, mas que droga, seu traseiro doía demais.
Apesar do fato de precisar urinar como um cavalo de corrida, ele ligou o computador e esperou impaciente para que o navegador da Internet fosse iniciado. Para passar o tempo, ele deu uma olhada nas marcas deixadas por aquilo que prendia seus pulsos. Os dois tinham linhas tortuosas de um vermelho brilhante em volta, que reluziam e estavam em carne viva, o lembrete tangível de onde ele tinha estado e o que tinham feito com ele seduziu sua mente a fazer uma viagem ao campo do stress pós-traumático. Só que foi um deslize que ele se recusou a permitir.
Voltando a prestar atenção no que estava fazendo, ele começou a digitar. Contudo, uma vez que seus dedos estavam dormentes, levou uma eternidade para chegar ao site do jornal de Caldwell e pesquisar por Cecilia Barten...
Apareceu um artigo de cerca de duas semanas atrás e a imagem de Sissy trouxe um brilho aos seus olhos. Ela estava sorrindo para a câmera em pé no meio de vários jovens da idade dela. Não dizia quanto tempo havia se passado entre o momento em que a foto foi tirada e quando foi levada por Devina – mas o fato de que ela não tinha ideia do que a esperava ao virar a esquina fez com que seu coração desconfiado ficasse ainda mais focado no trabalho.
Provavelmente era melhor que não soubesse de nada.
E ele ia fazer com que Devina pagasse por isso.
O único artigo que havia além desse relatava que ela tinha desaparecido há uma semana e os dois juntos o fizeram perceber o porquê sua primeira pesquisa de dados havia falhado. Ele pediu que o computador procurasse por assassinatos ou garotas loiras mortas. Nada relacionado a desaparecimento.
Que erro idiota.
E os detalhes eram os que Sissy tinha dito: ela era caloura na Faculdade de Albany e estava passando as férias de primavera em Caldwell. A última vez em que a viram foi quando ela saiu do mercado local por volta das nove horas.
Nenhuma foto de seus pais. Contudo, ele iria encontrá-los.
– Você a viu? – Adrian disse com uma voz um tanto áspera.
– Sim. – Jim encarou a foto de sua garota sorrindo com seus amigos. Então, ele piscou e viu seus cabelos loiros emaranhados com sangue. – Como a tiro daquela parede?
A respiração do outro anjo era do tipo que se produzia quando não se tinha uma boa notícia para dar. De jeito nenhum. E você fica dolorido com isso.
– Você não pode.
– Inaceitável. Tem que haver um jeito.
– Não que eu saiba. – Houve um palavrão e, então, um estalo no colchão e uma variedade de estalos como se Ad estivesse se espreguiçando.
– Volto já.
Quando os passos pesados se dirigiram para o outro quarto, Jim não se deu conta da saída do cara. Mas quando o focinho do Cachorro cutucou sua perna nua, ele olhou para baixo.
Os grandes olhos castanhos olhavam de um rosto de pelo que parecia palha.
– Você sabe como tirá-la de lá? Ela não pertence àquele lugar. Ela não deveria ter terminado ali.
Jim considerou que o pequeno gemido do animal significava que concordava com ele – e que também precisava sair para fazer suas necessidades.
– Dois segundos – disse Jim, preparando-se para ficar em pé. – Preciso de um banho.
Levantando seu peso morto da cadeira, ele deixou cair o cobertor e entrou no banheiro que era de um tamanho modesto. Fechando-se lá dentro, ele acendeu a luz, deteve-se no banheiro e se perguntou se seu pênis ainda funcionava de alguma maneira.
O fluxo rosa que ele urinou respondeu a pergunta. E também sugeriu que seus rins foram danificados.
Depois que terminou, grunhiu ao se inclinar para apertar a descarga e depois se virou para ligar o chuveiro. Sabonete. Ele precisava de muito mais sabonete do que aquela metade já usada que estava ali...
Jim congelou ao se ver no espelho.
Ruim. Muito ruim.
Muito pior do que ele pensava.
Sua boca estava roxa e inchada por causa de toda porcaria que tinha sido empurrada dentro dela, seu peito e sua barriga eram nada além de carne viva. Quanto ao pênis... A maldita coisa estava pendurada em seus quadris como se tivesse perdido a vontade de viver. E ele não queria saber como a parte de trás de seu corpo estava.
Usado e abusado eram os termos corretos.
E seu único pensamento, o único... apenas um... era que odiava o fato de que Sissy o tinha visto assim.
Quando seu estômago vacilou em torno de sua cintura, ele se lembrou da expressão horrorizada no rosto dela ao olhar para ele. Pobre garota... Ele tinha sido treinado para toda aquela porcaria. Ele tinha passado por isso antes... bem, não exatamente pelo que Devina fez com ele, mas com certeza ele teve que lidar com isso algumas vezes com punhos e facas. Até mesmo com uma bala ou duas. Mas Sissy...
Ele quase não conseguiu voltar à bacia sanitária à tempo.
Quando seu corpo se inclinou e nada além de bile saiu de sua boca, seus olhos lacrimejaram pelo esforço.
Maldição, Sissy o viu daquele jeito. Violado sexualmente, sangrando, surrado...
Mais vômito.
Ele não teve certeza de quando exatamente Adrian entrou, pois no terceiro round de lances que saíam de sua boca ele se deu conta que não sabia se ela estava livre do que tinha feito com ele. Afinal, ela foi capturada. Ela estava presa naquele inferno. E Devina tinha muitas coisas que satisfariam o gênero masculino.
– Aqui – Adrian disse, passando-lhe um pano frio.
Jim não conseguia enxugar o rosto, pois doía demais, então, ele deu leves toques, sentindo a umidade fresca como um bálsamo contra seu rosto em chamas e lábios queimando.
Baixando a cabeça, ele percebeu que tinha deixado manchas de sangue fresco no piso creme, das feridas que tinham sido reabertas em seus joelhos.
Sim, imortal não significava embalsamado; isso era certeza.
Adrian sentou-se ao lado dele, com o rosto muito pálido enquanto olhava ao redor da bacia sanitária.
– Quer que eu o coloque no banho? Foi o que me ajudou quando ela...
Quando seus olhos se fecharam com força, a conversa era de sobrevivente para sobrevivente.
– Ah, droga... – Quando Jim falou, sua voz era rouca e parecia que tinham passado um desentupidor por sua garganta.
– Ela me viu assim. Sissy... ela viu isso.
Ele não podia acreditar que havia dito isso, mas manter dentro de si era inútil.
Incapaz de manter contato visual, Jim fechou suas pálpebras com força e encostou ao lado da banheira. Enquanto a água caía como a chuva atrás dele e o chão duro pressionava seu traseiro, ele sussurrou: – Ela me viu arruinado.
Foi a última coisa que disse antes de desmaiar.
CAPÍTULO 37
Você não deve ter pensando que uma casa com seiscentos metros de área construída, no centro da cidade, com três andares – quatro, se contar o porão com a adega – poderia ser estreita como uma caixa de sapato.
Mas, à medida que a manhã se arrastava e chegava o florescer do meio dia, Grier sentia como se não pudesse ter ar suficiente... ou algum momento à sós com Isaac. Seu pai era uma presença passiva com olhos de águia que parecia preencher todo o espaço, mesmo quando não estava nele. E Isaac estava tão ruim quanto ele, movendo-se constantemente, olhando pelas janelas, indo e voltando da frente da casa para a cozinha.
Por volta das duas horas, ela não aguentava mais e foi organizar seu armário no quarto. O que era ridículo, pois já estava arrumado – apesar de ser uma cura rápida para o que estava passando.
Depois de parar no meio do quarto e fazer um giro pelas fileiras de roupas penduradas por categoria, ela pegou cada blusa, saia, vestido, terno e par de calças das prateleiras e os colocou em uma pilha no chão. Aparentemente, ela estava reorganizando as várias sessões. Na realidade, ela estava dando a si mesma um pouco de bagunça para limpar para que pudesse desfrutar de um pouco de controle.
Cabide por cabide, item por item, ela começou a organizar seu guarda-roupa.
Deus... Isaac.
Se ela o ouviu direito, lá na cozinha, perto da cafeteira... ele disse que a amava.
Vamos lá... claro que ela ouviu direito. E seus olhos incríveis confirmaram o que seus ouvidos tinham lutado para compreender.
Contudo, havia muitos mas que a advogada que havia nela queria esquematizar. A questão era, a mulher por trás da advogada de defesa não se importava com nada daquilo: ela sentia algo tão forte quanto ele.
Naturalmente, a lógica dizia que não devia confiar na emoção nos dois casos, apontando que tudo era uma questão de circunstâncias, drama, tensão, sexo – Deus, o sexo. Só que seu coração tinha uma teoria diferente. Ela sentiu uma faísca entre eles no instante em que colocou os olhos nele e a decisão de Isaac de tomar a frente e fazer a coisa certa sobre seu chefe corrupto e perigoso... bem, isso foi ainda melhor que os incríveis orgasmos.
Ele ganhou todo o respeito dela com isso.
Ao pegar um de seus ternos pretos com risca de giz, ela se entreteve com uma breve fantasia onde eles acabavam juntos em uma ilha segura e remota com nada além do dilema sobre o que fazer para almoço e jantar para preocupar suas mentes. Um dia de sonho na Ilha da Fantasia com nada para ser questionado seria uma ótima diversão, mas ela não ia enganar a si mesma. Isaac ia desaparecer. O governo ia levá-lo e escondê-lo até que as audiências no Congresso ou os procedimentos judiciais fossem iniciados. E se ele não acabasse na cadeia pelas atrocidades de guerra nos Estados Unidos, seria extraditado para algum inferno no exterior.
E foi por isso que ele disse aquilo. Era seu adeus.
– Uau.
Grier girou sobre os calcanhares, o terno em suas mãos se levantou em um círculo em volta de seu corpo antes de ser colocado de volta no lugar – como se tivesse esquecido momentaneamente sua discrição e retomado sua compostura.
E não é que ela sabia como a coisa se sentia?
Isaac se amaldiçoou.
– Desculpe, eu realmente preciso aprender a bater.
Grier ficou mais aliviada.
– Eu também estou nervosa demais.
Franzindo a testa, ele mediu a pilha no meio do carpete creme.
– Muitas roupas.
– Provavelmente roupas demais. Eu preciso doar um pouco para alguma entidade.
Ele avançou e pegou um de seus vestidos. Era longo e preto, como todos os outros, pois ela não era do tipo de garota que gostava de cores e brilhos.
– Para onde vai esse?
– Ah... – Havia apenas uma seção com barras altas o suficiente para os longos. Então, ela havia os tirado por nada, apenas para colocá-los novamente. – Aqui. No canto, por favor.
Ele pegou o vestido feito para se usar à noite e o colocou no lugar onde já tinha estado antes. Então, ele se voltou para o próximo, endireitando as ombreiras em um cabide acolchoado de cetim. Antes de colocá-lo no lugar, ele se surpreendeu por baixar a cabeça e colocar seu nariz no decote.
– Tem o cheiro do seu perfume – ele murmurou antes de colocá-lo sobre a haste de bronze.
Foi o que bastou para que um arrepio percorresse dentro dela – no bom sentido. Infelizmente, o formigamento foi substituído por tudo o que estava pairando sobre eles.
– Você já recebeu algum contato... deles?
– Não.
– O que você vai fazer se eles não responderem?
– Eles vão.
Ele não disse mais nada, apenas pegou um vestido com um corpete de veludo e uma larga faixa.
– Vestido de Natal?
– Sim.
– É lindo.
– Obrigada. Isaac? – Quando ele olhou, ela disse: – Eu...
Ele a interrompeu.
– O que é esse som?
– Que som...
O terno caiu de suas mãos quando ela reconheceu o sutil sinal sonoro e se atrapalhou para tirar a corrente do sistema de segurança do bolso. Era certeza, uma luz vermelha estava piscando. “Havia alguém na casa.”
Ela interrompeu o barulho e começou a ir em direção ao telefone ao lado da cama, mas ele segurou seu braço.
– Não. Nada de polícia. Já tiramos vidas de inocentes o suficiente com isso.
Sua arma surgiu e expôs um tubo quase tão longo quando seu punho. Quando ele engatou o silenciador na ponta da arma, olhou em volta e seguiu até o espaço mais abaixo onde o mecanismo do sistema de segurança se encontrava.
Mantendo a arma em mãos, ele arrancou a superfície de metal.
– Entre aqui. E não saia até que eu...
– Eu posso ajudar...
A expressão nos rosto dele fez com que ela desse um passo para trás: seu olhar era frio e totalmente estranho – como se ela estivesse olhando para um vidro fosco... sem esperança de algum dia ver o que estava por trás dele de novo.
– Entre aí, agora.
Os olhos dela encararam a arma e depois se voltaram para sua face rígida e implacável. Era difícil saber o que era mais assustador: a ideia de que alguém estava em sua casa ou o estranho em pé na frente dela. E, então, ficou claro para ela...
– Oh, meu Deus, meu pai!
– Eu cuido dele. Mas não vou fazer isso direito se estiver preocupado com você. – A arma apontava para o buraco escuro que ele tinha aberto. – Vá, agora.
Depositando sua confiança nele, Grier se abaixou, esquivou-se dentro do local e respirou o ar bolorento dos beirais quando Isaac recolocou a grade no lugar. Houve um movimento, um clique, outro movimento, outro clique ao fixar a coisa na parede e, em seguida, pelas frestas, ela o viu sair correndo, silencioso como uma sombra.
Ela olhou o relógio. Ouvia com atenção.
O medo se comprimia com ela dentro dos limites apertados de seu esconderijo, ocupava mais espaço que ela, trazia à tona a imagem de Isaac como um estranho, até aquilo ser tudo o que conseguia ver.
Silêncio.
Mais silêncio.
Que foi prontamente interrompido por uma estridente paranoia em sua cabeça.
Oh, Deus... e se tudo isso não passou de uma armadilha? E se Isaac tinha sido enviado com o único propósito de seduzir seu pai e determinar o quão longe ele iria para expor a agência?
Só que foi ela quem sugeriu isso.
Ou será que a intenção dele era que ela acreditasse nisso?
Contudo, seu perfil dizia que ele precisava de uma motivação moral – e se fosse uma mentira? E se aquilo fazia dele o agente infiltrado perfeito? E se tudo aquilo não passasse de um jogo para que seu pai entregasse os dossiês... antes de o matarem.
E, ainda assim, Isaac a colocou ali para protegê-la.
Só que ela não o reconhecia no momento em que fez isso...
Meu bom Deus, o transmissor de alerta – a luz estava apagada, não estava? Quando ele balançou a coisa em frente a ela na cozinha esta manhã, a luz que ela tinha visto antes estava apagada. O que aquilo significava? E, pensando nisso, o lapso de tempo lhe parecia bizarro: entre o momento em que ele aparentemente se entregou até agora.
Ela tinha que sair dali. Conseguir ajuda.
Grier se contorceu e se apertou atrás dos componentes empilhados do centro nervoso do sistema de segurança. A escadaria oculta que corria no meio da casa fazia parte de sua construção original, foi feita por suspeita e desconfiança de que os britânicos ainda pudessem passar por ali em 1810, cerca de trinta anos depois da Revolução.
Os truques da casa acabaram sendo úteis no presente.
O brilho do sistema de segurança proporcionava iluminação suficiente para que ela encontrasse a lanterna coberta de poeira que ficava pendurada em um prego no topo da escada secreta. Acendendo a luz, ela tateou os degraus antigos, entalhados à mão, deixando suas impressões para trás na poeira. Ao prosseguir, teias de aranha grudaram em seus cabelos e os ombros foram arranhados pela áspera argamassa dos tijolos.
Quando chegou ao primeiro andar, fez uma pausa. É claro que ela não conseguia ouvir nada devido às grossas paredes, mas o pai dela tinha acrescentado um tubo que parecia fazer parte do sistema de ventilação. Na verdade, porém, servia como posto de vigilância secreto.
Grier subiu e se inclinou para o lado para conseguir enxergar direito, apoiando-se sobre alguns tijolos que estavam mais firmes que os outros.
Quando ela apertou os olhos, sua visão trespassou as ripas e focou-se na entrada da frente. Se ela se arqueasse um pouco mais e esticasse o pescoço, ela conseguiria ver a cozinha...
Grier abandonou a lanterna e apertou as mãos sobre a boca.
Para não gritar.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
PARAÍSO, JARDIM SUL
Nigel concedeu uma audiência antecipada a seus dois anjos guerreiros favoritos não por causa da bondade que havia em seu coração – apesar do fato de ele, Colin, Bertie e Byron estarem no meio de uma refeição. Contudo, não haveria como mandar esses visitantes embora: ele sabia por que Edward e Adrian estavam chegando e eles não iam gostar do que ele tinha para lhes dizer.
Assim, ele sentia que precisava tratar disso pessoalmente.
E, de fato, quando os dois anjos tomaram forma do outro lado do gramado, caminharam ao longo do bosque como os vingadores que eram.
– Sinto muito mesmo – Nigel murmurou para seus assessores. – Mas poderiam, por favor, me dar licença um minuto.
Ele dobrou seu guardanapo damasco e se levantou, pensando que não havia razão para arruinar a refeição dos outros – e o que estava prestes a acontecer verbalmente seria um assassinato gastronômico do tipo mais sangrento.
Colin se levantou também. Nigel preferia fazer isso sozinho, mas não havia como dissuadir o anjo. Nada nem ninguém poderia mudar as ideias de Colin sobre o que teria de sobremesa, muito menos sobre questões de real importância.
Ele e Colin se encontraram com seus visitantes a meio caminho entre o local onde os dois haviam entrado e onde a mesa estava colocada entre as árvores.
– Ela o tem – Edward disse quando os quatro se aproximaram. – Não sabemos como isso aconteceu...
Nigel interrompeu o anjo.
– Ele se entregou para que outra pessoa tivesse uma chance na vida.
– Ele não deveria ter feito isso. Ele é valioso demais.
Nigel olhou na direção de Adrian e viu que o anjo estava em silêncio pela primeira vez. O que era o sinal mais concreto de que havia problemas.
Nigel puxou suas abotoaduras, alisando as mangas de sua camisa de seda dentro de seu terno de linho.
– Ela não vai matá-lo. Não pode.
– Tem certeza disso?
– Há poucas coisas confiáveis nela, mas as regras não foram impostas por ela. Se matar Jim, ela perde não só a rodada, mas o jogo na sua totalidade. Isso vai mantê-la em cheque.
A voz de Adrian percorreu o ar, fina e dura.
– Há algumas coisas piores que a morte.
– Com certeza, você está certo.
– Então, faça alguma maldita coisa. – O anjo vibrava por completo, seu corpo era um presente de natal prestes a ser rasgado em pedaços com ansiedade.
– Porém, nós poderíamos tirá-lo de lá – Edward disse. – Não é contra as regras.
– Claro que poderiam.
Longo silêncio.
Edward limpou a garganta e pareceu dobrar a língua numa contenção educada.
– A imagem que ela nos enviou sugere que ele está preso no mundo dela.
– Ele não está sobre a terra, é verdade.
– Então, como podemos chegar até ele?
– Não podem.
Quando Adrian soltou um palavrão, Edward segurou o braço do outro anjo, mas isso não o calou.
– Você disse que poderíamos tirá-lo de lá.
– Adrian, eu disse “poderiam” no sentido de permissão. Vocês têm permissão de fazer isso dentro das regras. No entanto, eu não fiz um comentário sobre suas habilidades. Neste caso, vocês são incapazes de alcançá-lo sem sacrificarem a si mesmos, deixando-o sem apoio e orientação durante esses momentos inicias e cruciais...
– Seu imbecil.
Antes que Adrian pudesse fazer algo estúpido, Edward transferiu sua força para o pesado peito do cara e o deteve.
Nigel levantou uma sobrancelha para os dois.
– Eu não faço as regras e eu tenho tanta intenção de ser desqualificado quanto meu adversário.
– Você tem... – Adrian engasgou com as palavras e teve que respirar fundo para terminar. – Você tem alguma ideia do que ela está fazendo com ele? Agora mesmo? Enquanto estamos parados em seu maldito gramado e o jantar está esperando por você?
Nigel escolheu as palavras com cuidado. A última coisa que ele precisava era dos dois fazendo justiça com as próprias mãos. Eles já tinham cometido esse erro uma vez, não tinham?
– Eu sei exatamente o que ela está fazendo sobre aquela mesa, por assim dizer. E também sei que Jim é muito forte... o que é a pior tragédia de todas. Pois ela vai recorrer a torturas que... – Não havia razão para continuar: os olhos de Adrian ficaram vítreos como se fosse alguém revivendo um pesadelo. – Eu diria, porém, que Devina não pode mantê-lo por muito tempo ou ela corre o risco de perder. As coisas estão chegando a um limite e, se ela impedir Jim de participar plenamente do que está por vir, então, não haverá uma competição justa.
– E quanto a Jim? – Adrian exigiu, libertando-se do seu melhor amigo. – E quanto ao sofrimento dele? E quanto a ele?
Nigel olhou para Colin, que estava completamente em silêncio. Mais uma vez, sua bela e familiar expressão facial dizia tudo: sua fúria era tão grande e profunda que os oceanos ficariam rasos, se comparados a ela. Ele sempre odiou Devina e isso não serviria de auxílio naquele momento.
No entanto, havia bastante exaltação ali.
Nigel balançou a cabeça com uma sincera decepção.
– Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito. Minhas mãos estão atadas.
– Você sente muito? Você sente muito, seu maldito? – Adrian cuspiu no chão. – Sim, você parece mesmo, seu bastardo frio. Você parece muito desapontado. Imbecil.
Com isso, o anjo se desmaterializou.
– Droga. – Edward murmurou.
– Um palavrão, mas uma palavra adequada para isso. – Nigel olhou para o espaço que Adrian tinha preenchido antes. – É cedo para ele estar tão cansado e frágil com a batalha. Isso não é nada bom.
– Você está brincando comigo, certo?
Ele encarou o anjo.
– Com certeza você deve enxergar a loucura que há nele...
– Para sua informação, chefia, não faz nem quatro dias que Devina usou o cara ao seu bel-prazer. E você acha que ele não vai perder a cabeça agora que Jim está passando pela mesma máquina de tortura? Está falando sério?
– Gostaria de lembrá-lo que você jurou que ele poderia lidar com isso. – Nigel viu-se inclinado para frente em posição de confronto. Afinal, ele poderia ser o capitão deste lado, mas isso não queria dizer que estava isento de socos. – Você me disse que ele poderia suportar o estresse. Você me prometeu e eu acreditei em você. E se acha que vai ficar mais fácil à medida que avançamos, então você está tão louco quanto ele aparenta estar.
Edward ergueu o braço e o puxou para trás como se fosse lhe dar um soco.
– Vá se ferrar, Nigel...
Colin investiu contra o anjo em um piscar de olhos, atacando pela direita, como no futebol americano, derrubou o homem e o imobilizou de bruços sobre a brilhante grama verde.
– Você não toca nele, companheiro – Colin grunhiu. – Eu sei que está chateado e deseja libertar Jim, mas não posso deixar que bata em Nigel. Não vai acontecer.
Nigel olhou para a mesa de jantar. Como Bertie e Byron se viraram para olhar, ele viu que eles estavam sentados como pássaros preocupados, seus corpos se estenderam, os braços caíram nas laterais, os olhos arregalados.
Tarquin tinha deitado no chão e colocado seu longo focinho sob a toalha para que não conseguisse ver nada.
A refeição estava mais que arruinada. E não apenas porque o espetáculo que aconteceu ali foi um desastre de se assistir: na verdade, Nigel não ia ser capaz de colocar nada no estômago. Esse jogo com Devina estava tomando péssimas direções de tantas maneiras... e ele estava paralisado pelas regras.
– Solte-me – Edward resmungou.
Colin deveria ter uma estrutura duas vezes mais leve que a do outro anjo, mas tinha uma força elástica além da média.
– Você vai ser legal, companheiro. Nada mais de socos ou vai ser derrubado outra vez.
– Está bem.
As palavras não foram qualquer tipo de rendição, mas Colin saiu de cima dele de qualquer maneira... provavelmente por saber que só poderia subjugar o homem de novo se fosse necessário.
Edward tirou os pedaços de grama verde que ficaram presos em seu casaco de couro como se fossem lantejoulas.
– Só por que Jim pode sobreviver a isso não significa que seja justo.
Com isso, ele desapareceu no ar.
Após um palavrão silencioso, Nigel observou o desaparecimento da marca deixada pelo corpo pesado de Edward, a grama se erguia, endireitava-se.
– Eles têm razão – Colin disse asperamente. – E a vadia não está jogando limpo.
– Jim se voluntariou para ela.
– Em uma situação que ela projetou. Não está certo e você sabe disso.
– Você quer que nós corramos o risco da derrota? – Ele o encarou. – Você quer perder por causa disso?
Colin espalmou a grama de suas mãos.
– Inferno. Mas que maldito inferno. – Nigel olhou para a marca do corpo que desaparecia em seu gramado.
– Concordo plenamente.
CAPÍTULO 31
A adega não era um lugar aonde Grier ia com frequência. Em primeiro lugar, as garrafas de vinte dólares que enchiam suas taças todas as noites mal valiam o subir e descer de escadas. Em segundo, com sua porta que era como um cofre de banco, seu teto baixo e estantes que percorriam todas as paredes, ela sempre sentia como se lá fosse uma prisão.
E, como pode imaginar... quando seu pai fechou os três no caixão apertado, o peso da presença de Isaac diminuiu o local para o tamanho de uma caixa de lenços de papel e ela sentiu como se não pudesse respirar.
Havia uma mesa polida no centro do espaço e ela ocupou uma das quatro cadeiras. Quando Isaac se sentou à frente dela, foi difícil não se lembrar de quando o encontrou na cadeia: tinha sido bem assim, os dois frente a frente.
Só que agora, apesar do fato que nenhum dos dois estava algemado, ela não conseguia deixar de ter a sensação de que os dois estavam amarrados juntos... e que as rolhas em todas as garrafas eram um pelotão de fuzilamento na iminência de obedecer ao sinal para atirar.
Deus, quando ele foi trazido para se encontrar com ela pela primeira vez, ela não tinha ideia de onde estava se metendo.
Mas, alguém já soube? Quando as pessoas passam por suas vidas cotidianas, escolhas rápidas e eventos aleatórios podem, algumas vezes, girar em um tipo de força centrífuga que as suga e, depois, as expele em um endereço totalmente diferente de onde começaram.
Mesmo quando nunca saem de casa.
Seu pai sentou-se mais próximo da porta e uniu as mãos quando colocou os cotovelos no topo da mesa.
– Estamos seguros aqui embaixo – disse ele, apontando para uma saída de ar no pequeno teto que tinha duas bandeiras vermelhas tremendo com a brisa. – O sistema de ventilação é iniciado a vários quarteirões de distância daqui, assim, não há preocupação com uma contaminação. Há também um túnel e um transmissor de ondas de rádio que irá embaralhar nossas vozes se estivermos sendo gravados.
O túnel era uma novidade e Grier olhou em volta. Até onde ela poderia ver, todas as prateleiras estavam fixadas na parede e o chão era de pedra, mas dado os outros pequenos truques na casa, ela não poderia afirmar que estava surpresa.
Isaac se manifestou.
– Se eu tivesse que ir até alguém e conversar com essa pessoa, quem seria?
– Isso depende de como...
– E quanto à mamãe? – Quando Grier cortou, interrompeu, descarrilou, ela olhou para o rosto de seu pai, procurando por contrações ao redor dos olhos e da boca. – E quando ela morreu? Foi mesmo de câncer?
Embora tivesse sido há sete anos, aqueles dias finais horríveis ainda estavam tão vívidos e ela se infiltrou neles, procurando por rachaduras nas paredes dos acontecimentos, em busca de lugares onde as coisas que pareciam de um jeito pudessem ser de outro.
– Sim. – Seu pai disse. – Sim... ela... Sim, aquilo foi câncer. Eu juro.
Grier exalou e achou difícil imaginar que ela estivesse realmente aliviada por ter sido aquela doença horrível. Mas era muito melhor a Mãe Natureza ter sido a culpada. Muito melhor que aquela tragédia não precisasse ser reescrita. Uma era mais do que suficiente.
Ela limpou a garganta. Assentiu.
– Tudo bem, então. Tudo bem.
Uma mão quente cobriu a dela e a apertou. Como as mãos de seu pai estavam sobre a mesa, ela percebeu que era Isaac. Quando ela olhou para ele, Isaac quebrou a ligação, seu toque durou apenas o suficiente para que ela soubesse que ele estava ali com ela, mas não de maneira que ela se sentisse reprimida.
Deus, as contradições que havia nele. Brutal. Sensual. Protetor.
Com um tapa mental, ela voltou a se concentrar em seu pai.
– Você estava dizendo alguma coisa?
Ele balançou a cabeça e se recompôs antes de olhar para Isaac de novo.
– Até que ponto você está disposto a ir?
– Eu não vou comentar sobre os outros soldados em atividade – disse Isaac. – Mas quanto ao que se tratar das minhas atribuições, vou até o fim. As coisas que fiz para Matthias. O que sei sobre ele e sobre o segundo na linha de comando. Onde os dois me enviaram. O problema é: isso é uma colcha de retalhos... Há muita coisa a qual só conheço em parte.
– Deixe-me mostrar uma coisa.
Seu pai se levantou da mesa e, antes que ela pudesse ver o que ele fez, uma seção de prateleiras veio para frente e deslizou à esquerda, expondo um conjunto de segurança em meio à parede de pedra. A porta resistente foi aberta pelas impressões de toda a palma de sua mão em um painel e o interior não era muito grande – um pouco maior que um bloco de notas na horizontal e não tinha mais que quinze centímetros de altura.
Ele voltou à mesa com uma pasta grossa.
– Isso foi tudo o que consegui reunir. Nomes. Datas. Pessoas. Lugares. Talvez isso ajude a ativar sua memória. – Ele bateu sobre a capa da frente. – E vou descobrir a quem recorrer. Não há como saber com certeza quem está envolvido no círculo de relações de Matthias: conspirações governamentais têm grossas raízes, mas também possuem garras que você não consegue ver. A Casa Branca não é uma opção e é uma questão federal, então, contatos da União não vão nos ajudar. Mas eis o que eu penso...
A voz de seu pai tornava-se mais poderosa a cada palavra, a força crescente do propósito o transformava no pilar que ela sempre acreditou que fosse. E, enquanto ele descrevia os planos, ela sentiu uma mudança no centro de seu coração.
Embora isso se devesse muito a algo que Isaac havia falado. Nenhum de nós sabe no que está entrando até ser tarde demais...
O irmão dela tinha sido um drogado muito amado, um viciado de primeira ordem que teria morrido pelas suas próprias mãos em algum momento – embora essa não fosse uma justificativa para o que tinha sido feito com ele, era a simples realidade da situação. E ela se surpreendeu, na época, em como seu pai ficou desesperado com a perda. Ele e Daniel não mantinham contato há pelo menos um ano antes daquela noite terrível: depois da última internação em mais uma clínica de reabilitação caríssima ter caído no esquecimento, o pai atingiu seu limite assim como muitos pais e familiares faziam. Ele ofereceu tudo o que podia para seu filho, andou com toda dificuldade por uma década nos caminhos da recuperação que deram uma esperança traiçoeira, mas era inevitável que se seguissem longos e obscuros meses em que ninguém sabia onde Daniel estava ou, até mesmo, se estava vivo.
Contudo, seu pai estava inconsolável em sua morte. Ao ponto dele passar uma semana em uma cadeira com nada além de uma garrafa de gim ao seu lado.
E agora ela sabia o porquê. Ele acreditava que era inteiramente responsável.
Enquanto ela o observava falar, notava a idade em seu rosto... as rugas ao redor dos cantos dos olhos e da boca, a ligeira inclinação na linha do queixo. Ele ainda era um homem bonito e, ainda assim, nunca se casou de novo. Será que foi pela bagunça na qual estava envolvido? Provavelmente.
Definitivamente.
Aqueles sinais da idade nele não eram apenas uma questão do tempo. Foi estresse, dor de cabeça e...
Mudando seu foco para Isaac, seu olhar estreito e parecendo um laser era intenso; sua íris pálida brilhava muito com uma luz de “vamos à guerra”. Engraçado, ele não tinha nada a ver com seu pai em termos de antecedentes, educação escolar, exposição, experiência. E, ainda assim, eles eram idênticos em muitos aspectos.
Especialmente unidos na missão comum de fazer o certo.
– Grier?
Sacudindo-se, ela olhou para seu pai. Ele estava segurando algo em sua direção... um lenço? Mas por quê...
Quando ela sentiu algo atingir seu antebraço, olhou para baixo. Uma lágrima prateada se recolhia após a queda de seu olho, aglomerando-se em um pequeno círculo brilhante em sua pele.
Outra escorreu e atrapalhou todo seu esforço – mas, então, as duas uniram forças e a massa duplicou.
Ela pegou o lenço e enxugou suas lágrimas.
– Eu sinto tanto – seu pai disse.
Ela enxugou o rosto e redobrou o linho fino, lembrando-se dele fazendo a mesma coisa quando estavam na cozinha.
– Sabe? – ela murmurou. – Desculpas não significam nada. – Ela apoiou a mão na pasta que ele tinha colocado na mesa. – Isso... o que vocês dois estão fazendo... isso é tudo.
A única coisa que poderia consertar qualquer aspecto sobre isso.
Para interromper a conversa mental, abriu a capa...
Ela franziu a testa e se inclinou. A primeira página era uma impressão da imagem de quatro fotografias de rosto. Todos homens. Todos eles pareciam diferentes versões étnicas de Isaac. Embaixo das imagens, com a caligrafia de seu pai, havia nomes, datas de nascimento, números de cadastro na segurança social, a última vez que foram vistos... embora nem todos os dados estivessem concluídos. E três deles tinham a palavra FALECIDO embaixo de suas fotos.
Ela virou para próxima página e a próxima. A mesma coisa. Tantos rostos.
– Eu quero que Jim Heron entre nessa – Isaac disse. – Quanto mais estiver disposto a ir adiante, melhor...
– Jim Heron? – o pai dela disse. – Você quer dizer Zacarias?
– Sim. Eu o vi mais cedo essa noite e na noite anterior. Eu pensei que ele tinha sido enviado para me matar, mas, ao que parece, ele quer me ajudar... ou é assim que diz.
– Você o viu?
– Ele estava com dois rapazes. Eu nãos os reconheci, mas parecem com caras que poderiam ser das operações extraoficiais.
– Mas...
– Oh, meu Deus. – Grier sussurrou, aproximando uma das páginas. – É ele.
Quando ela apontou para uma das fotos, ouviu seu pai dizendo: – Jim Heron está morto. Atiraram nele em Caldwell, Nova York. Há quatro noites.
– É ele. – Ela repetiu, batendo na foto.
A voz de Isaac soou confusa.
– Como sabia? Grier... como você sabia?
Ela olhou para ele.
– Sabia o que?
– Que era Jim Heron.
Movendo seu dedo, ela viu o nome Zacarias abaixo da foto.
– Bem, eu não sei quem ele é, mas esse é o homem que apareceu no meu quarto na noite passada. Como um anjo.
CAPÍTULO 32
Aquilo não estava funcionando.
Lá no fundo do Inferno, onde ela mantinha suas almas capturadas e onde o ar rarefeito ecoava os gemidos de seus servos oleosos, Devina estava sofrendo de um caso grave de mau humor.
Razão pela qual ela mandou todos embora.
Parando de repente, ela observou o pedaço de carne amarrado com um fio metálico em sua mesa. À luz das velas, Jim Heron era uma obra ao estilo Pollock com sangue, cera negra e outros líquidos de vários tipos, e ele estava tendo dificuldades para respirar através de seus lábios inchados e rachados. Em seu estômago, havia um roteiro de escavações que ela tinha feito com suas próprias garras e as coxas dele estavam bem marcadas com seu nome e seus símbolos.
Seu pênis tinha sido utilizado até ficar tão em carne viva quanto o resto do corpo dele.
E, ainda assim, ele não chorou ou implorou ou sequer abriu os olhos. Nenhuma blasfêmia, nada de lágrimas. Nada.
Ela não tinha certeza se deveria ficar chateada consigo e com seus ajudantes por não terem se esforçado o suficiente... ou se estava se apaixonando pelo bastardo.
De qualquer maneira, ela tinha a determinação de conseguir um pedaço dele. A questão era como.
Devina estava bem consciente de que havia duas maneiras de quebrar alguém. A primeira era de fora para dentro: você esculpia a pele, os ossos e o sexo do indivíduo até que a dor física, a exaustão e a vergonha aniquilavam seu núcleo mental. A segunda era o inverso: encontrar a fenda que havia dentro da pessoa e martelar com palavras até que tudo desmoronasse.
Normalmente, a primeira era suficiente para ela, tendo em conta todas as ferramentas à sua disposição – e também era divertido e, portanto, era por onde ela sempre começava. A segunda era mais complicada, embora não menos satisfatória à sua maneira. Todas as pessoas tinham chaves para abrir suas portas internas; ela só precisava classificá-las e descobrir aquela que a levaria para dentro da mente e do coração do indivíduo.
No caso de Jim Heron... Bem, estava claro que ele ia dar trabalho. E aquilo ainda abriria uma competição pelo brinquedo favorito com Adrian.
O que escolher, o que escolher...
A mãe dele. Sua mãe era uma boa, mas Devina não era capaz de ficar calma para se aproximar da realidade e ele deveria ser inteligente o suficiente para descobrir que ela estava fingindo...
Felizmente, havia outra solução que estava sob seu controle.
Fora do alcance da luz das velas, presas em suas paredes viscosas, as almas daqueles que ela capturou se contorciam. Mãos, pernas, pés e cabeças faziam aparições ondulantes que nunca quebravam a superfície suspensa, o torturado sempre procurava por uma saída.
A satisfação de ver sua coleção a distraiu, mas também a deixou faminta: ela tinha que ter Jim também como um troféu entre os outros. Estava desesperada para tê-lo dentro dela. No início, tinha sido um mero jogo; agora, depois daquela sessão, era muito mais que isso.
Ela queria obtê-lo.
Voltando a focar o rosto dele, ela achou sua expressão quase impossível de compreender. Como um homem poderia ter passado por tanta coisa... e sem sequer fazer uma careta. E também sem medo do que estava por vir.
Contudo, ela ia consertar isso.
E ela gostava de pensar que esse poder nele vinha daquela porção que ela compunha. Aqueles anjos de corações sangrando com sua contenção e moral sacrossantas... fracos, tão fracos. Ao ponto de ela não querer perder o jogo contra Nigel não apenas porque poderia governar a terra e os céus e tudo o que havia entre o sol e a lua... mas porque um bom tapa no traseiro daqueles maricas seria demais.
Contudo, Jim... ele era melhor que isso. Ele era mais parecido com ela no fundo de seu ser.
Que tragédia ter que enviá-lo à Terra em breve; mas o jogo, afinal, tinha que ser retomado. Entretanto, antes de ir, ela estava determinada em fazer uma impressão nele, dar a ele mais um pouco do que seria o Inferno Eterno. Afinal, os cortes em sua pele eram relativamente rasos. Porém, marcas na mente eram muito, muito mais profundas.
E imortais eram especialmente gratificantes nesse sentido, pois, conforme o cérebro persistia, assim era a memória – e isso significava que ela poderia deixar cicatrizes eternas.
Olhando a parede, que se estendia quilômetros acima dela, Devina pensou em sua terapeuta e no trabalho que estavam fazendo juntas. Aquele era um domínio que estava fora dos limites de sua “recuperação”, e sua situação com Jim era mais uma prova de como seu probleminha de acumular objetos viria a calhar.
Você nunca sabe do que pode precisar.
Estendendo a mão, puxou uma das formas mais esbeltas, movendo-a dentre as outras almas, chamando-a até ela. Quando estava no chão, ela convocou a alma e a vestiu da forma corpórea que costumava exibir na Terra.
Devina sorriu frente a isso. Tanta utilidade em um pacotinho tão insosso e esquecível.
Voltando-se para a mesa, ela disse: – Jim? Tenho alguém aqui que você vai querer ver.
Deitado sobre a mesa de Devina, ele duvidou. Duvidou disso, de maneira muito sincera.
Além disso, naquele ponto, visões provavelmente não eram convidativas.
Nada mais doía, o que tornava aquela droga toda muito mais fácil. No entanto, a troca que fez por aquela feliz dormência foi sua consciência recolhida a um canto escuro de seu interior. Ele ainda não tinha deitado a cabeça para tirar um cochilo, mas estava chegando lá: a audição tinha atingido a fase do algodão, onde tudo estava abafado e as coisas estavam bem frias dentro de sua pele.
Os sinais clássicos do choque faziam com que ele se perguntasse se ela tinha, de fato, a capacidade de matá-lo.
Ela não tinha finalizado Adrian, mas será que aquilo não seria um capricho do afeto?
– Vou deixar vocês dois se conhecerem.
A satisfação de Devina não era uma boa notícia, considerando que ela fez todo o inumano possível para acabar com ele afinal... Por quanto tempo? Horas? Tinha que ser.
Passos. Recuando.
Uma porta. Fechada.
Silêncio.
Contudo, alguma coisa estava com ele. Ele conseguia sentir a presença à sua esquerda.
Atrás de suas pálpebras fechadas, ele tinha certeza de duas coisas: Devina não devia ter ido muito longe e, seja lá o que foi que ela trancou com ele, estava perto.
A respiração foi a primeira coisa que ele notou. Macia, suspensa. Do tipo que você pratica quando está em modo de recuperação. Será que era sua própria respiração?
Não. O ritmo era diferente.
Ele virou a cabeça com cuidado em direção a coisa e babou, sua boca se livrou do que ele não conseguia engolir por causa do fio em volta do seu pescoço.
Seja lá o que estava com ele, soltou outra respiração suspensa. E, então, ele ouviu um sutil estalo.
Que diabos era aquilo?
Em dado momento, a curiosidade prevaleceu e ele rompeu uma de suas pálpebras... ou deu uma chance a elas, por assim dizer. Precisou de duas tentativas e ele teve que empurrar as sobrancelhas em direção à testa antes que as porcarias se abrissem...
No início, Jim não conseguiu compreender o que estava olhando. Mas o cabelo loiro não podia ser negado... aqueles cabelos longos e loiros que caiam sobre ombros frágeis.
A última vez que os viu tinha sido há dois dias. No banheiro de Devina.
Estava banhado de sangue.
A garota que tinha sido sacrificada para proteger o espelho de Devina estava vestida com uma capa manchada, seus braços finos cobriam os seios, uma pequena mão protegia a junção de suas coxas. Parecia, como milagre, que ela não estava marcada, mas o trauma estava ali: seus olhos estavam arregalados e horrorizados...
Só que eles não estavam na sala. Eles estavam nele... em seu corpo e nos restos brilhantes e pegajosos de tudo o que tinham feito com ele.
– Não... – A voz dele estava tão fraca que ele precisou puxar mais ar através daquela barreira de arame em sua garganta. – Não olhe... para mim. Afaste-se... Pelo amor de Deus, afaste-se...
Droga. Ele precisava de mais oxigênio, precisava fazer com que ela...
Os olhos dela encontraram os dele. O choque e o terror em sua face disseram mais do que ele precisava saber, não apenas do que tinha sido feito com ela por Devina, mas sobre o que a visão dele estava fazendo com aquela pobre garota.
– Não olhe para mim!
Quando ela se encolheu e retraiu-se, seu temperamento vacilou. Não que houvesse muito para conter – mas ele usou toda sua força naquele grito.
– Cubra o rosto – ele disse com a voz rouca. – Afaste-se e apenas... cubra o rosto.
A garota ergueu as mãos e se virou, sua coluna delicada destacava-se contra a capa conforme tremia.
Jim tinha puxado suas amarras involuntariamente durante a pequena sessão de exercícios com Devina. Agora, ele as empurrava.
– Você está se machucando – ela disse enquanto ele grunhia. – Por favor... pare.
A dor interrompia sua capacidade de fala e levou um tempo para dizer alguma coisa.
– Onde... Onde ela a mantém? Aqui embaixo?
– Na... na... – Sua voz era tão débil e, entre as palavras, seus dentes batiam, o que explicava o clique que ele tinha ouvido. – Na parede...
Seus olhos se atiraram em direção à escuridão, mas a luz das velas formava um bloqueio luminoso que seus olhos não conseguiam ultrapassar.
– Como ela faz isso? – Sem correntes, ele esperava.
E, droga, ele ia ferrar Devina por isso.
– Eu não sei – a garota disse. – Onde estou?
No inferno. Mas ele manteve isso para si.
– Eu vou tirá-la daqui.
– Minha mãe e meu pai... – ela caiu em lágrimas. – Eles não sabem onde estou.
– Vou dizer a eles.
– Como... – Quando ela olhou sobre seu ombro, seus olhos se fixaram sobre seu dorso degradado e ela empalideceu.
Ele balançou a cabeça.
– Não olhe. Prometa... não olhe mais para mim.
Mãos pálidas voltaram àquele belo rosto e ela assentiu.
– Meu nome é Cecilia. Sissy Barten, com ‘e’. Tenho 19 anos. Quase vinte.
– Você mora em Caldwell?
– Sim. Estou morta?
– Quero que faça uma coisa por mim.
Agora, ela deixou cair os braços e olhou para ele com firmeza.
– Estou morta?
– Sim.
Ela fechou os olhos como se outra onda de agitação atingisse seu corpo.
– Esse não é o Céu. Eu acredito no Céu. O que eu fiz de errado?
Jim sentiu algo quente no canto dos dois olhos.
– Nada. Você não fez nada de errado. E eu vou te levar para lá.
Nem que fosse a última maldita coisa que fizesse.
– Quem é você?
– Sou um soldado.
– Como no Iraque?
– Costumava ser. Agora eu luto contra essa vadia... ah, mulher que fez isso a você.
– Eu pensei que estava ajudando... quando a moça me pediu para carregar uma bolsa para ela. Eu pensei que estava ajudando... – Ela inspirou com força como se estivesse tentando se recompor. – Você não pode sair daqui. Eu tentei.
– Eu vou salvá-la.
De repente, a voz dela ficou mais forte.
– Eles machucaram você.
Droga, ela estava olhando para ele de novo.
– Não se preocupe comigo... tem que se preocupar consigo mesma.
Um som, como de algo caindo ou talvez uma porta de metal se fechando, ecoou, assustando a garota e focando Jim. Sem dúvida, Devina chegaria logo e colocaria Sissy de volta ao seu lugar, então, ele tinha que agir rápido. Ele não sabia quando voltaria ali ou como exatamente poderia libertar sua garota.
Sissy, era esse o nome.
– É ela? – Sissy perguntou tensa ao ouvir o som de passos ao longe. – É ela, não é? Eu não quero voltar para a parede... por favor, não deixe que ela...
– Sissy, ouça. Eu preciso que você se acalme. – Ela tinha que ter algo para focar, algo para manter sua mente sã enquanto ele descobria como voltar ali para salvá-la. Sondando sua mente, ele tentou criar uma imagem, algo para acalmá-la.
– Eu preciso que me ouça com atenção.
– Eu não posso voltar para lá!
Droga, o que fazer para que ela se concentre?
– Eu tenho um cachorro – ele desabafou.
Houve uma agitação, como se ele a tivesse surpreendido.
– Você tem?
Quando os passos se aproximaram, ele quis soltar um palavrão.
– Sim, eu tenho.
– Eu gosto de cachorros – ela disse em voz baixa, seus olhos fixos nele.
– Ele é cinza, meio loiro e peludo. Seu pelo... – os passos foram ficando cada vez mais altos e Jim falou rápido. – Seu pelo é grosso, como se fosse feito das sobrancelhas de um senhor idoso e ele tem patinhas. Ele gosta de sentar no meu colo. Ele tem uma perna manca que aparece quando ele corre rápido demais e ele gosta de comer minhas meias.
Uma fungada e uma respiração suspensa. Como se soubesse o que estava se aproximando e ela ia fazer o melhor que podia para segurar a corda de segurança que ele estava tentando oferecer.
– Qual o nome dele?
– Cachorro. Eu o chamo de Cachorro. Ele come pizza e sanduíche de peru e dorme no meu peito. – Mais rápido. Mais rápido com as palavras. – Você vai conhecê-lo, ok? Você vai levá-lo para passear em um gramado e... Sabe quando se dobra uma meia dentro de outra?
– Sim. – Agora havia urgência. Como se ela quisesse o máximo que ele poderia dar. – Uma bola de meia.
– Bolas de meia... é isso. – Rápido, rápido, rápido. – Você vai pegar uma bola de meia, vai jogar e ele vai trazê-la de volta para você. O sol é alto, Sissy. Você pode senti-lo em seu rosto...
– Quando você volta? – ela sussurrou.
– Assim que eu puder. – Ele estava falando de maneira confusa agora, os passos se aproximavam e ele sabia que estavam usando saltos agulha afiados e pontudos.
– Lembre-se do Cachorro. Está me ouvindo? Quando sentir que está perdendo, lembre-se do meu cachorro...
– Não me deixe aqui...
– Vou voltar por você...
O rosto de Sissy estava cheio de lágrimas quando ela estendeu a mão para ele.
– Não me deixe aqui!
Em um instante, ela assumiu a forma que tinha quando ele a viu sobre a banheira, aquela capa desapareceu, deixando-a nua, seu corpo estava profanado, seus cabelos loiros desgrenhados e emaranhados com sangue.
De repente, seus olhos saltaram para um canto distante e seus lábios manchados começaram a tremer.
– Não!
Ela colocou as mãos para cima como se quisesse afastar golpes, curvando-se para se afastar deles...
Dessa maneira, ela se foi. E Devina, a bela e diabólica Devina, entrou sob a luz das velas.
Jim perdeu essa.
Parou na metade.
Perdeu como um filho da mãe.
Quando ele xingou a assassina sangrenta, era tudo sobre a menina. A moça inocente que tinha sido tirada de sua família por um demônio, puxada para um buraco e aprisionada ali... e obrigada a ver o que restou de um homem torturado.
A raiva era uma bomba nuclear que explodia dentro dele...
A luz branca entornou de suas órbitas, explodindo na sala, iluminando as brilhantes paredes pretas que se estendiam para cima em direção ao infinito. A liberação da luz consumiu sua forma física, libertando-o das amarras de Devina, levando-o a percorrer o espaço em uma rajada de moléculas soltas que sopraram as velas e derrubaram seus suportes.
Aglutinando sua forma intensamente, ele se virou... e foi ao ataque de Devina.
Agora, era ela quem se preparava para o impacto, seu cabelo moreno foi arrancado de seu couro cabeludo com o furacão explosivo que ele produziu, a pele de seu rosto foi de encontro a sua estrutura óssea quando ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre o chão de pedra.
Assim que ele a alcançou, Jim reuniu sua nova forma em uma lança certeira e atirou-se direto em direção ao peito dela.
Jim entrou no corpo dela e lançou a vadia longe, todas as partes dela saíram voando, pedaços de sua pele, emaranhados de entranhas escorregadias e quilos de carne vermelha escura se espalharam pelas paredes de sua masmorra.
O que sobrou foi um buraco negro da mesma massa e energia que o compuseram – ele estava pronto para atacá-la assim.
Só que, evidentemente, ela não estava interessada em uma luta corpo a corpo: sua sombra distorcida saiu da sala e desceu um corredor, iniciando uma fuga.
Mas que... Droga!
Jim correu atrás dela...
E se chocou com o equivalente metafísico de uma casa de tijolos.
O impacto chocante da barreira invisível o enviou para trás e ele assumiu sua forma corpórea mais uma vez ao deslizar em carne viva no chão de pedra.
Ele teve um breve momento para soltar um “mas que inferno!” antes que o sinal de fim de jogo do seu corpo piscasse e ele caísse de costa em exaustão absoluta.
Quando sua raiva passou, nada mais havia nele e um cansaço fatal sangrou de seu coração que batia de maneira estranha e se espalhou por ele como uma erva daninha que se enraíza e floresce. Não mais sendo capaz de erguer a cabeça, ele deixou a coisa descansar na pedra e apenas respirou, mal notando que o ar estava saturado com cheiro de morte recente e com uma pitada acre da fumaça das velas.
– Sissy – ele disse na escuridão. – Estou bem aqui...
Ele não tinha ideia de se ela podia ouvi-lo e não houve resposta. Apenas um som estranho, fundido... sem dúvida, as almas tentando se livrar de sua prisão.
Ele odiava pensar que sua garota estava presa lá.
Odiava o fato de tê-lo visto daquela maneira.
Com esse pensamento, a dor o incomodou como se tivesse sido esfaqueado com uma barra de ferro. Oh, Deus... aquela pobre criança...
Um aumento súbito de emoção veio sobre ele em uma onda: nu, arrasado e imundo, Jim encolheu-se para um lado e chorou sufocado e com grande sofrimento, suas lágrimas quentes e salgadas percorriam a pele de seu rosto arrasado.
Ele nunca se preocupou em se machucar. Nunca. Mas suas falhas... seus fracassos eram insuportáveis. E agora havia duas mulheres que ele não tinha sido capaz de salvar: sua amada mãe e Sissy... Nas duas ocasiões, ele chegou tarde demais no local, nas duas ocasiões, o dano já havia sido feito antes dele chegar.
Com uma precisão horrível, ele viu sua mãe no chão da cozinha da fazenda, nada além de estraçalhada... e Sissy sobre a banheira.
Agora Sissy também, tentando se afastar do demônio.
Era demais para suportar, o peso de suas falhas era grande demais para suportar, quanto mais para continuar a lutar...
O som de seu nome abriu seus olhos e diminuíram os soluços.
Com um esforço enorme, ele virou a cabeça e olhou para cima.
Muito, muito, muito acima, a uma galáxia de distância de onde ele estava, um pontinho de luz se recolhia e ficava mais forte, começando de novo como se fosse a cintilação minúscula de um pisca-pisca na árvore de Natal... e, então, se intensificou para 25, depois 60 e, então, parecia uma lâmpada de 100 watts.
A iluminação caía sobre ele com a velocidade e a eficiência de uma pluma através do fino ar... dentes de leão soprados pela boca de uma criança... flores do campo sob uma brisa suave...
Levou um tempo bastante longo para que sua mente abrangesse a desconexão entre seu desespero épico e o delicado caminho de luz. Fechando os olhos, ele parou de assistir e se entregou ao estremecer aleatório de seu corpo espancado.
– Jim.
Uma voz masculina. Sobre ele.
Jim abriu as pálpebras para ver que a luz havia se tornado um homem de cabelos escuros com asas douradas magníficas.
Colin.
O arcanjo número dois.
– Ei, companheiro – o cara disse ao se ajoelhar. – Eu vim para te tirar daqui.
De algum lugar, só Deus sabe de onde, Jim convocou energia suficiente para falar.
– Leve-a no meu lugar. Deixe-me aqui... leve-a no meu lugar. Sissy. A menina...
– Isso eu não posso fazer. Eu não deveria estar aqui agora. – O anjo se inclinou e reuniu a forma arrasada de Jim em seus braços. – Mas você vai precisar de um tempo para se recuperar antes que possa sequer se sentar, quanto mais sair daqui por si mesmo. E a guerra continua sem você.
Nenhum argumento para seu nível de energia, mas Deus, ele gostaria que Sissy estivesse um milhão de quilômetros longe dali.
– Deixe-me – ele gemeu.
– Não nessa vida. Você quer Sissy liberta? Derrote Devina. É assim que vai libertar sua garota desse pesadelo.
Quando começaram a levitar, a cabeça de Jim pendeu para um lado e ele os viu subir, subir, afastando-se metros e metros – inferno, eram quilômetros – das paredes negras. Ao longo do caminho, a forma brilhante de Colin iluminava o deslocamento, agitando a superfície, e rostos se sobressaíam na opacidade, através da barreira líquida, como se aqueles que estavam presos tentassem vê-los, pegá-los, juntar-se a eles na fuga. De todas as direções, mãos se estendiam. Contorcendo-se em formas grotescas como se a barreira maleável da prisão provasse ser rígida demais para ser trespassada.
Onde estava a garota dele? Sua bela e inocente garota que...
O cérebro de Jim estava esgotado, a trama de seus pensamentos se desembaraçava, a consciência começou a desistir daquele fantasma e se aprofundou no berço rígido das paredes de seu crânio.
Enquanto desmaiava, sua última missiva mental foi uma oração: que Sissy se lembrasse do Cachorro e se agarrasse a essa esperança até que Jim pudesse fazer disso realidade.
CAPÍTULO 33
Na adega, com a imagem de Jim Heron exposta no dossiê, Isaac estava certo que os dois Childes tinham perdido a cabeça.
– Ele não está morto. – Isaac lançou olhares para pai e filha. – Eu não tenho certeza do que você viu ou o que ouviu...
– Ele esteve no meu quarto. – Grier balançou a cabeça. – Foi assim que fiquei sabendo que você estava tendo o pesadelo. Ele apontou o caminho e, em seguida, eu fui até você. Pensei que era um sonho, mas por que identifiquei o rosto dele na foto de maneira tão clara?
– Porque você o viu. Ontem à noite, na luta. Ele estava comigo.
– Não, ele não estava.
Certo. O cara esteve bem na frente dela.
– Você disse que era um anjo.
– Bem, parece que ele tinha asas.
Teoricamente, era possível que Heron tivesse feito uma visita a ela – mas com o alarme de segurança, era possível concluir que ele deve ter ficado distante das portas francesas da sacada. Ao acordar e ficar meio desorientada, ela concluiu que Jim estava do lado de dentro. E isso foi apenas uma coincidência com o pesadelo... Assim como as asas? Jim Heron nunca foi santo, muito menos um anjo. Seja lá o que ela tinha visto, devem ter sido reflexos dos vidros. Tinha que ser.
O pai de Grier falou.
– Estou dizendo, ele está morto. Eu recebo um alerta de rastreadores na internet com os nomes dos agentes que conheço... e ele levou um tiro em Caldwell, Nova York, há quatro dias.
Isaac revirou os olhos.
– Não acredite em tudo que lê. Eu falei com o cara no jardim dos fundos ao anoitecer. Frente a frente. Confie em mim, ele está vivo e precisamos dele. – Isaac ficou em pé. – Os amigos dele estão vigiando a casa enquanto conversamos e, pessoalmente, acho que Heron declarou uma guerra velada a Matthias, então, tenho plena certeza de que podemos chamá-lo para trabalhar conosco, concluindo que eles ainda não o mataram. Acredito que o status dele é de desaparecido em ação, no momento.
– Espero que possa agregá-los, então, pois quanto mais pessoas para acompanhá-lo, melhor. – Childe bateu uma de suas mãos sobre os dossiês. – Deve revisar tudo isso essa noite, preencher as lacunas, tentar encaixar o que sabe... mesmo que não queira entregar seus companheiros soldados, isso pode ajudar nas suas lembranças. Vou subir até o corredor do banheiro e usar meu telefone de segurança para fazer algumas ligações e estabelecer as coisas o mais rápido que puder.
– Entendido. Mas eu gostaria que o senhor ficasse longe das janelas e não saísse da casa.
– Vou ser cuidadoso. – Childe lançou um olhar à sua filha. – Prometo.
Quando o pai de Grier desapareceu escada acima, Isaac verificou o transmissor de alerta. O aparelho ainda mostrava que o sinal tinha sido enviado, mas ainda não tinha recebido resposta. O que significava que ele ou estava muito abaixo do solo naquela adega para receber isso... ou Matthias estava dando um tempinho para entrar em contato.
Ele olhou para Grier.
– É melhor eu ficar lá em cima por um tempo no caso deles tentarem entrar em contato comigo.
– O que você vai fazer? Se eles quiserem se encontrar com você imediatamente?
– Tenho uma margem de tempo até eu me entregar. Mas seu pai precisa fazer alguns milagres rapidamente. – E, por favor, Deus, faça com que Jim Heron esteja bem... e que apareça logo.
Ela acariciou os dossiês com sua mão elegante.
– Ele é bom com milagres. Na verdade, é a especialidade dele. Você deveria vê-lo negociando. – Seus olhos baixaram até a pasta. – Vou ficar aqui. Quero ver se reconheço algum desses homens. Havia muitos que batiam na porta durante a minha infância e eu sempre me perguntei quem eles eram.
Quando ela ficou em silêncio, ele deu um passo adiante. E depois outro. Em volta da mesa, até que estivesse ao lado dela.
Quando ela levantou o olhar para ele, Isaac colocou para trás com cuidado uma mecha de cabelo que estava em seu rosto.
– Não vou perguntar se está bem, pois como poderia, não é?
– Você já sentiu... como se não reconhecesse sua própria vida?
– Sim. E isso foi o que me levou a mudar.
Bem, aquele tinha sido o primeiro passo. Ele estava começando a acreditar que ela era o segundo. E com o pai dela e Jim Heron... três era o número mágico. Se Deus quisesse.
– Sabe de uma coisa? – ela disse. – Estou realmente feliz em ter te conhecido.
Isaac recuou.
– Pelo amor de Deus, como pode dizer isso?
– Você foi a chave que destrancou as mentiras. – Ela voltou a encarar a foto de Jim Heron. – Acho que sem você nada disso seria esclarecido. Apenas algo que pudesse estilhaçar assim...
Quando ela não completou, ele deu um passo para trás.
– Sim. Esse sou eu.
Ela assentiu de maneira distraída, virou a página e se perdeu nos rostos dos homens que eram exatamente como ele... homens que haviam arruinado a família dela.
Estilhaçado.
Será que os agentes que tinham matado seu irmão estavam ali? Com algumas notas?
De alguma maneira, ele duvidava que o pai os colocasse ali.
– Posso lhe servir um pouco de vinho? – ele perguntou, antes de sair.
Grier sorriu um pouco.
– Estou cercada disso.
– Verdade. – Ele deveria ter oferecido café. Água. Cerveja. Uma troca de óleo. Qualquer coisa que ele pudesse fazer por ela ou dar a ela para acalmá-la.
Bem, agora, com essa brecha, havia algo melhor que poderia fazer. Ele poderia deixá-la.
– Vou estar lá em cima. – Quando ele alcançou a porta, olhou para trás. Ela estava enterrada nos dossiês, sobrancelhas tensas, braços no colo ao inclinar-se sobre a mesa.
Sim, deixá-la tornaria as coisas muito melhor.
Ele se virou e subiu as escadas para a cozinha de dois em dois degraus. Parando na base da escada, ele ouviu alguma coisa. Não um som. O que fazia sentido uma vez que o pai dela tinha se trancado em um banheiro protegido.
Droga, ele não acreditava que estava prestes a denunciar Matthias. Mas, às vezes, a morte natural era boa demais para alguém. Melhor que apodrecer atrás das grades ou ficar tão aceso quanto a Times Square em uma cadeira elétrica.
Era quase como se ele estivesse destinado a encontrar Grier e seu pai nesse exato momento de sua vida – os dois tinham sido predestinados a lhe mostrar algo muito mais honroso do que havia planejado fazer.
Contudo, Jim Heron se mostraria importante também.
Apalpando uma de suas armas, saiu para o jardim pela porta dos fundos.
Evitando a luz que era sensível ao movimento, ele aguardou nas sombras sem fazer barulhos e, claro, um dos amigos de Jim se aproximou um momento depois. No instante em que colocou os olhos no cara, estava claro que o clima permanecia ruim: o cara com a trança tinha os lábios apertados e o olhar rígido como de um homem que ainda não sabia onde um dos membros de seu time estava.
– Jim ainda não pôde vir? – Isaac perguntou. Mesmo sabendo que a resposta era um claro “não”, dado àquela expressão.
– Espero que possa vê-lo pela manhã.
Isaac olhou para seu relógio.
– Não sei se tenho todo esse tempo.
– Arranje algum.
Fácil para ele dizer.
– Vai me dizer se ele aparecer?
Quando o cara assentiu, Isaac ficou muito preocupado.
– Ele está bem? – Quando o cara balançou a cabeça devagar, Isaac soltou um palavrão.
– Você vai me dizer o que está acontecendo? – Silêncio. – Sabe? Para sua informação, as pessoas pensam que ele morreu.
– Tudo que posso dizer é que... neste momento, ele gostaria de estar morto.
Adrian observou enquanto Eddie conversava com Rothe perto da porta dos fundos e mesmo Ad sendo intrometido como ninguém, ele não se importava com o que estavam dizendo.
Nigel. Aquele filho da mãe do Nigel.
Pensava que era o “Sr. Acima de Tudo Quanto é Mais Sagrado”.
Que estava mais que disposto a deixar seu maior trunfo ser usado e abusado pelo inimigo apenas porque era bichinha demais para arregaçar as mangas e nocautear Devina.
Enquanto isso, Jim era um equipamento de ginástica para um bando de babacas pervertidos.
Cara, ele apenas veio com aquela história de não poder fazer nada. Se Ad tivesse um de seus amigos capturado e ele pudesse libertá-lo? Não importava o que ele tivesse que fazer, o sacrifício que isso fosse requerer, por onde tivesse que passar: ele traria o pobre filho da mãe de volta. E onde estava seu chefe agora? Jantando.
Aquilo fazia com que ele desejasse enfiar a sobremesa no traseiro de Nigel.
Adrian esfregou o rosto com tanta força que quase arrancou o nariz. O problema era: a pequena oficina de Devina não era acessível a ele ou a Eddie, a menos que saltassem através de seu espelho – caso contrário, ela tinha que levá-lo até lá... e ela o liberava dali apenas quando estivesse bem satisfeita.
Nunca antes.
Foi por isso que eles foram até Nigel. Havia rumores de que arcanjos poderiam descer ao inferno sob certas circunstâncias – ninguém sabia exatamente o que aquelas mocinhas tinham que fazer ou como funcionava. Contudo, a moral da história era que aqueles quatro pesos-pena eram sua única esperança...
Como se seu nome tivesse sido pronunciado em vão, Colin apareceu do nada, os cabelos escuros do arcanjo surgiram em frente ao rosto de Adrian.
– Droga! – Ad falou entre dentes ao pular para trás e segurar-se em um arbusto – que rapidamente se quebrou ao meio com seu corpo pesado.
Ele aterrissou como um saco de areia, mas não ficou parado. Levantando-se, assumiu uma postura que exigia uma explicação: aqueles rapazes não costumavam aparecer à toa na Terra.
– O que você está...
– Eu o tirei de lá.
Ad piscou, de repente ele não entendia o idioma. Espere um minuto. Ele tinha acabado de ouvir que...
– Jim? Você está falando de Jim?
– Está livre.
– Mas Nigel disse...
– Não estou discutindo isso. Eu tinha a opção de tirar alguém do covil de Devina e coloquei o pobre rapaz no hotel em que estão hospedados... ele precisa de cuidados.
Eddie se aproximou.
– Você o tirou de lá? Mas eu pensei que Nigel...
– Eu tenho que ir. – Colin deu um passo para trás e começou a desaparecer. – Vão ajudá-lo. Ele precisa.
– Obrigado. – Ad respirou, aliviado e enjoado: a recuperação de alguém que passou por uma das sessões de Devina era terrível. Principalmente porque as memórias daqueles momentos eram muito vívidas.
Colin balançou a cabeça ao desaparecer, sua voz era demorada: – Isso simplesmente não foi certo.
– Estou indo para o hotel – Adrian disse, desfraldando suas asas para se elevar no ar. – Fique de olho em Isaac...
Eddie segurou o braço dele com força.
– Deixe-me cuidar de Jim.
– Não.
– Essa não é bem sua área, Adrian. – O aperto de Eddie o manteve no chão, aquela grande mão espremia seus ossos e músculos. – E sabe disso.
– Pro inferno que não é.
Libertando-se, ele deu três saltos e saiu voando pelo ar, aprofundando-se na noite e impulsionando-se para oeste. O voo de volta para onde estavam hospedados foi irregular e acidentando – mas não por causa do vento. Era mais porque Eddie tinha razão, o filho da mãe.
Quando Ad chegou ao hotel, ele queria ir até os quartos atravessando as paredes, mas decidiu não arriscar: uma vez que o papel de bala interior que o envolvia estava solto e se debatendo, ele caiu no gramado e seguiu pela recepção. Ele tinha a sensação de que estava distraído e enjoado demais para atravessar madeira e concreto com sucesso.
O problema era: ele sabia exatamente como Jim estava.
Ao alcançar a recepção, uma mulher simpática atrás da mesa o cumprimentou: – Boa-noite, senhor. – Mas ele apenas acenou e iniciou uma corrida. Não houve espera pelo elevador, um casal estava fazendo check-in com seus filhos e tinham um carrinho cheio de bagagens. Mas mesmo com aquela situação tão conveniente, ele não era capaz de esperar tanto tempo para que as portas se abrissem para ele.
Pelas escadas. De dois em dois degraus. Algumas vezes três.
Quando chegou ao último andar, seu coração estava a mil por hora e não apenas porque tinha se exercitado. Ele não tinha a chave do quarto de Jim, então, pegou a sua mesmo e deslizou no vão da fechadura.
Ele abriu o caminho como uma explosão.
– Jim? Jim?
O brilho do banheiro iluminava a cama desarrumada onde ele e Eddie tinham estado com aquela garota na noite anterior, as roupas também estavam espalhadas por toda parte.
A porta que levava ao quarto de Jim estava meio aberta, o quarto estava escuro.
– Jim...?
Ele sabia que o anjo estava lá. Ele podia sentir o cheiro da fumaça de vela, do sangue fresco e de... outras coisas.
A pressa que havia no rapaz evaporou quando a realidade do que estava prestes a ver agarrou seu peito e o sufocou. Mas ele não ia voltar atrás. Ele era um idiota de primeira ordem, sempre foi. Contudo, não era um maricas para fugir de situações difíceis.
Adrian passou pela porta entre os dois quartos e se inclinou.
– Jim.
A luz no banheiro atrás dele cortava um caminho ao longo da escuridão e parava aos pés da cama do anjo como se fosse educada demais para mostrar sua condição.
Depois que Adrian atravessou o batente, precisou de um momento para que seus olhos se ajustassem.
Com um sussurro, ele prometeu: – Eu vou matar aquela vadia...
Jim estava deitado de lado, enrolado em si mesmo, como se tentasse conservar seu próprio calor, e tremia por completo. Um cobertor foi puxado – sem dúvida, pelo arcanjo – sobre seu corpo grande e maltratado e o Cachorro estava bem próximo de seu rosto, ajeitado em formato de bola, sem se mover.
Quando Adrian se aproximou, o animal se moveu um pouco, mas não levantou a cabeça, permanecendo nariz a nariz com Jim.
O anjo parecia estar respirando, seu peito subia e descia, um chiado suave saía por sua boca machucada. Seu cabelo estava embaraçado e havia sangue em seu rosto, feições que, há não muito tempo eram suas, desapareceram graças às feridas enormes.
Adrian sentou-se lentamente.
– Jim?
Sem resposta, então, ele tentou repetir o nome de guerra mais algumas vezes. Em dado momento, as pálpebras de Jim se ergueram.
– Ei... – Adrian sussurrou.
Ele gemeu e, em seguida, seus olhos se fecharam e o corpo estremeceu sob o cobertor como se estivesse tendo um ataque.
Se aquilo era algo parecido com o que Adrian passou – e dada a forma como o cara aparentava, era quase idêntico –, o que Jim realmente queria era uma banheira de água quente seguida por uma ducha. Mas era cedo demais para isso. Medicar primeiro – havia muitos ossos quebrados e contusões para tratar – o que era o peso da dupla natureza de um anjo: ser real e irreal ao mesmo tempo significava que pelo menos metade de você poderia se ferrar muito e a droga não se revertia imediatamente.
Adrian se levantou e foi até o aquecedor que estava debaixo da janela. Girando o botão para o modo “sauna”, ele tirou a jaqueta de couro e fechou a porta que dava para o outro quarto, trancando-os ali. Então, ele sentou na cama, se estendeu sobre o fino cobertor e colocou seu peito nas costa do anjo para aquecê-lo.
Enquanto estava deitado, ouvindo um zumbido que vinha do aquecedor, sentia os tremores ao longo do tronco e dos outros membros de Jim. Parte disso era o processo de cura, que de algumas maneiras era mais doloroso que o surgimento das lesões. E outra parte disso era o frio do choque traumático.
E outra parte eram as memórias, sem dúvida.
Ele queria colocar um braço em volta do cara, mas isso faria com que Jim se sentisse muito desconfortável: quando esteve nessa condição, ele deitou nu, sem sequer um lençol sobre sua pele arranhada.
Depois de um tempo, o calor crescente que se espalhou do aquecedor os alcançou, fazendo arcos e descendo pelo ar. Jim, obviamente, sentiu o fluxo, pois respirou longamente e exalou em um vago suspiro.
Deitando ao lado do outro anjo, Adrian já tinha esperado uma vez que seria assim que Jim acabaria e foi o que aconteceu mesmo, até certo ponto. Ele sabia que Devina queria o cara... desde a primeira missão, desde àquela primeira noite no clube em Caldwell. E ele serviu Jim de bandeja para ela.
Com direito a tudo, até a uma etiqueta indicando “DE/PARA”.
Difícil não se sentir responsável por isso.
Difícil mesmo.
– Vou cuidar de você, Jim – ele disse com voz rouca. – Estou aqui por você, cara.
CAPÍTULO 34
Na adega, Grier passava os dossiês um por um enquanto esperava... e esperava... e esperava mais um pouco...
Finalmente.
– Por que você não me disse? – ela perguntou, sem olhar para trás.
Daniel levou um longo tempo para responder, mas ele não desapareceu: sempre que ele estava por perto, ela conseguia sentir uma pequena brisa e enquanto aquilo acariciava sua nuca, ela sabia que ele ainda estava com ela.
Pensei que ia odiá-lo. E, então, você e ele não teriam mais ninguém.
– Então, você sabia o que aconteceu?
Daniel andou em volta da mesa, com uma de suas mãos plantada no quadril e a outra enterrada em seu cabelo de maneira que os cachos formassem um halo.
Eu estava drogado quando tudo aconteceu... então, achei tudo muito engraçado, papai entrando com tudo com três caras de preto. Achei que aquilo era sua versão de uma intervenção para me ajudar – uma história em quadrinhos barra pesada. Mas quando eles colocaram a agulha no meu braço ele começou a gritar e foi aí que percebi... aquilo não era engraçado.
Os olhos de Daniel encontraram os dela.
Eu nunca o vi daquela maneira antes. Para mim, ele era sempre tão distante e sem emoção. Foi... a reação que procurei durante toda minha vida, o amor visceral pelo qual buscava. Entenda, eu era como a mamãe, não como você e ele. Eu queria mais do que aquela desaprovação fria – e consegui, só que já era tarde demais. Ele deu de ombros. Olhando para trás, vejo que eu era carente demais e ele não sabia o que fazer com um filho que não tinha sido feito para usar um uniforme militar. Água e óleo. Eu deveria ter lidado com isso de maneira diferente, mas não o fiz.
– E ele também não.
Não é culpa de ninguém. Foi... o que foi.
Grier inclinou-se em sua cadeira, pensando na maneira como seus familiares tinham se alinhado na vida: ela e seu pai de um lado; Daniel e sua mãe de outro.
Não foi culpa dele – seu irmão disse com um tom severo que ela nunca tinha ouvido dele antes. A forma como acabei minha vida... ele gritava, Grier... e, então, eu estava morrendo, e o ouvi dizendo várias vezes: “Danny... oh, Danny, meu garoto... meu garoto...”
Quando a voz de Daniel se quebrantou, ela foi compelida a se levantar e se aproximar dele. Antes que percebesse o que estava fazendo ela envolveu os braços em volta...
De si mesma.
Por favor, não me odeie – ele disse do outro lado, tendo mudado de lugar tão rápido quanto um piscar de olhos.
– Por favor, não fuja – ela respondeu.
Desculpe... Tenho que ir...
Ele desapareceu diante dela como se não pudesse mais conter suas emoções, seu desespero permaneceu no rastro frio que ele deixou para trás.
Ela ficou em pé por um tempo, olhando para o espaço vazio que ele tinha acabado de ocupar. Ela e seu pai eram do mesmo tipo e fizeram um acordo intelectual onde trancavam os outros do lado de fora, não foi isso? Sua mãe e irmão tinham seus vícios enquanto ela e seu pai estavam em sintonia com a lei, suas carreiras e suas paixões externas.
Ela sabia disso de alguma maneira... e talvez aquilo tenha feito parte de sua corrida para salvar Daniel. O vício de seu irmão e seus esforços para tirá-lo disso tinha sido a ligação que não tiveram durante a infância: ela sempre se culpava... e, por um breve momento, naquela noite, ela culpou seu pai.
Agora... ela tinha raiva do homem com o tapa-olho. Uma raiva terrível. Se Daniel estivesse vivo, talvez eles tivessem resolvido tudo isso. Os três perdoariam um ao outro dos erros do passado. E se dirigiriam a... a algo que sua família desfrutava apenas superficialmente. Afinal, privilégios, dinheiro e educação poderiam cobrir uma infinidade de problemas... e não garantiam que a proximidade vista em um cartão de Natal fosse realmente mais que uma mera pose feita uma vez por ano para um fotógrafo.
Balançando a cabeça, ela voltou para sua cadeira e encarou os dossiês.
Isaac ia igualar o placar da família, ela pensou. Por ter revelado o bastardo maníaco que assassinou seu irmão e não fez nada além de arruinar seu pai.
Folheando as fotografias, ela reconhecia cada homem, pois tinha analisado cada página repetidas vezes enquanto esperava pela aparição de Daniel. Havia uma centena de fotos ou mais, mas havia um total de uns quarenta homens, capturados em vários ângulos, ilustrando as páginas produzidas ao longo de anos. Dentre os muitos rostos, havia cinco que ela reconheceu... ou pelo menos achou que os tinha visto antes. Difícil saber... de alguma maneira, eles pareciam tão semelhantes.
A fotografia de Isaac estava lá e ela voltou a revê-la. A foto era clara, capturada bem em cheio. Ele estava olhando diretamente para a câmera, mas ela tinha a impressão que ele não sabia que estava sendo fotografado.
Sério. Deus, ele parecia tão sério. Como se estivesse preparado para matar.
A data de nascimento sob seu nome confirmava a idade que ela já sabia e havia algumas anotações sobre países estrangeiros onde ele tinha estado. E, em seguida, havia uma linha que ela tentava entender: Correção moral necessária. Ela tinha visto a frase apenas em dois outros perfis.
– O que você está segurando?
Grier pulou ao som da voz de Isaac, a cadeira gritou ao arranhar o chão. Agarrando seu peito, ela disse: – Jesus... como você faz isso?
Pois, considerando tudo, ela preferia não ser pega encarando a foto dele.
– Desculpe, só pensei que gostaria de um café. – Ele se aproximou, apoiou uma caneca e, em seguida, voltou à porta. – Eu deveria ter batido.
Ao fazer uma pausa entre os batentes da porta, vestia apenas o moletom de capuz que usava como travesseiro, seus ombros eram muito largos ao longo da extensão de tecido cinza. E considerando as últimas quarenta e oito horas, ele parecia incrivelmente forte e focado.
Seus olhos se voltaram para o café. Tão pensativa. Muito pensativa mesmo.
– Obrigada... e desculpe. Acho que apenas não estou acostumada com... – um homem como ele.
– Vou anunciar minha presença de agora em diante.
Ela pegou a caneca e tomou um gole. Perfeito: simplesmente com a quantidade certa de açúcar que ela gostava. Ele a observou, ela pensou. Viu o quanto ela adicionou em algum momento, mesmo não estando consciente disso. E ele se lembrou.
– Está olhando para mim? – Quando ela levantou o olhar, ele assentiu com a cabeça em direção aos dossiês. – Para minha foto?
– Ah... sim. – Grier interrompeu a frase. – O que isso significa exatamente?
Ele andou em sua direção e se inclinou. Quando encarou os detalhes descritos sob seu rosto, a tensão nele era palpável, todo seu grande corpo ficou rígido.
– Eles tiveram que me dar um motivo.
– Antes de você matar alguém.
Ele assentiu e começou a andar ao redor, indo em direção às garrafas de vinho. Ele pegou uma, olhou o rótulo, voltou a colocar no lugar... passou uma a uma.
– Que tipo de motivos eles lhe deram? – ela perguntou, bem ciente de que as respostas dele sobre isso significava muito para ela.
Ele fez uma pausa com uma embalagem de Bordeaux nas mãos.
– Do tipo que faz com que isso pareça certo.
– Como o quê?
Seus olhos viraram em direção a ela e Grier fez uma pausa. Eles estavam tão tristes e vazios.
– Diga-me – ela sussurrou.
Ele colocou a garrafa de volta no lugar. Distanciou-se um pouco das prateleiras de madeira.
– Eu só fazia isso com homens. Nenhuma mulher. Havia alguns que conseguiam fazer isso com mulheres, mas eu não. E eu não vou lhe dar exemplos específicos, mas o absurdo de uma filiação política não era suficiente para mim. Matar um monte de gente ou estuprar mulheres ou explodir algumas mer... er... coisas? É uma história bem diferente. E eu precisava visualizar algumas provas com meus próprios olhos... vídeo, fotografia... corpos que foram marcados.
– Você já recusou alguma tarefa?
– Sim.
– Então, você não mataria meu irmão.
– Nunca – ele disse sem hesitar. – E eles nem sequer teriam me pedido. Da maneira como Matthias encarava isso, eu era uma arma que funcionava sob determinadas circunstâncias e ele me tirava do coldre em momentos apropriados. E, você sabe... Eu percebi que tinha que sair das operações extraoficiais quando me dei conta de que não era diferente das outras pessoas que eu matava. Todos eles sentiam como se as atrocidades que cometiam eram justificáveis. Bem, então, aquilo fazia de nós espelhos que refletiam um ao outro. Claro, de um ponto de vista objetivo, qualquer um concordaria comigo sobre isso, mas não era o suficiente.
Grier exalou longamente. Ele era aquilo em que sempre acreditou, pensou ela.
– Como assim? – ela disse.
De repente, ela achou que tinha pensado em voz alta.
– Eu sempre disse a Daniel... – Ela fez uma pausa, perguntando-se se estava tudo claro dentro dela para continuar. – Eu dizia que nunca era tarde demais. Que as coisas que ele tinha feito no passado não definiam o futuro. Acho que no final, ele desistiu de si mesmo. Ele roubava do meu pai, de mim e de seus amigos. Ele foi preso assaltando uma casa e também por roubar um automóvel, em seguida, ao tentar saquear uma loja de bebidas. Foi assim que me envolvi com as causas voluntárias. Eu entrava e saía de várias cadeias nos últimos cinco anos antes de sua morte. Eu sentia que estava ajudando... mas talvez eu pudesse fazer isso com outra pessoa, sabe? E eu fiz... Eu ajudei outras pessoas.
– Grier...
Ela fez um gesto com a mão quando sua voz ficou embargada. Ela terminou de falar chorando. Não passaria disso e nada mais poderia ser mudado.
– Você quer continuar com isso?
Quando ela indicou os dossiês, ele deu de ombros e foi até a porta, ficando exposto apenas por um pequeno vão contra o batente.
– Eu só vim mesmo para ver como você estava.
No ar rarefeito, seus olhos de pálpebras baixas a aqueceram de dentro para fora. Ele era uma grande contradição... entre seu trabalho onde foi treinado para matar e seu coração de escoteiro.
Ela deu uma olhada para a foto dele.
– Parece que está procurando alguma coisa aqui.
– Na verdade, eu estava prestes a embarcar em um avião. Tive a sensação de que alguém estava olhando, mas não conseguia dizer de onde vinha esse olhar. Estava esperando em uma base aérea para viajar ao exterior. – Ele limpou a garganta como se estivesse varrendo a memória de sua mente. – Seu pai dormiu lá em cima. Ele passou uma duas horas no telefone, até onde vi.
– Já passou tanto tempo? – Ela olhou para seu relógio e ao movimentar o pulso, tomou consciência de cada articulação de seu corpo. Esticando os braços sobre a cabeça, sua coluna estalou.
– Como as coisas estão indo?
– Eu não sei. Antes de deitar, ele me disse que se conseguirmos fazer tudo até amanhã à noite, estaremos bem. Ele fez múltiplos contatos desde a CIA, Departamento de Segurança Nacional e gabinete presidencial e ficaremos bem aqui para que eu não precise me deslocar. A peça que falta é Jim Heron – nós ainda estamos esperando que ele volte – embora, se for preciso, seguiremos sem ele.
– Você recebeu alguma... resposta? Deles?
– Não.
O medo passou por suas costelas e atingiu seu coração como uma carga de bateria.
– Você pode ficar até amanhã à noite?
– Se for para ser dessa maneira, sim.
Ele parecia tão seguro e ela precisava acreditar naquela confiança: seria uma tragédia sem limites para ele ser interrompido agora, quando estava tão perto da liberdade que desejava.
Estranho que alguém que tinha conhecido há apenas alguns dias tivesse se tornado tão importante para ela.
– Eu estou orgulhosa de você – disse ela, deslizando o dedo sobre sua fotografia.
– Isso significa muito para mim. – Pausa. – E obrigado por me mostrar o caminho. Eu não seria capaz de fazer isso sem você.
– Sem meu pai, você quer dizer – ela contradisse suavemente. – Ele tem os contatos.
– Não. Você é a única.
Ela franziu a testa, pensando que era um jeito engraçado de responder.
– Quero que responda algo para mim.
– Diga.
Seus olhos encontraram os dele.
– Quais são as suas chances. De fato.
– De sair dessa com vida?
– Sim. – Quando ele apenas balançou a cabeça, ela franziu a testa para ele. – Lembre-se, acabamos com toda aquela coisa de “proteger a garota frágil”.
– Meio a meio.
Bem, não é que aquilo deu um nó em sua garganta?
– Isso é ruim, hum?
– Quer alguma coisa para comer com o café? Não sou nenhum chefe de cozinha, mas vi algumas sobras na geladeira e posso colocar no micro-ondas. – Quando ela recusou com a cabeça, ele insistiu. – Você tem que comer.
– Eu prefiro fazer sexo com você – ela soltou.
Isaac tossiu. Na verdade, tossia como se alguém tivesse dado um soco em seu peito.
– Desculpe ser tão direta. – Ela deu de ombros. – Mas convenções sociais estão bem longe da minha lista de prioridades agora. E eu tenho a sensação de que não vou te ver depois de amanhã à noite, tanto por que você pode ser tomado sob custódia federal, quanto por... – Ela respirou fundo. – Quero um bom pedaço de você antes que se vá. Algo para lembrar-me de você em minha pele, não apenas em meu cérebro. Lá em cima foi tudo tão rápido e furioso... Eu quero prestar atenção e me lembrar.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
– Achei que você gostaria de se esquecer disso o máximo possível.
– Não de você... eu não quero me esquecer de você. – O canto de sua boca se ergueu um pouco. – Embora eu não acredite ser possível.
Quando ele ficou onde estava, ela empurrou a cadeira para trás e se levantou. A distância entre eles era de três passos e quando ela veio em direção a ele, Isaac se endireitou e puxou seu blusão para baixo como se estivesse se arrumando.
Grier ergueu-se na ponta dos pés e tocou o rosto dele, colocando a palma de suas mãos na sua barba por fazer.
– Eu nunca vou esquecê-lo.
Quando ele lambeu os lábios, como se estivesse com fome daquilo que exatamente ela queria, Grier pegou a mão dele e o levou para o local mais fundo da adega, ao puxá-lo para dentro, os fechou ali.
Ao contrário da primeira vez, quando ela estava ferida e procurava apenas mais do ciclone, agora era apenas ele, o homem, que o impulsionava – não seu zumbido interno.
Ele estava todo ali.
Quando ela se inclinou para beijá-lo, ele colocou suas mãos grandes em seus pulsos e os segurou delicadamente.
– Isso não ajudou lá em cima.
– Sim. Ajudou. Você apenas não acreditou em mim.
– Grier... – O nome dela soou com uma combinação de confusão e desespero: pois as cinco letras foram pronunciadas, ao invés das três habitualmente ouvidas.
– Eu não quero mais falar – ela murmurou, aproximando-se de sua boca.
– Tem certeza?
Quando ela assentiu, ele se inclinou e apertou os lábios contra os dela, puxando-a para mais perto dele.
Ele estava completamente excitado, mais que pronto para ela e, ainda assim, ele recuou.
Antes que ela pudesse protestar, ouviu o clique da fechadura dando a volta e, em seguida, aquelas mãos quentes deslizaram sob sua camisa e em volta de sua caixa torácica, indo até o fim de suas costas. Ao sentir uma pressão suave e gentil, seus pés saíram do chão e ela foi carregada até a mesa.
Afastando os dossiês para um lado, Isaac a deitou, as palmas de suas mãos se movimentavam sobre seus seios enquanto ele se inclinava sobre ela e mantinha suas bocas unidas. Suas calças de ioga estavam fora de suas pernas um momento depois, mas, ao invés de jogá-las, ele as colocou sobre a cadeira onde ela estava sentada. Esperto. Ela poderia ter que se vestir rapidamente.
Um impulso sutil e seus quadris estavam na beirada da mesa... e, em seguida, ele separou o beijo deles e aproximou-se sobre os joelhos.
Se ela achava que já tinha visto os olhos dele queimarem antes, aquilo era nada comparado ao que estavam fazendo agora. Um local de baixa temperatura nunca foi tão quente.
Quando ela se deu conta de onde ele estava se dirigindo, ela se sentou.
– Mas eu quero que seja bom para nós dois...
– Você disse que queria se lembrar de algo. – As mãos dele deslizaram até o topo de suas coxas e as apertaram. – Então, deite de costas e deixe-me fazer meu trabalho. – A língua dele reapareceu – e não é que aquilo a fez aderir ao plano dele?
– Vamos lá, agora – ele murmurou com aquele sotaque sulista. – Deite-se e deixe-me cuidar de você. Prometo ir devagar... bem devagar.
Suas mãos desceram até seus joelhos e abriram suas pernas... e ela se entregou a ele. Seguindo suas instruções ao pé da letra, ela sentiu a rígida mesa contra seus ombros, o ar fresco em suas coxas e um calor selvagem em seu sangue.
Quando ele a encarou através das sobrancelhas, Isaac olhou como se fosse consumi-la.
E ela estava pronta para ser sua refeição.
Abaixando a cabeça, ele foi direto até onde ela necessitava dele, colocando sua boca no sexo dela através da fina calcinha de seda que usava. Uma onda de calor delicioso floresceu e sua mão se esticou, agarrou as calças, as puxou e as colocou na boca para que fosse impedida de gritar.
Se isso já a fazia se sentir tão bem, ela ia fazer barulho: sim, a porta da adega era pesada e seu pai deveria estar dormindo, mas ela não queria correr nenhum risco.
Isaac gemeu contra ela ao se aninhar na seda e, então, ele passou a língua sobre a delicada faixa de tecido que a cobria. Com um palavrão, ela se arqueou de maneira rígida, as unhas arranharam a madeira embaixo dela enquanto as mãos dele mergulharam em suas coxas e os dentes dela mordiam o algodão. E, então, não havia mais nada os separando. Em um momento, sua boca estava sobre a seda, no próximo, ela sentiu um puxão em seus quadris e ouviu o som de algo se rasgando quando a calcinha cedeu...
Oh, Deus... sua língua molhada deslizou direto até seu cerne e se arrastou para cima, partindo-a, deslizando com lambidas seguidas.
Ele foi devagar.
Quando suas grandes mãos se fecharam em sua cintura e a firmaram para baixo, ele produziu um momento doce, a beijando e sugando, aquela língua dele funcionava como mágica que apenas podia ser substituída pela sucção quente e firme de seus lábios. Todo o tempo, ele olhava para ela, olhava seus seios enquanto ela se contorcia sob sua boca.
De repente, como se precisasse tocar aquilo que estava observando, as mãos dele subiram sob a camiseta dela em direção ao que parecia o fascinar. Abrindo o fecho frontal do sutiã, ele tomou posse de seus dois seios, os polegares esfregavam seus mamilos.
Sua respiração bombeava para dentro e para fora através de sua boca aberta e assim que ela estava prestes a chegar ao orgasmo, Isaac recuou e lambeu os lábios brilhantes.
– Venha para mim – disse ele. – Eu quero sentir isso.
E, em seguida, ele estava contra ela mais uma vez, sua língua a penetrava – o que foi o suficiente. A sensação foi liberada, minando para fora de seu sexo e tomando conta de cada centímetro de seu corpo. Quando o turbilhão de faíscas a consumiu, ela estava vagamente consciente de que ele gemia, como se sentisse aquele prazer em primeira mão.
Ele não parou por aí. Fluía em círculos, lambia, chupava... ele continuou abrindo ainda mais as pernas dela, segurando-a no lugar, marcando aquilo na memória dela assim como marcava em seu sexo. Ela nunca iria esquecer...
Um de seus longos dedos, ou talvez dois, penetrou dentro dela e a pressão e o alcance a enviou direto para o topo novamente. Quando outro orgasmo disparou, as mãos dela se fecharam em seu antebraço, suas unhas afundaram em sua carne enquanto sua coluna se contorcia e aquela explosão de prazer a inundava de dentro para fora.
E ele ainda não parou.
Ele era quente, selvagem e implacável.
Ele era o amante que ela nunca, jamais iria esquecer.
Muito menos superar – e isso era o que temia.
Oh, meu bom Jesus...
Isaac olhou por entre as pernas de Grier e quase chegou ao clímax apenas com aquela visão. Ela era uma mulher totalmente desfeita, os restos de sua calcinha branca em volta de seus quadris, sua camisa preta em volta do pescoço, o sutiã pendia para os lados. Seus seios estavam rígidos nas pontas rosadas, seu rosto estava corado e sua barriga se movia em um ritmo de surtos e abrandamentos conforme trabalhava contra ele.
Aquela calcinha na boca dele foi uma das coisas mais sensuais de tudo.
E o gosto dela era ainda mais quente do que isso.
Isaac poderia ficar ali por horas, mas a cada momento ele corria o risco de uma interrupção e ele queria terminar aquilo direito.
Subindo e pairando acima dela, inclinou os joelhos dela até o peito, com isso, seu membro se contorceu até ficar à beira do orgasmo com a visão do sexo dela reluzente todo inchado e aberto para ele. Não houve chances para que as calças fossem forçadas... ele as puxou para baixo o suficiente para que a ereção saltasse... da qual surgiu uma gota na ponta quando ele pensou sobre onde estava indo. Passando a mão sobre sua boca molhada, ele a colocou sobre a cabeça de seu membro, escorregando ainda mais o corpo antes de contorcer a coluna e unir as mãos ao órgão.
Empurrando, ele a observou ao fazer a conexão, olhando-a para acomodar seu membro e ouvindo o gemido dela ao ir mais fundo, atendendo seus desejos.
– Ah, caralh... – O cavalheiro nele engoliu o palavrão. Já o homem das cavernas que havia nele tinha que continuar falando. – Olhe para você... Quero deixar algo para trás... em você.
Ele atirou seus olhos nos dela e começou a se mover, bombando para dentro e para fora, dentro e fora... e, então, ele voltou a olhar para o local onde tinham se unido, o brilho naquilo fez suas bolas ficarem rígidas. Curvando-se para os seios, ele sugou um mamilo e trabalhou nisso com a língua... até que o ritmo abaixo tornasse impossível manter aquela ligação: ele estava falando sério sobre ir devagar, mas a boa intenção não durou muito. O sexo tinha uma dinâmica própria e não passou muito tempo até que a mesa começasse a gemer sob a força de seus golpes e ele teve que abraçar a cintura dela para mantê-la onde ele a queria.
Ao ficar rígida sob ele, Isaac também ficou, tencionando seus molares para não fazer barulho, suas pálpebras se fecharam com força embora quisesse ver o rosto dela ao dar mais uma dose de prazer.
Com seu corpo no dela e a preenchendo por completo... ele estava tão saciado quando um homem no deserto que tinha recebido um gole de água.
Ele não estava nem perto de acabar. Ela queria memórias? Entendido.
Mantendo-os juntos, ele puxou a calça para fora da boca dela, a ergueu e trouxe seus lábios até os dele, beijando-a profundamente enquanto carregava seu peso com facilidade para fora da mesa. Posicionando-a contra a porta lisa, ele agarrou a parte de trás de suas pernas e começou a se mover novamente. Com as mãos emaranhadas em seus cabelos, o calor abrasador e a sensação de urgência tomando conta mais uma vez, o beijo não poderia durar muito – e não durou muito mais que o selar dos lábios. Ele veio rígido dentro dela, promovendo um colapso enquanto seu próprio orgasmo escorria.
O alívio foi um luxo que ele não desfrutou, pois tinha plena consciência de seu peso sobre ela e do fato de que as costas dela estavam contra algo rígido e de que o pai dela estava em casa...
Havia tantas coisas entre eles.
Isaac a soltou lentamente até que seus pés tocassem o chão e, quando ele saiu dela, não gostou do ar frio em seu pênis. O sexo dela era muito melhor... muito, muito melhor.
Quando ele a beijou, a maneira como seus lábios se moviam sobre os dele lhe dizia que em um mundo diferente, em circunstâncias diferentes... este seria, com certeza, um começo para eles – apesar de tudo o que os separava como família, dinheiro e escolaridade.
Mas aquela não era a realidade deles, era?
– Deixe-me arranjar algo para limpar isso – ele disse calmamente enquanto puxava as calças de volta no lugar.
Depois de beijá-la mais uma vez, ele saiu pela porta e quando a fechou lá dentro ele parou e baixou a cabeça.
Ele mentiu para ela.
Suas chances não estavam nem perto de cinquenta por cento: Matthias iria pegá-lo com toda e absoluta certeza. A questão era apenas quanto tempo ele levaria para conversar com os ouvidos certos antes que seu velho chefe surgisse das sombras e o reclamasse. Algo que sempre foi verdade sobre o líder das operações extraoficiais: Matthias nunca desistia. Nunca. E mesmo que o mundo estivesse desmoronando em torno dele, continuaria a buscar sua vingança. De alguma forma, de alguma maneira.
Contudo, isso não ia impedir Isaac de continuar tentando com todas as suas armas.
Muito melhor morrer tentando fazer a coisa certa... e deixar sua mulher pensando algo menos ruim sobre ele.
Muito melhor.
CAPÍTULO 35
Quando o sol da manhã despertou de seu sono nublado e uma auréola de raios foi derramada sobre Caldwell, Nova York, dois garotos, com idades entre doze e nove anos, foram andando para a escola.
E nenhum dos dois estava impressionado com todo o “esplendor primaveril”.
Seja lá o que isso significasse.
A mãe deles repetia sempre algo sobre esplendor primaveril, esplendor primaveril... bah! O que interessava a Joey Mason era a educação física: geralmente ele tinha educação física às segundas feiras, mas hoje haveria uma assembleia especial. Então, não importava o quanto de “esplendor primaveril” houvesse lá fora, ele ainda estava a caminho de um dia na escola com nada de interessante para fazer.
Por outro lado, seu irmão mais novo, Tony, gostava mais de assembleias do que de educação física, então, ele estava empolgado. Mas ele era um nerd que dormia com livros, que outra coisa poderia interessá-lo?
A caminhada de casa para a escola era de uns oito quarteirões e não era nada demais... apenas descer a Rua São Francisco, passando pela igreja e alguns outros pontos. Eles deveriam ficar do lado direito, pois havia um posto de gasolina à esquerda por onde passavam muitos carros. E eles deveriam parar em cada esquina. O que Joey fazia – geralmente enquanto segurava o colarinho de Tony para impedi-lo de atingir um carro em cheio.
Tony sempre andava com um livro aberto. Também comia lendo, ia ao banheiro lendo e se vestia lendo.
Estúpido. Simplesmente estúpido, pois se perde muito quando não se olha em volta.
Como aquele carro legal que estava no caminho. As janelas eram pretas e a pintura também, e havia um número na placa: 010. Era só isso, sem letras. Joey olhou para seu irmão mais novo e percebeu que, com certeza, ele não tinha notado aquilo.
Perdeu mais uma.
A coisa parecia ser da polícia.
Quando chegaram até o carro, pegou o colarinho de seu irmão e o puxou para perto. Tony não questionou a parada – apenas virou outra página. Provavelmente ele pensou que estavam em outra esquina.
Joey se inclinou um pouco para ver o interior, preparando-se para ver alguma coisa relacionada a um uniforme sair e gritar com eles por serem intrometidos. Quando não viu nada e quando nada aconteceu, ele posicionou as mãos em formato de concha e as colocou contra o vidro frio...
Pulou para trás.
– Acho que tem alguém lá dentro.
– Não tem – Tony disse sem levantar a cabeça.
– Tem sim.
– Não tem.
– Tem sim. E como você pode saber que não tem?
– Não tem.
Certo, Tony não sabia do que estava falando e aquela discussão poderia durar para sempre. E, então, ele e seu irmão caçula se atrasariam para as aulas e ficariam de castigo. De novo.
Mas...
Seria tão legal se eles encontrassem um cadáver – bem em frente à funerária!
Jogando a mochila, Joey distanciou seu irmão do carro, levantando-o e redirecionando seus pés.
– Isso é perigoso. Eu não quero que você se machuque.
Isso finalmente fez com que Tony levantasse os olhos do livro.
– Tem mesmo alguém aí dentro?
– Para trás.
Era o tipo de coisa que seu pai teria dito e Joey se sentiu um homem com relação a isso – especialmente quando Tony assentiu e segurou seu livro contra o peito. Mas era assim que deveria ser. Joey faria treze anos em breve e ele era responsável quando não havia ninguém por perto. E, às vezes, mesmo quando havia outras pessoas no local.
Voltando a colocar as mãos em forma de concha, ele reassumiu sua posição contra o vidro e tentou ver através da escuridão...
– É um pirata.
– Você está mentindo.
– Não, não estou...
Um carro passou devagar em frente deles e uma senhora abriu a janela – era a Sra. Alonzo do outro lado da rua.
– O que vocês estão aprontando, meninos?
Como se tudo o que eles fizessem fosse esse tipo de coisa.
Parte de Joey queria que ela continuasse seu caminho e deixasse que ele resolvesse a situação. Mas a outra parte queria se mostrar.
– Tem um cara morto aqui.
Sentiu-se muito importante, pois ela ficou pálida e parecia nervosa. Cara, se ele soubesse que tudo isso iria acontecer, ele teria saído mais rápido de casa. Aquilo era muito melhor que educação física.
A não ser pelo fato de que Tony teve que se intrometer.
– É um pirata!
De repente, a Sra. Alonzo não parecia tão assustada.
– Um pirata.
Seu irmão era um idiota – e Joey não estava interessado em perder a atenção da plateia. Piratas eram coisas de criança. Um morto no carro? Isso era coisa de adulto e era isso o que ele queria ser.
– Veja por si mesma – ele disse.
A Sra. Alonzo estacionou em frente ao carro completamente preto e saiu, seus saltos altos faziam um som de galope de pônei na rua.
– Certo, já chega, garotos. Entrem e vou levá-los até a escola. Vocês vão se atrasar. – Ela estendeu seu telefone para Joey. – Ligue para sua mãe e diga que estou levando vocês. De novo.
Isso acontecia muito. A Sra. Alonzo era uma executiva cujo escritório ficava não muito longe da escola, eles se atrasavam muitas vezes e ela os levava. Mas essa manhã era diferente.
Ele cruzou os braços sobre o peito.
– Precisa olhar pela janela.
– Joey...
– Por favor. – Outra coisa adulta: por favor e obrigado.
– Tudo bem. Mas entrem no meu carro.
A Sra. Alonzo marchou em direção ao carro enquanto resmungava alguma coisa sobre ficar prestando serviço de táxi. E Tony, que sempre seguia as regras, levou seu livro até o assento da frente da SUV – só que ele ainda estava interessado no que estava acontecendo, pois ele não fechou a porta e o seu exemplar do livro Diário de um Banana: Dias de Cachorro permaneceu contra seu peito.
Joey ficou onde estava.
Normalmente, ele teria se chateado com Tony por pegar o melhor lugar no carro: irmão mais velho andava na frente; bebês menores ficavam atrás. Mas havia coisas mais importantes que isso agora, então, ele ficou onde estava na calçada, o telefone sem utilidade em sua mão.
Ele estava pensando no que tinha visto...
A Sra. Alonzo deu um salto tão grande que quase acabou no meio do trânsito, uma minivan buzinou para ela quando se desviou por pouco de seu corpo.
Ela correu e pegou o telefone, assim como o braço do garoto.
– Entre no carro, Joey.
– O que é isso? Um cara morto? – Meu Deus, e se fosse um pirata? Caramba!
A Sra. Alonzo colocou o telefone no ouvido enquanto o arrastava para o carro.
– Sim, é uma emergência. Há um homem em um caro em frente à casa funerária McCready na Rua São Francisco. Não sei se há algo de errado com ele, mas ele está atrás do volante e parece não se mexer... Estou com uma criancinha comigo e não quero abrir a porta... certo...
Criancinha. Deus, ele odiava aquela coisa de criancinha. Além disso, foi ele quem encontrou o cara. Quantos adultos passaram por ali a pé para ir ao trabalho e não o viram? Ou de bicicleta? Ou correndo?
O cara morto era dele.
– Meu nome é Margarita Alonzo. Sim, ficarei aqui até os paramédicos e a polícia chegarem.
Certo. Esta era, oficialmente, a melhor manhã da história de sua vida, Joey pensou enquanto pulava no banco de trás – o qual tinha a melhor visão ao se virar para ver lá fora.
Quando a Sra. Alonzo entrou e trancou as portas, ele imaginou os três ali até a meia noite, uma da manhã. Talvez precisassem de um McLanche Feliz para o almoço. Ele tinha a grande esperança de que a polícia não corresse...
A chatice de todas as chatices o atingiu quando ele ouviu a senhora Alonzo dizer: – Sara? Estou com seus meninos e eles estão bem. Mas há um pequeno problema e preciso que venha buscá-los.
Joey abaixou a cabeça no braço.
Sabendo da sorte que tinha, sua mãe correria até à cena e chegaria lá antes que ele descobrisse algo sobre o pirata morto no banco da frente daquele carro.
Arruinado. Simplesmente arruinado.
E, provavelmente, eles chegariam à escola a tempo de assistir a assembleia.
Quando Matthias dormiu atrás do volante de seu carro, ele sonhou com a noite em que Jim Heron salvou-lhe a vida várias e várias vezes. Os acontecimentos que o levaram até a bomba e a dolorosa caminhada para recuperar uma saúde relativa foram passados e repassados em sua mente, como se a agulha da sua velha vitrola mental estivesse presa em algum obstáculo no disco.
Matthias tinha atraído Jim Heron àquela cabana abandonada e empoeirada como testemunha, pois não havia mais ninguém nas operações extraoficiais cuja palavra houvesse mais peso e credibilidade. A ideia era que o soldado deixasse seu corpo na areia e fosse para a casa contar aos outros que tinha acontecido um terrível acidente: se alguém apresentasse um relatório como esse, a conclusão seria de que havia ocorrido um abate completo.
Contudo, não é o caso de Jim – ele era um atirador correto em um mundo cheio de curvas e nunca teve problemas em fazer o que tinha que ser feito, certo ou errado.
Prova de que havia um pouco de bondade em Matthias, afinal – pelo menos, ele não ia jogar a culpa de seu suicídio na cabeça de outro cara.
E sim, claro que ele poderia explodir a própria cabeça em um banheiro qualquer, mas mesmo sendo um suicida, ele tinha seu orgulho. Autoinjetar-se uma dose de chumbo seria fraqueza demais – muito melhor espalhar a porcaria gosmenta em algumas paredes de pedra e ser lamentado como o forte lutador que sempre tinha sido.
Contudo, o orgulho teve seu preço: ao invés de deixá-lo na areia, o idiota Heron o salvou – e descobriu seu segredinho. O explosivo foi a dica que faltava. Enquanto Matthias permanecia deitado e sangrava como um porco, Jim encontrou os restos da bomba e reconheceu o que eram. Ou seja, era um dos seus dispositivos.
O filho da mãe pegou os fragmentos, os colocou no bolso e tirou o cinto. Em seguida, fez um torniquete na perna de Matthias, o levantou e começou a puxá-lo. Ele ficou muito chateado e era evidente que as atitudes de seu salvador eram parte punição, parte recompensa – e completamente desgastante. O bastardo andou, andou e andou... até que, alguns momentos depois, Isaac Rothe apareceu dentre as dunas com uma Land Rover.
As exigências de Jim vieram semanas depois, em um hospital na Alemanha. Naquele ponto, a cabeça de Matthias não era nada além de um imenso balão de ar quente de agonia e ele estava tendo que se acostumar com apenas um olho funcionando. Heron se sentou à beira do leito e estabeleceu seus termos: fora. Livre e limpo. Ou pegava o que tinha restado da bomba e contaria a história para a única pessoa que poderia fazer algo sobre isso.
Olá, senhor presidente.
Ironia das ironias, se tivesse sido qualquer outro soldado, qualquer outro ser humano com um coração batendo e um dedo no gatilho, Matthias não teria se preocupado com a ameaça. Mas, Jim Heron – o bom e velho Zacarias – era uma daquelas malditas pessoas em quem as pessoas acreditavam. Fragmentos de bombas poderiam ser fabricados; e a credibilidade de um homem digno? Muito menos discutível.
E ele não poderia continuar sendo chefe se as pessoas achassem que não tinha mais coragem para o trabalho.
Naquele momento, Matthias sentiu como se não houvesse outra escolha e disse ao homem para que seguisse seu caminho.
Depois, a questão suicida veio à tona e ele teve que considerá-la seriamente. Mas, em seguida, seu segundo homem na linha de comando apareceu na hora certa – tinha certeza de que o cara sabia para onde estava indo.
Um homem muito persuasivo aquele. E quando se deu conta, Jim tinha salvado seu corpo, mas aquele segundo homem na linha de comando o trouxe, de alguma maneira, de volta à vida.
Apesar de a renovação ter tido consequências: quase imediatamente, Matthias abriu os olhos – ou um olho, melhor dizendo – para o erro de deixar Heron sair: aquele soldado estava solto pelo mundo com informações demais e a exposição não era aceitável.
O segundo na linha de comando concordou com isso e estava prestes a colocar as rodas de um carro em movimento para provocar um “acidente” quando Jim ligou procurando por informações sobre Marie-Terese Boudreau. Perfeito. Bem a tempo. O plano era que Jim entregasse Isaac em troca da informação que precisava – e, em seguida, seria o assassinato de Jim.
Só que alguém pegou Heron primeiro.
Morto. Jim estava morto. Matthias viu seu corpo com os próprios olhos. E, ainda assim... de alguma maneira ele sentia como se tivesse falado com o cara. Sim, ele sonhou que tinha conversado com Jim Heron...
Matthias acordou com a arma na mão, o gatilho armado e apontando para um homem de uniforme azul marinho – que tinha, dado a barra de ferro em sua mão, acabado de destrancar o carro e abrir a porta.
O paramédico congelou e colocou as mãos para cima.
– Eu só quero te ajudar, cara.
Provavelmente era verdade. Mas para o inferno, o parceiro do cara sem dúvida estava ligando para a polícia agora e, observação, fazer qualquer tipo de contato direto com um civil não era um benefício, segundo a cartilha de Matthias.
Ele baixou a arma.
– Sou um agente federal. – Ele colocou a mão no casaco e decidiu mostrar suas credenciais do FBI; que eram legítimas até certo ponto.
O paramédico se inclinou e olhou a fotografia, um nome qualquer no laminado e um brasão bem verdadeiro.
– Ah... desculpe, senhor. Recebemos um telefonema...
– Está tudo bem. É que passei três dias puxados na fronteira canadense e estou a caminho de Manhattan. Desci a estrada ao norte procurando algo para comer às quatro da manhã, mas não havia nada aberto e eu precisava dormir um pouco. Sabe como é.
– Ah, entendo muito bem.
Conversa fiada, conversa fiada, conversa fiada... blablablá...
Quando a polícia apareceu, eles colocaram seu número de identidade no sistema e, como num passe de mágica, tudo bateu. E sua história sobre estar em uma missão secreta e ter que parar um pouco por causa da exaustão foi engolida como um jantar de Ação de Graças: ele passou de criminoso à celebridade.
Gente estúpida.
Depois que os despistou, afastou-se e pegou o telefone. Havia uma série de mensagens de voz... e um alerta.
Bem, como pode imaginar... parece que Isaac Rothe tinha se entregado e sua localização era a casa de sua adorável e talentosa advogada. Que coisa mais perfeita: embora pudessem pegá-lo em pé na cozinha de Grier Childe se fosse preciso, aquilo faria das coisas muito menos complicadas.
Matthias ligou para seu segundo homem na linha de comando e quando o telefone soou ele pensou em quantas vezes tinha tido aquela conversa: vá. Pegue o bastardo. Acabe com ele. Dê um jeito no corpo.
Ele tinha feito isso tantas vezes.
Quando a dor do lado esquerdo do peito disparou novamente, ele ignorou a sensação...
– Sim? – o segundo na linha de comando respondeu.
– Isaac Rothe está pronto para você.
Não houve sequer uma pausa.
– O endereço é o de Beacon Hill?
– Sim. Vá até lá e pegue-o.
– Estou fora do estado.
– Bem, entre no estado. O mais rápido possível.
– Entendido. Onde você o quer?
Boa pergunta. Isaac não era conhecido por grandes fugas, sua reputação era de um assassino rápido e limpo que o fazia em circunstâncias extraordinárias. Mas você não conseguiria executar tarefas como as dele se não fosse muito imaginativo.
– Mantenha-o naquela casa para mim – Matthias disse de repente.
Quando levou em conta a situação, o instinto lhe disse que uma mudança na estratégia era apropriada. Afinal, seria útil puxar as rédeas de Grier Childe e seu pai – e nada chamava mais a atenção de um civil do que assistir a alguém sendo assassinado. O bom e velho Albie era uma prova disso...
Por alguma razão, a voz de Jim Heron estalou no cérebro de Matthias. Não havia palavras específicas, apenas um tom que se demorava, um tom grave, que implorava para que Matthias parasse com tudo e... fazer o que exatamente?
– Alô? – o homem do outro lado da linha perguntou, uma vez que o cara disse algo que não havia sido respondido ou que havia recebido nada além de silêncio por um tempo.
– Eu não quero que você o mate – Matthias se ouviu dizendo.
– Ah, entendo. Você quer fazer isso por si mesmo. – Satisfação. Tal satisfação era o objetivo do plano em todo o tempo.
Sem qualquer razão especial, o processador central do cérebro de Matthias começou a faiscar e sair fumaça, imagens voavam dentro e fora de sua mente em uma confusão louca que o fez pensar na rolagem de dados em uma mesa de feltro. E, então, em meio ao caos, ele viu Alistair Childe sendo segurado em um tapete sujo por dois agentes de preto enquanto era injetada em seu filho heroína suficiente para levar um elefante a ter uma overdose.
Danny... oh, Danny, meu garoto... Parecia uma música que poderia tocar em um bar irlandês, mas não soava nada musical uma vez que o pai gritava as palavras com voz rouca.
– Chefe – o segundo na linha de comando interrompeu. – Fale comigo. O que está acontecendo?
A voz era muito sonora, mas era um falso pragmatismo. Era evidente que o soldado estava preocupado de que as rodas estivessem saindo da estrada de novo – assim como tinha acontecido há dois anos, ele teria que arrastar Matthias para calçar suas botas de combate mais uma vez.
– Não o mate – Matthias ouviu-se repetir. – É uma ordem.
– Eu sei, assim você pode fazer isso. Ele é seu. Você tem que pegá-lo.
Por um momento, Matthias sentiu uma atração inevitável, tentadora...
– Não – ele exclamou, sacudindo-se. – Não, eu não tenho.
– Sim, você deve...
– Apenas siga a maldita ordem sem mais comentários ou encontro outra pessoa que o faça.
Com um palavrão, ele desligou, enviou um sinal de volta para Isaac e, em seguida, tentou encontrar um local sólido para se sustentar dentro de si mesmo. Droga, de repente, ele sentia como se houvesse duas vozes diferentes em sua cabeça e elas não apenas o direcionavam para caminhos opostos, o puxavam de fato.
Felizmente, o retorno da transmissão feita a Rothe interrompeu sua luta.
– Matthias – ele ouviu aquela velha voz familiar.
– Isaac. Como vai?
– Onde? Quando?
– Sempre indo direto ao ponto. – Matthias empurrou a parte inferior do volante para manter o sedã na estrada, enquanto massageava a dor que havia do lado esquerdo de seu peitoral.
– Estou mandando alguém até você. Então, fique onde está.
– Inaceitável. Não posso ser pego aqui.
– Ditando as regras? Eu acho que não.
– Grier Childe não vai ser envolvida nisso. Vou me entregar à meia-noite, amanhã, em um local público.
– E agora você quer me dizer quando? Vá se ferrar, Rothe. Se quiser que ela fique fora disso, fará o que vou lhe dizer. Ou você acha que não posso passar por esse sistema de segurança de luxo a qualquer hora da noite que eu quiser? – Silêncio. – Surpreso por eu saber sobre a maldita coisa? Bem, há outros truques nessa casa, Isaac. Fico me perguntando de quantos deles você tem conhecimento.
Vê, aquilo era bom. O movimento do jogo de poder limpava um pouco aquela porcaria distorcida, nebulosa e evasiva – e isso o lembrava da razão por trás da morte de Daniel Childe: a grande boca aberta do bom e velho Albie.
Um tiro de adrenalina o despertou ainda mais enquanto ele se perguntava exatamente que tipos de planos Isaac e o capitão aposentado poderiam ter tido enquanto ele estava desmaiado na estrada.
Ele limpou a garganta.
– Sim, fique onde está... e em caso de ter tramado alguma brilhante ideia com o pai dela, deixe-me esclarecer as coisas. Se você fizer qualquer coisa para expor a mim ou à organização, vou fazer coisas àquela mulher das quais ela vai sobreviver, mas nunca se curar. E saiba: meu alcance se estende além da sepultura. – Mais silêncio. – Você conheceu o pai dela... não negue isso. E tenho plena ciência de que ele vem coletando informações sobre as operações extraoficiais há décadas. Sem ideias brilhantes, Isaac. Pelo bem dela. Ou vou ignorá-lo e ir atrás dela. Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora...
– Ela não faz parte disso! – Rothe disse entre dentes. – Ela não tem nada a ver comigo ou com o maldito pai!
– Talvez. Mas acidentes acontecem. E eu atribuí seu caso a ela por um bom motivo, que acabou ficando melhor do que eu pensava. Eu nunca esperava que vocês dois ficassem tão pessoalmente envolvidos, ou você acha que eu não ouvi os dois subirem até aquele quarto de hóspedes dela ontem à noite? – Matthias lutou contra a dor em seu peito, sentia como se estivesse se afogando. – Não me faça machucá-la, Isaac. Estou ficando cansado de tudo isso, estou mesmo. Fique onde está. Estou enviando uma pessoa e você saberá quando chegar lá. E se você ou o pai dela não estiverem lá quando ele chegar, vou fazer com que procure por ela, não por você. Você segue as instruções e vou me certificar de que ninguém além de você se machuque.
Matthias apertou o botão end para finalizar a ligação e jogou o celular no banco do passageiro.
Estremecendo, ele lutou para manter o carro em linha reta enquanto a agonia por trás de sua caixa torácica aumentava para níveis incontroláveis. Com o ataque, ele pensou brevemente sobre dirigir até o Aeroporto Internacional de Caldwell, mas decidiu que precisava se recuperar e isso ia levar tempo. E privacidade.
Apertando o peito esquerdo, ele parou e tentou respirar em meio à dor. O que realmente não ajudou muito... ao ponto de se perguntar se era isso. O derradeiro. Assim como aquele que matou seu pai.
Olhando para fora do para-brisa dianteiro, ele percebeu que estava na frente de uma igreja.
Sem nenhuma razão aparente, ele desligou o motor, pegou sua bengala e saiu. Ele não pensava em nada nem sequer remotamente relacionado a Deus há anos e estar mancando em direção àquelas enormes portas duplas o fazia se sentir... errado de muitas maneiras. Especialmente levando em conta tudo o que estava esperando por ele em Boston. Mas seu segundo homem na linha de comando precisava de tempo para arranjar as coisas e Matthias... precisava desse ataque cardíaco seja para se organizar e chutar o balde ou para calar a maldita boca.
Lá dentro estava quente e cheirava a incenso e cera com aroma de limão. O lugar era enorme, com centenas e centenas de bancos que se espalhavam em três direções desde o altar.
Matthias não fez todo o caminho. Ele entrou em colapso em um banco mais ou menos na metade do corredor lateral, caiu por completo no banco de madeira.
Movendo sua bengala entre os joelhos, olhou para o crucifixo... e começou a chorar.
CAPÍTULO 36
Depois de terminar a comunicação com Matthias, Isaac guardou o transmissor de alerta em seu blusão. O que ele queria fazer era colocá-lo sobre o balcão de granito e esmagá-lo com seu punho. Em seguida, talvez, jogar os pedaços no fogo.
Apoiando as mãos sobre a pia da cozinha, ele se inclinou sobre os ombros e encarou o jardim. Quase oito horas da manhã e o local estava um poço de escuridão, pois as casas da vizinhança tinham sido construídas muito perto umas das outras. Não fazia ideia se os colegas de Jim estavam lá de volta. Nenhuma palavra sobre Jim.
Mas Isaac tinha outros problemas agora.
Droga. Levando tudo em consideração, o fato de Matthias suspeitar do que iria acontecer não era uma novidade. Mas aquilo o deixou tenso. Se ele fosse embora agora, ele corria o risco de Grier e seu pai serem massacrados. Se ele ficasse... provavelmente eles seriam obrigados a assistir a morte dele.
Filho da mãe!
– Eles entraram em contato com você?
Ele olhou sobre o ombro. Grier tinha acabado de sair do chuveiro, seus cabelos soltos secavam naturalmente.
– Isaac – o rosto dela ficou tenso. – Eles responderam?
– Não – ele disse. – Ainda não.
Para tornar a mentira mais convincente, ele puxou o transmissor e o balançou, apostando no fato de que ela não iria notar que a luz estava desligada.
– Essa coisa está funcionando?
– Sim. – Ele o guardou quando ela se aproximou. – Como está seu pai?
– No telefone do banheiro de novo. – Ela encarou o relógio. – Deus, pensei que essa noite nunca ia acabar.
– Eu só queria que Jim aparecesse – ele disse enquanto ela começava a fazer o café na pia.
– Você acha... que ele está mesmo morto?
Naquele momento... talvez.
– Não.
Sentando-se em um dos bancos, ele a observou estalar a abertura de uma lata de café e colocar o filtro no topo da máquina. Quando ela terminou a tarefa, a luz do sol em seu rosto o fez querer chorar, ela era tão bonita.
De alguma maneira, ele não podia acreditar que estava com ela – e não no sentido de que não era digno disso. Dã, isso era evidente. Mas ponderando tudo, o sexo quente e intenso parecia um sonho. Ela estava tão limpa, cheirando a xampu ao invés de suor, o cabelo liso, o rosto já não mais corado.
Ela tirava seu fôlego. Para Isaac, ela era uma prova definitiva que a vida valia o sacrifício que requeria das pessoas: apenas olhar para ela e estar no mesmo ambiente, ter as memórias que ele deu não só a ela, mas que ficaram dentro dele...
A ideia de que alguma coisa a machucasse um dia era simplesmente insuportável. E se ele fosse a causa disso?
Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora.
Não era uma ameaça. Não vindo de um cara como Matthias, que não estabelecia qualquer distinção para o sexo feminino. E ele a machucaria de maneira que aqueles momentos especiais que Isaac havia passado com ela na adega fossem impossíveis de serem vivenciados novamente.
Por mais que lhe doesse, ele tinha que ser realista: quando ele partisse, ela encontraria outro amor. Talvez alguém com quem se case e tenha filhos e com quem possa passar a velhice. E não haveria nada disso para ela a menos que ele ficasse ali, esperando... e rezando para que quando o agente de Matthias aparecesse, ele fosse capaz de matar o filho da mãe e, em seguida, desaparecer rapidamente.
Afinal, ele era um maldito de um assassino. Era o que ele fazia para viver.
Uma coisa era clara: não ia mais prosseguir com a divulgação de informações. De jeito nenhum. A vida de Grier valia mais que o respeito que ela tinha por ele e, depois que a poeira assentasse, qualquer coisa que tivesse sido acionada pelo pai dela poderia ser desfeita tão rápido quanto uma ligação telefônica – assim, eles pensariam que o plano ainda estava de pé até descobrirem que Isaac tinha sumido.
E quanto ao resto de sua vida? Ele ia se entregar a Matthias e prestar suas contas, mas seria em seus termos. O pai de Grier faria algo com aqueles dossiês e Jim Heron, ou qualquer um de seus colegas, era o tipo de cara que poderia guardar uma narração gravada, em primeira pessoa, de cada assassinato que Isaac já cometeu – isso proporcionaria a Grier e a seu pai uma morte de causas naturais.
Afinal, ele tinha a impressão de que confissões feitas à beira da morte eram admissíveis no tribunal, então, uma vez que Isaac confessasse que Matthias iria matá-lo em breve, isso teria muita influência, não teria? – pelo menos seria o suficiente para que abrissem uma grande investigação.
Seu depoimento seria o seguro de vida dela e de seu pai.
Do outro lado, Grier apertou o botão ligar do aparelho e quando a máquina começou a sibilar ela ficou onde estava, olhando para a coisa.
Compelido por algo que ela não questionou, Isaac ficou em pé e se colocou atrás dela, colocando seu peito contra suas costas. A respiração de Grier ficou tensa ao sentir o corpo dele e, embora tivesse se enrijecido, ela não se moveu.
Ele estendeu as mãos e tocou as ondas loiras que caiam sobre seus ombros, correndo os dedos sobre ele. Em seguida, ele deslizou as mechas lentamente para a lateral, expondo a nuca.
Deus, ele já tinha se decidido, não tinha?
Tinha escolhido seu caminho.
– Posso beijá-la? – ele disse com voz rouca. Pois era mais cavalheiro perguntar antes.
A cabeça dela pendeu.
– Por favor.
Ele foi até o pescoço encantador, pressionando seus lábios contra a pele dela. Aquilo não era o suficiente, mas ele não confiava em si mesmo para ir mais além ou sequer para colocar suas mãos na cintura dela – se ele o fizesse, não ia parar até que ela estivesse sob ele e, por sua vez, ele estivesse dentro dela mais uma vez.
– Grier – ele sussurrou com voz rouca.
– Sim...
– Preciso dizer uma coisa.
– O que?
Algumas vezes as emoções eram uma locomotiva para as palavras: uma vez que se há uma revelação para fazer, não há freios suficientemente fortes para mantê-la nos trilhos de sua garganta.
– Eu te amo – ele pronunciou mais com ar do que com sílabas.
Contudo, ela ouviu. Deus, ela ouviu, pois inalou com um silvo.
Grier se virou tão rápido que se formou uma curva em seus cabelos e mesmo com o coração batendo forte, Isaac não desviou o olhar.
Quando ela abriu a boca, ele colocou seu dedo sobre os lábios dela e balançou a cabeça.
– Eu só precisava que você soubesse. Uma vez. Eu só precisava dizer... uma vez. Eu sei que não a conheço há tempo suficiente ou bem o suficiente e tenho plena consciência de que não sou o homem certo para você, mas algumas coisas precisam ser ditas.
O que não precisava ser transmitido era o terror dentro de sua pele.
Por mais que ele quisesse fazer a coisa certa, seu antigo patrão o pegou pelos cabelos: não havia sacrifício grande demais para garantir a segurança de Grier. Até mesmo a salvação de Isaac não era demais. Nem mesmo a queda de Matthias.
Uma garganta pigarreando discretamente fez com que Isaac olhasse para cima. Através do vidro sobre a pia, ele viu o pai de Grier em pé na cozinha – e por respeito à filha do homem, ele recuou.
– Café, pai? – Grier disse com uma voz estável ao se inclinar para o lado e pegar duas canecas no armário.
– Sim, obrigado.
Isaac podia sentir os olhos do cara oscilando entre um e outro, mas ele tinha certeza de que não queria responder qualquer pergunta.
E era evidente que Grier também não.
– Vamos sentar? – ela perguntou.
Ao invés de responder, o homem clareou a garganta mais uma vez. Sem dúvida por estar chocado com a situação do dia anterior, quando disseram para que ficasse longe, e o sentimento de “não toque na minha filha”.
Mas ele não precisava se preocupar. Ele chegou tarde demais para a última alegação, mas a sensação que a primeira causava... dariam um jeito nela.
– Pai? Vamos sentar?
– Todos vão chegar amanhã de manhã...
– Amanhã de manhã?
– É uma situação delicada. É preciso dar desculpas adequadas – esses homens e mulheres não podem sair sem um bom motivo, sem que questionamentos sejam feitos.
Isaac podia sentir Grier olhando para ele, buscando um apoio para dizer um “não” veemente, mas era isso, ele discordava dela. Amanhã era perfeito.
Ele já teria partido até lá.
No hotel, Jim acordou em seu quarto pouco iluminado e sentiu como se tivesse sido vítima de um acidente de carro. Com um caminhão. E ele estava sem cinto de segurança.
Ele estava na cama, dormindo encolhido de lado, seu corpo pesado tinha esculpido uma parte do colchão e estava posicionado como um cão à espera da morte em uma floresta. Mas ele era imortal agora... e aquilo parecia significar que não importava o dano que fosse feito nele, ele seria curado.
Sim, só que aquilo não parecia o tipo de trabalho que requeria apenas um movimento de nariz da Feiticeira, onde tudo era resolvido em um passe de mágica. Ele se sentia muito humano com as dores e feridas, a respiração que fazia suas costelas queimarem, com os saltos de seu coração que mais pareciam o andar de um bêbado. Mas a pior parte disso não era física. Estava em sua mente.
A parte em que havia deixado Sissy para trás, no reino de Devina, o matava.
Abrindo os olhos, percebeu que era manhã; sobre o topo da cabeça encrespada do Cachorro, o alarme brilhava com números vermelhos. 7h52.
Hora de levantar, ele pensou ao se virar de costas com cuidado. Do outro lado, Adrian estava apagado como uma lâmpada, o anjo tinha uma respiração pesada, seus olhos se movimentavam por trás das pálpebras fechadas.
Dado o brilho em seu rosto, era evidente que ele não estava tendo bons momentos na terra dos sonhos.
Deus, que noite, Jim pensou. Depois que Colin o deixou ali ele achou que seria apenas ele e o Cachorro. Mas, então, alguém veio do outro quarto e ele poderia concluir que seria Eddie – a coisa toda de cuidados e enfermagem era mais a praia dele.
Mas não. Adrian foi quem entrou... e permaneceu ali.
No momento, Jim não teve forças para lidar com qualquer simpatia que pudesse sentir pelo cara, então, ele envolveu com cuidado um cobertor em volta de si e calmamente se colocou em pé com as pernas tão fortes quando dois lápis. Mancando até o laptop, ele estava muito tonto, e chegou à cadeira bem a tempo – contudo, mas que droga, seu traseiro doía demais.
Apesar do fato de precisar urinar como um cavalo de corrida, ele ligou o computador e esperou impaciente para que o navegador da Internet fosse iniciado. Para passar o tempo, ele deu uma olhada nas marcas deixadas por aquilo que prendia seus pulsos. Os dois tinham linhas tortuosas de um vermelho brilhante em volta, que reluziam e estavam em carne viva, o lembrete tangível de onde ele tinha estado e o que tinham feito com ele seduziu sua mente a fazer uma viagem ao campo do stress pós-traumático. Só que foi um deslize que ele se recusou a permitir.
Voltando a prestar atenção no que estava fazendo, ele começou a digitar. Contudo, uma vez que seus dedos estavam dormentes, levou uma eternidade para chegar ao site do jornal de Caldwell e pesquisar por Cecilia Barten...
Apareceu um artigo de cerca de duas semanas atrás e a imagem de Sissy trouxe um brilho aos seus olhos. Ela estava sorrindo para a câmera em pé no meio de vários jovens da idade dela. Não dizia quanto tempo havia se passado entre o momento em que a foto foi tirada e quando foi levada por Devina – mas o fato de que ela não tinha ideia do que a esperava ao virar a esquina fez com que seu coração desconfiado ficasse ainda mais focado no trabalho.
Provavelmente era melhor que não soubesse de nada.
E ele ia fazer com que Devina pagasse por isso.
O único artigo que havia além desse relatava que ela tinha desaparecido há uma semana e os dois juntos o fizeram perceber o porquê sua primeira pesquisa de dados havia falhado. Ele pediu que o computador procurasse por assassinatos ou garotas loiras mortas. Nada relacionado a desaparecimento.
Que erro idiota.
E os detalhes eram os que Sissy tinha dito: ela era caloura na Faculdade de Albany e estava passando as férias de primavera em Caldwell. A última vez em que a viram foi quando ela saiu do mercado local por volta das nove horas.
Nenhuma foto de seus pais. Contudo, ele iria encontrá-los.
– Você a viu? – Adrian disse com uma voz um tanto áspera.
– Sim. – Jim encarou a foto de sua garota sorrindo com seus amigos. Então, ele piscou e viu seus cabelos loiros emaranhados com sangue. – Como a tiro daquela parede?
A respiração do outro anjo era do tipo que se produzia quando não se tinha uma boa notícia para dar. De jeito nenhum. E você fica dolorido com isso.
– Você não pode.
– Inaceitável. Tem que haver um jeito.
– Não que eu saiba. – Houve um palavrão e, então, um estalo no colchão e uma variedade de estalos como se Ad estivesse se espreguiçando.
– Volto já.
Quando os passos pesados se dirigiram para o outro quarto, Jim não se deu conta da saída do cara. Mas quando o focinho do Cachorro cutucou sua perna nua, ele olhou para baixo.
Os grandes olhos castanhos olhavam de um rosto de pelo que parecia palha.
– Você sabe como tirá-la de lá? Ela não pertence àquele lugar. Ela não deveria ter terminado ali.
Jim considerou que o pequeno gemido do animal significava que concordava com ele – e que também precisava sair para fazer suas necessidades.
– Dois segundos – disse Jim, preparando-se para ficar em pé. – Preciso de um banho.
Levantando seu peso morto da cadeira, ele deixou cair o cobertor e entrou no banheiro que era de um tamanho modesto. Fechando-se lá dentro, ele acendeu a luz, deteve-se no banheiro e se perguntou se seu pênis ainda funcionava de alguma maneira.
O fluxo rosa que ele urinou respondeu a pergunta. E também sugeriu que seus rins foram danificados.
Depois que terminou, grunhiu ao se inclinar para apertar a descarga e depois se virou para ligar o chuveiro. Sabonete. Ele precisava de muito mais sabonete do que aquela metade já usada que estava ali...
Jim congelou ao se ver no espelho.
Ruim. Muito ruim.
Muito pior do que ele pensava.
Sua boca estava roxa e inchada por causa de toda porcaria que tinha sido empurrada dentro dela, seu peito e sua barriga eram nada além de carne viva. Quanto ao pênis... A maldita coisa estava pendurada em seus quadris como se tivesse perdido a vontade de viver. E ele não queria saber como a parte de trás de seu corpo estava.
Usado e abusado eram os termos corretos.
E seu único pensamento, o único... apenas um... era que odiava o fato de que Sissy o tinha visto assim.
Quando seu estômago vacilou em torno de sua cintura, ele se lembrou da expressão horrorizada no rosto dela ao olhar para ele. Pobre garota... Ele tinha sido treinado para toda aquela porcaria. Ele tinha passado por isso antes... bem, não exatamente pelo que Devina fez com ele, mas com certeza ele teve que lidar com isso algumas vezes com punhos e facas. Até mesmo com uma bala ou duas. Mas Sissy...
Ele quase não conseguiu voltar à bacia sanitária à tempo.
Quando seu corpo se inclinou e nada além de bile saiu de sua boca, seus olhos lacrimejaram pelo esforço.
Maldição, Sissy o viu daquele jeito. Violado sexualmente, sangrando, surrado...
Mais vômito.
Ele não teve certeza de quando exatamente Adrian entrou, pois no terceiro round de lances que saíam de sua boca ele se deu conta que não sabia se ela estava livre do que tinha feito com ele. Afinal, ela foi capturada. Ela estava presa naquele inferno. E Devina tinha muitas coisas que satisfariam o gênero masculino.
– Aqui – Adrian disse, passando-lhe um pano frio.
Jim não conseguia enxugar o rosto, pois doía demais, então, ele deu leves toques, sentindo a umidade fresca como um bálsamo contra seu rosto em chamas e lábios queimando.
Baixando a cabeça, ele percebeu que tinha deixado manchas de sangue fresco no piso creme, das feridas que tinham sido reabertas em seus joelhos.
Sim, imortal não significava embalsamado; isso era certeza.
Adrian sentou-se ao lado dele, com o rosto muito pálido enquanto olhava ao redor da bacia sanitária.
– Quer que eu o coloque no banho? Foi o que me ajudou quando ela...
Quando seus olhos se fecharam com força, a conversa era de sobrevivente para sobrevivente.
– Ah, droga... – Quando Jim falou, sua voz era rouca e parecia que tinham passado um desentupidor por sua garganta.
– Ela me viu assim. Sissy... ela viu isso.
Ele não podia acreditar que havia dito isso, mas manter dentro de si era inútil.
Incapaz de manter contato visual, Jim fechou suas pálpebras com força e encostou ao lado da banheira. Enquanto a água caía como a chuva atrás dele e o chão duro pressionava seu traseiro, ele sussurrou: – Ela me viu arruinado.
Foi a última coisa que disse antes de desmaiar.
CAPÍTULO 37
Você não deve ter pensando que uma casa com seiscentos metros de área construída, no centro da cidade, com três andares – quatro, se contar o porão com a adega – poderia ser estreita como uma caixa de sapato.
Mas, à medida que a manhã se arrastava e chegava o florescer do meio dia, Grier sentia como se não pudesse ter ar suficiente... ou algum momento à sós com Isaac. Seu pai era uma presença passiva com olhos de águia que parecia preencher todo o espaço, mesmo quando não estava nele. E Isaac estava tão ruim quanto ele, movendo-se constantemente, olhando pelas janelas, indo e voltando da frente da casa para a cozinha.
Por volta das duas horas, ela não aguentava mais e foi organizar seu armário no quarto. O que era ridículo, pois já estava arrumado – apesar de ser uma cura rápida para o que estava passando.
Depois de parar no meio do quarto e fazer um giro pelas fileiras de roupas penduradas por categoria, ela pegou cada blusa, saia, vestido, terno e par de calças das prateleiras e os colocou em uma pilha no chão. Aparentemente, ela estava reorganizando as várias sessões. Na realidade, ela estava dando a si mesma um pouco de bagunça para limpar para que pudesse desfrutar de um pouco de controle.
Cabide por cabide, item por item, ela começou a organizar seu guarda-roupa.
Deus... Isaac.
Se ela o ouviu direito, lá na cozinha, perto da cafeteira... ele disse que a amava.
Vamos lá... claro que ela ouviu direito. E seus olhos incríveis confirmaram o que seus ouvidos tinham lutado para compreender.
Contudo, havia muitos mas que a advogada que havia nela queria esquematizar. A questão era, a mulher por trás da advogada de defesa não se importava com nada daquilo: ela sentia algo tão forte quanto ele.
Naturalmente, a lógica dizia que não devia confiar na emoção nos dois casos, apontando que tudo era uma questão de circunstâncias, drama, tensão, sexo – Deus, o sexo. Só que seu coração tinha uma teoria diferente. Ela sentiu uma faísca entre eles no instante em que colocou os olhos nele e a decisão de Isaac de tomar a frente e fazer a coisa certa sobre seu chefe corrupto e perigoso... bem, isso foi ainda melhor que os incríveis orgasmos.
Ele ganhou todo o respeito dela com isso.
Ao pegar um de seus ternos pretos com risca de giz, ela se entreteve com uma breve fantasia onde eles acabavam juntos em uma ilha segura e remota com nada além do dilema sobre o que fazer para almoço e jantar para preocupar suas mentes. Um dia de sonho na Ilha da Fantasia com nada para ser questionado seria uma ótima diversão, mas ela não ia enganar a si mesma. Isaac ia desaparecer. O governo ia levá-lo e escondê-lo até que as audiências no Congresso ou os procedimentos judiciais fossem iniciados. E se ele não acabasse na cadeia pelas atrocidades de guerra nos Estados Unidos, seria extraditado para algum inferno no exterior.
E foi por isso que ele disse aquilo. Era seu adeus.
– Uau.
Grier girou sobre os calcanhares, o terno em suas mãos se levantou em um círculo em volta de seu corpo antes de ser colocado de volta no lugar – como se tivesse esquecido momentaneamente sua discrição e retomado sua compostura.
E não é que ela sabia como a coisa se sentia?
Isaac se amaldiçoou.
– Desculpe, eu realmente preciso aprender a bater.
Grier ficou mais aliviada.
– Eu também estou nervosa demais.
Franzindo a testa, ele mediu a pilha no meio do carpete creme.
– Muitas roupas.
– Provavelmente roupas demais. Eu preciso doar um pouco para alguma entidade.
Ele avançou e pegou um de seus vestidos. Era longo e preto, como todos os outros, pois ela não era do tipo de garota que gostava de cores e brilhos.
– Para onde vai esse?
– Ah... – Havia apenas uma seção com barras altas o suficiente para os longos. Então, ela havia os tirado por nada, apenas para colocá-los novamente. – Aqui. No canto, por favor.
Ele pegou o vestido feito para se usar à noite e o colocou no lugar onde já tinha estado antes. Então, ele se voltou para o próximo, endireitando as ombreiras em um cabide acolchoado de cetim. Antes de colocá-lo no lugar, ele se surpreendeu por baixar a cabeça e colocar seu nariz no decote.
– Tem o cheiro do seu perfume – ele murmurou antes de colocá-lo sobre a haste de bronze.
Foi o que bastou para que um arrepio percorresse dentro dela – no bom sentido. Infelizmente, o formigamento foi substituído por tudo o que estava pairando sobre eles.
– Você já recebeu algum contato... deles?
– Não.
– O que você vai fazer se eles não responderem?
– Eles vão.
Ele não disse mais nada, apenas pegou um vestido com um corpete de veludo e uma larga faixa.
– Vestido de Natal?
– Sim.
– É lindo.
– Obrigada. Isaac? – Quando ele olhou, ela disse: – Eu...
Ele a interrompeu.
– O que é esse som?
– Que som...
O terno caiu de suas mãos quando ela reconheceu o sutil sinal sonoro e se atrapalhou para tirar a corrente do sistema de segurança do bolso. Era certeza, uma luz vermelha estava piscando. “Havia alguém na casa.”
Ela interrompeu o barulho e começou a ir em direção ao telefone ao lado da cama, mas ele segurou seu braço.
– Não. Nada de polícia. Já tiramos vidas de inocentes o suficiente com isso.
Sua arma surgiu e expôs um tubo quase tão longo quando seu punho. Quando ele engatou o silenciador na ponta da arma, olhou em volta e seguiu até o espaço mais abaixo onde o mecanismo do sistema de segurança se encontrava.
Mantendo a arma em mãos, ele arrancou a superfície de metal.
– Entre aqui. E não saia até que eu...
– Eu posso ajudar...
A expressão nos rosto dele fez com que ela desse um passo para trás: seu olhar era frio e totalmente estranho – como se ela estivesse olhando para um vidro fosco... sem esperança de algum dia ver o que estava por trás dele de novo.
– Entre aí, agora.
Os olhos dela encararam a arma e depois se voltaram para sua face rígida e implacável. Era difícil saber o que era mais assustador: a ideia de que alguém estava em sua casa ou o estranho em pé na frente dela. E, então, ficou claro para ela...
– Oh, meu Deus, meu pai!
– Eu cuido dele. Mas não vou fazer isso direito se estiver preocupado com você. – A arma apontava para o buraco escuro que ele tinha aberto. – Vá, agora.
Depositando sua confiança nele, Grier se abaixou, esquivou-se dentro do local e respirou o ar bolorento dos beirais quando Isaac recolocou a grade no lugar. Houve um movimento, um clique, outro movimento, outro clique ao fixar a coisa na parede e, em seguida, pelas frestas, ela o viu sair correndo, silencioso como uma sombra.
Ela olhou o relógio. Ouvia com atenção.
O medo se comprimia com ela dentro dos limites apertados de seu esconderijo, ocupava mais espaço que ela, trazia à tona a imagem de Isaac como um estranho, até aquilo ser tudo o que conseguia ver.
Silêncio.
Mais silêncio.
Que foi prontamente interrompido por uma estridente paranoia em sua cabeça.
Oh, Deus... e se tudo isso não passou de uma armadilha? E se Isaac tinha sido enviado com o único propósito de seduzir seu pai e determinar o quão longe ele iria para expor a agência?
Só que foi ela quem sugeriu isso.
Ou será que a intenção dele era que ela acreditasse nisso?
Contudo, seu perfil dizia que ele precisava de uma motivação moral – e se fosse uma mentira? E se aquilo fazia dele o agente infiltrado perfeito? E se tudo aquilo não passasse de um jogo para que seu pai entregasse os dossiês... antes de o matarem.
E, ainda assim, Isaac a colocou ali para protegê-la.
Só que ela não o reconhecia no momento em que fez isso...
Meu bom Deus, o transmissor de alerta – a luz estava apagada, não estava? Quando ele balançou a coisa em frente a ela na cozinha esta manhã, a luz que ela tinha visto antes estava apagada. O que aquilo significava? E, pensando nisso, o lapso de tempo lhe parecia bizarro: entre o momento em que ele aparentemente se entregou até agora.
Ela tinha que sair dali. Conseguir ajuda.
Grier se contorceu e se apertou atrás dos componentes empilhados do centro nervoso do sistema de segurança. A escadaria oculta que corria no meio da casa fazia parte de sua construção original, foi feita por suspeita e desconfiança de que os britânicos ainda pudessem passar por ali em 1810, cerca de trinta anos depois da Revolução.
Os truques da casa acabaram sendo úteis no presente.
O brilho do sistema de segurança proporcionava iluminação suficiente para que ela encontrasse a lanterna coberta de poeira que ficava pendurada em um prego no topo da escada secreta. Acendendo a luz, ela tateou os degraus antigos, entalhados à mão, deixando suas impressões para trás na poeira. Ao prosseguir, teias de aranha grudaram em seus cabelos e os ombros foram arranhados pela áspera argamassa dos tijolos.
Quando chegou ao primeiro andar, fez uma pausa. É claro que ela não conseguia ouvir nada devido às grossas paredes, mas o pai dela tinha acrescentado um tubo que parecia fazer parte do sistema de ventilação. Na verdade, porém, servia como posto de vigilância secreto.
Grier subiu e se inclinou para o lado para conseguir enxergar direito, apoiando-se sobre alguns tijolos que estavam mais firmes que os outros.
Quando ela apertou os olhos, sua visão trespassou as ripas e focou-se na entrada da frente. Se ela se arqueasse um pouco mais e esticasse o pescoço, ela conseguiria ver a cozinha...
Grier abandonou a lanterna e apertou as mãos sobre a boca.
Para não gritar.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
PARAÍSO, JARDIM SUL
Nigel concedeu uma audiência antecipada a seus dois anjos guerreiros favoritos não por causa da bondade que havia em seu coração – apesar do fato de ele, Colin, Bertie e Byron estarem no meio de uma refeição. Contudo, não haveria como mandar esses visitantes embora: ele sabia por que Edward e Adrian estavam chegando e eles não iam gostar do que ele tinha para lhes dizer.
Assim, ele sentia que precisava tratar disso pessoalmente.
E, de fato, quando os dois anjos tomaram forma do outro lado do gramado, caminharam ao longo do bosque como os vingadores que eram.
– Sinto muito mesmo – Nigel murmurou para seus assessores. – Mas poderiam, por favor, me dar licença um minuto.
Ele dobrou seu guardanapo damasco e se levantou, pensando que não havia razão para arruinar a refeição dos outros – e o que estava prestes a acontecer verbalmente seria um assassinato gastronômico do tipo mais sangrento.
Colin se levantou também. Nigel preferia fazer isso sozinho, mas não havia como dissuadir o anjo. Nada nem ninguém poderia mudar as ideias de Colin sobre o que teria de sobremesa, muito menos sobre questões de real importância.
Ele e Colin se encontraram com seus visitantes a meio caminho entre o local onde os dois haviam entrado e onde a mesa estava colocada entre as árvores.
– Ela o tem – Edward disse quando os quatro se aproximaram. – Não sabemos como isso aconteceu...
Nigel interrompeu o anjo.
– Ele se entregou para que outra pessoa tivesse uma chance na vida.
– Ele não deveria ter feito isso. Ele é valioso demais.
Nigel olhou na direção de Adrian e viu que o anjo estava em silêncio pela primeira vez. O que era o sinal mais concreto de que havia problemas.
Nigel puxou suas abotoaduras, alisando as mangas de sua camisa de seda dentro de seu terno de linho.
– Ela não vai matá-lo. Não pode.
– Tem certeza disso?
– Há poucas coisas confiáveis nela, mas as regras não foram impostas por ela. Se matar Jim, ela perde não só a rodada, mas o jogo na sua totalidade. Isso vai mantê-la em cheque.
A voz de Adrian percorreu o ar, fina e dura.
– Há algumas coisas piores que a morte.
– Com certeza, você está certo.
– Então, faça alguma maldita coisa. – O anjo vibrava por completo, seu corpo era um presente de natal prestes a ser rasgado em pedaços com ansiedade.
– Porém, nós poderíamos tirá-lo de lá – Edward disse. – Não é contra as regras.
– Claro que poderiam.
Longo silêncio.
Edward limpou a garganta e pareceu dobrar a língua numa contenção educada.
– A imagem que ela nos enviou sugere que ele está preso no mundo dela.
– Ele não está sobre a terra, é verdade.
– Então, como podemos chegar até ele?
– Não podem.
Quando Adrian soltou um palavrão, Edward segurou o braço do outro anjo, mas isso não o calou.
– Você disse que poderíamos tirá-lo de lá.
– Adrian, eu disse “poderiam” no sentido de permissão. Vocês têm permissão de fazer isso dentro das regras. No entanto, eu não fiz um comentário sobre suas habilidades. Neste caso, vocês são incapazes de alcançá-lo sem sacrificarem a si mesmos, deixando-o sem apoio e orientação durante esses momentos inicias e cruciais...
– Seu imbecil.
Antes que Adrian pudesse fazer algo estúpido, Edward transferiu sua força para o pesado peito do cara e o deteve.
Nigel levantou uma sobrancelha para os dois.
– Eu não faço as regras e eu tenho tanta intenção de ser desqualificado quanto meu adversário.
– Você tem... – Adrian engasgou com as palavras e teve que respirar fundo para terminar. – Você tem alguma ideia do que ela está fazendo com ele? Agora mesmo? Enquanto estamos parados em seu maldito gramado e o jantar está esperando por você?
Nigel escolheu as palavras com cuidado. A última coisa que ele precisava era dos dois fazendo justiça com as próprias mãos. Eles já tinham cometido esse erro uma vez, não tinham?
– Eu sei exatamente o que ela está fazendo sobre aquela mesa, por assim dizer. E também sei que Jim é muito forte... o que é a pior tragédia de todas. Pois ela vai recorrer a torturas que... – Não havia razão para continuar: os olhos de Adrian ficaram vítreos como se fosse alguém revivendo um pesadelo. – Eu diria, porém, que Devina não pode mantê-lo por muito tempo ou ela corre o risco de perder. As coisas estão chegando a um limite e, se ela impedir Jim de participar plenamente do que está por vir, então, não haverá uma competição justa.
– E quanto a Jim? – Adrian exigiu, libertando-se do seu melhor amigo. – E quanto ao sofrimento dele? E quanto a ele?
Nigel olhou para Colin, que estava completamente em silêncio. Mais uma vez, sua bela e familiar expressão facial dizia tudo: sua fúria era tão grande e profunda que os oceanos ficariam rasos, se comparados a ela. Ele sempre odiou Devina e isso não serviria de auxílio naquele momento.
No entanto, havia bastante exaltação ali.
Nigel balançou a cabeça com uma sincera decepção.
– Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito. Minhas mãos estão atadas.
– Você sente muito? Você sente muito, seu maldito? – Adrian cuspiu no chão. – Sim, você parece mesmo, seu bastardo frio. Você parece muito desapontado. Imbecil.
Com isso, o anjo se desmaterializou.
– Droga. – Edward murmurou.
– Um palavrão, mas uma palavra adequada para isso. – Nigel olhou para o espaço que Adrian tinha preenchido antes. – É cedo para ele estar tão cansado e frágil com a batalha. Isso não é nada bom.
– Você está brincando comigo, certo?
Ele encarou o anjo.
– Com certeza você deve enxergar a loucura que há nele...
– Para sua informação, chefia, não faz nem quatro dias que Devina usou o cara ao seu bel-prazer. E você acha que ele não vai perder a cabeça agora que Jim está passando pela mesma máquina de tortura? Está falando sério?
– Gostaria de lembrá-lo que você jurou que ele poderia lidar com isso. – Nigel viu-se inclinado para frente em posição de confronto. Afinal, ele poderia ser o capitão deste lado, mas isso não queria dizer que estava isento de socos. – Você me disse que ele poderia suportar o estresse. Você me prometeu e eu acreditei em você. E se acha que vai ficar mais fácil à medida que avançamos, então você está tão louco quanto ele aparenta estar.
Edward ergueu o braço e o puxou para trás como se fosse lhe dar um soco.
– Vá se ferrar, Nigel...
Colin investiu contra o anjo em um piscar de olhos, atacando pela direita, como no futebol americano, derrubou o homem e o imobilizou de bruços sobre a brilhante grama verde.
– Você não toca nele, companheiro – Colin grunhiu. – Eu sei que está chateado e deseja libertar Jim, mas não posso deixar que bata em Nigel. Não vai acontecer.
Nigel olhou para a mesa de jantar. Como Bertie e Byron se viraram para olhar, ele viu que eles estavam sentados como pássaros preocupados, seus corpos se estenderam, os braços caíram nas laterais, os olhos arregalados.
Tarquin tinha deitado no chão e colocado seu longo focinho sob a toalha para que não conseguisse ver nada.
A refeição estava mais que arruinada. E não apenas porque o espetáculo que aconteceu ali foi um desastre de se assistir: na verdade, Nigel não ia ser capaz de colocar nada no estômago. Esse jogo com Devina estava tomando péssimas direções de tantas maneiras... e ele estava paralisado pelas regras.
– Solte-me – Edward resmungou.
Colin deveria ter uma estrutura duas vezes mais leve que a do outro anjo, mas tinha uma força elástica além da média.
– Você vai ser legal, companheiro. Nada mais de socos ou vai ser derrubado outra vez.
– Está bem.
As palavras não foram qualquer tipo de rendição, mas Colin saiu de cima dele de qualquer maneira... provavelmente por saber que só poderia subjugar o homem de novo se fosse necessário.
Edward tirou os pedaços de grama verde que ficaram presos em seu casaco de couro como se fossem lantejoulas.
– Só por que Jim pode sobreviver a isso não significa que seja justo.
Com isso, ele desapareceu no ar.
Após um palavrão silencioso, Nigel observou o desaparecimento da marca deixada pelo corpo pesado de Edward, a grama se erguia, endireitava-se.
– Eles têm razão – Colin disse asperamente. – E a vadia não está jogando limpo.
– Jim se voluntariou para ela.
– Em uma situação que ela projetou. Não está certo e você sabe disso.
– Você quer que nós corramos o risco da derrota? – Ele o encarou. – Você quer perder por causa disso?
Colin espalmou a grama de suas mãos.
– Inferno. Mas que maldito inferno. – Nigel olhou para a marca do corpo que desaparecia em seu gramado.
– Concordo plenamente.
CAPÍTULO 31
A adega não era um lugar aonde Grier ia com frequência. Em primeiro lugar, as garrafas de vinte dólares que enchiam suas taças todas as noites mal valiam o subir e descer de escadas. Em segundo, com sua porta que era como um cofre de banco, seu teto baixo e estantes que percorriam todas as paredes, ela sempre sentia como se lá fosse uma prisão.
E, como pode imaginar... quando seu pai fechou os três no caixão apertado, o peso da presença de Isaac diminuiu o local para o tamanho de uma caixa de lenços de papel e ela sentiu como se não pudesse respirar.
Havia uma mesa polida no centro do espaço e ela ocupou uma das quatro cadeiras. Quando Isaac se sentou à frente dela, foi difícil não se lembrar de quando o encontrou na cadeia: tinha sido bem assim, os dois frente a frente.
Só que agora, apesar do fato que nenhum dos dois estava algemado, ela não conseguia deixar de ter a sensação de que os dois estavam amarrados juntos... e que as rolhas em todas as garrafas eram um pelotão de fuzilamento na iminência de obedecer ao sinal para atirar.
Deus, quando ele foi trazido para se encontrar com ela pela primeira vez, ela não tinha ideia de onde estava se metendo.
Mas, alguém já soube? Quando as pessoas passam por suas vidas cotidianas, escolhas rápidas e eventos aleatórios podem, algumas vezes, girar em um tipo de força centrífuga que as suga e, depois, as expele em um endereço totalmente diferente de onde começaram.
Mesmo quando nunca saem de casa.
Seu pai sentou-se mais próximo da porta e uniu as mãos quando colocou os cotovelos no topo da mesa.
– Estamos seguros aqui embaixo – disse ele, apontando para uma saída de ar no pequeno teto que tinha duas bandeiras vermelhas tremendo com a brisa. – O sistema de ventilação é iniciado a vários quarteirões de distância daqui, assim, não há preocupação com uma contaminação. Há também um túnel e um transmissor de ondas de rádio que irá embaralhar nossas vozes se estivermos sendo gravados.
O túnel era uma novidade e Grier olhou em volta. Até onde ela poderia ver, todas as prateleiras estavam fixadas na parede e o chão era de pedra, mas dado os outros pequenos truques na casa, ela não poderia afirmar que estava surpresa.
Isaac se manifestou.
– Se eu tivesse que ir até alguém e conversar com essa pessoa, quem seria?
– Isso depende de como...
– E quanto à mamãe? – Quando Grier cortou, interrompeu, descarrilou, ela olhou para o rosto de seu pai, procurando por contrações ao redor dos olhos e da boca. – E quando ela morreu? Foi mesmo de câncer?
Embora tivesse sido há sete anos, aqueles dias finais horríveis ainda estavam tão vívidos e ela se infiltrou neles, procurando por rachaduras nas paredes dos acontecimentos, em busca de lugares onde as coisas que pareciam de um jeito pudessem ser de outro.
– Sim. – Seu pai disse. – Sim... ela... Sim, aquilo foi câncer. Eu juro.
Grier exalou e achou difícil imaginar que ela estivesse realmente aliviada por ter sido aquela doença horrível. Mas era muito melhor a Mãe Natureza ter sido a culpada. Muito melhor que aquela tragédia não precisasse ser reescrita. Uma era mais do que suficiente.
Ela limpou a garganta. Assentiu.
– Tudo bem, então. Tudo bem.
Uma mão quente cobriu a dela e a apertou. Como as mãos de seu pai estavam sobre a mesa, ela percebeu que era Isaac. Quando ela olhou para ele, Isaac quebrou a ligação, seu toque durou apenas o suficiente para que ela soubesse que ele estava ali com ela, mas não de maneira que ela se sentisse reprimida.
Deus, as contradições que havia nele. Brutal. Sensual. Protetor.
Com um tapa mental, ela voltou a se concentrar em seu pai.
– Você estava dizendo alguma coisa?
Ele balançou a cabeça e se recompôs antes de olhar para Isaac de novo.
– Até que ponto você está disposto a ir?
– Eu não vou comentar sobre os outros soldados em atividade – disse Isaac. – Mas quanto ao que se tratar das minhas atribuições, vou até o fim. As coisas que fiz para Matthias. O que sei sobre ele e sobre o segundo na linha de comando. Onde os dois me enviaram. O problema é: isso é uma colcha de retalhos... Há muita coisa a qual só conheço em parte.
– Deixe-me mostrar uma coisa.
Seu pai se levantou da mesa e, antes que ela pudesse ver o que ele fez, uma seção de prateleiras veio para frente e deslizou à esquerda, expondo um conjunto de segurança em meio à parede de pedra. A porta resistente foi aberta pelas impressões de toda a palma de sua mão em um painel e o interior não era muito grande – um pouco maior que um bloco de notas na horizontal e não tinha mais que quinze centímetros de altura.
Ele voltou à mesa com uma pasta grossa.
– Isso foi tudo o que consegui reunir. Nomes. Datas. Pessoas. Lugares. Talvez isso ajude a ativar sua memória. – Ele bateu sobre a capa da frente. – E vou descobrir a quem recorrer. Não há como saber com certeza quem está envolvido no círculo de relações de Matthias: conspirações governamentais têm grossas raízes, mas também possuem garras que você não consegue ver. A Casa Branca não é uma opção e é uma questão federal, então, contatos da União não vão nos ajudar. Mas eis o que eu penso...
A voz de seu pai tornava-se mais poderosa a cada palavra, a força crescente do propósito o transformava no pilar que ela sempre acreditou que fosse. E, enquanto ele descrevia os planos, ela sentiu uma mudança no centro de seu coração.
Embora isso se devesse muito a algo que Isaac havia falado. Nenhum de nós sabe no que está entrando até ser tarde demais...
O irmão dela tinha sido um drogado muito amado, um viciado de primeira ordem que teria morrido pelas suas próprias mãos em algum momento – embora essa não fosse uma justificativa para o que tinha sido feito com ele, era a simples realidade da situação. E ela se surpreendeu, na época, em como seu pai ficou desesperado com a perda. Ele e Daniel não mantinham contato há pelo menos um ano antes daquela noite terrível: depois da última internação em mais uma clínica de reabilitação caríssima ter caído no esquecimento, o pai atingiu seu limite assim como muitos pais e familiares faziam. Ele ofereceu tudo o que podia para seu filho, andou com toda dificuldade por uma década nos caminhos da recuperação que deram uma esperança traiçoeira, mas era inevitável que se seguissem longos e obscuros meses em que ninguém sabia onde Daniel estava ou, até mesmo, se estava vivo.
Contudo, seu pai estava inconsolável em sua morte. Ao ponto dele passar uma semana em uma cadeira com nada além de uma garrafa de gim ao seu lado.
E agora ela sabia o porquê. Ele acreditava que era inteiramente responsável.
Enquanto ela o observava falar, notava a idade em seu rosto... as rugas ao redor dos cantos dos olhos e da boca, a ligeira inclinação na linha do queixo. Ele ainda era um homem bonito e, ainda assim, nunca se casou de novo. Será que foi pela bagunça na qual estava envolvido? Provavelmente.
Definitivamente.
Aqueles sinais da idade nele não eram apenas uma questão do tempo. Foi estresse, dor de cabeça e...
Mudando seu foco para Isaac, seu olhar estreito e parecendo um laser era intenso; sua íris pálida brilhava muito com uma luz de “vamos à guerra”. Engraçado, ele não tinha nada a ver com seu pai em termos de antecedentes, educação escolar, exposição, experiência. E, ainda assim, eles eram idênticos em muitos aspectos.
Especialmente unidos na missão comum de fazer o certo.
– Grier?
Sacudindo-se, ela olhou para seu pai. Ele estava segurando algo em sua direção... um lenço? Mas por quê...
Quando ela sentiu algo atingir seu antebraço, olhou para baixo. Uma lágrima prateada se recolhia após a queda de seu olho, aglomerando-se em um pequeno círculo brilhante em sua pele.
Outra escorreu e atrapalhou todo seu esforço – mas, então, as duas uniram forças e a massa duplicou.
Ela pegou o lenço e enxugou suas lágrimas.
– Eu sinto tanto – seu pai disse.
Ela enxugou o rosto e redobrou o linho fino, lembrando-se dele fazendo a mesma coisa quando estavam na cozinha.
– Sabe? – ela murmurou. – Desculpas não significam nada. – Ela apoiou a mão na pasta que ele tinha colocado na mesa. – Isso... o que vocês dois estão fazendo... isso é tudo.
A única coisa que poderia consertar qualquer aspecto sobre isso.
Para interromper a conversa mental, abriu a capa...
Ela franziu a testa e se inclinou. A primeira página era uma impressão da imagem de quatro fotografias de rosto. Todos homens. Todos eles pareciam diferentes versões étnicas de Isaac. Embaixo das imagens, com a caligrafia de seu pai, havia nomes, datas de nascimento, números de cadastro na segurança social, a última vez que foram vistos... embora nem todos os dados estivessem concluídos. E três deles tinham a palavra FALECIDO embaixo de suas fotos.
Ela virou para próxima página e a próxima. A mesma coisa. Tantos rostos.
– Eu quero que Jim Heron entre nessa – Isaac disse. – Quanto mais estiver disposto a ir adiante, melhor...
– Jim Heron? – o pai dela disse. – Você quer dizer Zacarias?
– Sim. Eu o vi mais cedo essa noite e na noite anterior. Eu pensei que ele tinha sido enviado para me matar, mas, ao que parece, ele quer me ajudar... ou é assim que diz.
– Você o viu?
– Ele estava com dois rapazes. Eu nãos os reconheci, mas parecem com caras que poderiam ser das operações extraoficiais.
– Mas...
– Oh, meu Deus. – Grier sussurrou, aproximando uma das páginas. – É ele.
Quando ela apontou para uma das fotos, ouviu seu pai dizendo: – Jim Heron está morto. Atiraram nele em Caldwell, Nova York. Há quatro noites.
– É ele. – Ela repetiu, batendo na foto.
A voz de Isaac soou confusa.
– Como sabia? Grier... como você sabia?
Ela olhou para ele.
– Sabia o que?
– Que era Jim Heron.
Movendo seu dedo, ela viu o nome Zacarias abaixo da foto.
– Bem, eu não sei quem ele é, mas esse é o homem que apareceu no meu quarto na noite passada. Como um anjo.
CAPÍTULO 32
Aquilo não estava funcionando.
Lá no fundo do Inferno, onde ela mantinha suas almas capturadas e onde o ar rarefeito ecoava os gemidos de seus servos oleosos, Devina estava sofrendo de um caso grave de mau humor.
Razão pela qual ela mandou todos embora.
Parando de repente, ela observou o pedaço de carne amarrado com um fio metálico em sua mesa. À luz das velas, Jim Heron era uma obra ao estilo Pollock com sangue, cera negra e outros líquidos de vários tipos, e ele estava tendo dificuldades para respirar através de seus lábios inchados e rachados. Em seu estômago, havia um roteiro de escavações que ela tinha feito com suas próprias garras e as coxas dele estavam bem marcadas com seu nome e seus símbolos.
Seu pênis tinha sido utilizado até ficar tão em carne viva quanto o resto do corpo dele.
E, ainda assim, ele não chorou ou implorou ou sequer abriu os olhos. Nenhuma blasfêmia, nada de lágrimas. Nada.
Ela não tinha certeza se deveria ficar chateada consigo e com seus ajudantes por não terem se esforçado o suficiente... ou se estava se apaixonando pelo bastardo.
De qualquer maneira, ela tinha a determinação de conseguir um pedaço dele. A questão era como.
Devina estava bem consciente de que havia duas maneiras de quebrar alguém. A primeira era de fora para dentro: você esculpia a pele, os ossos e o sexo do indivíduo até que a dor física, a exaustão e a vergonha aniquilavam seu núcleo mental. A segunda era o inverso: encontrar a fenda que havia dentro da pessoa e martelar com palavras até que tudo desmoronasse.
Normalmente, a primeira era suficiente para ela, tendo em conta todas as ferramentas à sua disposição – e também era divertido e, portanto, era por onde ela sempre começava. A segunda era mais complicada, embora não menos satisfatória à sua maneira. Todas as pessoas tinham chaves para abrir suas portas internas; ela só precisava classificá-las e descobrir aquela que a levaria para dentro da mente e do coração do indivíduo.
No caso de Jim Heron... Bem, estava claro que ele ia dar trabalho. E aquilo ainda abriria uma competição pelo brinquedo favorito com Adrian.
O que escolher, o que escolher...
A mãe dele. Sua mãe era uma boa, mas Devina não era capaz de ficar calma para se aproximar da realidade e ele deveria ser inteligente o suficiente para descobrir que ela estava fingindo...
Felizmente, havia outra solução que estava sob seu controle.
Fora do alcance da luz das velas, presas em suas paredes viscosas, as almas daqueles que ela capturou se contorciam. Mãos, pernas, pés e cabeças faziam aparições ondulantes que nunca quebravam a superfície suspensa, o torturado sempre procurava por uma saída.
A satisfação de ver sua coleção a distraiu, mas também a deixou faminta: ela tinha que ter Jim também como um troféu entre os outros. Estava desesperada para tê-lo dentro dela. No início, tinha sido um mero jogo; agora, depois daquela sessão, era muito mais que isso.
Ela queria obtê-lo.
Voltando a focar o rosto dele, ela achou sua expressão quase impossível de compreender. Como um homem poderia ter passado por tanta coisa... e sem sequer fazer uma careta. E também sem medo do que estava por vir.
Contudo, ela ia consertar isso.
E ela gostava de pensar que esse poder nele vinha daquela porção que ela compunha. Aqueles anjos de corações sangrando com sua contenção e moral sacrossantas... fracos, tão fracos. Ao ponto de ela não querer perder o jogo contra Nigel não apenas porque poderia governar a terra e os céus e tudo o que havia entre o sol e a lua... mas porque um bom tapa no traseiro daqueles maricas seria demais.
Contudo, Jim... ele era melhor que isso. Ele era mais parecido com ela no fundo de seu ser.
Que tragédia ter que enviá-lo à Terra em breve; mas o jogo, afinal, tinha que ser retomado. Entretanto, antes de ir, ela estava determinada em fazer uma impressão nele, dar a ele mais um pouco do que seria o Inferno Eterno. Afinal, os cortes em sua pele eram relativamente rasos. Porém, marcas na mente eram muito, muito mais profundas.
E imortais eram especialmente gratificantes nesse sentido, pois, conforme o cérebro persistia, assim era a memória – e isso significava que ela poderia deixar cicatrizes eternas.
Olhando a parede, que se estendia quilômetros acima dela, Devina pensou em sua terapeuta e no trabalho que estavam fazendo juntas. Aquele era um domínio que estava fora dos limites de sua “recuperação”, e sua situação com Jim era mais uma prova de como seu probleminha de acumular objetos viria a calhar.
Você nunca sabe do que pode precisar.
Estendendo a mão, puxou uma das formas mais esbeltas, movendo-a dentre as outras almas, chamando-a até ela. Quando estava no chão, ela convocou a alma e a vestiu da forma corpórea que costumava exibir na Terra.
Devina sorriu frente a isso. Tanta utilidade em um pacotinho tão insosso e esquecível.
Voltando-se para a mesa, ela disse: – Jim? Tenho alguém aqui que você vai querer ver.
Deitado sobre a mesa de Devina, ele duvidou. Duvidou disso, de maneira muito sincera.
Além disso, naquele ponto, visões provavelmente não eram convidativas.
Nada mais doía, o que tornava aquela droga toda muito mais fácil. No entanto, a troca que fez por aquela feliz dormência foi sua consciência recolhida a um canto escuro de seu interior. Ele ainda não tinha deitado a cabeça para tirar um cochilo, mas estava chegando lá: a audição tinha atingido a fase do algodão, onde tudo estava abafado e as coisas estavam bem frias dentro de sua pele.
Os sinais clássicos do choque faziam com que ele se perguntasse se ela tinha, de fato, a capacidade de matá-lo.
Ela não tinha finalizado Adrian, mas será que aquilo não seria um capricho do afeto?
– Vou deixar vocês dois se conhecerem.
A satisfação de Devina não era uma boa notícia, considerando que ela fez todo o inumano possível para acabar com ele afinal... Por quanto tempo? Horas? Tinha que ser.
Passos. Recuando.
Uma porta. Fechada.
Silêncio.
Contudo, alguma coisa estava com ele. Ele conseguia sentir a presença à sua esquerda.
Atrás de suas pálpebras fechadas, ele tinha certeza de duas coisas: Devina não devia ter ido muito longe e, seja lá o que foi que ela trancou com ele, estava perto.
A respiração foi a primeira coisa que ele notou. Macia, suspensa. Do tipo que você pratica quando está em modo de recuperação. Será que era sua própria respiração?
Não. O ritmo era diferente.
Ele virou a cabeça com cuidado em direção a coisa e babou, sua boca se livrou do que ele não conseguia engolir por causa do fio em volta do seu pescoço.
Seja lá o que estava com ele, soltou outra respiração suspensa. E, então, ele ouviu um sutil estalo.
Que diabos era aquilo?
Em dado momento, a curiosidade prevaleceu e ele rompeu uma de suas pálpebras... ou deu uma chance a elas, por assim dizer. Precisou de duas tentativas e ele teve que empurrar as sobrancelhas em direção à testa antes que as porcarias se abrissem...
No início, Jim não conseguiu compreender o que estava olhando. Mas o cabelo loiro não podia ser negado... aqueles cabelos longos e loiros que caiam sobre ombros frágeis.
A última vez que os viu tinha sido há dois dias. No banheiro de Devina.
Estava banhado de sangue.
A garota que tinha sido sacrificada para proteger o espelho de Devina estava vestida com uma capa manchada, seus braços finos cobriam os seios, uma pequena mão protegia a junção de suas coxas. Parecia, como milagre, que ela não estava marcada, mas o trauma estava ali: seus olhos estavam arregalados e horrorizados...
Só que eles não estavam na sala. Eles estavam nele... em seu corpo e nos restos brilhantes e pegajosos de tudo o que tinham feito com ele.
– Não... – A voz dele estava tão fraca que ele precisou puxar mais ar através daquela barreira de arame em sua garganta. – Não olhe... para mim. Afaste-se... Pelo amor de Deus, afaste-se...
Droga. Ele precisava de mais oxigênio, precisava fazer com que ela...
Os olhos dela encontraram os dele. O choque e o terror em sua face disseram mais do que ele precisava saber, não apenas do que tinha sido feito com ela por Devina, mas sobre o que a visão dele estava fazendo com aquela pobre garota.
– Não olhe para mim!
Quando ela se encolheu e retraiu-se, seu temperamento vacilou. Não que houvesse muito para conter – mas ele usou toda sua força naquele grito.
– Cubra o rosto – ele disse com a voz rouca. – Afaste-se e apenas... cubra o rosto.
A garota ergueu as mãos e se virou, sua coluna delicada destacava-se contra a capa conforme tremia.
Jim tinha puxado suas amarras involuntariamente durante a pequena sessão de exercícios com Devina. Agora, ele as empurrava.
– Você está se machucando – ela disse enquanto ele grunhia. – Por favor... pare.
A dor interrompia sua capacidade de fala e levou um tempo para dizer alguma coisa.
– Onde... Onde ela a mantém? Aqui embaixo?
– Na... na... – Sua voz era tão débil e, entre as palavras, seus dentes batiam, o que explicava o clique que ele tinha ouvido. – Na parede...
Seus olhos se atiraram em direção à escuridão, mas a luz das velas formava um bloqueio luminoso que seus olhos não conseguiam ultrapassar.
– Como ela faz isso? – Sem correntes, ele esperava.
E, droga, ele ia ferrar Devina por isso.
– Eu não sei – a garota disse. – Onde estou?
No inferno. Mas ele manteve isso para si.
– Eu vou tirá-la daqui.
– Minha mãe e meu pai... – ela caiu em lágrimas. – Eles não sabem onde estou.
– Vou dizer a eles.
– Como... – Quando ela olhou sobre seu ombro, seus olhos se fixaram sobre seu dorso degradado e ela empalideceu.
Ele balançou a cabeça.
– Não olhe. Prometa... não olhe mais para mim.
Mãos pálidas voltaram àquele belo rosto e ela assentiu.
– Meu nome é Cecilia. Sissy Barten, com ‘e’. Tenho 19 anos. Quase vinte.
– Você mora em Caldwell?
– Sim. Estou morta?
– Quero que faça uma coisa por mim.
Agora, ela deixou cair os braços e olhou para ele com firmeza.
– Estou morta?
– Sim.
Ela fechou os olhos como se outra onda de agitação atingisse seu corpo.
– Esse não é o Céu. Eu acredito no Céu. O que eu fiz de errado?
Jim sentiu algo quente no canto dos dois olhos.
– Nada. Você não fez nada de errado. E eu vou te levar para lá.
Nem que fosse a última maldita coisa que fizesse.
– Quem é você?
– Sou um soldado.
– Como no Iraque?
– Costumava ser. Agora eu luto contra essa vadia... ah, mulher que fez isso a você.
– Eu pensei que estava ajudando... quando a moça me pediu para carregar uma bolsa para ela. Eu pensei que estava ajudando... – Ela inspirou com força como se estivesse tentando se recompor. – Você não pode sair daqui. Eu tentei.
– Eu vou salvá-la.
De repente, a voz dela ficou mais forte.
– Eles machucaram você.
Droga, ela estava olhando para ele de novo.
– Não se preocupe comigo... tem que se preocupar consigo mesma.
Um som, como de algo caindo ou talvez uma porta de metal se fechando, ecoou, assustando a garota e focando Jim. Sem dúvida, Devina chegaria logo e colocaria Sissy de volta ao seu lugar, então, ele tinha que agir rápido. Ele não sabia quando voltaria ali ou como exatamente poderia libertar sua garota.
Sissy, era esse o nome.
– É ela? – Sissy perguntou tensa ao ouvir o som de passos ao longe. – É ela, não é? Eu não quero voltar para a parede... por favor, não deixe que ela...
– Sissy, ouça. Eu preciso que você se acalme. – Ela tinha que ter algo para focar, algo para manter sua mente sã enquanto ele descobria como voltar ali para salvá-la. Sondando sua mente, ele tentou criar uma imagem, algo para acalmá-la.
– Eu preciso que me ouça com atenção.
– Eu não posso voltar para lá!
Droga, o que fazer para que ela se concentre?
– Eu tenho um cachorro – ele desabafou.
Houve uma agitação, como se ele a tivesse surpreendido.
– Você tem?
Quando os passos se aproximaram, ele quis soltar um palavrão.
– Sim, eu tenho.
– Eu gosto de cachorros – ela disse em voz baixa, seus olhos fixos nele.
– Ele é cinza, meio loiro e peludo. Seu pelo... – os passos foram ficando cada vez mais altos e Jim falou rápido. – Seu pelo é grosso, como se fosse feito das sobrancelhas de um senhor idoso e ele tem patinhas. Ele gosta de sentar no meu colo. Ele tem uma perna manca que aparece quando ele corre rápido demais e ele gosta de comer minhas meias.
Uma fungada e uma respiração suspensa. Como se soubesse o que estava se aproximando e ela ia fazer o melhor que podia para segurar a corda de segurança que ele estava tentando oferecer.
– Qual o nome dele?
– Cachorro. Eu o chamo de Cachorro. Ele come pizza e sanduíche de peru e dorme no meu peito. – Mais rápido. Mais rápido com as palavras. – Você vai conhecê-lo, ok? Você vai levá-lo para passear em um gramado e... Sabe quando se dobra uma meia dentro de outra?
– Sim. – Agora havia urgência. Como se ela quisesse o máximo que ele poderia dar. – Uma bola de meia.
– Bolas de meia... é isso. – Rápido, rápido, rápido. – Você vai pegar uma bola de meia, vai jogar e ele vai trazê-la de volta para você. O sol é alto, Sissy. Você pode senti-lo em seu rosto...
– Quando você volta? – ela sussurrou.
– Assim que eu puder. – Ele estava falando de maneira confusa agora, os passos se aproximavam e ele sabia que estavam usando saltos agulha afiados e pontudos.
– Lembre-se do Cachorro. Está me ouvindo? Quando sentir que está perdendo, lembre-se do meu cachorro...
– Não me deixe aqui...
– Vou voltar por você...
O rosto de Sissy estava cheio de lágrimas quando ela estendeu a mão para ele.
– Não me deixe aqui!
Em um instante, ela assumiu a forma que tinha quando ele a viu sobre a banheira, aquela capa desapareceu, deixando-a nua, seu corpo estava profanado, seus cabelos loiros desgrenhados e emaranhados com sangue.
De repente, seus olhos saltaram para um canto distante e seus lábios manchados começaram a tremer.
– Não!
Ela colocou as mãos para cima como se quisesse afastar golpes, curvando-se para se afastar deles...
Dessa maneira, ela se foi. E Devina, a bela e diabólica Devina, entrou sob a luz das velas.
Jim perdeu essa.
Parou na metade.
Perdeu como um filho da mãe.
Quando ele xingou a assassina sangrenta, era tudo sobre a menina. A moça inocente que tinha sido tirada de sua família por um demônio, puxada para um buraco e aprisionada ali... e obrigada a ver o que restou de um homem torturado.
A raiva era uma bomba nuclear que explodia dentro dele...
A luz branca entornou de suas órbitas, explodindo na sala, iluminando as brilhantes paredes pretas que se estendiam para cima em direção ao infinito. A liberação da luz consumiu sua forma física, libertando-o das amarras de Devina, levando-o a percorrer o espaço em uma rajada de moléculas soltas que sopraram as velas e derrubaram seus suportes.
Aglutinando sua forma intensamente, ele se virou... e foi ao ataque de Devina.
Agora, era ela quem se preparava para o impacto, seu cabelo moreno foi arrancado de seu couro cabeludo com o furacão explosivo que ele produziu, a pele de seu rosto foi de encontro a sua estrutura óssea quando ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre o chão de pedra.
Assim que ele a alcançou, Jim reuniu sua nova forma em uma lança certeira e atirou-se direto em direção ao peito dela.
Jim entrou no corpo dela e lançou a vadia longe, todas as partes dela saíram voando, pedaços de sua pele, emaranhados de entranhas escorregadias e quilos de carne vermelha escura se espalharam pelas paredes de sua masmorra.
O que sobrou foi um buraco negro da mesma massa e energia que o compuseram – ele estava pronto para atacá-la assim.
Só que, evidentemente, ela não estava interessada em uma luta corpo a corpo: sua sombra distorcida saiu da sala e desceu um corredor, iniciando uma fuga.
Mas que... Droga!
Jim correu atrás dela...
E se chocou com o equivalente metafísico de uma casa de tijolos.
O impacto chocante da barreira invisível o enviou para trás e ele assumiu sua forma corpórea mais uma vez ao deslizar em carne viva no chão de pedra.
Ele teve um breve momento para soltar um “mas que inferno!” antes que o sinal de fim de jogo do seu corpo piscasse e ele caísse de costa em exaustão absoluta.
Quando sua raiva passou, nada mais havia nele e um cansaço fatal sangrou de seu coração que batia de maneira estranha e se espalhou por ele como uma erva daninha que se enraíza e floresce. Não mais sendo capaz de erguer a cabeça, ele deixou a coisa descansar na pedra e apenas respirou, mal notando que o ar estava saturado com cheiro de morte recente e com uma pitada acre da fumaça das velas.
– Sissy – ele disse na escuridão. – Estou bem aqui...
Ele não tinha ideia de se ela podia ouvi-lo e não houve resposta. Apenas um som estranho, fundido... sem dúvida, as almas tentando se livrar de sua prisão.
Ele odiava pensar que sua garota estava presa lá.
Odiava o fato de tê-lo visto daquela maneira.
Com esse pensamento, a dor o incomodou como se tivesse sido esfaqueado com uma barra de ferro. Oh, Deus... aquela pobre criança...
Um aumento súbito de emoção veio sobre ele em uma onda: nu, arrasado e imundo, Jim encolheu-se para um lado e chorou sufocado e com grande sofrimento, suas lágrimas quentes e salgadas percorriam a pele de seu rosto arrasado.
Ele nunca se preocupou em se machucar. Nunca. Mas suas falhas... seus fracassos eram insuportáveis. E agora havia duas mulheres que ele não tinha sido capaz de salvar: sua amada mãe e Sissy... Nas duas ocasiões, ele chegou tarde demais no local, nas duas ocasiões, o dano já havia sido feito antes dele chegar.
Com uma precisão horrível, ele viu sua mãe no chão da cozinha da fazenda, nada além de estraçalhada... e Sissy sobre a banheira.
Agora Sissy também, tentando se afastar do demônio.
Era demais para suportar, o peso de suas falhas era grande demais para suportar, quanto mais para continuar a lutar...
O som de seu nome abriu seus olhos e diminuíram os soluços.
Com um esforço enorme, ele virou a cabeça e olhou para cima.
Muito, muito, muito acima, a uma galáxia de distância de onde ele estava, um pontinho de luz se recolhia e ficava mais forte, começando de novo como se fosse a cintilação minúscula de um pisca-pisca na árvore de Natal... e, então, se intensificou para 25, depois 60 e, então, parecia uma lâmpada de 100 watts.
A iluminação caía sobre ele com a velocidade e a eficiência de uma pluma através do fino ar... dentes de leão soprados pela boca de uma criança... flores do campo sob uma brisa suave...
Levou um tempo bastante longo para que sua mente abrangesse a desconexão entre seu desespero épico e o delicado caminho de luz. Fechando os olhos, ele parou de assistir e se entregou ao estremecer aleatório de seu corpo espancado.
– Jim.
Uma voz masculina. Sobre ele.
Jim abriu as pálpebras para ver que a luz havia se tornado um homem de cabelos escuros com asas douradas magníficas.
Colin.
O arcanjo número dois.
– Ei, companheiro – o cara disse ao se ajoelhar. – Eu vim para te tirar daqui.
De algum lugar, só Deus sabe de onde, Jim convocou energia suficiente para falar.
– Leve-a no meu lugar. Deixe-me aqui... leve-a no meu lugar. Sissy. A menina...
– Isso eu não posso fazer. Eu não deveria estar aqui agora. – O anjo se inclinou e reuniu a forma arrasada de Jim em seus braços. – Mas você vai precisar de um tempo para se recuperar antes que possa sequer se sentar, quanto mais sair daqui por si mesmo. E a guerra continua sem você.
Nenhum argumento para seu nível de energia, mas Deus, ele gostaria que Sissy estivesse um milhão de quilômetros longe dali.
– Deixe-me – ele gemeu.
– Não nessa vida. Você quer Sissy liberta? Derrote Devina. É assim que vai libertar sua garota desse pesadelo.
Quando começaram a levitar, a cabeça de Jim pendeu para um lado e ele os viu subir, subir, afastando-se metros e metros – inferno, eram quilômetros – das paredes negras. Ao longo do caminho, a forma brilhante de Colin iluminava o deslocamento, agitando a superfície, e rostos se sobressaíam na opacidade, através da barreira líquida, como se aqueles que estavam presos tentassem vê-los, pegá-los, juntar-se a eles na fuga. De todas as direções, mãos se estendiam. Contorcendo-se em formas grotescas como se a barreira maleável da prisão provasse ser rígida demais para ser trespassada.
Onde estava a garota dele? Sua bela e inocente garota que...
O cérebro de Jim estava esgotado, a trama de seus pensamentos se desembaraçava, a consciência começou a desistir daquele fantasma e se aprofundou no berço rígido das paredes de seu crânio.
Enquanto desmaiava, sua última missiva mental foi uma oração: que Sissy se lembrasse do Cachorro e se agarrasse a essa esperança até que Jim pudesse fazer disso realidade.
CAPÍTULO 33
Na adega, com a imagem de Jim Heron exposta no dossiê, Isaac estava certo que os dois Childes tinham perdido a cabeça.
– Ele não está morto. – Isaac lançou olhares para pai e filha. – Eu não tenho certeza do que você viu ou o que ouviu...
– Ele esteve no meu quarto. – Grier balançou a cabeça. – Foi assim que fiquei sabendo que você estava tendo o pesadelo. Ele apontou o caminho e, em seguida, eu fui até você. Pensei que era um sonho, mas por que identifiquei o rosto dele na foto de maneira tão clara?
– Porque você o viu. Ontem à noite, na luta. Ele estava comigo.
– Não, ele não estava.
Certo. O cara esteve bem na frente dela.
– Você disse que era um anjo.
– Bem, parece que ele tinha asas.
Teoricamente, era possível que Heron tivesse feito uma visita a ela – mas com o alarme de segurança, era possível concluir que ele deve ter ficado distante das portas francesas da sacada. Ao acordar e ficar meio desorientada, ela concluiu que Jim estava do lado de dentro. E isso foi apenas uma coincidência com o pesadelo... Assim como as asas? Jim Heron nunca foi santo, muito menos um anjo. Seja lá o que ela tinha visto, devem ter sido reflexos dos vidros. Tinha que ser.
O pai de Grier falou.
– Estou dizendo, ele está morto. Eu recebo um alerta de rastreadores na internet com os nomes dos agentes que conheço... e ele levou um tiro em Caldwell, Nova York, há quatro dias.
Isaac revirou os olhos.
– Não acredite em tudo que lê. Eu falei com o cara no jardim dos fundos ao anoitecer. Frente a frente. Confie em mim, ele está vivo e precisamos dele. – Isaac ficou em pé. – Os amigos dele estão vigiando a casa enquanto conversamos e, pessoalmente, acho que Heron declarou uma guerra velada a Matthias, então, tenho plena certeza de que podemos chamá-lo para trabalhar conosco, concluindo que eles ainda não o mataram. Acredito que o status dele é de desaparecido em ação, no momento.
– Espero que possa agregá-los, então, pois quanto mais pessoas para acompanhá-lo, melhor. – Childe bateu uma de suas mãos sobre os dossiês. – Deve revisar tudo isso essa noite, preencher as lacunas, tentar encaixar o que sabe... mesmo que não queira entregar seus companheiros soldados, isso pode ajudar nas suas lembranças. Vou subir até o corredor do banheiro e usar meu telefone de segurança para fazer algumas ligações e estabelecer as coisas o mais rápido que puder.
– Entendido. Mas eu gostaria que o senhor ficasse longe das janelas e não saísse da casa.
– Vou ser cuidadoso. – Childe lançou um olhar à sua filha. – Prometo.
Quando o pai de Grier desapareceu escada acima, Isaac verificou o transmissor de alerta. O aparelho ainda mostrava que o sinal tinha sido enviado, mas ainda não tinha recebido resposta. O que significava que ele ou estava muito abaixo do solo naquela adega para receber isso... ou Matthias estava dando um tempinho para entrar em contato.
Ele olhou para Grier.
– É melhor eu ficar lá em cima por um tempo no caso deles tentarem entrar em contato comigo.
– O que você vai fazer? Se eles quiserem se encontrar com você imediatamente?
– Tenho uma margem de tempo até eu me entregar. Mas seu pai precisa fazer alguns milagres rapidamente. – E, por favor, Deus, faça com que Jim Heron esteja bem... e que apareça logo.
Ela acariciou os dossiês com sua mão elegante.
– Ele é bom com milagres. Na verdade, é a especialidade dele. Você deveria vê-lo negociando. – Seus olhos baixaram até a pasta. – Vou ficar aqui. Quero ver se reconheço algum desses homens. Havia muitos que batiam na porta durante a minha infância e eu sempre me perguntei quem eles eram.
Quando ela ficou em silêncio, ele deu um passo adiante. E depois outro. Em volta da mesa, até que estivesse ao lado dela.
Quando ela levantou o olhar para ele, Isaac colocou para trás com cuidado uma mecha de cabelo que estava em seu rosto.
– Não vou perguntar se está bem, pois como poderia, não é?
– Você já sentiu... como se não reconhecesse sua própria vida?
– Sim. E isso foi o que me levou a mudar.
Bem, aquele tinha sido o primeiro passo. Ele estava começando a acreditar que ela era o segundo. E com o pai dela e Jim Heron... três era o número mágico. Se Deus quisesse.
– Sabe de uma coisa? – ela disse. – Estou realmente feliz em ter te conhecido.
Isaac recuou.
– Pelo amor de Deus, como pode dizer isso?
– Você foi a chave que destrancou as mentiras. – Ela voltou a encarar a foto de Jim Heron. – Acho que sem você nada disso seria esclarecido. Apenas algo que pudesse estilhaçar assim...
Quando ela não completou, ele deu um passo para trás.
– Sim. Esse sou eu.
Ela assentiu de maneira distraída, virou a página e se perdeu nos rostos dos homens que eram exatamente como ele... homens que haviam arruinado a família dela.
Estilhaçado.
Será que os agentes que tinham matado seu irmão estavam ali? Com algumas notas?
De alguma maneira, ele duvidava que o pai os colocasse ali.
– Posso lhe servir um pouco de vinho? – ele perguntou, antes de sair.
Grier sorriu um pouco.
– Estou cercada disso.
– Verdade. – Ele deveria ter oferecido café. Água. Cerveja. Uma troca de óleo. Qualquer coisa que ele pudesse fazer por ela ou dar a ela para acalmá-la.
Bem, agora, com essa brecha, havia algo melhor que poderia fazer. Ele poderia deixá-la.
– Vou estar lá em cima. – Quando ele alcançou a porta, olhou para trás. Ela estava enterrada nos dossiês, sobrancelhas tensas, braços no colo ao inclinar-se sobre a mesa.
Sim, deixá-la tornaria as coisas muito melhor.
Ele se virou e subiu as escadas para a cozinha de dois em dois degraus. Parando na base da escada, ele ouviu alguma coisa. Não um som. O que fazia sentido uma vez que o pai dela tinha se trancado em um banheiro protegido.
Droga, ele não acreditava que estava prestes a denunciar Matthias. Mas, às vezes, a morte natural era boa demais para alguém. Melhor que apodrecer atrás das grades ou ficar tão aceso quanto a Times Square em uma cadeira elétrica.
Era quase como se ele estivesse destinado a encontrar Grier e seu pai nesse exato momento de sua vida – os dois tinham sido predestinados a lhe mostrar algo muito mais honroso do que havia planejado fazer.
Contudo, Jim Heron se mostraria importante também.
Apalpando uma de suas armas, saiu para o jardim pela porta dos fundos.
Evitando a luz que era sensível ao movimento, ele aguardou nas sombras sem fazer barulhos e, claro, um dos amigos de Jim se aproximou um momento depois. No instante em que colocou os olhos no cara, estava claro que o clima permanecia ruim: o cara com a trança tinha os lábios apertados e o olhar rígido como de um homem que ainda não sabia onde um dos membros de seu time estava.
– Jim ainda não pôde vir? – Isaac perguntou. Mesmo sabendo que a resposta era um claro “não”, dado àquela expressão.
– Espero que possa vê-lo pela manhã.
Isaac olhou para seu relógio.
– Não sei se tenho todo esse tempo.
– Arranje algum.
Fácil para ele dizer.
– Vai me dizer se ele aparecer?
Quando o cara assentiu, Isaac ficou muito preocupado.
– Ele está bem? – Quando o cara balançou a cabeça devagar, Isaac soltou um palavrão.
– Você vai me dizer o que está acontecendo? – Silêncio. – Sabe? Para sua informação, as pessoas pensam que ele morreu.
– Tudo que posso dizer é que... neste momento, ele gostaria de estar morto.
Adrian observou enquanto Eddie conversava com Rothe perto da porta dos fundos e mesmo Ad sendo intrometido como ninguém, ele não se importava com o que estavam dizendo.
Nigel. Aquele filho da mãe do Nigel.
Pensava que era o “Sr. Acima de Tudo Quanto é Mais Sagrado”.
Que estava mais que disposto a deixar seu maior trunfo ser usado e abusado pelo inimigo apenas porque era bichinha demais para arregaçar as mangas e nocautear Devina.
Enquanto isso, Jim era um equipamento de ginástica para um bando de babacas pervertidos.
Cara, ele apenas veio com aquela história de não poder fazer nada. Se Ad tivesse um de seus amigos capturado e ele pudesse libertá-lo? Não importava o que ele tivesse que fazer, o sacrifício que isso fosse requerer, por onde tivesse que passar: ele traria o pobre filho da mãe de volta. E onde estava seu chefe agora? Jantando.
Aquilo fazia com que ele desejasse enfiar a sobremesa no traseiro de Nigel.
Adrian esfregou o rosto com tanta força que quase arrancou o nariz. O problema era: a pequena oficina de Devina não era acessível a ele ou a Eddie, a menos que saltassem através de seu espelho – caso contrário, ela tinha que levá-lo até lá... e ela o liberava dali apenas quando estivesse bem satisfeita.
Nunca antes.
Foi por isso que eles foram até Nigel. Havia rumores de que arcanjos poderiam descer ao inferno sob certas circunstâncias – ninguém sabia exatamente o que aquelas mocinhas tinham que fazer ou como funcionava. Contudo, a moral da história era que aqueles quatro pesos-pena eram sua única esperança...
Como se seu nome tivesse sido pronunciado em vão, Colin apareceu do nada, os cabelos escuros do arcanjo surgiram em frente ao rosto de Adrian.
– Droga! – Ad falou entre dentes ao pular para trás e segurar-se em um arbusto – que rapidamente se quebrou ao meio com seu corpo pesado.
Ele aterrissou como um saco de areia, mas não ficou parado. Levantando-se, assumiu uma postura que exigia uma explicação: aqueles rapazes não costumavam aparecer à toa na Terra.
– O que você está...
– Eu o tirei de lá.
Ad piscou, de repente ele não entendia o idioma. Espere um minuto. Ele tinha acabado de ouvir que...
– Jim? Você está falando de Jim?
– Está livre.
– Mas Nigel disse...
– Não estou discutindo isso. Eu tinha a opção de tirar alguém do covil de Devina e coloquei o pobre rapaz no hotel em que estão hospedados... ele precisa de cuidados.
Eddie se aproximou.
– Você o tirou de lá? Mas eu pensei que Nigel...
– Eu tenho que ir. – Colin deu um passo para trás e começou a desaparecer. – Vão ajudá-lo. Ele precisa.
– Obrigado. – Ad respirou, aliviado e enjoado: a recuperação de alguém que passou por uma das sessões de Devina era terrível. Principalmente porque as memórias daqueles momentos eram muito vívidas.
Colin balançou a cabeça ao desaparecer, sua voz era demorada: – Isso simplesmente não foi certo.
– Estou indo para o hotel – Adrian disse, desfraldando suas asas para se elevar no ar. – Fique de olho em Isaac...
Eddie segurou o braço dele com força.
– Deixe-me cuidar de Jim.
– Não.
– Essa não é bem sua área, Adrian. – O aperto de Eddie o manteve no chão, aquela grande mão espremia seus ossos e músculos. – E sabe disso.
– Pro inferno que não é.
Libertando-se, ele deu três saltos e saiu voando pelo ar, aprofundando-se na noite e impulsionando-se para oeste. O voo de volta para onde estavam hospedados foi irregular e acidentando – mas não por causa do vento. Era mais porque Eddie tinha razão, o filho da mãe.
Quando Ad chegou ao hotel, ele queria ir até os quartos atravessando as paredes, mas decidiu não arriscar: uma vez que o papel de bala interior que o envolvia estava solto e se debatendo, ele caiu no gramado e seguiu pela recepção. Ele tinha a sensação de que estava distraído e enjoado demais para atravessar madeira e concreto com sucesso.
O problema era: ele sabia exatamente como Jim estava.
Ao alcançar a recepção, uma mulher simpática atrás da mesa o cumprimentou: – Boa-noite, senhor. – Mas ele apenas acenou e iniciou uma corrida. Não houve espera pelo elevador, um casal estava fazendo check-in com seus filhos e tinham um carrinho cheio de bagagens. Mas mesmo com aquela situação tão conveniente, ele não era capaz de esperar tanto tempo para que as portas se abrissem para ele.
Pelas escadas. De dois em dois degraus. Algumas vezes três.
Quando chegou ao último andar, seu coração estava a mil por hora e não apenas porque tinha se exercitado. Ele não tinha a chave do quarto de Jim, então, pegou a sua mesmo e deslizou no vão da fechadura.
Ele abriu o caminho como uma explosão.
– Jim? Jim?
O brilho do banheiro iluminava a cama desarrumada onde ele e Eddie tinham estado com aquela garota na noite anterior, as roupas também estavam espalhadas por toda parte.
A porta que levava ao quarto de Jim estava meio aberta, o quarto estava escuro.
– Jim...?
Ele sabia que o anjo estava lá. Ele podia sentir o cheiro da fumaça de vela, do sangue fresco e de... outras coisas.
A pressa que havia no rapaz evaporou quando a realidade do que estava prestes a ver agarrou seu peito e o sufocou. Mas ele não ia voltar atrás. Ele era um idiota de primeira ordem, sempre foi. Contudo, não era um maricas para fugir de situações difíceis.
Adrian passou pela porta entre os dois quartos e se inclinou.
– Jim.
A luz no banheiro atrás dele cortava um caminho ao longo da escuridão e parava aos pés da cama do anjo como se fosse educada demais para mostrar sua condição.
Depois que Adrian atravessou o batente, precisou de um momento para que seus olhos se ajustassem.
Com um sussurro, ele prometeu: – Eu vou matar aquela vadia...
Jim estava deitado de lado, enrolado em si mesmo, como se tentasse conservar seu próprio calor, e tremia por completo. Um cobertor foi puxado – sem dúvida, pelo arcanjo – sobre seu corpo grande e maltratado e o Cachorro estava bem próximo de seu rosto, ajeitado em formato de bola, sem se mover.
Quando Adrian se aproximou, o animal se moveu um pouco, mas não levantou a cabeça, permanecendo nariz a nariz com Jim.
O anjo parecia estar respirando, seu peito subia e descia, um chiado suave saía por sua boca machucada. Seu cabelo estava embaraçado e havia sangue em seu rosto, feições que, há não muito tempo eram suas, desapareceram graças às feridas enormes.
Adrian sentou-se lentamente.
– Jim?
Sem resposta, então, ele tentou repetir o nome de guerra mais algumas vezes. Em dado momento, as pálpebras de Jim se ergueram.
– Ei... – Adrian sussurrou.
Ele gemeu e, em seguida, seus olhos se fecharam e o corpo estremeceu sob o cobertor como se estivesse tendo um ataque.
Se aquilo era algo parecido com o que Adrian passou – e dada a forma como o cara aparentava, era quase idêntico –, o que Jim realmente queria era uma banheira de água quente seguida por uma ducha. Mas era cedo demais para isso. Medicar primeiro – havia muitos ossos quebrados e contusões para tratar – o que era o peso da dupla natureza de um anjo: ser real e irreal ao mesmo tempo significava que pelo menos metade de você poderia se ferrar muito e a droga não se revertia imediatamente.
Adrian se levantou e foi até o aquecedor que estava debaixo da janela. Girando o botão para o modo “sauna”, ele tirou a jaqueta de couro e fechou a porta que dava para o outro quarto, trancando-os ali. Então, ele sentou na cama, se estendeu sobre o fino cobertor e colocou seu peito nas costa do anjo para aquecê-lo.
Enquanto estava deitado, ouvindo um zumbido que vinha do aquecedor, sentia os tremores ao longo do tronco e dos outros membros de Jim. Parte disso era o processo de cura, que de algumas maneiras era mais doloroso que o surgimento das lesões. E outra parte disso era o frio do choque traumático.
E outra parte eram as memórias, sem dúvida.
Ele queria colocar um braço em volta do cara, mas isso faria com que Jim se sentisse muito desconfortável: quando esteve nessa condição, ele deitou nu, sem sequer um lençol sobre sua pele arranhada.
Depois de um tempo, o calor crescente que se espalhou do aquecedor os alcançou, fazendo arcos e descendo pelo ar. Jim, obviamente, sentiu o fluxo, pois respirou longamente e exalou em um vago suspiro.
Deitando ao lado do outro anjo, Adrian já tinha esperado uma vez que seria assim que Jim acabaria e foi o que aconteceu mesmo, até certo ponto. Ele sabia que Devina queria o cara... desde a primeira missão, desde àquela primeira noite no clube em Caldwell. E ele serviu Jim de bandeja para ela.
Com direito a tudo, até a uma etiqueta indicando “DE/PARA”.
Difícil não se sentir responsável por isso.
Difícil mesmo.
– Vou cuidar de você, Jim – ele disse com voz rouca. – Estou aqui por você, cara.
CAPÍTULO 34
Na adega, Grier passava os dossiês um por um enquanto esperava... e esperava... e esperava mais um pouco...
Finalmente.
– Por que você não me disse? – ela perguntou, sem olhar para trás.
Daniel levou um longo tempo para responder, mas ele não desapareceu: sempre que ele estava por perto, ela conseguia sentir uma pequena brisa e enquanto aquilo acariciava sua nuca, ela sabia que ele ainda estava com ela.
Pensei que ia odiá-lo. E, então, você e ele não teriam mais ninguém.
– Então, você sabia o que aconteceu?
Daniel andou em volta da mesa, com uma de suas mãos plantada no quadril e a outra enterrada em seu cabelo de maneira que os cachos formassem um halo.
Eu estava drogado quando tudo aconteceu... então, achei tudo muito engraçado, papai entrando com tudo com três caras de preto. Achei que aquilo era sua versão de uma intervenção para me ajudar – uma história em quadrinhos barra pesada. Mas quando eles colocaram a agulha no meu braço ele começou a gritar e foi aí que percebi... aquilo não era engraçado.
Os olhos de Daniel encontraram os dela.
Eu nunca o vi daquela maneira antes. Para mim, ele era sempre tão distante e sem emoção. Foi... a reação que procurei durante toda minha vida, o amor visceral pelo qual buscava. Entenda, eu era como a mamãe, não como você e ele. Eu queria mais do que aquela desaprovação fria – e consegui, só que já era tarde demais. Ele deu de ombros. Olhando para trás, vejo que eu era carente demais e ele não sabia o que fazer com um filho que não tinha sido feito para usar um uniforme militar. Água e óleo. Eu deveria ter lidado com isso de maneira diferente, mas não o fiz.
– E ele também não.
Não é culpa de ninguém. Foi... o que foi.
Grier inclinou-se em sua cadeira, pensando na maneira como seus familiares tinham se alinhado na vida: ela e seu pai de um lado; Daniel e sua mãe de outro.
Não foi culpa dele – seu irmão disse com um tom severo que ela nunca tinha ouvido dele antes. A forma como acabei minha vida... ele gritava, Grier... e, então, eu estava morrendo, e o ouvi dizendo várias vezes: “Danny... oh, Danny, meu garoto... meu garoto...”
Quando a voz de Daniel se quebrantou, ela foi compelida a se levantar e se aproximar dele. Antes que percebesse o que estava fazendo ela envolveu os braços em volta...
De si mesma.
Por favor, não me odeie – ele disse do outro lado, tendo mudado de lugar tão rápido quanto um piscar de olhos.
– Por favor, não fuja – ela respondeu.
Desculpe... Tenho que ir...
Ele desapareceu diante dela como se não pudesse mais conter suas emoções, seu desespero permaneceu no rastro frio que ele deixou para trás.
Ela ficou em pé por um tempo, olhando para o espaço vazio que ele tinha acabado de ocupar. Ela e seu pai eram do mesmo tipo e fizeram um acordo intelectual onde trancavam os outros do lado de fora, não foi isso? Sua mãe e irmão tinham seus vícios enquanto ela e seu pai estavam em sintonia com a lei, suas carreiras e suas paixões externas.
Ela sabia disso de alguma maneira... e talvez aquilo tenha feito parte de sua corrida para salvar Daniel. O vício de seu irmão e seus esforços para tirá-lo disso tinha sido a ligação que não tiveram durante a infância: ela sempre se culpava... e, por um breve momento, naquela noite, ela culpou seu pai.
Agora... ela tinha raiva do homem com o tapa-olho. Uma raiva terrível. Se Daniel estivesse vivo, talvez eles tivessem resolvido tudo isso. Os três perdoariam um ao outro dos erros do passado. E se dirigiriam a... a algo que sua família desfrutava apenas superficialmente. Afinal, privilégios, dinheiro e educação poderiam cobrir uma infinidade de problemas... e não garantiam que a proximidade vista em um cartão de Natal fosse realmente mais que uma mera pose feita uma vez por ano para um fotógrafo.
Balançando a cabeça, ela voltou para sua cadeira e encarou os dossiês.
Isaac ia igualar o placar da família, ela pensou. Por ter revelado o bastardo maníaco que assassinou seu irmão e não fez nada além de arruinar seu pai.
Folheando as fotografias, ela reconhecia cada homem, pois tinha analisado cada página repetidas vezes enquanto esperava pela aparição de Daniel. Havia uma centena de fotos ou mais, mas havia um total de uns quarenta homens, capturados em vários ângulos, ilustrando as páginas produzidas ao longo de anos. Dentre os muitos rostos, havia cinco que ela reconheceu... ou pelo menos achou que os tinha visto antes. Difícil saber... de alguma maneira, eles pareciam tão semelhantes.
A fotografia de Isaac estava lá e ela voltou a revê-la. A foto era clara, capturada bem em cheio. Ele estava olhando diretamente para a câmera, mas ela tinha a impressão que ele não sabia que estava sendo fotografado.
Sério. Deus, ele parecia tão sério. Como se estivesse preparado para matar.
A data de nascimento sob seu nome confirmava a idade que ela já sabia e havia algumas anotações sobre países estrangeiros onde ele tinha estado. E, em seguida, havia uma linha que ela tentava entender: Correção moral necessária. Ela tinha visto a frase apenas em dois outros perfis.
– O que você está segurando?
Grier pulou ao som da voz de Isaac, a cadeira gritou ao arranhar o chão. Agarrando seu peito, ela disse: – Jesus... como você faz isso?
Pois, considerando tudo, ela preferia não ser pega encarando a foto dele.
– Desculpe, só pensei que gostaria de um café. – Ele se aproximou, apoiou uma caneca e, em seguida, voltou à porta. – Eu deveria ter batido.
Ao fazer uma pausa entre os batentes da porta, vestia apenas o moletom de capuz que usava como travesseiro, seus ombros eram muito largos ao longo da extensão de tecido cinza. E considerando as últimas quarenta e oito horas, ele parecia incrivelmente forte e focado.
Seus olhos se voltaram para o café. Tão pensativa. Muito pensativa mesmo.
– Obrigada... e desculpe. Acho que apenas não estou acostumada com... – um homem como ele.
– Vou anunciar minha presença de agora em diante.
Ela pegou a caneca e tomou um gole. Perfeito: simplesmente com a quantidade certa de açúcar que ela gostava. Ele a observou, ela pensou. Viu o quanto ela adicionou em algum momento, mesmo não estando consciente disso. E ele se lembrou.
– Está olhando para mim? – Quando ela levantou o olhar, ele assentiu com a cabeça em direção aos dossiês. – Para minha foto?
– Ah... sim. – Grier interrompeu a frase. – O que isso significa exatamente?
Ele andou em sua direção e se inclinou. Quando encarou os detalhes descritos sob seu rosto, a tensão nele era palpável, todo seu grande corpo ficou rígido.
– Eles tiveram que me dar um motivo.
– Antes de você matar alguém.
Ele assentiu e começou a andar ao redor, indo em direção às garrafas de vinho. Ele pegou uma, olhou o rótulo, voltou a colocar no lugar... passou uma a uma.
– Que tipo de motivos eles lhe deram? – ela perguntou, bem ciente de que as respostas dele sobre isso significava muito para ela.
Ele fez uma pausa com uma embalagem de Bordeaux nas mãos.
– Do tipo que faz com que isso pareça certo.
– Como o quê?
Seus olhos viraram em direção a ela e Grier fez uma pausa. Eles estavam tão tristes e vazios.
– Diga-me – ela sussurrou.
Ele colocou a garrafa de volta no lugar. Distanciou-se um pouco das prateleiras de madeira.
– Eu só fazia isso com homens. Nenhuma mulher. Havia alguns que conseguiam fazer isso com mulheres, mas eu não. E eu não vou lhe dar exemplos específicos, mas o absurdo de uma filiação política não era suficiente para mim. Matar um monte de gente ou estuprar mulheres ou explodir algumas mer... er... coisas? É uma história bem diferente. E eu precisava visualizar algumas provas com meus próprios olhos... vídeo, fotografia... corpos que foram marcados.
– Você já recusou alguma tarefa?
– Sim.
– Então, você não mataria meu irmão.
– Nunca – ele disse sem hesitar. – E eles nem sequer teriam me pedido. Da maneira como Matthias encarava isso, eu era uma arma que funcionava sob determinadas circunstâncias e ele me tirava do coldre em momentos apropriados. E, você sabe... Eu percebi que tinha que sair das operações extraoficiais quando me dei conta de que não era diferente das outras pessoas que eu matava. Todos eles sentiam como se as atrocidades que cometiam eram justificáveis. Bem, então, aquilo fazia de nós espelhos que refletiam um ao outro. Claro, de um ponto de vista objetivo, qualquer um concordaria comigo sobre isso, mas não era o suficiente.
Grier exalou longamente. Ele era aquilo em que sempre acreditou, pensou ela.
– Como assim? – ela disse.
De repente, ela achou que tinha pensado em voz alta.
– Eu sempre disse a Daniel... – Ela fez uma pausa, perguntando-se se estava tudo claro dentro dela para continuar. – Eu dizia que nunca era tarde demais. Que as coisas que ele tinha feito no passado não definiam o futuro. Acho que no final, ele desistiu de si mesmo. Ele roubava do meu pai, de mim e de seus amigos. Ele foi preso assaltando uma casa e também por roubar um automóvel, em seguida, ao tentar saquear uma loja de bebidas. Foi assim que me envolvi com as causas voluntárias. Eu entrava e saía de várias cadeias nos últimos cinco anos antes de sua morte. Eu sentia que estava ajudando... mas talvez eu pudesse fazer isso com outra pessoa, sabe? E eu fiz... Eu ajudei outras pessoas.
– Grier...
Ela fez um gesto com a mão quando sua voz ficou embargada. Ela terminou de falar chorando. Não passaria disso e nada mais poderia ser mudado.
– Você quer continuar com isso?
Quando ela indicou os dossiês, ele deu de ombros e foi até a porta, ficando exposto apenas por um pequeno vão contra o batente.
– Eu só vim mesmo para ver como você estava.
No ar rarefeito, seus olhos de pálpebras baixas a aqueceram de dentro para fora. Ele era uma grande contradição... entre seu trabalho onde foi treinado para matar e seu coração de escoteiro.
Ela deu uma olhada para a foto dele.
– Parece que está procurando alguma coisa aqui.
– Na verdade, eu estava prestes a embarcar em um avião. Tive a sensação de que alguém estava olhando, mas não conseguia dizer de onde vinha esse olhar. Estava esperando em uma base aérea para viajar ao exterior. – Ele limpou a garganta como se estivesse varrendo a memória de sua mente. – Seu pai dormiu lá em cima. Ele passou uma duas horas no telefone, até onde vi.
– Já passou tanto tempo? – Ela olhou para seu relógio e ao movimentar o pulso, tomou consciência de cada articulação de seu corpo. Esticando os braços sobre a cabeça, sua coluna estalou.
– Como as coisas estão indo?
– Eu não sei. Antes de deitar, ele me disse que se conseguirmos fazer tudo até amanhã à noite, estaremos bem. Ele fez múltiplos contatos desde a CIA, Departamento de Segurança Nacional e gabinete presidencial e ficaremos bem aqui para que eu não precise me deslocar. A peça que falta é Jim Heron – nós ainda estamos esperando que ele volte – embora, se for preciso, seguiremos sem ele.
– Você recebeu alguma... resposta? Deles?
– Não.
O medo passou por suas costelas e atingiu seu coração como uma carga de bateria.
– Você pode ficar até amanhã à noite?
– Se for para ser dessa maneira, sim.
Ele parecia tão seguro e ela precisava acreditar naquela confiança: seria uma tragédia sem limites para ele ser interrompido agora, quando estava tão perto da liberdade que desejava.
Estranho que alguém que tinha conhecido há apenas alguns dias tivesse se tornado tão importante para ela.
– Eu estou orgulhosa de você – disse ela, deslizando o dedo sobre sua fotografia.
– Isso significa muito para mim. – Pausa. – E obrigado por me mostrar o caminho. Eu não seria capaz de fazer isso sem você.
– Sem meu pai, você quer dizer – ela contradisse suavemente. – Ele tem os contatos.
– Não. Você é a única.
Ela franziu a testa, pensando que era um jeito engraçado de responder.
– Quero que responda algo para mim.
– Diga.
Seus olhos encontraram os dele.
– Quais são as suas chances. De fato.
– De sair dessa com vida?
– Sim. – Quando ele apenas balançou a cabeça, ela franziu a testa para ele. – Lembre-se, acabamos com toda aquela coisa de “proteger a garota frágil”.
– Meio a meio.
Bem, não é que aquilo deu um nó em sua garganta?
– Isso é ruim, hum?
– Quer alguma coisa para comer com o café? Não sou nenhum chefe de cozinha, mas vi algumas sobras na geladeira e posso colocar no micro-ondas. – Quando ela recusou com a cabeça, ele insistiu. – Você tem que comer.
– Eu prefiro fazer sexo com você – ela soltou.
Isaac tossiu. Na verdade, tossia como se alguém tivesse dado um soco em seu peito.
– Desculpe ser tão direta. – Ela deu de ombros. – Mas convenções sociais estão bem longe da minha lista de prioridades agora. E eu tenho a sensação de que não vou te ver depois de amanhã à noite, tanto por que você pode ser tomado sob custódia federal, quanto por... – Ela respirou fundo. – Quero um bom pedaço de você antes que se vá. Algo para lembrar-me de você em minha pele, não apenas em meu cérebro. Lá em cima foi tudo tão rápido e furioso... Eu quero prestar atenção e me lembrar.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
– Achei que você gostaria de se esquecer disso o máximo possível.
– Não de você... eu não quero me esquecer de você. – O canto de sua boca se ergueu um pouco. – Embora eu não acredite ser possível.
Quando ele ficou onde estava, ela empurrou a cadeira para trás e se levantou. A distância entre eles era de três passos e quando ela veio em direção a ele, Isaac se endireitou e puxou seu blusão para baixo como se estivesse se arrumando.
Grier ergueu-se na ponta dos pés e tocou o rosto dele, colocando a palma de suas mãos na sua barba por fazer.
– Eu nunca vou esquecê-lo.
Quando ele lambeu os lábios, como se estivesse com fome daquilo que exatamente ela queria, Grier pegou a mão dele e o levou para o local mais fundo da adega, ao puxá-lo para dentro, os fechou ali.
Ao contrário da primeira vez, quando ela estava ferida e procurava apenas mais do ciclone, agora era apenas ele, o homem, que o impulsionava – não seu zumbido interno.
Ele estava todo ali.
Quando ela se inclinou para beijá-lo, ele colocou suas mãos grandes em seus pulsos e os segurou delicadamente.
– Isso não ajudou lá em cima.
– Sim. Ajudou. Você apenas não acreditou em mim.
– Grier... – O nome dela soou com uma combinação de confusão e desespero: pois as cinco letras foram pronunciadas, ao invés das três habitualmente ouvidas.
– Eu não quero mais falar – ela murmurou, aproximando-se de sua boca.
– Tem certeza?
Quando ela assentiu, ele se inclinou e apertou os lábios contra os dela, puxando-a para mais perto dele.
Ele estava completamente excitado, mais que pronto para ela e, ainda assim, ele recuou.
Antes que ela pudesse protestar, ouviu o clique da fechadura dando a volta e, em seguida, aquelas mãos quentes deslizaram sob sua camisa e em volta de sua caixa torácica, indo até o fim de suas costas. Ao sentir uma pressão suave e gentil, seus pés saíram do chão e ela foi carregada até a mesa.
Afastando os dossiês para um lado, Isaac a deitou, as palmas de suas mãos se movimentavam sobre seus seios enquanto ele se inclinava sobre ela e mantinha suas bocas unidas. Suas calças de ioga estavam fora de suas pernas um momento depois, mas, ao invés de jogá-las, ele as colocou sobre a cadeira onde ela estava sentada. Esperto. Ela poderia ter que se vestir rapidamente.
Um impulso sutil e seus quadris estavam na beirada da mesa... e, em seguida, ele separou o beijo deles e aproximou-se sobre os joelhos.
Se ela achava que já tinha visto os olhos dele queimarem antes, aquilo era nada comparado ao que estavam fazendo agora. Um local de baixa temperatura nunca foi tão quente.
Quando ela se deu conta de onde ele estava se dirigindo, ela se sentou.
– Mas eu quero que seja bom para nós dois...
– Você disse que queria se lembrar de algo. – As mãos dele deslizaram até o topo de suas coxas e as apertaram. – Então, deite de costas e deixe-me fazer meu trabalho. – A língua dele reapareceu – e não é que aquilo a fez aderir ao plano dele?
– Vamos lá, agora – ele murmurou com aquele sotaque sulista. – Deite-se e deixe-me cuidar de você. Prometo ir devagar... bem devagar.
Suas mãos desceram até seus joelhos e abriram suas pernas... e ela se entregou a ele. Seguindo suas instruções ao pé da letra, ela sentiu a rígida mesa contra seus ombros, o ar fresco em suas coxas e um calor selvagem em seu sangue.
Quando ele a encarou através das sobrancelhas, Isaac olhou como se fosse consumi-la.
E ela estava pronta para ser sua refeição.
Abaixando a cabeça, ele foi direto até onde ela necessitava dele, colocando sua boca no sexo dela através da fina calcinha de seda que usava. Uma onda de calor delicioso floresceu e sua mão se esticou, agarrou as calças, as puxou e as colocou na boca para que fosse impedida de gritar.
Se isso já a fazia se sentir tão bem, ela ia fazer barulho: sim, a porta da adega era pesada e seu pai deveria estar dormindo, mas ela não queria correr nenhum risco.
Isaac gemeu contra ela ao se aninhar na seda e, então, ele passou a língua sobre a delicada faixa de tecido que a cobria. Com um palavrão, ela se arqueou de maneira rígida, as unhas arranharam a madeira embaixo dela enquanto as mãos dele mergulharam em suas coxas e os dentes dela mordiam o algodão. E, então, não havia mais nada os separando. Em um momento, sua boca estava sobre a seda, no próximo, ela sentiu um puxão em seus quadris e ouviu o som de algo se rasgando quando a calcinha cedeu...
Oh, Deus... sua língua molhada deslizou direto até seu cerne e se arrastou para cima, partindo-a, deslizando com lambidas seguidas.
Ele foi devagar.
Quando suas grandes mãos se fecharam em sua cintura e a firmaram para baixo, ele produziu um momento doce, a beijando e sugando, aquela língua dele funcionava como mágica que apenas podia ser substituída pela sucção quente e firme de seus lábios. Todo o tempo, ele olhava para ela, olhava seus seios enquanto ela se contorcia sob sua boca.
De repente, como se precisasse tocar aquilo que estava observando, as mãos dele subiram sob a camiseta dela em direção ao que parecia o fascinar. Abrindo o fecho frontal do sutiã, ele tomou posse de seus dois seios, os polegares esfregavam seus mamilos.
Sua respiração bombeava para dentro e para fora através de sua boca aberta e assim que ela estava prestes a chegar ao orgasmo, Isaac recuou e lambeu os lábios brilhantes.
– Venha para mim – disse ele. – Eu quero sentir isso.
E, em seguida, ele estava contra ela mais uma vez, sua língua a penetrava – o que foi o suficiente. A sensação foi liberada, minando para fora de seu sexo e tomando conta de cada centímetro de seu corpo. Quando o turbilhão de faíscas a consumiu, ela estava vagamente consciente de que ele gemia, como se sentisse aquele prazer em primeira mão.
Ele não parou por aí. Fluía em círculos, lambia, chupava... ele continuou abrindo ainda mais as pernas dela, segurando-a no lugar, marcando aquilo na memória dela assim como marcava em seu sexo. Ela nunca iria esquecer...
Um de seus longos dedos, ou talvez dois, penetrou dentro dela e a pressão e o alcance a enviou direto para o topo novamente. Quando outro orgasmo disparou, as mãos dela se fecharam em seu antebraço, suas unhas afundaram em sua carne enquanto sua coluna se contorcia e aquela explosão de prazer a inundava de dentro para fora.
E ele ainda não parou.
Ele era quente, selvagem e implacável.
Ele era o amante que ela nunca, jamais iria esquecer.
Muito menos superar – e isso era o que temia.
Oh, meu bom Jesus...
Isaac olhou por entre as pernas de Grier e quase chegou ao clímax apenas com aquela visão. Ela era uma mulher totalmente desfeita, os restos de sua calcinha branca em volta de seus quadris, sua camisa preta em volta do pescoço, o sutiã pendia para os lados. Seus seios estavam rígidos nas pontas rosadas, seu rosto estava corado e sua barriga se movia em um ritmo de surtos e abrandamentos conforme trabalhava contra ele.
Aquela calcinha na boca dele foi uma das coisas mais sensuais de tudo.
E o gosto dela era ainda mais quente do que isso.
Isaac poderia ficar ali por horas, mas a cada momento ele corria o risco de uma interrupção e ele queria terminar aquilo direito.
Subindo e pairando acima dela, inclinou os joelhos dela até o peito, com isso, seu membro se contorceu até ficar à beira do orgasmo com a visão do sexo dela reluzente todo inchado e aberto para ele. Não houve chances para que as calças fossem forçadas... ele as puxou para baixo o suficiente para que a ereção saltasse... da qual surgiu uma gota na ponta quando ele pensou sobre onde estava indo. Passando a mão sobre sua boca molhada, ele a colocou sobre a cabeça de seu membro, escorregando ainda mais o corpo antes de contorcer a coluna e unir as mãos ao órgão.
Empurrando, ele a observou ao fazer a conexão, olhando-a para acomodar seu membro e ouvindo o gemido dela ao ir mais fundo, atendendo seus desejos.
– Ah, caralh... – O cavalheiro nele engoliu o palavrão. Já o homem das cavernas que havia nele tinha que continuar falando. – Olhe para você... Quero deixar algo para trás... em você.
Ele atirou seus olhos nos dela e começou a se mover, bombando para dentro e para fora, dentro e fora... e, então, ele voltou a olhar para o local onde tinham se unido, o brilho naquilo fez suas bolas ficarem rígidas. Curvando-se para os seios, ele sugou um mamilo e trabalhou nisso com a língua... até que o ritmo abaixo tornasse impossível manter aquela ligação: ele estava falando sério sobre ir devagar, mas a boa intenção não durou muito. O sexo tinha uma dinâmica própria e não passou muito tempo até que a mesa começasse a gemer sob a força de seus golpes e ele teve que abraçar a cintura dela para mantê-la onde ele a queria.
Ao ficar rígida sob ele, Isaac também ficou, tencionando seus molares para não fazer barulho, suas pálpebras se fecharam com força embora quisesse ver o rosto dela ao dar mais uma dose de prazer.
Com seu corpo no dela e a preenchendo por completo... ele estava tão saciado quando um homem no deserto que tinha recebido um gole de água.
Ele não estava nem perto de acabar. Ela queria memórias? Entendido.
Mantendo-os juntos, ele puxou a calça para fora da boca dela, a ergueu e trouxe seus lábios até os dele, beijando-a profundamente enquanto carregava seu peso com facilidade para fora da mesa. Posicionando-a contra a porta lisa, ele agarrou a parte de trás de suas pernas e começou a se mover novamente. Com as mãos emaranhadas em seus cabelos, o calor abrasador e a sensação de urgência tomando conta mais uma vez, o beijo não poderia durar muito – e não durou muito mais que o selar dos lábios. Ele veio rígido dentro dela, promovendo um colapso enquanto seu próprio orgasmo escorria.
O alívio foi um luxo que ele não desfrutou, pois tinha plena consciência de seu peso sobre ela e do fato de que as costas dela estavam contra algo rígido e de que o pai dela estava em casa...
Havia tantas coisas entre eles.
Isaac a soltou lentamente até que seus pés tocassem o chão e, quando ele saiu dela, não gostou do ar frio em seu pênis. O sexo dela era muito melhor... muito, muito melhor.
Quando ele a beijou, a maneira como seus lábios se moviam sobre os dele lhe dizia que em um mundo diferente, em circunstâncias diferentes... este seria, com certeza, um começo para eles – apesar de tudo o que os separava como família, dinheiro e escolaridade.
Mas aquela não era a realidade deles, era?
– Deixe-me arranjar algo para limpar isso – ele disse calmamente enquanto puxava as calças de volta no lugar.
Depois de beijá-la mais uma vez, ele saiu pela porta e quando a fechou lá dentro ele parou e baixou a cabeça.
Ele mentiu para ela.
Suas chances não estavam nem perto de cinquenta por cento: Matthias iria pegá-lo com toda e absoluta certeza. A questão era apenas quanto tempo ele levaria para conversar com os ouvidos certos antes que seu velho chefe surgisse das sombras e o reclamasse. Algo que sempre foi verdade sobre o líder das operações extraoficiais: Matthias nunca desistia. Nunca. E mesmo que o mundo estivesse desmoronando em torno dele, continuaria a buscar sua vingança. De alguma forma, de alguma maneira.
Contudo, isso não ia impedir Isaac de continuar tentando com todas as suas armas.
Muito melhor morrer tentando fazer a coisa certa... e deixar sua mulher pensando algo menos ruim sobre ele.
Muito melhor.
CAPÍTULO 35
Quando o sol da manhã despertou de seu sono nublado e uma auréola de raios foi derramada sobre Caldwell, Nova York, dois garotos, com idades entre doze e nove anos, foram andando para a escola.
E nenhum dos dois estava impressionado com todo o “esplendor primaveril”.
Seja lá o que isso significasse.
A mãe deles repetia sempre algo sobre esplendor primaveril, esplendor primaveril... bah! O que interessava a Joey Mason era a educação física: geralmente ele tinha educação física às segundas feiras, mas hoje haveria uma assembleia especial. Então, não importava o quanto de “esplendor primaveril” houvesse lá fora, ele ainda estava a caminho de um dia na escola com nada de interessante para fazer.
Por outro lado, seu irmão mais novo, Tony, gostava mais de assembleias do que de educação física, então, ele estava empolgado. Mas ele era um nerd que dormia com livros, que outra coisa poderia interessá-lo?
A caminhada de casa para a escola era de uns oito quarteirões e não era nada demais... apenas descer a Rua São Francisco, passando pela igreja e alguns outros pontos. Eles deveriam ficar do lado direito, pois havia um posto de gasolina à esquerda por onde passavam muitos carros. E eles deveriam parar em cada esquina. O que Joey fazia – geralmente enquanto segurava o colarinho de Tony para impedi-lo de atingir um carro em cheio.
Tony sempre andava com um livro aberto. Também comia lendo, ia ao banheiro lendo e se vestia lendo.
Estúpido. Simplesmente estúpido, pois se perde muito quando não se olha em volta.
Como aquele carro legal que estava no caminho. As janelas eram pretas e a pintura também, e havia um número na placa: 010. Era só isso, sem letras. Joey olhou para seu irmão mais novo e percebeu que, com certeza, ele não tinha notado aquilo.
Perdeu mais uma.
A coisa parecia ser da polícia.
Quando chegaram até o carro, pegou o colarinho de seu irmão e o puxou para perto. Tony não questionou a parada – apenas virou outra página. Provavelmente ele pensou que estavam em outra esquina.
Joey se inclinou um pouco para ver o interior, preparando-se para ver alguma coisa relacionada a um uniforme sair e gritar com eles por serem intrometidos. Quando não viu nada e quando nada aconteceu, ele posicionou as mãos em formato de concha e as colocou contra o vidro frio...
Pulou para trás.
– Acho que tem alguém lá dentro.
– Não tem – Tony disse sem levantar a cabeça.
– Tem sim.
– Não tem.
– Tem sim. E como você pode saber que não tem?
– Não tem.
Certo, Tony não sabia do que estava falando e aquela discussão poderia durar para sempre. E, então, ele e seu irmão caçula se atrasariam para as aulas e ficariam de castigo. De novo.
Mas...
Seria tão legal se eles encontrassem um cadáver – bem em frente à funerária!
Jogando a mochila, Joey distanciou seu irmão do carro, levantando-o e redirecionando seus pés.
– Isso é perigoso. Eu não quero que você se machuque.
Isso finalmente fez com que Tony levantasse os olhos do livro.
– Tem mesmo alguém aí dentro?
– Para trás.
Era o tipo de coisa que seu pai teria dito e Joey se sentiu um homem com relação a isso – especialmente quando Tony assentiu e segurou seu livro contra o peito. Mas era assim que deveria ser. Joey faria treze anos em breve e ele era responsável quando não havia ninguém por perto. E, às vezes, mesmo quando havia outras pessoas no local.
Voltando a colocar as mãos em forma de concha, ele reassumiu sua posição contra o vidro e tentou ver através da escuridão...
– É um pirata.
– Você está mentindo.
– Não, não estou...
Um carro passou devagar em frente deles e uma senhora abriu a janela – era a Sra. Alonzo do outro lado da rua.
– O que vocês estão aprontando, meninos?
Como se tudo o que eles fizessem fosse esse tipo de coisa.
Parte de Joey queria que ela continuasse seu caminho e deixasse que ele resolvesse a situação. Mas a outra parte queria se mostrar.
– Tem um cara morto aqui.
Sentiu-se muito importante, pois ela ficou pálida e parecia nervosa. Cara, se ele soubesse que tudo isso iria acontecer, ele teria saído mais rápido de casa. Aquilo era muito melhor que educação física.
A não ser pelo fato de que Tony teve que se intrometer.
– É um pirata!
De repente, a Sra. Alonzo não parecia tão assustada.
– Um pirata.
Seu irmão era um idiota – e Joey não estava interessado em perder a atenção da plateia. Piratas eram coisas de criança. Um morto no carro? Isso era coisa de adulto e era isso o que ele queria ser.
– Veja por si mesma – ele disse.
A Sra. Alonzo estacionou em frente ao carro completamente preto e saiu, seus saltos altos faziam um som de galope de pônei na rua.
– Certo, já chega, garotos. Entrem e vou levá-los até a escola. Vocês vão se atrasar. – Ela estendeu seu telefone para Joey. – Ligue para sua mãe e diga que estou levando vocês. De novo.
Isso acontecia muito. A Sra. Alonzo era uma executiva cujo escritório ficava não muito longe da escola, eles se atrasavam muitas vezes e ela os levava. Mas essa manhã era diferente.
Ele cruzou os braços sobre o peito.
– Precisa olhar pela janela.
– Joey...
– Por favor. – Outra coisa adulta: por favor e obrigado.
– Tudo bem. Mas entrem no meu carro.
A Sra. Alonzo marchou em direção ao carro enquanto resmungava alguma coisa sobre ficar prestando serviço de táxi. E Tony, que sempre seguia as regras, levou seu livro até o assento da frente da SUV – só que ele ainda estava interessado no que estava acontecendo, pois ele não fechou a porta e o seu exemplar do livro Diário de um Banana: Dias de Cachorro permaneceu contra seu peito.
Joey ficou onde estava.
Normalmente, ele teria se chateado com Tony por pegar o melhor lugar no carro: irmão mais velho andava na frente; bebês menores ficavam atrás. Mas havia coisas mais importantes que isso agora, então, ele ficou onde estava na calçada, o telefone sem utilidade em sua mão.
Ele estava pensando no que tinha visto...
A Sra. Alonzo deu um salto tão grande que quase acabou no meio do trânsito, uma minivan buzinou para ela quando se desviou por pouco de seu corpo.
Ela correu e pegou o telefone, assim como o braço do garoto.
– Entre no carro, Joey.
– O que é isso? Um cara morto? – Meu Deus, e se fosse um pirata? Caramba!
A Sra. Alonzo colocou o telefone no ouvido enquanto o arrastava para o carro.
– Sim, é uma emergência. Há um homem em um caro em frente à casa funerária McCready na Rua São Francisco. Não sei se há algo de errado com ele, mas ele está atrás do volante e parece não se mexer... Estou com uma criancinha comigo e não quero abrir a porta... certo...
Criancinha. Deus, ele odiava aquela coisa de criancinha. Além disso, foi ele quem encontrou o cara. Quantos adultos passaram por ali a pé para ir ao trabalho e não o viram? Ou de bicicleta? Ou correndo?
O cara morto era dele.
– Meu nome é Margarita Alonzo. Sim, ficarei aqui até os paramédicos e a polícia chegarem.
Certo. Esta era, oficialmente, a melhor manhã da história de sua vida, Joey pensou enquanto pulava no banco de trás – o qual tinha a melhor visão ao se virar para ver lá fora.
Quando a Sra. Alonzo entrou e trancou as portas, ele imaginou os três ali até a meia noite, uma da manhã. Talvez precisassem de um McLanche Feliz para o almoço. Ele tinha a grande esperança de que a polícia não corresse...
A chatice de todas as chatices o atingiu quando ele ouviu a senhora Alonzo dizer: – Sara? Estou com seus meninos e eles estão bem. Mas há um pequeno problema e preciso que venha buscá-los.
Joey abaixou a cabeça no braço.
Sabendo da sorte que tinha, sua mãe correria até à cena e chegaria lá antes que ele descobrisse algo sobre o pirata morto no banco da frente daquele carro.
Arruinado. Simplesmente arruinado.
E, provavelmente, eles chegariam à escola a tempo de assistir a assembleia.
Quando Matthias dormiu atrás do volante de seu carro, ele sonhou com a noite em que Jim Heron salvou-lhe a vida várias e várias vezes. Os acontecimentos que o levaram até a bomba e a dolorosa caminhada para recuperar uma saúde relativa foram passados e repassados em sua mente, como se a agulha da sua velha vitrola mental estivesse presa em algum obstáculo no disco.
Matthias tinha atraído Jim Heron àquela cabana abandonada e empoeirada como testemunha, pois não havia mais ninguém nas operações extraoficiais cuja palavra houvesse mais peso e credibilidade. A ideia era que o soldado deixasse seu corpo na areia e fosse para a casa contar aos outros que tinha acontecido um terrível acidente: se alguém apresentasse um relatório como esse, a conclusão seria de que havia ocorrido um abate completo.
Contudo, não é o caso de Jim – ele era um atirador correto em um mundo cheio de curvas e nunca teve problemas em fazer o que tinha que ser feito, certo ou errado.
Prova de que havia um pouco de bondade em Matthias, afinal – pelo menos, ele não ia jogar a culpa de seu suicídio na cabeça de outro cara.
E sim, claro que ele poderia explodir a própria cabeça em um banheiro qualquer, mas mesmo sendo um suicida, ele tinha seu orgulho. Autoinjetar-se uma dose de chumbo seria fraqueza demais – muito melhor espalhar a porcaria gosmenta em algumas paredes de pedra e ser lamentado como o forte lutador que sempre tinha sido.
Contudo, o orgulho teve seu preço: ao invés de deixá-lo na areia, o idiota Heron o salvou – e descobriu seu segredinho. O explosivo foi a dica que faltava. Enquanto Matthias permanecia deitado e sangrava como um porco, Jim encontrou os restos da bomba e reconheceu o que eram. Ou seja, era um dos seus dispositivos.
O filho da mãe pegou os fragmentos, os colocou no bolso e tirou o cinto. Em seguida, fez um torniquete na perna de Matthias, o levantou e começou a puxá-lo. Ele ficou muito chateado e era evidente que as atitudes de seu salvador eram parte punição, parte recompensa – e completamente desgastante. O bastardo andou, andou e andou... até que, alguns momentos depois, Isaac Rothe apareceu dentre as dunas com uma Land Rover.
As exigências de Jim vieram semanas depois, em um hospital na Alemanha. Naquele ponto, a cabeça de Matthias não era nada além de um imenso balão de ar quente de agonia e ele estava tendo que se acostumar com apenas um olho funcionando. Heron se sentou à beira do leito e estabeleceu seus termos: fora. Livre e limpo. Ou pegava o que tinha restado da bomba e contaria a história para a única pessoa que poderia fazer algo sobre isso.
Olá, senhor presidente.
Ironia das ironias, se tivesse sido qualquer outro soldado, qualquer outro ser humano com um coração batendo e um dedo no gatilho, Matthias não teria se preocupado com a ameaça. Mas, Jim Heron – o bom e velho Zacarias – era uma daquelas malditas pessoas em quem as pessoas acreditavam. Fragmentos de bombas poderiam ser fabricados; e a credibilidade de um homem digno? Muito menos discutível.
E ele não poderia continuar sendo chefe se as pessoas achassem que não tinha mais coragem para o trabalho.
Naquele momento, Matthias sentiu como se não houvesse outra escolha e disse ao homem para que seguisse seu caminho.
Depois, a questão suicida veio à tona e ele teve que considerá-la seriamente. Mas, em seguida, seu segundo homem na linha de comando apareceu na hora certa – tinha certeza de que o cara sabia para onde estava indo.
Um homem muito persuasivo aquele. E quando se deu conta, Jim tinha salvado seu corpo, mas aquele segundo homem na linha de comando o trouxe, de alguma maneira, de volta à vida.
Apesar de a renovação ter tido consequências: quase imediatamente, Matthias abriu os olhos – ou um olho, melhor dizendo – para o erro de deixar Heron sair: aquele soldado estava solto pelo mundo com informações demais e a exposição não era aceitável.
O segundo na linha de comando concordou com isso e estava prestes a colocar as rodas de um carro em movimento para provocar um “acidente” quando Jim ligou procurando por informações sobre Marie-Terese Boudreau. Perfeito. Bem a tempo. O plano era que Jim entregasse Isaac em troca da informação que precisava – e, em seguida, seria o assassinato de Jim.
Só que alguém pegou Heron primeiro.
Morto. Jim estava morto. Matthias viu seu corpo com os próprios olhos. E, ainda assim... de alguma maneira ele sentia como se tivesse falado com o cara. Sim, ele sonhou que tinha conversado com Jim Heron...
Matthias acordou com a arma na mão, o gatilho armado e apontando para um homem de uniforme azul marinho – que tinha, dado a barra de ferro em sua mão, acabado de destrancar o carro e abrir a porta.
O paramédico congelou e colocou as mãos para cima.
– Eu só quero te ajudar, cara.
Provavelmente era verdade. Mas para o inferno, o parceiro do cara sem dúvida estava ligando para a polícia agora e, observação, fazer qualquer tipo de contato direto com um civil não era um benefício, segundo a cartilha de Matthias.
Ele baixou a arma.
– Sou um agente federal. – Ele colocou a mão no casaco e decidiu mostrar suas credenciais do FBI; que eram legítimas até certo ponto.
O paramédico se inclinou e olhou a fotografia, um nome qualquer no laminado e um brasão bem verdadeiro.
– Ah... desculpe, senhor. Recebemos um telefonema...
– Está tudo bem. É que passei três dias puxados na fronteira canadense e estou a caminho de Manhattan. Desci a estrada ao norte procurando algo para comer às quatro da manhã, mas não havia nada aberto e eu precisava dormir um pouco. Sabe como é.
– Ah, entendo muito bem.
Conversa fiada, conversa fiada, conversa fiada... blablablá...
Quando a polícia apareceu, eles colocaram seu número de identidade no sistema e, como num passe de mágica, tudo bateu. E sua história sobre estar em uma missão secreta e ter que parar um pouco por causa da exaustão foi engolida como um jantar de Ação de Graças: ele passou de criminoso à celebridade.
Gente estúpida.
Depois que os despistou, afastou-se e pegou o telefone. Havia uma série de mensagens de voz... e um alerta.
Bem, como pode imaginar... parece que Isaac Rothe tinha se entregado e sua localização era a casa de sua adorável e talentosa advogada. Que coisa mais perfeita: embora pudessem pegá-lo em pé na cozinha de Grier Childe se fosse preciso, aquilo faria das coisas muito menos complicadas.
Matthias ligou para seu segundo homem na linha de comando e quando o telefone soou ele pensou em quantas vezes tinha tido aquela conversa: vá. Pegue o bastardo. Acabe com ele. Dê um jeito no corpo.
Ele tinha feito isso tantas vezes.
Quando a dor do lado esquerdo do peito disparou novamente, ele ignorou a sensação...
– Sim? – o segundo na linha de comando respondeu.
– Isaac Rothe está pronto para você.
Não houve sequer uma pausa.
– O endereço é o de Beacon Hill?
– Sim. Vá até lá e pegue-o.
– Estou fora do estado.
– Bem, entre no estado. O mais rápido possível.
– Entendido. Onde você o quer?
Boa pergunta. Isaac não era conhecido por grandes fugas, sua reputação era de um assassino rápido e limpo que o fazia em circunstâncias extraordinárias. Mas você não conseguiria executar tarefas como as dele se não fosse muito imaginativo.
– Mantenha-o naquela casa para mim – Matthias disse de repente.
Quando levou em conta a situação, o instinto lhe disse que uma mudança na estratégia era apropriada. Afinal, seria útil puxar as rédeas de Grier Childe e seu pai – e nada chamava mais a atenção de um civil do que assistir a alguém sendo assassinado. O bom e velho Albie era uma prova disso...
Por alguma razão, a voz de Jim Heron estalou no cérebro de Matthias. Não havia palavras específicas, apenas um tom que se demorava, um tom grave, que implorava para que Matthias parasse com tudo e... fazer o que exatamente?
– Alô? – o homem do outro lado da linha perguntou, uma vez que o cara disse algo que não havia sido respondido ou que havia recebido nada além de silêncio por um tempo.
– Eu não quero que você o mate – Matthias se ouviu dizendo.
– Ah, entendo. Você quer fazer isso por si mesmo. – Satisfação. Tal satisfação era o objetivo do plano em todo o tempo.
Sem qualquer razão especial, o processador central do cérebro de Matthias começou a faiscar e sair fumaça, imagens voavam dentro e fora de sua mente em uma confusão louca que o fez pensar na rolagem de dados em uma mesa de feltro. E, então, em meio ao caos, ele viu Alistair Childe sendo segurado em um tapete sujo por dois agentes de preto enquanto era injetada em seu filho heroína suficiente para levar um elefante a ter uma overdose.
Danny... oh, Danny, meu garoto... Parecia uma música que poderia tocar em um bar irlandês, mas não soava nada musical uma vez que o pai gritava as palavras com voz rouca.
– Chefe – o segundo na linha de comando interrompeu. – Fale comigo. O que está acontecendo?
A voz era muito sonora, mas era um falso pragmatismo. Era evidente que o soldado estava preocupado de que as rodas estivessem saindo da estrada de novo – assim como tinha acontecido há dois anos, ele teria que arrastar Matthias para calçar suas botas de combate mais uma vez.
– Não o mate – Matthias ouviu-se repetir. – É uma ordem.
– Eu sei, assim você pode fazer isso. Ele é seu. Você tem que pegá-lo.
Por um momento, Matthias sentiu uma atração inevitável, tentadora...
– Não – ele exclamou, sacudindo-se. – Não, eu não tenho.
– Sim, você deve...
– Apenas siga a maldita ordem sem mais comentários ou encontro outra pessoa que o faça.
Com um palavrão, ele desligou, enviou um sinal de volta para Isaac e, em seguida, tentou encontrar um local sólido para se sustentar dentro de si mesmo. Droga, de repente, ele sentia como se houvesse duas vozes diferentes em sua cabeça e elas não apenas o direcionavam para caminhos opostos, o puxavam de fato.
Felizmente, o retorno da transmissão feita a Rothe interrompeu sua luta.
– Matthias – ele ouviu aquela velha voz familiar.
– Isaac. Como vai?
– Onde? Quando?
– Sempre indo direto ao ponto. – Matthias empurrou a parte inferior do volante para manter o sedã na estrada, enquanto massageava a dor que havia do lado esquerdo de seu peitoral.
– Estou mandando alguém até você. Então, fique onde está.
– Inaceitável. Não posso ser pego aqui.
– Ditando as regras? Eu acho que não.
– Grier Childe não vai ser envolvida nisso. Vou me entregar à meia-noite, amanhã, em um local público.
– E agora você quer me dizer quando? Vá se ferrar, Rothe. Se quiser que ela fique fora disso, fará o que vou lhe dizer. Ou você acha que não posso passar por esse sistema de segurança de luxo a qualquer hora da noite que eu quiser? – Silêncio. – Surpreso por eu saber sobre a maldita coisa? Bem, há outros truques nessa casa, Isaac. Fico me perguntando de quantos deles você tem conhecimento.
Vê, aquilo era bom. O movimento do jogo de poder limpava um pouco aquela porcaria distorcida, nebulosa e evasiva – e isso o lembrava da razão por trás da morte de Daniel Childe: a grande boca aberta do bom e velho Albie.
Um tiro de adrenalina o despertou ainda mais enquanto ele se perguntava exatamente que tipos de planos Isaac e o capitão aposentado poderiam ter tido enquanto ele estava desmaiado na estrada.
Ele limpou a garganta.
– Sim, fique onde está... e em caso de ter tramado alguma brilhante ideia com o pai dela, deixe-me esclarecer as coisas. Se você fizer qualquer coisa para expor a mim ou à organização, vou fazer coisas àquela mulher das quais ela vai sobreviver, mas nunca se curar. E saiba: meu alcance se estende além da sepultura. – Mais silêncio. – Você conheceu o pai dela... não negue isso. E tenho plena ciência de que ele vem coletando informações sobre as operações extraoficiais há décadas. Sem ideias brilhantes, Isaac. Pelo bem dela. Ou vou ignorá-lo e ir atrás dela. Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora...
– Ela não faz parte disso! – Rothe disse entre dentes. – Ela não tem nada a ver comigo ou com o maldito pai!
– Talvez. Mas acidentes acontecem. E eu atribuí seu caso a ela por um bom motivo, que acabou ficando melhor do que eu pensava. Eu nunca esperava que vocês dois ficassem tão pessoalmente envolvidos, ou você acha que eu não ouvi os dois subirem até aquele quarto de hóspedes dela ontem à noite? – Matthias lutou contra a dor em seu peito, sentia como se estivesse se afogando. – Não me faça machucá-la, Isaac. Estou ficando cansado de tudo isso, estou mesmo. Fique onde está. Estou enviando uma pessoa e você saberá quando chegar lá. E se você ou o pai dela não estiverem lá quando ele chegar, vou fazer com que procure por ela, não por você. Você segue as instruções e vou me certificar de que ninguém além de você se machuque.
Matthias apertou o botão end para finalizar a ligação e jogou o celular no banco do passageiro.
Estremecendo, ele lutou para manter o carro em linha reta enquanto a agonia por trás de sua caixa torácica aumentava para níveis incontroláveis. Com o ataque, ele pensou brevemente sobre dirigir até o Aeroporto Internacional de Caldwell, mas decidiu que precisava se recuperar e isso ia levar tempo. E privacidade.
Apertando o peito esquerdo, ele parou e tentou respirar em meio à dor. O que realmente não ajudou muito... ao ponto de se perguntar se era isso. O derradeiro. Assim como aquele que matou seu pai.
Olhando para fora do para-brisa dianteiro, ele percebeu que estava na frente de uma igreja.
Sem nenhuma razão aparente, ele desligou o motor, pegou sua bengala e saiu. Ele não pensava em nada nem sequer remotamente relacionado a Deus há anos e estar mancando em direção àquelas enormes portas duplas o fazia se sentir... errado de muitas maneiras. Especialmente levando em conta tudo o que estava esperando por ele em Boston. Mas seu segundo homem na linha de comando precisava de tempo para arranjar as coisas e Matthias... precisava desse ataque cardíaco seja para se organizar e chutar o balde ou para calar a maldita boca.
Lá dentro estava quente e cheirava a incenso e cera com aroma de limão. O lugar era enorme, com centenas e centenas de bancos que se espalhavam em três direções desde o altar.
Matthias não fez todo o caminho. Ele entrou em colapso em um banco mais ou menos na metade do corredor lateral, caiu por completo no banco de madeira.
Movendo sua bengala entre os joelhos, olhou para o crucifixo... e começou a chorar.
CAPÍTULO 36
Depois de terminar a comunicação com Matthias, Isaac guardou o transmissor de alerta em seu blusão. O que ele queria fazer era colocá-lo sobre o balcão de granito e esmagá-lo com seu punho. Em seguida, talvez, jogar os pedaços no fogo.
Apoiando as mãos sobre a pia da cozinha, ele se inclinou sobre os ombros e encarou o jardim. Quase oito horas da manhã e o local estava um poço de escuridão, pois as casas da vizinhança tinham sido construídas muito perto umas das outras. Não fazia ideia se os colegas de Jim estavam lá de volta. Nenhuma palavra sobre Jim.
Mas Isaac tinha outros problemas agora.
Droga. Levando tudo em consideração, o fato de Matthias suspeitar do que iria acontecer não era uma novidade. Mas aquilo o deixou tenso. Se ele fosse embora agora, ele corria o risco de Grier e seu pai serem massacrados. Se ele ficasse... provavelmente eles seriam obrigados a assistir a morte dele.
Filho da mãe!
– Eles entraram em contato com você?
Ele olhou sobre o ombro. Grier tinha acabado de sair do chuveiro, seus cabelos soltos secavam naturalmente.
– Isaac – o rosto dela ficou tenso. – Eles responderam?
– Não – ele disse. – Ainda não.
Para tornar a mentira mais convincente, ele puxou o transmissor e o balançou, apostando no fato de que ela não iria notar que a luz estava desligada.
– Essa coisa está funcionando?
– Sim. – Ele o guardou quando ela se aproximou. – Como está seu pai?
– No telefone do banheiro de novo. – Ela encarou o relógio. – Deus, pensei que essa noite nunca ia acabar.
– Eu só queria que Jim aparecesse – ele disse enquanto ela começava a fazer o café na pia.
– Você acha... que ele está mesmo morto?
Naquele momento... talvez.
– Não.
Sentando-se em um dos bancos, ele a observou estalar a abertura de uma lata de café e colocar o filtro no topo da máquina. Quando ela terminou a tarefa, a luz do sol em seu rosto o fez querer chorar, ela era tão bonita.
De alguma maneira, ele não podia acreditar que estava com ela – e não no sentido de que não era digno disso. Dã, isso era evidente. Mas ponderando tudo, o sexo quente e intenso parecia um sonho. Ela estava tão limpa, cheirando a xampu ao invés de suor, o cabelo liso, o rosto já não mais corado.
Ela tirava seu fôlego. Para Isaac, ela era uma prova definitiva que a vida valia o sacrifício que requeria das pessoas: apenas olhar para ela e estar no mesmo ambiente, ter as memórias que ele deu não só a ela, mas que ficaram dentro dele...
A ideia de que alguma coisa a machucasse um dia era simplesmente insuportável. E se ele fosse a causa disso?
Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora.
Não era uma ameaça. Não vindo de um cara como Matthias, que não estabelecia qualquer distinção para o sexo feminino. E ele a machucaria de maneira que aqueles momentos especiais que Isaac havia passado com ela na adega fossem impossíveis de serem vivenciados novamente.
Por mais que lhe doesse, ele tinha que ser realista: quando ele partisse, ela encontraria outro amor. Talvez alguém com quem se case e tenha filhos e com quem possa passar a velhice. E não haveria nada disso para ela a menos que ele ficasse ali, esperando... e rezando para que quando o agente de Matthias aparecesse, ele fosse capaz de matar o filho da mãe e, em seguida, desaparecer rapidamente.
Afinal, ele era um maldito de um assassino. Era o que ele fazia para viver.
Uma coisa era clara: não ia mais prosseguir com a divulgação de informações. De jeito nenhum. A vida de Grier valia mais que o respeito que ela tinha por ele e, depois que a poeira assentasse, qualquer coisa que tivesse sido acionada pelo pai dela poderia ser desfeita tão rápido quanto uma ligação telefônica – assim, eles pensariam que o plano ainda estava de pé até descobrirem que Isaac tinha sumido.
E quanto ao resto de sua vida? Ele ia se entregar a Matthias e prestar suas contas, mas seria em seus termos. O pai de Grier faria algo com aqueles dossiês e Jim Heron, ou qualquer um de seus colegas, era o tipo de cara que poderia guardar uma narração gravada, em primeira pessoa, de cada assassinato que Isaac já cometeu – isso proporcionaria a Grier e a seu pai uma morte de causas naturais.
Afinal, ele tinha a impressão de que confissões feitas à beira da morte eram admissíveis no tribunal, então, uma vez que Isaac confessasse que Matthias iria matá-lo em breve, isso teria muita influência, não teria? – pelo menos seria o suficiente para que abrissem uma grande investigação.
Seu depoimento seria o seguro de vida dela e de seu pai.
Do outro lado, Grier apertou o botão ligar do aparelho e quando a máquina começou a sibilar ela ficou onde estava, olhando para a coisa.
Compelido por algo que ela não questionou, Isaac ficou em pé e se colocou atrás dela, colocando seu peito contra suas costas. A respiração de Grier ficou tensa ao sentir o corpo dele e, embora tivesse se enrijecido, ela não se moveu.
Ele estendeu as mãos e tocou as ondas loiras que caiam sobre seus ombros, correndo os dedos sobre ele. Em seguida, ele deslizou as mechas lentamente para a lateral, expondo a nuca.
Deus, ele já tinha se decidido, não tinha?
Tinha escolhido seu caminho.
– Posso beijá-la? – ele disse com voz rouca. Pois era mais cavalheiro perguntar antes.
A cabeça dela pendeu.
– Por favor.
Ele foi até o pescoço encantador, pressionando seus lábios contra a pele dela. Aquilo não era o suficiente, mas ele não confiava em si mesmo para ir mais além ou sequer para colocar suas mãos na cintura dela – se ele o fizesse, não ia parar até que ela estivesse sob ele e, por sua vez, ele estivesse dentro dela mais uma vez.
– Grier – ele sussurrou com voz rouca.
– Sim...
– Preciso dizer uma coisa.
– O que?
Algumas vezes as emoções eram uma locomotiva para as palavras: uma vez que se há uma revelação para fazer, não há freios suficientemente fortes para mantê-la nos trilhos de sua garganta.
– Eu te amo – ele pronunciou mais com ar do que com sílabas.
Contudo, ela ouviu. Deus, ela ouviu, pois inalou com um silvo.
Grier se virou tão rápido que se formou uma curva em seus cabelos e mesmo com o coração batendo forte, Isaac não desviou o olhar.
Quando ela abriu a boca, ele colocou seu dedo sobre os lábios dela e balançou a cabeça.
– Eu só precisava que você soubesse. Uma vez. Eu só precisava dizer... uma vez. Eu sei que não a conheço há tempo suficiente ou bem o suficiente e tenho plena consciência de que não sou o homem certo para você, mas algumas coisas precisam ser ditas.
O que não precisava ser transmitido era o terror dentro de sua pele.
Por mais que ele quisesse fazer a coisa certa, seu antigo patrão o pegou pelos cabelos: não havia sacrifício grande demais para garantir a segurança de Grier. Até mesmo a salvação de Isaac não era demais. Nem mesmo a queda de Matthias.
Uma garganta pigarreando discretamente fez com que Isaac olhasse para cima. Através do vidro sobre a pia, ele viu o pai de Grier em pé na cozinha – e por respeito à filha do homem, ele recuou.
– Café, pai? – Grier disse com uma voz estável ao se inclinar para o lado e pegar duas canecas no armário.
– Sim, obrigado.
Isaac podia sentir os olhos do cara oscilando entre um e outro, mas ele tinha certeza de que não queria responder qualquer pergunta.
E era evidente que Grier também não.
– Vamos sentar? – ela perguntou.
Ao invés de responder, o homem clareou a garganta mais uma vez. Sem dúvida por estar chocado com a situação do dia anterior, quando disseram para que ficasse longe, e o sentimento de “não toque na minha filha”.
Mas ele não precisava se preocupar. Ele chegou tarde demais para a última alegação, mas a sensação que a primeira causava... dariam um jeito nela.
– Pai? Vamos sentar?
– Todos vão chegar amanhã de manhã...
– Amanhã de manhã?
– É uma situação delicada. É preciso dar desculpas adequadas – esses homens e mulheres não podem sair sem um bom motivo, sem que questionamentos sejam feitos.
Isaac podia sentir Grier olhando para ele, buscando um apoio para dizer um “não” veemente, mas era isso, ele discordava dela. Amanhã era perfeito.
Ele já teria partido até lá.
No hotel, Jim acordou em seu quarto pouco iluminado e sentiu como se tivesse sido vítima de um acidente de carro. Com um caminhão. E ele estava sem cinto de segurança.
Ele estava na cama, dormindo encolhido de lado, seu corpo pesado tinha esculpido uma parte do colchão e estava posicionado como um cão à espera da morte em uma floresta. Mas ele era imortal agora... e aquilo parecia significar que não importava o dano que fosse feito nele, ele seria curado.
Sim, só que aquilo não parecia o tipo de trabalho que requeria apenas um movimento de nariz da Feiticeira, onde tudo era resolvido em um passe de mágica. Ele se sentia muito humano com as dores e feridas, a respiração que fazia suas costelas queimarem, com os saltos de seu coração que mais pareciam o andar de um bêbado. Mas a pior parte disso não era física. Estava em sua mente.
A parte em que havia deixado Sissy para trás, no reino de Devina, o matava.
Abrindo os olhos, percebeu que era manhã; sobre o topo da cabeça encrespada do Cachorro, o alarme brilhava com números vermelhos. 7h52.
Hora de levantar, ele pensou ao se virar de costas com cuidado. Do outro lado, Adrian estava apagado como uma lâmpada, o anjo tinha uma respiração pesada, seus olhos se movimentavam por trás das pálpebras fechadas.
Dado o brilho em seu rosto, era evidente que ele não estava tendo bons momentos na terra dos sonhos.
Deus, que noite, Jim pensou. Depois que Colin o deixou ali ele achou que seria apenas ele e o Cachorro. Mas, então, alguém veio do outro quarto e ele poderia concluir que seria Eddie – a coisa toda de cuidados e enfermagem era mais a praia dele.
Mas não. Adrian foi quem entrou... e permaneceu ali.
No momento, Jim não teve forças para lidar com qualquer simpatia que pudesse sentir pelo cara, então, ele envolveu com cuidado um cobertor em volta de si e calmamente se colocou em pé com as pernas tão fortes quando dois lápis. Mancando até o laptop, ele estava muito tonto, e chegou à cadeira bem a tempo – contudo, mas que droga, seu traseiro doía demais.
Apesar do fato de precisar urinar como um cavalo de corrida, ele ligou o computador e esperou impaciente para que o navegador da Internet fosse iniciado. Para passar o tempo, ele deu uma olhada nas marcas deixadas por aquilo que prendia seus pulsos. Os dois tinham linhas tortuosas de um vermelho brilhante em volta, que reluziam e estavam em carne viva, o lembrete tangível de onde ele tinha estado e o que tinham feito com ele seduziu sua mente a fazer uma viagem ao campo do stress pós-traumático. Só que foi um deslize que ele se recusou a permitir.
Voltando a prestar atenção no que estava fazendo, ele começou a digitar. Contudo, uma vez que seus dedos estavam dormentes, levou uma eternidade para chegar ao site do jornal de Caldwell e pesquisar por Cecilia Barten...
Apareceu um artigo de cerca de duas semanas atrás e a imagem de Sissy trouxe um brilho aos seus olhos. Ela estava sorrindo para a câmera em pé no meio de vários jovens da idade dela. Não dizia quanto tempo havia se passado entre o momento em que a foto foi tirada e quando foi levada por Devina – mas o fato de que ela não tinha ideia do que a esperava ao virar a esquina fez com que seu coração desconfiado ficasse ainda mais focado no trabalho.
Provavelmente era melhor que não soubesse de nada.
E ele ia fazer com que Devina pagasse por isso.
O único artigo que havia além desse relatava que ela tinha desaparecido há uma semana e os dois juntos o fizeram perceber o porquê sua primeira pesquisa de dados havia falhado. Ele pediu que o computador procurasse por assassinatos ou garotas loiras mortas. Nada relacionado a desaparecimento.
Que erro idiota.
E os detalhes eram os que Sissy tinha dito: ela era caloura na Faculdade de Albany e estava passando as férias de primavera em Caldwell. A última vez em que a viram foi quando ela saiu do mercado local por volta das nove horas.
Nenhuma foto de seus pais. Contudo, ele iria encontrá-los.
– Você a viu? – Adrian disse com uma voz um tanto áspera.
– Sim. – Jim encarou a foto de sua garota sorrindo com seus amigos. Então, ele piscou e viu seus cabelos loiros emaranhados com sangue. – Como a tiro daquela parede?
A respiração do outro anjo era do tipo que se produzia quando não se tinha uma boa notícia para dar. De jeito nenhum. E você fica dolorido com isso.
– Você não pode.
– Inaceitável. Tem que haver um jeito.
– Não que eu saiba. – Houve um palavrão e, então, um estalo no colchão e uma variedade de estalos como se Ad estivesse se espreguiçando.
– Volto já.
Quando os passos pesados se dirigiram para o outro quarto, Jim não se deu conta da saída do cara. Mas quando o focinho do Cachorro cutucou sua perna nua, ele olhou para baixo.
Os grandes olhos castanhos olhavam de um rosto de pelo que parecia palha.
– Você sabe como tirá-la de lá? Ela não pertence àquele lugar. Ela não deveria ter terminado ali.
Jim considerou que o pequeno gemido do animal significava que concordava com ele – e que também precisava sair para fazer suas necessidades.
– Dois segundos – disse Jim, preparando-se para ficar em pé. – Preciso de um banho.
Levantando seu peso morto da cadeira, ele deixou cair o cobertor e entrou no banheiro que era de um tamanho modesto. Fechando-se lá dentro, ele acendeu a luz, deteve-se no banheiro e se perguntou se seu pênis ainda funcionava de alguma maneira.
O fluxo rosa que ele urinou respondeu a pergunta. E também sugeriu que seus rins foram danificados.
Depois que terminou, grunhiu ao se inclinar para apertar a descarga e depois se virou para ligar o chuveiro. Sabonete. Ele precisava de muito mais sabonete do que aquela metade já usada que estava ali...
Jim congelou ao se ver no espelho.
Ruim. Muito ruim.
Muito pior do que ele pensava.
Sua boca estava roxa e inchada por causa de toda porcaria que tinha sido empurrada dentro dela, seu peito e sua barriga eram nada além de carne viva. Quanto ao pênis... A maldita coisa estava pendurada em seus quadris como se tivesse perdido a vontade de viver. E ele não queria saber como a parte de trás de seu corpo estava.
Usado e abusado eram os termos corretos.
E seu único pensamento, o único... apenas um... era que odiava o fato de que Sissy o tinha visto assim.
Quando seu estômago vacilou em torno de sua cintura, ele se lembrou da expressão horrorizada no rosto dela ao olhar para ele. Pobre garota... Ele tinha sido treinado para toda aquela porcaria. Ele tinha passado por isso antes... bem, não exatamente pelo que Devina fez com ele, mas com certeza ele teve que lidar com isso algumas vezes com punhos e facas. Até mesmo com uma bala ou duas. Mas Sissy...
Ele quase não conseguiu voltar à bacia sanitária à tempo.
Quando seu corpo se inclinou e nada além de bile saiu de sua boca, seus olhos lacrimejaram pelo esforço.
Maldição, Sissy o viu daquele jeito. Violado sexualmente, sangrando, surrado...
Mais vômito.
Ele não teve certeza de quando exatamente Adrian entrou, pois no terceiro round de lances que saíam de sua boca ele se deu conta que não sabia se ela estava livre do que tinha feito com ele. Afinal, ela foi capturada. Ela estava presa naquele inferno. E Devina tinha muitas coisas que satisfariam o gênero masculino.
– Aqui – Adrian disse, passando-lhe um pano frio.
Jim não conseguia enxugar o rosto, pois doía demais, então, ele deu leves toques, sentindo a umidade fresca como um bálsamo contra seu rosto em chamas e lábios queimando.
Baixando a cabeça, ele percebeu que tinha deixado manchas de sangue fresco no piso creme, das feridas que tinham sido reabertas em seus joelhos.
Sim, imortal não significava embalsamado; isso era certeza.
Adrian sentou-se ao lado dele, com o rosto muito pálido enquanto olhava ao redor da bacia sanitária.
– Quer que eu o coloque no banho? Foi o que me ajudou quando ela...
Quando seus olhos se fecharam com força, a conversa era de sobrevivente para sobrevivente.
– Ah, droga... – Quando Jim falou, sua voz era rouca e parecia que tinham passado um desentupidor por sua garganta.
– Ela me viu assim. Sissy... ela viu isso.
Ele não podia acreditar que havia dito isso, mas manter dentro de si era inútil.
Incapaz de manter contato visual, Jim fechou suas pálpebras com força e encostou ao lado da banheira. Enquanto a água caía como a chuva atrás dele e o chão duro pressionava seu traseiro, ele sussurrou: – Ela me viu arruinado.
Foi a última coisa que disse antes de desmaiar.
CAPÍTULO 37
Você não deve ter pensando que uma casa com seiscentos metros de área construída, no centro da cidade, com três andares – quatro, se contar o porão com a adega – poderia ser estreita como uma caixa de sapato.
Mas, à medida que a manhã se arrastava e chegava o florescer do meio dia, Grier sentia como se não pudesse ter ar suficiente... ou algum momento à sós com Isaac. Seu pai era uma presença passiva com olhos de águia que parecia preencher todo o espaço, mesmo quando não estava nele. E Isaac estava tão ruim quanto ele, movendo-se constantemente, olhando pelas janelas, indo e voltando da frente da casa para a cozinha.
Por volta das duas horas, ela não aguentava mais e foi organizar seu armário no quarto. O que era ridículo, pois já estava arrumado – apesar de ser uma cura rápida para o que estava passando.
Depois de parar no meio do quarto e fazer um giro pelas fileiras de roupas penduradas por categoria, ela pegou cada blusa, saia, vestido, terno e par de calças das prateleiras e os colocou em uma pilha no chão. Aparentemente, ela estava reorganizando as várias sessões. Na realidade, ela estava dando a si mesma um pouco de bagunça para limpar para que pudesse desfrutar de um pouco de controle.
Cabide por cabide, item por item, ela começou a organizar seu guarda-roupa.
Deus... Isaac.
Se ela o ouviu direito, lá na cozinha, perto da cafeteira... ele disse que a amava.
Vamos lá... claro que ela ouviu direito. E seus olhos incríveis confirmaram o que seus ouvidos tinham lutado para compreender.
Contudo, havia muitos mas que a advogada que havia nela queria esquematizar. A questão era, a mulher por trás da advogada de defesa não se importava com nada daquilo: ela sentia algo tão forte quanto ele.
Naturalmente, a lógica dizia que não devia confiar na emoção nos dois casos, apontando que tudo era uma questão de circunstâncias, drama, tensão, sexo – Deus, o sexo. Só que seu coração tinha uma teoria diferente. Ela sentiu uma faísca entre eles no instante em que colocou os olhos nele e a decisão de Isaac de tomar a frente e fazer a coisa certa sobre seu chefe corrupto e perigoso... bem, isso foi ainda melhor que os incríveis orgasmos.
Ele ganhou todo o respeito dela com isso.
Ao pegar um de seus ternos pretos com risca de giz, ela se entreteve com uma breve fantasia onde eles acabavam juntos em uma ilha segura e remota com nada além do dilema sobre o que fazer para almoço e jantar para preocupar suas mentes. Um dia de sonho na Ilha da Fantasia com nada para ser questionado seria uma ótima diversão, mas ela não ia enganar a si mesma. Isaac ia desaparecer. O governo ia levá-lo e escondê-lo até que as audiências no Congresso ou os procedimentos judiciais fossem iniciados. E se ele não acabasse na cadeia pelas atrocidades de guerra nos Estados Unidos, seria extraditado para algum inferno no exterior.
E foi por isso que ele disse aquilo. Era seu adeus.
– Uau.
Grier girou sobre os calcanhares, o terno em suas mãos se levantou em um círculo em volta de seu corpo antes de ser colocado de volta no lugar – como se tivesse esquecido momentaneamente sua discrição e retomado sua compostura.
E não é que ela sabia como a coisa se sentia?
Isaac se amaldiçoou.
– Desculpe, eu realmente preciso aprender a bater.
Grier ficou mais aliviada.
– Eu também estou nervosa demais.
Franzindo a testa, ele mediu a pilha no meio do carpete creme.
– Muitas roupas.
– Provavelmente roupas demais. Eu preciso doar um pouco para alguma entidade.
Ele avançou e pegou um de seus vestidos. Era longo e preto, como todos os outros, pois ela não era do tipo de garota que gostava de cores e brilhos.
– Para onde vai esse?
– Ah... – Havia apenas uma seção com barras altas o suficiente para os longos. Então, ela havia os tirado por nada, apenas para colocá-los novamente. – Aqui. No canto, por favor.
Ele pegou o vestido feito para se usar à noite e o colocou no lugar onde já tinha estado antes. Então, ele se voltou para o próximo, endireitando as ombreiras em um cabide acolchoado de cetim. Antes de colocá-lo no lugar, ele se surpreendeu por baixar a cabeça e colocar seu nariz no decote.
– Tem o cheiro do seu perfume – ele murmurou antes de colocá-lo sobre a haste de bronze.
Foi o que bastou para que um arrepio percorresse dentro dela – no bom sentido. Infelizmente, o formigamento foi substituído por tudo o que estava pairando sobre eles.
– Você já recebeu algum contato... deles?
– Não.
– O que você vai fazer se eles não responderem?
– Eles vão.
Ele não disse mais nada, apenas pegou um vestido com um corpete de veludo e uma larga faixa.
– Vestido de Natal?
– Sim.
– É lindo.
– Obrigada. Isaac? – Quando ele olhou, ela disse: – Eu...
Ele a interrompeu.
– O que é esse som?
– Que som...
O terno caiu de suas mãos quando ela reconheceu o sutil sinal sonoro e se atrapalhou para tirar a corrente do sistema de segurança do bolso. Era certeza, uma luz vermelha estava piscando. “Havia alguém na casa.”
Ela interrompeu o barulho e começou a ir em direção ao telefone ao lado da cama, mas ele segurou seu braço.
– Não. Nada de polícia. Já tiramos vidas de inocentes o suficiente com isso.
Sua arma surgiu e expôs um tubo quase tão longo quando seu punho. Quando ele engatou o silenciador na ponta da arma, olhou em volta e seguiu até o espaço mais abaixo onde o mecanismo do sistema de segurança se encontrava.
Mantendo a arma em mãos, ele arrancou a superfície de metal.
– Entre aqui. E não saia até que eu...
– Eu posso ajudar...
A expressão nos rosto dele fez com que ela desse um passo para trás: seu olhar era frio e totalmente estranho – como se ela estivesse olhando para um vidro fosco... sem esperança de algum dia ver o que estava por trás dele de novo.
– Entre aí, agora.
Os olhos dela encararam a arma e depois se voltaram para sua face rígida e implacável. Era difícil saber o que era mais assustador: a ideia de que alguém estava em sua casa ou o estranho em pé na frente dela. E, então, ficou claro para ela...
– Oh, meu Deus, meu pai!
– Eu cuido dele. Mas não vou fazer isso direito se estiver preocupado com você. – A arma apontava para o buraco escuro que ele tinha aberto. – Vá, agora.
Depositando sua confiança nele, Grier se abaixou, esquivou-se dentro do local e respirou o ar bolorento dos beirais quando Isaac recolocou a grade no lugar. Houve um movimento, um clique, outro movimento, outro clique ao fixar a coisa na parede e, em seguida, pelas frestas, ela o viu sair correndo, silencioso como uma sombra.
Ela olhou o relógio. Ouvia com atenção.
O medo se comprimia com ela dentro dos limites apertados de seu esconderijo, ocupava mais espaço que ela, trazia à tona a imagem de Isaac como um estranho, até aquilo ser tudo o que conseguia ver.
Silêncio.
Mais silêncio.
Que foi prontamente interrompido por uma estridente paranoia em sua cabeça.
Oh, Deus... e se tudo isso não passou de uma armadilha? E se Isaac tinha sido enviado com o único propósito de seduzir seu pai e determinar o quão longe ele iria para expor a agência?
Só que foi ela quem sugeriu isso.
Ou será que a intenção dele era que ela acreditasse nisso?
Contudo, seu perfil dizia que ele precisava de uma motivação moral – e se fosse uma mentira? E se aquilo fazia dele o agente infiltrado perfeito? E se tudo aquilo não passasse de um jogo para que seu pai entregasse os dossiês... antes de o matarem.
E, ainda assim, Isaac a colocou ali para protegê-la.
Só que ela não o reconhecia no momento em que fez isso...
Meu bom Deus, o transmissor de alerta – a luz estava apagada, não estava? Quando ele balançou a coisa em frente a ela na cozinha esta manhã, a luz que ela tinha visto antes estava apagada. O que aquilo significava? E, pensando nisso, o lapso de tempo lhe parecia bizarro: entre o momento em que ele aparentemente se entregou até agora.
Ela tinha que sair dali. Conseguir ajuda.
Grier se contorceu e se apertou atrás dos componentes empilhados do centro nervoso do sistema de segurança. A escadaria oculta que corria no meio da casa fazia parte de sua construção original, foi feita por suspeita e desconfiança de que os britânicos ainda pudessem passar por ali em 1810, cerca de trinta anos depois da Revolução.
Os truques da casa acabaram sendo úteis no presente.
O brilho do sistema de segurança proporcionava iluminação suficiente para que ela encontrasse a lanterna coberta de poeira que ficava pendurada em um prego no topo da escada secreta. Acendendo a luz, ela tateou os degraus antigos, entalhados à mão, deixando suas impressões para trás na poeira. Ao prosseguir, teias de aranha grudaram em seus cabelos e os ombros foram arranhados pela áspera argamassa dos tijolos.
Quando chegou ao primeiro andar, fez uma pausa. É claro que ela não conseguia ouvir nada devido às grossas paredes, mas o pai dela tinha acrescentado um tubo que parecia fazer parte do sistema de ventilação. Na verdade, porém, servia como posto de vigilância secreto.
Grier subiu e se inclinou para o lado para conseguir enxergar direito, apoiando-se sobre alguns tijolos que estavam mais firmes que os outros.
Quando ela apertou os olhos, sua visão trespassou as ripas e focou-se na entrada da frente. Se ela se arqueasse um pouco mais e esticasse o pescoço, ela conseguiria ver a cozinha...
Grier abandonou a lanterna e apertou as mãos sobre a boca.
Para não gritar.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
PARAÍSO, JARDIM SUL
Nigel concedeu uma audiência antecipada a seus dois anjos guerreiros favoritos não por causa da bondade que havia em seu coração – apesar do fato de ele, Colin, Bertie e Byron estarem no meio de uma refeição. Contudo, não haveria como mandar esses visitantes embora: ele sabia por que Edward e Adrian estavam chegando e eles não iam gostar do que ele tinha para lhes dizer.
Assim, ele sentia que precisava tratar disso pessoalmente.
E, de fato, quando os dois anjos tomaram forma do outro lado do gramado, caminharam ao longo do bosque como os vingadores que eram.
– Sinto muito mesmo – Nigel murmurou para seus assessores. – Mas poderiam, por favor, me dar licença um minuto.
Ele dobrou seu guardanapo damasco e se levantou, pensando que não havia razão para arruinar a refeição dos outros – e o que estava prestes a acontecer verbalmente seria um assassinato gastronômico do tipo mais sangrento.
Colin se levantou também. Nigel preferia fazer isso sozinho, mas não havia como dissuadir o anjo. Nada nem ninguém poderia mudar as ideias de Colin sobre o que teria de sobremesa, muito menos sobre questões de real importância.
Ele e Colin se encontraram com seus visitantes a meio caminho entre o local onde os dois haviam entrado e onde a mesa estava colocada entre as árvores.
– Ela o tem – Edward disse quando os quatro se aproximaram. – Não sabemos como isso aconteceu...
Nigel interrompeu o anjo.
– Ele se entregou para que outra pessoa tivesse uma chance na vida.
– Ele não deveria ter feito isso. Ele é valioso demais.
Nigel olhou na direção de Adrian e viu que o anjo estava em silêncio pela primeira vez. O que era o sinal mais concreto de que havia problemas.
Nigel puxou suas abotoaduras, alisando as mangas de sua camisa de seda dentro de seu terno de linho.
– Ela não vai matá-lo. Não pode.
– Tem certeza disso?
– Há poucas coisas confiáveis nela, mas as regras não foram impostas por ela. Se matar Jim, ela perde não só a rodada, mas o jogo na sua totalidade. Isso vai mantê-la em cheque.
A voz de Adrian percorreu o ar, fina e dura.
– Há algumas coisas piores que a morte.
– Com certeza, você está certo.
– Então, faça alguma maldita coisa. – O anjo vibrava por completo, seu corpo era um presente de natal prestes a ser rasgado em pedaços com ansiedade.
– Porém, nós poderíamos tirá-lo de lá – Edward disse. – Não é contra as regras.
– Claro que poderiam.
Longo silêncio.
Edward limpou a garganta e pareceu dobrar a língua numa contenção educada.
– A imagem que ela nos enviou sugere que ele está preso no mundo dela.
– Ele não está sobre a terra, é verdade.
– Então, como podemos chegar até ele?
– Não podem.
Quando Adrian soltou um palavrão, Edward segurou o braço do outro anjo, mas isso não o calou.
– Você disse que poderíamos tirá-lo de lá.
– Adrian, eu disse “poderiam” no sentido de permissão. Vocês têm permissão de fazer isso dentro das regras. No entanto, eu não fiz um comentário sobre suas habilidades. Neste caso, vocês são incapazes de alcançá-lo sem sacrificarem a si mesmos, deixando-o sem apoio e orientação durante esses momentos inicias e cruciais...
– Seu imbecil.
Antes que Adrian pudesse fazer algo estúpido, Edward transferiu sua força para o pesado peito do cara e o deteve.
Nigel levantou uma sobrancelha para os dois.
– Eu não faço as regras e eu tenho tanta intenção de ser desqualificado quanto meu adversário.
– Você tem... – Adrian engasgou com as palavras e teve que respirar fundo para terminar. – Você tem alguma ideia do que ela está fazendo com ele? Agora mesmo? Enquanto estamos parados em seu maldito gramado e o jantar está esperando por você?
Nigel escolheu as palavras com cuidado. A última coisa que ele precisava era dos dois fazendo justiça com as próprias mãos. Eles já tinham cometido esse erro uma vez, não tinham?
– Eu sei exatamente o que ela está fazendo sobre aquela mesa, por assim dizer. E também sei que Jim é muito forte... o que é a pior tragédia de todas. Pois ela vai recorrer a torturas que... – Não havia razão para continuar: os olhos de Adrian ficaram vítreos como se fosse alguém revivendo um pesadelo. – Eu diria, porém, que Devina não pode mantê-lo por muito tempo ou ela corre o risco de perder. As coisas estão chegando a um limite e, se ela impedir Jim de participar plenamente do que está por vir, então, não haverá uma competição justa.
– E quanto a Jim? – Adrian exigiu, libertando-se do seu melhor amigo. – E quanto ao sofrimento dele? E quanto a ele?
Nigel olhou para Colin, que estava completamente em silêncio. Mais uma vez, sua bela e familiar expressão facial dizia tudo: sua fúria era tão grande e profunda que os oceanos ficariam rasos, se comparados a ela. Ele sempre odiou Devina e isso não serviria de auxílio naquele momento.
No entanto, havia bastante exaltação ali.
Nigel balançou a cabeça com uma sincera decepção.
– Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito. Minhas mãos estão atadas.
– Você sente muito? Você sente muito, seu maldito? – Adrian cuspiu no chão. – Sim, você parece mesmo, seu bastardo frio. Você parece muito desapontado. Imbecil.
Com isso, o anjo se desmaterializou.
– Droga. – Edward murmurou.
– Um palavrão, mas uma palavra adequada para isso. – Nigel olhou para o espaço que Adrian tinha preenchido antes. – É cedo para ele estar tão cansado e frágil com a batalha. Isso não é nada bom.
– Você está brincando comigo, certo?
Ele encarou o anjo.
– Com certeza você deve enxergar a loucura que há nele...
– Para sua informação, chefia, não faz nem quatro dias que Devina usou o cara ao seu bel-prazer. E você acha que ele não vai perder a cabeça agora que Jim está passando pela mesma máquina de tortura? Está falando sério?
– Gostaria de lembrá-lo que você jurou que ele poderia lidar com isso. – Nigel viu-se inclinado para frente em posição de confronto. Afinal, ele poderia ser o capitão deste lado, mas isso não queria dizer que estava isento de socos. – Você me disse que ele poderia suportar o estresse. Você me prometeu e eu acreditei em você. E se acha que vai ficar mais fácil à medida que avançamos, então você está tão louco quanto ele aparenta estar.
Edward ergueu o braço e o puxou para trás como se fosse lhe dar um soco.
– Vá se ferrar, Nigel...
Colin investiu contra o anjo em um piscar de olhos, atacando pela direita, como no futebol americano, derrubou o homem e o imobilizou de bruços sobre a brilhante grama verde.
– Você não toca nele, companheiro – Colin grunhiu. – Eu sei que está chateado e deseja libertar Jim, mas não posso deixar que bata em Nigel. Não vai acontecer.
Nigel olhou para a mesa de jantar. Como Bertie e Byron se viraram para olhar, ele viu que eles estavam sentados como pássaros preocupados, seus corpos se estenderam, os braços caíram nas laterais, os olhos arregalados.
Tarquin tinha deitado no chão e colocado seu longo focinho sob a toalha para que não conseguisse ver nada.
A refeição estava mais que arruinada. E não apenas porque o espetáculo que aconteceu ali foi um desastre de se assistir: na verdade, Nigel não ia ser capaz de colocar nada no estômago. Esse jogo com Devina estava tomando péssimas direções de tantas maneiras... e ele estava paralisado pelas regras.
– Solte-me – Edward resmungou.
Colin deveria ter uma estrutura duas vezes mais leve que a do outro anjo, mas tinha uma força elástica além da média.
– Você vai ser legal, companheiro. Nada mais de socos ou vai ser derrubado outra vez.
– Está bem.
As palavras não foram qualquer tipo de rendição, mas Colin saiu de cima dele de qualquer maneira... provavelmente por saber que só poderia subjugar o homem de novo se fosse necessário.
Edward tirou os pedaços de grama verde que ficaram presos em seu casaco de couro como se fossem lantejoulas.
– Só por que Jim pode sobreviver a isso não significa que seja justo.
Com isso, ele desapareceu no ar.
Após um palavrão silencioso, Nigel observou o desaparecimento da marca deixada pelo corpo pesado de Edward, a grama se erguia, endireitava-se.
– Eles têm razão – Colin disse asperamente. – E a vadia não está jogando limpo.
– Jim se voluntariou para ela.
– Em uma situação que ela projetou. Não está certo e você sabe disso.
– Você quer que nós corramos o risco da derrota? – Ele o encarou. – Você quer perder por causa disso?
Colin espalmou a grama de suas mãos.
– Inferno. Mas que maldito inferno. – Nigel olhou para a marca do corpo que desaparecia em seu gramado.
– Concordo plenamente.
CAPÍTULO 31
A adega não era um lugar aonde Grier ia com frequência. Em primeiro lugar, as garrafas de vinte dólares que enchiam suas taças todas as noites mal valiam o subir e descer de escadas. Em segundo, com sua porta que era como um cofre de banco, seu teto baixo e estantes que percorriam todas as paredes, ela sempre sentia como se lá fosse uma prisão.
E, como pode imaginar... quando seu pai fechou os três no caixão apertado, o peso da presença de Isaac diminuiu o local para o tamanho de uma caixa de lenços de papel e ela sentiu como se não pudesse respirar.
Havia uma mesa polida no centro do espaço e ela ocupou uma das quatro cadeiras. Quando Isaac se sentou à frente dela, foi difícil não se lembrar de quando o encontrou na cadeia: tinha sido bem assim, os dois frente a frente.
Só que agora, apesar do fato que nenhum dos dois estava algemado, ela não conseguia deixar de ter a sensação de que os dois estavam amarrados juntos... e que as rolhas em todas as garrafas eram um pelotão de fuzilamento na iminência de obedecer ao sinal para atirar.
Deus, quando ele foi trazido para se encontrar com ela pela primeira vez, ela não tinha ideia de onde estava se metendo.
Mas, alguém já soube? Quando as pessoas passam por suas vidas cotidianas, escolhas rápidas e eventos aleatórios podem, algumas vezes, girar em um tipo de força centrífuga que as suga e, depois, as expele em um endereço totalmente diferente de onde começaram.
Mesmo quando nunca saem de casa.
Seu pai sentou-se mais próximo da porta e uniu as mãos quando colocou os cotovelos no topo da mesa.
– Estamos seguros aqui embaixo – disse ele, apontando para uma saída de ar no pequeno teto que tinha duas bandeiras vermelhas tremendo com a brisa. – O sistema de ventilação é iniciado a vários quarteirões de distância daqui, assim, não há preocupação com uma contaminação. Há também um túnel e um transmissor de ondas de rádio que irá embaralhar nossas vozes se estivermos sendo gravados.
O túnel era uma novidade e Grier olhou em volta. Até onde ela poderia ver, todas as prateleiras estavam fixadas na parede e o chão era de pedra, mas dado os outros pequenos truques na casa, ela não poderia afirmar que estava surpresa.
Isaac se manifestou.
– Se eu tivesse que ir até alguém e conversar com essa pessoa, quem seria?
– Isso depende de como...
– E quanto à mamãe? – Quando Grier cortou, interrompeu, descarrilou, ela olhou para o rosto de seu pai, procurando por contrações ao redor dos olhos e da boca. – E quando ela morreu? Foi mesmo de câncer?
Embora tivesse sido há sete anos, aqueles dias finais horríveis ainda estavam tão vívidos e ela se infiltrou neles, procurando por rachaduras nas paredes dos acontecimentos, em busca de lugares onde as coisas que pareciam de um jeito pudessem ser de outro.
– Sim. – Seu pai disse. – Sim... ela... Sim, aquilo foi câncer. Eu juro.
Grier exalou e achou difícil imaginar que ela estivesse realmente aliviada por ter sido aquela doença horrível. Mas era muito melhor a Mãe Natureza ter sido a culpada. Muito melhor que aquela tragédia não precisasse ser reescrita. Uma era mais do que suficiente.
Ela limpou a garganta. Assentiu.
– Tudo bem, então. Tudo bem.
Uma mão quente cobriu a dela e a apertou. Como as mãos de seu pai estavam sobre a mesa, ela percebeu que era Isaac. Quando ela olhou para ele, Isaac quebrou a ligação, seu toque durou apenas o suficiente para que ela soubesse que ele estava ali com ela, mas não de maneira que ela se sentisse reprimida.
Deus, as contradições que havia nele. Brutal. Sensual. Protetor.
Com um tapa mental, ela voltou a se concentrar em seu pai.
– Você estava dizendo alguma coisa?
Ele balançou a cabeça e se recompôs antes de olhar para Isaac de novo.
– Até que ponto você está disposto a ir?
– Eu não vou comentar sobre os outros soldados em atividade – disse Isaac. – Mas quanto ao que se tratar das minhas atribuições, vou até o fim. As coisas que fiz para Matthias. O que sei sobre ele e sobre o segundo na linha de comando. Onde os dois me enviaram. O problema é: isso é uma colcha de retalhos... Há muita coisa a qual só conheço em parte.
– Deixe-me mostrar uma coisa.
Seu pai se levantou da mesa e, antes que ela pudesse ver o que ele fez, uma seção de prateleiras veio para frente e deslizou à esquerda, expondo um conjunto de segurança em meio à parede de pedra. A porta resistente foi aberta pelas impressões de toda a palma de sua mão em um painel e o interior não era muito grande – um pouco maior que um bloco de notas na horizontal e não tinha mais que quinze centímetros de altura.
Ele voltou à mesa com uma pasta grossa.
– Isso foi tudo o que consegui reunir. Nomes. Datas. Pessoas. Lugares. Talvez isso ajude a ativar sua memória. – Ele bateu sobre a capa da frente. – E vou descobrir a quem recorrer. Não há como saber com certeza quem está envolvido no círculo de relações de Matthias: conspirações governamentais têm grossas raízes, mas também possuem garras que você não consegue ver. A Casa Branca não é uma opção e é uma questão federal, então, contatos da União não vão nos ajudar. Mas eis o que eu penso...
A voz de seu pai tornava-se mais poderosa a cada palavra, a força crescente do propósito o transformava no pilar que ela sempre acreditou que fosse. E, enquanto ele descrevia os planos, ela sentiu uma mudança no centro de seu coração.
Embora isso se devesse muito a algo que Isaac havia falado. Nenhum de nós sabe no que está entrando até ser tarde demais...
O irmão dela tinha sido um drogado muito amado, um viciado de primeira ordem que teria morrido pelas suas próprias mãos em algum momento – embora essa não fosse uma justificativa para o que tinha sido feito com ele, era a simples realidade da situação. E ela se surpreendeu, na época, em como seu pai ficou desesperado com a perda. Ele e Daniel não mantinham contato há pelo menos um ano antes daquela noite terrível: depois da última internação em mais uma clínica de reabilitação caríssima ter caído no esquecimento, o pai atingiu seu limite assim como muitos pais e familiares faziam. Ele ofereceu tudo o que podia para seu filho, andou com toda dificuldade por uma década nos caminhos da recuperação que deram uma esperança traiçoeira, mas era inevitável que se seguissem longos e obscuros meses em que ninguém sabia onde Daniel estava ou, até mesmo, se estava vivo.
Contudo, seu pai estava inconsolável em sua morte. Ao ponto dele passar uma semana em uma cadeira com nada além de uma garrafa de gim ao seu lado.
E agora ela sabia o porquê. Ele acreditava que era inteiramente responsável.
Enquanto ela o observava falar, notava a idade em seu rosto... as rugas ao redor dos cantos dos olhos e da boca, a ligeira inclinação na linha do queixo. Ele ainda era um homem bonito e, ainda assim, nunca se casou de novo. Será que foi pela bagunça na qual estava envolvido? Provavelmente.
Definitivamente.
Aqueles sinais da idade nele não eram apenas uma questão do tempo. Foi estresse, dor de cabeça e...
Mudando seu foco para Isaac, seu olhar estreito e parecendo um laser era intenso; sua íris pálida brilhava muito com uma luz de “vamos à guerra”. Engraçado, ele não tinha nada a ver com seu pai em termos de antecedentes, educação escolar, exposição, experiência. E, ainda assim, eles eram idênticos em muitos aspectos.
Especialmente unidos na missão comum de fazer o certo.
– Grier?
Sacudindo-se, ela olhou para seu pai. Ele estava segurando algo em sua direção... um lenço? Mas por quê...
Quando ela sentiu algo atingir seu antebraço, olhou para baixo. Uma lágrima prateada se recolhia após a queda de seu olho, aglomerando-se em um pequeno círculo brilhante em sua pele.
Outra escorreu e atrapalhou todo seu esforço – mas, então, as duas uniram forças e a massa duplicou.
Ela pegou o lenço e enxugou suas lágrimas.
– Eu sinto tanto – seu pai disse.
Ela enxugou o rosto e redobrou o linho fino, lembrando-se dele fazendo a mesma coisa quando estavam na cozinha.
– Sabe? – ela murmurou. – Desculpas não significam nada. – Ela apoiou a mão na pasta que ele tinha colocado na mesa. – Isso... o que vocês dois estão fazendo... isso é tudo.
A única coisa que poderia consertar qualquer aspecto sobre isso.
Para interromper a conversa mental, abriu a capa...
Ela franziu a testa e se inclinou. A primeira página era uma impressão da imagem de quatro fotografias de rosto. Todos homens. Todos eles pareciam diferentes versões étnicas de Isaac. Embaixo das imagens, com a caligrafia de seu pai, havia nomes, datas de nascimento, números de cadastro na segurança social, a última vez que foram vistos... embora nem todos os dados estivessem concluídos. E três deles tinham a palavra FALECIDO embaixo de suas fotos.
Ela virou para próxima página e a próxima. A mesma coisa. Tantos rostos.
– Eu quero que Jim Heron entre nessa – Isaac disse. – Quanto mais estiver disposto a ir adiante, melhor...
– Jim Heron? – o pai dela disse. – Você quer dizer Zacarias?
– Sim. Eu o vi mais cedo essa noite e na noite anterior. Eu pensei que ele tinha sido enviado para me matar, mas, ao que parece, ele quer me ajudar... ou é assim que diz.
– Você o viu?
– Ele estava com dois rapazes. Eu nãos os reconheci, mas parecem com caras que poderiam ser das operações extraoficiais.
– Mas...
– Oh, meu Deus. – Grier sussurrou, aproximando uma das páginas. – É ele.
Quando ela apontou para uma das fotos, ouviu seu pai dizendo: – Jim Heron está morto. Atiraram nele em Caldwell, Nova York. Há quatro noites.
– É ele. – Ela repetiu, batendo na foto.
A voz de Isaac soou confusa.
– Como sabia? Grier... como você sabia?
Ela olhou para ele.
– Sabia o que?
– Que era Jim Heron.
Movendo seu dedo, ela viu o nome Zacarias abaixo da foto.
– Bem, eu não sei quem ele é, mas esse é o homem que apareceu no meu quarto na noite passada. Como um anjo.
CAPÍTULO 32
Aquilo não estava funcionando.
Lá no fundo do Inferno, onde ela mantinha suas almas capturadas e onde o ar rarefeito ecoava os gemidos de seus servos oleosos, Devina estava sofrendo de um caso grave de mau humor.
Razão pela qual ela mandou todos embora.
Parando de repente, ela observou o pedaço de carne amarrado com um fio metálico em sua mesa. À luz das velas, Jim Heron era uma obra ao estilo Pollock com sangue, cera negra e outros líquidos de vários tipos, e ele estava tendo dificuldades para respirar através de seus lábios inchados e rachados. Em seu estômago, havia um roteiro de escavações que ela tinha feito com suas próprias garras e as coxas dele estavam bem marcadas com seu nome e seus símbolos.
Seu pênis tinha sido utilizado até ficar tão em carne viva quanto o resto do corpo dele.
E, ainda assim, ele não chorou ou implorou ou sequer abriu os olhos. Nenhuma blasfêmia, nada de lágrimas. Nada.
Ela não tinha certeza se deveria ficar chateada consigo e com seus ajudantes por não terem se esforçado o suficiente... ou se estava se apaixonando pelo bastardo.
De qualquer maneira, ela tinha a determinação de conseguir um pedaço dele. A questão era como.
Devina estava bem consciente de que havia duas maneiras de quebrar alguém. A primeira era de fora para dentro: você esculpia a pele, os ossos e o sexo do indivíduo até que a dor física, a exaustão e a vergonha aniquilavam seu núcleo mental. A segunda era o inverso: encontrar a fenda que havia dentro da pessoa e martelar com palavras até que tudo desmoronasse.
Normalmente, a primeira era suficiente para ela, tendo em conta todas as ferramentas à sua disposição – e também era divertido e, portanto, era por onde ela sempre começava. A segunda era mais complicada, embora não menos satisfatória à sua maneira. Todas as pessoas tinham chaves para abrir suas portas internas; ela só precisava classificá-las e descobrir aquela que a levaria para dentro da mente e do coração do indivíduo.
No caso de Jim Heron... Bem, estava claro que ele ia dar trabalho. E aquilo ainda abriria uma competição pelo brinquedo favorito com Adrian.
O que escolher, o que escolher...
A mãe dele. Sua mãe era uma boa, mas Devina não era capaz de ficar calma para se aproximar da realidade e ele deveria ser inteligente o suficiente para descobrir que ela estava fingindo...
Felizmente, havia outra solução que estava sob seu controle.
Fora do alcance da luz das velas, presas em suas paredes viscosas, as almas daqueles que ela capturou se contorciam. Mãos, pernas, pés e cabeças faziam aparições ondulantes que nunca quebravam a superfície suspensa, o torturado sempre procurava por uma saída.
A satisfação de ver sua coleção a distraiu, mas também a deixou faminta: ela tinha que ter Jim também como um troféu entre os outros. Estava desesperada para tê-lo dentro dela. No início, tinha sido um mero jogo; agora, depois daquela sessão, era muito mais que isso.
Ela queria obtê-lo.
Voltando a focar o rosto dele, ela achou sua expressão quase impossível de compreender. Como um homem poderia ter passado por tanta coisa... e sem sequer fazer uma careta. E também sem medo do que estava por vir.
Contudo, ela ia consertar isso.
E ela gostava de pensar que esse poder nele vinha daquela porção que ela compunha. Aqueles anjos de corações sangrando com sua contenção e moral sacrossantas... fracos, tão fracos. Ao ponto de ela não querer perder o jogo contra Nigel não apenas porque poderia governar a terra e os céus e tudo o que havia entre o sol e a lua... mas porque um bom tapa no traseiro daqueles maricas seria demais.
Contudo, Jim... ele era melhor que isso. Ele era mais parecido com ela no fundo de seu ser.
Que tragédia ter que enviá-lo à Terra em breve; mas o jogo, afinal, tinha que ser retomado. Entretanto, antes de ir, ela estava determinada em fazer uma impressão nele, dar a ele mais um pouco do que seria o Inferno Eterno. Afinal, os cortes em sua pele eram relativamente rasos. Porém, marcas na mente eram muito, muito mais profundas.
E imortais eram especialmente gratificantes nesse sentido, pois, conforme o cérebro persistia, assim era a memória – e isso significava que ela poderia deixar cicatrizes eternas.
Olhando a parede, que se estendia quilômetros acima dela, Devina pensou em sua terapeuta e no trabalho que estavam fazendo juntas. Aquele era um domínio que estava fora dos limites de sua “recuperação”, e sua situação com Jim era mais uma prova de como seu probleminha de acumular objetos viria a calhar.
Você nunca sabe do que pode precisar.
Estendendo a mão, puxou uma das formas mais esbeltas, movendo-a dentre as outras almas, chamando-a até ela. Quando estava no chão, ela convocou a alma e a vestiu da forma corpórea que costumava exibir na Terra.
Devina sorriu frente a isso. Tanta utilidade em um pacotinho tão insosso e esquecível.
Voltando-se para a mesa, ela disse: – Jim? Tenho alguém aqui que você vai querer ver.
Deitado sobre a mesa de Devina, ele duvidou. Duvidou disso, de maneira muito sincera.
Além disso, naquele ponto, visões provavelmente não eram convidativas.
Nada mais doía, o que tornava aquela droga toda muito mais fácil. No entanto, a troca que fez por aquela feliz dormência foi sua consciência recolhida a um canto escuro de seu interior. Ele ainda não tinha deitado a cabeça para tirar um cochilo, mas estava chegando lá: a audição tinha atingido a fase do algodão, onde tudo estava abafado e as coisas estavam bem frias dentro de sua pele.
Os sinais clássicos do choque faziam com que ele se perguntasse se ela tinha, de fato, a capacidade de matá-lo.
Ela não tinha finalizado Adrian, mas será que aquilo não seria um capricho do afeto?
– Vou deixar vocês dois se conhecerem.
A satisfação de Devina não era uma boa notícia, considerando que ela fez todo o inumano possível para acabar com ele afinal... Por quanto tempo? Horas? Tinha que ser.
Passos. Recuando.
Uma porta. Fechada.
Silêncio.
Contudo, alguma coisa estava com ele. Ele conseguia sentir a presença à sua esquerda.
Atrás de suas pálpebras fechadas, ele tinha certeza de duas coisas: Devina não devia ter ido muito longe e, seja lá o que foi que ela trancou com ele, estava perto.
A respiração foi a primeira coisa que ele notou. Macia, suspensa. Do tipo que você pratica quando está em modo de recuperação. Será que era sua própria respiração?
Não. O ritmo era diferente.
Ele virou a cabeça com cuidado em direção a coisa e babou, sua boca se livrou do que ele não conseguia engolir por causa do fio em volta do seu pescoço.
Seja lá o que estava com ele, soltou outra respiração suspensa. E, então, ele ouviu um sutil estalo.
Que diabos era aquilo?
Em dado momento, a curiosidade prevaleceu e ele rompeu uma de suas pálpebras... ou deu uma chance a elas, por assim dizer. Precisou de duas tentativas e ele teve que empurrar as sobrancelhas em direção à testa antes que as porcarias se abrissem...
No início, Jim não conseguiu compreender o que estava olhando. Mas o cabelo loiro não podia ser negado... aqueles cabelos longos e loiros que caiam sobre ombros frágeis.
A última vez que os viu tinha sido há dois dias. No banheiro de Devina.
Estava banhado de sangue.
A garota que tinha sido sacrificada para proteger o espelho de Devina estava vestida com uma capa manchada, seus braços finos cobriam os seios, uma pequena mão protegia a junção de suas coxas. Parecia, como milagre, que ela não estava marcada, mas o trauma estava ali: seus olhos estavam arregalados e horrorizados...
Só que eles não estavam na sala. Eles estavam nele... em seu corpo e nos restos brilhantes e pegajosos de tudo o que tinham feito com ele.
– Não... – A voz dele estava tão fraca que ele precisou puxar mais ar através daquela barreira de arame em sua garganta. – Não olhe... para mim. Afaste-se... Pelo amor de Deus, afaste-se...
Droga. Ele precisava de mais oxigênio, precisava fazer com que ela...
Os olhos dela encontraram os dele. O choque e o terror em sua face disseram mais do que ele precisava saber, não apenas do que tinha sido feito com ela por Devina, mas sobre o que a visão dele estava fazendo com aquela pobre garota.
– Não olhe para mim!
Quando ela se encolheu e retraiu-se, seu temperamento vacilou. Não que houvesse muito para conter – mas ele usou toda sua força naquele grito.
– Cubra o rosto – ele disse com a voz rouca. – Afaste-se e apenas... cubra o rosto.
A garota ergueu as mãos e se virou, sua coluna delicada destacava-se contra a capa conforme tremia.
Jim tinha puxado suas amarras involuntariamente durante a pequena sessão de exercícios com Devina. Agora, ele as empurrava.
– Você está se machucando – ela disse enquanto ele grunhia. – Por favor... pare.
A dor interrompia sua capacidade de fala e levou um tempo para dizer alguma coisa.
– Onde... Onde ela a mantém? Aqui embaixo?
– Na... na... – Sua voz era tão débil e, entre as palavras, seus dentes batiam, o que explicava o clique que ele tinha ouvido. – Na parede...
Seus olhos se atiraram em direção à escuridão, mas a luz das velas formava um bloqueio luminoso que seus olhos não conseguiam ultrapassar.
– Como ela faz isso? – Sem correntes, ele esperava.
E, droga, ele ia ferrar Devina por isso.
– Eu não sei – a garota disse. – Onde estou?
No inferno. Mas ele manteve isso para si.
– Eu vou tirá-la daqui.
– Minha mãe e meu pai... – ela caiu em lágrimas. – Eles não sabem onde estou.
– Vou dizer a eles.
– Como... – Quando ela olhou sobre seu ombro, seus olhos se fixaram sobre seu dorso degradado e ela empalideceu.
Ele balançou a cabeça.
– Não olhe. Prometa... não olhe mais para mim.
Mãos pálidas voltaram àquele belo rosto e ela assentiu.
– Meu nome é Cecilia. Sissy Barten, com ‘e’. Tenho 19 anos. Quase vinte.
– Você mora em Caldwell?
– Sim. Estou morta?
– Quero que faça uma coisa por mim.
Agora, ela deixou cair os braços e olhou para ele com firmeza.
– Estou morta?
– Sim.
Ela fechou os olhos como se outra onda de agitação atingisse seu corpo.
– Esse não é o Céu. Eu acredito no Céu. O que eu fiz de errado?
Jim sentiu algo quente no canto dos dois olhos.
– Nada. Você não fez nada de errado. E eu vou te levar para lá.
Nem que fosse a última maldita coisa que fizesse.
– Quem é você?
– Sou um soldado.
– Como no Iraque?
– Costumava ser. Agora eu luto contra essa vadia... ah, mulher que fez isso a você.
– Eu pensei que estava ajudando... quando a moça me pediu para carregar uma bolsa para ela. Eu pensei que estava ajudando... – Ela inspirou com força como se estivesse tentando se recompor. – Você não pode sair daqui. Eu tentei.
– Eu vou salvá-la.
De repente, a voz dela ficou mais forte.
– Eles machucaram você.
Droga, ela estava olhando para ele de novo.
– Não se preocupe comigo... tem que se preocupar consigo mesma.
Um som, como de algo caindo ou talvez uma porta de metal se fechando, ecoou, assustando a garota e focando Jim. Sem dúvida, Devina chegaria logo e colocaria Sissy de volta ao seu lugar, então, ele tinha que agir rápido. Ele não sabia quando voltaria ali ou como exatamente poderia libertar sua garota.
Sissy, era esse o nome.
– É ela? – Sissy perguntou tensa ao ouvir o som de passos ao longe. – É ela, não é? Eu não quero voltar para a parede... por favor, não deixe que ela...
– Sissy, ouça. Eu preciso que você se acalme. – Ela tinha que ter algo para focar, algo para manter sua mente sã enquanto ele descobria como voltar ali para salvá-la. Sondando sua mente, ele tentou criar uma imagem, algo para acalmá-la.
– Eu preciso que me ouça com atenção.
– Eu não posso voltar para lá!
Droga, o que fazer para que ela se concentre?
– Eu tenho um cachorro – ele desabafou.
Houve uma agitação, como se ele a tivesse surpreendido.
– Você tem?
Quando os passos se aproximaram, ele quis soltar um palavrão.
– Sim, eu tenho.
– Eu gosto de cachorros – ela disse em voz baixa, seus olhos fixos nele.
– Ele é cinza, meio loiro e peludo. Seu pelo... – os passos foram ficando cada vez mais altos e Jim falou rápido. – Seu pelo é grosso, como se fosse feito das sobrancelhas de um senhor idoso e ele tem patinhas. Ele gosta de sentar no meu colo. Ele tem uma perna manca que aparece quando ele corre rápido demais e ele gosta de comer minhas meias.
Uma fungada e uma respiração suspensa. Como se soubesse o que estava se aproximando e ela ia fazer o melhor que podia para segurar a corda de segurança que ele estava tentando oferecer.
– Qual o nome dele?
– Cachorro. Eu o chamo de Cachorro. Ele come pizza e sanduíche de peru e dorme no meu peito. – Mais rápido. Mais rápido com as palavras. – Você vai conhecê-lo, ok? Você vai levá-lo para passear em um gramado e... Sabe quando se dobra uma meia dentro de outra?
– Sim. – Agora havia urgência. Como se ela quisesse o máximo que ele poderia dar. – Uma bola de meia.
– Bolas de meia... é isso. – Rápido, rápido, rápido. – Você vai pegar uma bola de meia, vai jogar e ele vai trazê-la de volta para você. O sol é alto, Sissy. Você pode senti-lo em seu rosto...
– Quando você volta? – ela sussurrou.
– Assim que eu puder. – Ele estava falando de maneira confusa agora, os passos se aproximavam e ele sabia que estavam usando saltos agulha afiados e pontudos.
– Lembre-se do Cachorro. Está me ouvindo? Quando sentir que está perdendo, lembre-se do meu cachorro...
– Não me deixe aqui...
– Vou voltar por você...
O rosto de Sissy estava cheio de lágrimas quando ela estendeu a mão para ele.
– Não me deixe aqui!
Em um instante, ela assumiu a forma que tinha quando ele a viu sobre a banheira, aquela capa desapareceu, deixando-a nua, seu corpo estava profanado, seus cabelos loiros desgrenhados e emaranhados com sangue.
De repente, seus olhos saltaram para um canto distante e seus lábios manchados começaram a tremer.
– Não!
Ela colocou as mãos para cima como se quisesse afastar golpes, curvando-se para se afastar deles...
Dessa maneira, ela se foi. E Devina, a bela e diabólica Devina, entrou sob a luz das velas.
Jim perdeu essa.
Parou na metade.
Perdeu como um filho da mãe.
Quando ele xingou a assassina sangrenta, era tudo sobre a menina. A moça inocente que tinha sido tirada de sua família por um demônio, puxada para um buraco e aprisionada ali... e obrigada a ver o que restou de um homem torturado.
A raiva era uma bomba nuclear que explodia dentro dele...
A luz branca entornou de suas órbitas, explodindo na sala, iluminando as brilhantes paredes pretas que se estendiam para cima em direção ao infinito. A liberação da luz consumiu sua forma física, libertando-o das amarras de Devina, levando-o a percorrer o espaço em uma rajada de moléculas soltas que sopraram as velas e derrubaram seus suportes.
Aglutinando sua forma intensamente, ele se virou... e foi ao ataque de Devina.
Agora, era ela quem se preparava para o impacto, seu cabelo moreno foi arrancado de seu couro cabeludo com o furacão explosivo que ele produziu, a pele de seu rosto foi de encontro a sua estrutura óssea quando ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre o chão de pedra.
Assim que ele a alcançou, Jim reuniu sua nova forma em uma lança certeira e atirou-se direto em direção ao peito dela.
Jim entrou no corpo dela e lançou a vadia longe, todas as partes dela saíram voando, pedaços de sua pele, emaranhados de entranhas escorregadias e quilos de carne vermelha escura se espalharam pelas paredes de sua masmorra.
O que sobrou foi um buraco negro da mesma massa e energia que o compuseram – ele estava pronto para atacá-la assim.
Só que, evidentemente, ela não estava interessada em uma luta corpo a corpo: sua sombra distorcida saiu da sala e desceu um corredor, iniciando uma fuga.
Mas que... Droga!
Jim correu atrás dela...
E se chocou com o equivalente metafísico de uma casa de tijolos.
O impacto chocante da barreira invisível o enviou para trás e ele assumiu sua forma corpórea mais uma vez ao deslizar em carne viva no chão de pedra.
Ele teve um breve momento para soltar um “mas que inferno!” antes que o sinal de fim de jogo do seu corpo piscasse e ele caísse de costa em exaustão absoluta.
Quando sua raiva passou, nada mais havia nele e um cansaço fatal sangrou de seu coração que batia de maneira estranha e se espalhou por ele como uma erva daninha que se enraíza e floresce. Não mais sendo capaz de erguer a cabeça, ele deixou a coisa descansar na pedra e apenas respirou, mal notando que o ar estava saturado com cheiro de morte recente e com uma pitada acre da fumaça das velas.
– Sissy – ele disse na escuridão. – Estou bem aqui...
Ele não tinha ideia de se ela podia ouvi-lo e não houve resposta. Apenas um som estranho, fundido... sem dúvida, as almas tentando se livrar de sua prisão.
Ele odiava pensar que sua garota estava presa lá.
Odiava o fato de tê-lo visto daquela maneira.
Com esse pensamento, a dor o incomodou como se tivesse sido esfaqueado com uma barra de ferro. Oh, Deus... aquela pobre criança...
Um aumento súbito de emoção veio sobre ele em uma onda: nu, arrasado e imundo, Jim encolheu-se para um lado e chorou sufocado e com grande sofrimento, suas lágrimas quentes e salgadas percorriam a pele de seu rosto arrasado.
Ele nunca se preocupou em se machucar. Nunca. Mas suas falhas... seus fracassos eram insuportáveis. E agora havia duas mulheres que ele não tinha sido capaz de salvar: sua amada mãe e Sissy... Nas duas ocasiões, ele chegou tarde demais no local, nas duas ocasiões, o dano já havia sido feito antes dele chegar.
Com uma precisão horrível, ele viu sua mãe no chão da cozinha da fazenda, nada além de estraçalhada... e Sissy sobre a banheira.
Agora Sissy também, tentando se afastar do demônio.
Era demais para suportar, o peso de suas falhas era grande demais para suportar, quanto mais para continuar a lutar...
O som de seu nome abriu seus olhos e diminuíram os soluços.
Com um esforço enorme, ele virou a cabeça e olhou para cima.
Muito, muito, muito acima, a uma galáxia de distância de onde ele estava, um pontinho de luz se recolhia e ficava mais forte, começando de novo como se fosse a cintilação minúscula de um pisca-pisca na árvore de Natal... e, então, se intensificou para 25, depois 60 e, então, parecia uma lâmpada de 100 watts.
A iluminação caía sobre ele com a velocidade e a eficiência de uma pluma através do fino ar... dentes de leão soprados pela boca de uma criança... flores do campo sob uma brisa suave...
Levou um tempo bastante longo para que sua mente abrangesse a desconexão entre seu desespero épico e o delicado caminho de luz. Fechando os olhos, ele parou de assistir e se entregou ao estremecer aleatório de seu corpo espancado.
– Jim.
Uma voz masculina. Sobre ele.
Jim abriu as pálpebras para ver que a luz havia se tornado um homem de cabelos escuros com asas douradas magníficas.
Colin.
O arcanjo número dois.
– Ei, companheiro – o cara disse ao se ajoelhar. – Eu vim para te tirar daqui.
De algum lugar, só Deus sabe de onde, Jim convocou energia suficiente para falar.
– Leve-a no meu lugar. Deixe-me aqui... leve-a no meu lugar. Sissy. A menina...
– Isso eu não posso fazer. Eu não deveria estar aqui agora. – O anjo se inclinou e reuniu a forma arrasada de Jim em seus braços. – Mas você vai precisar de um tempo para se recuperar antes que possa sequer se sentar, quanto mais sair daqui por si mesmo. E a guerra continua sem você.
Nenhum argumento para seu nível de energia, mas Deus, ele gostaria que Sissy estivesse um milhão de quilômetros longe dali.
– Deixe-me – ele gemeu.
– Não nessa vida. Você quer Sissy liberta? Derrote Devina. É assim que vai libertar sua garota desse pesadelo.
Quando começaram a levitar, a cabeça de Jim pendeu para um lado e ele os viu subir, subir, afastando-se metros e metros – inferno, eram quilômetros – das paredes negras. Ao longo do caminho, a forma brilhante de Colin iluminava o deslocamento, agitando a superfície, e rostos se sobressaíam na opacidade, através da barreira líquida, como se aqueles que estavam presos tentassem vê-los, pegá-los, juntar-se a eles na fuga. De todas as direções, mãos se estendiam. Contorcendo-se em formas grotescas como se a barreira maleável da prisão provasse ser rígida demais para ser trespassada.
Onde estava a garota dele? Sua bela e inocente garota que...
O cérebro de Jim estava esgotado, a trama de seus pensamentos se desembaraçava, a consciência começou a desistir daquele fantasma e se aprofundou no berço rígido das paredes de seu crânio.
Enquanto desmaiava, sua última missiva mental foi uma oração: que Sissy se lembrasse do Cachorro e se agarrasse a essa esperança até que Jim pudesse fazer disso realidade.
CAPÍTULO 33
Na adega, com a imagem de Jim Heron exposta no dossiê, Isaac estava certo que os dois Childes tinham perdido a cabeça.
– Ele não está morto. – Isaac lançou olhares para pai e filha. – Eu não tenho certeza do que você viu ou o que ouviu...
– Ele esteve no meu quarto. – Grier balançou a cabeça. – Foi assim que fiquei sabendo que você estava tendo o pesadelo. Ele apontou o caminho e, em seguida, eu fui até você. Pensei que era um sonho, mas por que identifiquei o rosto dele na foto de maneira tão clara?
– Porque você o viu. Ontem à noite, na luta. Ele estava comigo.
– Não, ele não estava.
Certo. O cara esteve bem na frente dela.
– Você disse que era um anjo.
– Bem, parece que ele tinha asas.
Teoricamente, era possível que Heron tivesse feito uma visita a ela – mas com o alarme de segurança, era possível concluir que ele deve ter ficado distante das portas francesas da sacada. Ao acordar e ficar meio desorientada, ela concluiu que Jim estava do lado de dentro. E isso foi apenas uma coincidência com o pesadelo... Assim como as asas? Jim Heron nunca foi santo, muito menos um anjo. Seja lá o que ela tinha visto, devem ter sido reflexos dos vidros. Tinha que ser.
O pai de Grier falou.
– Estou dizendo, ele está morto. Eu recebo um alerta de rastreadores na internet com os nomes dos agentes que conheço... e ele levou um tiro em Caldwell, Nova York, há quatro dias.
Isaac revirou os olhos.
– Não acredite em tudo que lê. Eu falei com o cara no jardim dos fundos ao anoitecer. Frente a frente. Confie em mim, ele está vivo e precisamos dele. – Isaac ficou em pé. – Os amigos dele estão vigiando a casa enquanto conversamos e, pessoalmente, acho que Heron declarou uma guerra velada a Matthias, então, tenho plena certeza de que podemos chamá-lo para trabalhar conosco, concluindo que eles ainda não o mataram. Acredito que o status dele é de desaparecido em ação, no momento.
– Espero que possa agregá-los, então, pois quanto mais pessoas para acompanhá-lo, melhor. – Childe bateu uma de suas mãos sobre os dossiês. – Deve revisar tudo isso essa noite, preencher as lacunas, tentar encaixar o que sabe... mesmo que não queira entregar seus companheiros soldados, isso pode ajudar nas suas lembranças. Vou subir até o corredor do banheiro e usar meu telefone de segurança para fazer algumas ligações e estabelecer as coisas o mais rápido que puder.
– Entendido. Mas eu gostaria que o senhor ficasse longe das janelas e não saísse da casa.
– Vou ser cuidadoso. – Childe lançou um olhar à sua filha. – Prometo.
Quando o pai de Grier desapareceu escada acima, Isaac verificou o transmissor de alerta. O aparelho ainda mostrava que o sinal tinha sido enviado, mas ainda não tinha recebido resposta. O que significava que ele ou estava muito abaixo do solo naquela adega para receber isso... ou Matthias estava dando um tempinho para entrar em contato.
Ele olhou para Grier.
– É melhor eu ficar lá em cima por um tempo no caso deles tentarem entrar em contato comigo.
– O que você vai fazer? Se eles quiserem se encontrar com você imediatamente?
– Tenho uma margem de tempo até eu me entregar. Mas seu pai precisa fazer alguns milagres rapidamente. – E, por favor, Deus, faça com que Jim Heron esteja bem... e que apareça logo.
Ela acariciou os dossiês com sua mão elegante.
– Ele é bom com milagres. Na verdade, é a especialidade dele. Você deveria vê-lo negociando. – Seus olhos baixaram até a pasta. – Vou ficar aqui. Quero ver se reconheço algum desses homens. Havia muitos que batiam na porta durante a minha infância e eu sempre me perguntei quem eles eram.
Quando ela ficou em silêncio, ele deu um passo adiante. E depois outro. Em volta da mesa, até que estivesse ao lado dela.
Quando ela levantou o olhar para ele, Isaac colocou para trás com cuidado uma mecha de cabelo que estava em seu rosto.
– Não vou perguntar se está bem, pois como poderia, não é?
– Você já sentiu... como se não reconhecesse sua própria vida?
– Sim. E isso foi o que me levou a mudar.
Bem, aquele tinha sido o primeiro passo. Ele estava começando a acreditar que ela era o segundo. E com o pai dela e Jim Heron... três era o número mágico. Se Deus quisesse.
– Sabe de uma coisa? – ela disse. – Estou realmente feliz em ter te conhecido.
Isaac recuou.
– Pelo amor de Deus, como pode dizer isso?
– Você foi a chave que destrancou as mentiras. – Ela voltou a encarar a foto de Jim Heron. – Acho que sem você nada disso seria esclarecido. Apenas algo que pudesse estilhaçar assim...
Quando ela não completou, ele deu um passo para trás.
– Sim. Esse sou eu.
Ela assentiu de maneira distraída, virou a página e se perdeu nos rostos dos homens que eram exatamente como ele... homens que haviam arruinado a família dela.
Estilhaçado.
Será que os agentes que tinham matado seu irmão estavam ali? Com algumas notas?
De alguma maneira, ele duvidava que o pai os colocasse ali.
– Posso lhe servir um pouco de vinho? – ele perguntou, antes de sair.
Grier sorriu um pouco.
– Estou cercada disso.
– Verdade. – Ele deveria ter oferecido café. Água. Cerveja. Uma troca de óleo. Qualquer coisa que ele pudesse fazer por ela ou dar a ela para acalmá-la.
Bem, agora, com essa brecha, havia algo melhor que poderia fazer. Ele poderia deixá-la.
– Vou estar lá em cima. – Quando ele alcançou a porta, olhou para trás. Ela estava enterrada nos dossiês, sobrancelhas tensas, braços no colo ao inclinar-se sobre a mesa.
Sim, deixá-la tornaria as coisas muito melhor.
Ele se virou e subiu as escadas para a cozinha de dois em dois degraus. Parando na base da escada, ele ouviu alguma coisa. Não um som. O que fazia sentido uma vez que o pai dela tinha se trancado em um banheiro protegido.
Droga, ele não acreditava que estava prestes a denunciar Matthias. Mas, às vezes, a morte natural era boa demais para alguém. Melhor que apodrecer atrás das grades ou ficar tão aceso quanto a Times Square em uma cadeira elétrica.
Era quase como se ele estivesse destinado a encontrar Grier e seu pai nesse exato momento de sua vida – os dois tinham sido predestinados a lhe mostrar algo muito mais honroso do que havia planejado fazer.
Contudo, Jim Heron se mostraria importante também.
Apalpando uma de suas armas, saiu para o jardim pela porta dos fundos.
Evitando a luz que era sensível ao movimento, ele aguardou nas sombras sem fazer barulhos e, claro, um dos amigos de Jim se aproximou um momento depois. No instante em que colocou os olhos no cara, estava claro que o clima permanecia ruim: o cara com a trança tinha os lábios apertados e o olhar rígido como de um homem que ainda não sabia onde um dos membros de seu time estava.
– Jim ainda não pôde vir? – Isaac perguntou. Mesmo sabendo que a resposta era um claro “não”, dado àquela expressão.
– Espero que possa vê-lo pela manhã.
Isaac olhou para seu relógio.
– Não sei se tenho todo esse tempo.
– Arranje algum.
Fácil para ele dizer.
– Vai me dizer se ele aparecer?
Quando o cara assentiu, Isaac ficou muito preocupado.
– Ele está bem? – Quando o cara balançou a cabeça devagar, Isaac soltou um palavrão.
– Você vai me dizer o que está acontecendo? – Silêncio. – Sabe? Para sua informação, as pessoas pensam que ele morreu.
– Tudo que posso dizer é que... neste momento, ele gostaria de estar morto.
Adrian observou enquanto Eddie conversava com Rothe perto da porta dos fundos e mesmo Ad sendo intrometido como ninguém, ele não se importava com o que estavam dizendo.
Nigel. Aquele filho da mãe do Nigel.
Pensava que era o “Sr. Acima de Tudo Quanto é Mais Sagrado”.
Que estava mais que disposto a deixar seu maior trunfo ser usado e abusado pelo inimigo apenas porque era bichinha demais para arregaçar as mangas e nocautear Devina.
Enquanto isso, Jim era um equipamento de ginástica para um bando de babacas pervertidos.
Cara, ele apenas veio com aquela história de não poder fazer nada. Se Ad tivesse um de seus amigos capturado e ele pudesse libertá-lo? Não importava o que ele tivesse que fazer, o sacrifício que isso fosse requerer, por onde tivesse que passar: ele traria o pobre filho da mãe de volta. E onde estava seu chefe agora? Jantando.
Aquilo fazia com que ele desejasse enfiar a sobremesa no traseiro de Nigel.
Adrian esfregou o rosto com tanta força que quase arrancou o nariz. O problema era: a pequena oficina de Devina não era acessível a ele ou a Eddie, a menos que saltassem através de seu espelho – caso contrário, ela tinha que levá-lo até lá... e ela o liberava dali apenas quando estivesse bem satisfeita.
Nunca antes.
Foi por isso que eles foram até Nigel. Havia rumores de que arcanjos poderiam descer ao inferno sob certas circunstâncias – ninguém sabia exatamente o que aquelas mocinhas tinham que fazer ou como funcionava. Contudo, a moral da história era que aqueles quatro pesos-pena eram sua única esperança...
Como se seu nome tivesse sido pronunciado em vão, Colin apareceu do nada, os cabelos escuros do arcanjo surgiram em frente ao rosto de Adrian.
– Droga! – Ad falou entre dentes ao pular para trás e segurar-se em um arbusto – que rapidamente se quebrou ao meio com seu corpo pesado.
Ele aterrissou como um saco de areia, mas não ficou parado. Levantando-se, assumiu uma postura que exigia uma explicação: aqueles rapazes não costumavam aparecer à toa na Terra.
– O que você está...
– Eu o tirei de lá.
Ad piscou, de repente ele não entendia o idioma. Espere um minuto. Ele tinha acabado de ouvir que...
– Jim? Você está falando de Jim?
– Está livre.
– Mas Nigel disse...
– Não estou discutindo isso. Eu tinha a opção de tirar alguém do covil de Devina e coloquei o pobre rapaz no hotel em que estão hospedados... ele precisa de cuidados.
Eddie se aproximou.
– Você o tirou de lá? Mas eu pensei que Nigel...
– Eu tenho que ir. – Colin deu um passo para trás e começou a desaparecer. – Vão ajudá-lo. Ele precisa.
– Obrigado. – Ad respirou, aliviado e enjoado: a recuperação de alguém que passou por uma das sessões de Devina era terrível. Principalmente porque as memórias daqueles momentos eram muito vívidas.
Colin balançou a cabeça ao desaparecer, sua voz era demorada: – Isso simplesmente não foi certo.
– Estou indo para o hotel – Adrian disse, desfraldando suas asas para se elevar no ar. – Fique de olho em Isaac...
Eddie segurou o braço dele com força.
– Deixe-me cuidar de Jim.
– Não.
– Essa não é bem sua área, Adrian. – O aperto de Eddie o manteve no chão, aquela grande mão espremia seus ossos e músculos. – E sabe disso.
– Pro inferno que não é.
Libertando-se, ele deu três saltos e saiu voando pelo ar, aprofundando-se na noite e impulsionando-se para oeste. O voo de volta para onde estavam hospedados foi irregular e acidentando – mas não por causa do vento. Era mais porque Eddie tinha razão, o filho da mãe.
Quando Ad chegou ao hotel, ele queria ir até os quartos atravessando as paredes, mas decidiu não arriscar: uma vez que o papel de bala interior que o envolvia estava solto e se debatendo, ele caiu no gramado e seguiu pela recepção. Ele tinha a sensação de que estava distraído e enjoado demais para atravessar madeira e concreto com sucesso.
O problema era: ele sabia exatamente como Jim estava.
Ao alcançar a recepção, uma mulher simpática atrás da mesa o cumprimentou: – Boa-noite, senhor. – Mas ele apenas acenou e iniciou uma corrida. Não houve espera pelo elevador, um casal estava fazendo check-in com seus filhos e tinham um carrinho cheio de bagagens. Mas mesmo com aquela situação tão conveniente, ele não era capaz de esperar tanto tempo para que as portas se abrissem para ele.
Pelas escadas. De dois em dois degraus. Algumas vezes três.
Quando chegou ao último andar, seu coração estava a mil por hora e não apenas porque tinha se exercitado. Ele não tinha a chave do quarto de Jim, então, pegou a sua mesmo e deslizou no vão da fechadura.
Ele abriu o caminho como uma explosão.
– Jim? Jim?
O brilho do banheiro iluminava a cama desarrumada onde ele e Eddie tinham estado com aquela garota na noite anterior, as roupas também estavam espalhadas por toda parte.
A porta que levava ao quarto de Jim estava meio aberta, o quarto estava escuro.
– Jim...?
Ele sabia que o anjo estava lá. Ele podia sentir o cheiro da fumaça de vela, do sangue fresco e de... outras coisas.
A pressa que havia no rapaz evaporou quando a realidade do que estava prestes a ver agarrou seu peito e o sufocou. Mas ele não ia voltar atrás. Ele era um idiota de primeira ordem, sempre foi. Contudo, não era um maricas para fugir de situações difíceis.
Adrian passou pela porta entre os dois quartos e se inclinou.
– Jim.
A luz no banheiro atrás dele cortava um caminho ao longo da escuridão e parava aos pés da cama do anjo como se fosse educada demais para mostrar sua condição.
Depois que Adrian atravessou o batente, precisou de um momento para que seus olhos se ajustassem.
Com um sussurro, ele prometeu: – Eu vou matar aquela vadia...
Jim estava deitado de lado, enrolado em si mesmo, como se tentasse conservar seu próprio calor, e tremia por completo. Um cobertor foi puxado – sem dúvida, pelo arcanjo – sobre seu corpo grande e maltratado e o Cachorro estava bem próximo de seu rosto, ajeitado em formato de bola, sem se mover.
Quando Adrian se aproximou, o animal se moveu um pouco, mas não levantou a cabeça, permanecendo nariz a nariz com Jim.
O anjo parecia estar respirando, seu peito subia e descia, um chiado suave saía por sua boca machucada. Seu cabelo estava embaraçado e havia sangue em seu rosto, feições que, há não muito tempo eram suas, desapareceram graças às feridas enormes.
Adrian sentou-se lentamente.
– Jim?
Sem resposta, então, ele tentou repetir o nome de guerra mais algumas vezes. Em dado momento, as pálpebras de Jim se ergueram.
– Ei... – Adrian sussurrou.
Ele gemeu e, em seguida, seus olhos se fecharam e o corpo estremeceu sob o cobertor como se estivesse tendo um ataque.
Se aquilo era algo parecido com o que Adrian passou – e dada a forma como o cara aparentava, era quase idêntico –, o que Jim realmente queria era uma banheira de água quente seguida por uma ducha. Mas era cedo demais para isso. Medicar primeiro – havia muitos ossos quebrados e contusões para tratar – o que era o peso da dupla natureza de um anjo: ser real e irreal ao mesmo tempo significava que pelo menos metade de você poderia se ferrar muito e a droga não se revertia imediatamente.
Adrian se levantou e foi até o aquecedor que estava debaixo da janela. Girando o botão para o modo “sauna”, ele tirou a jaqueta de couro e fechou a porta que dava para o outro quarto, trancando-os ali. Então, ele sentou na cama, se estendeu sobre o fino cobertor e colocou seu peito nas costa do anjo para aquecê-lo.
Enquanto estava deitado, ouvindo um zumbido que vinha do aquecedor, sentia os tremores ao longo do tronco e dos outros membros de Jim. Parte disso era o processo de cura, que de algumas maneiras era mais doloroso que o surgimento das lesões. E outra parte disso era o frio do choque traumático.
E outra parte eram as memórias, sem dúvida.
Ele queria colocar um braço em volta do cara, mas isso faria com que Jim se sentisse muito desconfortável: quando esteve nessa condição, ele deitou nu, sem sequer um lençol sobre sua pele arranhada.
Depois de um tempo, o calor crescente que se espalhou do aquecedor os alcançou, fazendo arcos e descendo pelo ar. Jim, obviamente, sentiu o fluxo, pois respirou longamente e exalou em um vago suspiro.
Deitando ao lado do outro anjo, Adrian já tinha esperado uma vez que seria assim que Jim acabaria e foi o que aconteceu mesmo, até certo ponto. Ele sabia que Devina queria o cara... desde a primeira missão, desde àquela primeira noite no clube em Caldwell. E ele serviu Jim de bandeja para ela.
Com direito a tudo, até a uma etiqueta indicando “DE/PARA”.
Difícil não se sentir responsável por isso.
Difícil mesmo.
– Vou cuidar de você, Jim – ele disse com voz rouca. – Estou aqui por você, cara.
CAPÍTULO 34
Na adega, Grier passava os dossiês um por um enquanto esperava... e esperava... e esperava mais um pouco...
Finalmente.
– Por que você não me disse? – ela perguntou, sem olhar para trás.
Daniel levou um longo tempo para responder, mas ele não desapareceu: sempre que ele estava por perto, ela conseguia sentir uma pequena brisa e enquanto aquilo acariciava sua nuca, ela sabia que ele ainda estava com ela.
Pensei que ia odiá-lo. E, então, você e ele não teriam mais ninguém.
– Então, você sabia o que aconteceu?
Daniel andou em volta da mesa, com uma de suas mãos plantada no quadril e a outra enterrada em seu cabelo de maneira que os cachos formassem um halo.
Eu estava drogado quando tudo aconteceu... então, achei tudo muito engraçado, papai entrando com tudo com três caras de preto. Achei que aquilo era sua versão de uma intervenção para me ajudar – uma história em quadrinhos barra pesada. Mas quando eles colocaram a agulha no meu braço ele começou a gritar e foi aí que percebi... aquilo não era engraçado.
Os olhos de Daniel encontraram os dela.
Eu nunca o vi daquela maneira antes. Para mim, ele era sempre tão distante e sem emoção. Foi... a reação que procurei durante toda minha vida, o amor visceral pelo qual buscava. Entenda, eu era como a mamãe, não como você e ele. Eu queria mais do que aquela desaprovação fria – e consegui, só que já era tarde demais. Ele deu de ombros. Olhando para trás, vejo que eu era carente demais e ele não sabia o que fazer com um filho que não tinha sido feito para usar um uniforme militar. Água e óleo. Eu deveria ter lidado com isso de maneira diferente, mas não o fiz.
– E ele também não.
Não é culpa de ninguém. Foi... o que foi.
Grier inclinou-se em sua cadeira, pensando na maneira como seus familiares tinham se alinhado na vida: ela e seu pai de um lado; Daniel e sua mãe de outro.
Não foi culpa dele – seu irmão disse com um tom severo que ela nunca tinha ouvido dele antes. A forma como acabei minha vida... ele gritava, Grier... e, então, eu estava morrendo, e o ouvi dizendo várias vezes: “Danny... oh, Danny, meu garoto... meu garoto...”
Quando a voz de Daniel se quebrantou, ela foi compelida a se levantar e se aproximar dele. Antes que percebesse o que estava fazendo ela envolveu os braços em volta...
De si mesma.
Por favor, não me odeie – ele disse do outro lado, tendo mudado de lugar tão rápido quanto um piscar de olhos.
– Por favor, não fuja – ela respondeu.
Desculpe... Tenho que ir...
Ele desapareceu diante dela como se não pudesse mais conter suas emoções, seu desespero permaneceu no rastro frio que ele deixou para trás.
Ela ficou em pé por um tempo, olhando para o espaço vazio que ele tinha acabado de ocupar. Ela e seu pai eram do mesmo tipo e fizeram um acordo intelectual onde trancavam os outros do lado de fora, não foi isso? Sua mãe e irmão tinham seus vícios enquanto ela e seu pai estavam em sintonia com a lei, suas carreiras e suas paixões externas.
Ela sabia disso de alguma maneira... e talvez aquilo tenha feito parte de sua corrida para salvar Daniel. O vício de seu irmão e seus esforços para tirá-lo disso tinha sido a ligação que não tiveram durante a infância: ela sempre se culpava... e, por um breve momento, naquela noite, ela culpou seu pai.
Agora... ela tinha raiva do homem com o tapa-olho. Uma raiva terrível. Se Daniel estivesse vivo, talvez eles tivessem resolvido tudo isso. Os três perdoariam um ao outro dos erros do passado. E se dirigiriam a... a algo que sua família desfrutava apenas superficialmente. Afinal, privilégios, dinheiro e educação poderiam cobrir uma infinidade de problemas... e não garantiam que a proximidade vista em um cartão de Natal fosse realmente mais que uma mera pose feita uma vez por ano para um fotógrafo.
Balançando a cabeça, ela voltou para sua cadeira e encarou os dossiês.
Isaac ia igualar o placar da família, ela pensou. Por ter revelado o bastardo maníaco que assassinou seu irmão e não fez nada além de arruinar seu pai.
Folheando as fotografias, ela reconhecia cada homem, pois tinha analisado cada página repetidas vezes enquanto esperava pela aparição de Daniel. Havia uma centena de fotos ou mais, mas havia um total de uns quarenta homens, capturados em vários ângulos, ilustrando as páginas produzidas ao longo de anos. Dentre os muitos rostos, havia cinco que ela reconheceu... ou pelo menos achou que os tinha visto antes. Difícil saber... de alguma maneira, eles pareciam tão semelhantes.
A fotografia de Isaac estava lá e ela voltou a revê-la. A foto era clara, capturada bem em cheio. Ele estava olhando diretamente para a câmera, mas ela tinha a impressão que ele não sabia que estava sendo fotografado.
Sério. Deus, ele parecia tão sério. Como se estivesse preparado para matar.
A data de nascimento sob seu nome confirmava a idade que ela já sabia e havia algumas anotações sobre países estrangeiros onde ele tinha estado. E, em seguida, havia uma linha que ela tentava entender: Correção moral necessária. Ela tinha visto a frase apenas em dois outros perfis.
– O que você está segurando?
Grier pulou ao som da voz de Isaac, a cadeira gritou ao arranhar o chão. Agarrando seu peito, ela disse: – Jesus... como você faz isso?
Pois, considerando tudo, ela preferia não ser pega encarando a foto dele.
– Desculpe, só pensei que gostaria de um café. – Ele se aproximou, apoiou uma caneca e, em seguida, voltou à porta. – Eu deveria ter batido.
Ao fazer uma pausa entre os batentes da porta, vestia apenas o moletom de capuz que usava como travesseiro, seus ombros eram muito largos ao longo da extensão de tecido cinza. E considerando as últimas quarenta e oito horas, ele parecia incrivelmente forte e focado.
Seus olhos se voltaram para o café. Tão pensativa. Muito pensativa mesmo.
– Obrigada... e desculpe. Acho que apenas não estou acostumada com... – um homem como ele.
– Vou anunciar minha presença de agora em diante.
Ela pegou a caneca e tomou um gole. Perfeito: simplesmente com a quantidade certa de açúcar que ela gostava. Ele a observou, ela pensou. Viu o quanto ela adicionou em algum momento, mesmo não estando consciente disso. E ele se lembrou.
– Está olhando para mim? – Quando ela levantou o olhar, ele assentiu com a cabeça em direção aos dossiês. – Para minha foto?
– Ah... sim. – Grier interrompeu a frase. – O que isso significa exatamente?
Ele andou em sua direção e se inclinou. Quando encarou os detalhes descritos sob seu rosto, a tensão nele era palpável, todo seu grande corpo ficou rígido.
– Eles tiveram que me dar um motivo.
– Antes de você matar alguém.
Ele assentiu e começou a andar ao redor, indo em direção às garrafas de vinho. Ele pegou uma, olhou o rótulo, voltou a colocar no lugar... passou uma a uma.
– Que tipo de motivos eles lhe deram? – ela perguntou, bem ciente de que as respostas dele sobre isso significava muito para ela.
Ele fez uma pausa com uma embalagem de Bordeaux nas mãos.
– Do tipo que faz com que isso pareça certo.
– Como o quê?
Seus olhos viraram em direção a ela e Grier fez uma pausa. Eles estavam tão tristes e vazios.
– Diga-me – ela sussurrou.
Ele colocou a garrafa de volta no lugar. Distanciou-se um pouco das prateleiras de madeira.
– Eu só fazia isso com homens. Nenhuma mulher. Havia alguns que conseguiam fazer isso com mulheres, mas eu não. E eu não vou lhe dar exemplos específicos, mas o absurdo de uma filiação política não era suficiente para mim. Matar um monte de gente ou estuprar mulheres ou explodir algumas mer... er... coisas? É uma história bem diferente. E eu precisava visualizar algumas provas com meus próprios olhos... vídeo, fotografia... corpos que foram marcados.
– Você já recusou alguma tarefa?
– Sim.
– Então, você não mataria meu irmão.
– Nunca – ele disse sem hesitar. – E eles nem sequer teriam me pedido. Da maneira como Matthias encarava isso, eu era uma arma que funcionava sob determinadas circunstâncias e ele me tirava do coldre em momentos apropriados. E, você sabe... Eu percebi que tinha que sair das operações extraoficiais quando me dei conta de que não era diferente das outras pessoas que eu matava. Todos eles sentiam como se as atrocidades que cometiam eram justificáveis. Bem, então, aquilo fazia de nós espelhos que refletiam um ao outro. Claro, de um ponto de vista objetivo, qualquer um concordaria comigo sobre isso, mas não era o suficiente.
Grier exalou longamente. Ele era aquilo em que sempre acreditou, pensou ela.
– Como assim? – ela disse.
De repente, ela achou que tinha pensado em voz alta.
– Eu sempre disse a Daniel... – Ela fez uma pausa, perguntando-se se estava tudo claro dentro dela para continuar. – Eu dizia que nunca era tarde demais. Que as coisas que ele tinha feito no passado não definiam o futuro. Acho que no final, ele desistiu de si mesmo. Ele roubava do meu pai, de mim e de seus amigos. Ele foi preso assaltando uma casa e também por roubar um automóvel, em seguida, ao tentar saquear uma loja de bebidas. Foi assim que me envolvi com as causas voluntárias. Eu entrava e saía de várias cadeias nos últimos cinco anos antes de sua morte. Eu sentia que estava ajudando... mas talvez eu pudesse fazer isso com outra pessoa, sabe? E eu fiz... Eu ajudei outras pessoas.
– Grier...
Ela fez um gesto com a mão quando sua voz ficou embargada. Ela terminou de falar chorando. Não passaria disso e nada mais poderia ser mudado.
– Você quer continuar com isso?
Quando ela indicou os dossiês, ele deu de ombros e foi até a porta, ficando exposto apenas por um pequeno vão contra o batente.
– Eu só vim mesmo para ver como você estava.
No ar rarefeito, seus olhos de pálpebras baixas a aqueceram de dentro para fora. Ele era uma grande contradição... entre seu trabalho onde foi treinado para matar e seu coração de escoteiro.
Ela deu uma olhada para a foto dele.
– Parece que está procurando alguma coisa aqui.
– Na verdade, eu estava prestes a embarcar em um avião. Tive a sensação de que alguém estava olhando, mas não conseguia dizer de onde vinha esse olhar. Estava esperando em uma base aérea para viajar ao exterior. – Ele limpou a garganta como se estivesse varrendo a memória de sua mente. – Seu pai dormiu lá em cima. Ele passou uma duas horas no telefone, até onde vi.
– Já passou tanto tempo? – Ela olhou para seu relógio e ao movimentar o pulso, tomou consciência de cada articulação de seu corpo. Esticando os braços sobre a cabeça, sua coluna estalou.
– Como as coisas estão indo?
– Eu não sei. Antes de deitar, ele me disse que se conseguirmos fazer tudo até amanhã à noite, estaremos bem. Ele fez múltiplos contatos desde a CIA, Departamento de Segurança Nacional e gabinete presidencial e ficaremos bem aqui para que eu não precise me deslocar. A peça que falta é Jim Heron – nós ainda estamos esperando que ele volte – embora, se for preciso, seguiremos sem ele.
– Você recebeu alguma... resposta? Deles?
– Não.
O medo passou por suas costelas e atingiu seu coração como uma carga de bateria.
– Você pode ficar até amanhã à noite?
– Se for para ser dessa maneira, sim.
Ele parecia tão seguro e ela precisava acreditar naquela confiança: seria uma tragédia sem limites para ele ser interrompido agora, quando estava tão perto da liberdade que desejava.
Estranho que alguém que tinha conhecido há apenas alguns dias tivesse se tornado tão importante para ela.
– Eu estou orgulhosa de você – disse ela, deslizando o dedo sobre sua fotografia.
– Isso significa muito para mim. – Pausa. – E obrigado por me mostrar o caminho. Eu não seria capaz de fazer isso sem você.
– Sem meu pai, você quer dizer – ela contradisse suavemente. – Ele tem os contatos.
– Não. Você é a única.
Ela franziu a testa, pensando que era um jeito engraçado de responder.
– Quero que responda algo para mim.
– Diga.
Seus olhos encontraram os dele.
– Quais são as suas chances. De fato.
– De sair dessa com vida?
– Sim. – Quando ele apenas balançou a cabeça, ela franziu a testa para ele. – Lembre-se, acabamos com toda aquela coisa de “proteger a garota frágil”.
– Meio a meio.
Bem, não é que aquilo deu um nó em sua garganta?
– Isso é ruim, hum?
– Quer alguma coisa para comer com o café? Não sou nenhum chefe de cozinha, mas vi algumas sobras na geladeira e posso colocar no micro-ondas. – Quando ela recusou com a cabeça, ele insistiu. – Você tem que comer.
– Eu prefiro fazer sexo com você – ela soltou.
Isaac tossiu. Na verdade, tossia como se alguém tivesse dado um soco em seu peito.
– Desculpe ser tão direta. – Ela deu de ombros. – Mas convenções sociais estão bem longe da minha lista de prioridades agora. E eu tenho a sensação de que não vou te ver depois de amanhã à noite, tanto por que você pode ser tomado sob custódia federal, quanto por... – Ela respirou fundo. – Quero um bom pedaço de você antes que se vá. Algo para lembrar-me de você em minha pele, não apenas em meu cérebro. Lá em cima foi tudo tão rápido e furioso... Eu quero prestar atenção e me lembrar.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
– Achei que você gostaria de se esquecer disso o máximo possível.
– Não de você... eu não quero me esquecer de você. – O canto de sua boca se ergueu um pouco. – Embora eu não acredite ser possível.
Quando ele ficou onde estava, ela empurrou a cadeira para trás e se levantou. A distância entre eles era de três passos e quando ela veio em direção a ele, Isaac se endireitou e puxou seu blusão para baixo como se estivesse se arrumando.
Grier ergueu-se na ponta dos pés e tocou o rosto dele, colocando a palma de suas mãos na sua barba por fazer.
– Eu nunca vou esquecê-lo.
Quando ele lambeu os lábios, como se estivesse com fome daquilo que exatamente ela queria, Grier pegou a mão dele e o levou para o local mais fundo da adega, ao puxá-lo para dentro, os fechou ali.
Ao contrário da primeira vez, quando ela estava ferida e procurava apenas mais do ciclone, agora era apenas ele, o homem, que o impulsionava – não seu zumbido interno.
Ele estava todo ali.
Quando ela se inclinou para beijá-lo, ele colocou suas mãos grandes em seus pulsos e os segurou delicadamente.
– Isso não ajudou lá em cima.
– Sim. Ajudou. Você apenas não acreditou em mim.
– Grier... – O nome dela soou com uma combinação de confusão e desespero: pois as cinco letras foram pronunciadas, ao invés das três habitualmente ouvidas.
– Eu não quero mais falar – ela murmurou, aproximando-se de sua boca.
– Tem certeza?
Quando ela assentiu, ele se inclinou e apertou os lábios contra os dela, puxando-a para mais perto dele.
Ele estava completamente excitado, mais que pronto para ela e, ainda assim, ele recuou.
Antes que ela pudesse protestar, ouviu o clique da fechadura dando a volta e, em seguida, aquelas mãos quentes deslizaram sob sua camisa e em volta de sua caixa torácica, indo até o fim de suas costas. Ao sentir uma pressão suave e gentil, seus pés saíram do chão e ela foi carregada até a mesa.
Afastando os dossiês para um lado, Isaac a deitou, as palmas de suas mãos se movimentavam sobre seus seios enquanto ele se inclinava sobre ela e mantinha suas bocas unidas. Suas calças de ioga estavam fora de suas pernas um momento depois, mas, ao invés de jogá-las, ele as colocou sobre a cadeira onde ela estava sentada. Esperto. Ela poderia ter que se vestir rapidamente.
Um impulso sutil e seus quadris estavam na beirada da mesa... e, em seguida, ele separou o beijo deles e aproximou-se sobre os joelhos.
Se ela achava que já tinha visto os olhos dele queimarem antes, aquilo era nada comparado ao que estavam fazendo agora. Um local de baixa temperatura nunca foi tão quente.
Quando ela se deu conta de onde ele estava se dirigindo, ela se sentou.
– Mas eu quero que seja bom para nós dois...
– Você disse que queria se lembrar de algo. – As mãos dele deslizaram até o topo de suas coxas e as apertaram. – Então, deite de costas e deixe-me fazer meu trabalho. – A língua dele reapareceu – e não é que aquilo a fez aderir ao plano dele?
– Vamos lá, agora – ele murmurou com aquele sotaque sulista. – Deite-se e deixe-me cuidar de você. Prometo ir devagar... bem devagar.
Suas mãos desceram até seus joelhos e abriram suas pernas... e ela se entregou a ele. Seguindo suas instruções ao pé da letra, ela sentiu a rígida mesa contra seus ombros, o ar fresco em suas coxas e um calor selvagem em seu sangue.
Quando ele a encarou através das sobrancelhas, Isaac olhou como se fosse consumi-la.
E ela estava pronta para ser sua refeição.
Abaixando a cabeça, ele foi direto até onde ela necessitava dele, colocando sua boca no sexo dela através da fina calcinha de seda que usava. Uma onda de calor delicioso floresceu e sua mão se esticou, agarrou as calças, as puxou e as colocou na boca para que fosse impedida de gritar.
Se isso já a fazia se sentir tão bem, ela ia fazer barulho: sim, a porta da adega era pesada e seu pai deveria estar dormindo, mas ela não queria correr nenhum risco.
Isaac gemeu contra ela ao se aninhar na seda e, então, ele passou a língua sobre a delicada faixa de tecido que a cobria. Com um palavrão, ela se arqueou de maneira rígida, as unhas arranharam a madeira embaixo dela enquanto as mãos dele mergulharam em suas coxas e os dentes dela mordiam o algodão. E, então, não havia mais nada os separando. Em um momento, sua boca estava sobre a seda, no próximo, ela sentiu um puxão em seus quadris e ouviu o som de algo se rasgando quando a calcinha cedeu...
Oh, Deus... sua língua molhada deslizou direto até seu cerne e se arrastou para cima, partindo-a, deslizando com lambidas seguidas.
Ele foi devagar.
Quando suas grandes mãos se fecharam em sua cintura e a firmaram para baixo, ele produziu um momento doce, a beijando e sugando, aquela língua dele funcionava como mágica que apenas podia ser substituída pela sucção quente e firme de seus lábios. Todo o tempo, ele olhava para ela, olhava seus seios enquanto ela se contorcia sob sua boca.
De repente, como se precisasse tocar aquilo que estava observando, as mãos dele subiram sob a camiseta dela em direção ao que parecia o fascinar. Abrindo o fecho frontal do sutiã, ele tomou posse de seus dois seios, os polegares esfregavam seus mamilos.
Sua respiração bombeava para dentro e para fora através de sua boca aberta e assim que ela estava prestes a chegar ao orgasmo, Isaac recuou e lambeu os lábios brilhantes.
– Venha para mim – disse ele. – Eu quero sentir isso.
E, em seguida, ele estava contra ela mais uma vez, sua língua a penetrava – o que foi o suficiente. A sensação foi liberada, minando para fora de seu sexo e tomando conta de cada centímetro de seu corpo. Quando o turbilhão de faíscas a consumiu, ela estava vagamente consciente de que ele gemia, como se sentisse aquele prazer em primeira mão.
Ele não parou por aí. Fluía em círculos, lambia, chupava... ele continuou abrindo ainda mais as pernas dela, segurando-a no lugar, marcando aquilo na memória dela assim como marcava em seu sexo. Ela nunca iria esquecer...
Um de seus longos dedos, ou talvez dois, penetrou dentro dela e a pressão e o alcance a enviou direto para o topo novamente. Quando outro orgasmo disparou, as mãos dela se fecharam em seu antebraço, suas unhas afundaram em sua carne enquanto sua coluna se contorcia e aquela explosão de prazer a inundava de dentro para fora.
E ele ainda não parou.
Ele era quente, selvagem e implacável.
Ele era o amante que ela nunca, jamais iria esquecer.
Muito menos superar – e isso era o que temia.
Oh, meu bom Jesus...
Isaac olhou por entre as pernas de Grier e quase chegou ao clímax apenas com aquela visão. Ela era uma mulher totalmente desfeita, os restos de sua calcinha branca em volta de seus quadris, sua camisa preta em volta do pescoço, o sutiã pendia para os lados. Seus seios estavam rígidos nas pontas rosadas, seu rosto estava corado e sua barriga se movia em um ritmo de surtos e abrandamentos conforme trabalhava contra ele.
Aquela calcinha na boca dele foi uma das coisas mais sensuais de tudo.
E o gosto dela era ainda mais quente do que isso.
Isaac poderia ficar ali por horas, mas a cada momento ele corria o risco de uma interrupção e ele queria terminar aquilo direito.
Subindo e pairando acima dela, inclinou os joelhos dela até o peito, com isso, seu membro se contorceu até ficar à beira do orgasmo com a visão do sexo dela reluzente todo inchado e aberto para ele. Não houve chances para que as calças fossem forçadas... ele as puxou para baixo o suficiente para que a ereção saltasse... da qual surgiu uma gota na ponta quando ele pensou sobre onde estava indo. Passando a mão sobre sua boca molhada, ele a colocou sobre a cabeça de seu membro, escorregando ainda mais o corpo antes de contorcer a coluna e unir as mãos ao órgão.
Empurrando, ele a observou ao fazer a conexão, olhando-a para acomodar seu membro e ouvindo o gemido dela ao ir mais fundo, atendendo seus desejos.
– Ah, caralh... – O cavalheiro nele engoliu o palavrão. Já o homem das cavernas que havia nele tinha que continuar falando. – Olhe para você... Quero deixar algo para trás... em você.
Ele atirou seus olhos nos dela e começou a se mover, bombando para dentro e para fora, dentro e fora... e, então, ele voltou a olhar para o local onde tinham se unido, o brilho naquilo fez suas bolas ficarem rígidas. Curvando-se para os seios, ele sugou um mamilo e trabalhou nisso com a língua... até que o ritmo abaixo tornasse impossível manter aquela ligação: ele estava falando sério sobre ir devagar, mas a boa intenção não durou muito. O sexo tinha uma dinâmica própria e não passou muito tempo até que a mesa começasse a gemer sob a força de seus golpes e ele teve que abraçar a cintura dela para mantê-la onde ele a queria.
Ao ficar rígida sob ele, Isaac também ficou, tencionando seus molares para não fazer barulho, suas pálpebras se fecharam com força embora quisesse ver o rosto dela ao dar mais uma dose de prazer.
Com seu corpo no dela e a preenchendo por completo... ele estava tão saciado quando um homem no deserto que tinha recebido um gole de água.
Ele não estava nem perto de acabar. Ela queria memórias? Entendido.
Mantendo-os juntos, ele puxou a calça para fora da boca dela, a ergueu e trouxe seus lábios até os dele, beijando-a profundamente enquanto carregava seu peso com facilidade para fora da mesa. Posicionando-a contra a porta lisa, ele agarrou a parte de trás de suas pernas e começou a se mover novamente. Com as mãos emaranhadas em seus cabelos, o calor abrasador e a sensação de urgência tomando conta mais uma vez, o beijo não poderia durar muito – e não durou muito mais que o selar dos lábios. Ele veio rígido dentro dela, promovendo um colapso enquanto seu próprio orgasmo escorria.
O alívio foi um luxo que ele não desfrutou, pois tinha plena consciência de seu peso sobre ela e do fato de que as costas dela estavam contra algo rígido e de que o pai dela estava em casa...
Havia tantas coisas entre eles.
Isaac a soltou lentamente até que seus pés tocassem o chão e, quando ele saiu dela, não gostou do ar frio em seu pênis. O sexo dela era muito melhor... muito, muito melhor.
Quando ele a beijou, a maneira como seus lábios se moviam sobre os dele lhe dizia que em um mundo diferente, em circunstâncias diferentes... este seria, com certeza, um começo para eles – apesar de tudo o que os separava como família, dinheiro e escolaridade.
Mas aquela não era a realidade deles, era?
– Deixe-me arranjar algo para limpar isso – ele disse calmamente enquanto puxava as calças de volta no lugar.
Depois de beijá-la mais uma vez, ele saiu pela porta e quando a fechou lá dentro ele parou e baixou a cabeça.
Ele mentiu para ela.
Suas chances não estavam nem perto de cinquenta por cento: Matthias iria pegá-lo com toda e absoluta certeza. A questão era apenas quanto tempo ele levaria para conversar com os ouvidos certos antes que seu velho chefe surgisse das sombras e o reclamasse. Algo que sempre foi verdade sobre o líder das operações extraoficiais: Matthias nunca desistia. Nunca. E mesmo que o mundo estivesse desmoronando em torno dele, continuaria a buscar sua vingança. De alguma forma, de alguma maneira.
Contudo, isso não ia impedir Isaac de continuar tentando com todas as suas armas.
Muito melhor morrer tentando fazer a coisa certa... e deixar sua mulher pensando algo menos ruim sobre ele.
Muito melhor.
CAPÍTULO 35
Quando o sol da manhã despertou de seu sono nublado e uma auréola de raios foi derramada sobre Caldwell, Nova York, dois garotos, com idades entre doze e nove anos, foram andando para a escola.
E nenhum dos dois estava impressionado com todo o “esplendor primaveril”.
Seja lá o que isso significasse.
A mãe deles repetia sempre algo sobre esplendor primaveril, esplendor primaveril... bah! O que interessava a Joey Mason era a educação física: geralmente ele tinha educação física às segundas feiras, mas hoje haveria uma assembleia especial. Então, não importava o quanto de “esplendor primaveril” houvesse lá fora, ele ainda estava a caminho de um dia na escola com nada de interessante para fazer.
Por outro lado, seu irmão mais novo, Tony, gostava mais de assembleias do que de educação física, então, ele estava empolgado. Mas ele era um nerd que dormia com livros, que outra coisa poderia interessá-lo?
A caminhada de casa para a escola era de uns oito quarteirões e não era nada demais... apenas descer a Rua São Francisco, passando pela igreja e alguns outros pontos. Eles deveriam ficar do lado direito, pois havia um posto de gasolina à esquerda por onde passavam muitos carros. E eles deveriam parar em cada esquina. O que Joey fazia – geralmente enquanto segurava o colarinho de Tony para impedi-lo de atingir um carro em cheio.
Tony sempre andava com um livro aberto. Também comia lendo, ia ao banheiro lendo e se vestia lendo.
Estúpido. Simplesmente estúpido, pois se perde muito quando não se olha em volta.
Como aquele carro legal que estava no caminho. As janelas eram pretas e a pintura também, e havia um número na placa: 010. Era só isso, sem letras. Joey olhou para seu irmão mais novo e percebeu que, com certeza, ele não tinha notado aquilo.
Perdeu mais uma.
A coisa parecia ser da polícia.
Quando chegaram até o carro, pegou o colarinho de seu irmão e o puxou para perto. Tony não questionou a parada – apenas virou outra página. Provavelmente ele pensou que estavam em outra esquina.
Joey se inclinou um pouco para ver o interior, preparando-se para ver alguma coisa relacionada a um uniforme sair e gritar com eles por serem intrometidos. Quando não viu nada e quando nada aconteceu, ele posicionou as mãos em formato de concha e as colocou contra o vidro frio...
Pulou para trás.
– Acho que tem alguém lá dentro.
– Não tem – Tony disse sem levantar a cabeça.
– Tem sim.
– Não tem.
– Tem sim. E como você pode saber que não tem?
– Não tem.
Certo, Tony não sabia do que estava falando e aquela discussão poderia durar para sempre. E, então, ele e seu irmão caçula se atrasariam para as aulas e ficariam de castigo. De novo.
Mas...
Seria tão legal se eles encontrassem um cadáver – bem em frente à funerária!
Jogando a mochila, Joey distanciou seu irmão do carro, levantando-o e redirecionando seus pés.
– Isso é perigoso. Eu não quero que você se machuque.
Isso finalmente fez com que Tony levantasse os olhos do livro.
– Tem mesmo alguém aí dentro?
– Para trás.
Era o tipo de coisa que seu pai teria dito e Joey se sentiu um homem com relação a isso – especialmente quando Tony assentiu e segurou seu livro contra o peito. Mas era assim que deveria ser. Joey faria treze anos em breve e ele era responsável quando não havia ninguém por perto. E, às vezes, mesmo quando havia outras pessoas no local.
Voltando a colocar as mãos em forma de concha, ele reassumiu sua posição contra o vidro e tentou ver através da escuridão...
– É um pirata.
– Você está mentindo.
– Não, não estou...
Um carro passou devagar em frente deles e uma senhora abriu a janela – era a Sra. Alonzo do outro lado da rua.
– O que vocês estão aprontando, meninos?
Como se tudo o que eles fizessem fosse esse tipo de coisa.
Parte de Joey queria que ela continuasse seu caminho e deixasse que ele resolvesse a situação. Mas a outra parte queria se mostrar.
– Tem um cara morto aqui.
Sentiu-se muito importante, pois ela ficou pálida e parecia nervosa. Cara, se ele soubesse que tudo isso iria acontecer, ele teria saído mais rápido de casa. Aquilo era muito melhor que educação física.
A não ser pelo fato de que Tony teve que se intrometer.
– É um pirata!
De repente, a Sra. Alonzo não parecia tão assustada.
– Um pirata.
Seu irmão era um idiota – e Joey não estava interessado em perder a atenção da plateia. Piratas eram coisas de criança. Um morto no carro? Isso era coisa de adulto e era isso o que ele queria ser.
– Veja por si mesma – ele disse.
A Sra. Alonzo estacionou em frente ao carro completamente preto e saiu, seus saltos altos faziam um som de galope de pônei na rua.
– Certo, já chega, garotos. Entrem e vou levá-los até a escola. Vocês vão se atrasar. – Ela estendeu seu telefone para Joey. – Ligue para sua mãe e diga que estou levando vocês. De novo.
Isso acontecia muito. A Sra. Alonzo era uma executiva cujo escritório ficava não muito longe da escola, eles se atrasavam muitas vezes e ela os levava. Mas essa manhã era diferente.
Ele cruzou os braços sobre o peito.
– Precisa olhar pela janela.
– Joey...
– Por favor. – Outra coisa adulta: por favor e obrigado.
– Tudo bem. Mas entrem no meu carro.
A Sra. Alonzo marchou em direção ao carro enquanto resmungava alguma coisa sobre ficar prestando serviço de táxi. E Tony, que sempre seguia as regras, levou seu livro até o assento da frente da SUV – só que ele ainda estava interessado no que estava acontecendo, pois ele não fechou a porta e o seu exemplar do livro Diário de um Banana: Dias de Cachorro permaneceu contra seu peito.
Joey ficou onde estava.
Normalmente, ele teria se chateado com Tony por pegar o melhor lugar no carro: irmão mais velho andava na frente; bebês menores ficavam atrás. Mas havia coisas mais importantes que isso agora, então, ele ficou onde estava na calçada, o telefone sem utilidade em sua mão.
Ele estava pensando no que tinha visto...
A Sra. Alonzo deu um salto tão grande que quase acabou no meio do trânsito, uma minivan buzinou para ela quando se desviou por pouco de seu corpo.
Ela correu e pegou o telefone, assim como o braço do garoto.
– Entre no carro, Joey.
– O que é isso? Um cara morto? – Meu Deus, e se fosse um pirata? Caramba!
A Sra. Alonzo colocou o telefone no ouvido enquanto o arrastava para o carro.
– Sim, é uma emergência. Há um homem em um caro em frente à casa funerária McCready na Rua São Francisco. Não sei se há algo de errado com ele, mas ele está atrás do volante e parece não se mexer... Estou com uma criancinha comigo e não quero abrir a porta... certo...
Criancinha. Deus, ele odiava aquela coisa de criancinha. Além disso, foi ele quem encontrou o cara. Quantos adultos passaram por ali a pé para ir ao trabalho e não o viram? Ou de bicicleta? Ou correndo?
O cara morto era dele.
– Meu nome é Margarita Alonzo. Sim, ficarei aqui até os paramédicos e a polícia chegarem.
Certo. Esta era, oficialmente, a melhor manhã da história de sua vida, Joey pensou enquanto pulava no banco de trás – o qual tinha a melhor visão ao se virar para ver lá fora.
Quando a Sra. Alonzo entrou e trancou as portas, ele imaginou os três ali até a meia noite, uma da manhã. Talvez precisassem de um McLanche Feliz para o almoço. Ele tinha a grande esperança de que a polícia não corresse...
A chatice de todas as chatices o atingiu quando ele ouviu a senhora Alonzo dizer: – Sara? Estou com seus meninos e eles estão bem. Mas há um pequeno problema e preciso que venha buscá-los.
Joey abaixou a cabeça no braço.
Sabendo da sorte que tinha, sua mãe correria até à cena e chegaria lá antes que ele descobrisse algo sobre o pirata morto no banco da frente daquele carro.
Arruinado. Simplesmente arruinado.
E, provavelmente, eles chegariam à escola a tempo de assistir a assembleia.
Quando Matthias dormiu atrás do volante de seu carro, ele sonhou com a noite em que Jim Heron salvou-lhe a vida várias e várias vezes. Os acontecimentos que o levaram até a bomba e a dolorosa caminhada para recuperar uma saúde relativa foram passados e repassados em sua mente, como se a agulha da sua velha vitrola mental estivesse presa em algum obstáculo no disco.
Matthias tinha atraído Jim Heron àquela cabana abandonada e empoeirada como testemunha, pois não havia mais ninguém nas operações extraoficiais cuja palavra houvesse mais peso e credibilidade. A ideia era que o soldado deixasse seu corpo na areia e fosse para a casa contar aos outros que tinha acontecido um terrível acidente: se alguém apresentasse um relatório como esse, a conclusão seria de que havia ocorrido um abate completo.
Contudo, não é o caso de Jim – ele era um atirador correto em um mundo cheio de curvas e nunca teve problemas em fazer o que tinha que ser feito, certo ou errado.
Prova de que havia um pouco de bondade em Matthias, afinal – pelo menos, ele não ia jogar a culpa de seu suicídio na cabeça de outro cara.
E sim, claro que ele poderia explodir a própria cabeça em um banheiro qualquer, mas mesmo sendo um suicida, ele tinha seu orgulho. Autoinjetar-se uma dose de chumbo seria fraqueza demais – muito melhor espalhar a porcaria gosmenta em algumas paredes de pedra e ser lamentado como o forte lutador que sempre tinha sido.
Contudo, o orgulho teve seu preço: ao invés de deixá-lo na areia, o idiota Heron o salvou – e descobriu seu segredinho. O explosivo foi a dica que faltava. Enquanto Matthias permanecia deitado e sangrava como um porco, Jim encontrou os restos da bomba e reconheceu o que eram. Ou seja, era um dos seus dispositivos.
O filho da mãe pegou os fragmentos, os colocou no bolso e tirou o cinto. Em seguida, fez um torniquete na perna de Matthias, o levantou e começou a puxá-lo. Ele ficou muito chateado e era evidente que as atitudes de seu salvador eram parte punição, parte recompensa – e completamente desgastante. O bastardo andou, andou e andou... até que, alguns momentos depois, Isaac Rothe apareceu dentre as dunas com uma Land Rover.
As exigências de Jim vieram semanas depois, em um hospital na Alemanha. Naquele ponto, a cabeça de Matthias não era nada além de um imenso balão de ar quente de agonia e ele estava tendo que se acostumar com apenas um olho funcionando. Heron se sentou à beira do leito e estabeleceu seus termos: fora. Livre e limpo. Ou pegava o que tinha restado da bomba e contaria a história para a única pessoa que poderia fazer algo sobre isso.
Olá, senhor presidente.
Ironia das ironias, se tivesse sido qualquer outro soldado, qualquer outro ser humano com um coração batendo e um dedo no gatilho, Matthias não teria se preocupado com a ameaça. Mas, Jim Heron – o bom e velho Zacarias – era uma daquelas malditas pessoas em quem as pessoas acreditavam. Fragmentos de bombas poderiam ser fabricados; e a credibilidade de um homem digno? Muito menos discutível.
E ele não poderia continuar sendo chefe se as pessoas achassem que não tinha mais coragem para o trabalho.
Naquele momento, Matthias sentiu como se não houvesse outra escolha e disse ao homem para que seguisse seu caminho.
Depois, a questão suicida veio à tona e ele teve que considerá-la seriamente. Mas, em seguida, seu segundo homem na linha de comando apareceu na hora certa – tinha certeza de que o cara sabia para onde estava indo.
Um homem muito persuasivo aquele. E quando se deu conta, Jim tinha salvado seu corpo, mas aquele segundo homem na linha de comando o trouxe, de alguma maneira, de volta à vida.
Apesar de a renovação ter tido consequências: quase imediatamente, Matthias abriu os olhos – ou um olho, melhor dizendo – para o erro de deixar Heron sair: aquele soldado estava solto pelo mundo com informações demais e a exposição não era aceitável.
O segundo na linha de comando concordou com isso e estava prestes a colocar as rodas de um carro em movimento para provocar um “acidente” quando Jim ligou procurando por informações sobre Marie-Terese Boudreau. Perfeito. Bem a tempo. O plano era que Jim entregasse Isaac em troca da informação que precisava – e, em seguida, seria o assassinato de Jim.
Só que alguém pegou Heron primeiro.
Morto. Jim estava morto. Matthias viu seu corpo com os próprios olhos. E, ainda assim... de alguma maneira ele sentia como se tivesse falado com o cara. Sim, ele sonhou que tinha conversado com Jim Heron...
Matthias acordou com a arma na mão, o gatilho armado e apontando para um homem de uniforme azul marinho – que tinha, dado a barra de ferro em sua mão, acabado de destrancar o carro e abrir a porta.
O paramédico congelou e colocou as mãos para cima.
– Eu só quero te ajudar, cara.
Provavelmente era verdade. Mas para o inferno, o parceiro do cara sem dúvida estava ligando para a polícia agora e, observação, fazer qualquer tipo de contato direto com um civil não era um benefício, segundo a cartilha de Matthias.
Ele baixou a arma.
– Sou um agente federal. – Ele colocou a mão no casaco e decidiu mostrar suas credenciais do FBI; que eram legítimas até certo ponto.
O paramédico se inclinou e olhou a fotografia, um nome qualquer no laminado e um brasão bem verdadeiro.
– Ah... desculpe, senhor. Recebemos um telefonema...
– Está tudo bem. É que passei três dias puxados na fronteira canadense e estou a caminho de Manhattan. Desci a estrada ao norte procurando algo para comer às quatro da manhã, mas não havia nada aberto e eu precisava dormir um pouco. Sabe como é.
– Ah, entendo muito bem.
Conversa fiada, conversa fiada, conversa fiada... blablablá...
Quando a polícia apareceu, eles colocaram seu número de identidade no sistema e, como num passe de mágica, tudo bateu. E sua história sobre estar em uma missão secreta e ter que parar um pouco por causa da exaustão foi engolida como um jantar de Ação de Graças: ele passou de criminoso à celebridade.
Gente estúpida.
Depois que os despistou, afastou-se e pegou o telefone. Havia uma série de mensagens de voz... e um alerta.
Bem, como pode imaginar... parece que Isaac Rothe tinha se entregado e sua localização era a casa de sua adorável e talentosa advogada. Que coisa mais perfeita: embora pudessem pegá-lo em pé na cozinha de Grier Childe se fosse preciso, aquilo faria das coisas muito menos complicadas.
Matthias ligou para seu segundo homem na linha de comando e quando o telefone soou ele pensou em quantas vezes tinha tido aquela conversa: vá. Pegue o bastardo. Acabe com ele. Dê um jeito no corpo.
Ele tinha feito isso tantas vezes.
Quando a dor do lado esquerdo do peito disparou novamente, ele ignorou a sensação...
– Sim? – o segundo na linha de comando respondeu.
– Isaac Rothe está pronto para você.
Não houve sequer uma pausa.
– O endereço é o de Beacon Hill?
– Sim. Vá até lá e pegue-o.
– Estou fora do estado.
– Bem, entre no estado. O mais rápido possível.
– Entendido. Onde você o quer?
Boa pergunta. Isaac não era conhecido por grandes fugas, sua reputação era de um assassino rápido e limpo que o fazia em circunstâncias extraordinárias. Mas você não conseguiria executar tarefas como as dele se não fosse muito imaginativo.
– Mantenha-o naquela casa para mim – Matthias disse de repente.
Quando levou em conta a situação, o instinto lhe disse que uma mudança na estratégia era apropriada. Afinal, seria útil puxar as rédeas de Grier Childe e seu pai – e nada chamava mais a atenção de um civil do que assistir a alguém sendo assassinado. O bom e velho Albie era uma prova disso...
Por alguma razão, a voz de Jim Heron estalou no cérebro de Matthias. Não havia palavras específicas, apenas um tom que se demorava, um tom grave, que implorava para que Matthias parasse com tudo e... fazer o que exatamente?
– Alô? – o homem do outro lado da linha perguntou, uma vez que o cara disse algo que não havia sido respondido ou que havia recebido nada além de silêncio por um tempo.
– Eu não quero que você o mate – Matthias se ouviu dizendo.
– Ah, entendo. Você quer fazer isso por si mesmo. – Satisfação. Tal satisfação era o objetivo do plano em todo o tempo.
Sem qualquer razão especial, o processador central do cérebro de Matthias começou a faiscar e sair fumaça, imagens voavam dentro e fora de sua mente em uma confusão louca que o fez pensar na rolagem de dados em uma mesa de feltro. E, então, em meio ao caos, ele viu Alistair Childe sendo segurado em um tapete sujo por dois agentes de preto enquanto era injetada em seu filho heroína suficiente para levar um elefante a ter uma overdose.
Danny... oh, Danny, meu garoto... Parecia uma música que poderia tocar em um bar irlandês, mas não soava nada musical uma vez que o pai gritava as palavras com voz rouca.
– Chefe – o segundo na linha de comando interrompeu. – Fale comigo. O que está acontecendo?
A voz era muito sonora, mas era um falso pragmatismo. Era evidente que o soldado estava preocupado de que as rodas estivessem saindo da estrada de novo – assim como tinha acontecido há dois anos, ele teria que arrastar Matthias para calçar suas botas de combate mais uma vez.
– Não o mate – Matthias ouviu-se repetir. – É uma ordem.
– Eu sei, assim você pode fazer isso. Ele é seu. Você tem que pegá-lo.
Por um momento, Matthias sentiu uma atração inevitável, tentadora...
– Não – ele exclamou, sacudindo-se. – Não, eu não tenho.
– Sim, você deve...
– Apenas siga a maldita ordem sem mais comentários ou encontro outra pessoa que o faça.
Com um palavrão, ele desligou, enviou um sinal de volta para Isaac e, em seguida, tentou encontrar um local sólido para se sustentar dentro de si mesmo. Droga, de repente, ele sentia como se houvesse duas vozes diferentes em sua cabeça e elas não apenas o direcionavam para caminhos opostos, o puxavam de fato.
Felizmente, o retorno da transmissão feita a Rothe interrompeu sua luta.
– Matthias – ele ouviu aquela velha voz familiar.
– Isaac. Como vai?
– Onde? Quando?
– Sempre indo direto ao ponto. – Matthias empurrou a parte inferior do volante para manter o sedã na estrada, enquanto massageava a dor que havia do lado esquerdo de seu peitoral.
– Estou mandando alguém até você. Então, fique onde está.
– Inaceitável. Não posso ser pego aqui.
– Ditando as regras? Eu acho que não.
– Grier Childe não vai ser envolvida nisso. Vou me entregar à meia-noite, amanhã, em um local público.
– E agora você quer me dizer quando? Vá se ferrar, Rothe. Se quiser que ela fique fora disso, fará o que vou lhe dizer. Ou você acha que não posso passar por esse sistema de segurança de luxo a qualquer hora da noite que eu quiser? – Silêncio. – Surpreso por eu saber sobre a maldita coisa? Bem, há outros truques nessa casa, Isaac. Fico me perguntando de quantos deles você tem conhecimento.
Vê, aquilo era bom. O movimento do jogo de poder limpava um pouco aquela porcaria distorcida, nebulosa e evasiva – e isso o lembrava da razão por trás da morte de Daniel Childe: a grande boca aberta do bom e velho Albie.
Um tiro de adrenalina o despertou ainda mais enquanto ele se perguntava exatamente que tipos de planos Isaac e o capitão aposentado poderiam ter tido enquanto ele estava desmaiado na estrada.
Ele limpou a garganta.
– Sim, fique onde está... e em caso de ter tramado alguma brilhante ideia com o pai dela, deixe-me esclarecer as coisas. Se você fizer qualquer coisa para expor a mim ou à organização, vou fazer coisas àquela mulher das quais ela vai sobreviver, mas nunca se curar. E saiba: meu alcance se estende além da sepultura. – Mais silêncio. – Você conheceu o pai dela... não negue isso. E tenho plena ciência de que ele vem coletando informações sobre as operações extraoficiais há décadas. Sem ideias brilhantes, Isaac. Pelo bem dela. Ou vou ignorá-lo e ir atrás dela. Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora...
– Ela não faz parte disso! – Rothe disse entre dentes. – Ela não tem nada a ver comigo ou com o maldito pai!
– Talvez. Mas acidentes acontecem. E eu atribuí seu caso a ela por um bom motivo, que acabou ficando melhor do que eu pensava. Eu nunca esperava que vocês dois ficassem tão pessoalmente envolvidos, ou você acha que eu não ouvi os dois subirem até aquele quarto de hóspedes dela ontem à noite? – Matthias lutou contra a dor em seu peito, sentia como se estivesse se afogando. – Não me faça machucá-la, Isaac. Estou ficando cansado de tudo isso, estou mesmo. Fique onde está. Estou enviando uma pessoa e você saberá quando chegar lá. E se você ou o pai dela não estiverem lá quando ele chegar, vou fazer com que procure por ela, não por você. Você segue as instruções e vou me certificar de que ninguém além de você se machuque.
Matthias apertou o botão end para finalizar a ligação e jogou o celular no banco do passageiro.
Estremecendo, ele lutou para manter o carro em linha reta enquanto a agonia por trás de sua caixa torácica aumentava para níveis incontroláveis. Com o ataque, ele pensou brevemente sobre dirigir até o Aeroporto Internacional de Caldwell, mas decidiu que precisava se recuperar e isso ia levar tempo. E privacidade.
Apertando o peito esquerdo, ele parou e tentou respirar em meio à dor. O que realmente não ajudou muito... ao ponto de se perguntar se era isso. O derradeiro. Assim como aquele que matou seu pai.
Olhando para fora do para-brisa dianteiro, ele percebeu que estava na frente de uma igreja.
Sem nenhuma razão aparente, ele desligou o motor, pegou sua bengala e saiu. Ele não pensava em nada nem sequer remotamente relacionado a Deus há anos e estar mancando em direção àquelas enormes portas duplas o fazia se sentir... errado de muitas maneiras. Especialmente levando em conta tudo o que estava esperando por ele em Boston. Mas seu segundo homem na linha de comando precisava de tempo para arranjar as coisas e Matthias... precisava desse ataque cardíaco seja para se organizar e chutar o balde ou para calar a maldita boca.
Lá dentro estava quente e cheirava a incenso e cera com aroma de limão. O lugar era enorme, com centenas e centenas de bancos que se espalhavam em três direções desde o altar.
Matthias não fez todo o caminho. Ele entrou em colapso em um banco mais ou menos na metade do corredor lateral, caiu por completo no banco de madeira.
Movendo sua bengala entre os joelhos, olhou para o crucifixo... e começou a chorar.
CAPÍTULO 36
Depois de terminar a comunicação com Matthias, Isaac guardou o transmissor de alerta em seu blusão. O que ele queria fazer era colocá-lo sobre o balcão de granito e esmagá-lo com seu punho. Em seguida, talvez, jogar os pedaços no fogo.
Apoiando as mãos sobre a pia da cozinha, ele se inclinou sobre os ombros e encarou o jardim. Quase oito horas da manhã e o local estava um poço de escuridão, pois as casas da vizinhança tinham sido construídas muito perto umas das outras. Não fazia ideia se os colegas de Jim estavam lá de volta. Nenhuma palavra sobre Jim.
Mas Isaac tinha outros problemas agora.
Droga. Levando tudo em consideração, o fato de Matthias suspeitar do que iria acontecer não era uma novidade. Mas aquilo o deixou tenso. Se ele fosse embora agora, ele corria o risco de Grier e seu pai serem massacrados. Se ele ficasse... provavelmente eles seriam obrigados a assistir a morte dele.
Filho da mãe!
– Eles entraram em contato com você?
Ele olhou sobre o ombro. Grier tinha acabado de sair do chuveiro, seus cabelos soltos secavam naturalmente.
– Isaac – o rosto dela ficou tenso. – Eles responderam?
– Não – ele disse. – Ainda não.
Para tornar a mentira mais convincente, ele puxou o transmissor e o balançou, apostando no fato de que ela não iria notar que a luz estava desligada.
– Essa coisa está funcionando?
– Sim. – Ele o guardou quando ela se aproximou. – Como está seu pai?
– No telefone do banheiro de novo. – Ela encarou o relógio. – Deus, pensei que essa noite nunca ia acabar.
– Eu só queria que Jim aparecesse – ele disse enquanto ela começava a fazer o café na pia.
– Você acha... que ele está mesmo morto?
Naquele momento... talvez.
– Não.
Sentando-se em um dos bancos, ele a observou estalar a abertura de uma lata de café e colocar o filtro no topo da máquina. Quando ela terminou a tarefa, a luz do sol em seu rosto o fez querer chorar, ela era tão bonita.
De alguma maneira, ele não podia acreditar que estava com ela – e não no sentido de que não era digno disso. Dã, isso era evidente. Mas ponderando tudo, o sexo quente e intenso parecia um sonho. Ela estava tão limpa, cheirando a xampu ao invés de suor, o cabelo liso, o rosto já não mais corado.
Ela tirava seu fôlego. Para Isaac, ela era uma prova definitiva que a vida valia o sacrifício que requeria das pessoas: apenas olhar para ela e estar no mesmo ambiente, ter as memórias que ele deu não só a ela, mas que ficaram dentro dele...
A ideia de que alguma coisa a machucasse um dia era simplesmente insuportável. E se ele fosse a causa disso?
Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora.
Não era uma ameaça. Não vindo de um cara como Matthias, que não estabelecia qualquer distinção para o sexo feminino. E ele a machucaria de maneira que aqueles momentos especiais que Isaac havia passado com ela na adega fossem impossíveis de serem vivenciados novamente.
Por mais que lhe doesse, ele tinha que ser realista: quando ele partisse, ela encontraria outro amor. Talvez alguém com quem se case e tenha filhos e com quem possa passar a velhice. E não haveria nada disso para ela a menos que ele ficasse ali, esperando... e rezando para que quando o agente de Matthias aparecesse, ele fosse capaz de matar o filho da mãe e, em seguida, desaparecer rapidamente.
Afinal, ele era um maldito de um assassino. Era o que ele fazia para viver.
Uma coisa era clara: não ia mais prosseguir com a divulgação de informações. De jeito nenhum. A vida de Grier valia mais que o respeito que ela tinha por ele e, depois que a poeira assentasse, qualquer coisa que tivesse sido acionada pelo pai dela poderia ser desfeita tão rápido quanto uma ligação telefônica – assim, eles pensariam que o plano ainda estava de pé até descobrirem que Isaac tinha sumido.
E quanto ao resto de sua vida? Ele ia se entregar a Matthias e prestar suas contas, mas seria em seus termos. O pai de Grier faria algo com aqueles dossiês e Jim Heron, ou qualquer um de seus colegas, era o tipo de cara que poderia guardar uma narração gravada, em primeira pessoa, de cada assassinato que Isaac já cometeu – isso proporcionaria a Grier e a seu pai uma morte de causas naturais.
Afinal, ele tinha a impressão de que confissões feitas à beira da morte eram admissíveis no tribunal, então, uma vez que Isaac confessasse que Matthias iria matá-lo em breve, isso teria muita influência, não teria? – pelo menos seria o suficiente para que abrissem uma grande investigação.
Seu depoimento seria o seguro de vida dela e de seu pai.
Do outro lado, Grier apertou o botão ligar do aparelho e quando a máquina começou a sibilar ela ficou onde estava, olhando para a coisa.
Compelido por algo que ela não questionou, Isaac ficou em pé e se colocou atrás dela, colocando seu peito contra suas costas. A respiração de Grier ficou tensa ao sentir o corpo dele e, embora tivesse se enrijecido, ela não se moveu.
Ele estendeu as mãos e tocou as ondas loiras que caiam sobre seus ombros, correndo os dedos sobre ele. Em seguida, ele deslizou as mechas lentamente para a lateral, expondo a nuca.
Deus, ele já tinha se decidido, não tinha?
Tinha escolhido seu caminho.
– Posso beijá-la? – ele disse com voz rouca. Pois era mais cavalheiro perguntar antes.
A cabeça dela pendeu.
– Por favor.
Ele foi até o pescoço encantador, pressionando seus lábios contra a pele dela. Aquilo não era o suficiente, mas ele não confiava em si mesmo para ir mais além ou sequer para colocar suas mãos na cintura dela – se ele o fizesse, não ia parar até que ela estivesse sob ele e, por sua vez, ele estivesse dentro dela mais uma vez.
– Grier – ele sussurrou com voz rouca.
– Sim...
– Preciso dizer uma coisa.
– O que?
Algumas vezes as emoções eram uma locomotiva para as palavras: uma vez que se há uma revelação para fazer, não há freios suficientemente fortes para mantê-la nos trilhos de sua garganta.
– Eu te amo – ele pronunciou mais com ar do que com sílabas.
Contudo, ela ouviu. Deus, ela ouviu, pois inalou com um silvo.
Grier se virou tão rápido que se formou uma curva em seus cabelos e mesmo com o coração batendo forte, Isaac não desviou o olhar.
Quando ela abriu a boca, ele colocou seu dedo sobre os lábios dela e balançou a cabeça.
– Eu só precisava que você soubesse. Uma vez. Eu só precisava dizer... uma vez. Eu sei que não a conheço há tempo suficiente ou bem o suficiente e tenho plena consciência de que não sou o homem certo para você, mas algumas coisas precisam ser ditas.
O que não precisava ser transmitido era o terror dentro de sua pele.
Por mais que ele quisesse fazer a coisa certa, seu antigo patrão o pegou pelos cabelos: não havia sacrifício grande demais para garantir a segurança de Grier. Até mesmo a salvação de Isaac não era demais. Nem mesmo a queda de Matthias.
Uma garganta pigarreando discretamente fez com que Isaac olhasse para cima. Através do vidro sobre a pia, ele viu o pai de Grier em pé na cozinha – e por respeito à filha do homem, ele recuou.
– Café, pai? – Grier disse com uma voz estável ao se inclinar para o lado e pegar duas canecas no armário.
– Sim, obrigado.
Isaac podia sentir os olhos do cara oscilando entre um e outro, mas ele tinha certeza de que não queria responder qualquer pergunta.
E era evidente que Grier também não.
– Vamos sentar? – ela perguntou.
Ao invés de responder, o homem clareou a garganta mais uma vez. Sem dúvida por estar chocado com a situação do dia anterior, quando disseram para que ficasse longe, e o sentimento de “não toque na minha filha”.
Mas ele não precisava se preocupar. Ele chegou tarde demais para a última alegação, mas a sensação que a primeira causava... dariam um jeito nela.
– Pai? Vamos sentar?
– Todos vão chegar amanhã de manhã...
– Amanhã de manhã?
– É uma situação delicada. É preciso dar desculpas adequadas – esses homens e mulheres não podem sair sem um bom motivo, sem que questionamentos sejam feitos.
Isaac podia sentir Grier olhando para ele, buscando um apoio para dizer um “não” veemente, mas era isso, ele discordava dela. Amanhã era perfeito.
Ele já teria partido até lá.
No hotel, Jim acordou em seu quarto pouco iluminado e sentiu como se tivesse sido vítima de um acidente de carro. Com um caminhão. E ele estava sem cinto de segurança.
Ele estava na cama, dormindo encolhido de lado, seu corpo pesado tinha esculpido uma parte do colchão e estava posicionado como um cão à espera da morte em uma floresta. Mas ele era imortal agora... e aquilo parecia significar que não importava o dano que fosse feito nele, ele seria curado.
Sim, só que aquilo não parecia o tipo de trabalho que requeria apenas um movimento de nariz da Feiticeira, onde tudo era resolvido em um passe de mágica. Ele se sentia muito humano com as dores e feridas, a respiração que fazia suas costelas queimarem, com os saltos de seu coração que mais pareciam o andar de um bêbado. Mas a pior parte disso não era física. Estava em sua mente.
A parte em que havia deixado Sissy para trás, no reino de Devina, o matava.
Abrindo os olhos, percebeu que era manhã; sobre o topo da cabeça encrespada do Cachorro, o alarme brilhava com números vermelhos. 7h52.
Hora de levantar, ele pensou ao se virar de costas com cuidado. Do outro lado, Adrian estava apagado como uma lâmpada, o anjo tinha uma respiração pesada, seus olhos se movimentavam por trás das pálpebras fechadas.
Dado o brilho em seu rosto, era evidente que ele não estava tendo bons momentos na terra dos sonhos.
Deus, que noite, Jim pensou. Depois que Colin o deixou ali ele achou que seria apenas ele e o Cachorro. Mas, então, alguém veio do outro quarto e ele poderia concluir que seria Eddie – a coisa toda de cuidados e enfermagem era mais a praia dele.
Mas não. Adrian foi quem entrou... e permaneceu ali.
No momento, Jim não teve forças para lidar com qualquer simpatia que pudesse sentir pelo cara, então, ele envolveu com cuidado um cobertor em volta de si e calmamente se colocou em pé com as pernas tão fortes quando dois lápis. Mancando até o laptop, ele estava muito tonto, e chegou à cadeira bem a tempo – contudo, mas que droga, seu traseiro doía demais.
Apesar do fato de precisar urinar como um cavalo de corrida, ele ligou o computador e esperou impaciente para que o navegador da Internet fosse iniciado. Para passar o tempo, ele deu uma olhada nas marcas deixadas por aquilo que prendia seus pulsos. Os dois tinham linhas tortuosas de um vermelho brilhante em volta, que reluziam e estavam em carne viva, o lembrete tangível de onde ele tinha estado e o que tinham feito com ele seduziu sua mente a fazer uma viagem ao campo do stress pós-traumático. Só que foi um deslize que ele se recusou a permitir.
Voltando a prestar atenção no que estava fazendo, ele começou a digitar. Contudo, uma vez que seus dedos estavam dormentes, levou uma eternidade para chegar ao site do jornal de Caldwell e pesquisar por Cecilia Barten...
Apareceu um artigo de cerca de duas semanas atrás e a imagem de Sissy trouxe um brilho aos seus olhos. Ela estava sorrindo para a câmera em pé no meio de vários jovens da idade dela. Não dizia quanto tempo havia se passado entre o momento em que a foto foi tirada e quando foi levada por Devina – mas o fato de que ela não tinha ideia do que a esperava ao virar a esquina fez com que seu coração desconfiado ficasse ainda mais focado no trabalho.
Provavelmente era melhor que não soubesse de nada.
E ele ia fazer com que Devina pagasse por isso.
O único artigo que havia além desse relatava que ela tinha desaparecido há uma semana e os dois juntos o fizeram perceber o porquê sua primeira pesquisa de dados havia falhado. Ele pediu que o computador procurasse por assassinatos ou garotas loiras mortas. Nada relacionado a desaparecimento.
Que erro idiota.
E os detalhes eram os que Sissy tinha dito: ela era caloura na Faculdade de Albany e estava passando as férias de primavera em Caldwell. A última vez em que a viram foi quando ela saiu do mercado local por volta das nove horas.
Nenhuma foto de seus pais. Contudo, ele iria encontrá-los.
– Você a viu? – Adrian disse com uma voz um tanto áspera.
– Sim. – Jim encarou a foto de sua garota sorrindo com seus amigos. Então, ele piscou e viu seus cabelos loiros emaranhados com sangue. – Como a tiro daquela parede?
A respiração do outro anjo era do tipo que se produzia quando não se tinha uma boa notícia para dar. De jeito nenhum. E você fica dolorido com isso.
– Você não pode.
– Inaceitável. Tem que haver um jeito.
– Não que eu saiba. – Houve um palavrão e, então, um estalo no colchão e uma variedade de estalos como se Ad estivesse se espreguiçando.
– Volto já.
Quando os passos pesados se dirigiram para o outro quarto, Jim não se deu conta da saída do cara. Mas quando o focinho do Cachorro cutucou sua perna nua, ele olhou para baixo.
Os grandes olhos castanhos olhavam de um rosto de pelo que parecia palha.
– Você sabe como tirá-la de lá? Ela não pertence àquele lugar. Ela não deveria ter terminado ali.
Jim considerou que o pequeno gemido do animal significava que concordava com ele – e que também precisava sair para fazer suas necessidades.
– Dois segundos – disse Jim, preparando-se para ficar em pé. – Preciso de um banho.
Levantando seu peso morto da cadeira, ele deixou cair o cobertor e entrou no banheiro que era de um tamanho modesto. Fechando-se lá dentro, ele acendeu a luz, deteve-se no banheiro e se perguntou se seu pênis ainda funcionava de alguma maneira.
O fluxo rosa que ele urinou respondeu a pergunta. E também sugeriu que seus rins foram danificados.
Depois que terminou, grunhiu ao se inclinar para apertar a descarga e depois se virou para ligar o chuveiro. Sabonete. Ele precisava de muito mais sabonete do que aquela metade já usada que estava ali...
Jim congelou ao se ver no espelho.
Ruim. Muito ruim.
Muito pior do que ele pensava.
Sua boca estava roxa e inchada por causa de toda porcaria que tinha sido empurrada dentro dela, seu peito e sua barriga eram nada além de carne viva. Quanto ao pênis... A maldita coisa estava pendurada em seus quadris como se tivesse perdido a vontade de viver. E ele não queria saber como a parte de trás de seu corpo estava.
Usado e abusado eram os termos corretos.
E seu único pensamento, o único... apenas um... era que odiava o fato de que Sissy o tinha visto assim.
Quando seu estômago vacilou em torno de sua cintura, ele se lembrou da expressão horrorizada no rosto dela ao olhar para ele. Pobre garota... Ele tinha sido treinado para toda aquela porcaria. Ele tinha passado por isso antes... bem, não exatamente pelo que Devina fez com ele, mas com certeza ele teve que lidar com isso algumas vezes com punhos e facas. Até mesmo com uma bala ou duas. Mas Sissy...
Ele quase não conseguiu voltar à bacia sanitária à tempo.
Quando seu corpo se inclinou e nada além de bile saiu de sua boca, seus olhos lacrimejaram pelo esforço.
Maldição, Sissy o viu daquele jeito. Violado sexualmente, sangrando, surrado...
Mais vômito.
Ele não teve certeza de quando exatamente Adrian entrou, pois no terceiro round de lances que saíam de sua boca ele se deu conta que não sabia se ela estava livre do que tinha feito com ele. Afinal, ela foi capturada. Ela estava presa naquele inferno. E Devina tinha muitas coisas que satisfariam o gênero masculino.
– Aqui – Adrian disse, passando-lhe um pano frio.
Jim não conseguia enxugar o rosto, pois doía demais, então, ele deu leves toques, sentindo a umidade fresca como um bálsamo contra seu rosto em chamas e lábios queimando.
Baixando a cabeça, ele percebeu que tinha deixado manchas de sangue fresco no piso creme, das feridas que tinham sido reabertas em seus joelhos.
Sim, imortal não significava embalsamado; isso era certeza.
Adrian sentou-se ao lado dele, com o rosto muito pálido enquanto olhava ao redor da bacia sanitária.
– Quer que eu o coloque no banho? Foi o que me ajudou quando ela...
Quando seus olhos se fecharam com força, a conversa era de sobrevivente para sobrevivente.
– Ah, droga... – Quando Jim falou, sua voz era rouca e parecia que tinham passado um desentupidor por sua garganta.
– Ela me viu assim. Sissy... ela viu isso.
Ele não podia acreditar que havia dito isso, mas manter dentro de si era inútil.
Incapaz de manter contato visual, Jim fechou suas pálpebras com força e encostou ao lado da banheira. Enquanto a água caía como a chuva atrás dele e o chão duro pressionava seu traseiro, ele sussurrou: – Ela me viu arruinado.
Foi a última coisa que disse antes de desmaiar.
CAPÍTULO 37
Você não deve ter pensando que uma casa com seiscentos metros de área construída, no centro da cidade, com três andares – quatro, se contar o porão com a adega – poderia ser estreita como uma caixa de sapato.
Mas, à medida que a manhã se arrastava e chegava o florescer do meio dia, Grier sentia como se não pudesse ter ar suficiente... ou algum momento à sós com Isaac. Seu pai era uma presença passiva com olhos de águia que parecia preencher todo o espaço, mesmo quando não estava nele. E Isaac estava tão ruim quanto ele, movendo-se constantemente, olhando pelas janelas, indo e voltando da frente da casa para a cozinha.
Por volta das duas horas, ela não aguentava mais e foi organizar seu armário no quarto. O que era ridículo, pois já estava arrumado – apesar de ser uma cura rápida para o que estava passando.
Depois de parar no meio do quarto e fazer um giro pelas fileiras de roupas penduradas por categoria, ela pegou cada blusa, saia, vestido, terno e par de calças das prateleiras e os colocou em uma pilha no chão. Aparentemente, ela estava reorganizando as várias sessões. Na realidade, ela estava dando a si mesma um pouco de bagunça para limpar para que pudesse desfrutar de um pouco de controle.
Cabide por cabide, item por item, ela começou a organizar seu guarda-roupa.
Deus... Isaac.
Se ela o ouviu direito, lá na cozinha, perto da cafeteira... ele disse que a amava.
Vamos lá... claro que ela ouviu direito. E seus olhos incríveis confirmaram o que seus ouvidos tinham lutado para compreender.
Contudo, havia muitos mas que a advogada que havia nela queria esquematizar. A questão era, a mulher por trás da advogada de defesa não se importava com nada daquilo: ela sentia algo tão forte quanto ele.
Naturalmente, a lógica dizia que não devia confiar na emoção nos dois casos, apontando que tudo era uma questão de circunstâncias, drama, tensão, sexo – Deus, o sexo. Só que seu coração tinha uma teoria diferente. Ela sentiu uma faísca entre eles no instante em que colocou os olhos nele e a decisão de Isaac de tomar a frente e fazer a coisa certa sobre seu chefe corrupto e perigoso... bem, isso foi ainda melhor que os incríveis orgasmos.
Ele ganhou todo o respeito dela com isso.
Ao pegar um de seus ternos pretos com risca de giz, ela se entreteve com uma breve fantasia onde eles acabavam juntos em uma ilha segura e remota com nada além do dilema sobre o que fazer para almoço e jantar para preocupar suas mentes. Um dia de sonho na Ilha da Fantasia com nada para ser questionado seria uma ótima diversão, mas ela não ia enganar a si mesma. Isaac ia desaparecer. O governo ia levá-lo e escondê-lo até que as audiências no Congresso ou os procedimentos judiciais fossem iniciados. E se ele não acabasse na cadeia pelas atrocidades de guerra nos Estados Unidos, seria extraditado para algum inferno no exterior.
E foi por isso que ele disse aquilo. Era seu adeus.
– Uau.
Grier girou sobre os calcanhares, o terno em suas mãos se levantou em um círculo em volta de seu corpo antes de ser colocado de volta no lugar – como se tivesse esquecido momentaneamente sua discrição e retomado sua compostura.
E não é que ela sabia como a coisa se sentia?
Isaac se amaldiçoou.
– Desculpe, eu realmente preciso aprender a bater.
Grier ficou mais aliviada.
– Eu também estou nervosa demais.
Franzindo a testa, ele mediu a pilha no meio do carpete creme.
– Muitas roupas.
– Provavelmente roupas demais. Eu preciso doar um pouco para alguma entidade.
Ele avançou e pegou um de seus vestidos. Era longo e preto, como todos os outros, pois ela não era do tipo de garota que gostava de cores e brilhos.
– Para onde vai esse?
– Ah... – Havia apenas uma seção com barras altas o suficiente para os longos. Então, ela havia os tirado por nada, apenas para colocá-los novamente. – Aqui. No canto, por favor.
Ele pegou o vestido feito para se usar à noite e o colocou no lugar onde já tinha estado antes. Então, ele se voltou para o próximo, endireitando as ombreiras em um cabide acolchoado de cetim. Antes de colocá-lo no lugar, ele se surpreendeu por baixar a cabeça e colocar seu nariz no decote.
– Tem o cheiro do seu perfume – ele murmurou antes de colocá-lo sobre a haste de bronze.
Foi o que bastou para que um arrepio percorresse dentro dela – no bom sentido. Infelizmente, o formigamento foi substituído por tudo o que estava pairando sobre eles.
– Você já recebeu algum contato... deles?
– Não.
– O que você vai fazer se eles não responderem?
– Eles vão.
Ele não disse mais nada, apenas pegou um vestido com um corpete de veludo e uma larga faixa.
– Vestido de Natal?
– Sim.
– É lindo.
– Obrigada. Isaac? – Quando ele olhou, ela disse: – Eu...
Ele a interrompeu.
– O que é esse som?
– Que som...
O terno caiu de suas mãos quando ela reconheceu o sutil sinal sonoro e se atrapalhou para tirar a corrente do sistema de segurança do bolso. Era certeza, uma luz vermelha estava piscando. “Havia alguém na casa.”
Ela interrompeu o barulho e começou a ir em direção ao telefone ao lado da cama, mas ele segurou seu braço.
– Não. Nada de polícia. Já tiramos vidas de inocentes o suficiente com isso.
Sua arma surgiu e expôs um tubo quase tão longo quando seu punho. Quando ele engatou o silenciador na ponta da arma, olhou em volta e seguiu até o espaço mais abaixo onde o mecanismo do sistema de segurança se encontrava.
Mantendo a arma em mãos, ele arrancou a superfície de metal.
– Entre aqui. E não saia até que eu...
– Eu posso ajudar...
A expressão nos rosto dele fez com que ela desse um passo para trás: seu olhar era frio e totalmente estranho – como se ela estivesse olhando para um vidro fosco... sem esperança de algum dia ver o que estava por trás dele de novo.
– Entre aí, agora.
Os olhos dela encararam a arma e depois se voltaram para sua face rígida e implacável. Era difícil saber o que era mais assustador: a ideia de que alguém estava em sua casa ou o estranho em pé na frente dela. E, então, ficou claro para ela...
– Oh, meu Deus, meu pai!
– Eu cuido dele. Mas não vou fazer isso direito se estiver preocupado com você. – A arma apontava para o buraco escuro que ele tinha aberto. – Vá, agora.
Depositando sua confiança nele, Grier se abaixou, esquivou-se dentro do local e respirou o ar bolorento dos beirais quando Isaac recolocou a grade no lugar. Houve um movimento, um clique, outro movimento, outro clique ao fixar a coisa na parede e, em seguida, pelas frestas, ela o viu sair correndo, silencioso como uma sombra.
Ela olhou o relógio. Ouvia com atenção.
O medo se comprimia com ela dentro dos limites apertados de seu esconderijo, ocupava mais espaço que ela, trazia à tona a imagem de Isaac como um estranho, até aquilo ser tudo o que conseguia ver.
Silêncio.
Mais silêncio.
Que foi prontamente interrompido por uma estridente paranoia em sua cabeça.
Oh, Deus... e se tudo isso não passou de uma armadilha? E se Isaac tinha sido enviado com o único propósito de seduzir seu pai e determinar o quão longe ele iria para expor a agência?
Só que foi ela quem sugeriu isso.
Ou será que a intenção dele era que ela acreditasse nisso?
Contudo, seu perfil dizia que ele precisava de uma motivação moral – e se fosse uma mentira? E se aquilo fazia dele o agente infiltrado perfeito? E se tudo aquilo não passasse de um jogo para que seu pai entregasse os dossiês... antes de o matarem.
E, ainda assim, Isaac a colocou ali para protegê-la.
Só que ela não o reconhecia no momento em que fez isso...
Meu bom Deus, o transmissor de alerta – a luz estava apagada, não estava? Quando ele balançou a coisa em frente a ela na cozinha esta manhã, a luz que ela tinha visto antes estava apagada. O que aquilo significava? E, pensando nisso, o lapso de tempo lhe parecia bizarro: entre o momento em que ele aparentemente se entregou até agora.
Ela tinha que sair dali. Conseguir ajuda.
Grier se contorceu e se apertou atrás dos componentes empilhados do centro nervoso do sistema de segurança. A escadaria oculta que corria no meio da casa fazia parte de sua construção original, foi feita por suspeita e desconfiança de que os britânicos ainda pudessem passar por ali em 1810, cerca de trinta anos depois da Revolução.
Os truques da casa acabaram sendo úteis no presente.
O brilho do sistema de segurança proporcionava iluminação suficiente para que ela encontrasse a lanterna coberta de poeira que ficava pendurada em um prego no topo da escada secreta. Acendendo a luz, ela tateou os degraus antigos, entalhados à mão, deixando suas impressões para trás na poeira. Ao prosseguir, teias de aranha grudaram em seus cabelos e os ombros foram arranhados pela áspera argamassa dos tijolos.
Quando chegou ao primeiro andar, fez uma pausa. É claro que ela não conseguia ouvir nada devido às grossas paredes, mas o pai dela tinha acrescentado um tubo que parecia fazer parte do sistema de ventilação. Na verdade, porém, servia como posto de vigilância secreto.
Grier subiu e se inclinou para o lado para conseguir enxergar direito, apoiando-se sobre alguns tijolos que estavam mais firmes que os outros.
Quando ela apertou os olhos, sua visão trespassou as ripas e focou-se na entrada da frente. Se ela se arqueasse um pouco mais e esticasse o pescoço, ela conseguiria ver a cozinha...
Grier abandonou a lanterna e apertou as mãos sobre a boca.
Para não gritar.
CONTINUA
CAPÍTULO 30
PARAÍSO, JARDIM SUL
Nigel concedeu uma audiência antecipada a seus dois anjos guerreiros favoritos não por causa da bondade que havia em seu coração – apesar do fato de ele, Colin, Bertie e Byron estarem no meio de uma refeição. Contudo, não haveria como mandar esses visitantes embora: ele sabia por que Edward e Adrian estavam chegando e eles não iam gostar do que ele tinha para lhes dizer.
Assim, ele sentia que precisava tratar disso pessoalmente.
E, de fato, quando os dois anjos tomaram forma do outro lado do gramado, caminharam ao longo do bosque como os vingadores que eram.
– Sinto muito mesmo – Nigel murmurou para seus assessores. – Mas poderiam, por favor, me dar licença um minuto.
Ele dobrou seu guardanapo damasco e se levantou, pensando que não havia razão para arruinar a refeição dos outros – e o que estava prestes a acontecer verbalmente seria um assassinato gastronômico do tipo mais sangrento.
Colin se levantou também. Nigel preferia fazer isso sozinho, mas não havia como dissuadir o anjo. Nada nem ninguém poderia mudar as ideias de Colin sobre o que teria de sobremesa, muito menos sobre questões de real importância.
Ele e Colin se encontraram com seus visitantes a meio caminho entre o local onde os dois haviam entrado e onde a mesa estava colocada entre as árvores.
– Ela o tem – Edward disse quando os quatro se aproximaram. – Não sabemos como isso aconteceu...
Nigel interrompeu o anjo.
– Ele se entregou para que outra pessoa tivesse uma chance na vida.
– Ele não deveria ter feito isso. Ele é valioso demais.
Nigel olhou na direção de Adrian e viu que o anjo estava em silêncio pela primeira vez. O que era o sinal mais concreto de que havia problemas.
Nigel puxou suas abotoaduras, alisando as mangas de sua camisa de seda dentro de seu terno de linho.
– Ela não vai matá-lo. Não pode.
– Tem certeza disso?
– Há poucas coisas confiáveis nela, mas as regras não foram impostas por ela. Se matar Jim, ela perde não só a rodada, mas o jogo na sua totalidade. Isso vai mantê-la em cheque.
A voz de Adrian percorreu o ar, fina e dura.
– Há algumas coisas piores que a morte.
– Com certeza, você está certo.
– Então, faça alguma maldita coisa. – O anjo vibrava por completo, seu corpo era um presente de natal prestes a ser rasgado em pedaços com ansiedade.
– Porém, nós poderíamos tirá-lo de lá – Edward disse. – Não é contra as regras.
– Claro que poderiam.
Longo silêncio.
Edward limpou a garganta e pareceu dobrar a língua numa contenção educada.
– A imagem que ela nos enviou sugere que ele está preso no mundo dela.
– Ele não está sobre a terra, é verdade.
– Então, como podemos chegar até ele?
– Não podem.
Quando Adrian soltou um palavrão, Edward segurou o braço do outro anjo, mas isso não o calou.
– Você disse que poderíamos tirá-lo de lá.
– Adrian, eu disse “poderiam” no sentido de permissão. Vocês têm permissão de fazer isso dentro das regras. No entanto, eu não fiz um comentário sobre suas habilidades. Neste caso, vocês são incapazes de alcançá-lo sem sacrificarem a si mesmos, deixando-o sem apoio e orientação durante esses momentos inicias e cruciais...
– Seu imbecil.
Antes que Adrian pudesse fazer algo estúpido, Edward transferiu sua força para o pesado peito do cara e o deteve.
Nigel levantou uma sobrancelha para os dois.
– Eu não faço as regras e eu tenho tanta intenção de ser desqualificado quanto meu adversário.
– Você tem... – Adrian engasgou com as palavras e teve que respirar fundo para terminar. – Você tem alguma ideia do que ela está fazendo com ele? Agora mesmo? Enquanto estamos parados em seu maldito gramado e o jantar está esperando por você?
Nigel escolheu as palavras com cuidado. A última coisa que ele precisava era dos dois fazendo justiça com as próprias mãos. Eles já tinham cometido esse erro uma vez, não tinham?
– Eu sei exatamente o que ela está fazendo sobre aquela mesa, por assim dizer. E também sei que Jim é muito forte... o que é a pior tragédia de todas. Pois ela vai recorrer a torturas que... – Não havia razão para continuar: os olhos de Adrian ficaram vítreos como se fosse alguém revivendo um pesadelo. – Eu diria, porém, que Devina não pode mantê-lo por muito tempo ou ela corre o risco de perder. As coisas estão chegando a um limite e, se ela impedir Jim de participar plenamente do que está por vir, então, não haverá uma competição justa.
– E quanto a Jim? – Adrian exigiu, libertando-se do seu melhor amigo. – E quanto ao sofrimento dele? E quanto a ele?
Nigel olhou para Colin, que estava completamente em silêncio. Mais uma vez, sua bela e familiar expressão facial dizia tudo: sua fúria era tão grande e profunda que os oceanos ficariam rasos, se comparados a ela. Ele sempre odiou Devina e isso não serviria de auxílio naquele momento.
No entanto, havia bastante exaltação ali.
Nigel balançou a cabeça com uma sincera decepção.
– Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito. Minhas mãos estão atadas.
– Você sente muito? Você sente muito, seu maldito? – Adrian cuspiu no chão. – Sim, você parece mesmo, seu bastardo frio. Você parece muito desapontado. Imbecil.
Com isso, o anjo se desmaterializou.
– Droga. – Edward murmurou.
– Um palavrão, mas uma palavra adequada para isso. – Nigel olhou para o espaço que Adrian tinha preenchido antes. – É cedo para ele estar tão cansado e frágil com a batalha. Isso não é nada bom.
– Você está brincando comigo, certo?
Ele encarou o anjo.
– Com certeza você deve enxergar a loucura que há nele...
– Para sua informação, chefia, não faz nem quatro dias que Devina usou o cara ao seu bel-prazer. E você acha que ele não vai perder a cabeça agora que Jim está passando pela mesma máquina de tortura? Está falando sério?
– Gostaria de lembrá-lo que você jurou que ele poderia lidar com isso. – Nigel viu-se inclinado para frente em posição de confronto. Afinal, ele poderia ser o capitão deste lado, mas isso não queria dizer que estava isento de socos. – Você me disse que ele poderia suportar o estresse. Você me prometeu e eu acreditei em você. E se acha que vai ficar mais fácil à medida que avançamos, então você está tão louco quanto ele aparenta estar.
Edward ergueu o braço e o puxou para trás como se fosse lhe dar um soco.
– Vá se ferrar, Nigel...
Colin investiu contra o anjo em um piscar de olhos, atacando pela direita, como no futebol americano, derrubou o homem e o imobilizou de bruços sobre a brilhante grama verde.
– Você não toca nele, companheiro – Colin grunhiu. – Eu sei que está chateado e deseja libertar Jim, mas não posso deixar que bata em Nigel. Não vai acontecer.
Nigel olhou para a mesa de jantar. Como Bertie e Byron se viraram para olhar, ele viu que eles estavam sentados como pássaros preocupados, seus corpos se estenderam, os braços caíram nas laterais, os olhos arregalados.
Tarquin tinha deitado no chão e colocado seu longo focinho sob a toalha para que não conseguisse ver nada.
A refeição estava mais que arruinada. E não apenas porque o espetáculo que aconteceu ali foi um desastre de se assistir: na verdade, Nigel não ia ser capaz de colocar nada no estômago. Esse jogo com Devina estava tomando péssimas direções de tantas maneiras... e ele estava paralisado pelas regras.
– Solte-me – Edward resmungou.
Colin deveria ter uma estrutura duas vezes mais leve que a do outro anjo, mas tinha uma força elástica além da média.
– Você vai ser legal, companheiro. Nada mais de socos ou vai ser derrubado outra vez.
– Está bem.
As palavras não foram qualquer tipo de rendição, mas Colin saiu de cima dele de qualquer maneira... provavelmente por saber que só poderia subjugar o homem de novo se fosse necessário.
Edward tirou os pedaços de grama verde que ficaram presos em seu casaco de couro como se fossem lantejoulas.
– Só por que Jim pode sobreviver a isso não significa que seja justo.
Com isso, ele desapareceu no ar.
Após um palavrão silencioso, Nigel observou o desaparecimento da marca deixada pelo corpo pesado de Edward, a grama se erguia, endireitava-se.
– Eles têm razão – Colin disse asperamente. – E a vadia não está jogando limpo.
– Jim se voluntariou para ela.
– Em uma situação que ela projetou. Não está certo e você sabe disso.
– Você quer que nós corramos o risco da derrota? – Ele o encarou. – Você quer perder por causa disso?
Colin espalmou a grama de suas mãos.
– Inferno. Mas que maldito inferno. – Nigel olhou para a marca do corpo que desaparecia em seu gramado.
– Concordo plenamente.
CAPÍTULO 31
A adega não era um lugar aonde Grier ia com frequência. Em primeiro lugar, as garrafas de vinte dólares que enchiam suas taças todas as noites mal valiam o subir e descer de escadas. Em segundo, com sua porta que era como um cofre de banco, seu teto baixo e estantes que percorriam todas as paredes, ela sempre sentia como se lá fosse uma prisão.
E, como pode imaginar... quando seu pai fechou os três no caixão apertado, o peso da presença de Isaac diminuiu o local para o tamanho de uma caixa de lenços de papel e ela sentiu como se não pudesse respirar.
Havia uma mesa polida no centro do espaço e ela ocupou uma das quatro cadeiras. Quando Isaac se sentou à frente dela, foi difícil não se lembrar de quando o encontrou na cadeia: tinha sido bem assim, os dois frente a frente.
Só que agora, apesar do fato que nenhum dos dois estava algemado, ela não conseguia deixar de ter a sensação de que os dois estavam amarrados juntos... e que as rolhas em todas as garrafas eram um pelotão de fuzilamento na iminência de obedecer ao sinal para atirar.
Deus, quando ele foi trazido para se encontrar com ela pela primeira vez, ela não tinha ideia de onde estava se metendo.
Mas, alguém já soube? Quando as pessoas passam por suas vidas cotidianas, escolhas rápidas e eventos aleatórios podem, algumas vezes, girar em um tipo de força centrífuga que as suga e, depois, as expele em um endereço totalmente diferente de onde começaram.
Mesmo quando nunca saem de casa.
Seu pai sentou-se mais próximo da porta e uniu as mãos quando colocou os cotovelos no topo da mesa.
– Estamos seguros aqui embaixo – disse ele, apontando para uma saída de ar no pequeno teto que tinha duas bandeiras vermelhas tremendo com a brisa. – O sistema de ventilação é iniciado a vários quarteirões de distância daqui, assim, não há preocupação com uma contaminação. Há também um túnel e um transmissor de ondas de rádio que irá embaralhar nossas vozes se estivermos sendo gravados.
O túnel era uma novidade e Grier olhou em volta. Até onde ela poderia ver, todas as prateleiras estavam fixadas na parede e o chão era de pedra, mas dado os outros pequenos truques na casa, ela não poderia afirmar que estava surpresa.
Isaac se manifestou.
– Se eu tivesse que ir até alguém e conversar com essa pessoa, quem seria?
– Isso depende de como...
– E quanto à mamãe? – Quando Grier cortou, interrompeu, descarrilou, ela olhou para o rosto de seu pai, procurando por contrações ao redor dos olhos e da boca. – E quando ela morreu? Foi mesmo de câncer?
Embora tivesse sido há sete anos, aqueles dias finais horríveis ainda estavam tão vívidos e ela se infiltrou neles, procurando por rachaduras nas paredes dos acontecimentos, em busca de lugares onde as coisas que pareciam de um jeito pudessem ser de outro.
– Sim. – Seu pai disse. – Sim... ela... Sim, aquilo foi câncer. Eu juro.
Grier exalou e achou difícil imaginar que ela estivesse realmente aliviada por ter sido aquela doença horrível. Mas era muito melhor a Mãe Natureza ter sido a culpada. Muito melhor que aquela tragédia não precisasse ser reescrita. Uma era mais do que suficiente.
Ela limpou a garganta. Assentiu.
– Tudo bem, então. Tudo bem.
Uma mão quente cobriu a dela e a apertou. Como as mãos de seu pai estavam sobre a mesa, ela percebeu que era Isaac. Quando ela olhou para ele, Isaac quebrou a ligação, seu toque durou apenas o suficiente para que ela soubesse que ele estava ali com ela, mas não de maneira que ela se sentisse reprimida.
Deus, as contradições que havia nele. Brutal. Sensual. Protetor.
Com um tapa mental, ela voltou a se concentrar em seu pai.
– Você estava dizendo alguma coisa?
Ele balançou a cabeça e se recompôs antes de olhar para Isaac de novo.
– Até que ponto você está disposto a ir?
– Eu não vou comentar sobre os outros soldados em atividade – disse Isaac. – Mas quanto ao que se tratar das minhas atribuições, vou até o fim. As coisas que fiz para Matthias. O que sei sobre ele e sobre o segundo na linha de comando. Onde os dois me enviaram. O problema é: isso é uma colcha de retalhos... Há muita coisa a qual só conheço em parte.
– Deixe-me mostrar uma coisa.
Seu pai se levantou da mesa e, antes que ela pudesse ver o que ele fez, uma seção de prateleiras veio para frente e deslizou à esquerda, expondo um conjunto de segurança em meio à parede de pedra. A porta resistente foi aberta pelas impressões de toda a palma de sua mão em um painel e o interior não era muito grande – um pouco maior que um bloco de notas na horizontal e não tinha mais que quinze centímetros de altura.
Ele voltou à mesa com uma pasta grossa.
– Isso foi tudo o que consegui reunir. Nomes. Datas. Pessoas. Lugares. Talvez isso ajude a ativar sua memória. – Ele bateu sobre a capa da frente. – E vou descobrir a quem recorrer. Não há como saber com certeza quem está envolvido no círculo de relações de Matthias: conspirações governamentais têm grossas raízes, mas também possuem garras que você não consegue ver. A Casa Branca não é uma opção e é uma questão federal, então, contatos da União não vão nos ajudar. Mas eis o que eu penso...
A voz de seu pai tornava-se mais poderosa a cada palavra, a força crescente do propósito o transformava no pilar que ela sempre acreditou que fosse. E, enquanto ele descrevia os planos, ela sentiu uma mudança no centro de seu coração.
Embora isso se devesse muito a algo que Isaac havia falado. Nenhum de nós sabe no que está entrando até ser tarde demais...
O irmão dela tinha sido um drogado muito amado, um viciado de primeira ordem que teria morrido pelas suas próprias mãos em algum momento – embora essa não fosse uma justificativa para o que tinha sido feito com ele, era a simples realidade da situação. E ela se surpreendeu, na época, em como seu pai ficou desesperado com a perda. Ele e Daniel não mantinham contato há pelo menos um ano antes daquela noite terrível: depois da última internação em mais uma clínica de reabilitação caríssima ter caído no esquecimento, o pai atingiu seu limite assim como muitos pais e familiares faziam. Ele ofereceu tudo o que podia para seu filho, andou com toda dificuldade por uma década nos caminhos da recuperação que deram uma esperança traiçoeira, mas era inevitável que se seguissem longos e obscuros meses em que ninguém sabia onde Daniel estava ou, até mesmo, se estava vivo.
Contudo, seu pai estava inconsolável em sua morte. Ao ponto dele passar uma semana em uma cadeira com nada além de uma garrafa de gim ao seu lado.
E agora ela sabia o porquê. Ele acreditava que era inteiramente responsável.
Enquanto ela o observava falar, notava a idade em seu rosto... as rugas ao redor dos cantos dos olhos e da boca, a ligeira inclinação na linha do queixo. Ele ainda era um homem bonito e, ainda assim, nunca se casou de novo. Será que foi pela bagunça na qual estava envolvido? Provavelmente.
Definitivamente.
Aqueles sinais da idade nele não eram apenas uma questão do tempo. Foi estresse, dor de cabeça e...
Mudando seu foco para Isaac, seu olhar estreito e parecendo um laser era intenso; sua íris pálida brilhava muito com uma luz de “vamos à guerra”. Engraçado, ele não tinha nada a ver com seu pai em termos de antecedentes, educação escolar, exposição, experiência. E, ainda assim, eles eram idênticos em muitos aspectos.
Especialmente unidos na missão comum de fazer o certo.
– Grier?
Sacudindo-se, ela olhou para seu pai. Ele estava segurando algo em sua direção... um lenço? Mas por quê...
Quando ela sentiu algo atingir seu antebraço, olhou para baixo. Uma lágrima prateada se recolhia após a queda de seu olho, aglomerando-se em um pequeno círculo brilhante em sua pele.
Outra escorreu e atrapalhou todo seu esforço – mas, então, as duas uniram forças e a massa duplicou.
Ela pegou o lenço e enxugou suas lágrimas.
– Eu sinto tanto – seu pai disse.
Ela enxugou o rosto e redobrou o linho fino, lembrando-se dele fazendo a mesma coisa quando estavam na cozinha.
– Sabe? – ela murmurou. – Desculpas não significam nada. – Ela apoiou a mão na pasta que ele tinha colocado na mesa. – Isso... o que vocês dois estão fazendo... isso é tudo.
A única coisa que poderia consertar qualquer aspecto sobre isso.
Para interromper a conversa mental, abriu a capa...
Ela franziu a testa e se inclinou. A primeira página era uma impressão da imagem de quatro fotografias de rosto. Todos homens. Todos eles pareciam diferentes versões étnicas de Isaac. Embaixo das imagens, com a caligrafia de seu pai, havia nomes, datas de nascimento, números de cadastro na segurança social, a última vez que foram vistos... embora nem todos os dados estivessem concluídos. E três deles tinham a palavra FALECIDO embaixo de suas fotos.
Ela virou para próxima página e a próxima. A mesma coisa. Tantos rostos.
– Eu quero que Jim Heron entre nessa – Isaac disse. – Quanto mais estiver disposto a ir adiante, melhor...
– Jim Heron? – o pai dela disse. – Você quer dizer Zacarias?
– Sim. Eu o vi mais cedo essa noite e na noite anterior. Eu pensei que ele tinha sido enviado para me matar, mas, ao que parece, ele quer me ajudar... ou é assim que diz.
– Você o viu?
– Ele estava com dois rapazes. Eu nãos os reconheci, mas parecem com caras que poderiam ser das operações extraoficiais.
– Mas...
– Oh, meu Deus. – Grier sussurrou, aproximando uma das páginas. – É ele.
Quando ela apontou para uma das fotos, ouviu seu pai dizendo: – Jim Heron está morto. Atiraram nele em Caldwell, Nova York. Há quatro noites.
– É ele. – Ela repetiu, batendo na foto.
A voz de Isaac soou confusa.
– Como sabia? Grier... como você sabia?
Ela olhou para ele.
– Sabia o que?
– Que era Jim Heron.
Movendo seu dedo, ela viu o nome Zacarias abaixo da foto.
– Bem, eu não sei quem ele é, mas esse é o homem que apareceu no meu quarto na noite passada. Como um anjo.
CAPÍTULO 32
Aquilo não estava funcionando.
Lá no fundo do Inferno, onde ela mantinha suas almas capturadas e onde o ar rarefeito ecoava os gemidos de seus servos oleosos, Devina estava sofrendo de um caso grave de mau humor.
Razão pela qual ela mandou todos embora.
Parando de repente, ela observou o pedaço de carne amarrado com um fio metálico em sua mesa. À luz das velas, Jim Heron era uma obra ao estilo Pollock com sangue, cera negra e outros líquidos de vários tipos, e ele estava tendo dificuldades para respirar através de seus lábios inchados e rachados. Em seu estômago, havia um roteiro de escavações que ela tinha feito com suas próprias garras e as coxas dele estavam bem marcadas com seu nome e seus símbolos.
Seu pênis tinha sido utilizado até ficar tão em carne viva quanto o resto do corpo dele.
E, ainda assim, ele não chorou ou implorou ou sequer abriu os olhos. Nenhuma blasfêmia, nada de lágrimas. Nada.
Ela não tinha certeza se deveria ficar chateada consigo e com seus ajudantes por não terem se esforçado o suficiente... ou se estava se apaixonando pelo bastardo.
De qualquer maneira, ela tinha a determinação de conseguir um pedaço dele. A questão era como.
Devina estava bem consciente de que havia duas maneiras de quebrar alguém. A primeira era de fora para dentro: você esculpia a pele, os ossos e o sexo do indivíduo até que a dor física, a exaustão e a vergonha aniquilavam seu núcleo mental. A segunda era o inverso: encontrar a fenda que havia dentro da pessoa e martelar com palavras até que tudo desmoronasse.
Normalmente, a primeira era suficiente para ela, tendo em conta todas as ferramentas à sua disposição – e também era divertido e, portanto, era por onde ela sempre começava. A segunda era mais complicada, embora não menos satisfatória à sua maneira. Todas as pessoas tinham chaves para abrir suas portas internas; ela só precisava classificá-las e descobrir aquela que a levaria para dentro da mente e do coração do indivíduo.
No caso de Jim Heron... Bem, estava claro que ele ia dar trabalho. E aquilo ainda abriria uma competição pelo brinquedo favorito com Adrian.
O que escolher, o que escolher...
A mãe dele. Sua mãe era uma boa, mas Devina não era capaz de ficar calma para se aproximar da realidade e ele deveria ser inteligente o suficiente para descobrir que ela estava fingindo...
Felizmente, havia outra solução que estava sob seu controle.
Fora do alcance da luz das velas, presas em suas paredes viscosas, as almas daqueles que ela capturou se contorciam. Mãos, pernas, pés e cabeças faziam aparições ondulantes que nunca quebravam a superfície suspensa, o torturado sempre procurava por uma saída.
A satisfação de ver sua coleção a distraiu, mas também a deixou faminta: ela tinha que ter Jim também como um troféu entre os outros. Estava desesperada para tê-lo dentro dela. No início, tinha sido um mero jogo; agora, depois daquela sessão, era muito mais que isso.
Ela queria obtê-lo.
Voltando a focar o rosto dele, ela achou sua expressão quase impossível de compreender. Como um homem poderia ter passado por tanta coisa... e sem sequer fazer uma careta. E também sem medo do que estava por vir.
Contudo, ela ia consertar isso.
E ela gostava de pensar que esse poder nele vinha daquela porção que ela compunha. Aqueles anjos de corações sangrando com sua contenção e moral sacrossantas... fracos, tão fracos. Ao ponto de ela não querer perder o jogo contra Nigel não apenas porque poderia governar a terra e os céus e tudo o que havia entre o sol e a lua... mas porque um bom tapa no traseiro daqueles maricas seria demais.
Contudo, Jim... ele era melhor que isso. Ele era mais parecido com ela no fundo de seu ser.
Que tragédia ter que enviá-lo à Terra em breve; mas o jogo, afinal, tinha que ser retomado. Entretanto, antes de ir, ela estava determinada em fazer uma impressão nele, dar a ele mais um pouco do que seria o Inferno Eterno. Afinal, os cortes em sua pele eram relativamente rasos. Porém, marcas na mente eram muito, muito mais profundas.
E imortais eram especialmente gratificantes nesse sentido, pois, conforme o cérebro persistia, assim era a memória – e isso significava que ela poderia deixar cicatrizes eternas.
Olhando a parede, que se estendia quilômetros acima dela, Devina pensou em sua terapeuta e no trabalho que estavam fazendo juntas. Aquele era um domínio que estava fora dos limites de sua “recuperação”, e sua situação com Jim era mais uma prova de como seu probleminha de acumular objetos viria a calhar.
Você nunca sabe do que pode precisar.
Estendendo a mão, puxou uma das formas mais esbeltas, movendo-a dentre as outras almas, chamando-a até ela. Quando estava no chão, ela convocou a alma e a vestiu da forma corpórea que costumava exibir na Terra.
Devina sorriu frente a isso. Tanta utilidade em um pacotinho tão insosso e esquecível.
Voltando-se para a mesa, ela disse: – Jim? Tenho alguém aqui que você vai querer ver.
Deitado sobre a mesa de Devina, ele duvidou. Duvidou disso, de maneira muito sincera.
Além disso, naquele ponto, visões provavelmente não eram convidativas.
Nada mais doía, o que tornava aquela droga toda muito mais fácil. No entanto, a troca que fez por aquela feliz dormência foi sua consciência recolhida a um canto escuro de seu interior. Ele ainda não tinha deitado a cabeça para tirar um cochilo, mas estava chegando lá: a audição tinha atingido a fase do algodão, onde tudo estava abafado e as coisas estavam bem frias dentro de sua pele.
Os sinais clássicos do choque faziam com que ele se perguntasse se ela tinha, de fato, a capacidade de matá-lo.
Ela não tinha finalizado Adrian, mas será que aquilo não seria um capricho do afeto?
– Vou deixar vocês dois se conhecerem.
A satisfação de Devina não era uma boa notícia, considerando que ela fez todo o inumano possível para acabar com ele afinal... Por quanto tempo? Horas? Tinha que ser.
Passos. Recuando.
Uma porta. Fechada.
Silêncio.
Contudo, alguma coisa estava com ele. Ele conseguia sentir a presença à sua esquerda.
Atrás de suas pálpebras fechadas, ele tinha certeza de duas coisas: Devina não devia ter ido muito longe e, seja lá o que foi que ela trancou com ele, estava perto.
A respiração foi a primeira coisa que ele notou. Macia, suspensa. Do tipo que você pratica quando está em modo de recuperação. Será que era sua própria respiração?
Não. O ritmo era diferente.
Ele virou a cabeça com cuidado em direção a coisa e babou, sua boca se livrou do que ele não conseguia engolir por causa do fio em volta do seu pescoço.
Seja lá o que estava com ele, soltou outra respiração suspensa. E, então, ele ouviu um sutil estalo.
Que diabos era aquilo?
Em dado momento, a curiosidade prevaleceu e ele rompeu uma de suas pálpebras... ou deu uma chance a elas, por assim dizer. Precisou de duas tentativas e ele teve que empurrar as sobrancelhas em direção à testa antes que as porcarias se abrissem...
No início, Jim não conseguiu compreender o que estava olhando. Mas o cabelo loiro não podia ser negado... aqueles cabelos longos e loiros que caiam sobre ombros frágeis.
A última vez que os viu tinha sido há dois dias. No banheiro de Devina.
Estava banhado de sangue.
A garota que tinha sido sacrificada para proteger o espelho de Devina estava vestida com uma capa manchada, seus braços finos cobriam os seios, uma pequena mão protegia a junção de suas coxas. Parecia, como milagre, que ela não estava marcada, mas o trauma estava ali: seus olhos estavam arregalados e horrorizados...
Só que eles não estavam na sala. Eles estavam nele... em seu corpo e nos restos brilhantes e pegajosos de tudo o que tinham feito com ele.
– Não... – A voz dele estava tão fraca que ele precisou puxar mais ar através daquela barreira de arame em sua garganta. – Não olhe... para mim. Afaste-se... Pelo amor de Deus, afaste-se...
Droga. Ele precisava de mais oxigênio, precisava fazer com que ela...
Os olhos dela encontraram os dele. O choque e o terror em sua face disseram mais do que ele precisava saber, não apenas do que tinha sido feito com ela por Devina, mas sobre o que a visão dele estava fazendo com aquela pobre garota.
– Não olhe para mim!
Quando ela se encolheu e retraiu-se, seu temperamento vacilou. Não que houvesse muito para conter – mas ele usou toda sua força naquele grito.
– Cubra o rosto – ele disse com a voz rouca. – Afaste-se e apenas... cubra o rosto.
A garota ergueu as mãos e se virou, sua coluna delicada destacava-se contra a capa conforme tremia.
Jim tinha puxado suas amarras involuntariamente durante a pequena sessão de exercícios com Devina. Agora, ele as empurrava.
– Você está se machucando – ela disse enquanto ele grunhia. – Por favor... pare.
A dor interrompia sua capacidade de fala e levou um tempo para dizer alguma coisa.
– Onde... Onde ela a mantém? Aqui embaixo?
– Na... na... – Sua voz era tão débil e, entre as palavras, seus dentes batiam, o que explicava o clique que ele tinha ouvido. – Na parede...
Seus olhos se atiraram em direção à escuridão, mas a luz das velas formava um bloqueio luminoso que seus olhos não conseguiam ultrapassar.
– Como ela faz isso? – Sem correntes, ele esperava.
E, droga, ele ia ferrar Devina por isso.
– Eu não sei – a garota disse. – Onde estou?
No inferno. Mas ele manteve isso para si.
– Eu vou tirá-la daqui.
– Minha mãe e meu pai... – ela caiu em lágrimas. – Eles não sabem onde estou.
– Vou dizer a eles.
– Como... – Quando ela olhou sobre seu ombro, seus olhos se fixaram sobre seu dorso degradado e ela empalideceu.
Ele balançou a cabeça.
– Não olhe. Prometa... não olhe mais para mim.
Mãos pálidas voltaram àquele belo rosto e ela assentiu.
– Meu nome é Cecilia. Sissy Barten, com ‘e’. Tenho 19 anos. Quase vinte.
– Você mora em Caldwell?
– Sim. Estou morta?
– Quero que faça uma coisa por mim.
Agora, ela deixou cair os braços e olhou para ele com firmeza.
– Estou morta?
– Sim.
Ela fechou os olhos como se outra onda de agitação atingisse seu corpo.
– Esse não é o Céu. Eu acredito no Céu. O que eu fiz de errado?
Jim sentiu algo quente no canto dos dois olhos.
– Nada. Você não fez nada de errado. E eu vou te levar para lá.
Nem que fosse a última maldita coisa que fizesse.
– Quem é você?
– Sou um soldado.
– Como no Iraque?
– Costumava ser. Agora eu luto contra essa vadia... ah, mulher que fez isso a você.
– Eu pensei que estava ajudando... quando a moça me pediu para carregar uma bolsa para ela. Eu pensei que estava ajudando... – Ela inspirou com força como se estivesse tentando se recompor. – Você não pode sair daqui. Eu tentei.
– Eu vou salvá-la.
De repente, a voz dela ficou mais forte.
– Eles machucaram você.
Droga, ela estava olhando para ele de novo.
– Não se preocupe comigo... tem que se preocupar consigo mesma.
Um som, como de algo caindo ou talvez uma porta de metal se fechando, ecoou, assustando a garota e focando Jim. Sem dúvida, Devina chegaria logo e colocaria Sissy de volta ao seu lugar, então, ele tinha que agir rápido. Ele não sabia quando voltaria ali ou como exatamente poderia libertar sua garota.
Sissy, era esse o nome.
– É ela? – Sissy perguntou tensa ao ouvir o som de passos ao longe. – É ela, não é? Eu não quero voltar para a parede... por favor, não deixe que ela...
– Sissy, ouça. Eu preciso que você se acalme. – Ela tinha que ter algo para focar, algo para manter sua mente sã enquanto ele descobria como voltar ali para salvá-la. Sondando sua mente, ele tentou criar uma imagem, algo para acalmá-la.
– Eu preciso que me ouça com atenção.
– Eu não posso voltar para lá!
Droga, o que fazer para que ela se concentre?
– Eu tenho um cachorro – ele desabafou.
Houve uma agitação, como se ele a tivesse surpreendido.
– Você tem?
Quando os passos se aproximaram, ele quis soltar um palavrão.
– Sim, eu tenho.
– Eu gosto de cachorros – ela disse em voz baixa, seus olhos fixos nele.
– Ele é cinza, meio loiro e peludo. Seu pelo... – os passos foram ficando cada vez mais altos e Jim falou rápido. – Seu pelo é grosso, como se fosse feito das sobrancelhas de um senhor idoso e ele tem patinhas. Ele gosta de sentar no meu colo. Ele tem uma perna manca que aparece quando ele corre rápido demais e ele gosta de comer minhas meias.
Uma fungada e uma respiração suspensa. Como se soubesse o que estava se aproximando e ela ia fazer o melhor que podia para segurar a corda de segurança que ele estava tentando oferecer.
– Qual o nome dele?
– Cachorro. Eu o chamo de Cachorro. Ele come pizza e sanduíche de peru e dorme no meu peito. – Mais rápido. Mais rápido com as palavras. – Você vai conhecê-lo, ok? Você vai levá-lo para passear em um gramado e... Sabe quando se dobra uma meia dentro de outra?
– Sim. – Agora havia urgência. Como se ela quisesse o máximo que ele poderia dar. – Uma bola de meia.
– Bolas de meia... é isso. – Rápido, rápido, rápido. – Você vai pegar uma bola de meia, vai jogar e ele vai trazê-la de volta para você. O sol é alto, Sissy. Você pode senti-lo em seu rosto...
– Quando você volta? – ela sussurrou.
– Assim que eu puder. – Ele estava falando de maneira confusa agora, os passos se aproximavam e ele sabia que estavam usando saltos agulha afiados e pontudos.
– Lembre-se do Cachorro. Está me ouvindo? Quando sentir que está perdendo, lembre-se do meu cachorro...
– Não me deixe aqui...
– Vou voltar por você...
O rosto de Sissy estava cheio de lágrimas quando ela estendeu a mão para ele.
– Não me deixe aqui!
Em um instante, ela assumiu a forma que tinha quando ele a viu sobre a banheira, aquela capa desapareceu, deixando-a nua, seu corpo estava profanado, seus cabelos loiros desgrenhados e emaranhados com sangue.
De repente, seus olhos saltaram para um canto distante e seus lábios manchados começaram a tremer.
– Não!
Ela colocou as mãos para cima como se quisesse afastar golpes, curvando-se para se afastar deles...
Dessa maneira, ela se foi. E Devina, a bela e diabólica Devina, entrou sob a luz das velas.
Jim perdeu essa.
Parou na metade.
Perdeu como um filho da mãe.
Quando ele xingou a assassina sangrenta, era tudo sobre a menina. A moça inocente que tinha sido tirada de sua família por um demônio, puxada para um buraco e aprisionada ali... e obrigada a ver o que restou de um homem torturado.
A raiva era uma bomba nuclear que explodia dentro dele...
A luz branca entornou de suas órbitas, explodindo na sala, iluminando as brilhantes paredes pretas que se estendiam para cima em direção ao infinito. A liberação da luz consumiu sua forma física, libertando-o das amarras de Devina, levando-o a percorrer o espaço em uma rajada de moléculas soltas que sopraram as velas e derrubaram seus suportes.
Aglutinando sua forma intensamente, ele se virou... e foi ao ataque de Devina.
Agora, era ela quem se preparava para o impacto, seu cabelo moreno foi arrancado de seu couro cabeludo com o furacão explosivo que ele produziu, a pele de seu rosto foi de encontro a sua estrutura óssea quando ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre o chão de pedra.
Assim que ele a alcançou, Jim reuniu sua nova forma em uma lança certeira e atirou-se direto em direção ao peito dela.
Jim entrou no corpo dela e lançou a vadia longe, todas as partes dela saíram voando, pedaços de sua pele, emaranhados de entranhas escorregadias e quilos de carne vermelha escura se espalharam pelas paredes de sua masmorra.
O que sobrou foi um buraco negro da mesma massa e energia que o compuseram – ele estava pronto para atacá-la assim.
Só que, evidentemente, ela não estava interessada em uma luta corpo a corpo: sua sombra distorcida saiu da sala e desceu um corredor, iniciando uma fuga.
Mas que... Droga!
Jim correu atrás dela...
E se chocou com o equivalente metafísico de uma casa de tijolos.
O impacto chocante da barreira invisível o enviou para trás e ele assumiu sua forma corpórea mais uma vez ao deslizar em carne viva no chão de pedra.
Ele teve um breve momento para soltar um “mas que inferno!” antes que o sinal de fim de jogo do seu corpo piscasse e ele caísse de costa em exaustão absoluta.
Quando sua raiva passou, nada mais havia nele e um cansaço fatal sangrou de seu coração que batia de maneira estranha e se espalhou por ele como uma erva daninha que se enraíza e floresce. Não mais sendo capaz de erguer a cabeça, ele deixou a coisa descansar na pedra e apenas respirou, mal notando que o ar estava saturado com cheiro de morte recente e com uma pitada acre da fumaça das velas.
– Sissy – ele disse na escuridão. – Estou bem aqui...
Ele não tinha ideia de se ela podia ouvi-lo e não houve resposta. Apenas um som estranho, fundido... sem dúvida, as almas tentando se livrar de sua prisão.
Ele odiava pensar que sua garota estava presa lá.
Odiava o fato de tê-lo visto daquela maneira.
Com esse pensamento, a dor o incomodou como se tivesse sido esfaqueado com uma barra de ferro. Oh, Deus... aquela pobre criança...
Um aumento súbito de emoção veio sobre ele em uma onda: nu, arrasado e imundo, Jim encolheu-se para um lado e chorou sufocado e com grande sofrimento, suas lágrimas quentes e salgadas percorriam a pele de seu rosto arrasado.
Ele nunca se preocupou em se machucar. Nunca. Mas suas falhas... seus fracassos eram insuportáveis. E agora havia duas mulheres que ele não tinha sido capaz de salvar: sua amada mãe e Sissy... Nas duas ocasiões, ele chegou tarde demais no local, nas duas ocasiões, o dano já havia sido feito antes dele chegar.
Com uma precisão horrível, ele viu sua mãe no chão da cozinha da fazenda, nada além de estraçalhada... e Sissy sobre a banheira.
Agora Sissy também, tentando se afastar do demônio.
Era demais para suportar, o peso de suas falhas era grande demais para suportar, quanto mais para continuar a lutar...
O som de seu nome abriu seus olhos e diminuíram os soluços.
Com um esforço enorme, ele virou a cabeça e olhou para cima.
Muito, muito, muito acima, a uma galáxia de distância de onde ele estava, um pontinho de luz se recolhia e ficava mais forte, começando de novo como se fosse a cintilação minúscula de um pisca-pisca na árvore de Natal... e, então, se intensificou para 25, depois 60 e, então, parecia uma lâmpada de 100 watts.
A iluminação caía sobre ele com a velocidade e a eficiência de uma pluma através do fino ar... dentes de leão soprados pela boca de uma criança... flores do campo sob uma brisa suave...
Levou um tempo bastante longo para que sua mente abrangesse a desconexão entre seu desespero épico e o delicado caminho de luz. Fechando os olhos, ele parou de assistir e se entregou ao estremecer aleatório de seu corpo espancado.
– Jim.
Uma voz masculina. Sobre ele.
Jim abriu as pálpebras para ver que a luz havia se tornado um homem de cabelos escuros com asas douradas magníficas.
Colin.
O arcanjo número dois.
– Ei, companheiro – o cara disse ao se ajoelhar. – Eu vim para te tirar daqui.
De algum lugar, só Deus sabe de onde, Jim convocou energia suficiente para falar.
– Leve-a no meu lugar. Deixe-me aqui... leve-a no meu lugar. Sissy. A menina...
– Isso eu não posso fazer. Eu não deveria estar aqui agora. – O anjo se inclinou e reuniu a forma arrasada de Jim em seus braços. – Mas você vai precisar de um tempo para se recuperar antes que possa sequer se sentar, quanto mais sair daqui por si mesmo. E a guerra continua sem você.
Nenhum argumento para seu nível de energia, mas Deus, ele gostaria que Sissy estivesse um milhão de quilômetros longe dali.
– Deixe-me – ele gemeu.
– Não nessa vida. Você quer Sissy liberta? Derrote Devina. É assim que vai libertar sua garota desse pesadelo.
Quando começaram a levitar, a cabeça de Jim pendeu para um lado e ele os viu subir, subir, afastando-se metros e metros – inferno, eram quilômetros – das paredes negras. Ao longo do caminho, a forma brilhante de Colin iluminava o deslocamento, agitando a superfície, e rostos se sobressaíam na opacidade, através da barreira líquida, como se aqueles que estavam presos tentassem vê-los, pegá-los, juntar-se a eles na fuga. De todas as direções, mãos se estendiam. Contorcendo-se em formas grotescas como se a barreira maleável da prisão provasse ser rígida demais para ser trespassada.
Onde estava a garota dele? Sua bela e inocente garota que...
O cérebro de Jim estava esgotado, a trama de seus pensamentos se desembaraçava, a consciência começou a desistir daquele fantasma e se aprofundou no berço rígido das paredes de seu crânio.
Enquanto desmaiava, sua última missiva mental foi uma oração: que Sissy se lembrasse do Cachorro e se agarrasse a essa esperança até que Jim pudesse fazer disso realidade.
CAPÍTULO 33
Na adega, com a imagem de Jim Heron exposta no dossiê, Isaac estava certo que os dois Childes tinham perdido a cabeça.
– Ele não está morto. – Isaac lançou olhares para pai e filha. – Eu não tenho certeza do que você viu ou o que ouviu...
– Ele esteve no meu quarto. – Grier balançou a cabeça. – Foi assim que fiquei sabendo que você estava tendo o pesadelo. Ele apontou o caminho e, em seguida, eu fui até você. Pensei que era um sonho, mas por que identifiquei o rosto dele na foto de maneira tão clara?
– Porque você o viu. Ontem à noite, na luta. Ele estava comigo.
– Não, ele não estava.
Certo. O cara esteve bem na frente dela.
– Você disse que era um anjo.
– Bem, parece que ele tinha asas.
Teoricamente, era possível que Heron tivesse feito uma visita a ela – mas com o alarme de segurança, era possível concluir que ele deve ter ficado distante das portas francesas da sacada. Ao acordar e ficar meio desorientada, ela concluiu que Jim estava do lado de dentro. E isso foi apenas uma coincidência com o pesadelo... Assim como as asas? Jim Heron nunca foi santo, muito menos um anjo. Seja lá o que ela tinha visto, devem ter sido reflexos dos vidros. Tinha que ser.
O pai de Grier falou.
– Estou dizendo, ele está morto. Eu recebo um alerta de rastreadores na internet com os nomes dos agentes que conheço... e ele levou um tiro em Caldwell, Nova York, há quatro dias.
Isaac revirou os olhos.
– Não acredite em tudo que lê. Eu falei com o cara no jardim dos fundos ao anoitecer. Frente a frente. Confie em mim, ele está vivo e precisamos dele. – Isaac ficou em pé. – Os amigos dele estão vigiando a casa enquanto conversamos e, pessoalmente, acho que Heron declarou uma guerra velada a Matthias, então, tenho plena certeza de que podemos chamá-lo para trabalhar conosco, concluindo que eles ainda não o mataram. Acredito que o status dele é de desaparecido em ação, no momento.
– Espero que possa agregá-los, então, pois quanto mais pessoas para acompanhá-lo, melhor. – Childe bateu uma de suas mãos sobre os dossiês. – Deve revisar tudo isso essa noite, preencher as lacunas, tentar encaixar o que sabe... mesmo que não queira entregar seus companheiros soldados, isso pode ajudar nas suas lembranças. Vou subir até o corredor do banheiro e usar meu telefone de segurança para fazer algumas ligações e estabelecer as coisas o mais rápido que puder.
– Entendido. Mas eu gostaria que o senhor ficasse longe das janelas e não saísse da casa.
– Vou ser cuidadoso. – Childe lançou um olhar à sua filha. – Prometo.
Quando o pai de Grier desapareceu escada acima, Isaac verificou o transmissor de alerta. O aparelho ainda mostrava que o sinal tinha sido enviado, mas ainda não tinha recebido resposta. O que significava que ele ou estava muito abaixo do solo naquela adega para receber isso... ou Matthias estava dando um tempinho para entrar em contato.
Ele olhou para Grier.
– É melhor eu ficar lá em cima por um tempo no caso deles tentarem entrar em contato comigo.
– O que você vai fazer? Se eles quiserem se encontrar com você imediatamente?
– Tenho uma margem de tempo até eu me entregar. Mas seu pai precisa fazer alguns milagres rapidamente. – E, por favor, Deus, faça com que Jim Heron esteja bem... e que apareça logo.
Ela acariciou os dossiês com sua mão elegante.
– Ele é bom com milagres. Na verdade, é a especialidade dele. Você deveria vê-lo negociando. – Seus olhos baixaram até a pasta. – Vou ficar aqui. Quero ver se reconheço algum desses homens. Havia muitos que batiam na porta durante a minha infância e eu sempre me perguntei quem eles eram.
Quando ela ficou em silêncio, ele deu um passo adiante. E depois outro. Em volta da mesa, até que estivesse ao lado dela.
Quando ela levantou o olhar para ele, Isaac colocou para trás com cuidado uma mecha de cabelo que estava em seu rosto.
– Não vou perguntar se está bem, pois como poderia, não é?
– Você já sentiu... como se não reconhecesse sua própria vida?
– Sim. E isso foi o que me levou a mudar.
Bem, aquele tinha sido o primeiro passo. Ele estava começando a acreditar que ela era o segundo. E com o pai dela e Jim Heron... três era o número mágico. Se Deus quisesse.
– Sabe de uma coisa? – ela disse. – Estou realmente feliz em ter te conhecido.
Isaac recuou.
– Pelo amor de Deus, como pode dizer isso?
– Você foi a chave que destrancou as mentiras. – Ela voltou a encarar a foto de Jim Heron. – Acho que sem você nada disso seria esclarecido. Apenas algo que pudesse estilhaçar assim...
Quando ela não completou, ele deu um passo para trás.
– Sim. Esse sou eu.
Ela assentiu de maneira distraída, virou a página e se perdeu nos rostos dos homens que eram exatamente como ele... homens que haviam arruinado a família dela.
Estilhaçado.
Será que os agentes que tinham matado seu irmão estavam ali? Com algumas notas?
De alguma maneira, ele duvidava que o pai os colocasse ali.
– Posso lhe servir um pouco de vinho? – ele perguntou, antes de sair.
Grier sorriu um pouco.
– Estou cercada disso.
– Verdade. – Ele deveria ter oferecido café. Água. Cerveja. Uma troca de óleo. Qualquer coisa que ele pudesse fazer por ela ou dar a ela para acalmá-la.
Bem, agora, com essa brecha, havia algo melhor que poderia fazer. Ele poderia deixá-la.
– Vou estar lá em cima. – Quando ele alcançou a porta, olhou para trás. Ela estava enterrada nos dossiês, sobrancelhas tensas, braços no colo ao inclinar-se sobre a mesa.
Sim, deixá-la tornaria as coisas muito melhor.
Ele se virou e subiu as escadas para a cozinha de dois em dois degraus. Parando na base da escada, ele ouviu alguma coisa. Não um som. O que fazia sentido uma vez que o pai dela tinha se trancado em um banheiro protegido.
Droga, ele não acreditava que estava prestes a denunciar Matthias. Mas, às vezes, a morte natural era boa demais para alguém. Melhor que apodrecer atrás das grades ou ficar tão aceso quanto a Times Square em uma cadeira elétrica.
Era quase como se ele estivesse destinado a encontrar Grier e seu pai nesse exato momento de sua vida – os dois tinham sido predestinados a lhe mostrar algo muito mais honroso do que havia planejado fazer.
Contudo, Jim Heron se mostraria importante também.
Apalpando uma de suas armas, saiu para o jardim pela porta dos fundos.
Evitando a luz que era sensível ao movimento, ele aguardou nas sombras sem fazer barulhos e, claro, um dos amigos de Jim se aproximou um momento depois. No instante em que colocou os olhos no cara, estava claro que o clima permanecia ruim: o cara com a trança tinha os lábios apertados e o olhar rígido como de um homem que ainda não sabia onde um dos membros de seu time estava.
– Jim ainda não pôde vir? – Isaac perguntou. Mesmo sabendo que a resposta era um claro “não”, dado àquela expressão.
– Espero que possa vê-lo pela manhã.
Isaac olhou para seu relógio.
– Não sei se tenho todo esse tempo.
– Arranje algum.
Fácil para ele dizer.
– Vai me dizer se ele aparecer?
Quando o cara assentiu, Isaac ficou muito preocupado.
– Ele está bem? – Quando o cara balançou a cabeça devagar, Isaac soltou um palavrão.
– Você vai me dizer o que está acontecendo? – Silêncio. – Sabe? Para sua informação, as pessoas pensam que ele morreu.
– Tudo que posso dizer é que... neste momento, ele gostaria de estar morto.
Adrian observou enquanto Eddie conversava com Rothe perto da porta dos fundos e mesmo Ad sendo intrometido como ninguém, ele não se importava com o que estavam dizendo.
Nigel. Aquele filho da mãe do Nigel.
Pensava que era o “Sr. Acima de Tudo Quanto é Mais Sagrado”.
Que estava mais que disposto a deixar seu maior trunfo ser usado e abusado pelo inimigo apenas porque era bichinha demais para arregaçar as mangas e nocautear Devina.
Enquanto isso, Jim era um equipamento de ginástica para um bando de babacas pervertidos.
Cara, ele apenas veio com aquela história de não poder fazer nada. Se Ad tivesse um de seus amigos capturado e ele pudesse libertá-lo? Não importava o que ele tivesse que fazer, o sacrifício que isso fosse requerer, por onde tivesse que passar: ele traria o pobre filho da mãe de volta. E onde estava seu chefe agora? Jantando.
Aquilo fazia com que ele desejasse enfiar a sobremesa no traseiro de Nigel.
Adrian esfregou o rosto com tanta força que quase arrancou o nariz. O problema era: a pequena oficina de Devina não era acessível a ele ou a Eddie, a menos que saltassem através de seu espelho – caso contrário, ela tinha que levá-lo até lá... e ela o liberava dali apenas quando estivesse bem satisfeita.
Nunca antes.
Foi por isso que eles foram até Nigel. Havia rumores de que arcanjos poderiam descer ao inferno sob certas circunstâncias – ninguém sabia exatamente o que aquelas mocinhas tinham que fazer ou como funcionava. Contudo, a moral da história era que aqueles quatro pesos-pena eram sua única esperança...
Como se seu nome tivesse sido pronunciado em vão, Colin apareceu do nada, os cabelos escuros do arcanjo surgiram em frente ao rosto de Adrian.
– Droga! – Ad falou entre dentes ao pular para trás e segurar-se em um arbusto – que rapidamente se quebrou ao meio com seu corpo pesado.
Ele aterrissou como um saco de areia, mas não ficou parado. Levantando-se, assumiu uma postura que exigia uma explicação: aqueles rapazes não costumavam aparecer à toa na Terra.
– O que você está...
– Eu o tirei de lá.
Ad piscou, de repente ele não entendia o idioma. Espere um minuto. Ele tinha acabado de ouvir que...
– Jim? Você está falando de Jim?
– Está livre.
– Mas Nigel disse...
– Não estou discutindo isso. Eu tinha a opção de tirar alguém do covil de Devina e coloquei o pobre rapaz no hotel em que estão hospedados... ele precisa de cuidados.
Eddie se aproximou.
– Você o tirou de lá? Mas eu pensei que Nigel...
– Eu tenho que ir. – Colin deu um passo para trás e começou a desaparecer. – Vão ajudá-lo. Ele precisa.
– Obrigado. – Ad respirou, aliviado e enjoado: a recuperação de alguém que passou por uma das sessões de Devina era terrível. Principalmente porque as memórias daqueles momentos eram muito vívidas.
Colin balançou a cabeça ao desaparecer, sua voz era demorada: – Isso simplesmente não foi certo.
– Estou indo para o hotel – Adrian disse, desfraldando suas asas para se elevar no ar. – Fique de olho em Isaac...
Eddie segurou o braço dele com força.
– Deixe-me cuidar de Jim.
– Não.
– Essa não é bem sua área, Adrian. – O aperto de Eddie o manteve no chão, aquela grande mão espremia seus ossos e músculos. – E sabe disso.
– Pro inferno que não é.
Libertando-se, ele deu três saltos e saiu voando pelo ar, aprofundando-se na noite e impulsionando-se para oeste. O voo de volta para onde estavam hospedados foi irregular e acidentando – mas não por causa do vento. Era mais porque Eddie tinha razão, o filho da mãe.
Quando Ad chegou ao hotel, ele queria ir até os quartos atravessando as paredes, mas decidiu não arriscar: uma vez que o papel de bala interior que o envolvia estava solto e se debatendo, ele caiu no gramado e seguiu pela recepção. Ele tinha a sensação de que estava distraído e enjoado demais para atravessar madeira e concreto com sucesso.
O problema era: ele sabia exatamente como Jim estava.
Ao alcançar a recepção, uma mulher simpática atrás da mesa o cumprimentou: – Boa-noite, senhor. – Mas ele apenas acenou e iniciou uma corrida. Não houve espera pelo elevador, um casal estava fazendo check-in com seus filhos e tinham um carrinho cheio de bagagens. Mas mesmo com aquela situação tão conveniente, ele não era capaz de esperar tanto tempo para que as portas se abrissem para ele.
Pelas escadas. De dois em dois degraus. Algumas vezes três.
Quando chegou ao último andar, seu coração estava a mil por hora e não apenas porque tinha se exercitado. Ele não tinha a chave do quarto de Jim, então, pegou a sua mesmo e deslizou no vão da fechadura.
Ele abriu o caminho como uma explosão.
– Jim? Jim?
O brilho do banheiro iluminava a cama desarrumada onde ele e Eddie tinham estado com aquela garota na noite anterior, as roupas também estavam espalhadas por toda parte.
A porta que levava ao quarto de Jim estava meio aberta, o quarto estava escuro.
– Jim...?
Ele sabia que o anjo estava lá. Ele podia sentir o cheiro da fumaça de vela, do sangue fresco e de... outras coisas.
A pressa que havia no rapaz evaporou quando a realidade do que estava prestes a ver agarrou seu peito e o sufocou. Mas ele não ia voltar atrás. Ele era um idiota de primeira ordem, sempre foi. Contudo, não era um maricas para fugir de situações difíceis.
Adrian passou pela porta entre os dois quartos e se inclinou.
– Jim.
A luz no banheiro atrás dele cortava um caminho ao longo da escuridão e parava aos pés da cama do anjo como se fosse educada demais para mostrar sua condição.
Depois que Adrian atravessou o batente, precisou de um momento para que seus olhos se ajustassem.
Com um sussurro, ele prometeu: – Eu vou matar aquela vadia...
Jim estava deitado de lado, enrolado em si mesmo, como se tentasse conservar seu próprio calor, e tremia por completo. Um cobertor foi puxado – sem dúvida, pelo arcanjo – sobre seu corpo grande e maltratado e o Cachorro estava bem próximo de seu rosto, ajeitado em formato de bola, sem se mover.
Quando Adrian se aproximou, o animal se moveu um pouco, mas não levantou a cabeça, permanecendo nariz a nariz com Jim.
O anjo parecia estar respirando, seu peito subia e descia, um chiado suave saía por sua boca machucada. Seu cabelo estava embaraçado e havia sangue em seu rosto, feições que, há não muito tempo eram suas, desapareceram graças às feridas enormes.
Adrian sentou-se lentamente.
– Jim?
Sem resposta, então, ele tentou repetir o nome de guerra mais algumas vezes. Em dado momento, as pálpebras de Jim se ergueram.
– Ei... – Adrian sussurrou.
Ele gemeu e, em seguida, seus olhos se fecharam e o corpo estremeceu sob o cobertor como se estivesse tendo um ataque.
Se aquilo era algo parecido com o que Adrian passou – e dada a forma como o cara aparentava, era quase idêntico –, o que Jim realmente queria era uma banheira de água quente seguida por uma ducha. Mas era cedo demais para isso. Medicar primeiro – havia muitos ossos quebrados e contusões para tratar – o que era o peso da dupla natureza de um anjo: ser real e irreal ao mesmo tempo significava que pelo menos metade de você poderia se ferrar muito e a droga não se revertia imediatamente.
Adrian se levantou e foi até o aquecedor que estava debaixo da janela. Girando o botão para o modo “sauna”, ele tirou a jaqueta de couro e fechou a porta que dava para o outro quarto, trancando-os ali. Então, ele sentou na cama, se estendeu sobre o fino cobertor e colocou seu peito nas costa do anjo para aquecê-lo.
Enquanto estava deitado, ouvindo um zumbido que vinha do aquecedor, sentia os tremores ao longo do tronco e dos outros membros de Jim. Parte disso era o processo de cura, que de algumas maneiras era mais doloroso que o surgimento das lesões. E outra parte disso era o frio do choque traumático.
E outra parte eram as memórias, sem dúvida.
Ele queria colocar um braço em volta do cara, mas isso faria com que Jim se sentisse muito desconfortável: quando esteve nessa condição, ele deitou nu, sem sequer um lençol sobre sua pele arranhada.
Depois de um tempo, o calor crescente que se espalhou do aquecedor os alcançou, fazendo arcos e descendo pelo ar. Jim, obviamente, sentiu o fluxo, pois respirou longamente e exalou em um vago suspiro.
Deitando ao lado do outro anjo, Adrian já tinha esperado uma vez que seria assim que Jim acabaria e foi o que aconteceu mesmo, até certo ponto. Ele sabia que Devina queria o cara... desde a primeira missão, desde àquela primeira noite no clube em Caldwell. E ele serviu Jim de bandeja para ela.
Com direito a tudo, até a uma etiqueta indicando “DE/PARA”.
Difícil não se sentir responsável por isso.
Difícil mesmo.
– Vou cuidar de você, Jim – ele disse com voz rouca. – Estou aqui por você, cara.
CAPÍTULO 34
Na adega, Grier passava os dossiês um por um enquanto esperava... e esperava... e esperava mais um pouco...
Finalmente.
– Por que você não me disse? – ela perguntou, sem olhar para trás.
Daniel levou um longo tempo para responder, mas ele não desapareceu: sempre que ele estava por perto, ela conseguia sentir uma pequena brisa e enquanto aquilo acariciava sua nuca, ela sabia que ele ainda estava com ela.
Pensei que ia odiá-lo. E, então, você e ele não teriam mais ninguém.
– Então, você sabia o que aconteceu?
Daniel andou em volta da mesa, com uma de suas mãos plantada no quadril e a outra enterrada em seu cabelo de maneira que os cachos formassem um halo.
Eu estava drogado quando tudo aconteceu... então, achei tudo muito engraçado, papai entrando com tudo com três caras de preto. Achei que aquilo era sua versão de uma intervenção para me ajudar – uma história em quadrinhos barra pesada. Mas quando eles colocaram a agulha no meu braço ele começou a gritar e foi aí que percebi... aquilo não era engraçado.
Os olhos de Daniel encontraram os dela.
Eu nunca o vi daquela maneira antes. Para mim, ele era sempre tão distante e sem emoção. Foi... a reação que procurei durante toda minha vida, o amor visceral pelo qual buscava. Entenda, eu era como a mamãe, não como você e ele. Eu queria mais do que aquela desaprovação fria – e consegui, só que já era tarde demais. Ele deu de ombros. Olhando para trás, vejo que eu era carente demais e ele não sabia o que fazer com um filho que não tinha sido feito para usar um uniforme militar. Água e óleo. Eu deveria ter lidado com isso de maneira diferente, mas não o fiz.
– E ele também não.
Não é culpa de ninguém. Foi... o que foi.
Grier inclinou-se em sua cadeira, pensando na maneira como seus familiares tinham se alinhado na vida: ela e seu pai de um lado; Daniel e sua mãe de outro.
Não foi culpa dele – seu irmão disse com um tom severo que ela nunca tinha ouvido dele antes. A forma como acabei minha vida... ele gritava, Grier... e, então, eu estava morrendo, e o ouvi dizendo várias vezes: “Danny... oh, Danny, meu garoto... meu garoto...”
Quando a voz de Daniel se quebrantou, ela foi compelida a se levantar e se aproximar dele. Antes que percebesse o que estava fazendo ela envolveu os braços em volta...
De si mesma.
Por favor, não me odeie – ele disse do outro lado, tendo mudado de lugar tão rápido quanto um piscar de olhos.
– Por favor, não fuja – ela respondeu.
Desculpe... Tenho que ir...
Ele desapareceu diante dela como se não pudesse mais conter suas emoções, seu desespero permaneceu no rastro frio que ele deixou para trás.
Ela ficou em pé por um tempo, olhando para o espaço vazio que ele tinha acabado de ocupar. Ela e seu pai eram do mesmo tipo e fizeram um acordo intelectual onde trancavam os outros do lado de fora, não foi isso? Sua mãe e irmão tinham seus vícios enquanto ela e seu pai estavam em sintonia com a lei, suas carreiras e suas paixões externas.
Ela sabia disso de alguma maneira... e talvez aquilo tenha feito parte de sua corrida para salvar Daniel. O vício de seu irmão e seus esforços para tirá-lo disso tinha sido a ligação que não tiveram durante a infância: ela sempre se culpava... e, por um breve momento, naquela noite, ela culpou seu pai.
Agora... ela tinha raiva do homem com o tapa-olho. Uma raiva terrível. Se Daniel estivesse vivo, talvez eles tivessem resolvido tudo isso. Os três perdoariam um ao outro dos erros do passado. E se dirigiriam a... a algo que sua família desfrutava apenas superficialmente. Afinal, privilégios, dinheiro e educação poderiam cobrir uma infinidade de problemas... e não garantiam que a proximidade vista em um cartão de Natal fosse realmente mais que uma mera pose feita uma vez por ano para um fotógrafo.
Balançando a cabeça, ela voltou para sua cadeira e encarou os dossiês.
Isaac ia igualar o placar da família, ela pensou. Por ter revelado o bastardo maníaco que assassinou seu irmão e não fez nada além de arruinar seu pai.
Folheando as fotografias, ela reconhecia cada homem, pois tinha analisado cada página repetidas vezes enquanto esperava pela aparição de Daniel. Havia uma centena de fotos ou mais, mas havia um total de uns quarenta homens, capturados em vários ângulos, ilustrando as páginas produzidas ao longo de anos. Dentre os muitos rostos, havia cinco que ela reconheceu... ou pelo menos achou que os tinha visto antes. Difícil saber... de alguma maneira, eles pareciam tão semelhantes.
A fotografia de Isaac estava lá e ela voltou a revê-la. A foto era clara, capturada bem em cheio. Ele estava olhando diretamente para a câmera, mas ela tinha a impressão que ele não sabia que estava sendo fotografado.
Sério. Deus, ele parecia tão sério. Como se estivesse preparado para matar.
A data de nascimento sob seu nome confirmava a idade que ela já sabia e havia algumas anotações sobre países estrangeiros onde ele tinha estado. E, em seguida, havia uma linha que ela tentava entender: Correção moral necessária. Ela tinha visto a frase apenas em dois outros perfis.
– O que você está segurando?
Grier pulou ao som da voz de Isaac, a cadeira gritou ao arranhar o chão. Agarrando seu peito, ela disse: – Jesus... como você faz isso?
Pois, considerando tudo, ela preferia não ser pega encarando a foto dele.
– Desculpe, só pensei que gostaria de um café. – Ele se aproximou, apoiou uma caneca e, em seguida, voltou à porta. – Eu deveria ter batido.
Ao fazer uma pausa entre os batentes da porta, vestia apenas o moletom de capuz que usava como travesseiro, seus ombros eram muito largos ao longo da extensão de tecido cinza. E considerando as últimas quarenta e oito horas, ele parecia incrivelmente forte e focado.
Seus olhos se voltaram para o café. Tão pensativa. Muito pensativa mesmo.
– Obrigada... e desculpe. Acho que apenas não estou acostumada com... – um homem como ele.
– Vou anunciar minha presença de agora em diante.
Ela pegou a caneca e tomou um gole. Perfeito: simplesmente com a quantidade certa de açúcar que ela gostava. Ele a observou, ela pensou. Viu o quanto ela adicionou em algum momento, mesmo não estando consciente disso. E ele se lembrou.
– Está olhando para mim? – Quando ela levantou o olhar, ele assentiu com a cabeça em direção aos dossiês. – Para minha foto?
– Ah... sim. – Grier interrompeu a frase. – O que isso significa exatamente?
Ele andou em sua direção e se inclinou. Quando encarou os detalhes descritos sob seu rosto, a tensão nele era palpável, todo seu grande corpo ficou rígido.
– Eles tiveram que me dar um motivo.
– Antes de você matar alguém.
Ele assentiu e começou a andar ao redor, indo em direção às garrafas de vinho. Ele pegou uma, olhou o rótulo, voltou a colocar no lugar... passou uma a uma.
– Que tipo de motivos eles lhe deram? – ela perguntou, bem ciente de que as respostas dele sobre isso significava muito para ela.
Ele fez uma pausa com uma embalagem de Bordeaux nas mãos.
– Do tipo que faz com que isso pareça certo.
– Como o quê?
Seus olhos viraram em direção a ela e Grier fez uma pausa. Eles estavam tão tristes e vazios.
– Diga-me – ela sussurrou.
Ele colocou a garrafa de volta no lugar. Distanciou-se um pouco das prateleiras de madeira.
– Eu só fazia isso com homens. Nenhuma mulher. Havia alguns que conseguiam fazer isso com mulheres, mas eu não. E eu não vou lhe dar exemplos específicos, mas o absurdo de uma filiação política não era suficiente para mim. Matar um monte de gente ou estuprar mulheres ou explodir algumas mer... er... coisas? É uma história bem diferente. E eu precisava visualizar algumas provas com meus próprios olhos... vídeo, fotografia... corpos que foram marcados.
– Você já recusou alguma tarefa?
– Sim.
– Então, você não mataria meu irmão.
– Nunca – ele disse sem hesitar. – E eles nem sequer teriam me pedido. Da maneira como Matthias encarava isso, eu era uma arma que funcionava sob determinadas circunstâncias e ele me tirava do coldre em momentos apropriados. E, você sabe... Eu percebi que tinha que sair das operações extraoficiais quando me dei conta de que não era diferente das outras pessoas que eu matava. Todos eles sentiam como se as atrocidades que cometiam eram justificáveis. Bem, então, aquilo fazia de nós espelhos que refletiam um ao outro. Claro, de um ponto de vista objetivo, qualquer um concordaria comigo sobre isso, mas não era o suficiente.
Grier exalou longamente. Ele era aquilo em que sempre acreditou, pensou ela.
– Como assim? – ela disse.
De repente, ela achou que tinha pensado em voz alta.
– Eu sempre disse a Daniel... – Ela fez uma pausa, perguntando-se se estava tudo claro dentro dela para continuar. – Eu dizia que nunca era tarde demais. Que as coisas que ele tinha feito no passado não definiam o futuro. Acho que no final, ele desistiu de si mesmo. Ele roubava do meu pai, de mim e de seus amigos. Ele foi preso assaltando uma casa e também por roubar um automóvel, em seguida, ao tentar saquear uma loja de bebidas. Foi assim que me envolvi com as causas voluntárias. Eu entrava e saía de várias cadeias nos últimos cinco anos antes de sua morte. Eu sentia que estava ajudando... mas talvez eu pudesse fazer isso com outra pessoa, sabe? E eu fiz... Eu ajudei outras pessoas.
– Grier...
Ela fez um gesto com a mão quando sua voz ficou embargada. Ela terminou de falar chorando. Não passaria disso e nada mais poderia ser mudado.
– Você quer continuar com isso?
Quando ela indicou os dossiês, ele deu de ombros e foi até a porta, ficando exposto apenas por um pequeno vão contra o batente.
– Eu só vim mesmo para ver como você estava.
No ar rarefeito, seus olhos de pálpebras baixas a aqueceram de dentro para fora. Ele era uma grande contradição... entre seu trabalho onde foi treinado para matar e seu coração de escoteiro.
Ela deu uma olhada para a foto dele.
– Parece que está procurando alguma coisa aqui.
– Na verdade, eu estava prestes a embarcar em um avião. Tive a sensação de que alguém estava olhando, mas não conseguia dizer de onde vinha esse olhar. Estava esperando em uma base aérea para viajar ao exterior. – Ele limpou a garganta como se estivesse varrendo a memória de sua mente. – Seu pai dormiu lá em cima. Ele passou uma duas horas no telefone, até onde vi.
– Já passou tanto tempo? – Ela olhou para seu relógio e ao movimentar o pulso, tomou consciência de cada articulação de seu corpo. Esticando os braços sobre a cabeça, sua coluna estalou.
– Como as coisas estão indo?
– Eu não sei. Antes de deitar, ele me disse que se conseguirmos fazer tudo até amanhã à noite, estaremos bem. Ele fez múltiplos contatos desde a CIA, Departamento de Segurança Nacional e gabinete presidencial e ficaremos bem aqui para que eu não precise me deslocar. A peça que falta é Jim Heron – nós ainda estamos esperando que ele volte – embora, se for preciso, seguiremos sem ele.
– Você recebeu alguma... resposta? Deles?
– Não.
O medo passou por suas costelas e atingiu seu coração como uma carga de bateria.
– Você pode ficar até amanhã à noite?
– Se for para ser dessa maneira, sim.
Ele parecia tão seguro e ela precisava acreditar naquela confiança: seria uma tragédia sem limites para ele ser interrompido agora, quando estava tão perto da liberdade que desejava.
Estranho que alguém que tinha conhecido há apenas alguns dias tivesse se tornado tão importante para ela.
– Eu estou orgulhosa de você – disse ela, deslizando o dedo sobre sua fotografia.
– Isso significa muito para mim. – Pausa. – E obrigado por me mostrar o caminho. Eu não seria capaz de fazer isso sem você.
– Sem meu pai, você quer dizer – ela contradisse suavemente. – Ele tem os contatos.
– Não. Você é a única.
Ela franziu a testa, pensando que era um jeito engraçado de responder.
– Quero que responda algo para mim.
– Diga.
Seus olhos encontraram os dele.
– Quais são as suas chances. De fato.
– De sair dessa com vida?
– Sim. – Quando ele apenas balançou a cabeça, ela franziu a testa para ele. – Lembre-se, acabamos com toda aquela coisa de “proteger a garota frágil”.
– Meio a meio.
Bem, não é que aquilo deu um nó em sua garganta?
– Isso é ruim, hum?
– Quer alguma coisa para comer com o café? Não sou nenhum chefe de cozinha, mas vi algumas sobras na geladeira e posso colocar no micro-ondas. – Quando ela recusou com a cabeça, ele insistiu. – Você tem que comer.
– Eu prefiro fazer sexo com você – ela soltou.
Isaac tossiu. Na verdade, tossia como se alguém tivesse dado um soco em seu peito.
– Desculpe ser tão direta. – Ela deu de ombros. – Mas convenções sociais estão bem longe da minha lista de prioridades agora. E eu tenho a sensação de que não vou te ver depois de amanhã à noite, tanto por que você pode ser tomado sob custódia federal, quanto por... – Ela respirou fundo. – Quero um bom pedaço de você antes que se vá. Algo para lembrar-me de você em minha pele, não apenas em meu cérebro. Lá em cima foi tudo tão rápido e furioso... Eu quero prestar atenção e me lembrar.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
– Achei que você gostaria de se esquecer disso o máximo possível.
– Não de você... eu não quero me esquecer de você. – O canto de sua boca se ergueu um pouco. – Embora eu não acredite ser possível.
Quando ele ficou onde estava, ela empurrou a cadeira para trás e se levantou. A distância entre eles era de três passos e quando ela veio em direção a ele, Isaac se endireitou e puxou seu blusão para baixo como se estivesse se arrumando.
Grier ergueu-se na ponta dos pés e tocou o rosto dele, colocando a palma de suas mãos na sua barba por fazer.
– Eu nunca vou esquecê-lo.
Quando ele lambeu os lábios, como se estivesse com fome daquilo que exatamente ela queria, Grier pegou a mão dele e o levou para o local mais fundo da adega, ao puxá-lo para dentro, os fechou ali.
Ao contrário da primeira vez, quando ela estava ferida e procurava apenas mais do ciclone, agora era apenas ele, o homem, que o impulsionava – não seu zumbido interno.
Ele estava todo ali.
Quando ela se inclinou para beijá-lo, ele colocou suas mãos grandes em seus pulsos e os segurou delicadamente.
– Isso não ajudou lá em cima.
– Sim. Ajudou. Você apenas não acreditou em mim.
– Grier... – O nome dela soou com uma combinação de confusão e desespero: pois as cinco letras foram pronunciadas, ao invés das três habitualmente ouvidas.
– Eu não quero mais falar – ela murmurou, aproximando-se de sua boca.
– Tem certeza?
Quando ela assentiu, ele se inclinou e apertou os lábios contra os dela, puxando-a para mais perto dele.
Ele estava completamente excitado, mais que pronto para ela e, ainda assim, ele recuou.
Antes que ela pudesse protestar, ouviu o clique da fechadura dando a volta e, em seguida, aquelas mãos quentes deslizaram sob sua camisa e em volta de sua caixa torácica, indo até o fim de suas costas. Ao sentir uma pressão suave e gentil, seus pés saíram do chão e ela foi carregada até a mesa.
Afastando os dossiês para um lado, Isaac a deitou, as palmas de suas mãos se movimentavam sobre seus seios enquanto ele se inclinava sobre ela e mantinha suas bocas unidas. Suas calças de ioga estavam fora de suas pernas um momento depois, mas, ao invés de jogá-las, ele as colocou sobre a cadeira onde ela estava sentada. Esperto. Ela poderia ter que se vestir rapidamente.
Um impulso sutil e seus quadris estavam na beirada da mesa... e, em seguida, ele separou o beijo deles e aproximou-se sobre os joelhos.
Se ela achava que já tinha visto os olhos dele queimarem antes, aquilo era nada comparado ao que estavam fazendo agora. Um local de baixa temperatura nunca foi tão quente.
Quando ela se deu conta de onde ele estava se dirigindo, ela se sentou.
– Mas eu quero que seja bom para nós dois...
– Você disse que queria se lembrar de algo. – As mãos dele deslizaram até o topo de suas coxas e as apertaram. – Então, deite de costas e deixe-me fazer meu trabalho. – A língua dele reapareceu – e não é que aquilo a fez aderir ao plano dele?
– Vamos lá, agora – ele murmurou com aquele sotaque sulista. – Deite-se e deixe-me cuidar de você. Prometo ir devagar... bem devagar.
Suas mãos desceram até seus joelhos e abriram suas pernas... e ela se entregou a ele. Seguindo suas instruções ao pé da letra, ela sentiu a rígida mesa contra seus ombros, o ar fresco em suas coxas e um calor selvagem em seu sangue.
Quando ele a encarou através das sobrancelhas, Isaac olhou como se fosse consumi-la.
E ela estava pronta para ser sua refeição.
Abaixando a cabeça, ele foi direto até onde ela necessitava dele, colocando sua boca no sexo dela através da fina calcinha de seda que usava. Uma onda de calor delicioso floresceu e sua mão se esticou, agarrou as calças, as puxou e as colocou na boca para que fosse impedida de gritar.
Se isso já a fazia se sentir tão bem, ela ia fazer barulho: sim, a porta da adega era pesada e seu pai deveria estar dormindo, mas ela não queria correr nenhum risco.
Isaac gemeu contra ela ao se aninhar na seda e, então, ele passou a língua sobre a delicada faixa de tecido que a cobria. Com um palavrão, ela se arqueou de maneira rígida, as unhas arranharam a madeira embaixo dela enquanto as mãos dele mergulharam em suas coxas e os dentes dela mordiam o algodão. E, então, não havia mais nada os separando. Em um momento, sua boca estava sobre a seda, no próximo, ela sentiu um puxão em seus quadris e ouviu o som de algo se rasgando quando a calcinha cedeu...
Oh, Deus... sua língua molhada deslizou direto até seu cerne e se arrastou para cima, partindo-a, deslizando com lambidas seguidas.
Ele foi devagar.
Quando suas grandes mãos se fecharam em sua cintura e a firmaram para baixo, ele produziu um momento doce, a beijando e sugando, aquela língua dele funcionava como mágica que apenas podia ser substituída pela sucção quente e firme de seus lábios. Todo o tempo, ele olhava para ela, olhava seus seios enquanto ela se contorcia sob sua boca.
De repente, como se precisasse tocar aquilo que estava observando, as mãos dele subiram sob a camiseta dela em direção ao que parecia o fascinar. Abrindo o fecho frontal do sutiã, ele tomou posse de seus dois seios, os polegares esfregavam seus mamilos.
Sua respiração bombeava para dentro e para fora através de sua boca aberta e assim que ela estava prestes a chegar ao orgasmo, Isaac recuou e lambeu os lábios brilhantes.
– Venha para mim – disse ele. – Eu quero sentir isso.
E, em seguida, ele estava contra ela mais uma vez, sua língua a penetrava – o que foi o suficiente. A sensação foi liberada, minando para fora de seu sexo e tomando conta de cada centímetro de seu corpo. Quando o turbilhão de faíscas a consumiu, ela estava vagamente consciente de que ele gemia, como se sentisse aquele prazer em primeira mão.
Ele não parou por aí. Fluía em círculos, lambia, chupava... ele continuou abrindo ainda mais as pernas dela, segurando-a no lugar, marcando aquilo na memória dela assim como marcava em seu sexo. Ela nunca iria esquecer...
Um de seus longos dedos, ou talvez dois, penetrou dentro dela e a pressão e o alcance a enviou direto para o topo novamente. Quando outro orgasmo disparou, as mãos dela se fecharam em seu antebraço, suas unhas afundaram em sua carne enquanto sua coluna se contorcia e aquela explosão de prazer a inundava de dentro para fora.
E ele ainda não parou.
Ele era quente, selvagem e implacável.
Ele era o amante que ela nunca, jamais iria esquecer.
Muito menos superar – e isso era o que temia.
Oh, meu bom Jesus...
Isaac olhou por entre as pernas de Grier e quase chegou ao clímax apenas com aquela visão. Ela era uma mulher totalmente desfeita, os restos de sua calcinha branca em volta de seus quadris, sua camisa preta em volta do pescoço, o sutiã pendia para os lados. Seus seios estavam rígidos nas pontas rosadas, seu rosto estava corado e sua barriga se movia em um ritmo de surtos e abrandamentos conforme trabalhava contra ele.
Aquela calcinha na boca dele foi uma das coisas mais sensuais de tudo.
E o gosto dela era ainda mais quente do que isso.
Isaac poderia ficar ali por horas, mas a cada momento ele corria o risco de uma interrupção e ele queria terminar aquilo direito.
Subindo e pairando acima dela, inclinou os joelhos dela até o peito, com isso, seu membro se contorceu até ficar à beira do orgasmo com a visão do sexo dela reluzente todo inchado e aberto para ele. Não houve chances para que as calças fossem forçadas... ele as puxou para baixo o suficiente para que a ereção saltasse... da qual surgiu uma gota na ponta quando ele pensou sobre onde estava indo. Passando a mão sobre sua boca molhada, ele a colocou sobre a cabeça de seu membro, escorregando ainda mais o corpo antes de contorcer a coluna e unir as mãos ao órgão.
Empurrando, ele a observou ao fazer a conexão, olhando-a para acomodar seu membro e ouvindo o gemido dela ao ir mais fundo, atendendo seus desejos.
– Ah, caralh... – O cavalheiro nele engoliu o palavrão. Já o homem das cavernas que havia nele tinha que continuar falando. – Olhe para você... Quero deixar algo para trás... em você.
Ele atirou seus olhos nos dela e começou a se mover, bombando para dentro e para fora, dentro e fora... e, então, ele voltou a olhar para o local onde tinham se unido, o brilho naquilo fez suas bolas ficarem rígidas. Curvando-se para os seios, ele sugou um mamilo e trabalhou nisso com a língua... até que o ritmo abaixo tornasse impossível manter aquela ligação: ele estava falando sério sobre ir devagar, mas a boa intenção não durou muito. O sexo tinha uma dinâmica própria e não passou muito tempo até que a mesa começasse a gemer sob a força de seus golpes e ele teve que abraçar a cintura dela para mantê-la onde ele a queria.
Ao ficar rígida sob ele, Isaac também ficou, tencionando seus molares para não fazer barulho, suas pálpebras se fecharam com força embora quisesse ver o rosto dela ao dar mais uma dose de prazer.
Com seu corpo no dela e a preenchendo por completo... ele estava tão saciado quando um homem no deserto que tinha recebido um gole de água.
Ele não estava nem perto de acabar. Ela queria memórias? Entendido.
Mantendo-os juntos, ele puxou a calça para fora da boca dela, a ergueu e trouxe seus lábios até os dele, beijando-a profundamente enquanto carregava seu peso com facilidade para fora da mesa. Posicionando-a contra a porta lisa, ele agarrou a parte de trás de suas pernas e começou a se mover novamente. Com as mãos emaranhadas em seus cabelos, o calor abrasador e a sensação de urgência tomando conta mais uma vez, o beijo não poderia durar muito – e não durou muito mais que o selar dos lábios. Ele veio rígido dentro dela, promovendo um colapso enquanto seu próprio orgasmo escorria.
O alívio foi um luxo que ele não desfrutou, pois tinha plena consciência de seu peso sobre ela e do fato de que as costas dela estavam contra algo rígido e de que o pai dela estava em casa...
Havia tantas coisas entre eles.
Isaac a soltou lentamente até que seus pés tocassem o chão e, quando ele saiu dela, não gostou do ar frio em seu pênis. O sexo dela era muito melhor... muito, muito melhor.
Quando ele a beijou, a maneira como seus lábios se moviam sobre os dele lhe dizia que em um mundo diferente, em circunstâncias diferentes... este seria, com certeza, um começo para eles – apesar de tudo o que os separava como família, dinheiro e escolaridade.
Mas aquela não era a realidade deles, era?
– Deixe-me arranjar algo para limpar isso – ele disse calmamente enquanto puxava as calças de volta no lugar.
Depois de beijá-la mais uma vez, ele saiu pela porta e quando a fechou lá dentro ele parou e baixou a cabeça.
Ele mentiu para ela.
Suas chances não estavam nem perto de cinquenta por cento: Matthias iria pegá-lo com toda e absoluta certeza. A questão era apenas quanto tempo ele levaria para conversar com os ouvidos certos antes que seu velho chefe surgisse das sombras e o reclamasse. Algo que sempre foi verdade sobre o líder das operações extraoficiais: Matthias nunca desistia. Nunca. E mesmo que o mundo estivesse desmoronando em torno dele, continuaria a buscar sua vingança. De alguma forma, de alguma maneira.
Contudo, isso não ia impedir Isaac de continuar tentando com todas as suas armas.
Muito melhor morrer tentando fazer a coisa certa... e deixar sua mulher pensando algo menos ruim sobre ele.
Muito melhor.
CAPÍTULO 35
Quando o sol da manhã despertou de seu sono nublado e uma auréola de raios foi derramada sobre Caldwell, Nova York, dois garotos, com idades entre doze e nove anos, foram andando para a escola.
E nenhum dos dois estava impressionado com todo o “esplendor primaveril”.
Seja lá o que isso significasse.
A mãe deles repetia sempre algo sobre esplendor primaveril, esplendor primaveril... bah! O que interessava a Joey Mason era a educação física: geralmente ele tinha educação física às segundas feiras, mas hoje haveria uma assembleia especial. Então, não importava o quanto de “esplendor primaveril” houvesse lá fora, ele ainda estava a caminho de um dia na escola com nada de interessante para fazer.
Por outro lado, seu irmão mais novo, Tony, gostava mais de assembleias do que de educação física, então, ele estava empolgado. Mas ele era um nerd que dormia com livros, que outra coisa poderia interessá-lo?
A caminhada de casa para a escola era de uns oito quarteirões e não era nada demais... apenas descer a Rua São Francisco, passando pela igreja e alguns outros pontos. Eles deveriam ficar do lado direito, pois havia um posto de gasolina à esquerda por onde passavam muitos carros. E eles deveriam parar em cada esquina. O que Joey fazia – geralmente enquanto segurava o colarinho de Tony para impedi-lo de atingir um carro em cheio.
Tony sempre andava com um livro aberto. Também comia lendo, ia ao banheiro lendo e se vestia lendo.
Estúpido. Simplesmente estúpido, pois se perde muito quando não se olha em volta.
Como aquele carro legal que estava no caminho. As janelas eram pretas e a pintura também, e havia um número na placa: 010. Era só isso, sem letras. Joey olhou para seu irmão mais novo e percebeu que, com certeza, ele não tinha notado aquilo.
Perdeu mais uma.
A coisa parecia ser da polícia.
Quando chegaram até o carro, pegou o colarinho de seu irmão e o puxou para perto. Tony não questionou a parada – apenas virou outra página. Provavelmente ele pensou que estavam em outra esquina.
Joey se inclinou um pouco para ver o interior, preparando-se para ver alguma coisa relacionada a um uniforme sair e gritar com eles por serem intrometidos. Quando não viu nada e quando nada aconteceu, ele posicionou as mãos em formato de concha e as colocou contra o vidro frio...
Pulou para trás.
– Acho que tem alguém lá dentro.
– Não tem – Tony disse sem levantar a cabeça.
– Tem sim.
– Não tem.
– Tem sim. E como você pode saber que não tem?
– Não tem.
Certo, Tony não sabia do que estava falando e aquela discussão poderia durar para sempre. E, então, ele e seu irmão caçula se atrasariam para as aulas e ficariam de castigo. De novo.
Mas...
Seria tão legal se eles encontrassem um cadáver – bem em frente à funerária!
Jogando a mochila, Joey distanciou seu irmão do carro, levantando-o e redirecionando seus pés.
– Isso é perigoso. Eu não quero que você se machuque.
Isso finalmente fez com que Tony levantasse os olhos do livro.
– Tem mesmo alguém aí dentro?
– Para trás.
Era o tipo de coisa que seu pai teria dito e Joey se sentiu um homem com relação a isso – especialmente quando Tony assentiu e segurou seu livro contra o peito. Mas era assim que deveria ser. Joey faria treze anos em breve e ele era responsável quando não havia ninguém por perto. E, às vezes, mesmo quando havia outras pessoas no local.
Voltando a colocar as mãos em forma de concha, ele reassumiu sua posição contra o vidro e tentou ver através da escuridão...
– É um pirata.
– Você está mentindo.
– Não, não estou...
Um carro passou devagar em frente deles e uma senhora abriu a janela – era a Sra. Alonzo do outro lado da rua.
– O que vocês estão aprontando, meninos?
Como se tudo o que eles fizessem fosse esse tipo de coisa.
Parte de Joey queria que ela continuasse seu caminho e deixasse que ele resolvesse a situação. Mas a outra parte queria se mostrar.
– Tem um cara morto aqui.
Sentiu-se muito importante, pois ela ficou pálida e parecia nervosa. Cara, se ele soubesse que tudo isso iria acontecer, ele teria saído mais rápido de casa. Aquilo era muito melhor que educação física.
A não ser pelo fato de que Tony teve que se intrometer.
– É um pirata!
De repente, a Sra. Alonzo não parecia tão assustada.
– Um pirata.
Seu irmão era um idiota – e Joey não estava interessado em perder a atenção da plateia. Piratas eram coisas de criança. Um morto no carro? Isso era coisa de adulto e era isso o que ele queria ser.
– Veja por si mesma – ele disse.
A Sra. Alonzo estacionou em frente ao carro completamente preto e saiu, seus saltos altos faziam um som de galope de pônei na rua.
– Certo, já chega, garotos. Entrem e vou levá-los até a escola. Vocês vão se atrasar. – Ela estendeu seu telefone para Joey. – Ligue para sua mãe e diga que estou levando vocês. De novo.
Isso acontecia muito. A Sra. Alonzo era uma executiva cujo escritório ficava não muito longe da escola, eles se atrasavam muitas vezes e ela os levava. Mas essa manhã era diferente.
Ele cruzou os braços sobre o peito.
– Precisa olhar pela janela.
– Joey...
– Por favor. – Outra coisa adulta: por favor e obrigado.
– Tudo bem. Mas entrem no meu carro.
A Sra. Alonzo marchou em direção ao carro enquanto resmungava alguma coisa sobre ficar prestando serviço de táxi. E Tony, que sempre seguia as regras, levou seu livro até o assento da frente da SUV – só que ele ainda estava interessado no que estava acontecendo, pois ele não fechou a porta e o seu exemplar do livro Diário de um Banana: Dias de Cachorro permaneceu contra seu peito.
Joey ficou onde estava.
Normalmente, ele teria se chateado com Tony por pegar o melhor lugar no carro: irmão mais velho andava na frente; bebês menores ficavam atrás. Mas havia coisas mais importantes que isso agora, então, ele ficou onde estava na calçada, o telefone sem utilidade em sua mão.
Ele estava pensando no que tinha visto...
A Sra. Alonzo deu um salto tão grande que quase acabou no meio do trânsito, uma minivan buzinou para ela quando se desviou por pouco de seu corpo.
Ela correu e pegou o telefone, assim como o braço do garoto.
– Entre no carro, Joey.
– O que é isso? Um cara morto? – Meu Deus, e se fosse um pirata? Caramba!
A Sra. Alonzo colocou o telefone no ouvido enquanto o arrastava para o carro.
– Sim, é uma emergência. Há um homem em um caro em frente à casa funerária McCready na Rua São Francisco. Não sei se há algo de errado com ele, mas ele está atrás do volante e parece não se mexer... Estou com uma criancinha comigo e não quero abrir a porta... certo...
Criancinha. Deus, ele odiava aquela coisa de criancinha. Além disso, foi ele quem encontrou o cara. Quantos adultos passaram por ali a pé para ir ao trabalho e não o viram? Ou de bicicleta? Ou correndo?
O cara morto era dele.
– Meu nome é Margarita Alonzo. Sim, ficarei aqui até os paramédicos e a polícia chegarem.
Certo. Esta era, oficialmente, a melhor manhã da história de sua vida, Joey pensou enquanto pulava no banco de trás – o qual tinha a melhor visão ao se virar para ver lá fora.
Quando a Sra. Alonzo entrou e trancou as portas, ele imaginou os três ali até a meia noite, uma da manhã. Talvez precisassem de um McLanche Feliz para o almoço. Ele tinha a grande esperança de que a polícia não corresse...
A chatice de todas as chatices o atingiu quando ele ouviu a senhora Alonzo dizer: – Sara? Estou com seus meninos e eles estão bem. Mas há um pequeno problema e preciso que venha buscá-los.
Joey abaixou a cabeça no braço.
Sabendo da sorte que tinha, sua mãe correria até à cena e chegaria lá antes que ele descobrisse algo sobre o pirata morto no banco da frente daquele carro.
Arruinado. Simplesmente arruinado.
E, provavelmente, eles chegariam à escola a tempo de assistir a assembleia.
Quando Matthias dormiu atrás do volante de seu carro, ele sonhou com a noite em que Jim Heron salvou-lhe a vida várias e várias vezes. Os acontecimentos que o levaram até a bomba e a dolorosa caminhada para recuperar uma saúde relativa foram passados e repassados em sua mente, como se a agulha da sua velha vitrola mental estivesse presa em algum obstáculo no disco.
Matthias tinha atraído Jim Heron àquela cabana abandonada e empoeirada como testemunha, pois não havia mais ninguém nas operações extraoficiais cuja palavra houvesse mais peso e credibilidade. A ideia era que o soldado deixasse seu corpo na areia e fosse para a casa contar aos outros que tinha acontecido um terrível acidente: se alguém apresentasse um relatório como esse, a conclusão seria de que havia ocorrido um abate completo.
Contudo, não é o caso de Jim – ele era um atirador correto em um mundo cheio de curvas e nunca teve problemas em fazer o que tinha que ser feito, certo ou errado.
Prova de que havia um pouco de bondade em Matthias, afinal – pelo menos, ele não ia jogar a culpa de seu suicídio na cabeça de outro cara.
E sim, claro que ele poderia explodir a própria cabeça em um banheiro qualquer, mas mesmo sendo um suicida, ele tinha seu orgulho. Autoinjetar-se uma dose de chumbo seria fraqueza demais – muito melhor espalhar a porcaria gosmenta em algumas paredes de pedra e ser lamentado como o forte lutador que sempre tinha sido.
Contudo, o orgulho teve seu preço: ao invés de deixá-lo na areia, o idiota Heron o salvou – e descobriu seu segredinho. O explosivo foi a dica que faltava. Enquanto Matthias permanecia deitado e sangrava como um porco, Jim encontrou os restos da bomba e reconheceu o que eram. Ou seja, era um dos seus dispositivos.
O filho da mãe pegou os fragmentos, os colocou no bolso e tirou o cinto. Em seguida, fez um torniquete na perna de Matthias, o levantou e começou a puxá-lo. Ele ficou muito chateado e era evidente que as atitudes de seu salvador eram parte punição, parte recompensa – e completamente desgastante. O bastardo andou, andou e andou... até que, alguns momentos depois, Isaac Rothe apareceu dentre as dunas com uma Land Rover.
As exigências de Jim vieram semanas depois, em um hospital na Alemanha. Naquele ponto, a cabeça de Matthias não era nada além de um imenso balão de ar quente de agonia e ele estava tendo que se acostumar com apenas um olho funcionando. Heron se sentou à beira do leito e estabeleceu seus termos: fora. Livre e limpo. Ou pegava o que tinha restado da bomba e contaria a história para a única pessoa que poderia fazer algo sobre isso.
Olá, senhor presidente.
Ironia das ironias, se tivesse sido qualquer outro soldado, qualquer outro ser humano com um coração batendo e um dedo no gatilho, Matthias não teria se preocupado com a ameaça. Mas, Jim Heron – o bom e velho Zacarias – era uma daquelas malditas pessoas em quem as pessoas acreditavam. Fragmentos de bombas poderiam ser fabricados; e a credibilidade de um homem digno? Muito menos discutível.
E ele não poderia continuar sendo chefe se as pessoas achassem que não tinha mais coragem para o trabalho.
Naquele momento, Matthias sentiu como se não houvesse outra escolha e disse ao homem para que seguisse seu caminho.
Depois, a questão suicida veio à tona e ele teve que considerá-la seriamente. Mas, em seguida, seu segundo homem na linha de comando apareceu na hora certa – tinha certeza de que o cara sabia para onde estava indo.
Um homem muito persuasivo aquele. E quando se deu conta, Jim tinha salvado seu corpo, mas aquele segundo homem na linha de comando o trouxe, de alguma maneira, de volta à vida.
Apesar de a renovação ter tido consequências: quase imediatamente, Matthias abriu os olhos – ou um olho, melhor dizendo – para o erro de deixar Heron sair: aquele soldado estava solto pelo mundo com informações demais e a exposição não era aceitável.
O segundo na linha de comando concordou com isso e estava prestes a colocar as rodas de um carro em movimento para provocar um “acidente” quando Jim ligou procurando por informações sobre Marie-Terese Boudreau. Perfeito. Bem a tempo. O plano era que Jim entregasse Isaac em troca da informação que precisava – e, em seguida, seria o assassinato de Jim.
Só que alguém pegou Heron primeiro.
Morto. Jim estava morto. Matthias viu seu corpo com os próprios olhos. E, ainda assim... de alguma maneira ele sentia como se tivesse falado com o cara. Sim, ele sonhou que tinha conversado com Jim Heron...
Matthias acordou com a arma na mão, o gatilho armado e apontando para um homem de uniforme azul marinho – que tinha, dado a barra de ferro em sua mão, acabado de destrancar o carro e abrir a porta.
O paramédico congelou e colocou as mãos para cima.
– Eu só quero te ajudar, cara.
Provavelmente era verdade. Mas para o inferno, o parceiro do cara sem dúvida estava ligando para a polícia agora e, observação, fazer qualquer tipo de contato direto com um civil não era um benefício, segundo a cartilha de Matthias.
Ele baixou a arma.
– Sou um agente federal. – Ele colocou a mão no casaco e decidiu mostrar suas credenciais do FBI; que eram legítimas até certo ponto.
O paramédico se inclinou e olhou a fotografia, um nome qualquer no laminado e um brasão bem verdadeiro.
– Ah... desculpe, senhor. Recebemos um telefonema...
– Está tudo bem. É que passei três dias puxados na fronteira canadense e estou a caminho de Manhattan. Desci a estrada ao norte procurando algo para comer às quatro da manhã, mas não havia nada aberto e eu precisava dormir um pouco. Sabe como é.
– Ah, entendo muito bem.
Conversa fiada, conversa fiada, conversa fiada... blablablá...
Quando a polícia apareceu, eles colocaram seu número de identidade no sistema e, como num passe de mágica, tudo bateu. E sua história sobre estar em uma missão secreta e ter que parar um pouco por causa da exaustão foi engolida como um jantar de Ação de Graças: ele passou de criminoso à celebridade.
Gente estúpida.
Depois que os despistou, afastou-se e pegou o telefone. Havia uma série de mensagens de voz... e um alerta.
Bem, como pode imaginar... parece que Isaac Rothe tinha se entregado e sua localização era a casa de sua adorável e talentosa advogada. Que coisa mais perfeita: embora pudessem pegá-lo em pé na cozinha de Grier Childe se fosse preciso, aquilo faria das coisas muito menos complicadas.
Matthias ligou para seu segundo homem na linha de comando e quando o telefone soou ele pensou em quantas vezes tinha tido aquela conversa: vá. Pegue o bastardo. Acabe com ele. Dê um jeito no corpo.
Ele tinha feito isso tantas vezes.
Quando a dor do lado esquerdo do peito disparou novamente, ele ignorou a sensação...
– Sim? – o segundo na linha de comando respondeu.
– Isaac Rothe está pronto para você.
Não houve sequer uma pausa.
– O endereço é o de Beacon Hill?
– Sim. Vá até lá e pegue-o.
– Estou fora do estado.
– Bem, entre no estado. O mais rápido possível.
– Entendido. Onde você o quer?
Boa pergunta. Isaac não era conhecido por grandes fugas, sua reputação era de um assassino rápido e limpo que o fazia em circunstâncias extraordinárias. Mas você não conseguiria executar tarefas como as dele se não fosse muito imaginativo.
– Mantenha-o naquela casa para mim – Matthias disse de repente.
Quando levou em conta a situação, o instinto lhe disse que uma mudança na estratégia era apropriada. Afinal, seria útil puxar as rédeas de Grier Childe e seu pai – e nada chamava mais a atenção de um civil do que assistir a alguém sendo assassinado. O bom e velho Albie era uma prova disso...
Por alguma razão, a voz de Jim Heron estalou no cérebro de Matthias. Não havia palavras específicas, apenas um tom que se demorava, um tom grave, que implorava para que Matthias parasse com tudo e... fazer o que exatamente?
– Alô? – o homem do outro lado da linha perguntou, uma vez que o cara disse algo que não havia sido respondido ou que havia recebido nada além de silêncio por um tempo.
– Eu não quero que você o mate – Matthias se ouviu dizendo.
– Ah, entendo. Você quer fazer isso por si mesmo. – Satisfação. Tal satisfação era o objetivo do plano em todo o tempo.
Sem qualquer razão especial, o processador central do cérebro de Matthias começou a faiscar e sair fumaça, imagens voavam dentro e fora de sua mente em uma confusão louca que o fez pensar na rolagem de dados em uma mesa de feltro. E, então, em meio ao caos, ele viu Alistair Childe sendo segurado em um tapete sujo por dois agentes de preto enquanto era injetada em seu filho heroína suficiente para levar um elefante a ter uma overdose.
Danny... oh, Danny, meu garoto... Parecia uma música que poderia tocar em um bar irlandês, mas não soava nada musical uma vez que o pai gritava as palavras com voz rouca.
– Chefe – o segundo na linha de comando interrompeu. – Fale comigo. O que está acontecendo?
A voz era muito sonora, mas era um falso pragmatismo. Era evidente que o soldado estava preocupado de que as rodas estivessem saindo da estrada de novo – assim como tinha acontecido há dois anos, ele teria que arrastar Matthias para calçar suas botas de combate mais uma vez.
– Não o mate – Matthias ouviu-se repetir. – É uma ordem.
– Eu sei, assim você pode fazer isso. Ele é seu. Você tem que pegá-lo.
Por um momento, Matthias sentiu uma atração inevitável, tentadora...
– Não – ele exclamou, sacudindo-se. – Não, eu não tenho.
– Sim, você deve...
– Apenas siga a maldita ordem sem mais comentários ou encontro outra pessoa que o faça.
Com um palavrão, ele desligou, enviou um sinal de volta para Isaac e, em seguida, tentou encontrar um local sólido para se sustentar dentro de si mesmo. Droga, de repente, ele sentia como se houvesse duas vozes diferentes em sua cabeça e elas não apenas o direcionavam para caminhos opostos, o puxavam de fato.
Felizmente, o retorno da transmissão feita a Rothe interrompeu sua luta.
– Matthias – ele ouviu aquela velha voz familiar.
– Isaac. Como vai?
– Onde? Quando?
– Sempre indo direto ao ponto. – Matthias empurrou a parte inferior do volante para manter o sedã na estrada, enquanto massageava a dor que havia do lado esquerdo de seu peitoral.
– Estou mandando alguém até você. Então, fique onde está.
– Inaceitável. Não posso ser pego aqui.
– Ditando as regras? Eu acho que não.
– Grier Childe não vai ser envolvida nisso. Vou me entregar à meia-noite, amanhã, em um local público.
– E agora você quer me dizer quando? Vá se ferrar, Rothe. Se quiser que ela fique fora disso, fará o que vou lhe dizer. Ou você acha que não posso passar por esse sistema de segurança de luxo a qualquer hora da noite que eu quiser? – Silêncio. – Surpreso por eu saber sobre a maldita coisa? Bem, há outros truques nessa casa, Isaac. Fico me perguntando de quantos deles você tem conhecimento.
Vê, aquilo era bom. O movimento do jogo de poder limpava um pouco aquela porcaria distorcida, nebulosa e evasiva – e isso o lembrava da razão por trás da morte de Daniel Childe: a grande boca aberta do bom e velho Albie.
Um tiro de adrenalina o despertou ainda mais enquanto ele se perguntava exatamente que tipos de planos Isaac e o capitão aposentado poderiam ter tido enquanto ele estava desmaiado na estrada.
Ele limpou a garganta.
– Sim, fique onde está... e em caso de ter tramado alguma brilhante ideia com o pai dela, deixe-me esclarecer as coisas. Se você fizer qualquer coisa para expor a mim ou à organização, vou fazer coisas àquela mulher das quais ela vai sobreviver, mas nunca se curar. E saiba: meu alcance se estende além da sepultura. – Mais silêncio. – Você conheceu o pai dela... não negue isso. E tenho plena ciência de que ele vem coletando informações sobre as operações extraoficiais há décadas. Sem ideias brilhantes, Isaac. Pelo bem dela. Ou vou ignorá-lo e ir atrás dela. Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora...
– Ela não faz parte disso! – Rothe disse entre dentes. – Ela não tem nada a ver comigo ou com o maldito pai!
– Talvez. Mas acidentes acontecem. E eu atribuí seu caso a ela por um bom motivo, que acabou ficando melhor do que eu pensava. Eu nunca esperava que vocês dois ficassem tão pessoalmente envolvidos, ou você acha que eu não ouvi os dois subirem até aquele quarto de hóspedes dela ontem à noite? – Matthias lutou contra a dor em seu peito, sentia como se estivesse se afogando. – Não me faça machucá-la, Isaac. Estou ficando cansado de tudo isso, estou mesmo. Fique onde está. Estou enviando uma pessoa e você saberá quando chegar lá. E se você ou o pai dela não estiverem lá quando ele chegar, vou fazer com que procure por ela, não por você. Você segue as instruções e vou me certificar de que ninguém além de você se machuque.
Matthias apertou o botão end para finalizar a ligação e jogou o celular no banco do passageiro.
Estremecendo, ele lutou para manter o carro em linha reta enquanto a agonia por trás de sua caixa torácica aumentava para níveis incontroláveis. Com o ataque, ele pensou brevemente sobre dirigir até o Aeroporto Internacional de Caldwell, mas decidiu que precisava se recuperar e isso ia levar tempo. E privacidade.
Apertando o peito esquerdo, ele parou e tentou respirar em meio à dor. O que realmente não ajudou muito... ao ponto de se perguntar se era isso. O derradeiro. Assim como aquele que matou seu pai.
Olhando para fora do para-brisa dianteiro, ele percebeu que estava na frente de uma igreja.
Sem nenhuma razão aparente, ele desligou o motor, pegou sua bengala e saiu. Ele não pensava em nada nem sequer remotamente relacionado a Deus há anos e estar mancando em direção àquelas enormes portas duplas o fazia se sentir... errado de muitas maneiras. Especialmente levando em conta tudo o que estava esperando por ele em Boston. Mas seu segundo homem na linha de comando precisava de tempo para arranjar as coisas e Matthias... precisava desse ataque cardíaco seja para se organizar e chutar o balde ou para calar a maldita boca.
Lá dentro estava quente e cheirava a incenso e cera com aroma de limão. O lugar era enorme, com centenas e centenas de bancos que se espalhavam em três direções desde o altar.
Matthias não fez todo o caminho. Ele entrou em colapso em um banco mais ou menos na metade do corredor lateral, caiu por completo no banco de madeira.
Movendo sua bengala entre os joelhos, olhou para o crucifixo... e começou a chorar.
CAPÍTULO 36
Depois de terminar a comunicação com Matthias, Isaac guardou o transmissor de alerta em seu blusão. O que ele queria fazer era colocá-lo sobre o balcão de granito e esmagá-lo com seu punho. Em seguida, talvez, jogar os pedaços no fogo.
Apoiando as mãos sobre a pia da cozinha, ele se inclinou sobre os ombros e encarou o jardim. Quase oito horas da manhã e o local estava um poço de escuridão, pois as casas da vizinhança tinham sido construídas muito perto umas das outras. Não fazia ideia se os colegas de Jim estavam lá de volta. Nenhuma palavra sobre Jim.
Mas Isaac tinha outros problemas agora.
Droga. Levando tudo em consideração, o fato de Matthias suspeitar do que iria acontecer não era uma novidade. Mas aquilo o deixou tenso. Se ele fosse embora agora, ele corria o risco de Grier e seu pai serem massacrados. Se ele ficasse... provavelmente eles seriam obrigados a assistir a morte dele.
Filho da mãe!
– Eles entraram em contato com você?
Ele olhou sobre o ombro. Grier tinha acabado de sair do chuveiro, seus cabelos soltos secavam naturalmente.
– Isaac – o rosto dela ficou tenso. – Eles responderam?
– Não – ele disse. – Ainda não.
Para tornar a mentira mais convincente, ele puxou o transmissor e o balançou, apostando no fato de que ela não iria notar que a luz estava desligada.
– Essa coisa está funcionando?
– Sim. – Ele o guardou quando ela se aproximou. – Como está seu pai?
– No telefone do banheiro de novo. – Ela encarou o relógio. – Deus, pensei que essa noite nunca ia acabar.
– Eu só queria que Jim aparecesse – ele disse enquanto ela começava a fazer o café na pia.
– Você acha... que ele está mesmo morto?
Naquele momento... talvez.
– Não.
Sentando-se em um dos bancos, ele a observou estalar a abertura de uma lata de café e colocar o filtro no topo da máquina. Quando ela terminou a tarefa, a luz do sol em seu rosto o fez querer chorar, ela era tão bonita.
De alguma maneira, ele não podia acreditar que estava com ela – e não no sentido de que não era digno disso. Dã, isso era evidente. Mas ponderando tudo, o sexo quente e intenso parecia um sonho. Ela estava tão limpa, cheirando a xampu ao invés de suor, o cabelo liso, o rosto já não mais corado.
Ela tirava seu fôlego. Para Isaac, ela era uma prova definitiva que a vida valia o sacrifício que requeria das pessoas: apenas olhar para ela e estar no mesmo ambiente, ter as memórias que ele deu não só a ela, mas que ficaram dentro dele...
A ideia de que alguma coisa a machucasse um dia era simplesmente insuportável. E se ele fosse a causa disso?
Vou permitir que tenha uma vida longa, sabendo que você é a razão da ruína dela que acontecerá de dentro para fora.
Não era uma ameaça. Não vindo de um cara como Matthias, que não estabelecia qualquer distinção para o sexo feminino. E ele a machucaria de maneira que aqueles momentos especiais que Isaac havia passado com ela na adega fossem impossíveis de serem vivenciados novamente.
Por mais que lhe doesse, ele tinha que ser realista: quando ele partisse, ela encontraria outro amor. Talvez alguém com quem se case e tenha filhos e com quem possa passar a velhice. E não haveria nada disso para ela a menos que ele ficasse ali, esperando... e rezando para que quando o agente de Matthias aparecesse, ele fosse capaz de matar o filho da mãe e, em seguida, desaparecer rapidamente.
Afinal, ele era um maldito de um assassino. Era o que ele fazia para viver.
Uma coisa era clara: não ia mais prosseguir com a divulgação de informações. De jeito nenhum. A vida de Grier valia mais que o respeito que ela tinha por ele e, depois que a poeira assentasse, qualquer coisa que tivesse sido acionada pelo pai dela poderia ser desfeita tão rápido quanto uma ligação telefônica – assim, eles pensariam que o plano ainda estava de pé até descobrirem que Isaac tinha sumido.
E quanto ao resto de sua vida? Ele ia se entregar a Matthias e prestar suas contas, mas seria em seus termos. O pai de Grier faria algo com aqueles dossiês e Jim Heron, ou qualquer um de seus colegas, era o tipo de cara que poderia guardar uma narração gravada, em primeira pessoa, de cada assassinato que Isaac já cometeu – isso proporcionaria a Grier e a seu pai uma morte de causas naturais.
Afinal, ele tinha a impressão de que confissões feitas à beira da morte eram admissíveis no tribunal, então, uma vez que Isaac confessasse que Matthias iria matá-lo em breve, isso teria muita influência, não teria? – pelo menos seria o suficiente para que abrissem uma grande investigação.
Seu depoimento seria o seguro de vida dela e de seu pai.
Do outro lado, Grier apertou o botão ligar do aparelho e quando a máquina começou a sibilar ela ficou onde estava, olhando para a coisa.
Compelido por algo que ela não questionou, Isaac ficou em pé e se colocou atrás dela, colocando seu peito contra suas costas. A respiração de Grier ficou tensa ao sentir o corpo dele e, embora tivesse se enrijecido, ela não se moveu.
Ele estendeu as mãos e tocou as ondas loiras que caiam sobre seus ombros, correndo os dedos sobre ele. Em seguida, ele deslizou as mechas lentamente para a lateral, expondo a nuca.
Deus, ele já tinha se decidido, não tinha?
Tinha escolhido seu caminho.
– Posso beijá-la? – ele disse com voz rouca. Pois era mais cavalheiro perguntar antes.
A cabeça dela pendeu.
– Por favor.
Ele foi até o pescoço encantador, pressionando seus lábios contra a pele dela. Aquilo não era o suficiente, mas ele não confiava em si mesmo para ir mais além ou sequer para colocar suas mãos na cintura dela – se ele o fizesse, não ia parar até que ela estivesse sob ele e, por sua vez, ele estivesse dentro dela mais uma vez.
– Grier – ele sussurrou com voz rouca.
– Sim...
– Preciso dizer uma coisa.
– O que?
Algumas vezes as emoções eram uma locomotiva para as palavras: uma vez que se há uma revelação para fazer, não há freios suficientemente fortes para mantê-la nos trilhos de sua garganta.
– Eu te amo – ele pronunciou mais com ar do que com sílabas.
Contudo, ela ouviu. Deus, ela ouviu, pois inalou com um silvo.
Grier se virou tão rápido que se formou uma curva em seus cabelos e mesmo com o coração batendo forte, Isaac não desviou o olhar.
Quando ela abriu a boca, ele colocou seu dedo sobre os lábios dela e balançou a cabeça.
– Eu só precisava que você soubesse. Uma vez. Eu só precisava dizer... uma vez. Eu sei que não a conheço há tempo suficiente ou bem o suficiente e tenho plena consciência de que não sou o homem certo para você, mas algumas coisas precisam ser ditas.
O que não precisava ser transmitido era o terror dentro de sua pele.
Por mais que ele quisesse fazer a coisa certa, seu antigo patrão o pegou pelos cabelos: não havia sacrifício grande demais para garantir a segurança de Grier. Até mesmo a salvação de Isaac não era demais. Nem mesmo a queda de Matthias.
Uma garganta pigarreando discretamente fez com que Isaac olhasse para cima. Através do vidro sobre a pia, ele viu o pai de Grier em pé na cozinha – e por respeito à filha do homem, ele recuou.
– Café, pai? – Grier disse com uma voz estável ao se inclinar para o lado e pegar duas canecas no armário.
– Sim, obrigado.
Isaac podia sentir os olhos do cara oscilando entre um e outro, mas ele tinha certeza de que não queria responder qualquer pergunta.
E era evidente que Grier também não.
– Vamos sentar? – ela perguntou.
Ao invés de responder, o homem clareou a garganta mais uma vez. Sem dúvida por estar chocado com a situação do dia anterior, quando disseram para que ficasse longe, e o sentimento de “não toque na minha filha”.
Mas ele não precisava se preocupar. Ele chegou tarde demais para a última alegação, mas a sensação que a primeira causava... dariam um jeito nela.
– Pai? Vamos sentar?
– Todos vão chegar amanhã de manhã...
– Amanhã de manhã?
– É uma situação delicada. É preciso dar desculpas adequadas – esses homens e mulheres não podem sair sem um bom motivo, sem que questionamentos sejam feitos.
Isaac podia sentir Grier olhando para ele, buscando um apoio para dizer um “não” veemente, mas era isso, ele discordava dela. Amanhã era perfeito.
Ele já teria partido até lá.
No hotel, Jim acordou em seu quarto pouco iluminado e sentiu como se tivesse sido vítima de um acidente de carro. Com um caminhão. E ele estava sem cinto de segurança.
Ele estava na cama, dormindo encolhido de lado, seu corpo pesado tinha esculpido uma parte do colchão e estava posicionado como um cão à espera da morte em uma floresta. Mas ele era imortal agora... e aquilo parecia significar que não importava o dano que fosse feito nele, ele seria curado.
Sim, só que aquilo não parecia o tipo de trabalho que requeria apenas um movimento de nariz da Feiticeira, onde tudo era resolvido em um passe de mágica. Ele se sentia muito humano com as dores e feridas, a respiração que fazia suas costelas queimarem, com os saltos de seu coração que mais pareciam o andar de um bêbado. Mas a pior parte disso não era física. Estava em sua mente.
A parte em que havia deixado Sissy para trás, no reino de Devina, o matava.
Abrindo os olhos, percebeu que era manhã; sobre o topo da cabeça encrespada do Cachorro, o alarme brilhava com números vermelhos. 7h52.
Hora de levantar, ele pensou ao se virar de costas com cuidado. Do outro lado, Adrian estava apagado como uma lâmpada, o anjo tinha uma respiração pesada, seus olhos se movimentavam por trás das pálpebras fechadas.
Dado o brilho em seu rosto, era evidente que ele não estava tendo bons momentos na terra dos sonhos.
Deus, que noite, Jim pensou. Depois que Colin o deixou ali ele achou que seria apenas ele e o Cachorro. Mas, então, alguém veio do outro quarto e ele poderia concluir que seria Eddie – a coisa toda de cuidados e enfermagem era mais a praia dele.
Mas não. Adrian foi quem entrou... e permaneceu ali.
No momento, Jim não teve forças para lidar com qualquer simpatia que pudesse sentir pelo cara, então, ele envolveu com cuidado um cobertor em volta de si e calmamente se colocou em pé com as pernas tão fortes quando dois lápis. Mancando até o laptop, ele estava muito tonto, e chegou à cadeira bem a tempo – contudo, mas que droga, seu traseiro doía demais.
Apesar do fato de precisar urinar como um cavalo de corrida, ele ligou o computador e esperou impaciente para que o navegador da Internet fosse iniciado. Para passar o tempo, ele deu uma olhada nas marcas deixadas por aquilo que prendia seus pulsos. Os dois tinham linhas tortuosas de um vermelho brilhante em volta, que reluziam e estavam em carne viva, o lembrete tangível de onde ele tinha estado e o que tinham feito com ele seduziu sua mente a fazer uma viagem ao campo do stress pós-traumático. Só que foi um deslize que ele se recusou a permitir.
Voltando a prestar atenção no que estava fazendo, ele começou a digitar. Contudo, uma vez que seus dedos estavam dormentes, levou uma eternidade para chegar ao site do jornal de Caldwell e pesquisar por Cecilia Barten...
Apareceu um artigo de cerca de duas semanas atrás e a imagem de Sissy trouxe um brilho aos seus olhos. Ela estava sorrindo para a câmera em pé no meio de vários jovens da idade dela. Não dizia quanto tempo havia se passado entre o momento em que a foto foi tirada e quando foi levada por Devina – mas o fato de que ela não tinha ideia do que a esperava ao virar a esquina fez com que seu coração desconfiado ficasse ainda mais focado no trabalho.
Provavelmente era melhor que não soubesse de nada.
E ele ia fazer com que Devina pagasse por isso.
O único artigo que havia além desse relatava que ela tinha desaparecido há uma semana e os dois juntos o fizeram perceber o porquê sua primeira pesquisa de dados havia falhado. Ele pediu que o computador procurasse por assassinatos ou garotas loiras mortas. Nada relacionado a desaparecimento.
Que erro idiota.
E os detalhes eram os que Sissy tinha dito: ela era caloura na Faculdade de Albany e estava passando as férias de primavera em Caldwell. A última vez em que a viram foi quando ela saiu do mercado local por volta das nove horas.
Nenhuma foto de seus pais. Contudo, ele iria encontrá-los.
– Você a viu? – Adrian disse com uma voz um tanto áspera.
– Sim. – Jim encarou a foto de sua garota sorrindo com seus amigos. Então, ele piscou e viu seus cabelos loiros emaranhados com sangue. – Como a tiro daquela parede?
A respiração do outro anjo era do tipo que se produzia quando não se tinha uma boa notícia para dar. De jeito nenhum. E você fica dolorido com isso.
– Você não pode.
– Inaceitável. Tem que haver um jeito.
– Não que eu saiba. – Houve um palavrão e, então, um estalo no colchão e uma variedade de estalos como se Ad estivesse se espreguiçando.
– Volto já.
Quando os passos pesados se dirigiram para o outro quarto, Jim não se deu conta da saída do cara. Mas quando o focinho do Cachorro cutucou sua perna nua, ele olhou para baixo.
Os grandes olhos castanhos olhavam de um rosto de pelo que parecia palha.
– Você sabe como tirá-la de lá? Ela não pertence àquele lugar. Ela não deveria ter terminado ali.
Jim considerou que o pequeno gemido do animal significava que concordava com ele – e que também precisava sair para fazer suas necessidades.
– Dois segundos – disse Jim, preparando-se para ficar em pé. – Preciso de um banho.
Levantando seu peso morto da cadeira, ele deixou cair o cobertor e entrou no banheiro que era de um tamanho modesto. Fechando-se lá dentro, ele acendeu a luz, deteve-se no banheiro e se perguntou se seu pênis ainda funcionava de alguma maneira.
O fluxo rosa que ele urinou respondeu a pergunta. E também sugeriu que seus rins foram danificados.
Depois que terminou, grunhiu ao se inclinar para apertar a descarga e depois se virou para ligar o chuveiro. Sabonete. Ele precisava de muito mais sabonete do que aquela metade já usada que estava ali...
Jim congelou ao se ver no espelho.
Ruim. Muito ruim.
Muito pior do que ele pensava.
Sua boca estava roxa e inchada por causa de toda porcaria que tinha sido empurrada dentro dela, seu peito e sua barriga eram nada além de carne viva. Quanto ao pênis... A maldita coisa estava pendurada em seus quadris como se tivesse perdido a vontade de viver. E ele não queria saber como a parte de trás de seu corpo estava.
Usado e abusado eram os termos corretos.
E seu único pensamento, o único... apenas um... era que odiava o fato de que Sissy o tinha visto assim.
Quando seu estômago vacilou em torno de sua cintura, ele se lembrou da expressão horrorizada no rosto dela ao olhar para ele. Pobre garota... Ele tinha sido treinado para toda aquela porcaria. Ele tinha passado por isso antes... bem, não exatamente pelo que Devina fez com ele, mas com certeza ele teve que lidar com isso algumas vezes com punhos e facas. Até mesmo com uma bala ou duas. Mas Sissy...
Ele quase não conseguiu voltar à bacia sanitária à tempo.
Quando seu corpo se inclinou e nada além de bile saiu de sua boca, seus olhos lacrimejaram pelo esforço.
Maldição, Sissy o viu daquele jeito. Violado sexualmente, sangrando, surrado...
Mais vômito.
Ele não teve certeza de quando exatamente Adrian entrou, pois no terceiro round de lances que saíam de sua boca ele se deu conta que não sabia se ela estava livre do que tinha feito com ele. Afinal, ela foi capturada. Ela estava presa naquele inferno. E Devina tinha muitas coisas que satisfariam o gênero masculino.
– Aqui – Adrian disse, passando-lhe um pano frio.
Jim não conseguia enxugar o rosto, pois doía demais, então, ele deu leves toques, sentindo a umidade fresca como um bálsamo contra seu rosto em chamas e lábios queimando.
Baixando a cabeça, ele percebeu que tinha deixado manchas de sangue fresco no piso creme, das feridas que tinham sido reabertas em seus joelhos.
Sim, imortal não significava embalsamado; isso era certeza.
Adrian sentou-se ao lado dele, com o rosto muito pálido enquanto olhava ao redor da bacia sanitária.
– Quer que eu o coloque no banho? Foi o que me ajudou quando ela...
Quando seus olhos se fecharam com força, a conversa era de sobrevivente para sobrevivente.
– Ah, droga... – Quando Jim falou, sua voz era rouca e parecia que tinham passado um desentupidor por sua garganta.
– Ela me viu assim. Sissy... ela viu isso.
Ele não podia acreditar que havia dito isso, mas manter dentro de si era inútil.
Incapaz de manter contato visual, Jim fechou suas pálpebras com força e encostou ao lado da banheira. Enquanto a água caía como a chuva atrás dele e o chão duro pressionava seu traseiro, ele sussurrou: – Ela me viu arruinado.
Foi a última coisa que disse antes de desmaiar.
CAPÍTULO 37
Você não deve ter pensando que uma casa com seiscentos metros de área construída, no centro da cidade, com três andares – quatro, se contar o porão com a adega – poderia ser estreita como uma caixa de sapato.
Mas, à medida que a manhã se arrastava e chegava o florescer do meio dia, Grier sentia como se não pudesse ter ar suficiente... ou algum momento à sós com Isaac. Seu pai era uma presença passiva com olhos de águia que parecia preencher todo o espaço, mesmo quando não estava nele. E Isaac estava tão ruim quanto ele, movendo-se constantemente, olhando pelas janelas, indo e voltando da frente da casa para a cozinha.
Por volta das duas horas, ela não aguentava mais e foi organizar seu armário no quarto. O que era ridículo, pois já estava arrumado – apesar de ser uma cura rápida para o que estava passando.
Depois de parar no meio do quarto e fazer um giro pelas fileiras de roupas penduradas por categoria, ela pegou cada blusa, saia, vestido, terno e par de calças das prateleiras e os colocou em uma pilha no chão. Aparentemente, ela estava reorganizando as várias sessões. Na realidade, ela estava dando a si mesma um pouco de bagunça para limpar para que pudesse desfrutar de um pouco de controle.
Cabide por cabide, item por item, ela começou a organizar seu guarda-roupa.
Deus... Isaac.
Se ela o ouviu direito, lá na cozinha, perto da cafeteira... ele disse que a amava.
Vamos lá... claro que ela ouviu direito. E seus olhos incríveis confirmaram o que seus ouvidos tinham lutado para compreender.
Contudo, havia muitos mas que a advogada que havia nela queria esquematizar. A questão era, a mulher por trás da advogada de defesa não se importava com nada daquilo: ela sentia algo tão forte quanto ele.
Naturalmente, a lógica dizia que não devia confiar na emoção nos dois casos, apontando que tudo era uma questão de circunstâncias, drama, tensão, sexo – Deus, o sexo. Só que seu coração tinha uma teoria diferente. Ela sentiu uma faísca entre eles no instante em que colocou os olhos nele e a decisão de Isaac de tomar a frente e fazer a coisa certa sobre seu chefe corrupto e perigoso... bem, isso foi ainda melhor que os incríveis orgasmos.
Ele ganhou todo o respeito dela com isso.
Ao pegar um de seus ternos pretos com risca de giz, ela se entreteve com uma breve fantasia onde eles acabavam juntos em uma ilha segura e remota com nada além do dilema sobre o que fazer para almoço e jantar para preocupar suas mentes. Um dia de sonho na Ilha da Fantasia com nada para ser questionado seria uma ótima diversão, mas ela não ia enganar a si mesma. Isaac ia desaparecer. O governo ia levá-lo e escondê-lo até que as audiências no Congresso ou os procedimentos judiciais fossem iniciados. E se ele não acabasse na cadeia pelas atrocidades de guerra nos Estados Unidos, seria extraditado para algum inferno no exterior.
E foi por isso que ele disse aquilo. Era seu adeus.
– Uau.
Grier girou sobre os calcanhares, o terno em suas mãos se levantou em um círculo em volta de seu corpo antes de ser colocado de volta no lugar – como se tivesse esquecido momentaneamente sua discrição e retomado sua compostura.
E não é que ela sabia como a coisa se sentia?
Isaac se amaldiçoou.
– Desculpe, eu realmente preciso aprender a bater.
Grier ficou mais aliviada.
– Eu também estou nervosa demais.
Franzindo a testa, ele mediu a pilha no meio do carpete creme.
– Muitas roupas.
– Provavelmente roupas demais. Eu preciso doar um pouco para alguma entidade.
Ele avançou e pegou um de seus vestidos. Era longo e preto, como todos os outros, pois ela não era do tipo de garota que gostava de cores e brilhos.
– Para onde vai esse?
– Ah... – Havia apenas uma seção com barras altas o suficiente para os longos. Então, ela havia os tirado por nada, apenas para colocá-los novamente. – Aqui. No canto, por favor.
Ele pegou o vestido feito para se usar à noite e o colocou no lugar onde já tinha estado antes. Então, ele se voltou para o próximo, endireitando as ombreiras em um cabide acolchoado de cetim. Antes de colocá-lo no lugar, ele se surpreendeu por baixar a cabeça e colocar seu nariz no decote.
– Tem o cheiro do seu perfume – ele murmurou antes de colocá-lo sobre a haste de bronze.
Foi o que bastou para que um arrepio percorresse dentro dela – no bom sentido. Infelizmente, o formigamento foi substituído por tudo o que estava pairando sobre eles.
– Você já recebeu algum contato... deles?
– Não.
– O que você vai fazer se eles não responderem?
– Eles vão.
Ele não disse mais nada, apenas pegou um vestido com um corpete de veludo e uma larga faixa.
– Vestido de Natal?
– Sim.
– É lindo.
– Obrigada. Isaac? – Quando ele olhou, ela disse: – Eu...
Ele a interrompeu.
– O que é esse som?
– Que som...
O terno caiu de suas mãos quando ela reconheceu o sutil sinal sonoro e se atrapalhou para tirar a corrente do sistema de segurança do bolso. Era certeza, uma luz vermelha estava piscando. “Havia alguém na casa.”
Ela interrompeu o barulho e começou a ir em direção ao telefone ao lado da cama, mas ele segurou seu braço.
– Não. Nada de polícia. Já tiramos vidas de inocentes o suficiente com isso.
Sua arma surgiu e expôs um tubo quase tão longo quando seu punho. Quando ele engatou o silenciador na ponta da arma, olhou em volta e seguiu até o espaço mais abaixo onde o mecanismo do sistema de segurança se encontrava.
Mantendo a arma em mãos, ele arrancou a superfície de metal.
– Entre aqui. E não saia até que eu...
– Eu posso ajudar...
A expressão nos rosto dele fez com que ela desse um passo para trás: seu olhar era frio e totalmente estranho – como se ela estivesse olhando para um vidro fosco... sem esperança de algum dia ver o que estava por trás dele de novo.
– Entre aí, agora.
Os olhos dela encararam a arma e depois se voltaram para sua face rígida e implacável. Era difícil saber o que era mais assustador: a ideia de que alguém estava em sua casa ou o estranho em pé na frente dela. E, então, ficou claro para ela...
– Oh, meu Deus, meu pai!
– Eu cuido dele. Mas não vou fazer isso direito se estiver preocupado com você. – A arma apontava para o buraco escuro que ele tinha aberto. – Vá, agora.
Depositando sua confiança nele, Grier se abaixou, esquivou-se dentro do local e respirou o ar bolorento dos beirais quando Isaac recolocou a grade no lugar. Houve um movimento, um clique, outro movimento, outro clique ao fixar a coisa na parede e, em seguida, pelas frestas, ela o viu sair correndo, silencioso como uma sombra.
Ela olhou o relógio. Ouvia com atenção.
O medo se comprimia com ela dentro dos limites apertados de seu esconderijo, ocupava mais espaço que ela, trazia à tona a imagem de Isaac como um estranho, até aquilo ser tudo o que conseguia ver.
Silêncio.
Mais silêncio.
Que foi prontamente interrompido por uma estridente paranoia em sua cabeça.
Oh, Deus... e se tudo isso não passou de uma armadilha? E se Isaac tinha sido enviado com o único propósito de seduzir seu pai e determinar o quão longe ele iria para expor a agência?
Só que foi ela quem sugeriu isso.
Ou será que a intenção dele era que ela acreditasse nisso?
Contudo, seu perfil dizia que ele precisava de uma motivação moral – e se fosse uma mentira? E se aquilo fazia dele o agente infiltrado perfeito? E se tudo aquilo não passasse de um jogo para que seu pai entregasse os dossiês... antes de o matarem.
E, ainda assim, Isaac a colocou ali para protegê-la.
Só que ela não o reconhecia no momento em que fez isso...
Meu bom Deus, o transmissor de alerta – a luz estava apagada, não estava? Quando ele balançou a coisa em frente a ela na cozinha esta manhã, a luz que ela tinha visto antes estava apagada. O que aquilo significava? E, pensando nisso, o lapso de tempo lhe parecia bizarro: entre o momento em que ele aparentemente se entregou até agora.
Ela tinha que sair dali. Conseguir ajuda.
Grier se contorceu e se apertou atrás dos componentes empilhados do centro nervoso do sistema de segurança. A escadaria oculta que corria no meio da casa fazia parte de sua construção original, foi feita por suspeita e desconfiança de que os britânicos ainda pudessem passar por ali em 1810, cerca de trinta anos depois da Revolução.
Os truques da casa acabaram sendo úteis no presente.
O brilho do sistema de segurança proporcionava iluminação suficiente para que ela encontrasse a lanterna coberta de poeira que ficava pendurada em um prego no topo da escada secreta. Acendendo a luz, ela tateou os degraus antigos, entalhados à mão, deixando suas impressões para trás na poeira. Ao prosseguir, teias de aranha grudaram em seus cabelos e os ombros foram arranhados pela áspera argamassa dos tijolos.
Quando chegou ao primeiro andar, fez uma pausa. É claro que ela não conseguia ouvir nada devido às grossas paredes, mas o pai dela tinha acrescentado um tubo que parecia fazer parte do sistema de ventilação. Na verdade, porém, servia como posto de vigilância secreto.
Grier subiu e se inclinou para o lado para conseguir enxergar direito, apoiando-se sobre alguns tijolos que estavam mais firmes que os outros.
Quando ela apertou os olhos, sua visão trespassou as ripas e focou-se na entrada da frente. Se ela se arqueasse um pouco mais e esticasse o pescoço, ela conseguiria ver a cozinha...
Grier abandonou a lanterna e apertou as mãos sobre a boca.
Para não gritar.