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CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.
CONTINUA
CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.
CONTINUA
CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.
CONTINUA
CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.
CONTINUA
CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.
CONTINUA
CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.
CONTINUA
CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.
CONTINUA
CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.
CONTINUA
CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.
CONTINUA
CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.
CONTINUA
CAPÍTULO 23
Matthias fez a última etapa da viagem sozinho. Ele foi levado em um curto voo pela cidade de Boston, pois embora pudesse pilotar um bom número de aviões diferentes, foi despojado de suas asas por causa de seus ferimentos.
Mas pelo menos ele podia dirigir.
O voo de Beantown até Caldwell foi curto e tranquilo, e o Aeroporto Internacional de Caldwell era sossegado – embora quando se tem o nível de habilitação que ele tinha, os tipos de naves civis mantidas pelo governo nunca chegavam perto de você ou de sua bagagem.
Não que tivesse trazido bagagem com ele – além da que carregava em seu cérebro.
Ainda assim, seu carro era todo preto sem marcas oficiais, com blindagem e vidros grossos o suficiente para deter qualquer bala. Era justamente um desses que ele tinha quando foi visitar Grier Childe... e tal carro seria o que ele usaria para se dirigir a qualquer cidade, em casa ou no exterior.
Ele não disse a ninguém além de seu segundo homem na linha de comando aonde estava indo – e mesmo seu homem mais confiável não entendeu o motivo por trás disso. Contudo, não tinha problemas com o segredo: o bom de ser a mais escura sombra dentre uma legião delas era que, quando você desaparecia, isso fazia parte do seu maldito trabalho – e ninguém fazia qualquer questionamento.
A verdade era que essa viagem estava abaixo do nível dele, o tipo de coisa que ele normalmente teria atribuído ao seu braço direito – e, mesmo assim, teve que fazer isso por si mesmo.
Parecia uma peregrinação.
Contudo, se ele tinha que fazer aquilo, as coisas ficariam mais inspiradoras muito rápido. A estrada que ele estava seguindo no momento estava cheia de lojas e postos de gasolina que poderiam existir em qualquer cidade, em qualquer lugar. O trânsito era tranquilo e sem pedágios; tudo estava fechado – então, só se passava por ali se estivesse de passagem para outro lugar.
Era assim para a maioria das pessoas. Mas não para ele. Ao contrário, seu destino era... bem ali, na verdade.
Desacelerando, ele se direcionou para a lateral e estacionou paralelo ao meio-fio. Do outro lado de um gramado raso, a casa funerária McCready estava escura por dentro, mas havia luzes externas por todo o local.
Sem problemas.
Matthias fez uma ligação e foi transferido de uma pessoa a outra, pulando de uma linha a outra até chegar ao responsável pelas decisões, que poderia conseguir o que ele queria.
E, então, ele se sentou e esperou.
Ele odiava o silêncio e a escuridão no carro... mas não por ele estar preocupado se haveria alguém no seu banco de trás ou se alguém sairia fazendo ruídos e atirando das sombras. Ele gostava de se manter em movimento. Enquanto estivesse em movimento, ele poderia fugir do latejar que esmagava de maneira inevitável suas glândulas suprarrenais quando ele estava em repouso.
A quietude era assassina.
E isso transformava o grande sedã em um caixão...
O telefone dele tocou e ele sabia quem era antes de checar. E, não, não era nenhuma das pessoas com quem ele tinha acabado de falar. Ele já tinha terminado de lidar com eles.
Matthias atendeu no terceiro toque, apenas um pouco antes da caixa postal atender.
– Alistair Childe. Que surpresa.
O silêncio impactante foi tão satisfatório.
– Como sabia que era eu?
– Você acha mesmo que eu daria esse telefone a qualquer um? – Quando Matthias olhou para a casa funerária através do para-brisa, ele achou irônico que os dois estivessem conversando em frente àquele local – uma vez que ele mandou o filho daquele homem para uma casa daquelas.
– Está tudo sob minhas condições. Tudo.
– Então, você sabe por que passei o dia inteiro tentando encontrá-lo.
Sim, ele sabia. E ele, deliberadamente, fez com que ficasse difícil ser encontrado pelo cara: ele acreditava mesmo que as pessoas eram como pedaços de carne; quanto mais cozidas, mais macias ficavam.
Mais saborosas também.
– Oh, Albie, claro que estou ciente de sua situação. – Uma chuva fina começou a cair, as gotas manchavam o vidro. – Você está preocupado com o homem que passou esta última noite com sua filha. – Outra dose de silêncio. – Você não sabia que ele esteve em sua casa durante a noite toda? Bem, as crianças nem sempre contam tudo aos seus pais, não é mesmo?
– Ela não está envolvida. Eu prometo, ela não sabe de nada...
– Ela não disse que teve um hóspede durante a noite. Como pode confiar tanto nela?
– Você não pode tomá-la. – A voz do homem embargou. – Você tomou meu filho... Não pode tomá-la.
– Posso ter quem eu quiser. E tomar quem eu quiser. Você sabe disso agora, não sabe?
De repente, Matthias percebeu uma estranha sensação em seu braço esquerdo.
Olhando para baixo, ele viu seu punho dobrado no volante com tanta força que seus bíceps tremiam.
Ele se apoiou na maçaneta para aliviar... mas isso não aconteceu.
Entediado com os pequenos espasmos e tiques em seu corpo, ele ignorou o mais recente.
– Eis o que tem de fazer para se certificar sobre sua filha: consiga Isaac Rothe para mim e eu vou embora. É simples assim. Dê o que eu quero e deixo sua garota em paz.
Naquele momento, o local inteiro ficou às escuras – graças ao seu pequeno telefonema.
– Você sabe que digo a verdade em cada palavra – Matthias disse, indo em direção à sua bengala. – Não me faça matar outro Childe.
Ele desligou e colocou o telefone de volta no casaco.
Balançando bem a porta, ele gemeu ao sair e optou por se manter na calçada de concreto ao invés de andar no gramado, mesmo sabendo que seria um caminho mais rápido para suas costas. Seu corpo perambulando sobre a grama? Nada bom.
Após abrir a fechadura da porta dos fundos – o que provava que apesar de ser o chefe, não tinha perdido seu treinamento com as porcas e parafusos – ele deslizou dentro da funerária e começou a procurar o corpo do soldado que o havia salvado. Confirmar a identidade do “cadáver” de Jim Heron parecia tão necessário quanto sua próxima respiração.
De volta a Boston, no jardim dos fundos daquela advogada de defesa, Jim se preparou para a luta que estava se aproximando, literalmente, no vento.
– É como matar um humano – Eddie gritou na ventania. – Vá direto ao centro do peito... contudo, cuidado com o sangue.
– Essas vadias são muito desleixadas – o sorriso de Adrian tinha certa loucura e seus olhos brilhavam com uma luz profana. – É por isso que usamos couro.
Quando a porta da cozinha da casa bateu ao fechar e as luzes se apagaram, Jim rezou para que Isaac mantivesse a si mesmo e àquela mulher lá dentro.
Pois o inimigo tinha chegado.
Dentre as rajadas de vento, sombras profundas ondulavam sobre o chão e borbulhavam, formando algo que se tornava sólido. Nenhum rosto, nada de mão, sem pés – sem roupas. Mas havia braços, pernas e cabeça, de onde ele achava que vinha o programa principal: o mau cheiro. A coisa cheirava a lixo podre, uma combinação de ovos podres, suor, carne estragada e, além disso, rosnava como os lobos faziam quando caçavam em um bando organizado.
Esse era o mal que andava e se movia, as trevas em uma forma tangível, o conjunto de uma infecção desagradável, exasperante que o fez ter vontade de tomar um banho com água sanitária.
Assim que se colocou em posição de combate, sua nuca se agitou – aquele sinal de alarme que tinha sentido na noite anterior latejava na base de seu cérebro. Seus olhos dispararam para a casa procurando o motivo daquela sensação... só que ele tinha certeza que aquela não era a fonte.
Seja como for – ele precisava da sua motivação na hora H.
Quando uma das sombras percorreu seu espaço, Jim não esperou pelo primeiro ataque – não fazia seu estilo. Ele balançou de maneira ampla sua faca de cristal e continuou a investir, retrocedendo com um golpe que se esticou mais longe do que esperava.
Era evidente que havia alguma coisa elástica neles.
Porém, Jim fez contato, entalhando alguma coisa que causou um jato de um líquido que veio em sua direção. Em pleno ar, os respingos se transformaram em pelotas de chumbo grosso, que se dissolveram ao acertá-lo. A picada foi instantânea e intensa.
– Vá se ferrar. – Ele sacudiu a mão, distraindo-se momentaneamente com a fumaça que saía de sua pele.
Um golpe atingiu um dos lados de seu rosto e fez com que sua cabeça balançasse como um sino – provando que ele poderia ser um anjo e tudo mais daquela porcaria, mas seu sistema nervoso, decididamente, ainda era humano. Ele passou ao ataque imediatamente, tirando uma segunda faca e ferindo duas vezes o bastardo, levando a coisa para os arbustos com força enquanto se esquivava dos socos.
Enquanto eles lutavam, a parte de trás de seu pescoço continuou a gritar, mas ele não poderia se dar ao luxo de se distrair.
A luta que está a sua frente vem em primeiro lugar. Depois, pode-se lidar com o que vem a seguir.
Jim foi o primeiro a dar um golpe mortal. Lançou-se para frente quando seu oponente arqueou, sua adaga de cristal foi em direção ao intestino. Quando uma explosão das cores de um arco-íris flamejou, ele se afastou, cobrindo o rosto com o braço para bloquear o jato mortal, seu ombro coberto de couro suportou o peso do impacto. Aquela porcaria projetada a vapor fedia como o ácido de uma bateria – também queimava como tal, como se o sangue do demônio tivesse atravessado o couro e se dirigisse para sua pele.
Ele voltou imediatamente à posição de combate, mas estava coberto por outras três manchas de óleo: Adrian estava lidando com dois e Eddie estava com outro... demônio... ou seja lá o que fosse.
Com um palavrão, Jim levantou a mão e esfregou a nuca. A sensação progrediu de um formigamento para um rugir e ele se curvou sob a agonia agora que sua adrenalina tinha subido um pouco. Deus, aquilo só piorava... ao ponto de ele não conseguir mais se segurar e cair de joelhos.
Colocando a palma da mão no chão e apoiando-se, ficou claro o que estava acontecendo. Era o caso de um terrível timing, Matthias tinha sido atraído ao feitiço que colocou em seu cadáver em Caldwell...
– Vá. – Eddie disse entre dentes quando cortou algo e se retraiu. – Nós lidamos com isso! Você vai até Matthias.
Naquele momento, Adrian atingiu um dos adversários, a adaga de cristal foi fundo no peito da coisa antes dele pular e inclinar-se para evitar o jato. A rajada de chumbo grosso atingiu o outro demônio que estava lutando...
Oh, droga. O bastardo oleoso absorveu o jato... e dobrou de tamanho.
Jim olhou para Eddie, mas o anjo gritou.
– Vá! Estou dizendo... – Eddie evitou um golpe e disparou com seu punho livre. – Você não pode lutar assim!
Jim não queria deixá-los, mas, rapidamente, ele foi ficando pior do que inútil... seus colegas teriam que defendê-lo se aquela dor insistente ficasse um pouco mais aguda.
– Vá! – Eddie gritou.
Jim amaldiçoou, mas ficou em pé, desfraldou suas asas e decolou em um brilho...
Caldwell, Nova York, estava a mais de cem quilômetros a oeste – isso quando se é um humano a pé, de bicicleta ou de carro. A companhia aérea Anjos Airlines cobria a distância em um piscar de olhos.
Quando ele pousou no gramado raso que havia na frente da casa funerária, viu o carro sem marcas oficiais estacionado na calçada... e o fato de um quarteirão inteiro estar sem eletricidade... soube que estava certo.
Matthias tinha feito uma ligação.
Bem o seu estilo.
Jim atravessou a grama e sentiu como se tivesse voltado no tempo... àquela noite no deserto que mudou tudo para ele e para Matthias. Sim, sua magia de invocação tinha funcionado.
A questão era: o que fazer com sua presa?
CAPÍTULO 24
Parado na cozinha de Grier, Isaac aprovou totalmente a maneira como ela cuidou das coisas. Em meio ao caos, ela estava calma e lidou com o telefone e com o sistema de segurança: um, dois, três... ela interrompeu o alarme de incêndio, fez uma ligação dizendo ser um alarme falso e reiniciou o sistema. E fez tudo agachada atrás do balcão, protegida e escondida.
Definitivamente, era o seu tipo de mulher.
Com ela liderando tudo, ele estava livre para tentar descobrir o que diabos estava acontecendo no quintal. Contorcendo-se de maneira que seu corpo continuasse escondido, ele olhou através do vidro... mas tudo o que conseguiu ver foi o vento e um monte de sombras.
Ainda assim, seus instintos gritavam.
O que Jim estava fazendo lá atrás com seus amigos? Quem tinha aparecido? A equipe de Matthias costumava aparecer em carros sem marcas oficiais. Eles não usavam cabos de vassoura nem voavam num céu tempestuoso. Além disso, não havia ninguém lá fora até onde ele conseguia ver.
Conforme o tempo se arrastou e um monte de nada além de vento passou, ele pensou que talvez tivesse perdido completamente a cabeça.
– Você está bem? – ele sussurrou sem se virar.
Houve um ruído e, em seguida, Grier estava ombro a ombro com ele no chão.
– O que está acontecendo? Você consegue ver alguma coisa?
Ele notou que ela não respondeu sua pergunta... mas, até parece, ela precisava mesmo fazer isso?
– Nada de que precisemos fazer parte.
Nada, ponto final, é o que parecia. Apesar de... bem, na verdade, se ele apertasse os olhos, as sombras pareciam formar padrões consistentes como lutadores envolvidos em combate corpo a corpo. Exceto, claro, por não haver ninguém lá fora... mas parecia haver lógica nos movimentos. Para obter o efeito do que ele estava vendo, uma legião de luzes teria de brilhar em diferentes direções para chegar perto daquele efeito óptico.
– Isso não parece certo para mim – disse Grier.
– Eu concordo – ele olhou para ela. – Mas eu vou cuidar de você.
– Pensei que tinha ido embora.
– Não fui – a parte de não conseguir fazer isso foi algo que manteve consigo. – Não vou deixar que ninguém machuque você.
Sua cabeça se inclinou para o lado ao olhar para ele.
– Sabe...? Eu acredito em você.
– Você pode apostar sua vida nisso.
Com um rápido movimento, ele colocou sua boca na dela em um beijo forte para selar o acordo. E, então, quando se separaram, o vento parou... como se o ventilador industrial que estava causando toda aquela explosão tivesse sido tirado da tomada: ali nos fundos, não havia nada além de silêncio.
Que diabos estava acontecendo?
– Fique aqui – ele disse enquanto ficava em pé.
Naturalmente, ela não obedeceu a ordem, mas levantou-se, descansou as mãos nos ombros dele como se estivesse preparada para segui-lo. Ele não gostou disso, mas sabia que argumentar não o levaria a qualquer lugar... o melhor que podia fazer era manter seu peito e ombros frente a ela para bloquear qualquer disparo.
Ele avançou para frente até que pudesse ver melhor a parte de fora. As sombras desapareceram e os galhos de árvores e arbustos estavam quietos. Os sons de trânsito distantes e o alarme de uma ambulância eram, outra vez, a música ambiente que percorria toda a vizinhança.
Ele olhou para ela.
– Vou lá fora. Pode usar uma arma de fogo? – Quando ela assentiu com a cabeça, ele tirou uma de suas armas. – Pegue isso.
Ela não hesitou, mas, cara, ele odiava a visão de suas mãos pálidas e elegantes em sua arma.
Ele acenou com a cabeça para a coisa.
– Aponte e atire com as duas mãos. Já tirei a trava de segurança. Estamos entendidos?
Ao assentir com a cabeça, ele a beijou novamente, pois tinha que fazer; então, a posicionou contra os armários próximos ao chão. Desse ponto de vista, ela poderia enxergar se alguém viesse de frente ou por trás, mas também abrangia a uma porta interna que ele tinha a impressão de que se abria para as escadas do porão.
Pegando sua outra arma, Isaac saiu com um rápido movimento...
Sua primeira respiração trouxe um cheiro terrível até seu peito e atrás de sua garganta. Mas o que...? Era como um vazamento químico...
Do nada, um dos caras que estava com Jim apareceu. Era o cara da trança e parecia que tinham vaporizado um galão de óleo lubrificante nele – e também parecia que tinha gelo seco em todos os seus bolsos: anéis de fumaça embaçavam sua jaqueta de couro e droga... o cheiro.
Antes que Isaac pudesse perguntar que droga era aquela, não havia dúvida que mesmo sendo estranho um ao outro, eles falavam a mesma língua: o cara era um soldado.
– Você quer me dizer que diabos está acontecendo aqui?
– Não. Mas não me importaria de pegar um pouco de vinagre branco, se ela tiver.
Isaac franziu a testa.
– Sem ofensa, mas eu acho que fazer um tempero de salada é a última de suas preocupações, cara. Sua jaqueta precisa de uma mangueira.
– Eu tenho queimaduras para cuidar.
Era evidente, havia grandes manchas vermelhas na pele do pescoço e nas mãos. Como se tivesse sido atingido por algum tipo de ácido.
Difícil argumentar com o cara cheio de vapor, considerando que estava machucado.
– Só um segundo.
Entrando na casa, Isaac limpou a garganta.
– Ah... você tem vinagre branco?
Grier piscou e apontou com o cano da arma em direção à pia.
– Eu uso para limpar a madeira. Mas por quê?
– Bem que eu queria saber. – Dirigiu-se até a pia e encontrou uma jarra enorme de vinagre.
– Mas eles querem um pouco.
– Eles quem?
– Amigos de um amigo.
– Eles estão bem?
– Sim. – Considerando que a definição de bem incluía estar um pouco tostado e torrado.
Do lado de fora, ele entregou a coisa, que foi prontamente jogada em volta do corpo como água fria em um jogador de futebol suado. No entanto, aquilo eliminou o vapor e o cheiro nos dois caras tostados e feridos.
– E quanto aos vizinhos? – Isaac disse, olhando ao redor. O muro de tijolos que circulava a casa trabalhava a favor deles, mas o barulho... o cheiro.
– Vamos cuidar deles – o cara tostado respondeu. Como se não fosse grande coisa e como se já tivesse feito antes.
“Que tipo de guerra eles estavam lutando?”, Isaac pensou. Havia outra organização além das operações extraoficiais?
Ele sempre achou que Matthias fosse o mais sombrio dentre as sombras. Mas talvez aqui houvesse outro nível. Talvez tenha sido a maneira como Jim tinha saído.
– Onde está Heron? – ele perguntou.
– Ele vai voltar. – O cara dos piercings devolveu o vinagre. – Você só precisa ficar onde está e cuidar dela. Nós cuidamos de você.
Isaac acenou com a arma para frente e para trás.
– Quem diabos são vocês?
O Sr. Tostado, que parecia o mais equilibrado dos dois, disse: – Apenas parte do pequeno grupo de Jim.
Pelo menos, isso fazia algum sentido. Mesmo sendo evidente que os dois travaram um duro combate, eles nem pareciam se incomodar. Não lhe surpreendia que Jim trabalhasse com eles.
E Isaac tinha a sensação de que sabia o que eles estavam fazendo – Jim devia estar atrás de Matthias. Isso explicava o desejo do cara de se envolver e brincar de gato e rato com passagens de avião.
– Vocês precisam de outro soldado? – Isaac perguntou, brincando um pouco.
Os dois se entreolharam e depois voltaram a olhar para ele.
– Não é com a gente – eles disseram em uníssono.
– É com Jim?
– Mais ou menos – o Sr. Tostado falou. – E você tem que estar morrendo de vontade de entrar...
– Isaac? Com quem está conversando?
Quando Grier saiu da cozinha, ele desejou que ela tivesse ficado lá dentro.
– Ninguém. Vamos entrar de novo.
Virando-se para se despedir dos colegas de Jim, ele congelou. Não havia ninguém por perto. Os subordinados de Jim tinham ido embora.
Sim, quem e o que quer que fossem, eram o seu tipo de soldado.
Isaac foi até Grier e conduziu os dois para dentro. Quando trancou a porta e acendeu uma lâmpada do outro lado da cozinha, ele fez uma careta. Cara, a cozinha não cheirava muito melhor do que aqueles dois lá atrás: ovo queimado, bacon carbonizado e manteiga enegrecida não eram uma festa para o velho e bom olfato.
– Você está bem? – ele perguntou, mesmo sabendo que a resposta era evidente.
– Você está?
Ele correu os olhos sobre ela da cabeça aos pés. Ela estava viva e ele estava com ela e estavam seguros naquela fortaleza de casa.
– Estou melhor.
– O que havia no quintal?
– Amigos. – Ele pegou sua arma de volta. – Que querem nós dois em segurança.
Para manter-se longe da ideia de envolvê-la em seus braços, ele embainhou as duas armas em sua jaqueta e pegou a panela do fogão. Jogando os restos de seu “quase jantar” no triturador da pia, ele lavou a coisa toda.
– Antes que pergunte – ele murmurou. – Não sei mais do que você.
O que era essencialmente verdade. Claro, ele estava um passo à frente dela quando se tratava de algumas coisas... mas quanto àquela coisa no quintal? Não fazia ideia.
Ele pegou um pano de prato de um gancho e... percebeu que ela não tinha dito nada por um tempo.
Virando-se, ele viu que ela tinha sentado em um dos bancos e cruzado os braços em volta de si. Ela estava totalmente contida, recuou dentro de si e se transformou em pedra.
– Estou tentando... – Ela limpou a garganta. – Eu estou realmente tentando entender tudo isso.
Ele trouxe a panela de volta ao fogão e também cruzou os braços, pensando que lá estava outra vez, a grande divisão entre civis e soldados. Esse caos, confusão e perigo mortal? Para ele, era a rotina dos negócios.
Só que aquilo a matava.
Como um completo idiota, ele disse: – Vai dar outra chance ao jantar?
Grier balançou a cabeça.
– Estar em um universo paralelo onde tudo parece ser sua vida, mas, na verdade, é algo totalmente diferente, mata o apetite.
– Sei como é – ele assentiu com a cabeça.
– Na verdade, fez disso sua profissão, não fez?
Ele franziu a testa e deixou a panela onde a tinha colocado no balcão entre eles.
– Ouça, você tem certeza de que posso fazer para você um...
– Eu voltei ao seu apartamento. Essa tarde.
– Por quê? – Droga.
– Foi depois que deixei seu dinheiro na delegacia e dei meu depoimento. Adivinhe quem estava no seu quarto?
– Quem?
– Era alguém que meu pai conhecia.
Os ombros de Isaac ficaram tão tensos, que ele sentiu dificuldade para respirar. Ou talvez seus pulmões tivessem congelado. Oh, Jesus Cristo, não... não...
Ela empurrou algo sobre o granito em direção a ele. Um cartão de visita.
– Eu deveria ligar para esse número se você aparecesse por aqui.
Quando Isaac leu os dígitos, ela riu de maneira cortante.
– Meu pai exibiu a mesma expressão no rosto quando leu o que havia no cartão. E, deixe-me adivinhar, você também não vai me dizer quem atenderia a ligação.
– O homem no meu apartamento. Descreva-o. – Mesmo já sabendo quem era.
– Ele tinha um tapa-olho.
Isaac engoliu em seco, pensando em tudo o que imaginou que ela tinha naquele tecido quando saiu do carro... ele nunca considerou que pudesse ter sido dado por Matthias pessoalmente.
– Quem é ele? – ela perguntou.
A resposta de Isaac foi apenas um movimento com a cabeça. Como era de se esperar, ela já estava em pé à beira do precipício que dava em um buraco de ratos para o qual ela e seu pai foram sugados. Qualquer explicação seria um chute no estômago que a fizesse se afastar do precipício e de uma queda livre...
Com um movimento repentino, ela saiu do banquinho e pegou o copo de vinho que tinha apoiado.
– Eu estou tão cansada desse maldito silêncio!
Ela lançou o vinho ao longo do cômodo e, quando o copo bateu na parede, quebrou-se, deixando uma mancha de vinho no gesso e cacos de vidro no chão.
Quando se virou para ele, estava ofegante e seus olhos estavam em chamas.
Houve um silêncio violento. E, então, Isaac deu a volta na ilha em sua direção.
Ele manteve a voz baixa enquanto se aproximava.
– Quando você esteve na delegacia hoje, eles perguntaram sobre mim?
Ela pareceu momentaneamente perplexa.
– Claro que sim.
– E o que disse a eles?
– Nada. Pois além do seu nome, eu não sei de nada.
Ele balançou a cabeça, aproximando seu corpo cada vez mais do dela.
– Aquele homem no meu apartamento. Ele perguntou por mim?
Ela fez um gesto com as mãos para cima.
– Todos querem saber sobre você...
– E o que você disse a ele?
– Nada – ela chiou.
– Se alguém da CIA ou da Agência de Segurança Nacional vier até sua porta e perguntar por mim...
– Não posso dizer nada a eles!
Ele parou tão perto, que conseguia ver cada cílio em torno de seus olhos.
– Assim está certo. E isso a manterá viva. – Quando ela amaldiçoou e se afastou, ele agarrou o braço dela e a trouxe de volta. – Aquele homem no meu apartamento é um assassino a sangue-frio e ele a deixou ir embora apenas porque quer mandar uma mensagem para mim. Essa é a razão pela qual não vou dizer nada...
– Eu posso mentir! Mas que droga! Por que acha que sou tão ingênua? – Ela cravou os olhos nele. – Você não tem ideia de como tem sido toda minha vida, vendo todas essas sombras e nunca tendo uma explicação sobre elas. Eu posso mentir...
– Eles vão torturá-la. Para fazer você falar.
Isso a calou.
E ele continuou.
– Seu pai sabe disso. Eu também... e, acredite, durante o treinamento eu passei por um interrogatório, então, eu sei exatamente o que eles farão com você. A única maneira que posso ter certeza de que não passará por isso é se não tiver nada para dizer. Sinceramente, você está muito perto disso, de qualquer maneira... mas não é sua culpa.
– Deus... eu odeio isso. – O tremor em seu corpo não era de medo. Era raiva, pura e simplesmente. – Eu só queria bater em alguma coisa.
– Certo – Ele apertou o pulso dela e puxou seu braço por cima do ombro dele. – Desconte em mim.
– O quê?
– Bata em mim. Arranque meus olhos. Faça o que for preciso.
– Você está louco?
– Sim. Insano. – Ele a soltou e apoiou seu peso, ficando perto... perto o suficiente para que ela pudesse acabar com ele se quisesse.
– Serei seu saco de pancadas, o seu colete à prova de bala, o seu guarda-costas... Vou fazer de tudo para ajudá-la a superar isso.
– Você é louco. – Ela respirou.
Quando ela o encarou muito vermelha e viva, a temperatura do sangue dele subiu – e os levou a um território ainda mais perigoso. Pelo amor de Deus, como se ele precisasse ser mais excitado? Agora, mais uma vez, não era o momento, nem o lugar.
Então, naturalmente, ele perguntou: – O que vai ser... Você quer me bater ou me beijar?
No tempo que se seguiu depois da pergunta, Grier passou a língua nos lábios e Isaac acompanhou o movimento como um predador. No entanto, ficou claro quando ele ficou onde estava que o que aconteceria em seguida era com ela.
O que indicava o tipo de homem que ele era apesar do tipo de profissão que tinha se envolvido.
Do lado dela, não havia qualquer pensamento que nem sequer lembrava algo profissional. Ela estava confusa e fora do normal – na última noite ela ouvia um zumbido por ser irresponsável. Mas aquilo não era o que a compelia agora.
Essa poderia ser a última vez que ela estaria com ele. A última. Ela passou a tarde toda se perguntando onde estava, se ele estava bem... se ela o veria de novo. Se ele ainda estava vivo. Ele era um estranho que de alguma maneira se tornou muito importante para ela. E, embora o timing fosse horrível, você não pode programar as oportunidades que tem.
Soltando o braço, ela desenrolou o punho que ele tinha posicionado para ela e, ao fazer isso, ela desejou conseguir se conter, pois essa era a escolha mais responsável. Ao invés disso, ela se inclinou e colocou sua mão entre as pernas dele. Com um rosnado baixo em sua garganta, os quadris dele seguiram um impulso para frente.
Ele estava rígido e grosso.
E teve que se segurar quando ela vacilou.
– Eu não vou parar dessa vez – ele rosnou.
Ela o agarrou.
– Eu só quero ficar com você. Uma vez.
– Isso pode ser arranjado.
Eles se encontraram em chamas, esmagando os lábios, braços envolviam os corpos, corpos se unindo. Na cozinha escura, ele a pegou e levou até o chão entre a ilha e o balcão, rolando no último momento para que fosse a cama onde ela pudesse deitar. Quando suas pernas se colocaram entre as dele, a intensa rigidez de sua ereção a pressionou profundamente e sua língua entrou na língua dela, tomando-a, apropriando-se dela. Ao se beijarem em desespero, o corpo dele ondulou por baixo dela, revirando e recuando, os poderosos contornos arqueavam-se de maneira familiar apesar do pouco tempo que ela passou contra ele.
Deus, ela precisava mais dele.
Em um movimento desajeitado, ela puxou a blusa e ele a ajudou com isso, puxando o sutiã, liberando seus mamilos e, em seguida, movendo-a de modo que seus lábios se ligassem aos dele, sugando, puxando, lambendo. O cabelo dele era grosso contra os dedos dela enquanto o segurava contra ela, sua boca úmida e quente, as mãos dele agarravam seus quadris e se aprofundavam em sua pele.
– Isaac... – o gemido foi estrangulado e depois interrompido por completo com um suspiro quando a mão dele deslizou entre suas pernas e acariciou seu sexo.
Ele a acariciava em círculos enquanto movimentava a língua e apenas a ânsia de tê-lo dentro dela deu o foco que ela precisava para tirar o moletom de nylon dele. Empurrando a cintura para baixo, ela tirou os sapatos, enganchou um dedo do pé na calça e as tirou completamente do caminho.
Nada de boxers. Nada de cuecas. Nada no caminho.
Envolvendo sua mão em torno de sua potência, ela acariciou e ele se moveu com ela, contragolpeando para aumentar o atrito. E o som que ele fez... céus, o som que ele fez: aquele rosnado era muito animal ao inalar contra seu seio.
Grier sentou-se, os lábios dele se afastaram com um estalo de seus seios e, com um palavrão, ela arrancou sua calça de ioga e sua calcinha. Quando ele se endireitou e permaneceu com sua ereção erguida, ela abaixou-se, voltou a se sentar com as pernas abertas sobre ele, aproximou-se mais dele e afastou seu blusão para que pudesse sentir mais pele. A sensação levou sua cabeça para trás, mas ela observava sua reação, ansiosa para ver como ele ficava – e ele não decepcionou. Com um grande silvo, os dentes cerrados, ele sugou o ar através deles, as veias em seu pescoço se esticaram, seu peitoral surgia como almofadas apertadas.
Quando ela assumiu o comando e definiu o ritmo, era como se fosse a dona dele, de uma maneira primitiva, marcando-o com o sexo.
– Deus... você é linda. – Ele ofegou quando seus olhos quentes olharam para ela com as pálpebras semicerradas, seguindo o movimento dos seios dela enquanto os espiava entre a camiseta e o sutiã que estavam apenas afastados.
Contudo, ele não ficou por baixo por muito tempo. Ele foi rápido e forte quando sentou-se e a beijou com força, empurrando ainda mais profundamente e a segurando contra ele. No início, ela temeu que ele fosse parar de novo, mas, então, ele se enterrou em seu pescoço e disse: – Você é tão gostosa. – Seu sotaque sulista soava baixo e rouco e ia direto ao sexo dela, excitando-a ainda mais. – Você é tão...
Ele não terminou a frase, mas deslizou sua grande mão sob ela para erguê-la, movimentando-a para cima e para baixo, seus bíceps enormes lidavam com o peso dela como se não fosse nada além de um brinquedo...
Ele veio com tanta força que ela viu estrelas, a explosão de uma galáxia brilhante onde elas se juntavam e enviavam uma chuva de luz sobre todo seu corpo. E assim como havia prometido, ele não parou. Ele ficou rígido e se projetava contra ela, seus braços se prenderam em sua cintura e a apertaram até que não conseguisse respirar – não que ela se importasse com oxigênio. Quando ele teve um espasmo dentro dela e estremeceu, ela afundou suas unhas em seu blusão preto e o abraçou forte.
E, então, tudo acabou.
Quando a respiração deles desacelerou, o silêncio que houve depois era o mesmo que havia antes daquela grande ventania vinda do nada: estranhamente traumático.
Silêncio. Deus... o silêncio. Mas ela não conseguia pensar em nada para dizer.
– Desculpe – ele exclamou de maneira rude. – Pensei que isso iria ajudá-la.
– Oh, não... Eu...
Ele balançou a cabeça e com sua força tremenda a levantou de seu corpo, separando-os facilmente. Em um rápido movimento, ele a colocou de lado, puxou sua calça para cima e pegou uma toalha limpa. Depois de dar a coisa a ela, ele se colocou de costas para os armários e ergueu-se sobre os joelhos, os braços se apoiaram sobre eles, as mãos ficaram soltas.
Foi então que ela percebeu a arma no chão ao lado de onde estavam. E ele deve ter visto no mesmo momento que ela, pois a pegou e a fez desaparecer no blusão.
Apertando os olhos por um breve momento, ela se limpou rapidamente e se vestiu. Então, ela se colocou em uma pose idêntica ao lado dele. Contudo, ao contrário de Isaac, ela não olhava fixamente para frente; ela observava seu perfil. Ele era tão bonito de uma maneira máscula, seu rosto e toda sua estrutura óssea... Mas o cansaço nele a incomodava.
Ele viveu à beira do abismo por tempo demais.
– Quantos anos você tem de verdade? – ela perguntou em dado momento.
– Vinte e seis.
Ela recuou. Então, era verdade?
– Você parece mais velho.
– Sinto que sou.
– Eu tenho trinta e dois. – Ainda mais silêncio. – Por que você não olha para mim?
– Você nunca ficou com alguém por apenas uma noite. Até agora. – Foi como se a tivesse violado de alguma maneira.
– Bem, tecnicamente, foram duas noites com você. – Quando sua mandíbula se apertou, ela soube que aquilo não foi uma ajuda. – Isaac, você não fez nada de errado.
– Não fiz? – Ele clareou a garganta.
– Eu queria você.
Agora, ele olhava para ela.
– E você me teve. Deus... você me teve. – Por um breve segundo, seus olhos brilharam com um calor de novo e, então, voltaram a focar o gabinete em frente deles.
– Mas é isso. Parou por aqui.
Certo... essa doeu. E para um cara que alegava tê-la introduzido no clube do “apenas uma noite”, você acha que a consciência dele se sentiria melhor se fizessem isso mais algumas vezes?
Quando seu sexo se aqueceu de novo, ela pensou... que eles deveriam rever a parte “parou por aqui.”
– Por que você voltou? – ela perguntou.
– Nunca fui embora. – Quando ela ergueu as sobrancelhas, ele encolheu os ombros. – Passei o dia todo escondido do outro lado da rua... e antes que você pense que fico perseguindo as pessoas, eu estava vigiando as pessoas que estavam... e estão... vigiando você.
Quando ela empalideceu, ficou contente com a escuridão naquele vale de gabinetes e armários. Muito melhor ele pensar que ela estava encarando bem tudo aquilo.
– As faixas brancas foram colocadas lá por você, não foram? Da sua regata.
– Era para ser um sinal para eles mostrando que eu tinha partido.
– Eu não sabia. Desculpe.
– Por que não se casou? – ele perguntou de repente. E, em seguida, riu em uma explosão tensa. – Desculpe se isso for pessoal demais.
– Não, não é. – Considerando tudo, nada mais parecia fora dos limites. – Eu nunca me apaixonei. Na verdade, nunca tive tempo também. Entre caçar Daniel e o trabalho... sem tempo. Além disso... – Aquilo parecia muito normal e completamente estranho para se falar de maneira tão simples. – Para ser honesta, eu acho que nunca quis alguém tão próximo de mim. Existem coisas que não quero dividir.
E não era como se quisesse acumular apenas para si o nome da família, ou sua posição, ou a riqueza. Eram as coisas ruins que ela mantinha em segredo: seu irmão... e sua mãe também, para ser honesta. Assim como ela e seu pai foram advogados e muito focados, os outros dois membros da família sofreram de demônios semelhantes. Afinal, só porque o álcool é legalizado, não significa que não destrói uma vida assim como a heroína.
Sua mãe foi uma alcoólatra elegante durante toda a vida de Grier e era difícil saber o que a tinha levado a isso: predisposição biológica; um marido que desaparecia de tempos em tempos; ou um filho que bem cedo começou a andar no mesmo caminho que ela.
A perda dela tinha sido tão horrível quanto a morte de Daniel.
– Quem é Daniel?
– Meu irmão.
– De quem eu peguei o pijama emprestado?
– Sim. – Ela respirou fundo. – Ele morreu há uns dois anos.
– Deus... Sinto muito.
Grier olhou em voltou, perguntando-se se o homem... er, fantasma... em questão teria escolhido aquele momento para aparecer.
– Eu também sinto. Eu realmente pensei que poderia salvá-lo... ou ajudar a salvar-se. Porém, não funcionou assim. Ele, ah, ele teve um problema com drogas.
Ela odiava o tom de desculpas que ela assumia quando falava sobre o que tinha matado Daniel... e, ainda assim, isso deslizava em sua voz todas as vezes.
– Eu sinto muito mesmo – Isaac repetiu.
– Obrigada. – De repente, ela balançou a cabeça como se fosse um saleiro sendo utilizado. Talvez era por isso que seu irmão se recusava a falar sobre seu passado... tinha sido um infortúnio terrível.
Mudando de assunto.
– Aquele homem? Lá no seu apartamento... ele me deu uma coisa. – Ela se inclinou e tateou procurando o transmissor de alerta, encontrou sob a blusa que tinha tirado depois da primeira briga com seu pai. – Ele o deixou no meu porta-malas.
Embora ela o tocasse com um tecido, Isaac tocou a coisa com suas mãos nuas. Impressões digitais, provavelmente, não eram um problema para ele.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Algo para mim.
– Espere...
Quando ela colocou o objeto no bolso, ele explicou a objeção dela.
– Se eu quiser me entregar, tudo o que tenho que fazer é apertar o botão e dizer a eles onde me encontrar. Não tem nada a ver com você.
Entregar-se àquele homem?
– O que acontece depois? – ela perguntou tensa. – O que acontece se você...
Ela não conseguiu terminar. E ele não respondeu.
O que disse tudo o que ela precisava saber, não disse...
Naquele momento, a porta da frente foi destrancada e se abriu, os sons das chaves e dos passos ecoaram ao longo do corredor quando o sistema de segurança foi desativado por alguém.
– Meu pai – ela sussurrou.
Com um pulo, ela tentou endireitar suas roupas... Oh, Deus, seu cabelo estava destruído.
A taça de vinho. Droga.
– Grier? – A voz familiar veio da parte da frente da casa.
Oh, maldição, Isaac não precisava mesmo conhecer o resto da família agora.
– Rápido. Você tem que... – Quando ela olhou para trás, ele tinha ido embora.
Certo, normalmente, ela estaria frustrada com a rotina de fantasma dele. Naquele momento, aquilo foi uma dádiva.
Em um movimento rápido, ela acendeu as luzes, pegou um rolo de papel toalha e se dirigiu para a bagunça no chão e na parede.
– Aqui! – ela respondeu.
Quando seu pai entrou na cozinha, ela notou que ele estava com seu uniforme casual que era uma blusa de cashmere e calças sociais. Seu rosto, porém, não estava nada tranquilo: inóspito e frio, ele parecia que estava frente a um oponente no tribunal.
– Eu recebi a notificação que o alarme de incêndio disparou – ele disse.
Sem dúvida ele recebeu, mas provavelmente ele já estava à caminho da casa de qualquer maneira: a casa dele era em Lincoln – não tinha chance de chegar a Beacon Hill tão rápido.
Graças a Deus que ele não chegou ali dez minutos mais cedo, ela pensou.
Para manter sua vermelhidão fora da visão dele, ela se concentrou em pegar os cacos de vidro.
– Eu queimei uma omelete.
Quando seu pai não disse nada, ela o encarou.
– O que foi?
– Onde ele está Grier? Diga, onde está Isaac Rothe?
Uma fatia de medo escorreu sua espinha e pousou sobre suas entranhas como uma rocha. A expressão dele era tão cruel, ela podia apostar sua vida no fato de que os dois estavam em lados oposto quando se tratava de seu cliente.
Hóspede.
Amante.
Seja lá o que Isaac era para ela.
– Ai! – Ela ergueu a mão. Um pedaço de vidro acertou em cheio a ponta de seu dedo, seu sangue brilhou em um vermelho intenso ao se formar uma densa gota e escorrer.
Ele nem perguntou o quanto ela tinha se machucado.
Tudo o que ele fez foi dizer mais uma vez: – Diga onde está Isaac Rothe.
CAPÍTULO 25
De volta a Caldwell, dentro da funerária, Jim estava familiarizado com o local e seguiu diretamente para o porão em um passo rápido. Ao chegar à sala de embalsamamento, ele atravessou a porta fechada... e deslizou até sair do outro lado.
Ele não tinha percebido, até agora, que não esperava ver seu antigo chefe face a face de novo.
E lá estava Matthias, ao longo do caminho das unidades de refrigeradores, olhando as placas de identificação nas portas fechadas da mesma maneira que Jim tinha feito na noite anterior. Droga, o cara estava frágil, uma vez que o corpo alto, robusto agora aparecia sob o ângulo de uma bengala; o cabelo, que antes era preto, mostrava-se cinza nas entradas. O tapa-olho ainda estava no mesmo lugar que ficou após a rodada inicial de cirurgias – havia esperança de que o dano não fosse permanente, mas é claro que não foi o caso.
Matthias parou, inclinou-se como se estivesse checando duas vezes e, em seguida, destrancou a porta, apoiou-se contra a bengala e puxou uma placa da parede.
Jim sabia que era o corpo certo: debaixo do lençol fino, a magia de invocação estava agindo, um pálido brilho fosforescente escorria como se o seu cadáver fosse radioativo.
Quando Jim andou até ficar do outro lado de seus restos mortais, ele não se deixou enganar pelo fato de Matthias parecer ter murchado sobre seu esqueleto e estava dependendo de uma bengala mesmo quando não se movimentava: o homem ainda era um adversário formidável e imprevisível. Afinal, sua mente e sua alma tinham sido o motor de todas as suas más ações e, antes de jazer em uma sepultura, elas iriam com você aonde quer que fosse.
Matthias ergueu a mão, puxou o lençol para trás do rosto de Jim e aproximou a barra de seu peito com um cuidado curioso. Então, com um estremecimento, o cara agarrou seu braço esquerdo e massageou como se algo estivesse doendo.
– Olhe para você, Jim. – Quando Jim encarou o cara, ele se deleitava com a instabilidade que estava prestes a criar. Quem diria que estar morto seria tão útil?
Com um brilho, ele se revelou.
– Surpresa.
Matthias ergueu a cabeça em um espasmo – e é preciso dar-lhe o crédito: ele nem sequer pestanejou. Não houve um salto para trás, nada de erguer as mãos assustado, nem mesmo uma mudança na respiração. Mas ele, provavelmente, teria ficado mais surpreso se Jim não tivesse feito uma aparição: a moeda de troca nas operações extraoficiais era o impossível e o inexplicável.
– Como você fez isso? – Matthias sorriu um pouco ao indicar o corpo com a cabeça. – A semelhança é incrível.
– É um milagre – Jim falou lentamente.
– Então, você estava esperando que eu aparecesse? Queria fazer uma reunião?
– Eu quero falar sobre Isaac.
– Rothe? – Uma sobrancelha de Matthias se ergueu. – Você ultrapassou seu prazo final. Deveria tê-lo matado ontem, o que significa que hoje não temos nada a dizer um ao outro. Contudo, ainda temos negócios a tratar.
Portanto, não foi surpresa quando Matthias tirou uma semiautomática e apontou diretamente para o peito de Jim.
Jim sorriu friamente. E não era difícil imaginar que Devina tinha tomado aquele homem como uma arma que andava e falava na sua tentativa de obter Isaac. A questão era como desarmar seu pequeno fantoche desagradável, e a resposta era fácil.
A mente... como Matthias dizia, a mente era a força mais poderosa em favor e contra alguém.
Jim se inclinou sobre o cano até que estivesse quase beijando seu peito.
– Então, puxe o gatilho.
– Você está usando um colete, não está? – Matthias torceu o pulso de modo que a arma se articulou e deu um pequeno golpe na camiseta preta de Jim. – Mas que maldita confiança você coloca nisso.
– Por que você ainda está falando? – Jim colocou as mãos sobre a mesa de aço. – Puxe o gatilho. Faça isso. Puxe.
Ele estava bem consciente de que estava criando um problema: se Matthias atirasse e ele não caísse como os humanos fazem, ia ter um batalhão de consequências dali para frente. Mas valia a pena, somente para ver...
A arma disparou, a bala foi projetada... e a parede atrás de Jim absorveu a coisa. Quando o som ecoou pela sala de azulejos, a confusão cintilou sobre a máscara da face cruel de Matthias... e Jim sentiu uma carga enorme de puro triunfo.
– Eu quero que deixe Isaac em paz – disse Jim. – Ele é meu.
A sensação de que ele estava negociando a alma do cara com Devina era tão forte que era como se tivesse sido destinado, e ter esse momento com seu ex-chefe... como se a única razão de ter arrastado o bastardo para fora daquele inferno de areia e arriscado sua própria vida para levá-lo a um hospital era para ter essa conversa, essa troca.
E o sentimento ficou ainda mais nítido quando Matthias se equilibrou sobre sua bengala e se inclinou para frente para colocar um fim no negócio com a arma apontando novamente sobre o peito de Jim.
– A definição de insanidade – Jim murmurou – é fazer a mesma coisa mais de uma vez e esperar...
O segundo tiro foi disparado exatamente onde foi o primeiro: som alto, direto na parede, Jim ainda em pé.
– ... um resultado diferente – ele terminou.
A mão de Matthias disparou e agarrou a jaqueta de couro de Jim. Quando a bengala caiu no chão e quicou, Jim sorriu, pensando que aquela porcaria toda era melhor que o Natal.
– Quer atirar em mim de novo? – ele perguntou. – Ou vamos falar sobre Isaac?
– O que é você?
Jim sorriu como um filho da mãe insano.
– Eu sou seu pior pesadelo. Alguém a quem você não pode tocar, nem controlar, nem matar.
Matthias balançou a cabeça lentamente para frente e para trás.
– Isso não está certo.
– Isaac Rothe. Você vai deixá-lo ir.
– Isso não... – Matthias usou a jaqueta de Jim para se equilibrar enquanto mudava de posição e olhava para a parede que tinha sido ferida superficialmente.
Jim agarrou aquele punho e apertou com força, sentindo os ossos se comprimirem.
– Você se lembra do que sempre diz às pessoas?
Os olhos de Matthias se voltaram para o rosto de Jim.
– O que. É. Você?
Jim usou da força para fazer os dois se aproximarem até que seus narizes estivessem a um centímetro de distância.
– Você sempre diz às pessoas que não há ninguém que não possa tomar, nenhum lugar onde não consiga encontrar, nada que não possa fazer. Bem, vai tomar um pouco do seu próprio veneno. Deixe Isaac ir e eu não vou fazer da sua vida um inferno.
Matthias olhou fixamente em seus olhos, investigando, procurando informações. Deus, aquilo era uma viagem, no bom sentido. Pela primeira vez, o homem que tinha todas as respostas estava fora do seu próprio jogo e se debatia.
Cara, se Jim estivesse vivo, ele tiraria uma foto daquela imagem linda e faria um calendário com a coisa.
Matthias esfregou o olho que estava visível, como se esperasse que sua visão entrasse em foco e ele se visse sozinho... ou pelo menos sendo a única pessoa na sala de embalsamamento.
– O que é você? – ele sussurrou.
– Sou um anjo enviado do Céu, cara. – Jim riu alto e com força. – Ou talvez a consciência com a qual você não nasceu. Ou talvez uma alucinação resultante de todos os medicamentos que toma para controlar sua dor. Ou talvez seja apenas um sonho. Mas qualquer que seja o caso, há apenas uma verdade que precisa saber: não vou deixar que tome Isaac. Isso não vai acontecer.
Os dois se encararam e permaneceram assim enquanto o cérebro de Matthias claramente se debatia.
Depois de um longo momento, o homem aparentemente decidiu lidar com o que estava na frente dele. Afinal, o que Sherlock Holmes dizia mesmo? Quando você elimina o impossível, aquilo que sobra, mesmo que seja improvável, deve ser a verdade.
Portanto, ele concluiu que Jim estava vivo de alguma maneira.
– Por que Isaac Rothe é tão importante para você?
Jim soltou o braço de seu antigo chefe.
– Porque ele sou eu.
– Quantos mais “de você” estão soltos por aí? Vamos colocar as cartas sobre a mesa...
– Isaac quer sair. E você vai deixá-lo ir.
Houve um longo silêncio. E, então, a voz de Matthias foi se tornando cada vez mais suave e mais sombria.
– Aquele soldado é cheio de segredos de Estado, Jim. O conhecimento que ele acumulou vale muito para nossos inimigos. Então, novidade: não é o caso do que ele ou você querem. É o melhor para nós e, antes que saia com o coração sangrando indignado comigo, o “nós” não é você e eu, ou as operações extraoficiais. É o maldito país.
Jim revirou os olhos.
– Sim, certo. E eu aposto que toda essa baboseira patriótica agrada muito o Tio Sam. Mas não vale a mínima para mim. A moral da história é... se você estivesse na população civil, seria considerado um assassino em série. Trabalhar para o governo significa que pode balançar a bandeira americana quando lhe convir, mas a verdade é que faz isso porque gosta de tirar as asas das moscas. E todo mundo é um inseto aos seus olhos.
– Minhas propensões a fazer alguma coisa não mudam nada.
– E por causa delas você não serve a ninguém além de si mesmo. – Jim esfregou o par de marcas estampadas pelos tiros na sua camiseta. – Você toma conta das operações extraoficiais como se fosse sua fábrica assassina pessoal e, se for esperto, vai se esquivar disso antes que uma dessas “missões especiais” volte-se contra você.
– Pensei que estávamos aqui para conversar sobre Isaac.
Daria para ficar bem perto de um ataque de nervos, hum?
– Tudo bem. Ele é inteligente, então, vai manter-se longe das mãos inimigas e não tem qualquer incentivo para mudar de ideia.
– Ele está sozinho. Não tem dinheiro. E as pessoas ficam desesperadas bem rápido.
– Vá se ferrar! Ele conseguiu algumas libras e vai desaparecer.
O canto da boca de Matthias se ergueu um pouco.
– E como você sabe disso? Ah, espere, você já o encontrou, não foi?
– Você pode deixá-lo ir. Tem autoridade para isso...
– Não, não tenho!
A explosão foi uma surpresa e quando as palavras saíram da mesma maneira que os tiros, Jim se viu olhando ao redor para verificar se tinha ouvido direito. Matthias era o todo-poderoso. Sempre foi. E não apenas sob seu ponto de vista pessoal.
Inferno, o sacana tinha influência suficiente para transformar o Salão Oval em um mausoléu...
Agora Matthias foi o único que se inclinou sobre o cadáver.
– Eu não dou a mínima para o que você pensa sobre mim ou para como sua Oprah interior vai lidar com toda essa situação. Não é o que eu quero... É o que sou obrigado a fazer.
– Pessoas inocentes morreram.
– Para que a corrupção também pudesse morrer! Meu Deus, Jim, esse blablablá idiota vindo de você é tão ridículo. Boas pessoas morrem todos os dias e você não pode impedir isso. Eu sou apenas um tipo diferente de máquina que as leva para baixo da terra e, pelo menos, eu tenho um propósito maior.
Jim sentiu uma onda de raiva atrás de si, mas, então, quando pensou em tudo aquilo, a emoção se contraiu em outra coisa. Tristeza, talvez.
– Eu deveria ter deixado você morrer naquele deserto.
– Foi o que eu pedi para que fizesse. – Matthias agarrou seu braço esquerdo novamente e apertou com força, como se tivesse levado um soco no lugar. – Você deveria ter seguido as ordens que dei e ter me deixado lá.
Tão vazio, Jim pensou. As palavras soavam tão vazias e mortas. Como se fossem sobre outra pessoa.
– O compeli a fazer – ele acrescentou. O cara queria tanto sair que estava disposto a matar-se para fazê-lo. Mas Devina tinha o atraído de volta; Jim tinha certeza disso. Aquele demônio, suas mil faces e incontáveis mentiras estavam atuando aqui. Tinham que estar. E suas manipulações tinham definido o cenário perfeito naquela batalha sobre Isaac: aquele soldado tinha feito o que havia de mais diabólico, mas estava tentando começar de novo e essa era sua encruzilhada, esse cabo de guerra entre Jim e Matthias sobre o que viria a seguir para ele.
Jim balançou a cabeça.
– Eu não vou deixar que tire a vida de Isaac Rothe. Não posso. Você diz que trabalha com um propósito... eu também. Você mata aquele homem e a humanidade perderá mais que um inocente.
– Ah, pare com isso. Ele não é um inocente. Escorre sangue das mãos dele assim como das suas e das minhas. Eu não sei o que aconteceu com você, mas não romantize o passado. Você sabe exatamente quais são suas culpas.
Fotos de homens mortos passaram na frente dos olhos de Jim: facadas, tiros, rostos estraçalhados e corpos amassados. E esses eram apenas os serviços que deixavam sujeiras. Os cadáveres que tinham sido asfixiados, intoxicados ou envenenados tomaram uma cor acinzentada e se foram.
– Isaac quer sair. Ele quer parar. A alma dele está desesperada por um caminho diferente e eu vou conduzi-lo até lá.
Matthias fez uma careta e voltou a esfregar seu braço esquerdo.
– Querer em uma das mãos, porcarias na outra... veja o que se sobressai.
– Eu vou matar você – Jim disse de maneira simples. – Se acabar assim... eu mato você.
– Bem, como deve saber... sem novidades. Adiante-se, faça isso agora.
Jim balançou a cabeça lentamente de novo.
– Ao contrário de você, eu não puxo o gatilho a menos que seja necessário.
– Algumas vezes, dar um salto adiante é o movimento mais inteligente, Jimmy.
O antigo nome o levou momentaneamente de volta ao passado, de volta ao seu treinamento básico, ao tempo quando dividia um beliche com Matthias. O cara se tornou frio e calculista... mas não foi sempre assim. Ele já foi tão leal quanto qualquer pessoa poderia ter sido com Jim, dada a situação em que se encontravam. Contudo, ao longo dos anos, qualquer traço daquela limitada fatia de humanidade tinha sido perdida – até que o corpo daquele homem ficasse tão maltratado e fétido quanto sua alma.
– Deixe-me perguntar uma coisa – Jim falou lentamente. – Você já conheceu uma mulher chamada Devina?
Uma sobrancelha se arqueou.
– Por que está perguntando isso agora?
– Só curiosidade – ele endireitou sua jaqueta de couro. – Para sua informação, eu passei por um inferno com ela.
– Obrigado pelo conselho amoroso. Essa é realmente minha prioridade no momento. – Matthias voltou a colocar o lençol sobre o rosto cinzento de Jim. – E fique à vontade para me matar a qualquer hora. Vai me fazer um favor.
Aquelas últimas palavras foram ditas suavemente – e provavam que a dor física poderia dobrar pessoas com a maior força de vontade se fosse forte o suficiente e durasse o tempo suficiente. Mais uma vez, Matthias teve uma mudança de prioridades mesmo antes daquela explosão, não teve?
– Sabe? – disse Jim. – Você poderia sair também. Eu saí. Isaac está tentando. Não há razão para ficar se não tem mais estômago para isso também.
Matthias riu em um rompante.
– Você saiu das operações extraoficiais apenas porque eu permiti que o fizesse temporariamente. Eu sempre o quis de volta. E Isaac não vai se livrar de mim... a única maneira que eu consideraria não matá-lo é se ele continuar a trabalhar na equipe. Na verdade, por que você não diz isso a ele por mim? Já que vocês dois são tão amiguinhos e tal.
Jim contraiu os olhos.
– Você nunca fez isso antes. Uma vez que alguém quebrava sua confiança, jamais voltaria.
Matthias soltou a respiração com um forte tremor.
– As coisas mudam.
Nem sempre. E não no que se tratava daquela porcaria.
– Com certeza – Jim disse, mentindo. – Vamos me colocar lá dentro de novo?
Os dois deslizaram a maca dentro da unidade de refrigeração e Jim voltou a fechar a porta. Então, Matthias se abaixou lentamente para pegar sua bengala, sua coluna estalou algumas vezes, a respiração ofegou como se os pulmões não conseguissem lidar com o trabalho e também com a dor que o cara estava sentindo. Quando ele se endireitou, sua face estava com um vermelho nada normal – prova do quanto a simples tarefa exigiu dele.
Um vaso quebrado, Jim pensou. Devina estava trabalhando com ou através de um vaso quebrado.
– Alguma coisa disso realmente aconteceu? – Matthias disse. – Essa conversa?
– Toda a maldita coisa é real, mas você precisa tirar um cochilo agora. – Antes que o cara pudesse perguntar, Jim ergueu a mão e mandou um pouco de energia para o dedo. Quando a coisa começou a brilhar, a boca de Matthias se abriu.
– Contudo, você vai se lembrar de tudo o que foi dito.
Com isso, ele tocou a testa de Matthias e o brilho de uma luz atravessou o homem como um fósforo ao acender, um queimar rápido e brilhante, consumindo tanto o corpo doente quando a mente demoníaca.
Matthias caiu como uma pedra.
“Boa-noite, Cinderela”, Jim pensou. Derruba até o mais forte.
Ao ficar sobre seu chefe, a queda foi muito metafórica: o homem tinha caído de mais maneiras do que apenas aqui e agora.
Jim não acreditou nem por um segundo que o cara estava sendo sincero sobre aceitar Isaac de volta no serviço. Foi apenas um atrativo para colocar o soldado na direção de um tiro.
Deus sabia que Matthias era um excelente mentiroso.
Jim se abaixou e colocou a arma do homem de volta no coldre, em seguida, deslizou os braços em baixo dos joelhos do cara e sob seus ombros... droga, a bengala. Ele se estendeu, pegou e colocou a coisa bem no centro do peito do homem.
Ficar em pé com ele era muito fácil, não apenas porque Jim tinha os ombros fortes. Maldito... Matthias era tão leve, leve demais para o tamanho dele. Ele não poderia pesar mais de 65 quilos, enquanto que, no seu auge, ele tinha bem uns 90.
Jim andou através das portas fechadas da sala e subiu ao térreo.
No deserto, quando ele fez isso pela primeira vez com o filho da mãe, ele estava cheio de adrenalina, em uma corrida para que seu chefe voltasse ao acampamento antes de sangrar até morrer... assim, ele não seria acusado de assassinato. Agora, ele estava calmo. Matthias não estava prestes a morrer, por um lado. Por outro, os dois estavam em uma bolha onde não podiam vê-los e andavam seguros nos Estados Unidos.
Passando pela porta trancada da frente, ele imaginou que levaria Matthias até o carro do cara...
– Olá, Jim.
Jim congelou. Então, girou sua cabeça para a esquerda.
Acabou aquela história de “seguros”, pensou ele.
Do outro lado do gramado da casa funerária, Devina estava em pé, calçando seus sapatos de salto agulha pretos, seus longos e belos cabelos pretos ondulavam até seus seios, seu vestidinho preto revelava todas as suas curvas. Seus traços faciais perfeitos, desde aqueles olhos aos lábios vermelhos, realmente brilhavam de saúde.
O demônio nunca pareceu tão bem.
Por outro lado, aquilo fazia parte do seu apelo superficial, não fazia?
– O que você tem aí, Jimmy? – disse ela. – E aonde vai com ele?
Como se a vadia já não soubesse, ele pensou, perguntando-se em como ele ia sair dessa.
CAPÍTULO 26
Sob seu ângulo de visão da despensa de Grier, Isaac podia ouvir o que estava sendo dito na cozinha, mas ele não conseguia ver nada.
Não que precisasse ver algo.
– Diga-me onde está Isaac Rothe – o pai de Grier repetiu com uma voz que tinha todo o calor de uma noite de verão.
A resposta de Grier seguiu a mesma linha.
– Eu estava esperando que tivesse vindo aqui para se desculpar.
– Onde ele está, Grier?
Houve o som de água corrente e, em seguida, o estalo de um pano de prato que foi batido.
– Por que você quer saber?
– Isso não é um jogo.
– Não achei que fosse. E eu não sei onde ele está.
– Está mentindo.
Houve uma pausa que equivaleu a batida de um coração, durante a qual Isaac trancou seus olhos e contou as maneiras pelas quais ele era um babaca. Que droga, ele trouxe uma bola de demolição para a vida da mulher, atingindo seus relacionamentos pessoais e profissionais, criando o caos em toda parte...
Passos. Duros e precisos. De um homem.
– Vai me dizer onde ele está!
– Solte-me...
Antes que descobrisse seu segredo, Isaac explodiu do seu esconderijo, escancarando a porta. Ele precisou de três movimentos para chegar aos dois e, em seguida, ir direto para o pai de Grier, arrastar o homem e empurrar o rosto dele contra a geladeira. Colocando a palma da mão atrás da cabeça do cara, ele empurrou tão forte o focinho daquele patrício contra o aço inoxidável, que o bom e velho Sr. Childe ofegou e soltou pequenas nuvens de condensação no painel.
– Estou bem aqui – Isaac rosnou. – E estou um pouco agitado no momento. Então, que tal não tratar sua filha daquela maneira de novo, e eu vou considerar não abrir o congelador com sua cara.
Ele esperou que Grier desse um salto e dissesse “solte-o”, mas ela não fez isso. Ela apenas tirou uma caixa de band-aids da pia e colocou de lado para escolher o tamanho certo.
Seu pai respirou fundo.
– Fique longe... da minha filha.
– Ele está bem onde está – ela respondeu, ao colocar um curativo em volta do seu dedo indicador. Então, ela afastou a caixa e cruzou os braços sobre o peito.
– O senhor, porém, pode ir embora.
Isaac fez uma breve revista na blusa elegante do pai dela e nas calças sociais e quando não encontrou uma arma, se afastou, mas ainda ficou perto. Ele tinha a sensação de que o cara tinha entendido, pois estava morrendo de medo e prestes a desmaiar... mas ninguém tratava a mulher de Isaac daquela maneira. Ponto final.
Não que Grier fosse sua mulher. Claro que não.
Maldição.
– Você sabe que está dando a ela uma sentença de morte – Childe disse, seus olhos penetrando os de Isaac. – Você sabe do que ele é capaz. Ele é seu dono e vai derrubar qualquer um se for necessário para chegar até você.
– Ninguém é dono de ninguém – Grier interrompeu. – E...
O Sr. Childe nem sequer lançou um olhar para sua filha quando a interrompeu.
– Entregue-se, Rothe... é a única maneira de ter certeza que ele não vai machucá-la.
– Aquele homem não vai fazer nada comigo...
Childe virou-se em direção a Grier.
– Ele já matou seu irmão!
No rescaldo daquela bomba dramática, era como se alguém a tivesse esbofeteado... só que não havia ninguém para segurá-la, ninguém para libertá-la e desarmar e imobilizar o que a machucava. E quando Grier ficou branca, Isaac sentiu uma impotência paralisante. Você não pode proteger as pessoas de eventos que já tinham acontecido; não havia como reescrever a história.
Ou... reviver pessoas. O que era a raiz de tantos problemas, não?
– O que... você disse? – ela sussurrou.
– Não foi uma overdose acidental. – A voz de Childe embargou. – Ele foi morto pelo mesmo homem que virá atrás de você a menos que consiga esse soldado de volta. Não há negociação, nenhum tipo de barganha, sem condições de troca. E eu não posso... – O homem começou a sucumbir, provando que o dinheiro e a classe não protegiam contra a tragédia. – Eu não posso te perder também. Oh, Deus, Grier... Eu não posso perder você também. E ele vai fazer isso. Aquele homem vai tirar sua vida em um piscar de olhos.
Droga.
Droga, droga, droga.
Quando Grier se debruçou contra o balcão, ela estava tendo problemas em processar o que o pai havia dito. As palavras foram curtas e simples. O sentido, porém...
Ela estava semiconsciente daquilo que ele estava falando, mas ela ficou surda depois do “Aquilo não foi uma overdose acidental”. Surda como pedra.
– Daniel... – Ela teve que clarear a garganta ao interromper. – Não, Daniel fez isso sozinho. Ele sofreu pelo menos duas overdoses antes. Ele... foi o vício. Ele...
– A agulha no braço dele foi colocada lá por outra pessoa.
– Não. – Ela balançou a cabeça. – Não. Eu fui a única que o encontrou. Eu liguei para a emergência...
– Você encontrou o corpo... mas eu vi acontecer. – Seu pai soltou um soluço. – Ele me obrigou a... assistir.
Quando seu pai enterrou o rosto nas mãos e se deixou cair completamente, a visão dela cintilava como se alguém estivesse iluminando a cozinha com luzes de discoteca. E, então, seus joelhos falharam e...
Alguma coisa a pegou. Impedindo-a de cair no chão. Salvando-a.
O mundo girou... e ela percebeu e tinha sido apanhada e estava sendo carregada para o sofá do outro lado.
– Não consigo respirar – ela disse a ninguém em particular. Torcendo o decote de sua blusa, ela suspirou. – Eu não consigo... respirar.
A próxima coisa que ela percebeu, foi Isaac colocando um saco de papel em sua boca. Ela tentou afastar a coisa, mas seus braços apenas se debateram inutilmente e ela foi obrigada a respirar dentro da coisa.
– Você precisa calar sua maldita boca – Isaac disse a alguém. – Agora. Contenha-se, cara e cale-se.
Ele estava falando com o pai dela? Talvez.
Provavelmente.
Oh, Deus... Daniel? E seu pai foi forçado a ver aquilo acontecer?
As perguntas que precisavam ser respondidas tiveram um efeito maior sobre ela do que uma lufada de ar. Empurrando o saco, ela se apoiou erguendo-se.
– Como? Por quê? – Ela lançou um olhar duro para os dois. – E ouçam, eu já estou bastante envolvida nessa situação, certo? Então, algumas explicações não vão doer... elas vão, ao contrário, me livrar da insanidade.
A mandíbula de Isaac se comprimiu, como se seu pé estivesse sendo mastigado por um Doberman, mas ele não queria soltar um grito.
Não era problema dela.
– Eu vou enlouquecer – ela disse antes de se virar para seu pai. – Você me ouviu? Eu não posso mais viver um minuto, um segundo... um momento a mais com isso. Não depois dessa bomba. É melhor começar a falar. Agora.
Seu pai caiu na poltrona ao lado dela, como se tivesse noventa anos e tivesse descido do seu leito de morte. Mas como ele não se preocupou com o corte na mão dela, ela não lhe concedeu misericórdia... e isso foi uma vergonha. Eles sempre foram iguais, estiveram em sintonia, uma só mente. Tragédias, segredos e mentiras, contudo, desgastavam até mesmo os laços mais próximos.
– Fale – ela exigiu. – Agora.
Seu pai olhou para Isaac, não para ela. Mas, pelo menos, quando Isaac deu de ombros e amaldiçoou, ela sabia que ia ter uma história. Embora provavelmente não seria a história.
E como era triste não ser capaz de confiar no seu próprio pai.
Sua voz não era forte quando finalmente começou a falar.
– Eu fui recrutado para me juntar às operações extraoficiais em 1964. Estava me formando na Academia Militar e fui abordado por um homem que se identificou como Jeremias. Sem sobrenome. A coisa que mais me lembro sobre o encontro era como ele me pareceu anônimo... ele parecia mais um contador do que um espião. Ele disse que havia um braço militar de elite para o qual eu fui qualificado e perguntou se eu teria interesse em saber mais. Quando eu quis saber por que eu – afinal, eu fui o trigésimo na classe, não o primeiro – ele disse que notas não eram tudo.
Seu pai parou por um momento, como se estivesse se lembrando da negociação de quase cinquenta anos atrás palavra por palavra.
– Eu fiquei interessado, mas, no final, eu disse não. Eu já havia ingressado no exército como oficial e parecia desonroso abandonar o compromisso. Eu não o vi de novo... até sete anos depois disso, quando voltei à vida civil e estava saindo da faculdade de direito. Eu não sei exatamente por que eu disse que sim... mas eu estava para me casar com sua mãe e estava entrando na empresa da família... e parecia que minha vida tinha se acabado. Eu almejava algo mais empolgante e não parecia ali que... – Ele franziu a testa e de repente olhou para ela. – Isso não quer dizer que eu não amava sua mãe. Eu só precisava... de algo mais.
Ah, mas ela sabia como ele se sentia. Ela vivia com o mesmo incômodo, desejando algo que a vida comum não oferecia.
Entretanto, as consequências de alimentar aquilo? Não valia a pena, ela estava começando a acreditar.
O pai dela tirou um lenço com um monograma e enxugou os olhos.
– Eu disse a Jeremias, o homem que tinha me procurado, que eu não poderia desaparecer por completo, mas que eu estava interessado em algo mais, qualquer coisa. Foi assim que começou. De tempos em tempos, eu ia regularmente a missões de inteligência no exterior e nosso escritório de advocacia me liberava, pois eu era neto do fundador. Eu nunca soube o alcance total das atribuições que me eram dadas como um agente... mas através dos jornais e da televisão, eu tinha consciência de que havia consequências. Que ações eram tomadas contra certos indivíduos...
– Você quer dizer homicídios – ela interrompeu amargamente.
– Assassinatos.
– Como se houvesse diferença.
– Há. – Seu pai assentiu. – Homicídios têm um propósito específico.
– O resultado é o mesmo.
Quando ele não disse mais nada, ela não queria nem um pouco que a história acabasse ali.
– E quanto a Daniel?
Seu pai soltou o ar longa e lentamente.
– Cerca de sete ou oito anos nisso, ficou claro para mim que eu fazia parte de algo com o qual não poderia viver. Os telefonemas, as pessoas entrando em casa, as viagens que duravam dias, semanas... para não falar sobre as consequências das minhas ações. Eu não era mais capaz de dormir ou me concentrar. E, Deus, o preço cobrado de sua mãe foi tremendo, e impactou vocês dois também – vocês dois eram muito jovens na época, mas reconheciam as tensões e as ausências. Eu comecei a tentar sair. – Os olhos de seu pai se dirigiram para Isaac. – Foi então que descobri... que você não sai. Olhando para trás, eu fui ingênuo... tão ingênuo. Eu deveria ter pensado melhor, feito tudo o que me foi pedido para fazer, mas eu acabei ficando preso. Ainda assim, eu não tinha escolha. Estava matando sua mãe... Ela estava bebendo demais. E, então, Daniel começou a...
“Usar drogas”, Grier terminou em sua mente. Ele começou no ensino médio. Primeiro, bebedeiras, depois baseados... em seguida, LSD e cogumelos. E, então, o contato mais pesado com o pó de cocaína, seguido pelo alimentador de necrotérios que era a heroína.
Seu pai redobrou o lenço com precisão.
– Quando meus pedidos iniciais para deixar o serviço foram respondidos com um sonoro “não”, eu fiquei paranoico pensando que uma das minhas atribuições iria me matar e fazer com que parecesse um acidente. Eu fiquei em silêncio por anos. Mas, então, eu soube de algo que não deveria, algo que era um importante fator que mudaria o jogo para um importante homem no poder. Eu tentei... Eu tentei usar isso como uma chave para destrancar a porta.
– E... – ela exclamou, o coração batendo tão alto que ela se perguntava se os vizinhos poderiam ouvir.
Silêncio.
– Vá em frente – ela solicitou.
Ele apenas balançou a cabeça.
– Diga-me – ela engasgou, odiando seu pai quando se lembrou da última vez que viu Daniel. Ele tinha uma agulha enfiada em uma veia atrás de seu braço e sua cabeça tinha caído para trás, sua boca desfaleceu, sua pele era da cor das nuvens de neve do inverno.
– Se você não me responder... – Ela não conseguiu terminar. A ideia de que ela poderia perder toda sua família ali, naquele momento apertou com força sua garganta.
Aquele lenço foi desdobrado mais uma vez com as mãos trêmulas.
– Os homens se aproximaram de mim na garagem do estacionamento da empresa no centro da cidade. Eu fiquei trabalhando até tarde e eles... eles me colocaram em um carro e eu percebi que era isso. Eles iam me matar. Ao invés disso, eles me levaram para a parte sul da cidade. À casa de Daniel. Ele já estava alto quando entramos, eu acho... Eu acho que ele acreditava ser uma brincadeira. Quando ele viu a seringa que tinham trazido, ele ofereceu o braço, embora eu estivesse gritando para que ele não deixasse que eles... – A voz do pai dela ficou embargada. – Ele não se importava... ele não sabia... eu sabia o que eles estavam fazendo, mas ele não. Eu deveria ter... eles deveriam ter me matado, não a ele. Eles deveriam ter...
A raiva fez com que a visão de Grier ficasse branca por um momento. Quando voltou, o centro do seu peito estava congelado e ela não se importava que ele tivesse sofrido. Ou que tinha arrependimentos ou...
– Saia dessa casa. Agora.
– Grier...
– Eu não quero vê-lo de novo. Não entre em contato. Não chegue perto de mim...
– Por favor...
– Saia! – Ela se dirigiu para Isaac. – Tire ele daqui, apenas leve-o para longe de mim.
Ela faria isso por si mesma, porém mal tinha forças para se levantar.
Isaac não hesitou. Ele foi em direção ao pai dela, engatou uma de suas mãos sob o braço dele e o levantou da poltrona.
Seu pai estava falando de novo, mas ela ficou surda enquanto ele era escoltado para fora da cozinha: a imagem do corpo de seu irmão naquele sofá gasto a consumia.
Os pequenos detalhes eram matadores: seus olhos estavam parcialmente abertos, suas pupilas olhavam para o vazio e sua camiseta azul desbotada estava com manchas escuras nas axilas e tinha vômito na frente. Três colheres enferrujadas e uma caneta marca-texto amarela encardida estavam espalhadas na mesa do café e havia uma pizza aos seus pés comida pela metade que parecia estar ali no chão por uma semana. O ar abafado tinha cheiro de urina e fumaça de cigarro bem como de algum produto químico de aroma doce.
Contudo, a coisa que mais ficou presa na sua cabeça foi que ela notou que o relógio dele tinha parado: quando ela ligou para a emergência, eles disseram a ela para verificar se havia pulso e ela pegou o que estava mais próximo dela. Quando apertou seus dedos sobre ele, ela viu que o relógio não era o que o seu pai tinha lhe dado na formatura da faculdade – aquele Rolex tinha sido penhorado há muito tempo. O que ele usava era apenas um relógio simples de painel digital e que tinha congelado às 8h24.
O corpo de Daniel parou da mesma maneira. Depois de todas as surras que tomou, ele finalmente expirou.
Tão feio. A cena foi tão feia. E, mesmo assim, seu lindo cabelo estava do mesmo jeito. Ele sempre teve uma cabeleira loira de anjo, como sua mãe chamava, e mesmo na hora da morte, os cachos em sua cabeça mantiveram sua natureza perfeitamente circular: embora a cor estivesse meio escura por falta de lavagem, Grier foi capaz de ver através daquilo e enxergar a beleza que estava ali.
Ou tinha estado, por assim dizer.
Saindo do passado, ela esfregou o rosto e se levantou do sofá.
Então, com a graça de um zumbi, ela colocou as escadas dos fundos em uso e foi para o seu quarto... onde ela pegou uma mala e começou a colocar roupas nela.
CAPÍTULO 27
No gramado da casa funerária, Jim não perdeu muito tempo tentando entender como Devina sabia onde encontrá-lo: ela estava ali e a questão era como se livrar dela.
– O gato comeu sua língua, Jim? – A voz dela era bem como ele lembrava: baixa, macia, profunda. Sensual... isso se você não soubesse o que havia dentro daquela pele.
– Não. Ainda não.
– A propósito, como tem passado?
– Eu estou superfantástico.
– Sim. Você está. – Ela sorriu, mostrando dentes perfeitos. – Senti sua falta.
– Que coisa triste e patética.
Devina riu, o som percorreu o ar frio da noite.
– Nem um pouco.
Quando um carro virou a esquina e seguiu pela rua, seus faróis iluminaram a frente da casa funerária, as manchas marrons no gramado e algumas árvores que cresciam – e não fez absolutamente nada a Devina. Mais uma prova de que ela não existia de fato nesse mundo.
Os olhos do demônio deram uma olhada nele e, em seguida, focaram-se em Matthias.
– De novo com o problema nas mãos.
– Não há problema, Devina.
– Eu amo quando você diz meu nome – ela deu um passo preguiçoso à frente, mas Jim não foi enganado com a conversa casual. – O que você vai fazer com ele?
– Estava indo colocá-lo no carro para acordar lá. Mas agora estou pensando em voar de volta para Boston.
– Temo que o ache pesado demais. – Outro passo a frente. – Você teme que eu faça algo de ruim com ele?
– Como se você fosse uma menina levada e pretendesse unir os sapatos dele com os cadarços? Sim. É isso mesmo.
– Na verdade, eu tenho outros planos para seu antigo chefe. – Um terceiro passo.
– Tem? – Jim segurou-se no chão – literal e figurativamente. – Para sua informação, não tenho certeza se a engrenagem dele funciona depois de todos os ferimentos. Eu nunca perguntei, mas acho que o Viagra dele não vai durar muito.
– Eu tenho meus meios.
– Sem dúvida. – Jim mostrou os dentes. – Não vou deixar que o leve, Devina.
– Isaac Rothe?
– Os dois.
– Que ganancioso. E eu que pensei que você não gostasse de Matthias.
– Só por que eu não suporto o bastardo não quer dizer que pretendo que ele pertença a você, ou que o use como um brinquedo. Ao contrário de vocês dois, eu tenho problemas com as consequências.
– Que tal fazermos um acordo? – Seu sorriso era autossuficiente demais para o gosto dele. – Eu deixo Matthias seguir seu caminho feliz e contente esta noite. E você passa um tempinho comigo.
O sangue dele congelou.
– Não, obrigado. Eu tenho planos.
– Vai encontrar alguém? Vai me trair?
– De jeito nenhum. Isso requer um relacionamento.
– Algo que nós temos.
– Não. – Ele olhou em volta apenas para se certificar mais uma vez que ela não tinha reforços. – Parei por aqui, Devina. Tenha uma boa-noite.
– Temo que Matthias não vá fazer isso.
– Não, ele vai ficar bem...
– Vai? – Ela estendeu sua mão longa e elegante.
De repente, o homem começou a gemer nos braços de Jim, seu rosto se apertava em agonia, seus membros frágeis começaram a ter espasmos.
– Eu nem sequer tenho que tocá-lo, Jim. – Torcendo os dedos bem apertados, como se estivesse espremendo o coração dele na palma da mão, Matthias se revirou rígido. – Eu posso matá-lo aqui e agora.
Com uma maldição, Jim vasculhou o que tinha aprendido com Eddie, tentando puxar uma magia ou encantamento ou... alguma coisa... da sua mente para deter o massacre.
– Eu tenho centenas de brinquedos, Jim – ela disse suavemente. – Se esse viver ou morrer? Não significa nada. Não afeta nada. Não muda nada. Mas se você não gosta das consequências... Então, é melhor que se entregue a mim pelo resto da noite.
Droga, colocando assim, por que ele estava protegendo o cara? Ela tinha acabado de encontrar outra fonte para influenciar o futuro de Isaac.
– Talvez seja melhor para você colocá-lo em um túmulo.
Pelo menos Matthias não seria mais uma pedra em seu sapato. Por outro lado, talvez o próximo da fila fosse pior.
– Se eu o matar agora – Devina inclinou sua linda cabeça – você vai ter que viver com o fato de que teve a chance de salvá-lo, mas escolheu não fazer isso. Vai ter que adicionar outro ponto àquela sua tatuagem nas costas, não vai? Eu pensei que você tinha parado com esse tipo de coisa, Jim.
A raiva ferveu através de seu corpo, seu sangue espumou até sua visão começar a ficar embaçada.
– Dane-se!
– O que vai ser, Jim?
Jim olhou para o rosto desfigurado de seu antigo patrão. A pele sobre toda a estrutura óssea tinha se tornado um cinza alarmante e sua boca se abriu ainda mais, mesmo com a respiração fraca.
Vá se ferrar...
Vá para o inferno.
Com um palavrão, Jim se virou, começou a andar... e não ficou nem um pouco surpreso quando Devina se materializou em seu caminho.
– Onde está indo, Jim?
Cristo, ele desejou que ela parasse de dizer seu maldito nome.
– Estou levando ele até o carro. E, então, você e eu vamos embora juntos.
O sorriso que ela exibiu foi radiante e enjoou o estômago dele. Mas negócio é negócio e, pelo menos, Matthias iria viver para olhar o próximo amanhecer... Sim, claro, sem dúvida, havia algum tipo de morte esperando por ele nos bastidores, talvez um colapso físico ou seu trabalho sujo voltando a assombrá-lo. Jim, no entanto, se pudesse, evitaria o “quando”. Isso era com Nigel e sua turma – ou seja lá quem fosse responsável pelos destinos.
Essa noite, ele ia manter o cara vivo e isso era tudo que sabia. Pois mesmo um sociopata merecia algo melhor do que cair nas garras de Devina.
E, com sorte, Jim passaria por tudo o que ela havia planejado para ele com um pouco mais de informação sobre o que a fazia fraquejar – e como derrotá-la.
A informação permanece sobre tudo.
Em Boston, Isaac colocou o capuz de sua jaqueta até esconder o rosto e, em seguida, conduziu à força o pai de Grier até a porta da frente. Uma vez que eles estavam do lado de fora, Isaac tinha plena consciência do quanto foi exposto – com capuz ou sem capuz, sua identidade estava bem óbvia. Mas era uma situação de custo-benefício: ele não confiava em Childe e Grier queria o cara longe.
Então, faça as contas.
Ao empurrar o querido pai em direção ao lado do motorista da Mercedes, o ar frio parecia comprimir o homem, os remanescentes do terrível confronto com a filha foram sendo substituídos por uma determinação que Isaac tinha que respeitar.
– Você sabe como ele é – Childe disse ao pegar a corrente do dispositivo. – Você sabe o que ele vai fazer com ela.
A imagem dos olhos inteligentes e gentis de Grier era inevitável. E, sim, ele poderia imaginar o tipo de atrocidades que Matthias faria para machucá-la. Matá-la.
Poderia fazer com que o pai assistisse novamente.
Poderia fazer com que Isaac fosse testemunha também.
E aquilo o fez querer vomitar.
– A solução está dentro de você – disse Childe. – Você sabe qual é a solução.
Sim, ele sabia. E era uma droga.
– Eu imploro... salve minha filha...
Vindo das sombras, o amigo de Jim Heron com os piercings se aproximou.
– Boa-noite, senhores.
Quando Childe recuou, Isaac agarrou o braço do homem e o segurou no lugar.
– Não se preocupe, ele está conosco. – Em seguida, ele disse mais alto: – O que há?
Droga, ele precisava entrar na casa, rapazes.
– Pensei que precisasse de alguma ajuda.
Com isso, o homem encarou Childe como se seus olhos fossem um aparelho de telefone e estivesse conectado à parede. De repente o pai de Grier começou a piscar, as pálpebras faziam um código Morse, flip-flip, fliiiip, flip, flip...
E, então, Childe disse “boa-noite”, entrou calmamente no carro... e saiu dirigindo.
Isaac observou as lanternas virarem a esquina.
– Você quer me dizer o que acabou de fazer com aquele homem?
– Nada. Mas eu consegui um pouco mais de tempo para você.
– Para que?
– Você é quem sabe. Pelo menos, o pai dela não acredita mais que o viu nessa casa, o que significa que o papai não vai pegar o telefone celular agora mesmo e ligar para seu antigo chefe dizendo onde você está.
Isaac olhou em volta e se perguntou quantos olhos estavam sobre ele.
– Eles já sabem que estou aqui. Estou mais exposto que uma dançarina em Las Vegas no momento.
Uma grande mão pousou em seu ombro, pesada e forte, e Isaac congelou quando um lampejo passou por ele. A sensação de que o cara era poderoso não foi surpresa – Jim poderia andar com alguém diferente? Mas havia alguma coisa estranha sobre ele e não eram as argolas de metal cinza escuro no seu lábio inferior, nas sobrancelhas e nas orelhas.
Seu sorriso era muito antigo e sua voz sugeria que havia segredo em todas as sílabas que ele pronunciava.
– Por que você não entra?
– Por que você não me diz o que está acontecendo?
O cara não parecia entusiasmado em ter que voltar, mas Isaac estava tão alheio a isso. Ele não dava a mínima se o amigo de Jim dava à luz de cabeça para baixo – ele precisava de alguma informação para que as coisas fizessem sentido.
Algum sentido.
Qualquer sentido.
Cristo, aquilo deveria ser como Grier se sentia.
– Eu te dei uma noite, é tudo que posso dizer. Eu sugiro mesmo que você entre e fique lá até que Jim volte, mas é óbvio que eu não posso aumentar seu cérebro.
– Quem é você?
O do piercing se inclinou.
– Nós somos os mocinhos.
Com isso, ele puxou o capuz de Isaac sobre a testa e fez isso com um sorriso...
Então, da mesma maneira que fez o gesto, ele se foi. Como se fosse uma luz que se apagou. Só que, ora essa, ele deveria ter andado.
Isaac gastou uma fração de segundo olhando em volta, pois a maioria dos bastardos – mesmo os espiões de alto nível e os assassinos com quem ele trabalhou – não poderia desaparecer no ar.
Que seja. Ele parecia um pato sentado naqueles degraus de entrada.
Isaac entrou de volta na casa, trancou a porta e foi para a cozinha. Quando ele não encontrou Grier, dirigiu-se para as escadas dos fundos.
– Grier?
Ele ouviu uma resposta distante e subiu as escadas pulando dois degraus de uma vez. Quando chegou ao quarto dela, ele parou na porta. Ou melhor, derrapou até parar ali.
– Não. – Ele balançou a cabeça para as malas da garota rica: aquela bagagem com monogramas não ia a lugar algum. – De jeito nenhum.
Ela olhou por cima da mala quase cheia.
– Eu não vou ficar aqui.
– Sim, você vai.
Ela apontou o dedo para ele como se a coisa fosse uma arma.
– Eu não me dou bem com as pessoas tentando me dar ordens.
– Eu estou tentando salvar sua vida. E permanecer aqui onde você é conhecida e visível para muitas pessoas, onde tem um trabalho no qual sentirão sua falta, compromissos para cumprir e um sistema de segurança como o desta casa é a única maneira de continuar viva. Ir a qualquer lugar só facilitará as coisas para eles.
Afastando-se, ela empurrou as roupas que tinha colocado na mala, o corpo esguio se curvava enquanto ela se inclinava para comprimir as roupas e criar mais espaço. Então, ela pegou uma blusa, dobrou ao meio e depois em quatro.
Quando ele observou como as mãos dela tremiam, ele soube que faria qualquer coisa para salvá-la. Mesmo que isso significasse condenar a si mesmo.
– O que você disse ao meu pai? – ela perguntou.
– Nada demais. Eu não confio nele. Sem ofensa.
– Não confio também.
– Deveria.
– Como pode dizer isso? Deus... as coisas que ele escondeu de mim... as coisas que ele fez... Eu não posso...
Ela começou a chorar, mas estava claro que não queria a velha rotina de ser envolvida pelos braços fortes dele: ela xingou e andou com passos firmes para o banheiro.
Vagamente, ele a ouviu assoar o nariz e o correr de um pouco de água. Enquanto ela esteve lá dentro, sua mão entrou no bolso do blusão e ele tateou o transmissor de alerta. Transmissor de morte era mais adequado: ajude-me, eu não caí e estou em pé, você pode vir e corrigir esse problema?
Grier ressurgiu.
– Estou indo embora com ou sem você. A escolha é sua.
– Temo que terá que ir sem mim – ele levantou a mão.
Ela congelou quando viu o aparelho.
– O que vai fazer com isso?
– Vou acabar com isso. Por você. Agora.
– Não!
Ele apertou o botão de chamada quando ela se lançou sobre ele, selando seu destino – e salvando o dela – com um toque.
Uma pequena luz vermelha no aparelho começou a piscar.
– Oh, Deus... o que você fez? – ela sussurrou. – O que você fez?
– Você vai ficar bem. – Seus olhos percorreram a face dela, memorizando mais uma vez o que já estava gravado em sua mente para sempre. – Isso é tudo o que importa para mim.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, ele se adiantou e capturou uma única lágrima de cristal na ponta de seu polegar.
– Não chore. Eu tenho sido um homem morto que anda desde que fugi. Isso não é nada além do que viria até mim um dia. E pelo menos eu posso saber que está segura.
– Volte atrás... desfaça... você pode...
Ele apenas balançou a cabeça. Não havia como desfazer nada – e ele percebia aquilo completamente agora.
O destino era uma máquina construída sobre o tempo, cada escolha que fez na vida adiciona uma engrenagem, uma correia transportadora. Onde você acaba sendo o produto cuspido no final – e não tinha como voltar atrás e refazer. Você não poderia dar uma espiada no que tinha fabricado e dizer: oh, espere, eu queria fazer uma máquina de costura ao invés de uma máquina de armas; deixe-me voltar ao início e começar de novo.
Uma chance. Era tudo o que tinha.
Grier cambaleou para trás e bateu na borda da cama, afundando como se seus joelhos tivessem desaparecido.
– O que acontece agora?
Sua voz era tão baixa que ele tinha que se esforçar para entender as palavras. Em contrapartida, ele falou alto e claro.
– Eles entrarão em contato comigo. O dispositivo é um transmissor que envia um sinal e vai receber a chamada deles também. Quando eles retornarem o contato, eu arranjo um lugar para me virar.
– Então, você pode enganá-los. Vá embora agora...
– Tem um GPS aqui dentro, então, eles sabem onde estou a cada segundo.
Então, eles sabiam que ele estava ali agora.
Mas ele não achava que eles iriam matá-lo na casa dela – exposição demais. E Grier não sabia disso, mas uma vez que ele se entregasse, ela ia ficar bem, pois a morte do irmão dela a manteria viva. Matthias era a peça final do jogo de xadrez e ele queria controlar o pai dela, considerando o que o cara sabia. Uma vez que já tinha apagado o filho, aquela situação toda aconteceria sem que as operações extraoficiais fizessem o mesmo com a filha – e enquanto a ameaça estivesse fora do caminho deles, o velho Childe estava neutralizado.
O homem faria qualquer coisa para manter-se longe de precisar enterrar um segundo filho.
A vida de Grier a pertencia.
– Meu conselho para você... – ele disse. – É ficar aqui. As coisas vão dar certo para seu pai...
– Como você pôde fazer isso? Como pôde se transformar em um...
– Eu não fui a pessoa da equipe que matou seu irmão, mas eu fiz coisas assim. – Quando ela recuou, ele assentiu com a cabeça. – Eu entrei em casas, matei pessoas e as deixei onde caíram. Eu persegui homens através de florestas e desertos, cidades e oceanos e eu os apaguei. Eu não sou... Não sou um inocente, Grier. Eu fiz as piores coisas que um ser humano pode fazer a outro – e fui pago para isso. Estou cansado de carregar todos esses fatos comigo na minha cabeça. Estou exausto das lembranças e dos pesadelos e de estar à beira do abismo. Eu pensei que fugir era a resposta, mas não é, e eu simplesmente não posso conviver mais comigo mesmo. Nem mais uma noite. Além disso, você é uma advogada. Você sabe os estatutos que qualificam o assassinato. Essa... – ele balançou a corrente do transmissor de alerta. – É a sentença de morte que mereço... e quero.
Os olhos dela permaneceram fixos nele.
– Não... não, eu sei como me protegeu. Eu não acredito que seja capaz de...
Isaac subiu o blusão e o moletom e se virou, exibindo sua grande tatuagem do Ceifeiro da Morte que cobria cada centímetro de pele em suas costas.
Quando ela engasgou, ele baixou a cabeça.
– Olhe mais embaixo. Vê aquelas marcas? Aquelas são meus assassinatos, Grier. Aquelas são... a quantidade de irmãos, pais e filhos que eu coloquei em um túmulo. Eu não... não sou um inocente para ser protegido. Sou um assassino... e estou simplesmente recebendo o que me foi reservado.
CAPÍTULO 28
Quando Adrian reapareceu nos fundos da casa da advogada, tomou forma mais uma vez ao lado de Eddie – o qual estava fazendo uma excelente imitação de árvore.
– Mandou o pai embora? – o outro anjo murmurou.
– Sim. Eu consegui tempo suficiente para esperarmos Jim voltar. Ele já ligou? – Já tinha perguntado isso antes dos cinco minutos que tinha passado com Isaac na frente da casa.
– Não.
– Droga.
Frustrado em tudo, Ad esfregou seus braços, que ainda estavam queimando um pouco. Cara, ele odiava cheirar a vinagre – e, caramba, como pode imaginar, a disputa com aqueles montes de lixo de Devina tinha arruinado outra jaqueta de couro. O que o irritou.
Ele realmente gostava daquela.
Desistindo de pensar nisso, ele voltou a se concentrar nos fundos da casa. O feitiço superforte de Jim bruxuleava, o brilho vermelho cintilava na noite.
– Onde, diabos, está Jim? – Eddie rosnou ao olhar o relógio.
– Talvez uma luta venha nos encontrar de novo – Ad se esforçou para exibir um sorriso. – Ou eu poderia conseguir outra garota.
Quando Eddie pigarreou e fez como se fosse o “Sr. Não Vou Fazer Isso”, Ad entendeu bem. O anjo ficava um baita filho da mãe quando caía naquela rotina taciturna – Rachel dos dentes perfeitos e sem sobrenome tinha desaparecido no ar quando eles se despediram dela ao amanhecer. E por mais que doesse em Ad admitir isso, ele tinha a sensação de que muito daquele êxtase após o sexo vinha dos auxílios de Eddie.
Era evidente que o bastardo tinha uma língua ótima – e que tinha feito um bom trabalho. Ad tentou entrar no sexo, mas ele acabou só seguindo os movimentos.
Eddie checou o relógio mais uma vez. Olhou o telefone. Observou ao redor.
– O que você fez com o pai?
– Ele acha que veio aqui e Isaac já tinha ido embora.
Eddie esfregou o rosto como se estivesse exausto.
– Eu espero mesmo que Jim volte logo. Esse Isaac vai fugir. Posso sentir isso.
– E foi por isso que eu o toquei com minha mão mágica. – Adrian flexionou a coisa. – Jim gosta de GPS. Eu não.
– Pelo menos os que ficam nos carros não cantam como você.
– Por que ninguém tem ouvido musical?
– Eu acho que é o contrário.
– Tanto faz.
Uma brisa assoviou através das árvores frutíferas que brotavam e os dois endureceram... mas não era uma segunda rodada do lixo de Devina chegando. Era apenas o vento.
A longa espera ficou mais longa.
E ainda mais e mais longa.
Ao ponto da tendência natural de Adrian de permanecer em movimento formigar sua coluna e ele ter que estalar o pescoço. Várias vezes.
– O que está fazendo? – Eddie disse em voz baixa.
Oh, ótimo. Como se a bobagem de se importar com ele fosse ajudar? Mesmo em uma noite boa, a rotina lhe dava o impulso de correr ao redor do quarteirão algumas centenas de vezes.
– Estou bem. Ótimo. E você?
– Estou falando sério.
– E não vamos a lugar nenhum com isso.
Pequena pausa... Uma pequena e gratificante pausa que estava encharcada e pingando Colônia de Reprovação.
– Você pode falar sobre isso – Eddie desafiou. – É só o que estou dizendo.
Oh, pelo amor de Deus. Ele sabia que o cara estava sendo apenas seu amigo e não se tratava de não apreciar o esforço. Mas depois que Devina esteve com ele da última vez, suas entranhas estavam soltas e bagunçadas, e se ele não conseguisse vedar a porta, trancar aquilo e jogar a chave fora, as coisas iam ficar confusas. De maneira que não poderiam mais ser colocadas no lugar.
– Estou dizendo, estou bem. Mas obrigado.
Para cortar o assunto, concentrou-se na casa. Deus, aquele feitiço de “baixo nível” de Jim foi tão forte... tão forte quanto qualquer coisa que Adrian e Eddie poderiam fazer sob a influência de seus poderes. O que significava que aquele anjo tinha truques que poderiam ferrar Devina seriamente...
O toque suave do telefone de Eddie foi um bom sinal: existia apenas uma pessoa que poderia ligar para aquele aparelho e era Jim.
Adrian encarou Eddie quando ele não aceitou a chamada.
– Não vai atender?
Eddie balançou a cabeça.
– Ele nos mandou uma foto. E a conexão é lenta à noite... ainda está chegando.
Você pode pensar que com tudo o que eles poderiam fazer seriam capazes de se comunicar telepaticamente – e até certo ponto eles conseguiam. Mas longas distâncias eram como gritar e ser ouvido do outro lado de um estádio de futebol. Além disso, se alguém foi ferido ou tivesse morrido, a habilidade de liberar coisas como feitiços e encantamentos e transmissão de pensamentos...
– Oh... Deus...
Quando a voz de Eddie irrompeu, Adrian sentiu uma premonição sendo despejada sobre sua cabeça como sangue frio.
– O quê?
Eddie começou a apertar confuso os botões do celular.
Ad agarrou o celular.
– Não apague, não apague essa maldita...
Algumas rápidas investidas e eles estavam em uma completa luta pelo telefone – e Adrian venceu somente porque o desespero o fazia mais rápido.
– Não olhe isso – Eddie vociferou. – Não olhe...
Tarde. Demais.
A pequena imagem sobre a tela brilhante era de Jim nu e esparramado em uma enorme mesa de madeira, braços e pernas bem abertos. Um fio de metal estava amarrado em volta de seus pulsos e tornozelos para fixá-los e sua pele estava iluminada por velas. Seu pênis estava ereto e tinha uma tira de couro na base para mantê-lo assim – mas, embora estivesse tecnicamente excitado, não estava nem um pouco a fim de sexo; isso era certeza... e Adrian sabia exatamente o que Devina fez para receber o fluxo de sangue inicial que desejava.
Aquele instrumento de tortura ia dar a ela algo para se distrair por horas e horas.
Adrian engoliu com dificuldade, sua garganta se contraiu como se ele mesmo estivesse naquela tábua dura e oleosa. Ele sabia muito bem o que estava por vir.
E ele sabia o que eram aquelas figuras sombrias ao fundo.
A legenda embaixo da foto dizia: Meu novo brinquedo.
– Temos que tirá-lo de lá. – Adrian quase esmagou o telefone da maneira como apertou sua mão em torno dele. – Aquela maldita vadia.
Deitado na “mesa de trabalho” de Devina, como ela assim chamava, Jim não se incomodou de olhar para ela – nem mesmo quando ela pegou seu telefone e disparou um flash. Ele estava especialmente preocupado era com as figuras escuras que circulavam nas laterais como se fossem cães prestes a serem soltos: ele tinha a sensação de que eram as mesmas coisas com que ele e os rapazes tinham lutado do lado de fora da casa daquela advogada, pois elas se moviam com aquela ondulação evasiva, como serpentes.
Seja como for. Havia grandes chances de ele ter certeza disso de alguma maneira, e não ia demorar muito.
Graças à escuridão que o cercava, ele não fazia ideia de quantos eram ou qual o tamanho da sala: as luzes das velas não ofereciam muita coisa e os pavios foram fixados em intervalos de alguns passos ao redor dele.
Então, era assim que um bolo de aniversário se sentia: um pouco preocupado, uma vez que todo seu delicado glacê estava bem perto das chamas.
Além disso, estava na iminência de ser devorado.
Devina entrou na luz e sorriu como o anjo que ela não chegava nem perto de ser.
– Confortável?
– Eu poderia usar um travesseiro. Mas, fora isso, estou bem.
Inferno, se ela podia mentir, ele também. A verdade é que os fios em torno de seus tornozelos e pulsos tinham farpas, então havia muita dor nas suas extremidades. Ele também tinha um colar de última moda da mesma porcaria que envolvia toda aquela diversão. E a mesa embaixo dele estava revestida com algum tipo de ácido – muito provavelmente o sangue daquelas coisas nas laterais.
Era evidente que Devina tinha trabalhado em muitos demônios naquela prancha.
Ele estava disposto a apostar que Adrian esteve ali. Eddie também.
Oh, meu Deus... a moça loira?
Jim fechou os olhos e viu atrás de suas pálpebras, mais uma vez, aquela linda inocente amarrada sobre aquela banheira. Droga, para o inferno com salvar o mundo. Ele desejava ter entregado a si mesmo por ela.
Dedos frios percorreram o interior de sua perna e quando chegaram mais perto de seu pênis, unhas afiadas arranharam sua pele.
Um som estranho permeou o ar e, por alguma razão, ele se lembrou de uma galinha sendo desossada – muitos golpes soltos e um estalo abafado. Então, veio um cheiro estranho... como... que diabos era aquilo?
Quando Devina falou, sua voz estava destorcida, o tom mais profundo... baixo e rouco.
– Eu gostei de estar com você antes, Jim. Você se lembra? Na sua caminhonete... mas isso vai ser muito melhor. Olhe para mim, Jim. Veja o meu verdadeiro eu.
– Estou bem assim. Mas obrigado...
Unhas espremeram suas bolas e, então, seu saco se contorceu. Quando a dor atingiu a autoestrada neurológica da sua cintura pélvica, suas emanações concentraram uma forte náusea em suas entranhas. Que naturalmente não tinha para onde ir graças à coleira presa ao seu pescoço.
Sim, ânsias de vômito secas eram tudo o que ele tinha para oferecer, porque nada sairia de sua garganta.
– Olhe para mim. – Mais dor.
Sua boca aberta levou um bom tempo para dar a resposta. Estava muito ocupado tentando acomodar os goles de ar que tomava.
– ...Não...
Alguma coisa montou sobre ele. Não sabia quem ou o que era, pois, de repente, havia mãos sobre todas as partes de seu corpo, os portões se abriram...
Não, não eram mãos. Bocas.
Com dentes afiados.
Quando seu pênis penetrou em algo que tinha a suavidade e o deslizar de um triturador de pia, o primeiro dos cortes foi feito em seu peito. Pode ter sido uma lâmina. Pode ter sido uma longa presa.
E, então, algo duro forçou sua boca. Tinha gosto de sal e carne, ele achou que era algum tipo de pênis e começou a sufocar – o ar, de repente, começou a se tornar um bem cada vez mais escasso.
Surfando na onda da asfixia, ele teve um momento de insanidade total e autônoma. No entanto, foi um caso de mente sobre o corpo. Quanto mais rápido seu coração batia, pior era a falta de oxigênio e mais aguda e quente era a agonia que queimava dentro de sua caixa torácica.
Calma, ele disse a si mesmo. Calminha. Calma...
O raciocínio tomou as rédeas do corpo: seu sangue pulsante resfriou e seus pulmões aprenderam a esperar as retiradas de sua boca para furtar uma respiração.
Sinceramente, ele não estava impressionado. A porcaria da sexualidade era tão sem imaginação quando se tratava de tortura.
Aquilo não ia ser um passeio no parque, não mesmo. Mas Devina não ia derrubá-lo com aquela babaquice de violação. Ou se tentasse castrá-lo com sua faca. A coisa com a dor era, sim, claro, com certeza, aquilo acelerava seu cérebro, mas, na verdade, não era nada mais que uma sensação forte – e era como ir a um show e ter seus tímpanos sobrecarregados por um tempo, mas, em algum momento, você acaba se acostumando.
Além disso, ele tinha uma grande reserva de força: Matthias viveria mais um dia, seus rapazes iam cuidar de Grier e Isaac e, ainda que ele preferisse umas férias na Disney, ou no hospital, o poder de estar fazendo a coisa certa e se sacrificando pelo bem de outras pessoas amparava cada célula de seu corpo.
Ele ia superar isso.
E, então, ele iria salvar a alma de Isaac e rir na cara de Devina no final daquela rodada.
A vadia não podia matá-lo e não ia conseguir tirar o melhor que havia nele.
É isso.
CAPÍTULO 29
Quando Grier olhou do banheiro aquela tatuagem que cobria as costas de Isaac, suas mãos se ergueram e envolveram seu pescoço.
A imagem na pele dele foi feita em preto e cinza e foi desenhada de forma tão vívida que o Ceifeiro da Morte parecia estar olhando direto para ela: a grande figura de túnica preta estava em pé em um campo de sepulturas que se estendiam em todas as direções, crânios e ossos jogados como lixo no chão a seus pés. Debaixo do capuz, dois pontos brancos brilhavam acima de um queixo descarnado bem destacado. Uma mão esquelética segurava uma foice e a outra estava estendida apontando para o peito dela.
E, ainda assim, essa não era a parte mais assustadora.
Abaixo da descrição, havia filas agrupadas em conjuntos de quatro com uma linha diagonal juntando cada uma. Devia ter pelo menos dez daquelas...
– Você matou... – Ela não conseguiu completar o resto da sentença.
– Quarenta e nove. E antes que você pense que estou me glorificando do que fiz, cada um de nós tem isso na pele. Não é voluntário.
Isso dava quase dez por ano. Uma por mês. Vidas perdidas em suas mãos.
Com um movimento rápido, Isaac puxou seu blusão e o moletom para baixo – ainda bem. Aquela tatuagem era assustadora.
Virando-se para encará-la, ele encontrou diretamente seus olhos e parecia estar esperando por uma resposta.
Daniel era tudo o que ela conseguia pensar... Deus, Daniel. Seu irmão era um entalhe nas costas de algum daqueles soldados, uma pequena linha desenhada com uma agulha, marcado com tinta de maneira permanente. Ela tinha sido marcada também com a morte dele. Por dentro. A visão dele morto e desfalecido – e agora a mancha dos detalhes daquela noite – estariam para sempre em sua mente.
E assim seria o mesmo com o que descobriu sobre a outra vida de seu pai. E de Isaac.
Grier apoiou as mãos sobre os joelhos e balançou a cabeça.
– Eu não tenho nada a dizer.
– Não posso culpá-la. Eu vou embora...
– Sobre seu passado.
Quando ela o interrompeu, balançou a cabeça novamente. Ela estava em um furacão desde o momento em que ele entrou naquela sala reservada para advogados conversarem com seus clientes na cadeia. Estava presa em um zumbido, e girava cada vez mais rápido, desde a discussão com aquele homem do tapa-olho, até o sexo e o confronto com seu pai... até Isaac apertar o botão da autodestruição tão certo como se tivesse puxado o pino de uma granada.
Mas, de alguma forma, assim que ele fez aquilo, ela sentiu como se a tempestade tivesse cessado, o tornado deslocou-se para o milharal de outra pessoa.
Na sequência, tudo parecia muito claro e simples.
Ela encolheu os ombros e continuou olhando para ele.
– Eu realmente não posso dizer nada sobre seu passado... mas eu tenho uma opinião sobre seu futuro. – O soltar da respiração dela foi lento e longo e soava tão exausto quanto como ela se sentia. – Eu não acho que você deveria se entregar à morte. Dois erros não fazem um acerto. Na verdade, nada pode corrigir o que você fez, mas você não precisa ouvir isso. O que você fez vai segui-lo todos os dias de sua vida – é um fantasma que nunca irá deixá-lo.
E as sombras profundas nos olhos dele diziam que sabia disso melhor do que ninguém.
– Para ser honesta, Isaac, eu acho que você está sendo um covarde. – Quando as pálpebras dele se arregalaram, ela assentiu com a cabeça. – É muito mais difícil viver com o que você fez do que sair do jogo em um momento de glória hipócrita. Você já ouviu falar em suicídio por policial? É quando um homem armado dispara uma vez contra uma barreira policial e, efetivamente, a força a enchê-lo de balas. É para pessoas que não têm forças para enfrentar o acerto de contas que merecem. Aquele botão que pressionou? A mesma coisa. Não é?
Ela sabia que tinha acertado o alvo pela forma como o rosto dele se fechou, seus traços tornaram-se uma máscara.
– O caminho para ser corajoso – ela continuou – é sendo aquele que se levanta e expõe a organização. Esse é o jeito certo de agir. Acender a luz que ninguém mais pode acender sobre o mal que você viu, fez e tem sido. É a única maneira de chegar perto de fazer reparações. Deus... você poderia parar toda essa maldita coisa... – Sua voz ficou embargada quando ela pensou em seu irmão. – Você poderia parar e ter certeza de que ninguém mais seria sugado em direção a isso. Você pode ajudar a encontrar aqueles que estão envolvidos e responsabilizá-los. Isso... isso seria significativo e importante. Ao contrário dessa baboseira de suicídio. Que não resolve nada, não melhora nada...
Grier se levantou, fechou a tampa de sua mala e estalou as travas de bronze.
– Eu não concordo com nada do que fez. Mas teve consciência suficiente dentro de você para querer sair. A questão é se esse impulso pode te levar ao próximo nível... e isso não tem nada a ver com o seu passado. Ou comigo.
Às vezes, reflexos de si mesmo eram exatamente o que você precisa ver, Isaac pensou. E ele não estava falando sobre sua imagem refletida no espelho. Era mais sobre como os outros o viam.
Quando Isaac franziu a testa, ele não sabia o que o chocava mais: o fato de que Grier estava totalmente certa ou que ele estava inclinado a agir conforme o que ela havia dito.
Moral da história? Ela foi direto ao ponto: ele estava em um carrossel suicida desde que rompeu com a organização e ele não era do tipo que se enforcava no banheiro – não, não, era muito mais digno de um homem ser baleado por um companheiro.
Que maricas ele era.
Mas, com aquilo que foi dito, ele não tinha certeza de como agiria a seguir. A quem contar? Em quem poderia confiar? E mesmo conseguindo se ver despejando tudo sobre Matthias e aquele segundo na linha de comando, ele não ia revelar a identidade dos outros soldados com quem ele tinha trabalhado ou que conhecia. As operações extraoficiais tinham saído de controle sob a administração de Matthias e aquele homem tinha que ser detido – mas a organização não era de todo ruim e desempenhava um serviço necessário e significante para o país. Além disso, ele tinha a impressão de que se aquele chefe fosse colocado para fora, a maioria dos que se expuseram, como Isaac, seria dissolvida no éter como fumaça em uma noite fria, nunca mais fariam o que fizeram ou falariam sobre isso: havia muitos como ele, aqueles que queriam sair mas eram presos por Matthias de uma maneira ou de outra – e ele sabia disso, pois houve muitos comentários sobre a liberação de Jim Heron.
Falando nisso...
Ele precisava encontrar Heron. Se houvesse uma maneira de fazer isso, ele precisava conversar sobre o assunto com o cara.
E com o pai de Grier também.
– Ligue para seu pai – ele disse a Grier. – Ligue e diga para ele voltar aqui. Agora. – Quando ela abriu a boca, ele a interrompeu. – Sei que tem muito para perguntar, mas se há outra solução aqui, eu tenho certeza que ele tem melhores contatos que eu, pois o que eu tenho é nada. E quanto a seu irmão... droga, aquilo foi horrível e eu sinto muito. Mas o que aconteceu com ele foi culpa de outra pessoa – não foi culpa do seu pai. É isso. Se você é recrutado, eles não dizem tudo e você trabalha fora da realidade, quando vê, é tarde demais. Seu pai é muito mais inocente nisso que eu, e ele teve que perder um filho nessa. Está com raiva e está arrasada e eu entendo isso. Contudo, ele também... E você viu por si mesma.
Mesmo com a expressão do rosto rígida, seus olhos se encheram de lágrimas – então ele soube que ela estava ouvindo.
Isaac pegou o telefone na mesa da cabeceira e estendeu para ela.
– Eu não estou pedindo para você perdoá-lo. Só que, por favor, não o odeie. Você faz isso e ele vai perder os dois filhos.
– Só que ele já perdeu. – Grier passou uma mão rápida sobre suas lágrimas, enxugando-as. – Minha família se foi. Minha mãe e meu irmão morreram. Meu pai... eu não posso suportar a visão dele. Estou sozinha.
– Não, não está. – Ele movimentou o aparelho em direção a ela. – Ele está apenas a uma ligação de distância, e ele é tudo que lhe resta. Se eu posso fazer a coisa certa... então, você também pode.
Claro, ele queria uma chance de apresentar a ideia ao pai dela, mas a realidade era que os interesses dele e de Childe estavam alinhados: os dois queriam Matthias longe de Grier.
Olhando fixamente nos olhos dela, ele desejou que Grier encontrasse forças para continuar conectada com alguém que tinha seu sangue – e ele tinha total consciência do porquê aquilo era tão importante para ele: como de costume, ele estava sendo egoísta. Caso ele se redimisse frente a um juiz ou a uma audiência no Congresso, respiraria por um tempo, mas estaria essencialmente morto para ela quando fosse colocado em algum tipo de programa de proteção a testemunhas. Por isso, seu pai era a melhor maneira que ela tinha de ser protegida.
A única maneira.
Isaac balançou a cabeça.
– O único vilão nessa história é o homem que você viu na cozinha do meu apartamento. Ele é o verdadeiro mal. Não seu pai.
– A única maneira... – Grier enxugou os olhos de novo. – A única maneira que eu posso permanecer em algum lugar junto dele é se ele te ajudar.
– Então, diga isso a ele quando chegar aqui.
Um momento depois, ela endireitou os ombros e pegou o telefone.
– Tudo bem. Eu digo.
Quando uma explosão de emoção o atingiu, ele teve que parar de se inclinar em direção a um beijo rápido nela – Deus, ela era forte. Tão forte.
– Bom – ele disse com voz rouca. – Isso é bom. E eu vou encontrar meu amigo Jim agora.
Afastando-se, desceu as escadas rapidamente. Ele rezava para que Jim tivesse voltado ou para que aqueles dois durões no quintal pudessem trazê-lo de onde estivesse.
Rompendo através da cozinha, alcançou a porta de saída para o jardim, escancarando-a...
Em um canto mais distante, os amigos de Jim estavam segurando um celular brilhante como se tivessem levado uma joelhada no meio das pernas.
– O que há de errado? – Isaac perguntou.
Os dois o encararam e ele soube imediatamente devido às suas expressões que Jim estava com problemas: quando você trabalha em equipe, não há nada mais angustiante do que quando um dos seus é capturado pelo inimigo. Era pior que uma ferida mortal em si mesmo ou em um companheiro.
Pois nem sempre o inimigo mata primeiro.
– Matthias – Isaac disse entre dentes.
Quando o cara com a grossa trança balançou a cabeça, Isaac se aproximou rápido deles. O de piercing estava verde, verde mesmo.
– Quem, então? Quem está com Jim? Como posso ajudar?
Grier apareceu na porta.
– Meu pai vai estar aqui em cinco minutos. – Ela franziu a testa. – Está tudo bem?
Isaac apenas encarou os dois.
– Eu posso ajudar.
O da trança encerrou logo o assunto.
– Não, temo que não possa.
– Isaac? Com quem está falando?
Ele olhou sobre o ombro.
– Amigos do Jim. – Ele olhou para trás...
Os dois homens tinham ido embora, como se nunca estivessem ali um dia. Mais uma vez.
Mas. Que. Droga.
Quando o desconfiômetro na parte de trás do pescoço de Isaac foi ligado, Grier se aproximou.
– Havia mais alguém aqui?
– Ah... – Ele olhou em volta. – Eu não... sei. Vamos, vamos entrar.
Conduzindo-a para dentro da casa, ele pensou que era muito possível que estivesse perdendo sua maldita sanidade.
Depois de trancar a porta e observar Grier reativar o alarme, ele sentou-se em um banco na ilha e pegou o transmissor de alerta. Nenhuma resposta ainda e ele esperava que o pai de Grier chegasse antes que Matthias entrasse em contato.
Melhor ter um plano.
No silêncio da cozinha, ele encarou o fogão enquanto Grier parecia muito decidida do outro lado, encostada contra o balcão, próxima à pia. Parecia que uma centena de anos tinham se passado desde que ela fez aquela omelete na noite passada. E, ainda assim, se ele seguisse com o que estava pensando em fazer nos próximos dias, aqueles momentos iam parecer um piscar de olhos, quando comparados depois.
Sondando seu cérebro, ele tentou pensar no que poderia dizer sobre Matthias. Ele sabia muito quando se tratava do seu antigo chefe... e o homem criava, propositalmente, buracos negros na Via Láctea mental de cada soldado em atividade: você sabia apenas e realmente aquilo que tinha que saber e nenhuma sílaba a mais. Algumas porcarias você conseguia deduzir, mas havia muitos “hum, como assim?” e isso...
– Você está bem? – ela disse.
Isaac olhou com surpresa e achou que ele era quem deveria perguntar isso a ela. E, como pode imaginar, ela tinha os braços em volta de si mesma – uma posição de autoproteção que ela parecia assumir muitas vezes quando estava com ele.
– Eu realmente espero que consiga se acertar com seu pai – respondeu ele, odiando-se.
– Você está bem? – ela repetiu.
Ah, sim, agora os dois estavam brincando de se esquivar.
– Sabe? Você pode me responder – ela disse. – Com a verdade.
Era engraçado. Por alguma razão, talvez porque ele quisesse praticar... ele considerou fazer isso. E, então, foi o que ele fez.
– O primeiro cara que eu matei... – Isaac encarou o granito, transformando a pedra lisa em uma tela de TV e assistindo seus próprios atos sendo representados em toda a superfície manchada. – Era um extremista político que tinha explodido uma embaixada no exterior. Levei três semanas e meia para encontrá-lo. Eu o segui ao longo de dois continentes. Dentre todos os lugares, consegui pegá-lo em Paris. A cidade do amor, certo? Eu o conduzi a um beco. Fui por trás dele sorrateiramente. Cortei a garganta. O que foi um erro. Eu deveria ter estalado seu...
Ele parou com um palavrão, consciente de que sua versão de uma conversa casual era quase como uma advogada tributária queixando-se sobre as regras da Receita Federal.
– Aquilo foi... um choque por ser tão simples para mim. – Ele olhou para suas mãos. – Foi como se alguma coisa se apoderasse de mim e colocasse um bloqueio sobre minhas emoções. Depois? Eu simplesmente saí para comer. Eu comprei um bife com pimenta... Comi tudo. O jantar foi... ótimo. E foi quando estava tendo aquela refeição que percebi que eles tinham escolhido com sabedoria. Escolheram o cara certo. Foi quando vomitei. Fui até os fundos do restaurante, em um beco como aquele onde eu tinha matado o homem uma hora antes. Entende? Eu não acreditava mesmo que era um assassino até o momento em que o serviço não me incomodou.
– Só que incomodou.
– Sim. Merd... quero dizer, inferno, sim, incomodou. – Embora apenas aquela vez. Depois disso, ele não teve problemas em continuar. Uma pedra de gelo. Comia como um rei. Dormia como um bebê.
Grier clareou a garganta.
– Como eles o recrutaram?
– Você não vai acreditar.
– Tente.
– sKillerz.
– Como?
– É um jogo de videogame em que você assassina pessoas. Cerca de sete ou oito anos atrás, as primeiras comunidades de jogos online foram aumentando e os jogos integrados realmente pegaram. sKillerz foi criado por algum bastardo doente, aparentemente – ninguém nunca conheceu o cara, mas ele era um gênio em gráficos e realidade virtual. Quanto a mim? Eu tinha uma queda por computadores e gostei de – matar pessoas, ele pensou – ... gostei do jogo. Logo, havia centenas de pessoas nesse mundo virtual, com todas aquelas armas e identidades em todas as cidades e países. Eu estava no topo de todos eles. Eu tinha esse, algo como... jeito para saber como pegar as pessoas, o que usar e onde colocar os corpos. No entanto, era apenas um jogo. Algo que eu fazia quando não estava trabalhando na fazenda. Então, mais ou menos... mais ou menos depois de dois anos nisso... Eu comecei a sentir como se estivesse sendo vigiado. Isso durou cerca de uma semana, até que uma noite um cara chamado Jeremias apareceu na fazenda. Eu estava trabalhando nos fundos, consertando cercas, e ele dirigia um carro sem marcas oficiais.
– E o que aconteceu? – ela perguntou quando ele parou.
– Nunca contei isso a ninguém antes.
– Não pare. – Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. – Isso me ajuda. Bem... também me preocupa. Mas... por favor.
Certo, tudo bem. Com ela olhando para ele com aqueles lindos e grandes olhos, ele estava preparado para dar qualquer coisa a ela: palavras, histórias... o coração pulsando fora do peito.
Isaac esfregou o rosto e se perguntou quando tinha se tornado tão triste e patético... oh, espere, ele sabia essa: foi no momento em que o escoltaram até aquela pequena sala na cadeia e ela estava sentada lá toda arrumada, dona de si e inteligente.
Triste e patético.
Frouxo.
Maricas.
– Isaac?
– Sim? – Bem, como pode ver, ele ainda conseguia reagir a seu próprio nome e não apenas a um monte de substantivos referentes aos que não tinham bolas entre as pernas.
– Por favor... continue.
Agora foi ele quem clareou a garganta.
– O tal de Jeremias me convidou para trabalhar para o governo. Ele disse que estava dentre os militares e que estavam procurando por caras como eu. Eu fui logo dizendo “Garotos da fazenda? Vocês procuram por garotos da fazenda?”. Eu nunca vou esquecer isso... ele olhou bem para mim e disse “Você não é um fazendeiro, Isaac”. Foi isso. Mas foi a maneira como ele disse, como se soubesse um segredo sobre mim. Seja como for... Eu achei que ele fosse um idiota e disse isso a ele, eu estava vestindo um macacão encharcado de lama, um chapéu de palha usado para trabalhar e botas. Não sabia o que ele pensava sobre mim. – Isaac olhou para Grier. – Contudo, ele estava certo. Eu era outra coisa. Descobri que o governo monitorava virtualmente o sKillerz, e foi assim que me encontraram.
– O que fez com que se decidisse a... trabalhar... para eles?
Bom eufemismo.
– Eu queria sair do Mississippi. Sempre quis. Eu saí de casa dois dias depois e ainda não tenho interesse em voltar. E aquele corpo era de um garoto que sofreu um acidente na estrada. Pelo menos, foi o que me disseram. Eles trocaram minha identidade e minha Honda com a dele e assim foi.
– E quanto à sua família?
– Minha mãe... – Certo, ele realmente teve que limpar a garganta aqui. – Minha mãe saiu de casa antes de morrer. Meu pai tinha cinco filhos, mas apenas dois com ela. Eu nunca me dei bem com nenhum dos meus irmãos ou com ele, então, ir embora não foi um problema... e eu não me aproximaria deles agora. Passado é passado e estou bem quanto a isso.
Naquele momento a porta da frente se abriu e, do corredor da frontal, o pai dela chamou.
– Olá?
– Estamos aqui atrás – Isaac respondeu, pois ele não achava que Grier responderia: quando ela checou o sistema de segurança, pareceu muito calma para falar de repente.
Quando seu pai entrou no cômodo, o homem era o oposto de sua filha: Childe estava todo desalinhado, seu cabelo bagunçado como se tivesse tentado arrancar com as mãos, os olhos vermelhos e vidrados, a blusa desajeitada.
– Você está aqui – ele disse a Isaac em um tom cheio de medo. O que parecia sugerir que seja lá qual tenha sido o jogo mental que o amigo de Jim utilizou na frente da casa não foi apenas uma amostra.
Bom truque, Isaac pensou.
– Eu não disse a ele por que solicitei sua visita – Grier anunciou. – O telefone sem fio não é seguro.
Esperta. Muito esperta.
E quando ela ficou quieta, Isaac concluiu que seria melhor ele mesmo conduzir a conversa. Focando no outro homem, ele disse: – Você ainda quer sair?
Childe olhou para sua filha.
– Sim, mas...
– E se houvesse uma maneira de fazer isso com a qual... as pessoas – leia-se: Grier – permanecessem seguras.
– Não existe. Eu passei uma década tentando descobrir.
– Você nunca pensou em escancarar os segredos de Matthias?
O pai de Grier permaneceu uma pedra de silêncio e olhou nos olhos de Isaac como se estivesse tentando ver o futuro.
– Como...
– Ajudando alguém a se apresentar e despejar cada detalhe que sabe sobre o filho da mãe. – Isaac lançou um olhar a Grier. – Desculpe minha boca.
Os olhos de Childe se estreitaram, mas a miopia não era uma ofensa ou desconfiança.
– Você quer dizer depor?
– Se for necessário. Ou encerrar essas atividades através de canais diplomáticos. Se Matthias não estiver mais no poder, todo mundo – leia-se: Grier – estará seguro. Eu me entreguei a ele, mas quero dar um passo adiante. E acho que é tempo do mundo ter uma imagem mais clara do que ele está fazendo.
Childe olhava para ele e Grier.
– Qualquer coisa. Faço qualquer coisa para pegar aquele bastardo.
– Resposta certa, Childe. Resposta certa.
– E eu posso me apresentar também...
– Não, não pode. É minha única condição. Marque os encontros, diga para onde devo ir e, em seguida, desapareça da confusão. Se não concordar, não vou fazer isso.
Ele deixou o bom e velho pai pensando sobre isso e passou o resto do tempo olhando para Grier.
Ela olhava para seu pai e, embora estivesse quieta, Isaac achava que a grande pedra de gelo tinha derretido um pouco: difícil não respeitar o velho pai dela, pois ele estava falando sério sobre dar com a língua nos dentes, se tivesse a chance, estava preparado para despejar tudo o que sabia tão bem.
No entanto, infelizmente, essa escolha não era dele. Se esse plano saísse errado, Grier não precisaria perder o único membro da família que lhe restava.
– Desculpe – Isaac disse, interrompendo a conversa. – É assim que vai ser, pois não sabemos como isso vai acontecer e eu preciso de você... para ainda estar em pé no final. Quero deixar o menor número de impressões digitais possíveis no decorrer. Você já está mais envolvido do que eu gostaria. Vocês dois.
Childe balançou a cabeça e ergueu uma das mãos.
– Agora, me ouça...
– Sei que é um advogado, mas é tempo de parar com os argumentos. Agora.
O homem fez uma pausa depois disso, como se não tivesse acostumado a ser abordado nesse tipo de tom. Mas, então, ele disse: – Tudo bem, se insiste.
– Insisto. E é meu único ponto não negociável.
– Certo.
O homem andou ao redor. E andou ao redor. E... então, parou bem em frente a Isaac.
Segurando a mão ao peito, ele formou um círculo com o dedo indicador e o polegar. Então, falou. Suas palavras foram claras como cristal, mas tingidas com uma ansiedade apropriada.
– Oh, Deus, no que estou pensando... Eu não posso fazer isso. Não está certo. Sinto muito, Isaac... Não posso fazer isso. Não posso ajudá-lo.
Quando Grier abriu a boca, Isaac pegou seu pulso e apertou para que se calasse: seu pai estava apontando disfarçadamente na direção do que deveria ser a escada para o porão.
– Você tem certeza? – Isaac disse com um tom de alerta. – Eu preciso de você e acho que está cometendo um grande erro.
– Você é o único cometendo um erro aqui, filho. E vou ligar para Matthias nesse exato momento se já não fez isso por si mesmo. Não vou fazer parte de qualquer conspiração contra ele e me recuso a ajudá-lo. – Childe deixou sair um palavrão. – Preciso de uma bebida.
Com isso, ele se virou e atravessou a cozinha.
Nesse ponto, Grier agarrou a frente do blusão de Isaac e o puxou para que ficasse face a face com ela. Com um silvo quase inaudível, ela disse: – Antes de qualquer um de vocês me atingir com mais uma rodada de informações selecionadas, pode acabar com isso.
Isaac ergueu suas sobrancelhas castanhas claras quando seu pai abriu a porta para o porão.
Droga, ele pensou. Mas era óbvio que ela não aceitaria mais daquilo. Além disso, talvez, estar envolvida a ajudaria a consertar as coisas com seu pai.
– Damas primeiro – Isaac sussurrou, indicando o caminho com um gesto galante.