Biblio "SEBO"
Há anos atrás, Rachel Vandermere foi testemunha do brutal assassinato de seus pais nas mãos de uma criatura demoníaca com asas, mas ninguém acreditou em sua história. Agora, como policial da Interpol, Rachel segue o rastro de acontecimentos estranhos que possam levá-la aos assassinos de seus pais. Enquanto se encontra em Chicago para proteger um diplomata descobre um homem totalmente diferente a qualquer dos que conhece: moreno, bonito e insolitamente solitário.
Nathan Cross parece um homem, mas é algo muito mais perigoso: um gárgula. Criados há muito tempo para proteger à humanidade do mal, Nathan e os de sua espécie vivem na escuridão, conscientes de que sua raça está morrendo pouco a pouco.
Quando cruza com Rachel, o desejo que sente se vê atrapalhado pelo que acontecerá se mostrar a ela o que é realmente.
Mas, enquanto Rachel está disposta a descobrir a verdade sobre o enigmático Nathan, ambos deverão enfrentar um pesadelo do passado que ameaça seu amor, suas vidas... E inclusive suas almas.
—Debaixo da cama, papai! Olhe debaixo da cama!
Rachel se abraçou ao senhor Mott, o coelho rosa que faltava uma orelha do pequeno acidente com as tesouras de costurar da mamãe no ano passado. Dobrou os dedos dos pés no suave tapete enquanto dava golpezinhos no chão com as pontas e os calcanhares. A barra de sua camisola sem mangas balançava por baixo de seus joelhos e ela a segurou com um punho. Era uma noite calorosa. O aroma da chuva que papai havia dito que chegava e do romeiro que mamãe tinha plantado entravam pela janela junto com uma brisa pegajosa como o algodão doce.
Papai fechou a porta do armário, depois de ter comprovado que, apesar de estar desordenado, não havia monstros lá dentro. Depois, ajoelhou-se para inspecionar o escuro espaço sob a cama.
Rachel ria. Em realidade, não acreditava nos monstros, mas desde que tinha nascido seu irmão pequeno Levi, a hora de ir à cama era o único momento do dia em que tinha papai apenas para ela e não estava preparada ainda para devolvê-lo.
Entretanto, se a deixassem, sim estava preparada para devolvê-lo a Levi.
Papai levantou as barras rosa da colcha da cama e inclinou a cabeça.
—Aqui tampouco há monstros. — Ficou em pé, baixou a coberta rosa, e deu uns golpezinhos sobre o travesseiro rosa. Com seis anos, Rachel estava em um momento rosa. Tinha uma bicicleta rosa e uns patins rosa. Mas ainda não queria ir dormir, embora fosse em uma cama rosa.
Em vez de meter-se na cama, saltou sobre ela e aterrissou de cócoras. Com os pés separados, os joelhos dobrados e ambos os braços estendidos, enquanto o senhor Mott se balançava pendurando de sua mãozinha com sua única orelha, assinalou com um dedo acusador os pés da cama.
—O baú dos brinquedos!
O pai a olhou, mas depois levantou a tampa e deu uma olhada dentro. Rachel mordeu o lábio e olhou em redor, se perguntando onde mais poderiam esconder monstros. Se existiam os monstros, mas não existiam. A menos que...
—Papai, os monstros podem ser invisíveis?
—Invisíveis? Não, céu, não existem os monstros... — De repente, abriu os olhos como pratos. Golpeou o ar, agachou-se e voltou a golpeá-lo — Não! Vá já!—Lançou-se contra nada, caiu sobre a cama e se voltou para Rachel, gritando — Não! Socorro! Não!
Rachel abriu tanto os olhos que pensou que iam sair das órbitas. Tentou gritar, mas tinha feito um nó na garganta. Tentou correr, mas tinha os pés pegos ao chão. Papai se retorcia e tentava se aproximar dela. Ao final, levantou-a, com a cara ainda contorcida e...
Começou a fazer cócegas nela.
Rindo, meteu-a na cama e a tampou até o queixo.
Ao final, Rachel reagiu. Respirou fundo e deu um golpe no braço dele.
—Papai!
Papai olhou para trás e gritou:
—Me ouçam todos os monstros, invisíveis e demais. Sou o maior, o pior e o único monstro da casa. O resto das criaturas inferiores ficam expulsas a partir de agora.
Rachel não estava segura do que significava a última parte, mas pensou que quem dera os monstros o ouvissem.
Embora não existissem.
Depois de bocejar, acomodou-se entre os frescos lençóis. Papai deixou o senhor Mott a seu lado e a beijou na testa antes de partir. Ao chegar à porta, deteve-se e apagou a luz.
—Que tenha doces sonhos.
—Deixa um pouco aberta. — Rachel não tinha medo dos monstros, mas sim da escuridão. Entretanto, não tinha com o que se preocupar. Papai sempre deixava a porta um pouco aberta para que entrasse a luz do corredor.
Por isso, quando despertou horas depois, bocejou, esfregou um olho com o punho e abriu os olhos para descobrir que não chegava luz do corredor, ficou gelada de medo e um calafrio percorreu suas costas.
Ouviam-se trovões. “São as nuvens que se chocam”, havia dito papai um dia. Mas essa noite também uivava o vento. As árvores arranhavam a casa como se fossem uns dedos cadavéricos. A tempestade e a escuridão a aterravam. Queria chorar e chamar aos gritos a mamãe ou o papai, mas já não era um bebê. Já não era o bebê. Agora tinham Levi, e ele já chorava pelos dois. Além disso, tinha um nó na garganta. Custava respirar esse ar escuro. Quase não podia emitir nenhum som, e ainda menos gritar.
Um raio de luz entrou no quarto pela janela, e ouviu vozes lá fora, umas vozes tão furiosas como a tempestade.
No corredor, ouviu mamãe e o papai falarem com voz apagada.
—Temos que ir.
—É muito tarde.
—Os meninos...
Rachel ouviu uns passos que se dirigiam para seu quarto e se meteu sob os lençóis agarrando o senhor Mott com tanta força que o teria estrangulado se fosse um coelhinho de verdade. Abriu-se a porta e apareceu uma escura silhueta na soleira que a levantou da cama com um rápido movimento. Rachel tremeu e gemeu, até que cheirou um especial aroma familiar e então relaxou entre esses fortes braços.
—Papai... — Estirou-se para recuperar o senhor Mott enquanto papai a abraçava, mas o coelho caiu. O pé de papai o empurrou debaixo da cama.
—Não diga nada, céu. — Disse ele.
Rachel relaxou meio adormecida em seus braços enquanto seu pai percorria a casa. No salão, a luz das velas se refletia nas paredes.
Rachel pensou que a levava a cama com ele e mamãe porque se fundiu a luz e sorriu porque não tinha muitas oportunidades de dormir com eles desde que Levi tinha nascido. Mas então, papai se deteve junto à portinhola quase invisível situada sob as escadas. Era seu lugar secreto, o lugar onde mamãe escondia os presentes de aniversário.
O sorriso de Rachel desapareceu de seus lábios quando papai abriu a portinhola e a colocou dentro. Ela alargou os braços para ele com os lábios trêmulos.
—Não, papai, não!
—Por favor, tesouro, faz o que te digo.
Mamãe se inclinou com Levi nos braços. Olhou a papai uma vez com os olhos úmidos e depois entregou o bebê a Rachel.
—Cuida de seu irmãozinho. E, por favor, por favor, não faça nenhum ruído. Aconteça o que acontecer.
Então, papai fechou a porta e a deixou no pequeno sótão que cheirava a mofo.
Às escuras.
Rachel engoliu em seco morta de medo. Tentava não chorar e tentava recordar como embalar o bebê. Mamãe nunca a tinha deixado segurá-lo sozinha. Não queria quebrá-lo.
Fora, o ruído dos trovões se misturava com o dos golpes de punho que esmurravam a porta principal. Ouviam-se gritos, vozes de homens e depois madeira quebrando. Papai gritou a mamãe que corresse. Houve ruído de cristais quebrados.
Rachel queria gritar, precisava gritar, mas mamãe havia dito que devia estar calada. Muito calada. As lágrimas apareciam nos olhos e corriam pelas bochechas. Colocou um punho na boca e o mordeu com força. A escuridão a aterrava. Não podia respirar. Necessitava luz, embora só fosse um pouquinho.
Movendo-se com o bebê seguro com um braço, inclinou-se para frente e procurou a portinhola. Deslizou a mão pela madeira sem pintar. Mordeu o lábio. O coração pulsava a mil por hora. As vozes que tinha ouvido lá fora, estavam dentro agora. Diziam coisas más. Coisas que davam medo.
Mas a escuridão também dava medo. Com uma tremula mão, empurrou a madeira. A portinhola se abriu uns centímetros e a luz das velas entrou pela fresta. As sombras se moviam como manchas de azeite pelo fragmento de parede do salão que podia ver. Havia três silhuetas, a de mamãe era a mais baixa e duas silhuetas mais altas, uma delas com certeza de seu papai.
—Fora de minha casa!— Gritou papai.
Ouviam-se muitas vozes de fundo, murmurando e assobiando como serpentes, mas Rachel só pôde entender umas palavras: “... Este não é seu lugar”.
A sombra que não conhecia levantou um braço e assinalou algo da sombra de papai. A sombra de papai se equilibrou sobre ele. Enroscaram-se como uns animais lutando e caíram no chão.
Mamãe gritou:
—Não, por favor...!
Ouviu-se um grande ruído, como uma explosão, que fez que Rachel desse um pulo. A sombra de mamãe caiu.
Durante uns instantes, tudo ficou em silêncio. Levi se inquietou nos braços de Rachel, assim que ela o embalou e esperou que mamãe se levantasse e dissesse que estava bem, que a sombra má tinha partido, que tudo tinha sido um pesadelo. Mas não era um pesadelo porque mamãe não despertou.
Algo chiou como um gato que prendeu a cauda com a porta, mas mais alto. No lugar onde tinham caído no chão papai e o homem mau, elevou-se uma nova sombra. A escura silhueta tinha a forma de um homem, mas era maior que qualquer um que Rachel conhecesse. A luz das velas fazia que parecesse ter dois chifres de ambos os lados da cabeça, e seus dedos cresceram mais e mais até converter-se em uma espécie de garras. Quando levantou os braços, a sombra não era de braços, mas sim de asas.
Rachel sentiu um tombo o coração. Queria fechar os olhos, mas não podia. Quão único podia fazer era aconchegar-se mais no sótão e tremer enquanto a sombra do monstro se elevava até que seus pés, mas bem, garras, deixaram de tocar o chão. Então, saiu voando com um lento e pesado bater de asas.
Alguém a quem Rachel não podia ver gritou. Outros amaldiçoavam e grunhiam. Ouviu passos no chão de madeira. Algo pesado, como um móvel, caiu no chão. Por um instante, a luz do salão sumiu, mas depois ouviu um assobio e o salão voltou a iluminar-se. Rachel cheirava a fumaça, mas não era o ceroso aroma das velas, e sim o penetrante aroma de um incêndio.
Produziu-se um resplendor na sala, e foi então que Rachel o viu... Não a sombra do monstro, e sim a coisa em si.
Deixou de respirar. O coração deixou de pulsar. Não queria olhá-lo, observar esses incandescentes olhos negros, mas não podia desviar o olhar. Uma língua bífida dançava em um bicudo bico. O sangue manchava os extremos cinza de suas asas e escorregou por suas garras até gotejar no chão quando passou na frente de seu esconderijo e fechou de um golpe a portinhola com uma garra de três dedos.
Rachel se pegou à parede do fundo de seu esconderijo, aconchegou no canto mais escuro e longínquo. Fechou com força os olhos, enquanto seguia ouvindo os ecos de gente gritando e mais ruídos como de explosões. Abraçou Levi com força e recitou a única oração que sabia, movendo os lábios, mas incapaz de conseguir emitir som algum.
—Agora me recostarei a dormir, rogo ao Senhor que cuide de minha alma. Se morrer antes que desperte...
Capítulo 1
Nada recordava tanto a Nathan que não era humano como uma mulher atraente controlando todos seus movimentos em uma sala cheia de gente. Não era assídua ao baile de gala de benfeitores do Museu de Belas artes de Chicago; se tivesse assistido a outro, recordaria. Uma mulher como ela deixava rastro.
Inclusive em um homem que não era realmente um homem.
Seu cabelo era da cor do sol, tão claro como escuro era o seu, e o tinha recolhido em um coque clássico que conferia um ar de elegância antiga, mas com um toque de modernidade graças às mechas que tinha deixado soltas caindo em espiral ao redor de seu rosto formando cachos. Seu vestido conferia também uma sensação de sofisticação moderna. Acariciava seu corpo como se fossem esmeraldas líquidas, tinha o brilho justo para chamar a atenção sem ser estridente e o suficiente decote para tentar sem mostrar muito.
Entretanto, era a abertura que se elevava por cima de um dos joelhos, que deixava ver uns sapatos de salto de agulha presos a seu tornozelo por uma delicada tira, e suas longas e formadas panturrilhas o que faziam ferver o sangue de Nathan enquanto esperava que ela desse outro passo... E ele tivesse outra oportunidade de entrevê-la.
Segurando com tanta força o frágil pé da taça de vinho que teve sorte de não quebrá-la, deu as costas a essa mulher.
Amaldiçoou sua natureza pagã, que o fazia arder por algo que não podia ter. Não procurava uma mulher essa noite, nenhuma noite.
Nathan só tinha ido pela arte.
Na arte, nos quentes bolos e escuros traços dos óleos, a emoção primitiva, celebrava as maiores alegrias do homem e sofria as profundidades de seu desespero.
Na arte, experimentava a humanidade.
E se a arte era uma amante fria, ao menos era fiel. Nathan tinha nascido, vivido e morrido quatorze vezes, e a arte sempre tinha permanecido a seu lado. Conferia uma paz que não encontrava em nenhuma mulher.
Na arte, encontrava seu consolo. Encontrava sua alma.
Depois de negar-se a voltar a pensar na tentação de vê-la de novo, se concentrou na tapeçaria do século XII pendurada diante dele. Encontrava-se lendo o cartaz com a história detalhada da tapeçaria, como se não conhecesse muito bem suas origens, quando chegou uma essência de romeiro flutuando pelo ar. Seus sentidos extraordinariamente desenvolvidos identificaram a fragrância como a dela entre outros perfume e aromas das demais mulheres e as fortes colônias dos homens que invadiam a galeria.
Incapaz de controlar-se, continuou observando a placa, mais concentrado na brilhante superfície da proteção de plexiglás[1] que no texto em si, até que sua vista se nublou. O vidro atraía o reflexo do abajur de cristal do teto. Centenas de gotas de cristal cintilavam graças a uma única fonte, a luz do sol do meio-dia.
O sol abria um canal através do tempo e o espaço. Nathan se balançou enquanto seus sentidos abandonavam seu corpo, seguindo a luz, desdobrando-se no túnel do sexto sentido, um tipo de hipnose auto induzida que lhe permitia ver coisas que seus olhos humanos não podiam ver.
Em segundos, a imagem da mulher apareceu em seu olho mental. Observou-a enquanto ela passeava pela sala a suas costas, abrindo caminho pela galeria enquanto sorria e conversava com os convidados, detendo-se frente a um garçom uniformizado para tomar uma taça de champanha da bandeja que oferecia. Parecia passear sem dirigir-se a nenhuma parte concreta, mas o repicar de seus sapatos no chão de mármore a aproximava cada vez mais.
Dele.
Alta e magra, movia-se com uma graça inusitada. O brinco com uma esmeralda que acariciava o pescoço competia com uns olhos do mesmo brilho e cor... E perdia. Teria sido a imagem da perfeição feminina se não tivesse sido por um detalhe: sobre seus perfeitos olhos, a sobrancelha esquerda se arqueava em um ângulo ligeiramente maior que a direita, o que conferia ao rosto dela um aspecto amável e travesso que parecia do mais cativante.
Nas mulheres, como na arte, eram essas minúsculas imperfeições o que transformava um bom trabalho em uma obra de arte.
—Magnífico, não acha?
A voz que Nathan ouviu a suas costas era curiosamente mais grave, em comparação com a suave sofisticação da mulher. O timbre rouco da voz varreu a fictícia imagem que seu sexto sentido tinha criado em sua mente. Com dificuldade, resistiu a tentação de girar a cabeça e olhar a imagem real. Em vez disso, ficou observando O Combate de Rouen, a tapeçaria medieval emprestada pelo Musée do Cluny que tinha ido ver essa noite. Tinha passado muito tempo da última vez que tinha posto os olhos sobre o registro pictórico do nascimento de sua gente.
—É incrível com quanta claridade o artista representa o triunfo do cristianismo sobre o paganismo. — Prosseguiu a mulher de verde.
Nathan rodeou o pé da taça com os dedos.
—É isso o que representa?
—O simbolismo é óbvio. O dragão é a representação da crença pagã na magia e as criaturas míticas. O sacerdote ajoelhado no meio usa a oração para matar o dragão. O cristianismo mata o paganismo.
— A mim, esses das presas e bicos e garras que estão matando o dragão não me parecem orações. — Não tinha que olhar a tapeçaria para imaginar às bestas lutando contra o dragão. Podia ouvir os rugidos, saborear o sangue. Não tinha estado ali, mas a história tinha ido passando de geração em geração.
Seus antepassados queriam assegurar-se de que nenhum dos seus a esquecessem.
Não comentou com a mulher que o sacerdote estava ajoelhado dentro de um dissimulado, mas visível, círculo pagão, que algumas das bestas possuíam rosto humano ou que ao redor das bordas da cena da luta, só havia figuras de mulheres e meninos que observavam desde as ruas de Rouen. Destacava a ausência de homens.
A mulher moveu sutilmente os ombros.
—Poderíamos assumir que o sacerdote usava a oração para convocar às bestas para que fizessem seu trabalho.
— Poderíamos. — Disse Nathan — Se não soubéssemos a verdade.
Romanus tinha decepcionado os habitantes de Rouen. Usou sua própria magia para enganá-los e sua religião para amaldiçoá-los.
Devido à traição desse miserável sacerdote, Nathan e os que eram como ele tinham sido condenados a carregar para sempre um monstro em seu interior, latente, mas sempre preparado para despertar.
Sempre faminto.
Inconsciente da ira que despertava no interior de Nathan, a mulher o olhou fixamente com uns frios olhos verdes.
—O detalhe é incrível. Não há nenhuma obra mais deste período com uma gama de cor assim.
Nathan se tranquilizou respirando fundo. Romanus levava muito tempo morto e ele se sentia muito intrigado por uma mulher que reconhecia a gama de cor em uma tapeçaria medieval para deixar que algo que tinha acontecido há mil anos arruinasse a noite.
—Há uma. — Disse, consciente do perigo de manter uma conversa com ela, mas incapaz de se controlar.
—Não sei onde.
Nathan se deu conta de que ficou com o olhar fixo, e não na tapeçaria, mas não podia afastar os olhos dessa mulher.
—No Tibet.
—Isso não conta. — Seus olhos resplandeciam tanto como seu sorriso — Os orientais tinham uma vantagem injusta. O fio de seda.
—Justa ou não, estabeleceram um mínimo de qualidade para a cor e os motivos que os ocidentais não puderam igualar até dois séculos depois.
—Três, ao menos.
—Certo.
Rachel elevou a taça em sinal de admiração.
—Conhece a arte das tapeçarias.
—E você também. — Um fato que fez com que gostasse um pouco mais dessa mulher, mais do que já o atraía. Hoje em dia, muitas mulheres se preocupavam só por sua própria beleza. Ao dar-se conta de que essa mulher não era uma delas, sentiu um desejo que percorria o corpo e doía no baixo ventre.
Começou a respirar mais forte e o excitante aroma de romeiro que a rodeava o envolveu, invadindo-o. Além desse aroma, seus sentidos de predador captaram outra essência mais embriagadora: a excitação feminina. Ela estava tão interessada nele como ele nela.
Deu meia volta e se afastou para a seguinte obra, um resplandecente sabre com uma bainha dourada, antes de cair em uma total estupidez e perguntar seu nome.
Por desgraça, o seguiu.
Deteve-se muito perto junto a seu ombro. Invadiu seu espaço. Sua paz mental.
—Você é colecionador ou negociante? — Perguntou.
—Nenhuma das duas coisas. — Embora, de vez em quando, vendia alguma peça para chegar ao fim do mês.
—Deve ser um grande amante da arte se viajou até o Tibete para passear pelos museus e admirar tapeçarias. Viaja muito?
—Quando convém. — Não se incomodou em corrigir sua hipótese de que tinha ido ao museus do Tibet. A tapeçaria na qual estava pensando estava pendurada no salão de um grande marajá; Nathan tinha estado presente quando o príncipe revelou a obra de arte que tinha comprado especialmente para sua princesa. Mas tinha acontecido há séculos. Literalmente.
—E convém frequentemente?
—Bastante frequentemente.
Ela franziu o cenho, e se formou um pequeno sulco sobre a ponte de seu altivo nariz.
—Sempre é tão comunicativo?
—E você sempre pergunta tanto? — A curiosidade da mulher esfriou um pouco o calor que despertou anteriormente nele.
Por que uma mulher como ela, educada, equilibrada, extrovertida, tinha se fixado em um homem como ele entre todos os ricos e eruditos esnobes que formavam redemoinhos a seu redor para chamar sua atenção essa noite? Sua linguagem corporal dizia com claridade que não procurava companhia.
—Só queria conversar um momento. — Disse ela.
—Não sou muito conversador.
—Não me diga.
O brilho do flerte desapareceu dos verdes olhos dela, substituído por um resplendor de desafio, o que confirmou suas suspeitas. Ela tinha algo em mente. Mas ele não sabia o que era.
Ou o que fazer com respeito a isso. Sobre tudo, desde que descobriu que o atraía muito mais a ferocidade de guerreira que mostrava que a fachada anterior de garota formal atrás da qual se escondia.
A tentação o atravessou como uma espada. Os de sua espécie nasciam com dois impulsos claros: proteger os humanos do mal e procriar.
E agora mesmo não via ninguém que necessitasse de proteção.
Segurou com ambas as mãos o pé da taça para ocupá-las com algo que não fosse as enredar entre os cachos dourados que caíam ao redor do rosto dessa mulher. Enquanto a olhava em silêncio, a mulher deixou escapar um suspiro. O sulco entre suas sobrancelhas desapareceu e voltou a sorrir, um tanto desgostosa. Enrugou o nariz com ingenuidade, e o corpo de Nathan se esticou como uma barra de ferro.
A mulher passou a taça à mão esquerda e estendeu a direita.
—Bom, agora que tivemos nossa primeira briga, suponho que deveria me apresentar. Sou Rachel Vandermere.
Nathan não tocou esses delicados dedos, porque não confiava no que aconteceria se a tocasse. Sempre tinha sentido paixão pelas coisas belas, e sem dúvida essa mulher era uma obra de arte com esse cabelo de ouro e os olhos como duas joias. Mas, atraía-o algo mais que a beleza. Havia algo familiar nessa mulher. Algo que reconhecia em um nível instintivo, igual reconhecia que ela, diferente dele, não estava aqui só pela arte nem se interessava por ele só por seu conhecimento sobre tapeçarias antigas.
Sentia uma profunda conexão com ela, fraca, mas evidente. Uma vibração sincronizada, como duas escalas que tocam a mesma nota. Quase sentiu que podia tocá-la com a mente e tocar seus pensamentos com tanta facilidade como fazia com os de sua própria espécie, mas isso era impossível.
Não havia ninguém de sua espécie como ela. Não havia mulheres, fossem bonitas ou não.
A magia que convertia Nathan no que era passava só aos filhos varões. Seu povo dependia das mulheres humanas para ter seus filhos, mas a descendência feminina não possuía nenhuma das características únicas de sua raça, e se consideravam sem importância, enquanto que os meninos varões eram muito apreciados, já que produzir um varão nesta vida garantia um renascimento na seguinte. Assim que o menino nascia e tomava leite pela primeira vez, os homens de sua raça deixavam a suas companheiras humanas, levando seus filhos varões com eles para criá-los na congregação e ensinar os costumes de sua gente.
Costumes que os humanos não entenderiam.
Nathan tinha vivido, morrido e voltado a viver muitas vezes dessa maneira, mas já era suficiente. Não se emparelharia nesta vida. Não teria nenhum filho varão, e o preço por negar-se a contribuir à sobrevivência de sua espécie seria que sua essência não reencarnaria.
Esta vida seria a última, e a ia viver sozinho.
Jogou os ombros para trás, sentindo todo o peso da maldição que se impôs. O suicídio da alma.
A mulher de verde seguia com a mão estendida para ele.
“Sou Rachel Vandermere”.
Não era um nome que esqueceria com facilidade. Não importa com quanto empenho tentasse.
Desviando o olhar dela, acabou a champanha da taça de um gole.
—E eu chego tarde a outro compromisso. — Disse e se dirigiu a grandes passos para a saída.
—Nossa, que grande filho de...— Rachel cruzou os braços com os punhos fechados em uma atitude muito pouco elegante. Inclinou a cabeça como se isso a ajudasse ouvir além das risadinhas zombadoras que se filtravam através do diminuto receptor que levava na orelha, e deu meia volta para que os amantes da arte não a vissem falando sozinha.
—Ouviram, meninos?
Por como todos explodiram em gargalhadas, supôs que sim tinham ouvido.
—Com certeza é gay! — Disse um dos meninos da caminhonete de vigilância. Rachel não soube quem era com exatidão. Não conhecia a equipe de Chicago tanto como para reconhecer as vozes.
—Ou está morto.
—Ou é um extraterrestre.
—Nenhum humano passaria um bombonzinho com um corpo como...
Rachel suspeitou que o golpe e o grito apagado que ouviu a seguir era Carter Laisson, o chefe da equipe do grupo especial de operações, golpeando com o cotovelo ao que falava. Carter trabalhava no Ministério de Assuntos Exteriores, antigo marinhe, agente do FBI e membro da CIA. Rachel não pensava que fosse capaz de rir.
—Já basta de dizer palhaçadas. — Advertiu a profunda voz de Laisson — Descubramos quem é esse homem.
—Já vou. — O ruído de uma cadeira com rodas e o som do teclado delatou o que falava como o especialista em tecnologia. Rachel acreditava que seu nome era Otto. Tinha reunido uma base de dados de informação sobre os que tinham ido ao baile de gala. Parecia que ia ser útil. — Acha que o cara é nosso homem, Rachel?
—Poderia ser.
—O que? — Carter Laisson parecia cético. Pensando que isso era seu trabalho, como chefe da equipe do grupo especial de operações da multi agência, Rachel tentou não levar a mal. — É que os da Interpol podem descobrir a um assassino só olhando?
—Dêem uma olhada. — Girou 180 graus com lentidão, deixando que a diminuta câmara que levava no brinco de esmeraldas tivesse uma vista completa da sala — Temos homens velhos e enrugados, mulheres loiras e políticos. Vêem alguém mais que possa ser um homem procurado em todo o mundo? Além disso, notei umas vibrações...
—Que tipo de vibrações?
—Não sei. — Não podia explicá-lo, nem sequer ela o entendia — Como um comichão dentro de mim.
—Me parece que se pôs quente.
—Calado Otto. — Advertiu Laisson.
Alguém interrompeu com uma observação de grande ajuda.
—Você não ficaria quente nem caminhando sobre brasas, Otto.
—Veio sozinho. — Disse Rachel, mais que nada para deter os comentários. Essa era sua primeira missão com membros de equipe de tantos grupos diferentes, e todos os rumores que tinha ouvido sobre as forças especiais interinstitucionais eram certos. Parecia que passavam mais tempo tentando demonstrar quem tinha o maior, bom, a maior abreviatura nas costas da jaqueta que em trabalhar.
Esquadrinhou o museu em busca de outros possíveis candidatos. Não encontrou nenhum. Ou não queria encontrá-lo. Não podia explicar, nem sequer a si mesma, e muito menos a seus companheiros temporários, mas havia algo no tom “chego tarde a outro compromisso”...
Repassou os dados mentalmente e em voz alta.
—Esteve sozinho toda a noite. Disse que viajava muito. E ficou bastante nervoso quando fiz umas perguntas. Não quis me dizer seu nome.
—Nathan Cross. — Disse Otto, repassando sua ficha — Nascido em Chicago em 1970. Atualmente, vive ali. Professor de história na Universidade de Chicago.
—Está de brincadeira — Disse Rachel — Esse cara é professor?
Não se parecia com nenhum professor dos que tinha tido, com esses olhos escuros e esse cabelo negro azeviche que quase chegava aos ombros, por não mencionar a maneira em que seus largos ombros nada típicos de um estudioso enchiam o elegante smoking que vestia.
De repente, uma ideia terminou com a lista de qualidades físicas. De tantas qualidades físicas.
—Como pode um professor de arte ter um smoking tão caro e este tipo de vida? — As entradas custavam cinco mil dólares por cabeça.
—Provém de uma família rica?— Perguntou Otto. Depois, seguiu teclando — Não. Aqui está. Parece ser que o professor Cross mantém esse nível de vida vendendo uma obra de arte a cada três ou quatro anos.
—Um ladrão. — Disse Rachel — Sabia que não era trigo limpo.
—Espera. Não se sabe onde consegue as obras — Disse Otto — Mas não se denunciou o roubo de nenhuma delas. Parece ser que é muito bom encontrando tesouros perdidos.
—Sim, com certeza que é muito bom...
Carter a interrompeu, apagando seu entusiasmo.
—Vamos lá gente, isto não é uma investigação sobre propriedades culturais. Estamos aqui para pegar um assassino, recordam?
—Ouça, um mau é um mau. — Grunhiu Rachel. Mas o chefe tinha razão. A época em que perseguia traficantes de arte e ladrões de arte internacionais para a Interpol, a polícia internacional, tinha acabado. Tinham-na subido mais alto: antiterrorismo. Tudo porque tinha reconhecido um homem que parecia expor inocentes pergunta no consulado francês sobre a exposição, e depois tinha realizado uma repentina viagem a Chicago, como um conhecido intermediário para um dos principais peixes gordos que estudava o terreno para que logo seu chefe pudesse cometer um assassinato.
A França tinha enviado mais de um punhado de velhas tapeçarias mofadas aos Estados Unidos com a exposição medieval. Tinham mandado o secretário geral Frederique DuBois para realizar o discurso de inauguração, um secretário que tinha sido um objetivo terrorista desde que tinha passado informação sobre a Al Qaeda aos Estados Unidos.
Seu trabalho ao atar cabos desde a Al Qaeda passando pelo intermediário e pelo assassino até chegar ao DuBois tinha granjeado um trabalho de campo para a Interpol, a agência em que inclusive os mais veteranos se limitavam a seguir rastros de papel do escritório central.
Também ajudava que fosse uma mulher muito atraente com esse traje de noite, pensou. Ou que soubesse mover-se pelos museus. A equipe dedicada a proteger DuBois necessitava de alguém que pudesse misturar-se com a gente do mundo da arte. Que soubesse mover-se entre eles. Que falasse seu idioma. E essa pessoa era ela.
Rachel se sentia contente de poder ajudar a salvar a vida de um diplomata e ajudar a manter assim a paz mundial, mas também tinha suas razões pessoais para querer essa missão. Embora se acreditasse que o assassino encarregado de acabar com o secretário DuBois estava comprometido em sete assassinatos políticos, ninguém sabia que aspecto tinha. Não existia nenhuma só fotografia dele em nenhum arquivo policial. Nenhuma testemunha tinha estado o bastante perto dele para poder descrevê-lo com uma mínima precisão. Os rumores diziam que escapar da polícia não era a única razão para que William Bishop, aliás, “o louco”, não deixasse ver sua cara. Supunha-se que era disforme. Alguns o chamavam de monstro.
E Rachel levava muito tempo interessada nos monstros.
Uma mecha de cabelo negro, uns olhos escuros e brilhantes e uns traços marcados apareceram em sua mente com uma assombrosa claridade e sem prévio aviso. A imagem era tão clara que era quase como se ele estivesse ali, dentro dela. Tocando sua mente. Tinha a estranha sensação de que ele estava pensando nela.
Esquentou seu sangue no momento e sentiu uma dor no ventre. O que é você, Nathan Cross?
Sem dúvida, não parecia um monstro.
Mas, às vezes, as aparências enganam.
Capítulo 2
Com o casaco sobre o braço, Nathan desceu as escadas principais do museu como um possesso. A escuridão o chamava, atraía-o para seu lar nos becos e curvas escuras que pertenciam aos de sua espécie. Sobre sua cabeça, os enormes cartazes brancos e dourados da fachada do museu que anunciavam o baile de gala dessa noite ondeavam como as velas do navio que tinha levado a uma encarnação prévia de si mesmo aos Estados Unidos muitos anos antes. Um novo mundo tinha pensado ao divisar a verde costa. Um novo caminho.
Sim, claro.
Realizou uma pausa para observar o museu monolítico, que resplandecia como o castelo da Cinderela na Disney World sob os focos dispostos para o baile de gala. Percorreu com o olhar as torres e contrafortes até divisar às criaturas suspensas entre sombras sobre elas e ocultas graças à escuridão noturna.
Com dificuldade, estudou as profanas combinações de metade homem metade animal. Monstros de pesadelo com terríveis rostos, com uma existência agônica infinita, sem idade, os gárgulas estavam condenados a observar à sociedade humana, a vida humana, durante toda a eternidade, mas sem nunca formar parte dela.
Eles eram sua história, seu patrimônio lavrado em pedra, não os quadros de preciosas mulheres nem as elegantes esculturas do museu.
Retorceram suas tripas. Por que não deveria sucumbir às silenciosas petições de sua besta interna? Por que não levar Rachel Vandermere com ele para casa e tirar esse vestido verde centímetro a centímetro? Por que não fazer amor até que o amanhecer chegasse para levá-la a escuridão de sua alma?
O que podia ser mais humano?
Mas, de fato, esse era a essência da questão, não é?
Não era humano.
Seu fogo interno se silenciou ao pensá-lo, colocou o casaco e fechou até em cima o pescoço de grossa lã de caxemira. Não tomaria nenhum táxi e caminharia os três quilômetros de volta até seu apartamento situado no Lake Shore Drive.
Como se um passeio na fria noite apagasse as imagens dessa mulher que ferviam em sua consciência. Só porque não podia tê-la não significava que podia obrigar-se a deixar de desejá-la, igualmente a não podia passar diante de uma obra mestre sem admirar o quadro.
Nathan Cross era um homem de gostos refinados.
E Rachel Vandermere era perfeita para seus gostos.
Ao se dar conta de que ainda levava a taça na mão, amaldiçoou e a atirou sobre as escadas de pedra, antes de dirigir-se para sua casa. O ar de novembro, já amargo com a chegada do inverno, golpeava suas bochechas como agulhas de cristal. A névoa que planava sobre o lago Michigan bloqueava as estrelas. Nathan introduziu as mãos nos bolsos do casaco e agradeceu o calor que proporcionava.
Ao longo da parte posterior do museu, equilibravam-se sobre ele sombras procedentes de todas as partes. As deterioradas e gretadas calçadas de paralelepípedos e os matagais de acebo podados deram passo a papéis e lixo levados pelo vento e às últimas ervas daninhas que se rebelavam diante a iminente chegada do inverno.
Não havia luzes que iluminassem o caminho. Em uma esquina, junto a um alto edifício de pedra, havia uma única luz solitária. Sua débil luz apanhava a umidade gelada do ar. Depois dele, a face oculta do museu se elevava na noite como o castelo de Frankenstein, negro e ameaçador.
Com a cabeça encurvada, caminhava pelo concreto, enquanto uma ânsia com o poder de mil anos de magia retorcia seus intestinos como um nó. Acabava de cruzar a rua quando um ruído de arranhões o pôs em alerta. Deteve-se e olhou por cima do ombro. A noite era silenciosa e fria. Tranquila.
Ao menos, na superfície.
Com uma deliberada falta de preocupação, Nathan continuou caminhando. Deu dois passos mais antes que uma figura com umas calças de couro negro e uma jaqueta negra aparecesse entre as sombras no alto do muro de pedra situado atrás dele.
Nathan reconheceu na hora o corte de cabelo, já que recordava a um porco espinho que tivesse metido as garras em uma tomada, seguido rapidamente pelo familiar som nasal.
—Von, esqueceu o grito aterrador.
—Se tivesse querido te assustar, — Respondeu Von Simeon — seria você o que estaria gritando. — Acendeu um fósforo, aproximou-o do extremo do cigarro que pendurava a um lado da boca e aspirou. O aroma do tabaco se misturou com a essência de uísque barato que o envolvia como uma velha manta — Ou possivelmente esqueceu o que um de nós pode fazer a um homem só em uma rua escura.
—Não esqueci nada. — Observou com cautela enquanto Von dava voltas a seu redor como se fosse um abutre — E eu não sou um homem qualquer, como já sabe.
—Vejo que está todo arrumado. — Von acariciou a suave lapela do casaco de Nathan — Vai sair festejando pela cidade?
Nathan afastou sua mão.
—Vou para casa. É quase meia-noite.
—Justo quando começa a festa de verdade.
—Se por festa se refere a cem pessoas amontoadas em um úmido porão enquanto arranham os ouvidos com esse ruído infernal que chamam de música e fritam o cérebro com a droga da moda, então, sim. Suponho que tem razão.
—Agora nos entendemos. Então que se inscrever, não é? — Von sorriu sob os efeitos do álcool.
O vento soprou, e o amargo fedor do fôlego de Von golpeou Nathan no rosto. Se forçou a não recuar. Com dificuldades.
—Não, obrigado.
—Mas o que acontece? Acha-se muito bom para se misturar com seus velhos colegas?
—Não é meu colega. — Deu meia volta para partir, mas, antes de dar um só passo, o menino se interpôs de novo em seu caminho. Mas já não era um menino.
Os olhos de Von resplandeciam com uma incandescência verde, avisando de que o Despertar estava a ponto de possuí-lo. Seu rosto trocou, os ossos se endureceram, o arrebitado nariz se torceu como o de um porco, até que a mandíbula se sobressaiu. Os dois dentes inferiores cresceram, sobressaindo-se como presas. A baba escorregava pela comissura dos lábios.
Nathan sorriu, tirou os punhos dos bolsos e ficou alerta, no caso de precisar.
—Bom, se for agir como um imbecil, suponho que deva ter esse aspecto.
Erguido como um homem, mas com o rosto de um animal selvagem, Von rugiu e deu um passo para Nathan.
—Deixa-o em paz, Von.
Sem dar as costas a Von, Nathan elevou o olhar. Sobre a cornija, havia outro homem, com uma gabardina negra que ondeou no ar ao redor de seu alto corpo ao saltar no chão. Uma terceira figura do mesmo estilo saltou junto a ele.
—Rhys — Nathan assentiu para o primeiro homem, aquele ao que tinha chamado seu melhor, único, amigo durante as sete vidas prévias antes de tomarem caminhos separados. Depois, voltou-se para o homem que o acompanhava — Connor.
Von aspirou o cigarro.
—Acredita que é melhor que nós porque vive no bairro arrumadinho e usa roupa cara.
Nathan girou lentamente sobre os calcanhares enquanto os três o rodeavam.
—Decidi levar uma vida diferente. — Assinalou a escuridão com a cabeça — Vocês escolheram isso.
—Deveríamos te surrar por sua deslealdade. Teryn é um imbecil brando por ter permitido que rompesse com a congregação.
Nathan sorriu com malícia.
—Diga isso na cara dele e veremos quão brando é Teryn.
Von soprou.
—Esquece-o, Von. — Connor afastou uma mecha de cabelo negro dos olhos — Teryn é nosso Wizenot[2]. Suas decisões e as do Conselho são irrevogáveis. Se descobrir que o põe em dúvida, será você o que acabará surrado.
Von jogou para trás as orelhas como a besta furiosa que era e levantou a cara, olhando para a névoa para comprovar o túnel do sexto sentido.
—Não está olhando.
—Bom, está te bloqueando para que não veja que o vigia. — Disse Rhys. Depois, voltou-se para Nathan com os lábios curvados para baixo para emoldurar seu cavanhaque negro — Mas Von tem um pouco de razão. Não nos critique só porque já não é um dos nossos. Você o escolheu.
—Escolhi? Desde quando algum de nós pode escolher?
—Você decidiu que era muito bom para nossas leis.
—Pode me dizer com sinceridade que você gosta de viver assim? Olhem no que estão se transformando. — Olhou para Von. Séculos antes, sua gente tinha sido uma raça honorável, reverenciada pelos humanos. Agora...
—Ouça... — Bramou Von e se adiantou para ele. Connor levantou um braço e deteve o garoto agarrando-o com o punho pela camisa.
—Preferem seguir rondando pelos becos durante outro século mais? —Prosseguiu Nathan — Ocultos entre as sombras durante outro milênio se alimentando da violência do mundo? Da predileção da humanidade pela morte e a destruição?
—Pre-de... O que? — Perguntou Von, e arrotou.
—Calado. — Ordenou Rhys ao menino.
Connor segurou com mais força a camisa do garoto.
—Ou possivelmente cansarão de esperar que os homens criem problemas e provocarão um pouco de dor e sofrimento por sua conta. Possivelmente alguns de vocês já começaram a fazê-lo. Seu jovem amigo não parece se importar muito com quem começa realmente a briga sempre que ele a acabe.
Rhys fez uma careta.
—Nós não procuramos briga. Detemo-las. Somos guardiões.
—Ah, sim? — Nathan apertou os punhos a ambos os lados do corpo. Sua ira era tal que teve que cuspir as palavras — Possivelmente, faz mil anos, quando fomos criados. O mundo era um lugar diferente então. Havia dragões e bruxos que praticavam a magia e todas as acepções do mal. As pessoas eram simples. Estavam indefesos. Mas de quem somos os guardiões agora? De gente que esqueceu que existimos? — Nathan quase não podia conter a emoção de sua voz — De verdade acha que os humanos nos agradeceriam se soubessem? O único que importaria é o que somos. Se tivessem alguma ideia dos monstros que povoam suas ruas, nos caçariam e nos matariam como cães raivosos.
“Ou se suicidariam de medo”, acrescentou em silêncio. Depois, dispôs-se a se afastar.
Olhou fixamente a Rhys, com a esperança de que seu velho amigo visse a verdade.
Rhys elevou os ombros e suspirou. Sacudiu ligeiramente a cabeça, como se não fosse consciente do que fazia.
—Não pode dar as costas ao que é Nathan. — Disse, por fim — É um dos Gargouillen, criados para proteger os inocentes de tudo o que possa danificá-los, tanto se quiserem sua proteção como se não, igual a mim. É um gárgula. Não pode esquecê-lo.
Nathan voltou a colocar os punhos fechados nos bolsos do casaco e deu um passo adiante, rodeado ou não.
—Mas posso tentar.
—Esta noite, não. — Gritou Von com ironia. Ficou de quatro patas, arqueou o corpo, expandindo o peito. Seus pés e mãos se aferravam ao chão como garras, o pescoço se alargou e as presas se alongaram e se afiaram. Isso completou sua transformação de homem a porco.
Nathan deu um passo atrás, antecipando o ataque de Von, mas Von não se equilibrou sobre ele. Em vez disso, cabeceou e golpeou o ar com as patas de trás.
O olhar de Nathan se dirigiu para a superfície refletiva de um atoleiro negro situado aos pés de Von. Como um cristal antigo, seu sexto sentido voltou para as escadas do museu gótico. Um grupo de homens descia pela escada de pedra para a rua, onde esperava uma fila de limusines. Rachel estava entre eles. O vento soltava pequenas mechas do cabelo do coque e ruborizava suas bochechas.
Inclusive quando secou a garganta diante da impressionante sensualidade dessa mulher, Nathan advertiu que alguém mais a observava de longe. Sentiu a profunda respiração do homem. Suas mortais intenções.
Nathan fechou a porta de seu sexto sentido e se balançou um pouco tonto enquanto sua consciência voltava para seu corpo.
—Que demônios está acontecendo?
Connor já tinha trocado a sua forma de gárgula, um réptil voador que recordava vagamente a um pterodátilo. Voou a seu redor com os letais esporões estendidos.
— Pede cheirá-lo?— Perguntou Rhys. Saíram-lhe uns chifres de ambos os lados da cabeça e se enroscaram ao redor das orelhas enquanto adquiria a forma de um carneiro com rosto humano. Elevou o focinho e cheirou o ar. — Há sangre no ar.
Capítulo 3
O aroma do sangue alcançou o sistema de Nathan como um chute de adrenalina. Fez ferver seu sangue nas veias. Seu coração começou uma carreira com os pulmões para tomar oxigênio e levá-lo às células.
Reconheceu os sinais biológicos de seu corpo preparando-se para o Despertar com tanta claridade como reconhecia a Chamada, o assobio ultrassônico que Os Gargouillen emitiam para que outros fossem ao lugar onde havia problemas igual aos abutres chamam a seus congêneres para compartilhar um festim de carne. A Chamada vibrou através dele, muito por cima da soleira de frequência audível pelo ouvido humano, chegando a seus nervos. Despertando sua raiva.
Von arrancou a correr para o museu, ainda em sua forma de gárgula de porco. As patas golpeavam o chão enquanto corria, camuflado entre as sombras. Sobre ele, Connor se movia pelo escuro céu como um fantasma.
Impulsionado por seus quartos traseiros, Rhys, o carneiro, deu a volta para seguir a seus amigos. Então, voltou a cabeça.
—Vem?
Nathan começou a suar copiosamente enquanto lutava contra a besta que tinha dentro.
—Não posso.
Quase desejou poder ir. Desejou voltar atrás no tempo aos dias felizes de sua amizade, quando Rhys e ele foram a Rookery, a escola onde se formavam as jovens gárgulas.
Tinha sido em Londres, em 1872. Os dois tinham crescido então liberando aos inocentes do mal em uma época de violência e decadência. Caçavam a todas as presas nos becos com névoa e ruas escuras. Possivelmente, fossem os dois únicos seres vivos que conheciam a identidade real de Jack, o estripador.
E a razão desse fim repentino da onda de assassinatos.
Para ser um homem que matava com tanta ostentação, Jack tinha morrido de maneira bastante vergonhosa, rogando por sua vida até que o último resquício desta escorreu pelo ralo.
Durante muitas vidas, Nathan e Rhys se reencarnaram com uma diferença de poucos anos e a poucos quilômetros um do outro. Procuraram-se, reconhecendo a alma do outro, não suas faces ou nomes.
Em um tempo, Rhys e ele tinham sido como irmãos. Agora, estavam separados por mil anos de tradição.
Rhys se apoiou sobre as quatro patas, voltando para uma forma quase humana para poder falar. Inclinou os chifres de maneira inquisitiva.
—O que aconteceria se todos escolhêssemos seu caminho, Nathan? O que aconteceria a nossa gente?
—E o que nos aconteceria se não o escolhemos, Rhys? — Assinalou com um braço na direção que os outros se dirigiram — É esse o futuro de nossa gente? É esta a vida que quer para o Patrick?
—Não coloque meu filho nisto.
O peso de suas crenças caiu sobre Nathan.
—Já não somos guardiões, Rhys. Faz um século que já não o somos. Somos caçadores que nos alimentamos das misérias humanas com as quais nos encontramos.
Rhys entreabriu os olhos, que se voltaram escuros e sem emoção alguma pelo insulto.
—Muitos de nós estamos de acordo que as coisas tem que mudar, sabe? Mas esta não é a maneira de nos convencer para que o sigamos. Lavando as mãos diante dos problemas da congregação.
—Foi a congregação que lavou as mãos comigo, se por acaso não se lembra.
—Porque não nos deixou outra opção. — Voltou a dar a volta para seguir aos outros — Não quer sujar as mãos, faça como quiser. Mas ela está em perigo, sabe. A mulher que te deixou tão intrigado.
Nathan curvou os lábios.
—Estava me espiando? — Supunha-se que os gárgulas não entravam nas mentes dos outros gárgulas. Era uma lei não escrita, mas uma lei igualmente.
—Não tive que tocar seus pensamentos para saber o que estava pensando. Tem escrita a luxúria na cara. — O carneiro levantou as comissuras de seu focinho em uma espécie de sorriso — E ela na dela.
A urgência por despertar à besta golpeou de novo o sistema de Nathan. A energia percorreu seu corpo. Sentiu um comichão nos dedos, os ossos adquiriram uma nova forma, as unhas afiaram. Marcou um vulto nas costas, devido às asas que se preparavam para sair, enquanto o grunhido de aviso de um grande gato saiu de sua garganta enquanto tentava se conter.
—Mantenha-se afastado dela, Rhys.
—Deveria ter tomado o que te oferecia. Agora mesmo poderia estar em casa na cama com ela, com essas longas pernas te rodeando o corpo, em vez de estar congelando de frio aqui fora.
Cravou as unhas nas palmas das mãos até sangrar.
—Me deixe em paz.
Mas Rhys seguiu pressionando.
—Deixe ir — Disse em voz baixa, quase em um sussurro — Deixa de lutar contra sua natureza.
—Não me... provoque.
—Não é muito tarde. Pode ser que a salve se correr. Estou seguro de que quererá te demonstrar sua gratidão...
Nathan se lançou antes que Rhys pudesse ver seu velho amigo equilibrar-se sobre ele. Agarrou Rhys pelo pescoço. Ao diabo com o autocontrole. Rhys era a última pessoa a quem Nathan desejava fazer mal, mas estava possuído pela fúria. A besta estava solta.
A cara de Rhys ficou vermelha. Seu pescoço inchou enquanto lutava por respirar.
—Deve deixar de se culpar pela Marabella, Nathan. É hora de virar a página.
—Já virei página. Para uma nova forma de vida.
—Pois será uma vida solitária, já que nunca formará parte real de nenhum mundo, nem o humano, nem o dos gárgulas. E, quando tiver acabado, terá acabado de verdade. Não reencarnará. A eternidade é um tempo realmente comprido para se castigar, não acha, meu amigo?
—A eternidade não é nada comparado com o que dura cada dia que vivo com seu sangue em minhas mãos, meu amigo. — Nathan preferiu empurrá-lo a um lado antes que matá-lo e fechou os olhos com força — Rhys... — Disse quando voltou a abri-los, procurando as palavras para cruzar esse longo vazio que se abria entre ele e o homem ao que considerava um irmão.
Mas o carneiro tinha desaparecido, desvaneceu na noite.
Maldição.
Inalou profundamente o ar gelado, tentando controlar a transformação que um feitiço milenar tentava impor. Não ia fazê-lo, nem sequer pelo Rhys. Não podia fazê-lo. Tinha jurado a si mesmo... Nunca mais.
Mas tampouco podia deixar que a noite acabasse tal como parecia que ia acabar. Derramando sangue. O ar estava empapado desse aroma. Estava seguro de que a coisa não tinha acabado.
Pelo que não estava seguro era de quem era o sangue.
Estava claro que o que Nathan mais desejava era partir, mas inclusive em forma humana seguia sendo o guardião que não podia afastar-se e deixar vidas inocentes em perigo, sobre tudo com a imagem de Rachel Vandermere, com as douradas mechas de cabelo banhados pela luz da lua refletindo-se em mil tons de prata, brilhando em sua mente. Também notava a pesada respiração do outro, que a estava vigiando, como uma bigorna sobre seu próprio pescoço.
Alcançou Rhys no estacionamento exterior situado a uma quadra do museu. Rhys andava a pernadas e não se alterou quando Nathan apareceu junto a ele. Sua cara ainda mostrava uma expressão fria, mas ao menos era um rosto humano.
Por necessidade, os Gargouillen tinham muito cuidado em quando e aonde iam em forma de guardiões. Se um só deles era visto, podia se desencadear uma reação em cadeia de rumores e fofocas que conduziriam a uma histeria coletiva, cujo resultado podia ser parecido ao acontecido com o julgamento das bruxas de Salem. Uma só fotografia podia ser algo desastroso e, hoje em dia, havia câmaras por toda parte. Rhys e seus graciosos amigos atrás do museu já se arriscaram o bastante; não podiam fazer o mesmo na concorrida rua diante do museu.
Havia um carro de polícia na entrada do estacionamento e o condutor estava caído contra a janela. Rhys usou a manga da camisa para assegurar-se de não deixar rastros e abriu a porta, recolhendo com delicadeza o corpo quando este caiu para fora. Olhou para Nathan e sacudiu a cabeça, mas Nathan já sabia que o homem estava morto.
Chegaram umas vozes de um nível superior do estacionamento. Nathan elevou a vista e viu umas sombras arrastando-se pela parede de concreto do terceiro andar, assim correu para as escadas, com Rhys a seu lado. Quando subiram os três andares e cruzaram a porta das escadas, ambos respiravam com força e de maneira ruidosa.
Von e Connor se voltaram para olhá-los. Um terceiro homem, vestido com um moletom negro e com uma mascara de esqui sobre o rosto, aproveitou essa pequena distração para reagir. No chão, um tanto afastado dele, resplandecia o metal azul do cano de um rifle com olhar telescópico.
—Nossa, nossa — Mofou Von com ironia — Olhe quem decidiu jogar a final.
Rhys se interpôs entre os dois.
—Isto não é um jogo, Von.
—Tudo é um jogo! Ele derrama o sangue do poli[3], nós derramamos o seu. Olho por olho. — Von se moveu pelo concreto em um torpe baile — Olho por olho. Dente por dente. Vamos matá-lo.
Um calafrio percorreu a coluna de Nathan como água gelada.
—Não tem que matá-lo, Von.
—Pois o que se supõe que devo fazer com ele? Dar um puxão de orelhas e mandá-lo a casa com sua mamãe?
—Poderia entregá-lo à polícia.
—A polícia! — Von abriu os braços — O que se supõe que somos, uma turma de malditos boy scouts[4]?
—Já não nos corresponde repartir vingança. Esta gente tem sua própria maneira de castigar a homens como ele. Têm leis.
—É um assassino.
—Está desarmado.
—Ainda não. — Von deu a volta para que o homem da máscara de esqui não pudesse ver sua cara. Seu nariz cresceu e voltou a retorcer-se. Cresceram as presas. Saía espuma pelas comissuras desse focinho de porco. Os olhos saíam das órbitas — Mas o estará quando arrancar as extremidades uma a uma — Começou a rir e emitir grunhidos ao mesmo tempo — O safado? Desarmado!
O homem deu outro passo.
—O que é isto? Esse cara está louco.
Connor realizou um rápido movimento de pulso e uma adaga apareceu em sua mão. Nathan não se surpreendeu ao ver a faca. Muitos dos Gargouillen levavam armas para os momentos nos que não podiam lutar em forma de gárgula por medo de que humanos inocentes o vissem.
—Não se mova. — Ordenou Connor, enquanto a luz fluorescente se refletia no fio da adaga.
—Tem razão. Estou louco. Mas ao menos não sou um assassino profissional — Von riu e olhou por cima do ombro — Matou por diversão!
—Se está tão sedento de sangue, Von, venha me ver quando acabar tudo isto. — Advertiu Nathan — Eu te darei algo que morder. Se te atrever.
—Nossa, esse é um convite que não posso recusar. Mas, por que esperar?
Von deu um passo para frente. Rhys se interpôs entre ele e Nathan.
—Chega, os dois!
O pulso de Nathan inchava as veias.
—Vê a que me refiro, Rhys? — Assinalou quase de maneira imperceptível a Von — É isto no que vai se transformar nossa gente?
Rhys começou a respirar com lentidão. Deixou de apertar os punhos.
—Pede-nos que vamos contra mil anos de tradição.
—Estou pedindo que não matem um homem a sangue frio.
O olhar de Rhys se suavizou. Por um momento, foi como se Nathan estivesse olhando uma velha fotografia, um retrato desgastado do amigo que Rhys foi uma vez. Então, voltou a expressão dura como uma pedra.
—Pede muito.
Rhys girou sobre os calcanhares e começou a proferir ordens como um general no campo de batalha.
—Von, pega o rifle, e tome cuidado para não deixar rastros. Teremos que levá-lo a outro lugar para acabar isto. Há humanos a caminho.
Von se inclinou, balbuciando algo, mas obedecendo e de novo, com um aspecto totalmente humano. O homem do moletom usou a distração do momento para tirar uma pistola da manga da jaqueta. Levantou o frio metal para Von.
Nathan gritou, mas era muito tarde. Como estava bêbado, quão único pôde fazer Von foi cambalear para trás.
—Não!— Gritou Rhys. E deu um salto. Ouviu-se uma detonação cujo eco ressoou nas paredes de concreto e Rhys e Von caíram no chão.
Produziu-se um silêncio sepulcral durante um segundo ou dois. Von foi o primeiro em se mover, saindo de baixo de Rhys e dando a volta. Sacudiu o inerte corpo de seu amigo pelas lapelas.
O aroma de sangue fresco golpeou Nathan como um segundo choque. Revolveu o estômago. A bílis queimava na garganta.
—Não! Maldição. Não! — Com os olhos úmidos, Von deixou Rhys e olhou ao estranho — Filho de puta! Matou-o!— Ficou em pé e agarrou o rifle que descansava no chão.
— Se afaste — Disse o homem, apontando com a pistola — Ou é homem morto.
Von golpeou o rifle contra um pilar de concreto como se fosse um rebatedor em um campo de beisebol.
—Não. É você quem é um homem morto.
O porco reapareceu. Seus olhos eram ferozes e jogava espuma pela boca. Von ficou a quatro patas.
—Que demônios? — A pistola tremeu nas mãos do homem enquanto tentava apontar a essa besta. Cambaleou para trás — Deus santo, que demônios é isso?
—Von, não. — Nathan deu um passo para frente para deter Von antes que também disparassem a ele, mas Connor saiu de um nada, agitando as asas sobre Nathan, e não pode ver nada. Arranhou-o com os esporões produzindo três profundos sulcos no peito.
Estendeu as garras diante dele como se fosse um falcão preparado para caçar uma presa que corre pelo campo. A enorme ave chiou e se equilibrou sobre o homem da pistola enquanto Von grunhia, baixava a cabeça e se lançava. O homem abriu os olhos como pratos. Parecia que iam sair das órbitas. Começou a disparar como um louco, enquanto caminhava para trás.
Então, tropeçou com o cabo de segurança do corrimão e caiu os três andares aterrissando no frio e negro chão e produzindo um som realmente desagradável.
Capítulo 4
Se o corpo tivesse aterrissado um pouco mais perto do Sedan oficial no que ia Rachel, teria amassado o capô. E assim foi como o chofer do ministro francês teve que pisar nos freios para evitar passar por cima dele.
Ou o que ficava dele.
Inclusive sem uma fotografia para comparar, não teriam demorado muito em identificar o homem; a testa pronunciada, os olhos afundados e os sete dedos de sua mão esquerda revelaram finalmente seu apelido. Era William Bishop, “o louco”, o assassino que ela tinha estado procurando, e apesar de ter algumas anomalias genéticas interessantes, já não parecia mais monstruoso que o típico personagem de circo.
O caso teria sido um completo desastre se não fosse pelo fato que salvou a vida de um diplomata francês, embora é certo que não foi graças a ela, e porque ela tinha conhecido fortuitamente ao “Dom chego tarde a outro compromisso”.
Tinha omitido dizer que seu outro compromisso era com um assassino. É obvio, assegurou que não sabia nada sobre a caravana de veículos do secretário DuBois. Ou o fato de que o secretário, e Rachel, que se encontrava no assento traseiro com ele, eram os caras sentados em seu interior ao passar junto ao estacionamento. Alegou que simplesmente tinha estado no lugar adequado no momento adequado, tinha visto um homem com uma pistola e tinha tentado detê-lo.
Nesse momento, se o fazedor de boas obras tivesse uma mera desculpa para estar no estacionamento, penduraria uma medalha na lapela e o mandaria a casa, onde poderia tirá-lo da mente, assim como seus incríveis ombros largos.
Por desgraça, não tinha nenhum motivo para estar perto do estacionamento, já fosse no terceiro andar ou em qualquer outro. O que sim que tinha era uma curiosa ferida inexplicável, uma atitude péssima e um amigo morto. Tendo em conta a morte de seu amigo, podia passar por cima sua má atitude, mas os rasgões de seu peito seguiam intrigando-a. Até que descobrisse o que tinha acontecido exatamente aquela noite e por que, ao menos tinha que considerar a possibilidade de que estivesse envolto em uma conspiração para cometer um assassinato, apesar de que em seu interior sentisse o contrário.
Bom, quando era capaz de ouvir o que dizia seu interior, já que o escarcéu que formavam outras partes de seu corpo situadas justo debaixo estavam muito mais interessadas no “Dom estava no lugar adequado no momento adequado”.
Depois de respirar profundamente, Rachel desceu o meio-fio da calçada e se dirigiu para a ambulância, colocando a palma da mão no abdômen.
—Paramos aqui, meninos. Sem dúvida, este não é o cara que procuramos.
E não é que ela tivesse um cara. Durante toda sua vida, tinha estado muito ocupada caçando monstros para ter tempo de caçar homens.
Rachel tremeu enquanto o frio vento atravessava seu elegante, embora não muito prático, traje. Luzes de sirenes vermelhas, azuis e amarelas iluminaram a neblina como se de um festival de cores se tratasse.
“Já estamos outra vez”, pensou ela enquanto subia à parte traseira da ambulância aberta, era recebida por um cabelo negro como a plumagem de um corvo e uns olhos tão escuros que não se podia distinguir a íris da pupila. Pôde divisar uma franja larga de um moreno pelo do peito descoberto que parecia ainda mais escuro devido ao contraste com a atadura branca que o cobria; possivelmente sim começasse a ter um cara.
Nathan Cross estava sentado na borda da ambulância. Uma corpulenta paramédica estava inclinada sobre ele, colocando com luvas em suas mãos a última parte da bandagem em seu lugar. Ele franziu o cenho, aparentemente alheio aos enormes seios que flutuavam a escassos centímetros de sua cara.
Ponto para ele.
—Está seguro de que não quer ir ao hospital? — Perguntou a paramédica — Deveria ir para que vissem esses cortes.
—Estou bem.
—Terá que assinar uma alta voluntária. — Ela se voltou, agarrou uma tabuleta com prancheta de uma gaveta que tinha atrás e a plantou no peito.
Cross baixou a cabeça, e uma mecha de cabelo negro azeviche caiu sobre sua testa, arruinando a aparência de perfeito controle sobre si mesmo que tinha mantido anteriormente aquela noite. Fosse o que fosse o que rabiscou não podia ser algo legível, tendo em conta os irregulares movimentos de sua mão sobre a página, mas a paramédica parecia satisfeita.
Cross agarrou seu casaco e desceu da ambulância dando inclinações bruscas, quase atropelando Rachel. Momentaneamente sem respiração, Rachel teve que recuperar o fôlego antes de poder perguntar:
—Vai a algum lugar?
Ele levantou a cabeça, com seu escuro cabelo ao vento e olhos frios como o gelo.
—Onde está Rhys?
—Levaram-no ao hospital. — Ela o conduziu até a calçada sem acrescentar que de ali o tinham levado diretamente ao depósito de cadáveres. Já era bastante informação no momento.
—Disseram a seu pai?
—Agentes do departamento de polícia de Chicago vão caminho de sua casa agora mesmo.
Cross passou a mão sobre a mandíbula que mostrava a sombra de não ter sido barbeada em uns dias. E seus olhos se mantinham escurecidos como fazia horas.
—Eu deveria ser quem o dissesse.
—Os agentes são formados para...
—A merda com a formação! Rhys e eu crescemos juntos. Seu pai ajudou a me criar. Deveria ser eu quem...
Deu a volta e olhou o encapotado céu. Suas palavras se foram apagando alagadas em uma dor tão forte que inclusive Rachel pôde senti-lo. A rajada de dor a sacudiu, e ela se voltou, surpreendida de ser consciente do efeito que a dor dele tinha sobre ela. Tinha sentido compaixão por vítimas de assassinatos anteriormente, pelas famílias e amigos que deixavam para trás deles. Mas isto era diferente. Era como se estivesse no interior dele, sentindo o que ele sentia.
—Deus, tem um filho. Um filho pequeno.
Rachel respirou profundamente, tentou desfazer-se da pele arrepiada, visível em seus braços, e recuperou a compostura. Não podia permitir-se pensar em um menino que acabava de perder a seu pai. Não o faria.
—Estou segura de que sua família apreciará que se reúna com eles mais tarde. Assim, por que não me responde umas poucas perguntas para que possa partir?
Cross a olhou com uns olhos desafiantes como os de um gato grande que se sente encurralado.
—Que perguntas?
—Comecemos com seu nome.
—Já o disse antes. Nathan Cross.
—Só comprovava meus dados.
Nathan torceu o lábio como se de um cão feroz se tratasse.
—Talvez devesse escrevê-lo desta vez. Não deveria ter uma pequena caderneta ou algo assim?
Recordando a ela mesma que ia ser firme pela atitude daquela noite, colocou os braços a ambos os lados do vestido verde que tinha comprado para o baile de gala daquele dia. A fina malha pendurava sobre seus cotovelos.
—Sinto muito. Não tenho bolsos.
Cross se deteve o tempo suficiente para olhá-la de cima a baixo atentamente. O calor se apoderou da cara dela, e de outras partes. Maldição, como ele conseguia?
“Se concentre”. Ela precisava se concentrar.
—Volte a me contar o que estava fazendo no estacionamento.
—Estava esperando Rhys. Íamos... A uma festa. Já disse que tinha outro compromisso.
—De maneira que foi assim. Não é exatamente a espécie de bairro no qual eu gostaria de estar sozinha de noite, mas estava esperando a alguém, e quando chegou, os dois viram um homem com uma pistola no terceiro andar e foram ver o que estava fazendo, momento no que os atacou. No enfrentamento, Rhys recebeu um disparo e o homem da arma caiu pelo corrimão de segurança.
Rachel girou a cabeça e arqueou uma sobrancelha.
Nathan assentiu.
Bingo. Ela não necessitava uma maldita caderneta.
—Por que não chamaram à polícia quando viram o homem armado?
—Não tínhamos telefone móvel.
—Rhys chegou ao estacionamento sozinho?
—Sim.
—De maneira que ali só estavam o homem da pistola e vocês dois?
—Sim.
Rachel se deteve, intencionadamente, dando tempo para que se perguntasse o que estava pensando, e depois voltou a dar voltas sobre o tema principal.
—Onde era esse outro compromisso?
Ele vacilou, o suficiente para revelar que se dispunha a mentir.
—Não sei. Os anfitriões eram amigos de Rhys.
—Como se chamam?
—Não sei.
—Quem mais ia à festa?
—Não sei.
—Por que não me dá os nomes de alguns amigos de Rhys que tenham ido a festa? Igualmente, investigarei.
—Por que não me pergunta o que realmente quer saber?
O aceso intercâmbio de palavras tocou fundo. Os orifícios nasais do nariz do Nathan se alargaram. Parecia que queria equilibrar-se sobre ela na calçada, mas finalmente quão único fez foi piscar.
O homem tinha autocontrole, isso não podia negar. Além disso, tinha razão. Ela estava evitando ir ao grão, e claramente era um homem que gostava da gente direta.
—Como fez esses cortes no peito?
—O que?
Rachel assinalou com a cabeça a bandagem. Ele olhou para baixo à atadura sob sua camisa entreaberta como se tivesse esquecido que estava ali.
—Acho que cai sobre algum vidro durante a briga — Era a mesma história que tinha contado antes, mas seguia sem ser convincente.
—Mas bem parece que alguém o tenha arranhado.
Nathan, visivelmente relaxado, deixou aparecer um sorriso forçado, e jogou por terra o que considerava uma observação absurda.
—Nenhuma pessoa poderia arranhar tão profundamente só com as mãos.
—Não — Disse ela — Nenhuma pessoa.
Ao menos, nenhum ser humano.
Por outro lado, aquela sombra, que ela tinha tentado convencer-se durante as últimas duas horas de que era fruto de sua imaginação, que saiu voando por trás do estacionamento justo quando ela desceu do carro e olhou para cima ao terceiro andar, parecia totalmente real.
Nathan deu ao taxista oito dólares de gorjeta dos doze que custava a viagem para não ter que esperar que o homem desse o troco de uma nota de vinte. O sol sairia em uma hora aproximadamente, e a noite o tinha deixado completamente esgotado.
Rachel Vandermere, Deus, não podia acreditar que fosse uma poli; da Interpol, nada menos, o tinha retido no museu com suas perguntas até que ele acreditou que ia perder o controle. Então, tinha insistido em que seu chofer o levaria a casa. Com ela no carro com eles.
Virtualmente tinha tido que mostrar as presas para conseguir que o deixasse e pedisse um táxi. Quão último queria era estar a sós no assento traseiro de um carro com ela. A fera em seu interior estava faminta.
De vingança e de uma mulher.
No interior de seu apartamento, não se incomodou em acender as luzes. A escuridão fazia jogo com seu humor. Suas mãos tremiam enquanto tirava o smoking ensanguentado e o apertava no cubo do lixo. Seus dentes tagarelaram enquanto abria uma garrafa de vinho e se enchia um copo até acima, depois engoliu o merlot como se fosse cerveja e limpou a boca com o dorso da mão.
Não estava seguro do que ia fazer, tinha muita energia pulsando em seu interior para sentar-se, estava muito cansado para preparar um banho, assim perambulou pela escura estadia de seu apartamento como uma criatura selvagem movendo-se por sua guarida.
Seu apartamento era amplo e espaçoso, um andar disposto a modo de loft, no que a cozinha, a sala de jantar, o quarto e a sala de estar se dividiam só pela decoração, mas nunca antes se havia sentido tão perdido dentro. A “biblioteca”, uma poltrona de couro colocado em uma esquina escura entre duas estantes que iam do chão ao teto, nunca tinha parecido tão fria e pouco acolhedora. A cama de casal, coberta com lençóis de algodão egípcio e pega à parede mais longínqua, nunca tinha parecido tão vazia.
Considerou sentar-se frente aos livros dispostos sobre a mesa da sala de jantar, textos de feitiços e rituais ancestrais. Passava a maior parte de seu tempo livre estudando, procurando um modo de inverter a magia que amaldiçoava a ele e a todos os que eram como ele.
Antes que fosse banido de seu lar, de sua gente, ele e seu mentor tinham aprendido a arte de seus antepassados. Tinham utilizado o poder dos deuses, e lhes tinham outorgado vários poderes, incluindo a habilidade para predizer o futuro de vez em quando, embora não tinham conseguido encontrar o modo de contra-atacar o mal que se originou fazia mil anos.
Não estava seguro de que houvesse algum modo.
Um sentimento de desespero furou seu estômago, como uma úlcera. O mal-estar aumentou, consumindo até que empurrou para um lado os livros sobre a polida mesa de madeira de cerejeira e se dirigiu à janela que cobria em sua totalidade a parede leste de seu apartamento, atraído de noite, pelo céu escuro.
Nu exceto pela bandagem que cobria a metade de seu peito e o sangue seco sobre as mãos, estudou seu reflexo no cristal. Seus olhos desprendiam um brilho verde claro, um indício de seu turbulento interior e de seu instável controle, mas tirando isso, tinha o aspecto de um homem humano normal. Melhor que o de muitos que ele conhecia que não cuidavam de seus corpos.
Era consciente de que só a vaidade dava importância às aparências, mas Nathan valorizava a sua. Apreciava as articulações e os ossos, a pele lisa, embora sem vaidade, só porque tudo isto representava a parte dele que considerava boa e valiosa: sua humanidade.
Mas até onde o tinha levado hoje sua humanidade? Onde tinha levado Rhys?
A uma fria mesa de autópsias no depósito de cadáveres, ali é onde o tinha levado.
Incapaz de seguir olhando o reflexo no cristal da janela, Nathan jogou a cabeça para trás e deixou escapar uma enfurecida risada afogada. Que sentido tinha o velho refrão que dizia que o que realmente importava era o que estava no interior?
Bem, o que estava no interior de Nathan decididamente não era humano. Era monstruoso. Algo que os humanos temem e odeiam, inclusive os que asseguram amar.
Não. Não ia começar. Estava ferido e sangrando, figurada e literalmente, aquela noite. E se podia dizer que a hora que tinha sido interrogado por Rachel Vandermere tinha sido como se alguém tivesse esfregado sal sobre suas feridas. Ela suspeitava de algo, embora não tinha revelado o que.
O que Rachel pudesse suspeitar não preocupava muito. Não era a primeira vez que se encontrava com policiais em seu caminho, embora poucos deles eram tão inteligentes e nenhum tão atraente como ela. O que realmente o preocupava era o modo em que o fazia sentir-se, como se a tivesse visto antes. Como se a conhecesse, mas não pudesse localizá-la.
Inquieto e atormentado, olhou uma vez mais à cidade. Gotas de chuva geladas golpeavam contra o cristal. Pequenas gotas deslizavam janela abaixo, refratando as luzes vermelhas de freio, as luzes brancas das luzes e o letreiro de néon amarelo trinta andares mais abaixo. As formas e as cores se apagavam formando um curioso quadro abstrato, uma imprecisa árvore de Natal longínqua sobre o fundo negro do lago Michigan.
Foi o lago o que chamou sua atenção, a superfície negra da água. Às vezes desejava um lugar como esse, eternamente escuro e tranquilo para sempre.
Se fechava os olhos, podia sentir o movimento da água, o modo em que as ondas se arrastavam até a borda, embora a face de Rachel estava à frente de todo pensamento, seus verdes olhos desafiavam e seu fino cabelo dourado o atraía.
Seu corpo vibrou como um fio condutor elétrico, e deixou que sua vista se dissipasse inclusive mais longe. Seu reflexo e as distorcidas luzes da cidade se fundiram formando um forte raio de luz que dava passo a um túnel iluminado: o túnel do sexto sentido. Introduziu-se em seu interior, em busca de uma pele de porcelana, de uns lábios da cor dos morangos amadurecidos.
Percebeu a fragrância do romeiro, o aroma dela. Seu coração pulsou profundamente antes que a localizasse na cama, sua pele suave e sua camisola de cetim marcavam um grande contraste com os ásperos lençóis do hotel. Tinha deixado a luz do banheiro acesa e a porta ligeiramente entreaberta. Uma franja de luz atravessava a cama, banhando-a de dourado em meio da penumbra.
Gemeu enquanto se movia em sonhos. Parecia estar apanhada em um pesadelo, algo relacionado com a luz e figuras tenebrosas. O medo corria por suas veias enquanto se revolvia, enredando suas suaves pernas entre os ásperos lençóis. O horror que ela sentia foi como uma punhalada no peito de Nathan.
Nathan franziu o cenho, resistente a afundar em sua mente mais profundamente do que já o tinha feito, mas consciente de que não podia manter-se à margem e vê-la sofrer. A diferença dos gárgulas, cujas mentes tão somente podiam ser observadas, nunca influenciadas, através do sexto sentido, os humanos estavam expostos à sugestão, especialmente em seus sonhos, que era quando seus pensamentos estavam mais desprotegidos. Podia ajudá-la, precisava ajudá-la, já que até Deus sabia que não podia ajudar a si mesmo.
Tratou de correr um véu sobre a cena que estava acontecendo na mente de Rachel, transmitindo telepaticamente um sentimento de segurança. Tocou sua mente com a dele, simplesmente uma ligeira carícia destinada a confortá-la.
—Shhh — Sussurrou ele em sua orelha, mas não parecia escutá-lo.
Rachel fechou os punhos agarrando os lençóis. Nathan sentiu no interior da garganta seus gemidos.
Com um nó no estômago provocado pelo medo que a espreitava, introduziu sua mente, sua vontade, mais profundamente na mente de Rachel, respirando entrecortadamente na escuridão enquanto ela o envolvia com seus pensamentos. Com alguns humanos, fazer uma conexão tão profunda requeria um grande esforço. A fusão era comparável a se tentamos introduzir uma estaca quadrada em um buraco redondo. Mas com Rachel não era assim. Ela o recebeu no interior de sua mente como se ele pertencesse ali. Era uma combinação perfeita.
Depois de fazer um verdadeiro esforço de concentração, sem mencionar a excitação de estar unido a ela de uma forma tão íntima concentrou seus pensamentos no sonho. Abraçou-a mentalmente, embalou-a e acariciou seu cabelo. Em poucos segundos, as atormentadoras imagens se evaporaram como a névoa ao amanhecer.
Rachel recuperou a calma. Seu corpo relaxou, relaxando o dele a sua vez. Ela ficou de lado, e os lençóis escorregaram para baixo, levando a fina alça de sua camisola de cetim com elas. A suave curva de seu ombro brilhava como o mármore sob a luz da lua.
Nathan devia abandoná-la então, só que não podia separar-se dela. Não estava simplesmente em sua mente, estava dissolvido em seu sangue, repartido por cada célula. Ele era o ar que corria pelos pulmões dela, a espiral de desejo de seu ventre.
Agora, estava excitada, suas pálidas bochechas se encheram de cor. Seguro-a ainda mais forte com sua mente, mais perto. Ela se retorceu de novo, embora desta vez não de medo, mas sim como se estivesse entre as mãos de um amante. Arqueou as costas. Os lençóis se deslizaram outros poucos centímetros até a parte superior de seus esplêndidos seios.
A Nathan acelerou a respiração enquanto rastreava com o olhar a borda de sua camisola, medindo com detalhes os montículos ainda escondidos sob o lençol. Sua mente criou uma ideia e a passou a dela: retira brandamente o lençol.
Rachel moveu os braços ligeiramente.
A boca de Nathan secou. Seu pulso parecia um tambor. Nunca antes tinha utilizado o sexto sentido para isto, bom, não dos anos da adolescência de uma vida anterior quando ele e Rhys se apaixonaram por uma garçonete peituda que vivia duas casas mais abaixo. Não obstante, já não era um adolescente hormonalmente enlouquecido. Era o suficientemente amadurecido para saber o que estava errado e, além disso, era uma perversão, mas mesmo assim queria mais. Ansiava mais.
Já tinha determinado que era um monstro, não era verdade?
Franziu o cenho, concentrou-se no pensamento mais profundamente. Preparou-se e se concentrou de novo. O desejo de pô-la de barriga para cima saiu de sua mente e se introduziu na dela.
Rachel moveu as pernas, seus quadris se elevaram, os lençóis se deslizaram até sua cintura, e se voltou sobre as costas, deixando à vista um seio bem cheio coberto de cetim. Era perfeito. Esplêndido e firme. Seu mamilo se endureceu com a excitação.
Incapaz de se separar dela, dele mesmo, alcançou-a com seus pensamentos e, docemente, com muita delicadeza, acariciou o bicudo topo com a palma da mão.
Capítulo 5
—Esta horrível. — Enquanto sustentava um computador portátil sem fio sobre os joelhos, o técnico, Otto, empurrou a cadeira com rodas com os pés e atravessou a sala de conferências do departamento de polícia de Chicago, a qual a equipe de Rachel tinha utilizado como centro de comando durante a visita do secretário francês.
—Seu poder de observação me deixa estupefata, Otto. — Embora em realidade não muito, já que estava muito concentrada em lançar-se pelo último donut de geleia da caixa de papelão que havia sobre a mesa — Sem mencionar até onde pode chegar para evitar qualquer exercício físico.
Otto acrescentou outro arquivo à alta montanha já formada ao final da mesa, depois deu marcha ré na cadeira, pondo fim ao que tinha começado sem levantar o traseiro.
—Ouça! — Disse ele, levantando seus óculos sobre seu pequeno nariz — Seu comentário me descreve à perfeição.
Um dos detetives do lugar se levantou, aparentemente absorto em um documento próprio e alargou o braço ao redor do quadril de Rachel enquanto a levava em direção à porta. Cheirava a colônia de supermercado e a pasta de dente, muita frescura para o quebrado humor de Rachel.
—Não se preocupe coração. Otto não reconheceria uma mulher bonita... — Dedicou um olhar cheio de empatia, depois a observou de novo e fez uma careta de dor — Deus, tem muito mau aspecto.
—Obrigado — Ela se aproximou apontando com o donut, resistindo com dificuldade o desejo de orvalhar com geleia de morango sua radiante camiseta branca — Agora se afaste de meu caminho antes que tenha que te ferir. Está entre meu café e eu.
O detetive levantou as mãos simulando uma rendição e apoiou as costas contra a parede.
—Pelo amor de Deus, que alguém dê a esta mulher uma xícara de café antes que use essa coisa!
Otto rodou até a jarra de vidro situada na esquina, derrubou-a deixando cair uma espécie de lodo negro formando espuma na xícara, depois rodou de volta até ela e a entregou.
Enquanto suspirava, Rachel se deixou cair em uma cadeira.
—Então, o que passa contigo hoje, loira? — O refém, que acabava de apontar com um donut, depositou seu lânguido corpo na cadeira próxima a dela — Está bem?
Em outro momento, Rachel teria se irritado com o comentário de que algo tinha que ir mal para que se apresentasse ao trabalho com a aparência de um cadáver putrefato. Se um dos meninos aparecesse com os olhos cansados e a cabeça embotada detrás fechar um caso importante, todos dariam por certo que tinha saído para celebrá-lo. Dariam tapinhas nas costas e fariam brincadeiras sobre a manhã do dia seguinte.
Geralmente, essa espécie de atitude machista teria feito com que perdesse a paciência, mas não aquele dia. Estava muito cansada para brigar.
—Não dormi bem. — Balbuciou ela sobre seu café.
Em realidade, não tinha dormido nada mais que os primeiros minutos depois de que sua cabeça caísse sobre o travesseiro. Sua mente não tinha querido desconectar-se.
As imagens e sons de um dia exaustivo formaram redemoinhos e misturado com velhas e escuras lembranças do passado. Não tinha sonhado dessa maneira em muito tempo.
Uma correção: nunca tinha sonhado dessa maneira.
Estava acostumada a ter pesadelos. Despertar banhada em suor, com o coração pulsando sem parar e com uma respiração forte e entrecortada não era nada novo. Mas despertar de repente com um formigamento na pele, com os seios duros e uma dor em espiral entre suas pernas, isso era sem dúvidas uma nova experiência. Sem mencionar que o instante anterior a ter recuperado completamente a consciência tinha visto, não imaginado, e sim visto, tão claramente como estava vendo o Otto na cadeira de em frente nesse momento, um homem nu frente a uma enorme janela, com um corpo impressionante iluminado unicamente por uma lua nebulosa. Os olhos de Nathan Cross se mostravam sombrios e turbulentos como uma tempestade de inverno, seu corpo estava tenso fruto da frustração. Não obstante, suas carícias tinham sido tão ternas como as de um amante.
Suas carícias?
Não podia ter sentido seus dedos em seu seio.
Deus, realmente estava perdendo a cabeça. Só tinha sido um sonho de que se envergonhar nesse aspecto. Mal conhecia aquele homem. Certamente não tinha nenhum sentido que sonhasse com ele nu. Ou que se perguntasse o que tinha causado a cicatriz em forma de pequena lua de sua coxa direita. Não tinha nenhuma explicação que reagisse fisicamente ante a lembrança; sonho, já que não podia ser uma lembrança; nunca tinha acontecido, seus dedos indicadores e polegar beliscando-a no mamilo até que pôde sentir o toque em suas partes baixas, como se um cabo elétrico unisse esses dois lugares tão íntimos.
—Avancemos senhores e senhoras. — Carter Laisson entrou na sala dando grandes pernadas. Estava muito polido com um brinco de diamantes que brilhava em sua orelha direita. Deu uma palmada e esfregou as mãos — Assinem esses informes e arquivem os documentos. Meu voo de volta a Washington sai em duas horas e quarenta e três minutos, e não penso perdê-lo. Tenho um encontro quente com minha mulher esta noite.
Desejando ter posto algo mais que um fino sutiã e uma ligeira camiseta, Rachel separou de sua mente as imagens eróticas da noite anterior, cruzou os braços à altura do peito e girou sua cadeira para dar a cara a seu chefe provisório.
—Chegou o relatório preliminar da autópsia?
—Nosso suspeito arrebentou contra o concreto diante nossos olhos depois cair de um terceiro andar; nosso bom samaritano recebeu uma bala no coração. Não necessito um relatório médico para saber como morreram.
—O que acontece com o CSI? Encontraram algo os especialistas na investigação da cena do crime?
—Como o que? O corpo de Jimmy Hoffa? — Carter levantou da mesa um pesado arquivo com uma etiqueta em que estava escrito BISHOP com um grosso rotulador negro e se dirigiu à porta — O secretário está em um avião de volta a França e William Bishop não matará mais nenhum político. A polícia de Chicago pode investigar o relatório forense quando estiver preparado, assim deixem de se preocupar. A vida nos sorri.
Rachel agarrou um lápis e o girou entre os dedos.
—Suponho que tem razão. — Apesar de que seu coração dizia o contrário. Uma vez mais, as diferentes partes de seu corpo tinham estado jogando uma má passada, durante toda a manhã e a maior parte da noite. Desde que conheceu Nathan Cross.
Nathan Cross. Negando-se a permitir que seu nome provocasse um enrijecimento em suas bochechas, deixou que sua mente fizesse um percurso pelo que sabia dele: além do fato de que tinha inclusive melhor aspecto sem um smoking, gostava da arte tanto que se dedicou a dar aulas sobre sua história e não ligava para mulheres que o abordavam nos museus.
Provavelmente, estava casado. Isso seria um verdadeiro crime. Esse pedaço de homem e só uma mulher para desfrutar dele.
Perdeu a batalha por evitar se ruborizar e sentiu como o sangue se apoderava de seu rosto.
Não, Nathan Cross não estava casado. Além de que não levava anel, ela o tinha visto em seus olhos. Não estava pensando em outra mulher quando a tinha rejeitado no baile de gala.
O que a fez perguntar-se por que tinha tratado por todos os meios, chegando inclusive a ser grosseiro, de ir embora dali simplesmente para caminhar duas quadras sob o frio glacial e ir parar onde estava a ponto de acontecer um assassinato.
Rachel mastigou seu donut de geleia, refletindo, depois lançou a metade que não tinha comido ao lixo e ajudou seus companheiros a recolher os equipamentos. Tinham voos para tomar.
Ela, pelo contrário, soube que a aguardava um período de férias. Tinha um montão de dias que não tinha usado e planejava tomar alguns.
Em Chicago.
Nathan sentiu a presença de Rachel durante um segundo antes que ela abrisse a porta do bar no qual ele segurava um copo vazio. Pôde cheirar seu particular aroma de romeiro. Que perfume se fazia a base de romeiro, por certo?
Ele levantou seu copo na frente do garçom.
—Que sejam dois.
—Duplo?
—Não. Dois copos.
Ser consciente de que a tinha cheirado antes de vê-la, inclusive antes que entrasse, crispava seus nervos. Não o entendia; não deveria ser capaz de sentir a um humano desse modo. Não deveria ter sido capaz de deslizar-se tão profundamente na mente de Rachel fazia três noites. E quando o fez, de maneira nenhuma ela deveria ter sido consciente de que ele estava ali.
Entretanto, despertou sobressaltada quando a havia tocado, como se realmente houvesse sentido sua mão. Sentada completamente erguida sobre a cama, tinha olhado fixamente à escuridão como se pudesse vê-lo.
Impossível.
Rachel tinha tido um mau sonho, isso era tudo. Despertou assustada e quão único tinha visto eram as imagens do pesadelo repetidas antes que desaparecessem, não a ele.
Mas se tivesse olhado a ele e o tivesse visto junto à janela, teria visto muito. E se seu corpo tivesse reagido frente ao que imaginava estar vendo, convertendo-se em algo real, como se fosse ela a que se aproximou dele tão intimamente, então isso só seria uma ilusão que ele teria criado.
Fazia muito da última vez que tinha estado com uma mulher. E ficava muito ainda, recordou-se a si mesmo enquanto ela se aproximava do balcão. Planejava viver o resto de sua vida, sua última vida, em celibato.
Sem dúvida, poderia ter uma mulher se o desejasse. Poderia utilizar uma camisinha para não ter que preocupar-se com arrancar outro bebê dos braços de sua mãe. Agora se sentia algo mais liberado da ânsia que conduziu a reproduzir-se desse modo no passado. Naqueles dias, poderia inclusive fazer uma vasectomia se quisesse. Então poderia estar com todas as mulheres que gostasse, quando gostasse.
Mas não o faria, porque não queria simplesmente sexo.
Queria um casal. Alguém a quem dar um beijo de boa noite e preparar o café da manhã.
Se compartilhasse sua vida com uma mulher, cedo ou tarde ela acabaria descobrindo tudo sobre ele. Acabaria vendo algo que não deveria.
Então...
Não ia permitir pensar no que passaria então. Já era suficiente saber que uma relação com o Rachel Vandermere teria um preço muito alto, para ambos.
Ela deixou cair a bolsa sem alças sobre o balcão, arregaçou a saia de seu modesto vestido negro até o joelho, e se balançou no tamborete junto ao dele. O garçom jogou dois uísques na frente de Nathan, este empurrou um até ela com o dorso da mão e depois bebeu o seu de um gole.
Surpreendentemente, ela seguiu seu exemplo, engolindo o seu fazendo um pequeno som com a garganta.
—Obrigado — Disse ela e pousou o copo de um golpe sobre o balcão — Eu necessitava disso.
Ele tirou a carteira, jogou uma nota de vinte sobre o balcão, e deu a volta para partir.
—Senti sua falta de no funeral — Disse ela, o freando em seco — Rhys Keller era seu amigo. Supus que quereria apresentar suas condolências a seus pais.
Ele se voltou, o uísque ainda ardia em seu estômago. Outra coisa ardia uns centímetros mais abaixo.
—Assumindo coisas de novo. Eu achava que os policiais trabalhavam mais com fatos que com hipóteses.
—No que me equivoco? Rhys não era seu amigo ou não quer dar os pêsames a seus pais?
—Não tenho que me pôr junto a sua tumba para dizer adeus. Não está ali. Está morto.
Deus doía dizê-lo. Doía como uma punhalada no coração, que é onde ia guardar sua amizade. Nathan não sabia aonde iam os Gargouillen entre uma vida e outra; nenhum deles sabia. Mas sabia que era um lugar frio e vazio. Escuro e silencioso. Não era como se Rhys estivesse sentado em alguma nuvem observando como sua família e amigos choravam sua morte abaixo.
—Pode ser que ele não estivesse ali. — Reconheceu Rachel — Mas seu pai sim que estava e seu pequeno, Patrick. Estou segura de que os teria reconfortado...
Agarrou rapidamente sua jaqueta da cadeira.
—Não tem nem ideia do que está falando, senhorita. — Pode ser que Patrick se alegrasse de vê-lo, mas não era mais que um menino. Muito jovem para entender — Tenho que ir.
Rachel o deteve agarrando-o com firmeza do braço. Poderia ter se soltado facilmente, mas o contato o pegou tão de surpresa que ficou imóvel. As pessoas não o tocavam frequentemente. Um pouco relacionado com sua atitude pouco sorridente, supôs ele. Uma vez, um estudante havia dito que era tão acessível como um Rottweiler com uma chupeta na boca.
Rachel Vandermere, entretanto, não parecia intimidada. Quando finalmente, ele deixou de olhar ao lugar do braço onde o estava agarrando, ela deformou uma sobrancelha arqueando-a, fazendo sua cara ainda mais irregular e mais interessante do que o habitual.
Maldito fora por fixar-se nisso.
—Me deixe adivinhar. — Sorriu. Seu olhar era natural, quase amistoso, mas havia algo menos afável sob a superfície de sua expressão — Chega tarde a outro compromisso.
— De fato...
— Isto não é um convite social, professor Cross.
— Já disse na outra noite. Não tenho mais nada a dizer.
— Há muitas mais coisas que pode me contar. — Soltou o braço, procurou na bolsa de seu casaco e tirou uma fotografia — Por exemplo, se conhece ou não a este homem.
Nathan agarrou a fotografia a contra gosto. Olhou-a durante mais tempo do necessário, com sangue-frio. Era Von.
—É familiar. — Nathan fez um gesto de indiferença com os ombros e devolveu a fotografia de expressão petulante em branco e negro. Não era bom mentindo. Dava-se melhor com as meias verdades e as evasões.
—Deveria. — Disse Rachel — Seu nome é Von Simeon. Foram ao mesmo colégio. St. Michael, tenho entendido.
—A menos que essa foto seja muito velha, tem dez anos menos que eu.
—Sim, mas o St. Michael é pequeno, inclusive para ser um colégio privado. Só vinte ou trinta alunos por cada um dos doze cursos, não é assim? Aparentemente teriam que se ter tropeçado.
—Pode ser que o fizéssemos, faz anos. Eu disse que me resultava familiar. Agora que todos nos temos feito adultos, não me relaciono com essa classe de pessoas.
Os verdes olhos do Rachel brilharam.
—E que classe de pessoa é essa?
—Um malandro, a julgar pela foto.
—Passou umas quantas noites na prisão do condado de Cook. Delitos menores em sua maioria: roubo de cigarros e embriaguez. Está seguro de que não o viu recentemente?
A Nathan arrepiaram os cabelos de atrás do pescoço.
—Por que perguntas?
—Encontraram suas digitais no rifle que recuperamos no estacionamento a outra noite. William Bishop nunca trabalhava com gente da zona e, menos ainda, com criminosos de pouca importância como Von Simeon. Se Von não tinha nenhuma conexão com ele, então suponho que está relacionado contigo. Não estava ali naquela noite, não é?
—Já disse que só estávamos Rhys e eu.
—Sei o que me disse. Agora quero saber a verdade.
—Já tem a seu assassino. Seu caso está fechado.
—Sim, mas sou policial. Não suporto deixar pequenos detalhes sem esclarecer no ar, como por exemplo, testemunhas sem identificar. — Elevou o olhar à altura do peito de Nathan — E feridas que não podem explicar-se.
Ele revirou os olhos.
—Isso outra vez?
—Podemos falar aqui ou podemos falar na delegacia de polícia. Embora nos poderia levar várias horas se formos até ali. Os outros policiais, já sabe, começarão a te perguntar sobre conspirações e cúmplices. Pode levar toda a noite esclarecê-lo.
Rachel estava marcando um farol. Sabia que estava mentindo. Podia senti-lo nos arredores de sua consciência.
Por desgraça, também podia perceber um inesgotável sentimento de determinação.
Mas tinha que dar uma margem. Ele estava por cima dela. Ambos sabiam que fisicamente era mais forte e, apesar disto, quando ela levantou o queixo e se encontrou com seu olhar mais intimidador, recebeu-a com uns olhos igualmente verdes e tranquilos como uma pradaria no verão.
—O que é o que realmente quer de mim? — Grunhiu ele.
Ela sorriu.
—Damos uma volta de carro. Mostrarei isso.
—A gente pensa que uma entidade como a Interpol pode se permitir alojar a sua gente em um lugar mais agradável que este. — A voz de Nathan retumbou perto de sua orelha enquanto avançava atrás dela, sua cercania a fez sentir calafrios.
—Ao contrário do que a gente pensa, a Interpol não é uma organização centralizada cujos agentes viajam ao redor do mundo seguindo a pista a assassinos e ladrões de joias. É um consórcio formado por oitenta e quatro países que ajudam os gastos e que concordaram em compartilhar um serviço de informação. Cada país financia seu próprio departamento e se faz cargo dos casos que acontecem dentro de suas fronteiras. Assim embora meu cartão de identificação diz Interpol, eu trabalho basicamente para o governo americano. Portanto, o sombrio quarto de hotel.
Ao Rachel tremia a mão ligeiramente quando deslizou o cartão do quarto pela ranhura situada na porta do mencionado quarto do gasto hotel. Tinha perdido sua adorável cabeça levando Nathan Cross ali?
A porta se abriu e entrou depois jogar uma rápida olhada por cima do ombro ao homem que a acompanhava. “Não tinha com o que se preocupar”, disse a si mesma. Orgulhava-se de ter bom olho para as pessoas. Nathan estava ferido. Podia entendê-lo; tinha perdido um amigo. Também estava zangado, isso era óbvio, mas não podia culpá-lo por isso tampouco. Virtualmente o tinha chantageado para levá-lo até ali. Pode ser que fosse um pouquinho perigoso, a julgar por seus tempestuosos olhos e expressões ilegíveis. Mas não era malvado, apesar de que quase tinha acusado ele de estar envolto na tentativa de assassinato de um diplomata estrangeiro.
Ele não estava envolto; era capaz de apostar a cabeça.
Pode ser que já estivesse apostando a cabeça.
Nathan a seguiu até o interior do quarto do mesmo modo que tinha chegado até ali no carro alugado de Rachel: sem dizer uma palavra. Depois de lançar sua jaqueta de couro sobre o respaldo de uma cadeira, foi direto a pia que havia fora do banheiro, umedeceu-se a face e secou com uma toalha de mão. De volta ao quarto, deteve-se para escavar na mini-geladeira em busca de um refresco que provavelmente acrescentaria cinco dólares à fatura do hotel.
—Sinta-se em casa. — Disse ela com um tom sarcástico.
A lata fez um ruído quando a abriu devido ao gás. Tomou um gole, depois limpou a boca com o dorso de sua mão. O sofisticado benfeitor de museus, o culto professor de universidade, tinha desaparecido.
O homem que tinha tomado seu lugar era extremamente presunçoso. Irradiava poder, controle.
Virilidade.
Sua voz se deslizou sobre ela como suave veludo.
—Queria-me aqui. — Disse ele — Já me tem. Agora, o que é isso que estava tão ansiosa por me mostrar?
Recostou para trás na cadeira junto à janela, puxou o nó de sua gravata, e abriu dois botões de sua enrugada camisa de marca, deixando à vista um arbusto de pelo fino. Ela imaginou o que havia mais abaixo da abertura, o triângulo que conduzia a uma série de abdominais planos, a estreita flecha que seguia. De repente, desejou estar em outro lugar que não fosse esse; preferivelmente de volta em seu apartamento de Washington.
Com o ar condicionado aceso e o ventilador do teto ligado.
Ele a estudou detalhadamente atrás da borda de sua Coca-cola. O termômetro interior de Rachel subiu outro grau. As chamas alcançaram seu pescoço. O que tinha esse homem que a fazia sentir-se como se pudesse ver o que ela pensava, como se suas mentes fossem extremos opostos de uma mesma ponte?
—E então? — Disse ele, e ela engoliu seco.
Sobre se tinha ou não poderes para ler a mente, Rachel ia passar. Estava a ponto de compartilhar uma parte dela que nenhum humano tinha visto nunca. Provavelmente a tomaria por uma louca e faria que a internassem no manicômio mais próximo ou talvez reconheceria o que estava vendo e a entenderia. Então, poderia compartilhar com ela o que realmente aconteceu no estacionamento na outra noite. Então, Rachel acreditaria em tudo o que dissesse, sem importar quão incrível pudesse soar seu relato.
E sua narração, possivelmente, só possivelmente, ajudaria a entender o que tinha acontecido a ela há anos atrás.
Depois de respirar profundamente, Rachel se inclinou, abriu a mala sobre o banco situado aos pés da cama, e tirou uma velha caixa de papelão. Suas mãos tremiam enquanto a sustentava sobre seus joelhos.
—Entrei na Interpol faz seis anos para ter acesso aos arquivos dos acontecimentos ocorridos em todo mundo. — Disse enquanto brincava com as fitas de borracha que seguravam a tampa da abarrotada caixa.
—Não há suficientes crimes nos Estados Unidos para você?
—Estou interessada em um tipo de casos em particular. Os que têm... Elementos inexplicáveis.
—Refere aos arquivos X? Acredita em óvnis?
Ela retirou a tampa da caixa e tirou uma foto que estava no alto, antes que ele começasse a estalar a língua e investigar na guia Telefônica na letra C procurando Camisas de força.
Enquanto entregava a fotografia, explicou:
—Esta é de um assassinato duplo cometido na Alemanha em 1980.
Ele agarrou a foto, mas seus olhos não deixaram de olhá-la. O calor de seu olhar a fez sentir como se fosse derreter.
—Depois se soube que os homens mortos eram dois violadores em série que trabalhavam em conjunto, mas olhe isto, aqui. — Apressou-se até a borda do colchão para estar mais perto e assinalou um rastro branco e negro — Essas marcas no sangue ao redor dos corpos.
Finalmente, ele olhou para baixo, mas só durante uma fração de segundo; depois seu olhar voltou a dirigir-se para ela, observando-a com uma intensidade que a desviou de seus pensamentos.
—O que acontece com elas? — Perguntou.
—São rastros de patas — Respondeu ela, tentando se concentrar. Enquanto dizia isto, mudou da cama até a borda de sua cadeira, só para que ele pudesse ver melhor, não porque seu aroma primitivo a tivesse atraído.
—Então?
Ela golpeou a fotografia.
—Isto é Munique. Quantos animais com patas acha que rondam pelas ruas desta cidade?
Antes que pudesse responder, tirou a fotografia e entregou outra. A explicação desta não demorou um segundo.
—Vê o corpo no alto da árvore? Pertence a um agressor que um dia foi muito longe e matou sua mulher. Como chegou até ali? É impossível que tivesse subido. Pesava tranquilamente uns cento e quarenta quilos, e o ramo mais baixo está a uns cinco metros do chão. Além disso o relatório do forense diz que foi colocado na árvore depois de morto. É como se alguém tivesse carregado seu cadáver e depois o tivesse posto ali.
Nathan, desta vez, ficou olhando a foto, estudando-a, mas ela tinha se empolgado e jogou outra às mãos dele.
—São Francisco, 1999. Um banqueiro que tinha desviado vários milhões de sua própria empresa, deixando seus aposentados sem pagamento, foi aparentemente assassinado por uns cães selvagens em sua própria casa. Só que todas as portas e janelas da moradia estavam fechadas. Como entraram os cães? Como saíram dali?
Sem fazer uma pausa, abarrotou as mãos de Nathan com mais fotografa, desta vez como se fosse uma declaração jurada.
—Paris, 2002. Esta mulher diz que viu como uma serpente estrangulava seu marido e depois se deslizava por uma boca-de-lobo.
Outro maço.
—Dublin, 1994. Um menino de oito anos diz a sua mãe que viu uma criatura, meio homem, meio cabra montanhesa, investir contra seu pai na borda de um precipício. — As palavras saíam de sua boca a maior velocidade com cada nova fotografia. Estava balbuciando, mas parecia não poder remediá-lo — Boston, 2001. Um fotógrafo aficionado toma uma fotografia de algo que parece uma espécie de morcego gigante sobre o porto.
Nathan afastou as mãos quando ela tentava dar outra fotografia.
—Já chega. — Disse ele.
A fotografia caiu no chão. Ela agarrou outra, sentia-se excitada, nervosa, a verdade finalmente estava saindo à luz.
—Na cidade de Nova Iorque, o mês passado...
—Eu disse que já chega.
Ele se levantou. Os papéis e as fotografias que ela tinha recolhido diligentemente durante anos caíram voando a seus pés. Rachel se ajoelhou sobre o tapete, as recolhendo. Eram sua vida. Sua busca.
—Há mais. Centenas mais. Em todas as cidades mais importantes...
Não tinha visto ele se agachar, mas as mãos de Nathan estavam sob seus cotovelos, puxando-a para cima.
—O que acontece com você? Por que faz isto?
—Tenho... Tenho que fazê-lo. — A energia de Rachel se desvanecia à velocidade da luz, apoiada sobre seus joelhos.
—Por quê? — Ele abrangeu sua cara com as mãos. Sua voz era apaixonada, sedosa.
Ela se dirigiu à caixa para agarrar uma última fotografia, levantou-a com mãos tremulas.
—Não — Ele empurrou a fotografia.
—Por favor. Só esta última.
Nathan observou a foto. Rachel não precisava olhar. A imagem tinha ficado gravada em sua memória vinte e sete anos atrás.
—Vê esses arranhões na porta do armário em cima do corpo? — Perguntou ela, com os olhos fechados, vendo o corpo estendido de barriga para baixo sobre o chão com o olhar de uma menina de seis anos, recordando o aspecto que tinha antes que o fogo o convertesse tudo em cinzas, o atoleiro de sangue ao redor de seu pai. Depois de respirar profundamente, obrigou-se a concentrar-se nas marcas que havia sobre a madeira, não no pálido rosto de seu pai — São como... Rastros de mãos, deixadas pelo assassino. Só que não tinham sido feitas com mãos. Eram rastros de garras.
Rachel abriu os olhos, olhou-o fixamente, consciente de que estava tão perto que era capaz de ver como pulsava o pulso na parte baixa de seu pescoço.
Ela se estirou e tocou sua camisa brandamente, recordando com exatidão onde estavam situadas as feridas que havia debaixo.
—Três garras, exatamente a dez centímetros de distância entre si. Justo como os arranhões de seu peito.
—Rachel...
Então agarrou a mão dela. Ela deu a volta, afastando-se dele. Ele apoiou as mãos sobre seus ombros por trás.
—O homem no chão é meu pai. — Disse com a voz entrecortada, tratando de evitar em vão que saltassem as lágrimas.
—Deus!
—Ainda posso cheirar o sangue.
—Estava ali? — Ela soube por sua voz que estava horrorizado, que o recusava. Sentiu seu quente fôlego na parte de atrás do pescoço. Ele a estava queimando com seus dedos através do vestido de luto de lã.
Incapaz de falar, ela assentiu.
Depois deu a volta bruscamente para ele. Seus olhos desprendiam tanto calor como seu fôlego, suas mãos, cada vez com mais intensidade.
—O que quer de mim?
—A verdade. — Estava quase sem fôlego como um cão velho em seu último minuto de vida. Finalmente, depois de todos esses anos, podia dizê-lo bem alto — Não estou procurando óvnis, Nathan. Estou procurando monstros.
Capítulo 6
Nathan sabia que deveria deixar que Rachel partisse, que se afastasse dele. Que demônios, deveria dar um empurrão e sair correndo. Melhor ainda, deveria trocar de forma e voar tão rápido e longe que suas asas pudessem levar.
Mas não se moveu. Não podia. Era como se seus pés tivessem criado raízes no gasto tapete do hotel. Suas mãos se ficaram imóveis sobre os trêmulos ombros de Rachel. Quão único podia fazer era olhá-la em um estado de choque mudo, horrorizado pela coleção de dados que ela segurava em suas mãos. Os estragos que poderia causar com isso.
Lentamente, ela levantou a cabeça. Seu frenético olhar verde saiu de seus olhos, colidindo com o de Nathan, arrancando o de seus profundos pensamentos e transportando-o até os dela.
Ele já conhecia o caminho através de sua mente, depois de tê-la visitado em seu sonho. Os atalhos que levavam a suas esperanças, sonhos, medos, eram para ele igual de conhecidos que para um viajante contumaz o último quilômetro da estrada para sua casa.
Para ser humana, Rachel Vandermere surpreendentemente tinha as ideias muito claras. Não fingia ser o que não era e não ocultava o que queria. Seu ser ao completo vibrava com a energia que derrubava em uma única missão: encontrar os monstros que ela acreditava que vagavam nas sombras e nas noites escuras e matá-los.
E esperava que ele a ajudasse.
Nathan recuou. Tratou de voltar atrás, de retirar-se de sua mente, mas se encontrou apanhado nas lembranças da noite em que morreram seus pais, em seu pânico.
Através dos olhos de uma menina de seis anos, viu como o repentino fogo se dispersava pela parede onde penduravam as fotos de uma jovem família feliz. Sentiu o calor. Ouviu várias explosões que poderiam ter sido disparos e viu como se formava uma sombra irregular no misterioso resplendor da luz da luz.
De novo, tentou se liberar. Conseguiu a suficiente distancia mental para não só ser consciente da menina chamada Rachel, mas também da mulher. Sua pele seguia quente quando a agarrou pelos ombros transmitindo tranquilidade. A olhou com uns olhos sem vida, amplos discos negros rodeados por uma fina linha verde, enquanto o retinha em seu interior o tempo suficiente para permitir sentir o estado de choque e de cólera que se estabeleceu em seu jovem coração. O suficiente para mostrar o corpo sem vida de seu pai sobre o chão.
Mostrar Deus, não era só que ele estivesse em sua mente. Ela estava na dele!
Enquanto Nathan tinha estado explorando os pensamentos de Rachel, esta se tinha coado em seu interior, como o faz a névoa através da greta de uma porta, silenciosa e furtivamente. E como a névoa, ela vagou, propagou-se, estendendo seus tentáculos, nas curvas mais escuras de sua mente.
Supunha-se que os humanos não eram capazes de iniciar uma conexão mental, e muito menos eram conscientes desta quando um gárgula estabelecia o vínculo com eles. E, apesar disto, Rachel estava em cada um dos pensamentos de Nathan e indubitavelmente era consciente. Ele pôde vê-lo em seus frágeis olhos. Soube pelo modo em que acelerava o pulso, sabia que Rachel havia sentido como reagia sobressaltado e como seu cada vez mais acelerado pulso se somava a aguda dor de cabeça na base de seu crânio. Sentiu como ela viajava por seu presente e seu passado. Uns segundos mais, e ela veria tudo. Saberia tudo sobre ele.
O uísque que ele tinha consumido pouco antes agora fermentava em seu estômago.
Depois de reunir forças suficientes, jogou-a dali. A conexão mental entre eles se rompeu provocando um ardente brilho esbranquiçado, como quando se funde uma lâmpada.
Rachel tropeçou enquanto caminhava para trás. A cama golpeou a parte traseira de seus joelhos e caiu desabada sobre esta. Seus verdes olhos agora estavam frágeis, mas seguiam cheios de perguntas.
Respirando fortemente, Nathan se voltou e penteou com a mão o alvoroçado cabelo. Quando foi consciente de que tremiam os dedos, fechou-os formando um punho e colocou as mãos nos bolsos de seu jeans.
—Isto é uma brincadeira, não? — Nathan não tinha vontades de rir — Há uma câmara escondida em algum lugar, e você vai dar um salto e me dizer que sorria.
—Sabe de sobra que não é.
Ela olhou por cima do ombro.
—Não pode acreditar em tudo isto.
—Passei toda minha vida tentando demonstrá-lo.
Mais tranquilo agora, embora não muito mais, voltou-se para olhá-la.
—Tudo isto é porque viu seus pais morrerem.
—Vi como foram assassinados. Por algo que não era humano.
—Era uma menina. Estava traumatizada. Sua imaginação...
—Não! Não me diga que imaginei. Sei muito bem o que vi. — Entrecerrou os olhos, ainda frágeis, enquanto que seu lábio inferior se sobressaía tremendo — E não me diga que estou louca. Não estou.
Rachel não estava louca.
Possivelmente fosse perigosa, isso sim, mas não estava louca.
Era um policial internacional. Isso dava acesso a informação e credibilidade. Já tinha reunido suficientes prova da existência de monstros para fazer que os que vivem ao limite da paranoia acreditassem. Quanto mais ia demorar para convencer à maioria? Conseguiria que toda dona-de-casa procurasse o homem do saco sob a cama e que seus maridos dormissem com armas carregadas na mesinha de noite.
Quanto ficava para que as ruas de Chicago se convertessem em reservas de caça, em busca de gente como ele?
As mãos de Nathan começaram a suar. Deus, tinha que sair dali.
Deteve-se, não obstante, para observar como Rachel ficava de pé e se afastava dele, apoiando a mão contra a janela. Sem nem sequer alcançá-la mentalmente, sentiu o frio cristal sob sua mão. No exterior, as luzes da cidade cintilavam na noite como diamantes sobre veludo negro.
—O que é o que teme Nathan?
Ele abriu a boca, mas não tinha sentido negá-lo. Ela havia sentido seu medo, do mesmo modo que ele sentiu o dela.
—É a ideia de que existem monstros no mundo o que te assusta? Ou é o que as pessoas pensariam de você, diria de você, se dissesse que viu um?
—Nenhuma das duas coisas. — Tinha a voz rouca.
Ela deu a volta e o olhou com espera, seus verdes olhos tinham recuperado seu estado normal. Ela queria uma resposta, mas podia ele proporcionar, como poderia ele dizer que era a ela a quem temia, o que poderia fazer com o que sabia?
—Pode ser que não queira me envolver em buscas tolas.
—É isso o que acredita Nathan? Que é uma tolice?
—Acredito que é uma mulher bela e inteligente que se forjou uma vida maravilhosa apesar de um difícil começo. — Um pouco mais serena, olhou-o, surpreendida. Ele suspirou. — E acredito que deve enterrar o passado e começar a viver esta vida.
Sua face adotou uma sombria expressão de desilusão justo antes que o olhasse de novo. Acabou de reunir os documentos, alinhou-os e os voltou a colocar na caixa em silêncio.
Nathan considerou que era o momento de ir e se dirigiu à porta. Deteve-se com a mão no pomo quando ela voltou a falar por trás.
—Acreditava que tinha visto algo em você — Disse brandamente — Sua educação, suas viagens e sua maneira de apreciar a arte me fizeram acreditar que era uma pessoa inteligente e de mente aberta. Mas mais que isso, quando passou aquilo a seu amigo no estacionamento, pensei que estava furioso. Indignado pela injustiça daquilo. A mesma espécie de indignação que eu sinto quando penso em meus pais.
Nathan apertou o pomo da porta até que o metal se esquentou sob sua mão.
—Não utilize Rhys para me chantagear para que te ajude.
—Está me dizendo que é capaz de deixá-lo passar? De aceitar sua morte sem mais?
—Deixá-lo passar sem mais? O filho de puta, o cara que disparou está morto. Chama a isso deixá-lo passar?
—Olhe as fotos. Há os piores que ele aí fora. Mas que muito piores.
—Eles não são meu problema. — Puxou a porta para abri-la e saiu sem olhar atrás.
—Se isso for o que acredita, então na realidade não é o homem que eu acreditava. — Disse ela com a paciência esgotada.
Ela estava certa, pensou ele enquanto fechava a porta atrás dele. Ele não era o
homem que ela acreditava que era.
Ele não era um homem em nada.
Rachel pensou que, no passado, sempre tinha superado a decepção cada vez que alguém jogava por terra suas teorias sobre monstros. O primeiro assistente social, ao que tinha contado o que tinha visto na noite que seus pais foram assassinados, riu em um princípio, pensando que estava inventando histórias. Quando Rachel insistiu em que estava dizendo a verdade, os serviços de proteção do menor fizeram que um psicólogo falasse com ela. Finalmente, mandaram-na a um psiquiatra.
A menina que nunca tinha passado pela mente mentir manteve-se firme em sua história. À medida que o tempo passava, alternativamente foi tratada com condescendência e ridicularizada, e finalmente, aqueles que se encarregavam de seu cuidado se compadeciam.
—Pobre criatura. — Sussurravam quando acreditavam que ela não podia ouvir, e faziam movimentos circulares na cabeça com o dedo — Não está de tudo bem.
Com o tempo, deixou de se importar o que eles pensassem. Dava igual se eles acreditavam. Sabia muito bem o que tinha visto. Cada noite o via de novo, tombada na estreita cama do orfanato, com os lençóis subidos até o queixo. Fechava os olhos com força e tentava concentrar-se na face de sua mãe e de seu pai, no som de suas vozes. Quão suaves eram as mãos de sua mamãe, que esfregavam suas costas quando tinha frio, e as fortes e toscas mãos de seu pai quando a empurrava, não muito alto, no balanço.
Mas depois de uns anos, custava recordar como tinham sido seus pais exatamente. Era o cabelo de papai escuro ou claro? De que cor era o batom de mamãe?
Via como adotavam a outros meninos do centro de menores. Observava como sorriam quando se foram agarrados da mão com seus novos papais e mamães. Graças a sua escassa idade e a que não tinha nenhum problema psicológico que supostamente poderia padecer como resultado de ter presenciado o assassinato de seus pais, a Levi o tinham adotado em seguida, enquanto que Rachel adoeceu no orfanato. Com o tempo, começou a ser consciente do muito que desejava ter uma nova família. Talvez algum que outro menino para brincar, e uma mamãe que a ensinasse a fazer bolachas de chocolate.
Um papai que comprovasse que não havia nada debaixo de sua cama quando fosse agasalhá-la de noite.
Ninguém a adotaria nunca se não deixava de falar de monstros, havia dito o assistente social. Se não deixava de fazer desenhos de coisas feias com olhos verdes incandescentes e asas enormes.
De maneira que deixou de fazê-lo, de fazer desenhos e falar disso, simplesmente isso; nunca deixou de acreditar.
Sempre acreditou nisso.
Guardou bem tudo o que recordava sobre aquela horrível noite em seu interior, onde ninguém pudesse vê-lo. Gostou de um casal do norte do estado de Nova Iorque e a adotaram. Foi ao colégio, estudou Criminologia e acabou formando parte da Interpol. Seu primeiro ano ali, no qual a tarefa mais importante que atribuíram era organizar as caixas do que chamavam o depósito de cadáveres (a fria sala destinada ao armazenamento de casos) encontrou um arquivo que desenterrou suas lembranças.
Um casal mais velho foram testemunhas de como seu filho, um menino de vinte anos viciado em crack que tinha voltado para casa para roubar os cheques do Seguro Social, tinha sido perseguido até o bosque por um lobo de duas cabeças com chifres de carneiro e olhos verdes.
Olhos verdes incandescentes.
A polícia não fez caso taxando-os de histéricos, apesar de que quando encontraram os restos do jovem quatro dias depois, não ficava um pingo de carne e havia marcas de roeduras em seus ossos.
Rachel passava muito tempo no depósito de cadáveres após. Horas do almoço, noites. Fins de semana. Encontrou outros casos. Outras testemunhas, mas nenhum tão verossímil como o do casal que tinha perdido seu filho em duas ocasiões: primeiro por causa das drogas e depois à mãos de um monstro.
Depois de ter aprendido a lição durante sua infância, tinha muito cuidado de quem falava de sua busca. Sua obsessão.
Durante dois anos teve um namorado, Cash Sawyer. Cash sabia. Com todas as horas que ela passava meditando sobre sua crescente coleção, teria sido difícil que não se inteirasse. Ela supôs que podia confiar nele; ele era seu namorado.
Também era seu amante. Até que se deu conta de que misturar o trabalho e o sexo tinha quase o mesmo sentido que dançar sapateado sobre um chão cheio de bolas de gudes.
Foi uma pena que Cash não pudesse com aquilo. Mas ao menos sua esperança de que ela voltasse para seus braços algum dia fez que fosse pouco provável que falasse os segredos de Rachel.
Diferente de Nathan Cross, que não queria nada dela.
O que aconteceria se fosse a seus superiores? Obrigariam-na a apresentar uma denúncia? Em teoria ela estava de férias. Trabalhar em casos extraoficiais estava absolutamente proibido.
—Idiota — Balbuciou ela.
Sentia de verdade quando disse que tinha visto algo nele. Pensou que ele era diferente.
Deus.
Ele era diferente. Mas não do modo que ela esperava.
Quando a havia tocado, ela sentiu como se tivesse metido os dedos em uma tomada.
A que demônios se devia isso?
Quando olhou nos olhos sentiu se caindo dentro dele. Sentiu o sangue correr pelas veias de Nathan, o batimento de seu coração. Depois, como se de repente tivesse sido transportada em um trem de alta velocidade, sentiu o rugido do vento no exterior. Notou como atravessava as diferentes paisagens, imprecisos através de sua visão periférica. Logo teve a sensação de que o que deixava atrás a toda pressa não eram as paisagens, e sim tempo.
Ouviu gritos enfurecidos misturados com risadas. Percebeu o aroma da brisa marinha, dos pinheiros, da fumaça, viu passar a vida e a morte tão rápido que eram quase indistinguíveis.
Quanto mais longe viajava, mais escuro se voltava tudo e mais forte soprava o vento, até que deixou de ser um simples vento, convertendo-se em um ciclone que se formava redemoinhos formando um abismo escuro, arrasando, fazendo girar e afogando todo pensamento, permitindo tão somente sentimentos. Dor e sofrimento, alegria e esperança, orgulho, pena, arrependimento.
A tempestade a tinha preso mais perto do torvelinho emocional que absorvia tudo o que encontrava a seu passo. Rachel foi consciente muito tarde de que tinha sido arrastada até o interior. Tentou resistir, de repente teve medo de perder-se na tempestade de emoções, mas a intensa energia desta a enrolou.
O vendaval a fez dar cambalhotas e cair, as sensações a açoitaram, uma emoção desinibida a golpeou. Não tinha defesa alguma. Cada sentimento estava fora dela... E dentro dela. Fechou os olhos apertando-os, e foi arrastada pela corrente, fez movimentos espirais até o centro da tempestade, um frio lugar mais escuro que a noite, mais vazio que um buraco negro no espaço.
O sentimento mais forte de todos emanou daquele lugar. Pulsava como se tivesse vida própria. Rugia como se estivesse sofrendo.
Era... Um desejo dos que Rachel nunca tinha experimentado.
Nunca tinha imaginado. Era uma ansiedade tão forte que roçava o insano, como um gato grande, um leão ou uma pantera, encadeado sem comida dia após dia com um rebanho de ovelhas à vista, mas fora de seu alcance. Aquela sensação soprou, com um fôlego quente e úmido, com os olhos brilhantes e investiu.
Então Nathan a deixou partir. A escuridão, o vento, os sentimentos, todos desapareceram, como se alguém tivesse fechado uma porta de uma portada em sua cara. Ela tinha aberto os olhos e havia sentido os rastros de lágrimas recentes que se evaporaram de suas bochechas.
Rachel nunca tinha sido, jamais, a típica pessoa suave, mas seus joelhos ameaçavam a falhar. Só Deus sabia como as tinha arrumado para manter uma conversa mais ou menos coerente com o Nathan até que se foi.
Agora que já se foi, meteu-se na cama, inclinou a cabeça até as mãos e esfregou a cara energicamente.
Certo, assim pedir ajuda de Nathan Cross não tinha sido uma boa ideia. Viver no mesmo continente que um homem que tinha essa classe de efeito sobre ela não era uma boa ideia. Havia outras formas de descobrir o que tinha acontecido naquele estacionamento. Havia outras testemunhas. Se não podia conseguir por meio de Nathan Cross o que necessitava, encontraria a esse tal Von.
Sentindo-se mais tranquila então, renovou o ar interior respirando lentamente e estirou o braço para alcançar uma das fotografias que havia sobre o chão. A fotografia da cena do crime da outra noite. Era uma foto instantânea tomada de longe do corpo estendido na rua, que mostrava uma perspectiva que abrangia o estacionamento.
Ao fundo, Nathan Cross estava sentado na parte traseira da ambulância, com sua camisa branca melada de escuro e aberta a ambos os lados. Ele olhava a rua, a ela. Era como se a foto em si a estivesse olhando.
Sentiu como um calafrio percorria seu corpo.
Voltaria para espreitar à manhã seguinte, procurando o rastro de Von.
E, se fosse afortunada, seu rastro não a levaria a nenhum lugar próximo ao Nathan Cross.
Capítulo 7
Nathan colocou os punhos nos bolsos e puxou o couro negro rodeando-o ao torso. Um vento cortante golpeou a pele que ficava exposta: o pescoço e as bochechas. Os primeiros granizos do inverno atravessavam o escuro céu. Uma espécie de pequenos flocos refletiam a luz da lua provocando um efeito similar à brilhantina, e depois desapareciam logo que tocavam a calçada.
Era muito cedo para a verdadeira neve, essa que se amontoava até os pomos das portas nos alpendres e tapava as bocas-de-lobo das ruas, embora o vento já tinha aroma de inverno. Quando Nathan conseguiu limpar a mente, depois de seu encontro no hotel com Rachel Vandermere, e foi consciente do longe que tinha caminhado e de onde tinha ido parar, tratou de recuperar o fôlego.
Plantou os pés sob a luz de uma luz na esquina de Madison e Cherry e olhou por volta do outro lado da rua ao lugar que tinha sido seu lar durante sua infância nesta vida. O colégio St. Michael se sobressaía como um castelo medieval sobre a parte baixa do lado oeste do bairro operário. Saía vapor das bocas-de-lobo da calçada, formando sobras, e se enroscava sobre as grades de ferro forjado. As grosas paredes de granito estavam desgastadas devido ao passado do tempo e à climatologia, mas mesmo assim aparentavam fortes e inquebráveis pelo homem ou a natureza.
Era a civilização em seu interior a que se enfraqueceu, chegando inclusive ao colapso.
Talvez a magia que criou os Gargouillen fazia quase mil anos estivesse se enfraquecendo. Ou talvez fossem suas almas as que não podiam suportar o passar do tempo. Quão único Nathan sabia era que as coisas tinham mudado. Tinham deixado de ser os salvadores de Rouen, que davam morte a dragões e desfrutavam com a adulação das pessoas da cidade.
Nestes tempos, já não eram heróis. Eram antiguidades, tão desconjurado como o St. Michael, com sua tosca arquitetura monolítica em uma cidade como Chicago repleta de elegantes arranha-céus de cristal. Ainda pior, eram monstruosidades. Abominações da natureza humana.
E tinham começado a agir como tais.
Uma vez tinham sido homens. Não podiam viver como homens de novo?
Nathan precisava acreditar que podiam. Tinha que acreditar que contava com essa opção, ou ficaria louco. Tinha escolhido viver como um homem, sob a luz da educação secundária, estudando arte e transmitindo seus conhecimentos a uma nova geração de homens, em vez de rondar pelos becos e na escuridão, seguindo o aroma do sangue como o resto de sua espécie.
Quando chegasse sua hora, escolheria morrer como um homem, sem a promessa de renascer.
E por essa razão tinha sido expulso, banido de St. Michael e o tinham proibido ver seus amigos e a sua família.
Então, por que tinha ido até ali naquela noite?
Para avisar a sua gente de que uma policial da Interpol pretendia desmascará-los? Ou porque essa policial tinha proporcionado uma grande dose de realidade, e o fez ser consciente de que não era humano, por muito que o desejasse com todas suas forças?
Quando estava com ela, a besta em seu interior ameaçava sair à superfície. O sangue que corria por suas veias era mais animal que humano. O impulso de agarrá-la, pela força se fosse necessário, e fazê-la sua era primitivo e imparável.
Ela tinha chegado até sua mente, pelo amor de Deus. Só algo que não fosse mulher, que não fosse humano, deveria ser capaz de fazê-lo e, quando o tinha feito, tinha ficado completamente desprotegida, expondo seu coração, com toda sua beleza e cicatrizes. A necessidade que tinha de encontrar os monstros que mataram a seus pais era profunda e pertinaz, como a necessidade que ele tinha de encontrar sua humanidade.
Ela tinha compartilhado seus segredos com ele, e ele tinha dado as costas a ela.
O que outra coisa podia ter feito? Ajudá-la significaria trair a sua gente. Do mesmo modo que falar com sua gente sobre ela suporia traí-la.
Exalou provocando um assobio e formando bafo diante sua cara. Observou a cálida luz que brilhava através do cristal chumbado da torre norte: as dependências de Wizenot.
Ao diabo com eles. Ao diabo com todos eles, incluindo Rachel Vandermere. Não se deixaria influenciar nem por desejos, nem por velhas cicatrizes, nem por maldições com mil anos de antiguidade.
Encurvando os ombros para proteger do frio, voltou-se para ir para casa e decidiu tirar a todos da cabeça.
Ainda continuava tentando quando concluiu sua aula de história da arte. Seus pensamentos absorviam grande parte de sua atenção, por isso não foi consciente de que o espreitavam de novo até que se deteve um momento na calçada de fora do edifício de Belas Artes para evitar que o atropelasse um ônibus público muito próximo ao meio-fio.
Em vez disso, foi atropelado pela garota que o seguia.
—Professor Cross? Nossa, sinto muito. Acredito que não me ouviu chamar.
Depois de realizar uma careta, Nathan colocou a correia de sua bolsa de tecido sobre o ombro e se voltou. Melanie mostrou algo mais que seu radiante sorriso de dezenove anos; jogou uma mecha de cabelo ruivo claro atrás da orelha e depois apertou os livros contra seu estômago com ambos os braços de maneira que a parte de acima se elevou e inchou seus já generosos seios de dezenove anos.
Nathan suspirou em silêncio.
—Suponho que estava... Distraído.
—Tá, enfim. — Molhou o lábio inferior com a ponta da língua. Lentamente — Só queria dizer quão impressionante foi a aula de hoje.
—Obrigado — Deu a volta para ir, duvidando que se desfaria dela tão facilmente. Não era a primeira vez que uma estudante o seguia em busca de um romance. Normalmente se livrava delas sem muitos problemas, mas as garotas de primeiro ano deste curso eram particularmente descaradas. E especialmente decididas.
—E — Disse Melanie, com um tom de voz de “ainda não acabei” para detê-lo — Aquilo que disse a respeito de como os chineses faziam a porcelana faz mil anos de uma qualidade que ainda hoje não se pode igualar. Quero dizer, quem teria imaginado?
—Os chineses, talvez?
—Enfim, sim, suponho. — Disse com uma nervosa risada afogada. Então, inclinou a cabeça e batendo os cílios — Mas é tão alucinante que saiba tanto sobre todas essas coisas do passado, sabe?
—Por isso me chamam professor de história da arte.
—Mas você faz que tudo ganhe vida. É como se você não se limitasse a observar a arte, mas sim a saboreia, a cheira. Sente.
Teria revirado os olhos, mas ela havia tocado um ponto franco. Realmente ele experimentava a arte a um nível mais profundo que o meramente visual. Talvez devido a que, a diferença dela, tinha estado presente quando a maioria das coisas que foram criadas.
Melanie pestanejou suas longas pestanas, rompendo o encanto.
—Escutar você falar de arte faz que... Excite-me.
—Sim — Disse ele, e se deteve para esclarecer garganta e olhar o relógio — Bem, senhorita...
—Melanie. Melanie Solvane. Perguntava-me se poderíamos ficar para que me contasse algo mais sobre o forno imperial do Jingdezhen. Não estou segura de ter entendido bem o que disse sobre as barreiras de bambu que se utilizavam para manter a temperatura do forno constante durante o processo de cocção.
—Minhas horas de estudos estão cheias.
—Eu estava pensando em algo mais íntimo...
—Não dou aulas particulares, senhorita Solvane. — Disse arqueando uma sobrancelha — De arte nem de qualquer outra coisa.
A garota franziu o cenho. Apertou os braços contra os livros que seguiam pressionando seu seio. Com um sonoro bufo, levantou o queixo, voltou-se e partiu a passo ligeiro, rebolando e fazendo ruído com os saltos sobre o cimento.
Depois de relaxar os ombros, Nathan foi pela Nona Avenida em direção a seu apartamento. Uma risada familiar fez que se detivesse.
—Tempos atrás não teria sido capaz de rejeitar uma garota bonita com tanta rapidez — Um homem de cabelo grisalho sentado no banco da parada de ônibus o olhou por cima do ombro. Suas sobrancelhas eram espessas e mais escuras que seu grisalho cabelo, e faziam jogo com uma mecha de cabelo escuro que aparecia por debaixo da têmpora.
Um sentimento de dor atravessou o peito de Nathan. Seu olhar bateu automaticamente contra o pavimento.
—Jamais saí com nenhuma de minhas alunas.
Tentou medir suas palavras, mas estas resultaram ser inclusive mais cortantes do que pretendia. Não tinha começado o dia com o pé direito, e seu humor mal tinha melhorado desde o café da manhã.
Nathan ouviu que o homem se levantava. Este cruzou a calçada arrastando ligeiramente os pés. Levava uns caros sapatos de couro negros ao final de umas finas calças de lã. As barras de um casaco cinza de caxemira formavam redemoinhos ao redor de suas panturrilhas ao igual a um gato rondando os tornozelos.
—Nem sequer é capaz de me olhar?
Nathan esticou a mandíbula. Intencionalmente se dirigiu a ele em voz baixa para que os pedestres que passavam junto a eles não pudessem ouvir. Sua réplica, carregada de desconformidade, não demorou para chegar, embora se manifestou de uma maneira inconsciente.
—Você me ordenou que não voltasse a olhar sua cara. Ou se esqueceu?
—Não esqueci nada. Quando disse que não me olhasse, referia-me no Conselho, diante nossa gente. Não se submeta diante de mim aqui.
Um forte sentimento de raiva correu pelas veias de Nathan. Apertou os dentes e elevou a vista.
—Não, já deixei de ser seu súdito, não é assim?
Teryn Carnegie, que tinha sido eleito Wizenot da congregação dos Gargouillen em Chicago, não pôs nem boa nem má cara. Simplesmente devolveu a Nathan o olhar com uma expressão em sua face, como sempre, de eternidade. Teryn podia ter quarenta anos ou podia ter setenta. Suas suaves feições e seus olhos afundados davam poucas pistas.
—Já não é meu súdito. — Disse ele, apertando brandamente o ombro de Nathan — Mas ainda é meu amigo, espero.
—Grande amigo que tem que sair escondido de seus próprios subordinados para vir para me ver!
O Wizenot nunca saía sem guarda-costas. A segurança deste era muito importante para a congregação. O fato de que se aventurou a sair sozinho dizia muito sobre a espécie de amizade que Teryn sentia por Nathan.
O homem mais velho não queria que o vissem com ele, nem sequer os de seu círculo mais íntimo nos quais realmente confiava.
Ao não obter resposta, Nathan continuou seu caminho. O líder o alcançou em seguida e caminhou junto a ele.
—Eu não me escondo. — Disse ele ligeiramente ofendido, mas quando viu que Nathan o olhava de esguelha, seus olhos cinza cintilaram como se alegrasse — E não vim sozinho.
Nathan automaticamente deu uma olhada por cima do ombro. Não viu nenhum rosto familiar entre os pedestres atrás dele, mas isso não significava que não estivessem ali. Sentiu-se como um covarde por isso, mas estava contente de que quem fosse que acompanhasse Teryn mantivesse a distância. A última coisa que precisava era o olhar condenatório de algum de seus irmãos.
Antigos irmãos.
Esticou a mandíbula, fazendo um ligeiro ruído.
—Vetou-me a entrada a nossa igreja, Teryn, converteu-me em um marginalizado entre nossa gente. Excomungou-me.
—Foi necessário. Suas ideias, crenças, causaram muito revoo.
—Minhas crenças são realistas. As suas são arcaicas.
—Pede que mudem muito, muito rápido.
—Não pedi a ninguém que mudasse. Eu fiz umas escolhas. Minhas. Ninguém tem que segui-las.
—Mas alguns acabariam seguindo. Não é o único que vê o mundo como você o vê, que sente o que você sente. Algum dia, teria ocupado meu lugar como líder, por legítimo direito. Parte da congregação teria aceito suas ideias, pode ser que inclusive as abraçassem como novos princípios, mas outros não. A congregação teria acabado dividida e divididos não podemos sobreviver.
Nathan encurvou os ombros e continuou caminhando. Nunca tinha querido ser o líder de sua gente de todas as formas. Nunca quis ser responsável por suas almas. Não quando nem sequer podia salvar a sua própria.
—Então, é melhor que tenha ido, não acha?
—Entretanto, voltou ontem à noite.
Nathan hesitou por um instante.
—Estava me observando? — Não tinha ocorrido bloquear a mente. Não pensou que precisava fazê-lo.
—Estava olhando pela janela.
Teryn arqueou a sobrancelha, algo igualmente efetivo que uma repreensão na hora de sufocar a irritação de Nathan. Não importava o que tivesse passado entre eles, Nathan não sentia mais que respeito por aquele homem que levava uma grande carga em suas costas. Não era fácil guiar a uma civilização em decadência, e muito menos fazê-lo com dignidade, que é como o fazia Teryn.
—Pensei que talvez quisesse falar. — Disse Teryn enquanto caminhavam e mantinham uma conversa cordial ao mesmo tempo — Parece um homem com muitas coisas na cabeça, e eu também tenho algumas na minha depois do acontecido nos últimos dias.
Lembranças dos dias em que acostumava a abrir seu coração a Teryn saíram à superfície de sua consciência. Com quentes xícaras de chá entre as mãos, sentavam-se diante fogos crepitantes e debatiam sobre política e religião, refletiam sobre o curso da história da humanidade e se imaginavam um futuro no que os Gargouillen estivessem liberados de sua maldição. O dia que tinha perdido aquilo tinha sido um dos mais tristes de sua vida.
De todas as suas vidas.
Encolheu os ombros e respirou profundamente.
—O que passa por minha mente já não é seu assunto e faz muito que deixei de me interessar pelo que acontecia na sua.
—Inclusive se tiver a ver com Rachel Vandermere?
Nathan tropeçou com um bêbado que estava estendido sobre as escadas que conduziam à plataforma do metro, agarrou-se a ele e devolveu o olhar a Teryn.
—O que sabe dela?
—Sei que não se foi da cidade com seus colegas de trabalho — Teryn se inclinou e colocou uma nota de cem dólares sobre a mão elevada do indigente. — E sei que está fazendo perguntas.
—É policial. Dedica-se a isso.
—O que é o que está investigando? Seu assassino está morto.
Os pensamentos de Nathan formaram redemoinhos como folhas em um vendaval outonal. Quanto sabia Teryn? Até onde suspeitava?
Nathan não podia trair a uma mulher inocente nem pô-la em perigo contando a verdade a Teryn, já que os gárgulas mais extremistas não estariam contentes de que um policial tivesse em mente demonstrar a existência de monstros. Mas tampouco podia trair a sua gente mentindo, apesar de que às vezes sentia que o tinham traído.
Tinha tomado suas próprias decisões, disse a si mesmo enquanto apertava os lábios formando uma linha fina. Por sua conta, tinha decidido romper com as tradições de sua espécie, rejeitar os dois princípios básicos de sua congregação: proteger os humanos e propagar a espécie. Não podia culpar a ninguém de sua solidão mais que a si mesmo.
Assim em vez de escolher entre Teryn e Rachel, entre sua gente e a verdade que ansiava ser descoberta pela humanidade, decidiu ser imparcial.
—Ela tem razões para ficar.
Teryn fez um gesto estranho.
—E quais podem ser?
A pergunta fez que se detivesse. Estudou a inexpressiva face de Teryn enquanto o trem se aproximava da plataforma. Com cada som que provocavam as rodas de metal ao se chocar contra os trilhos, estava mais seguro de que o Wizenot não tinha ido procurá-lo para que pudesse desafogar seus problemas com ele.
As portas automáticas se abriram e Nathan subiu a bordo com o Teryn a seu lado.
—A que veio?
Teryn deslizou sobre um assento de plástico duro e se segurou à barra metálica enquanto o trem partia.
—Nossa gente está em perigo, Nathan. Os deuses e as deusas me advertiram isso em visões rituais. Nossa existência está realmente em perigo.
—Nossa cultura esta em decadência nos últimos duzentos anos. Não há nada que possa fazer para impedi-lo.
Teryn inclinou fugazmente a cabeça só uma vez.
—Esta ameaça provém de outra fonte, e é veloz e letal. Tenho que achá-la e detê-la. Deve me ajudar. Vi-a.
—Eu? O que tenho eu a ver com tudo isto? — Nathan apertou os dentes para manter a boca fechada. Não era a primeira vez que o ancião tinha ideias descabeladas, mas aos ouvidos de Nathan não tinha chegado que o Wizenot tivesse perdido a cabeça. Isto o pegava de surpresa...
—Olhe — Ordenou Teryn, balançando-se muito ligeiramente sobre os pés enquanto olhava através de uma janela do vagão do trem. O pôr-do-sol refletia contra a janela criando uma imprecisa luz cegadora. Nathan sentiu a força do sexto sentido.
—Você conhece sua mente. Já se conectou com ela. Busca o enlace de novo e comprova o que traz entre as mãos.
Teryn estava no certo. Estava familiarizado com sua mente. Muito familiarizado. Muito a gosto nela para manter sua paz mental.
Olhou o vidro da janela até que nublou a vista e se formou um túnel. Encontrou-a sem problemas, encontrando os brincos que flutuavam ao longe de seus pensamentos, ondeando-se no ar como fios de seda em uma corrente submarina, e seguindo-os até sua consciência.
Estava fora de um bar de Seventh Street. Um oxidado Buick sem rodas jazia no alto sobre blocos de cimento na calçada justo a seu lado. Vários lixos rodavam rua abaixo como plantas secas do longínquo Oeste. Um casal de valentões com gorros de lã e roupa escura estavam apoiados contra o edifício, passando um cigarro uma e outra vez. A pesar do fedor do gueto, um suave aroma, feminino e sedutor, envolveu-o, filtrando-se em seu sangue. Romero. Sua fragrância.
Nathan se inundou mais profundamente nas imagens, os sons e o aroma da rua, mantendo-o suficiente à margem para ser consciente de que Teryn estava a seu lado.
—O que está fazendo ali?
—Está procurando o Von.
—Ao Von? — Nathan torceu o gesto — O que pode querer... Aparentemente querer dele? — Perguntou Nathan, embora já sabia a resposta.
Rachel não podia obter as respostas que necessitava de seu assassino, tampouco de Nathan, assim estava seguindo sua outra e única pista: os misteriosos rastros no rifle de Bishop.
—O menino é descarado e indisciplinado. — Disse Teryn — E está zangado pela morte de Rhys. Agora é mais imprevisível que nunca. Quem sabe o que poderia dizer se o pressionam.
—Então, melhor que não tire o olho de cima dele. Mantenha-o afastado dela.
O suspiro de Teryn soou como uma expressão de exasperação. A última vez que Nathan tinha escutado aquele som foi o dia em que o Wizenot tinha encontrado todos seus sapatos cravados no chão de seu armário perfeitamente ordenado, por cortesia de Rhys e Nathan no final de sua adolescência.
Estava Von zangado pela morte do Rhys?
Não tinha nem ideia...
—Faria. — Disse Teryn, transportando os pensamentos de Nathan de volta ao presente — Se o encontrasse.
Nathan olhou ao Wizenot com o cenho franzido, quem explicou:
—Desapareceu depois de que ele e Connor escapassem do estacionamento próximo ao museu na outra noite. Tivemos gente atrás dele, mas lamento ter que dizer que não fomos capazes de apanhá-lo. Está bloqueando nossas tentativas de lhe rastrear a mente.
Ainda mais concentrado na cena de Seventh Street que em sua localização atual, Nathan girou a cabeça a um lado.
—Maldição. Provavelmente ande por aí bêbado perdido.
—Provavelmente — Admitiu Teryn — Pode que nesse bar. Temos que mantê-lo longe dela.
Nathan observou como Rachel se dirigia decidida para a porta, como se ela pertencesse a aquele lugar. Mas sem dúvida não pertencia aquele lugar e muito menos sozinha. Em que demônios estava pensando, primeiro atrevendo-se a passear por um bairro como aquele e depois entrando sozinha no bar sem escolta?
A última fresta do mundo físico que rodeava Nathan se desprendeu, como a pele de uma serpente ao mudar, ao tempo que afundava mais profundamente na mente de Rachel. O estalo continuado do metrô se sossegou. A vibração do chão sob seus pés perdeu intensidade. O aroma de café procedente de uma xícara que segurava a mulher atrás dele se dissipou.
Como se estivesse ajustando o campo de visão de uns binóculos, Nathan estreitou seu centro de atenção deixando atrás a rua de fora do bar, os meninos apoiados contra a parede, a entrada, até chegar a ela. Só ela.
Sentiu o gélido frio sobre a face de Rachel, sentiu como a franja roçava suas pestanas, sentiu sua suave mão enquanto o jogava para um lado. Sentiu o sussurro do sangue que corria por suas veias, a rajada de ar em seus pulmões. Deixou atrás estas percepções superficiais e afundou em seu interior mais profundamente, tão perto que pôde alcançar sua consciência.
Como em outras ocasiões, os pensamentos atuais de Rachel estavam fora de seu alcance, escondidos atrás de um banco mental resplandecente, uma névoa movediça que nenhum de sua espécie podia penetrar. Mas os sentimentos, as emoções, suas intenções, estavam a seu alcance se concentrava o suficiente.
Estava decidida a entrar. Apesar dos valentões da entrada, da má fama do bairro, pretendia fazer perguntas para encontrar Von.
Maldição, é que Deus não tinha dado juízo a ela? Ver como a olhavam aqueles homens foi suficiente para que Nathan se arrepiasse.
Reuniu forças e tentou introduzir-se no interior dela. Tentou fazer que partisse. Mas ela lutou contra ele. Nathan sentiu um forte sentimento de justiça no interior de Rachel; mostrava-se forte e robusta como um carvalho. Queria justiça. Mas mais à frente do luminoso que dizia justiça havia algo mais escuro. Algo mais feio, mais feroz. Algo selvagem.
Enquanto a justiça era sua causa principal a gritos, a vingança vaiava e chispava nas curvas de sua mente. A mulher e a policial em seu interior queriam justiça, mas a menina assustada desejava vingança pelo que tinham feito a seus pais. Pelo que tinha tinham feito a ela.
O coração de Nathan se deteve quando ela deu o primeiro passo para o bar e alcançou a porta, enquanto os meninos a olhavam de esguelha. Suas intenções eram tão óbvias como as dela, o que provocou que ele sentisse um calafrio.
“Maldição, saia dai!”.
Nathan afirmou os sentidos com um objetivo claro e se introduziu no interior de Rachel mais profundamente. Concentrou-se na menina assustada que tinha sido na noite que seus pais morreram. Amplificou aqueles sentimentos e quase se afoga quando sentiu o medo na garganta dela. Sentiu como Rachel se agarrava as extremidades. Seus dedos se intumesceram e sua respiração explodiu como velhas correntes no interior do peito.
Depois, incrivelmente, sentiu como Rachel engolia seco, elevava o queixo e se desfazia do medo. Subiu os dois últimos degraus, abriu a porta e entrou como se fosse a proprietária daquele lugar.
Nathan recuou a tempo de ver os picantes sorrisos dos meninos do exterior, com capas de dentes douradas resplandecendo com a fria luz do sol. Dois valentões mais se uniram ao resto, procedentes do outro lado da rua.
Pararam na entrada, os quatro, com as cabeças juntas e riram entre dentes. O que tinha a bituca, lançou-a no chão e a esmagou com a ponta dos sapatos de cem dólares.
Com os ombros encurvados, as calças caídas e com os olhos brilhantes pelo que pelo que estavam a ponto de fazer, os quatro penetraram através da porta atrás de Rachel.
Nathan pestanejou fechando o túnel do sexto sentido. Enquanto se reorientava, o trem se deteve com um forte chiado na plataforma de Wacker Drive.
Sete quadras.
Deus, ela estava a sete quadras. Sem se preocupar com as maneiras, empurrou Teryn para que saísse de seu caminho e abriu caminho atravessando a porta. Dois segundos depois, estava fora da plataforma e correndo rua abaixo, o solado de couro de seus sapatos golpeava o pavimento sincronizado com o batimento de seu coração.
Sete quadras.
Capítulo 8
Connor Rihyad fechou o jornal atrás do qual esteve se ocultando e se aproximou de Teryn. Depois de agachar a cabeça em sinal de respeito, olhou na mesma direção que o Wizenot e ambos observaram juntos como essa alta figura abria caminho entre a multidão da rua como alma que leva o diabo.
—Não me disse que esta reunião tão importante era com ele. — Nem sequer era capaz de pronunciar seu nome. Nathan Cross não só tinha dado as costas a sua gente, mas também estava tentando acabar com eles com suas ideias sobre desfazer a magia que os convertia no que eram. Não é que fosse possível, mas o mero feito de falar disso criava inquietação entre a congregação. Dividia-os.
Se dependesse de Connor, deixaria Nathan morrer nesta vida sem oferecer a promessa da reencarnação e assim acabar com ele. Possivelmente inclusive poderia colaborar para que isso fosse assim...
Mas não dependia de Connor. Teryn tinha proibido a sua gente interferir na vida de Nathan. Não importava quão descabeladas fossem suas escolhas, nem como sacrílegas que fossem suas crenças, porque ninguém se atrevia a contrariar os desejos do Wizenot.
Ainda.
— Por que o avisou? — Perguntou, incapaz de decifrar o que pensava o velho. Ninguém sabia o que pensava o velho a menos que ele assim o desejasse.
—A garota está em perigo.
—Se encontrar o que busca, todos estaremos em perigo.
—É uma humana — Espetou Teryn. A face com a que o olhou fez Connor sentir que voltava há ter nove anos e que acabava de quebrar uma janela de cristal com uma bola de beisebol, justo depois de que dissessem que não jogasse com ela no pátio da reitoria — Somos guardiões. Temos uma obrigação. Ou se esqueceu?
—Nathan é quem esqueceu.
O olhar de Teryn se desviou para o lugar pelo que tinha desaparecido Nathan. Suspirou levemente.
—Então, possivelmente Rachel Vandermere o recorde.
Rachel se deteve justo depois de cruzar a porta do bar para que seus olhos se adaptassem a pouca luz. Não tinha medo; tinha estado em lugares muito piores que esse. Mas estava arrepiada. Acelerou o pulso e o coração ia a mil por hora.
Por alguma estranha razão, tinha estado a ponto de ter um ataque de pânico no exterior. Assim que chegou à porta, as imagens que estava acostumada a ver só em seus pesadelos foram a sua cabeça: seu pai colocando-a no quartinho debaixo das escadas. Sombras na parede. Chamas e olhos ardendo com uma incandescência verde. À luz do sol, tinha ouvido o pesado bater de asas que estava acostumado a persegui-la só em sonhos.
O medo a tinha paralisado durante um instante. Havia sentido a estranha urgência de dar meia volta. De correr. Mas não tinha cedido.
Com os anos, Rachel tinha aprendido a transformar o chute de adrenalina e acuidade de sentidos que chegavam com os pesadelos em energia. Tinha aprendido a converter o medo em um agudo sentido de determinação que usava segundo o necessário em cada momento.
O medo era seu amigo. O amigo dirigia sua vida. Porque sabia que só compreendendo o que tinha visto e ouvido essa noite, descobrindo-o e enfrentando a isso, poderia seguir adiante com sua vida.
Poderia fazer justiça por seus pais.
Acostumou-se tanto a aceitar e controlar seu medo, que se surpreendeu quando ao tirar os óculos de sol e entrar no bar descobriu que corriam lágrimas pelas bochechas produzidas pelo terror de suas lembranças infantis. Aterrada, secou as lágrimas do momento com o dorso da mão. Agora, encontrava-se plantada olhando o interior do local com o que esperava que fosse um olhar de garota dura e não uma expressão de vulnerabilidade chorosa.
Por sorte, a maioria dos clientes do bar, os que estavam o bastante sóbrios para levantar a cabeça de suas cervejas uma tarde de sexta-feira dentro ainda do horário trabalhista, ainda não se fixaram nela.
Aproveitou o momento para recuperar o autocontrole. Conseguiu controlar a respiração, mas o coração ainda pulsava com força. Parecia que pulsava duas vezes de cada vez... Ou como se houvesse um órgão fantasma dentro dela, escurecendo o seu, mas mais pesado de algum jeito. Maior e mais forte.
E o que ainda a desconcertava mais era a nova imagem que se formava em sua cabeça quando tentava apagar os vestígios do pesadelo como se apaga a condensação de água de um cristal embaciado: era Nathan.
Mais que visualizar seu semblante, sentia-o. Era como se ele estivesse ali, e ela estivesse percorrendo com os dedos essa forte mandíbula quadrada, passando pela suavidade de uns lábios curvados para baixo. Sentia sua úmida respiração na palma da mão, e se deu conta de que era pesada. Esticaram os músculos do pescoço quando acariciou o pescoço com a mão. A carótida pulsou com força frente ao tato dos dedos dela.
Rachel podia sentir sua raiva com a mesma claridade que podia sentir sua pele, músculos e ossos. E podia sentir seu medo. Se deu conta de que o medo que tinha sentido ao entrar em bar era dele, que de algum jeito se somava ao dela, como se dessem da mão e seus corações pulsassem ao mesmo ritmo.
Não estava segura de como sabia, possivelmente só era imaginação dela, mas estava segura de que nesse momento, estivesse onde estivesse Nathan Cross tinha medo.
Por ela.
E as vacas voam claro.
Um calafrio percorreu o corpo de Rachel de pés a cabeça enquanto tentava recuperar-se desse ponto de loucura que havia sentido. Já a tinham chamado louca muitas vezes por perseguir monstros. O único que faltava era afirmar também que tinha telepatia com a pessoa, e sem dúvida mandariam os da camisa de força a procurá-la.
Respirou fundo e expulsou tudo de sua mente exceto o bar. O lugar cheirava a fumaça estagnada, suor e colônia barata. Ouvia-se o ruído das bolas de bilhar entrechocando sobre uma mesa iluminada por um círculo de luz procedente de uma única lâmpada pendurada no conto mais afastado. Em um televisor sem som situado atrás do bar, emitiam-se os melhores momentos da partida dos Bulls da noite anterior. O garçom, um tipo baixinho com a cabeça barbeada, gorducho, com a cara picada pela varíola e os dedos e braços gordos como chouriços, olhou-a um instante com pouco interesse antes de seguir secando copos com uma suja toalha que pendurava de um ombro.
Uma meia dúzia de homens estava sentada na frente dele, operários com sujas calças jeans, botas e camisetas nas que se marcavam uns círculos de suor justo sob as axilas que chegavam quase até a cintura. Um par de mulheres com saias curtas e longas extensões de cabelo se abraçavam aos ombros dos homens esperando conseguir uma taça e um pouco de atenção. Um par de solitários estavam sentados nos escuros reservados situados junto à parede direita agarrados a duas garrafas de cerveja.
Não viu Von, o que teria sido muito fácil, mas haviam dito que estava acostumado a passar por aí; era uma das oito ou nove casas de jogo clandestino que estava acostumado a frequentar no bairro de vez em quando, assim possivelmente alguém aqui poderia dizer onde encontrá-lo.
Depois de respirar fundo, dirigiu-se para o garçom, quem elevou o olhar ao vê-la aproximar-se e a observou com os olhos entreabertos.
—Procure a quem procura, não o vi por aqui. — Disse antes que ela tivesse oportunidade de perguntar.
Atrás dela, as prostitutas se dirigiram para a porta.
—Um momento, garotas. — Disse sem dar a volta. Fixou o olhar no garçom — Só há um tipo de gente que possa detectar um policial com tanta rapidez. O tipo de gente que tem uma razão para nos evitar. O que é o que esconde, Fred?
—Meu nome é Al — Espetou, e depois amaldiçoou por ter dito seu nome.
Rachel sorriu.
—Sempre funciona. Tem sobrenome, Al?
—Foda.
—Que estranho, é polonês?
Al deu as costas à mulher e começou a transportar com as garrafas atrás do bar.
—Estou procurando um cara, Al. Tem dezoito anos, é loiro. Tem um nome também um pouco estranho. Chama-se Von.
—Aqui não entra ninguém que tenha menos de vinte e um anos — Al olhou por cima do ombro, com os lábios torcidos em um triste sorriso — Isso diz a lei, equivoco-me?
Rachel olhou Al fixamente, depois se voltou para as garotas amontoadas perto da porta.
—É isso certo, garotas? É Al muito estrito e pede sempre a carteira de identidade às pessoas que entra?
A gordinha garota negra piscou com uns enormes olhos negros.
—Eu... É a primeira vez que venho.
O cara que estava no primeiro reservado soprou e deixou com força o copo sobre a mesa.
A garota o olhou, depois voltou a olhar a Rachel.
—Nunca percebi.
—E você? — Perguntou Rachel à outra garota, que tentava parecer aborrecida com a situação e só conseguia ficar nervosa.
—Eu o que? — Perguntou, com uns grossos lábios vermelho rubi.
—Al toma cuidado em não deixar entrar menores aqui?
—Sheila... — Grunhiu Al.
—Toma cuidado. — Advertiu Rachel à mulher — Al pode te proibir que volte a trabalhar neste bar, mas o departamento de polícia de Chicago pode evitar que volte a trabalhar nesta cidade.
—Bom, já sabe... — A garota encolheu os ombros — É difícil determinar a idade das pessoas hoje em dia.
Antes que a prostituta pudesse inventar outra resposta vaga adequada, a porta se abriu atrás dela e, em questão de segundos, o equilíbrio de poder escapou das mãos de Rachel. Quatro caras entraram, usavam calças caídas, correntes de ouro que decoravam seus pescoços e pela boca proferiam uma obscenidade atrás de outra. Não fez falta a Rachel entender todas as palavras para saber que a maioria delas faziam referência a ela.
Resistiu o impulso de recuar, porque não queria que vissem que se sentia intimidada. Em vez disso, tirou seu distintivo, o mostrou e olhou nos olhos com dureza enquanto guardava-o no bolso traseiro.
—Entrem e se reúna à festa, meninos.
O mais alto dos quatro, um adolescente cheio de espinhas com uma folha de maconha de prata pendurada na corrente de ouro, adiantou-se.
—Espero que não se importe.
Passou pela frente dela muito perto e roçou os seios com o cotovelo. Depois, sentou-se sobre o bar e deu meia volta para ficar com as pernas por dentro.
—Por que não toma um descanso para fumar um cigarro, Al? — Disse e depois piscou um olho para Rachel, provocando que revolvesse o estômago — Eu te substituo.
Al deixou a toalha sobre o bar e se dirigiu para a porta de serviço.
Agora Rachel sim deu um passo atrás. Os outros três meninos se situaram aos lados rodeando-a por completo. As gastas faces olhavam dos tamboretes e reservados. Os que estavam na mesa de bilhar se apoiaram sobre os tacos de bilhar para olhar.
—O que vai tomar senhora? — Perguntou o menino do bar.
Os meninos que a rodeavam se fecharam um pouco mais sobre ela.
—Que tal um coquetel gelado e sensual? — Disse um dos garotos.
Outro respondeu.
—Cara, faz muito frio para misturar gelo e sexo.
—Sim — Disse o garoto do bar, apoiando-se tanto na barra que quase tinha a cara pega ao sutiã de Rachel — Não quereria que congelasse meu precioso pênis, não é? E se compartilharmos algo quentinho, gatinha?
Rachel levantou a mão aberta para esse cretino para mantê-lo a certa distância, mas ele foi mais rápido que ela. Levantou a mão e a agarrou pelo pulso, aproximando-a a ele e respirando profundamente atrás de sua orelha.
—Mmm, cheira bem.
Tinha cometido um grave engano tático e sabia. Os outros três meninos viram que estava apanhada como uma raposa em uma armadilha, assim que se aproximaram mais ainda.
De repente, seus pulmões não podiam aspirar suficiente ar. Tremiam os joelhos. A cabeça dava voltas, procurava possíveis soluções e resultados prováveis.
Nada do que ocorria tinha boa pinta.
Nathan estava sem respiração quando encontrou o bar e atravessou a porta sem reduzir o passo, mas o que viu dentro transformou a respiração em uma necessidade secundária.
Com os punhos fechados, os pés separados e balançando o peso de um pé a outro preparando-se para agir, olhou rapidamente para Rachel e depois ficou olhando fixamente o garoto que a segurava.
—Solte-a. Já — Falou com voz suave, mas ficava clara a mortal intenção dessas palavras.
—Calma, colega. — Disse o garoto situado a sua direita. — Há bastante para todos. Possivelmente deixemos isso quando tivermos acabado com ela.
Nathan girou a cabeça lentamente para o menino. Olhou-o com dureza e depois indicou que não com um movimento de dedos.
O menino sorriu, lambeu os lábios e se precipitou sobre Nathan. Um simples movimento de ombros serviu a Nathan para esquivar do ataque e agarrar o garoto pelo torso, fazer uma chave e lançá-lo no chão sem problemas, onde ficou caído de barriga para cima.
Nathan acabava de recuperar do ataque quando o segundo garoto se lançou contra ele. O objetivo era desta vez um golpe nos joelhos. Nathan esperou até um milésimo de segundo antes do impacto e depois se limitou a levantar a perna, de forma que o queixo do menino se chocou contra seu joelho. Um segundo depois, jogou a um lado o ferido garoto e se aproximou do bar.
Elevou uma sobrancelha ao terceiro garoto, perguntando sem palavras se queria apanhar também.
O garoto do bar olhou a seu amigo, o mais jovem de todos, em busca de ajuda.
—Vá por ele, Dickey!
Nathan lançou ao jovem Dickey um olhar ameaçador. O menino cambaleou para trás e saiu disparado para a porta, mas a distração momentânea deu ao garoto do bar a oportunidade de tomar vantagem. Nathan amaldiçoou a si mesmo por não estar atento quando viu Rachel no ar. O garoto atrás do bar a tinha levantado do chão literalmente. Quando aterrissou, soltou a mão esquerda o tempo suficiente para tirar uma navalha do bolso traseiro. Pressionou com a navalha na jugular de Rachel. Ela não moveu nem um fio.
Nathan disse com ódio:
—Que grande engano, garoto.
Rachel piscou. Nathan desejou que não se movesse. A navalha que pressionava o pescoço não era muito grande, mas sim uma folha pequena e curta. Mas, quantos centímetros de aço precisavam para perfurar uma artéria?
Pelo amor de Deus, Rachel, não se mova.
—Para trás, cara! — Gritou o garoto da navalha.
Nathan ficou quieto, com os punhos fechados e dando voltas à ideia de matar.
—Se a machucar, será meu lanche.
—Matarei-a. — A mão do menino tremia. A arma se separou de seu pescoço um centímetro, depois um pouco mais.
—Ah, sim? — Disse Nathan — Então o que impedirá que o mate?
—Está louco, cara? Acha que não sou capaz de fazê-lo? Pois sim sou! Assim para trás.
Um dos bêbados tinha permanecido oculto em um escuro canto se adiantou e se colocou sob a luz. Levava o cabelo loiro de ponta de forma que parecia o colar de pontas agudas de um cão. Levava aros de ouro em ambas as orelhas e um no nariz. Tinha umas profundas olheiras sob uns olhos injetados em sangue.
Rachel girou a cabeça, fazendo que o fio da navalha pressionasse um pouco mais na carne.
—Von?
—Rachel, não se mova! Maldição, Von — Espetou Nathan justo antes de concentrar a atenção de novo no garoto da navalha — Juro isso, se derramar uma só gota de seu sangue, arranco seu coração com minhas próprias mãos.
Von riu alcoolizado do garoto da navalha. Balançou-se enquanto assinalava com a cabeça para Nathan e disse:
—Não o diz de brincadeira, sabe? Este cara é muito perigoso.
—Calado Von. — Disse Nathan com dureza.
O captor de Rachel respirou nervoso atrás dela. A navalha se separou três ou quatro centímetros mais de seu pescoço. Moveu a arma no ar ao redor de sua orelha.
—Se afastem os dois! Eu disse que a matarei.
Von riu.
—Com essa navalhinha? Cara, o que faz ameaçando com uma navalha de brinquedo como essa? Não acredito que pudesse cortar nem geleia com isso — Deu um passo para o garoto. Falou com uma voz mais suave, mais íntima — Mas, sabe? Talvez seja melhor que se esqueça da navalha, dê um empurrão à mulher e saia apitando pela porta de trás, quem sabe consegue se mandar antes que o grandalhão salte a barra. É rápido, não é? Parece um menino rápido. Porque vai ter que sê-lo para poder...
Nathan cortou Von com o olhar. Estava zangado.
—Se não fechar a boca, vou esquecer dele e vou para você.
Rachel revirou os olhos.
—Querem fazer um concurso os três para ver quem vai mais longe? Pois saiam fora porque os outros gostaria de seguir com a tarde.
Nathan franziu o cenho. Um frágil corredor se abriu entre sua mente e a de Rachel. Sentiu algo procedente dela. Uma espécie de plano.
Ia fazer uma tolice. Mas não sabia exatamente o que.
Von sorriu com malícia.
—Nossa, nossa. Parece que o grandalhão está perdendo a paciência. Mais vale que ponha-se a correr. — Fingindo medo, gesticulou diante o garoto da navalha — Se eu fosse você, andaria logo.
—Não vou sair correndo, cara. Nem de você nem de ninguém — O garoto da navalha moveu a mão em direção a Nathan para indicar a quem se referia.
Nathan sentia a respiração de Rachel. Sentiu que começava a mover-se.
Deu um tombo no coração. O medo o invadiu. A admiração encheu seu corpo.
Rachel era a mulher mais valente que conhecia ou a mais tola. Decidiu que o melhor era esperar para ver se vivia e ver qual era a opção correta.
Nathan gritou atraindo a atenção do garoto da navalha, justo quando ela inclinou o queixo para o peito e escorregou ao chão, longe do alcance do garoto da navalha e dando uma cotovelada na virilha enquanto se atirava no chão. Depois, rodou afastando-se dele.
Tirou uma pistola que segurava com ambas as mãos, sem a proteção e preparada para atirar.
Apontou com a arma ao garoto no chão que se agarrava a suas partes e gemia e depois elevou a vista.
—Von Simeon, sou...
Mas já era muito tarde. Von corria para a porta a toda velocidade.
—Nathan, detenha-o! — Gritou, mas Nathan deixou escapar o garoto e se limitou a olhá-lo com reprovação.
—Maldição! — Rachel deu um chute na navalha para afastá-la do garoto que se retorcia no chão e embainhou a pistola. Quando passou pela frente de Nathan, olhou a sua vez com reprovação — Vigia a este tipo. Eu vou atrás...
—Não — Nathan a segurou pelo braço. Não puxou-a, mas sim indicou com delicadeza que se detivesse. Tremiam os dedos à medida que a conexão entre ambos se ampliava e pulsava de vida.
Ela se soltou.
—Vai escapar!
—Já se foi.
—Mas podemos alcançá-lo. — Tentou ir trás dele, mas Nathan a segurou.
Ondas e ondas de raiva, de um e de outro, chocaram entre eles, dentro deles. Nathan estava zangado com ela por ter ficado em perigo. Ela estava zangada com ele por se intrometer.
Mas, depois da raiva, havia algo mais. Algo mais calmo, mas igualmente poderoso. A afirmação última da vida. Da sobrevivência.
Excitação sexual.
Desejo.
As pupilas de Rachel se dilataram. As aletas do nariz de Nathan incharam.
A necessidade cresceu e fluiu entre as ondas de raiva.
Praguejando, embora sem estar seguro se a maldição se dirigia a ela ou a ele mesmo, puxou-a até tirá-la dali. Empurrou-a contra uma parede inclinada e usou seu corpo para evitar que escapasse, com ambos os braços apoiados na parede de tijolo de ambos os lados da cabeça de Rachel. Inclinou-se para ela. Seus sentidos tontos, cheios dela. O sangue martelava na virilha até pensar que suas calças iam explodir.
—O que faz? — Rachel o olhou, com seus verdes olhos alertas, mas sem medo.
Por que não tinha medo dele?
Nathan tinha muito medo dela. Pelo que podia fazer.
O fato de que ela não sentisse medo, dos monstros, dos delinquentes com navalhas ou de homens com tremendas ereções que a arrastavam à rua, o punha furioso.
Ficou tão furioso que a única maldita coisa que pôde fazer era beijá-la.
Capítulo 9
Se o contato prévio de Nathan tinha sido como uma cãibra, seu beijo foi como uma sobrecarga elétrica em escala cósmica. Fosse o que fosse os equivalentes anatômicos dos interruptores elétricos, os de Rachel se conectaram um após o outro com rapidez. Sentia como saltavam faíscas ao longo de sua coluna vertebral, em sua cabeça. Em seus mamilos e em seu sexo.
Estava zangada com ele, mas não tinha nem ideia de por que razão. Sua memória a curto prazo, o pensamento consciente em geral, tinha sido totalmente deslocado pelo calor. Pela necessidade.
Nathan estava tão perto dela que podia ver todos os cabelos de sua incipiente barba. O tato era fascinante. Queria senti-lo contra sua bochecha. Roçá-lo com os lábios.
Conformou-se acariciando com a ponta dos dedos a mandíbula de Nathan.
Deus, o que tinha este homem que a atraía tanto inclusive quando estava tão furiosa com ele?
Nathan levantou um milímetro a cabeça e respirou fundo. Sua noz subiu e baixou, e esticaram os músculos do pescoço como se o desejo de Rachel puxasse o corpo de Nathan e o abraçasse com força.
Nathan tomou a mão de Rachel, seus dedos se entrelaçaram e se levou os nódulos do Rachel aos lábios... A uns lábios incrivelmente suaves, redondos e grossos.
A diferença da dureza do resto dele, seu corpo, seus olhos, sua mente, seus lábios eram como seda sobre a pele de Rachel. A visão deles mordiscando-a fez entrar em uma espiral de desejo para a que não estava preparada. Era um caminho para o prazer. Teve que fechar os olhos e obrigar-se a permanecer com os pés no chão.
Quando voltou a abri-los, ele tinha posto as mãos entrelaçadas de ambos sobre seu ombro, mas seus olhos seguiam resplandecendo com o calor do beijo.
—Não tem nenhum tipo de instinto de sobrevivência, não é? — Perguntou Nathan.
Ela quase não tinha ar para poder responder.
—Me arrumei para permanecer mais ou menos inteira durante trinta e três anos.
—Foi pura sorte.
—Bom, obrigado por seu voto de confiança.
—Não vai esquecer do tema, verdade? Vai seguir procurando o Von.
—Sim.
—Embora isso signifique que não me separarei de você durante todo o tempo?
—Embora isso signifique que não... — Rachel piscou, repassando mentalmente suas palavras e escutando de novo o que havia dito — Não se separará de mim?
Deus, esse gritinho de camundongo era sua voz?
Nathan assentiu.
—Vai me ajudar?
—Deus sabe que não posso te deixar sozinha com o que atrai de problemas. É possível que a cidade não sobrevivesse.
Rachel começou a sentir calor no rosto. Encontrava-se duas frases atrás na conversa e seguia perdendo terreno.
—Eu atraio os problemas? Você é quem está comprometido em uma tentativa de assassinato...
Nathan voou até seu lado, agarrou-a pelo cotovelo e puxou-a para frente. Só foi um instante, mas Rachel poderia ter jurado que uma das comissuras de seus lábios mostrava um sorriso feroz.
—Começaremos amanhã a primeira hora. — Prometeu Nathan, depois de colocá-la em um táxi. Deu ao taxista o endereço do hotel, fechou a porta e golpeou o teto com a palma da mão para indicar ao condutor que fosse.
Assim que o táxi arrancou, olhou-a pela última vez durante todo o momento que pôde, o que voltou a mandar calafrios de excitação por todo o corpo de Rachel.
Nathan levava o escuro cabelo despenteado e uma mecha caía sobre os olhos. As bochechas torradas pelo sol estavam vermelhas devido à briga ou ao frio ou ao beijo ou às três coisas. Os nódulos da mão com a que segurou o vidro da janela sangravam, mas ele parecia não dar-se conta disso.
Professor de arte e um porrete. Era um guerreiro de pés a cabeça. O menino mau atraente de suas novelas românticas preferidas. A besta com a que sonhava toda bela em suas fantasias, mas com quem não se atrevia a relacionar-se quando se cruzavam na vida real.
E ele estava totalmente concentrado nela. Olhava-a com um olhar de tal intensidade que o calor de seu olhar fazia arder sua pele. Quando devolvia as olhadas, perguntando se ele podia sentir o mesmo calor que ela, sentia uma conexão além de seus olhos. Suas mentes se uniam.
Rachel podia entrar na cabeça dele. Via imagens deles dois nus, com as extremidades entrelaçadas. Sentia como seus corações pulsavam em uníssono seguindo o frenético ritmo de um tambor surdo. E ouvia vozes, tão longínquas que pareciam o zumbido de um inseto na orelha, ou mas bem na cabeça. Era difícil de dizer, mas pensava que cantavam, possivelmente. Ou recitavam. O som era baixo e melódico, mas de algum jeito detestável, como a profunda e repetitiva música que precedia ao desastre nos filmes.
Sentia uma mudança em Nathan... O Nathan imaginário. Seus beijos sonhados eram mais duros, mais desesperados. Seu peso começou a esmagá-la, suas carícias a amassá-la. Uma estranha luz brilhava em seus olhos, já não era desejo, e sim algo muito mais primitivo. Mais perigoso.
Seus músculos se esticavam, como se sofressem espasmos. Seu peito se inchava em busca de ar. Os cânticos eram mais ruidosos. O pulso de Nathan ia a um ritmo frenético.
—Não, não, não, não, não! — Gritava o Nathan do sonho, uma litania de negação. Depois, a separava dele. Se fazia uma bola, nu e tremulo, com a cabeça escondida entre os braços — Não, não, não, não!
Rachel caiu para trás no sonho e abriu os olhos à realidade. Nathan seguia na calçada atrás dela, de pé e totalmente vestido. Rachel sacudiu a cabeça, tentando descobrir o que acabava de acontecer. Uma fantasia... Era a única explicação.
Exceto o fato de fantasiar com o Nathan Cross não tinha nenhuma explicação possível. Quase não o conhecia.
Mas tinha sido tão intenso. Tão real. Seu corpo seguia faminto por esse homem com tanta intensidade que era equiparável a seus sonhos mais eróticos. Estava úmida e preparada para ele, seu sexo ardia e ele nem sequer a havia tocado, exceto em uma estranha fantasia.
Ou era algo mais?
Estava a três quadras de distância quando seu corpo voltou para um estado relativamente normal e foi consciente de que não tinha perguntado como a tinha encontrado no bar, nem sequer como tinha sabido que tinha problemas.
Nathan ficou olhando o táxi de Rachel até que desapareceu entre o tráfico. Depois, caminhou pela calçada como um possesso.
Ou um maldito.
Com os ombros tensos e a pernadas, separou de um empurrão a um surpreso pedestre. O grito indignado do homem quase não chegou aos atormentados ouvidos de Nathan. Toneladas de energia ferviam em sua cabeça. A eletricidade queimava as extremidades, fazendo que seus músculos se contraíssem e convulsionassem. O antigo cântico rugia em seus ouvidos.
E Unri Almasama
E Unri Almasama
Calli, Calli, Callio
Somara altwunia paximi
O Despertar quase tinha chegado. A visão de uma navalha junto ao pescoço de Rachel tinha desatado seus instintos protetores e tinha despertado à besta. O beijo tinha cozido o sangue.
Tinha sido muito difícil controlar a mudança nesse momento, mas quando esteve o bastante perto para cheirar sua essência, gravitando sobre ela como um leão que toma posse da leoa, e depois a olhou e viu em seus olhos, e em sua mente, a mesma excitação, tinha sido quase impossível não ceder diante da magia e arrastá-la até sua guarida.
Os corpos entrelaçados que Rachel tinha visto enquanto suas mentes estavam unidas não eram nada em comparação com a realidade do que queria fazer com ela. A ela.
Uma nova onda de magia percorreu suas veias. As células começaram a modificar-se, a trocar de forma.
Apertando com força os dentes, forçou-se a deixar de pensar em Rachel Vandermere, baixou a cabeça e caminhou pela calçada com ainda mais determinação. Quão único pensava era chegar em casa, a seu santuário, embora sabia que ali não encontraria mais paz que na rua.
O que tinha feito oferecendo-se a ajudá-la? Não podia dizer que o tinha feito pelo Teryn. Não era o peão de Teryn.
Não, era o bastante honesto consigo mesmo para admitir que tinha se alegrado em ter uma desculpa para voltar a vê-la, para passar um tempo com ela, inclusive embora cada minuto que passasse fosse pura tortura.
Cada vez que a olhava, lembrava-se de tudo o que não podia ter: uma casa, uma mulher, amor para toda a vida. Sabia que era um tolo por desejar essas coisas. Era um gárgula.
Mas também era humano. Tinha nascido de uma mulher humana. Tinha necessidades humanas. Um amor humano pelas coisas bonitas. Pelas mulheres bonitas.
Eis aí o problema.
O impulso dos gárgulas por acasalar, a magia que assegurava a propagação da espécie, corria com força no mais profundo de seu ser, igual em todos os de sua espécie. Como podia lutar contra uma maldição que tinha apanhado a sua gente fazia mil anos?
Como podia passar um tempo com o Rachel sem tomá-la? Como romper o voto que tinha tomado por vontade própria?
Nathan elevou a vista e se encontrou junto a seu apartamento, embora não tinha nem ideia de como tinha chegado até ali. Entrou e fechou a porta atrás dele, enquanto seu sangue fervia e borbulhava por causa do conflito interno. Incapaz de acalmar seu corpo alterado, ficou a caminhar junto à janela. Ao outro lado da sala, chamaram-no os livros. A busca de uma maneira de terminar com esta maldição de uma vez por todas manteria ocupada a cabeça um tempo, sossegaria os cânticos rituais, mas agora não podia trabalhar. Nem sequer podia estar quieto.
A energia de seu interior precisava ser liberada.
Olhou ao exterior, sentindo a chamada do escuro céu. Todas as fibras de seu ser queriam despertar a besta do interior, queriam voar através das negras nuvens. Todas as células de seu ser queriam caçar.
Possivelmente inclusive encontrar o desgraçado que tinha posto a navalha no pescoço de Rachel e assegurar-se de que não voltaria a fazê-lo. Inclusive podia saborear o sangue desse imbecil na boca.
Começou a respirar mais fundo. Fechou os punhos com força.
Não. Não ia fazê-lo.
O feitiço não o controlava. Não permitiria que o controlasse.
Forçando seus dedos para que deixassem de formar punhos, abriu a gaveta inferior de seu armário, tirou uma espada que guardava desde tempos antigos e que sempre deixava para poder encontrá-la vida após vida. Era agradável sentir seu peso na mão, era sólido. O frio punho de latão absorvia parte do calor de seu corpo.
Molhou o polegar e o passou com suavidade pelo fio, depois balançou a espada, provando seu equilíbrio. A folha cortou o ar produzindo tênues sons.
Depois de apoiar a espada sobre seu corpo, tirou a camisa e se dirigiu para o centro da sala para ter espaço.
Esta noite, não sairia de caça. Não lutaria e não mataria... Ao menos não um humano, sem importar quanto o merecesse.
Em vez disso, desafogaria de toda a raiva sobre quem o merecia de verdade. Cortaria a rodelas e trituraria ao objeto de seu ódio até suar sangue, até que seus músculos doessem e as pernas não respondessem devido ao cansaço. Mataria Romanus, acabaria com o sacerdote que tinha amaldiçoado seu povo mil anos atrás.
Ou ao menos a imagem dele que Nathan sempre levava na cabeça.
O Lincoln negro de Nathan entrou em uma praça de estacionamento situada frente ao hotel exatamente às 12:58 e trinta segundos. Chegava bem a tempo.
É o que tinha pensado Rachel. No transcurso de sua carreira na Interpol, tinha aprendido a conhecer às pessoas bastante bem. A alguns de seus colegas gostavam de pavonear-se e falar da “intuição do policial”, mas em realidade não era mais que lógica.
Como um grande aficionado à arte, Nathan apreciava os detalhes. Como professor universitário, estava acostumado a levar um horário concreto. Não teria conseguido um diploma de professor em uma universidade da reputação da Universidade de Chicago com trinta e quatro anos chegando tarde as aulas.
Além disso, ao ser o tipo de homem que se apresenta nos bares como o príncipe valente para salvar a honra da dama, tanto se ela quiser sua ajuda como se não, tinha que ser um maníaco do controle.
Tudo isso levava a uma pessoa pontual.
Por não mencionar intensa, terrivelmente arrogante e sexy como nenhum outro.
Saiu do estilizado sedan com a graça de um enorme gato, a impressionante presencia de um macho alfa orgulhoso. O lobby do hotel estava bastante cheio de gente, mas diante dele se abriu um caminho como o Mar Vermelho diante de Moisés. Nathan era o tipo de homem que outros, inclusive os outros machos dominantes, ficavam de lado para deixá-lo passar.
A Rachel fez um nó na garganta. Seu modo de andar, decidido e masculino, acelerava seu coração. Em realidade, ficou a arrumar o cabelo, penteando a franja sem dar-se conta.
Maldição, tinha que se controlar. Tinha que tirar da cabeça essa atração física que sentia para ele. Tinha um trabalho que fazer. Uma missão de toda uma vida para cumprir.
Não podia permitir o luxo de se distrair. Estava mais perto que nunca das respostas que tinha procurado toda a vida, podia senti-lo. Não ia perder a oportunidade de apanhar um monstro como o que tinha matado seus pais porque não era capaz de se concentrar.
Seus olhos pousaram nesse forte peito e baixaram até a cintura e os quadris perfeitamente formados, até chegar às musculosas coxas que marcavam no tecido das calças cada vez que dava um passo decidido. Também se fixou nas partes corporais situadas entre as coxas.
Seus olhares se encontraram.
Maldição tinha que se controlar.
Não era certo. Não tinha que pensar em se controlar, em controlar nada.
—Está bem? — Nathan se deteve frente a ela e percorreu todo seu corpo com o olhar.
—Sim— Conseguiu dizer Rachel. Clareou garganta — Por que pergunta?
—Estremeceu como se te doesse algo quando cheguei.
—Ah, sim? — Não estava doente. Quente possivelmente, mas não doente.
Esboçou um sorriso que esperou que ocultasse o caótico movimento dos hormônios que se revolviam dentro dela e se dirigiram ambos para o carro dele.
—Deve ser o pescoço. Parece que o travesseiro do quarto é de concreto. Está preparado para começar? Estamos esbanjando o dia.
O enorme carro emitiu um assobio e se acenderam os pneus traseiros enquanto ela se dirigia para a porta do passageiro. Ouviu que Nathan se aproximava a toda pressa, mas abriu a porta antes que ele pudesse abrir para ela. Pareceu um pouco ofendido quando subiu ao assento do motorista e pôs o carro em marcha.
“Acrescenta boas maneiras à lista”, pensou, e mordeu o lábio inferior para não mostrar um sorriso. A mãe do menino o tinha educado bem, fosse quem fosse. Então, Rachel se perguntou quem seria sua mãe.
Brincando com o cinto de segurança para evitar ter que olhar a esse precioso rosto, perguntou:
—Nasceu em Chicago, não é?
—Sim.
—Vivou aqui toda a vida?
—Sim.
—Seus pais seguem vivendo aqui também?
—O que é isto, um interrogatório?
Levantou uma comissura do lábio realizando uma careta de suspeita. Assim era um tanto resistente a falar da família.
—Só era para falar de algo. Vamos passar muito tempo juntos.
—Espero que nem tanto.
—Certo. — Desta vez, o gesto não era uma careta divertida. Isso não era boas maneiras.
Nathan suspirou e flexionou os dedos sobre o volante.
—Não pretendia te ofender. É que... Estou ocupado. Tenho que preparar aulas e corrigir exames.
—Claro, imagino que odiaria perder toda essa emoção por algo tão aborrecido como ajudar em uma investigação da Interpol.
Nathan a olhou com os olhos entreabertos.
—Tenho que avaliar uma coleção de antiguidades que sairá a leilão público em Michigan para um possível comprador.
Rachel não se incomodou em responder a essa desculpa.
Nathan respirou fundo.
—Olhe, tenho...
—Uma vida? — Rachel elevou as sobrancelhas e o olhou. Já não o via tão atraente agora que estava dizendo que não tinha tempo para ela, mas ao olhá-lo seguia sentindo uma pontada no ventre — E acha que eu não?
—Eu não disse isso.
—Não foi preciso. — Apertou os lábios formando uma fina linha e fixou o olhar à frente — Acha que é uma busca inútil, não é?
—Estou aqui, não? — Seus olhares chocaram como um par de pratos de latão.
Rachel abriu a boca para dizer que não tinha que ficar. Se estava tão interessado em preparar as aulas ou corrigir exames, podia ir e fazê-lo. Mas fechou a boca sem pronunciar palavra.
Tinha muito medo de que ele partisse.
Sentiu uma pressão no peito. Sua descabelada atração por volta dele parecia agora uma tolice. Estava claro que o interesse não era mútuo.
Nathan freou muito em seco à saída do estacionamento, com o que Rachel se viu empurrada para o painel. Pôs uma mão para frear o impulso.
—Onde se supõe que vamos? — Perguntou Nathan.
—Onde poderia estar Von. Alguma sugestão?
—Seu apartamento?
Rachel sacudiu a cabeça, sentindo-se mais forte agora que falavam de um tema seguro: o trabalho. Sentiu como se introduzia na onda da investigação.
—Já estive ali. Seu companheiro de apartamento disse que fazia dias que não via Von, e o quarto dele não parecia ter sido tocado em dias.
—Entrou?
Rachel sacudiu a cabeça.
—Não sem uma ordem. Olhei pela janela.
—Von vive no terceiro andar.
—Subi pela escada de incêndios. E pensei que não quase não conhecia Von.
Nathan encolheu os ombros, mas não foi um movimento tão descuidado como pretendia ser.
—Também estive em St. Michael. — Estas palavras fizeram que Nathan a olhasse com interesse. Interessante. Tomou outra nota mental e prosseguiu, pensando em que era o momento adequado para provar — O diretor foi bastante educado, mas não me deu nenhuma pista. Por certo, prepara um chá de erva-cidreira muito bom. Von tinha trabalho?
—Trabalhava de vez em quando, acredito. Quase sempre, trabalhos físicos, em armazéns ou na construção quando podia fugir das normas do sindicato.
—Nossa. Pagamentos em dinheiro, claro. Tem sentido. Seguro social, nunca apresentou uma declaração da renda. E sua família?
Um carro tocou a buzina atrás deles, e Nathan se meteu pela Lower Wacker Drive para deixá-lo passar.
—Seu pai morreu quando Von tinha uns doze anos. — Olhou a ambos os lados com sarcasmo — E sei por que eu era membro do conselho de administração de St. Michael. Inteiramo-nos quando um de nossos estudantes fica órfão.
Rachel assentiu, perdida em seus pensamentos.
—O diretor do St. Michael se transformou em seu tutor legal. Onde estava sua mãe?
Nathan voltou a encolher os ombros. De forma artificial de novo.
—Nunca ouvi nem a ele nem a seu pai falar dela. Se estiver viva, duvido que esteja em Chicago.
Rachel se apoiou no assento de couro.
— Assim só podemos nos limitar a percorrer as zonas pelas que possa ter passado e esperar que alguém o reconheça.
— E que estejam dispostos a entregá-lo, se o conhecerem.
Agora tocava a Rachel suspirar. Em quantos lugares podia esconder um jovem de dezoito anos em uma cidade como Chicago?
Muitos.
Mas é possível que tivessem sorte.
— Suponho que podemos começar pelo local em que vive. Alguém tem que conhecê-lo no bairro. — Olhou a Nathan de maneira especulativa — Isto poderia nos levar bastante tempo.
Nathan manteve a boca fechada. Conduziu sem dizer nada. Quando girou por uma curva umas seis ou sete quadras mais à frente, perto do edifício do apartamento de Von, voltou-se para Rachel e falou.
— Olhe, sobre antes... — Sua voz era suave, conciliadora, mas seus olhos não mostravam nenhuma emoção, como se tivesse fechado uma porta entre o mundo exterior e seus sentimentos, deixando-a a ela fora.
— Não tem que exp...
— Eu... Nunca conheci minha mãe. Meu pai faleceu justo antes de meu nono aniversário.
Uma sensação de empatia percorreu o corpo de Rachel e liberou a pressão que tinha estado sentindo no peito. Sabia o que era perder aos pais.
— É que me pegou despreparado. — Terminou — A família é um tema doloroso para mim.
Como parecia sincero, e todos os nervos de seu corpo pareciam disparar ao mesmo tempo sob seu penetrante olhar, Rachel não pronunciou o comentário sarcástico que tinha ocorrido e mordeu a língua.
Sentiu um picar na pele. Parecia que os seios inchavam e os mamilos puseram duros. Um quente líquido a percorreu por dentro.
Tanto trabalho para tentar esquecer de sua atração física para ele e com um simples olhar voltava a se desfazer.
Não podia deixar de lado nada relativo a Nathan Cross, nem seu grande respeito, nem sua curiosidade e, sem dúvida, tampouco sua atração. Sua reação diante ele se produzia mais à frente do controle consciente. A única pergunta era se poderia resistir até acabar o trabalho, até encontrar as respostas que necessitava e se mandar dali.
Pensando que as probabilidades não iam a seu favor, mas determinada a provar, tirou uma fotografia de Von Simeon do bolso, apertou os dentes e abriu a porta do carro.
— Aceito suas desculpas. Agora, nos ponhamos a trabalhar.
Capítulo 10
Depois de um comprido dia em busca de alguém a quem não queria encontrar, Nathan viu como Rachel cruzava a porta de vidro para o lobby do hotel Wyndham. Não se atreveu a acompanhá-la mais à frente. O mero feito de estar perto dela no carro e fora, na calçada toda a tarde já tinha sido bastante duro. Acompanhá-la até a porta de seu quarto e partir, era pedir muito a um homem. E muito menos a um dos Gargouillen. Afastando o olhar do traseiro das calças jeans, tirou o celular do bolso e marcou o número que se sabia de cor. Connor Rihyad respondeu depois do primeiro tom.
—Me deixe falar com o velho. — disse sem preâmbulos.
—Já não é membro desta congregação. Supõe-se que não... — Nathan apertou a mão no aparelho de plástico.
—Veio me ver antes e sabe bem. Passe-me a ele.
Houve um momento de dúvida, seguido pelo som do telefone ao trocar de linha.
—Fala. — O Velho nunca foi muito formal. Igual a Nathan.
— Já encontrou Von?
— Não.
Nathan amaldiçoou.
— Não sei quanto tempo posso ter até que encontre sua pista.
— Encontraremos logo. Temos gente buscando.
Nathan fez uma pausa e depois grunhiu.
— Connor? Não encontraria seus ovos nem com as duas mãos.
— Ocorreu algo que possamos utilizar?
— Não — Admitiu a contra gosto. Depois, foi consciente de que a estava defendendo — É obvio, a desviei de qualquer pista.
Estranhamente, deu-se conta de que não gostava de mentir sob nenhum conceito. Disse que acreditava que Von tinha amigos em um bairro de casinhas bem alinhadas a uns poucos quilômetros de distância. Passaram duas horas fazendo campanha pela vizinhança e interrogando às senhoras mais velhas. Então, em um momento de desespero, disse que Von gostava de apostar nos cavalos e a levou até o Arlington para mostrar uma fotografia dele pelo local de corridas.
Ela tinha acabado o dia desanimada e Nathan sentiu mais remorso que culpa até que, com a cabeça alta, ela disse que estaria pronta para começar de novo na seguinte tarde quando Nathan terminasse suas aulas. Até então, consultaria seu computador para seguir com a batida de pistas sobre o cumprimento das leis nas bases de dados na Internet.
— Talvez devesse deixá-la partir e seguir seu rastro.
— Deixar que nos leve até o Von? — Um calafrio de alarme subiu pela espinha.
— Disse que era uma boa investigadora.
— E é. — Respondeu automaticamente. Depois se arrependeu. Não sabia muito bem por que, mas não gostava de onde isto o estava levando.
— Tem acesso a informação que não temos.
— O que acontecerá realmente se o encontrar?
— Se assegurará de que não seja assim. — Seu tom baixou ao nível de uma doce coação — Se não, terá que arcar com as consequências.
Nathan sabia o que Teryn queria dizer. Substituiria as imagens de Von em sua mente por algo diferente. Algo corriqueiro.
Uma gota de suor saiu de debaixo do cachecol de lã que Nathan levava a pescoço. A lã picava. A alteração da memória (uma forma de hipnose reforçada pela magia antiga dos gárgulas) era difícil no melhor dos casos. Não estava seguro de que fosse possível com Rachel. Quando ocupava seus pensamentos, tinha muito pouco controle sobre as imagens que compartilhavam. Encontrava-se em um poço de sensualidade, de lençóis enredados e pele quente. Encontrava-se afogando na suavidade de seus seios cremosos, sua carne feminina molhada, quente e escorregadia. Incapaz de lutar contra as correntes do desejo nem de resistir à atração do sexo. Incapaz inclusive de inspirar ar para seus pulmões, pelo concentrado que estava nela, por tê-la (e não o preocupava). Se não tivesse respirado outra vez, não teria se importado nesses momentos.
Não deveria ser assim. Certamente, não tinha sido assim no passado. Pensava em outras mulheres. Plantava outra parte de si mesmo nelas além de seu pênis e semeava pensamentos.
Nunca tinha sido tão difícil manter o controle das imagens que se formavam entre eles como com Rachel, e isso que nem sequer tinha feito amor ainda.
Ainda?
Jamais. Nunca tinha feito amor e nunca o faria, recordava a si mesmo, sacudindo o sonho de cima.
—Este jogo é perigoso, Teryn.
—São tempos perigosos.
Nathan não pôde pensar em uma resposta para isso. No fundo escutou o tinido de porcelana e soube que Teryn estava tomando seu lanche.
—Sinto falta de seu chá de erva-cidreira. — Admitiu.
—E eu sinto falta de compartilhá-lo contigo. Talvez quando isto termine.
—Não — Nathan desejou não ter aberto essa ferida em particular — Não diga isso.
—Algo que se faz pode se desfazer, Nathan.
—Exceto esta fodida maldição.
—Alguns a consideram uma bênção.
Nathan fechou bem os olhos.
—Encontre o Von. Rápido.
Desligou o celular, jogou o casaco ao redor dos ombros e olhou para a luz de cima na torre norte de St. Michael, onde estava o escritório de Teryn. Seu olhar se dirigiu para os contrafortes e as estátuas desmoronando que os adornavam, as criaturas macabras, com misturas de traços humanos e animais e com olhos de pedra.
Deu a volta, colocou as mãos nos bolsos e se dirigiu para casa.
E uma merda “uma bênção”.
Teryn voltou a deixar o telefone em seu lugar e esperou um momento para reunir forças antes de voltar para ritual dos preparativos que a chamada de Nathan tinha interrompido. Estava cansado. Era como se sua energia se foi derramando pouco a pouco nos últimos meses. Anos, em realidade, desde que Nathan se foi.
Desde que o excomungou.
A decisão pesava muito sobre ele, apesar de que tinha sido pelo bem da congregação. Sua gente não podia permitir a divisão que as crenças de Nathan estavam causando. Talvez fosse uma coincidência que este esgotamento tivesse chegado pouco depois de que Nathan partisse. Talvez se deu conta do engano que tinha cometido, ou talvez simplesmente estava ficando muito velho.
Fosse qual fosse a causa, não se podia permitir estar a menos do cem por cem de suas forças com a temível tempestade que notava a distância, cada vez mais poderosa. Cada vez mais próxima.
Com um suspiro, levantou da poltrona da mesinha do telefone. Atravessou o grosso tapete tibetano para a cômoda de antiquário e se estudou no espelho. Sua compleição parecia calcária. Logo, sua pele seria tão pálida como seu cabelo. Suas bochechas se afundavam e seus ombros se encurvavam. Suas delicadas mãos tremeram enquanto tirava objeto a objeto sua roupa moderna e a colocava em cima da cômoda para lavá-la mais tarde.
Nu, verteu água de uma jarra de cerâmica em uma terrina pequena e recitou um breve salmo de purificação sobre a água do banho cerimonioso. Cansado ou não, essa noite devia proceder com o ritual, tal e como o tinha feito durante as últimas três noites.
Jogando os ombros para cima tanto como pôde (uma pagã amostra respeito por volta de seu deus e sua deusa durante o ritual em todos os sentidos, incluído o de ter uma postura correta), molhou uma esponja de coral na água clara e a esfregou contra sua testa e depois em seu peito.
—Bendita seja minha mente. — Disse, com os olhos fechados, movendo os lábios, mas sem emitir som — Assim se encha de sabedoria. Bendito seja meu coração. Assim se encha de amor.
Seu pulso começou a acelerar-se enquanto sentia a magia antiga filtrar-se dentro dele. Repetiu o ritual limpando os pulsos com outra frase cerimoniosa e depois dirigiu suas mãos para suas genitais.
—Bendita seja minha natureza. Assim seja fértil e produza beleza.
Enrugou a testa. Sentia como se seu sangue vital não lhe pertencesse. O ritmo das pulsações tinha marcado outro. Pelo deus e a deusa.
Um momento de culpa o assaltou enquanto terminava de limpar os joelhos e finalmente os pés. Uma vez, Nathan e ele tinham realizado estes rituais juntos. Tinham estudado os textos antigos, praticado, posto em comum fragmentos de lembranças de suas primeiras vidas e rejuvenescido sua magia pagã.
E foi uma magia poderosa.
Uma vez renovada sua fé nas deidades, viam-se capazes de realizar proezas incríveis. Não tinham encontrado o modo de revogar o feitiço que tinha feito assim, como Nathan teria desejado, mas tinham aprendido a evocar o vento e a chuva. Curaram as enfermidades leves um do outro e haviam trazido para a memória as visões.
Tinham visto o passado, o presente e inclusive vislumbrado o futuro.
Por que Teryn então não podia ver o mal que se aproximava?
Ao tirar uma simples parte de tecido de algodão da gaveta superior e colocar a malha grossa sobre a cabeça, desejou que Nathan estivesse ali para ajudá-lo neste ritual. Juntos eram mais fortes.
Mas tinha perdido Nathan. Não podiam arriscar-se a encontrar tão logo. Se a congregação se inteirasse, perderiam a fé em seu líder.
Se dessem conta de que estava levando a cabo rituais pagãos violando os votos cristãos, desterrariam-no... Ou fariam algo muito pior. Teryn tinha ouvido falar de outras congregações cujos devotos punham em dúvida o legado. Não tiveram a sorte de ser desterrados.
Alguns tinham sido queimados.
Teryn fechou a vestimenta com uma corda negra, abriu a gaveta inferior do escritório e deslizou uma parte quadrada dobrado de seda branca para tirar uma caixa de madeira. Descalço e vestido só com algodão fino, subiu a caixa dois andares para o teto da torre norte.
A pedra daqui de cima formava parte da estrutura original construída na década de 1890. O frio era tão intenso debaixo de seus pés descalços, que parecia que queimasse. Uma rajada de vento entrou em sua pele desprotegida e um calafrio desceu por sua coluna.
Decidido a não voltar, fechou com chave a porta da escada atrás de si se por acaso o descobriam, colocou a caixa em um banco de pedra e foi para a parede do fundo para abrir a jaula das pombas.
—Olá, amigas.
Uma dúzia de pássaros cinza e negros grasnaram e bateram as asas, assustados e depois acalmados para ouvir uma voz familiar e tranquilizadora. Dedicou-se a jogar umas quantas sementes e, depois, voltando para banco, ajoelhou-se diante o altar provisório e abriu a caixa. O granito rugoso machucava seus joelhos e o vento seguia açoitando seu corpo, mas ele não prestava atenção. Tão somente a previsão da cerimônia que se aproximava ia aumentando seu nível de energia.
Preparou o altar com velas e incenso, um cálice de vinho, água em uma terrina de pedra, uma bolsa de sal, uma pena de um dos pássaros, sua faca de rituais e estatuetas do deus e da deusa. Segurando o sal sobre sua cabeça, inclinou-se diante a lua e tirou suficiente para formar um círculo ao redor do lugar de adoração antes de abrir os braços para chamar o primeiro quarto.
—OH, Guardião do norte, espírito da terra, solicito sua presença aqui esta noite. Seja bem-vindo em paz. Bendito seja!
Ato seguido, voltou-se para o sul e deu a bem-vinda ao espírito do fogo, depois para o leste e o oeste e a seus associados elementos, antes de ajoelhar-se de novo para o assunto do ritual em mão. Já podia sentir a energia elevada palpitando dentro dele. Seu corpo tremia, mas sua mente ardia. A magia vivia e respirava (rugia) dentro dele. Teria se alegrado de sentir que a fadiga o tinha envolto, mas com a energia positiva da magia, uma força escura crescia dentro dele. Podia-a sentir nos bordos exteriores de sua consciência, mas não podia ver.
Maldição, como podia lutar contra um inimigo ao que não podia ver? As mãos tremiam pela frustração e pelo intenso frio que conhecia seu corpo, embora sua mente o rejeitasse, tirou o objeto final, uma peça de lápis lázuli da caixa e a deixou com cuidado na terrina de água.
—OH, queridos deus e deusa, me emprestem seus olhos para que veja o perigo que nos ameaça. Me emprestem sua sabedoria para que o reconheça. Me emprestem sua força para vencê-lo. Todo o seu é puro e bom. Esta noite procuro aquilo que não lhes pertence. Me mostrem o impuro. Me revelem seus malvados inimigos para que proteja a seus filhos do que se aproxima. Benditos sejam!
A luz da lua, o presente da deusa, brilhou da superfície ondulada do líquido. A pedra azul de debaixo brilhou como se estivesse acesa por dentro. Quase imediatamente, a visão de Teryn começou a trocar. Sua perspectiva variou até que sentiu como se estivesse olhando sua cidade de uma grande altura, tão alto que a suave curva da superfície terrestre era visível. Podia ver a água negra do lago Michigan e a borda de mais à frente. Seu olhar viajou ao longo de centenas de quilômetros para o norte onde se enxameava uma massa negra de malevolência.
Apertava uma fita que levava ao redor do peito. De repente, o vento frio tinha dentes. Rompia-lhe a pele enquanto a energia que tão somente momentos antes o invadia por dentro, piscava, lutando por sobreviver como uma vela contra o vento.
Teryn respirava com dificuldade. De novo, desejou que Nathan estivesse ali para somar sua força a de Teryn, mas tinha que forçar a saída de sua mente desse pensamento. Nathan tinha ido. Teryn estava sozinho.
Só diante uma força maligna que intuía que o destruiria à mínima oportunidade.
Apertou os lábios para abortar o lamento que ameaçava escapando. Fechou os olhos contra a dor e saltaram duas lágrimas que deixaram um rastro gelado em suas bochechas.
Mentalmente, continuava em busca da visão, continuava sua oração. Cuspia cada palavra com um ritmo constante concentrando-se em pronunciar corretamente e na ordem perfeita.
—OH, deus e deusa, me emprestem seus olhos para que veja o perigo que ameaça a seus filhos. Me emprestem sua sabedoria.
Suas pausas eram irregulares e geladas. O vento batia forte. Inclusive as pombas grasnavam pelo mal-estar, mas Teryn continuou. A nuvem escura do leste borbulhava e fervia, embora não se fez mais nítida. Teryn ainda não podia pôr rosto a seu Nêmeses, nem nome.
Jurou que ficaria aqui até que pudesse. Procuraria até o amanhecer, se fosse necessário e, depois, outra vez de noite e a seguinte noite. Se o esforço drenasse até sua última gota de força e deixava com apenas uma carcaça na pedra, que assim fosse a vontade do deus e da deusa.
Ou conheceria seu inimigo ou morreria.
Rachel escutou a voz de Nathan antes de abrir a porta do auditório 411-B do edifício da Universidade de Belas artes de Chicago. A voz de tenor vibrou dentro dela como um cabo muito tenso. Produzia um zumbido em seu peito.
Quadrando os ombros, puxou a porta de latão e esgueirou por volta da primeira fila sem que ninguém se desse conta.
Supunha-se que ela não devia estar ali. Ele tinha prometido que a recolheria no lobby de seu hotel depois de sua última aula ao meio dia, tal e como tinha feito nos dois últimos dias.
Mas estava cansada de estar presa nesse quarto insosso com essas típicas cortinas e essa colcha cinza. Estava farta das más imitações de Renoir nas paredes, das reposições de Seinfeld na televisão e do computador portátil que, até essa manhã, negou-se a oferecer alguma pista sobre o paradeiro de Von Simeon, apesar da quantidade de base de dados que tinha consultado.
Hoje tinha feito um grande avanço. Encontrou seu primeiro fio de investigação concreta em um arquivo de documentos estaduais escuros e estava preparada para segui-lo.
Quase termina por perseguir essa informação sozinha, mas por que fazê-lo se podia compartilhar sua satisfação? Esse osso tinha sido duro de roer, e ela merecia um pouco de reconhecimento. Queria bater no peito, dar o grito do Tarzan e que alguém a felicitasse por seus esplêndidas dotes investigadoras.
Mas não um qualquer. Nathan.
Com Nathan, inclusive esta pequena vitória pareceria maior. De algum jeito, tudo parecia... Mais rico quando ela estava com ele. Estar feliz significava estar mais feliz. Divertido era mais divertido e o sexy era definitivamente mais sexy. Ele era estimulante. Excitante. Despertava nela cada um dos sentidos.
Torceu seus lábios com um sorriso irônico. Despertava?
Sim, senhor, totalmente.
Mas se ao menos pudesse saber do que se tratava. Dizer que ela sentia curiosidade por esse homem seria um dos maiores eufemismos da história. Dizer que ela estava louca por ele, muito superficial, muito grosseiro.
Sentia algo que não havia sentido nunca antes.
Algum tipo de conexão profunda. Não tinham se conhecido até a noite do baile de gala do museu, mas parecia como se o conhecesse de toda a vida. Reconhecia-o... Mas de onde?
Era um sentimento perturbador. Inquietava-a. Punha-a nervosa. Sua mente não parava de pensar nele e os nervos não a deixavam tranquila.
De maneira que desistiu. Deu-se por vencida.
Não estava muito segura do que era o que a mantinha sentada em uma aula de história da arte, quando tinha uma boa pista para seguir. Mas ali estava, sentada, sentindo-se um pouco como uma olheira por olhar sem que ele se desse conta. O auditório era o suficientemente grande e estava pouco iluminado e Nathan estava tão concentrado em sua aula que não parecia que tivesse notado sua presença. Deus! Virtualmente estava perseguindo esse homem.
Entretanto, ela era uma policial, de modo que poderia estar diante um caso de investigação. Isso a desculparia. Satisfeita, afundou-se na cadeira de plástico duro a escutar.
Usava um terno azul marinho e uma camisa azul claro que teria sido engomada fazia umas quatro ou cinco horas. Agora, as mangas estavam arregaçadas até os cotovelos e o nó da gravata pendurava no terceiro botão aberto por debaixo dela. Dava uma aula de cerâmica, falava das belas peças de Jingdezhen kiln no Japão ao redor do ano 800 D.C. Deu um passo para a luz do projetor que mostrava imagens aumentadas de copos e taças sobre a parede atrás dele, e a luz diluía sua compleição, embora parecia obscurecer seus olhos já escuros. Mais penetrantes.
Um espinhoso calafrio de consciência correu por sua coluna vertebral e apoiou a cabeça sobre o respaldo traseiro e fechou os olhos. Sua voz se precipitava sobre ela como lava pela greta de uma montanha, grossa, pausada e quente.
Suspirou silenciosamente. Além de tudo, a face, o corpo, a mente aguda também tinha que ter uma grande voz.
Enquanto a tensão se filtrava para fora, esqueceu-se do significado das palavras e só escutou o ritmo e o tom. Era um bom professor. Variava a velocidade de seu discurso para manter a atenção do público. Realizava perguntas de resposta rápida aos estudantes e, às vezes, expunha perguntas próprias. Chegados a este ponto, não se surpreendeu ao notar que sua voz era tão curiosamente familiar como todo o resto dele.
Suspirando pelo mistério que não acabava de desentranhar, deixou de tentar situar sua voz e simplesmente escutou. Talvez esse homem fosse um parente longínquo esquecido ou algo parecido?
De forma espontânea, formou em sua mente uma imagem de seu pai. Através dos olhos de uma menina de seis anos observou como ele a olhava enquanto recolhia uma concha, poucos meses antes que Levi nascesse. Rangeu os dedos dos pés na areia molhada enquanto o crivava de perguntas.
—Por que o interior de uma concha soa como o mar? O que ocorre aos animais que vivem dentro dela quando as conchas chegam à praia? As conchas têm bebês como o que vai ter mamãe? Quantas conchas há no mar?
Com os jeans até os tornozelos e a brisa veraneia despenteando o cabelo, papai passeava com ela pela praia agarrados pela mão e respondia a cada pergunta. Podia sentir como as ondas rompiam em seus pés e escutar o canto escandaloso das gaivotas em cima deles. Podia sentir seus pequenos dedos a gosto na palma da mão grande e quente.
A lembrança era assombrosamente clara e terrivelmente dolorosa, no sentido da perda que gerou, tendo em conta que foi o último verão de sua vida que se sentiu completamente segura. Seu último verão inocente antes de conhecer a verdade sobre o mundo e os monstros que perambulam por ele.
Rachel se assustou ao sentir que tocavam seu braço. Abriu os olhos de repente.
Nathan Cross se agachou ao lado de sua cadeira, com seus olhos escuros graciosos e ao mesmo tempo atraentes.
—Sabe? Quando meus estudantes dormem em classe, faço-os vir de pijama durante uma semana.
Rachel esfregou a face com o dorso de uma mão, incorporou-se e engoliu seco. Subiu um calor pelo pescoço ao ver sua camisa muito perto.
— Não... Não estava adormecida.
— Nossa. — Baixou um dos colarinhos da camisa que se levantou. Apertou os dentes para combater o ardor que sentia ao notar como seus dedos tocavam sua sensível pele da nuca — O que faz aqui? — Perguntou sem parecer ser consciente de sua reação diante ele. Além desse pequeno brilho de satisfação em seus olhos.
Ou era sua imaginação?
Rachel procurou uma resposta a sua pergunta. O que estava fazendo ali? Não tinha se perguntado o mesmo fazia uns minutos?
A resposta veio como um jorro de consciência feminina, em uma espiral de excitação sexual no coração enquanto sua confusão provocava um estranho sorriso nele. Seus dentes resplandeciam, perfeitos e brancos, e seu aroma terroso florescia em suas fossas nasais, fervia o sangue ao recordar o aroma da areia limpa e molhada em que afundava seus pés aquele verão na praia com seu pai.
Ela sabia por que tinha ido ali; porque não podia deixar de vê-lo. Atraía-a de uma maneira que nenhum homem antes o tinha feito.
Tinha tido amantes. Inclusive chegou a pensar que esteve “apaixonada” uma ou duas vezes. Comparada com a atração que sentia para estes dois homens, o que sentia por Nathan era como comparar uma cor clara com um néon.
Não é que estivesse apaixonada por Nathan Cross. Nem sequer podia afirmar que se tratasse de um simples caso de desejo.
O que sentia era algo muito mais primitivo. Uma necessidade instintiva de vê-lo, de ouvi-lo e de saboreá-lo ardia na parte inferior do ventre quando não estavam juntos. Retumbava, rugia e roía em seus ossos como uma besta selvagem faminta até que o único que ocorria era pentear seu cabelo solto e negro com os dedos e esfregar seu corpo contra o dele até que saltassem faíscas entre eles.
— Olá — Saudou ele com a mão frente a ela — Tem certeza que está acordada?
Se deu conta de que a estava olhando de maneira desconcertada e inclusive essa expressão frouxa fez vibrar o ventre como a corda de um arco.
—Eu... Sim, estou acordada — Levantando-se mais, passou a mão pelo cabelo e alisou a roupa. Um calor subia pelo pescoço.
Que demônios estava acontecendo com ela?
Já não era uma adolescente excitada. Tinha um caso no que trabalhar; um caso pelo que tinha sacrificado sua vida e agora estava mais perto que nunca de solucioná-lo. Não tinha tempo para sonhar com sua testemunha estrela.
Mas também tinha perguntas. Perguntas que já não podia omitir por muito mais tempo, como por que parecia que se agudizavam todos seus sentidos quando estava perto dele. Inclusive nesse momento podia cheirar o escapamento do ônibus descarregando passageiros lá fora, escutar o sussurro dos canos de água debaixo do chão. Quase podia saborear o chiclete de hortelã que a aluna que se sentou a seu lado durante a aula e tinha partido fazia dez minutos, tinha estado mascando.
E, sobre tudo, queria saber por que não se sentia sozinha com seus pensamentos quando ele estava perto. Ele não só estava ali, a seu lado, mas também estava em sua mente, como um eco distante.
Mas, como?
Esquecendo-se dele por um momento, relaxou os ombros e abriu sua mente à intrusão. Era uma sensação espantosa, como deixar entrar um desconhecido em casa de noite. Seu instinto natural era lutar contra isso, mas forçou a respiração para ficar quieta e olhou nos olhos, brilhantes e impenetráveis como cristal negro gentil. Formavam-se imagens dela mesma no reflexo. Nua e cheia de paixão, estava entre os braços de Nathan. Ele a abraçava por trás. Suas peles refulgiam com o suor e o cabelo dela caía em cachos loiros sobre seus ombros. Balançou-se como uma cortina diante seus olhos e seu corpo grande se curvou de forma protetora e dominante sobre ela. Com a palma da mão em suas costas a fez inclinar-se para frente. Sua coluna se arqueou. Sua face se esticou de intenso prazer quando deu um olhar profundo por cima do ombro. Lambeu os lábios pensando no que estava a ponto de acontecer.
Na imagem, seus quadris se cravavam em suas nádegas enquanto as mãos dele se estendiam sobre sua cintura, segurando-a perto. Em sua garganta se formou um nó quando se deu conta de que ele... De que os dois estavam... Minha mãe.
Capítulo 11
Nathan separou a mão de Rachel como se o tivesse mordido. Seu sorriso se apagou como a porta da jaula de um animal selvagem que se fecha de repente para encerrar dentro a sua besta interna que desejava sair e arrastar a um disposto casal até sua guarida.
Não custaria muito porque Rachel o estava desejando. Não tinha nenhuma dúvida disso. Maldição, sua mente estava aberta, não estava protegida. A ponte mental se formou entre ambos sem que ele nem sequer decidisse estabelecer essa conexão. Era quase como se ela tivesse iniciado o vínculo, como parecia ter feito antes. Parecia que tivesse chegado a ele com a mente.
Com o desejo.
Mas isso era impossível. Ela era humana. Não havia forma de que pudesse iniciar o vínculo.
Não, a não ser que fosse telepática ou vidente.
Merda. Nem sequer acreditava nessas coisas.
Ou sim?
Deixou escapar o ar e se afastou um passo mais dela.
Sem dúvida, algo tinha passado entre eles. Durante uns segundos, suas mentes tinham estado na mesma sintonia.
Uma sintonia altamente erótica.
Dando-se conta de que se pôs a suar, resistiu à urgência de afrouxar o pescoço da camisa e tentou descobrir o que acabava de acontecer.
Com um único olhar penetrante, foi como se levantou um véu que havia entre ambos, um véu de pretensão. Rachel tinha devotado a oportunidade de desfazer-se da fachada de indiferença, de acabar com a charada da policial curiosa e o bom cidadão que, relutante, mas resignado, ajudava-a. Tinha dado a oportunidade de ser só um homem e uma mulher que fazem o que é natural entre um homem e uma mulher.
Exceto ele não era um homem. E nenhuma mulher, especialmente Rachel Vandermere, ia querê-lo se soubesse o que era em realidade.
Se fosse para escolher, preferia afastar-se nesse momento. Daria as costas e se esqueceria de tê-la conhecido. Mas não tinha escolha. Seu caminho tinha sido marcado mil anos antes, e ele tinha que segui-lo, por muito que pesasse. A existência de sua gente podia depender disso.
Amaldiçoou a si mesmo por preocupar-se com os que o tinham desprezado, mas sua rejeição não eliminava sua obrigação. Não permitiria que sua congregação fosse perseguida quando eles não tinham culpa do que se tornaram. No que se converteram.
O filho de puta do Romanus era o que merecia ser castigado, não os inocentes cidadãos de Rouen... Ou a reencarnação de suas almas.
Havia dito a Teryn que vigiaria Rachel, assim que a vigiaria.
Mas só isso. Não a olharia, nem a tocaria nem desejaria partes de seu corpo que desejava tocar e nas que desejava entrar para notar a carne dentro da carne.
Não ia tocá-la.
Embora isso custasse sua prudência.
Rachel se levantou da cadeira, com esses maravilhosos olhos verdes olhando para todas partes menos a ele.
—Tenho uma pista sobre Von. — Disse, soando tão incômoda com o que tinha acontecido como ele. — Pensei que quereria me acompanhar enquanto a comprovo.
Agarrou a bolsa e saiu ao corredor. Separando-se dele. Nathan deveria ter se sentido contente com isso, mas foi justamente o contrário.
—Mas está ocupado. — Disse Rachel — Não deveria ter...
Nathan a agarrou pelo ombro, detendo-a. O estremecimento de Rachel quase o desfez.
—Irei.
—Não tem por que.
—Eu disse que irei.
Parecia que Rachel ia insistir para que ficasse, mas, antes de poder fazê-lo, Nathan tirou o casaco que tinha pendurado do braço e o segurou para que ela colocasse os braços pelas mangas. Suas mãos se roçaram de maneira acidental no pescoço, e Nathan apertou os dentes com força para controlar o prazer do toque.
Se tivesse um pouco de juízo, correria em direção contrária, tanto se sentia alguma obrigação para sua gente como se não. Mas não podia. Estava apanhado por esse incrível olhar verde e esse fantástico sorriso.
Enquanto saía do auditório atrás dela, tentando com todas suas forças não fixar-se na atraente curva de seus quadris, que eram como as ondas da maré, teve a negativa sensação de que esta mulher ia ser sua morte.
Mas, minha mãe, que morte mais doce.
—Reconhece esta garota? — Um calafrio de excitação percorreu a nuca de Rachel. Nathan a estava olhando. Inclusive embora estivesse atrás dela, de pé na entrada do videoclube Prime Time, estava segura disso.
Não era algo que a surpreendesse. Esses impenetráveis olhos negros tinham se cravados nela toda a tarde. Algo tinha mudado nele, disso estava segura. E, fosse o que fosse, tinha-o convertido em alguém tão sociável como um texugo raivoso.
Esteve a ponto de olhar por cima do ombro para confirmar que seguia observando-a, mas se controlou. Depois do incidente no auditório, quando quase tinha tido um orgasmo só olhando-o, não queria voltar a arriscar e enfrentar seus olhos.
Além disso, não necessitava nenhuma confirmação. Não sabia como sabia que a estava examinando quando não via, mas sabia. Seu olhar era tão evidente como uma carícia. Como as pontas de seus dedos deslizando-se pela ligeira protuberância de sua coluna.
Pare já, ordenou a si mesmo. Para.
Ao menos, a frieza dele e a rejeição incondicional dela a pensar em algo remotamente sexual entre ambos, quando podia controlar fazia mais fácil concentrar-se no trabalho pendente.
Voltando a concentrar a atenção na corpulenta mulher asiática situada atrás do mostrador, Rachel deu a foto para que a olhasse mais de perto.
—Viu-a?
A mulher deu uma olhada a Polaroid.
—Possivelmente aqui alguma vez — Disse com um forte sotaque estrangeiro — Compra filme.
—Sabe como se chama?
A mulher sacudiu a cabeça. As agulhas de madeira que sujeitavam um coque de cabelo grisalho na parte posterior da cabeça se moveram de um lado a outro.
—Só sei cara. E filme. Gosta de filmes para garotas.
—Há alguém que trabalhe aqui que pudesse conhecê-la?
A mulher girou a cabeça e gritou algo em japonês. Um momento mais tarde, apareceu um homem de sua mesma idade, mas com muitos quilos menos entrou pela porta giratória que levava a uma sala que parecia funcionar como armazém e escritório. Rachel conteve a respiração, quase sem atrever-se a esperar que o homem pudesse identificar à garota da foto. Levava toda a semana mostrando uma foto parecida de Von a qualquer que tivesse querido olhá-la sem obter nenhum êxito. Tinha caído na desesperança apesar de que sabia que, como investigadora, inclusive o caso que parece mais impossível podia solucionar-se em qualquer momento sem aviso prévio.
Tudo o que precisava era de sorte.
Apesar de sua determinação de não fazê-lo, voltou-se para olhar o Nathan. Era ele seu amuleto da sorte ou sua maldição?
Por muito que tivesse tentado ajudá-la, durante os últimos dias tinha proporcionado mais distração que ajuda. De vez em quando, perguntava-se se estava atrapalhando sua investigação de maneira consciente. Se tentava evitar que encontrasse o Von.
Continuava se perguntando embora manteve estas suspeitas para si mesma. Encontraria Von com ou sem a ajuda de Nathan. Podia desfazer-se dele em qualquer momento, mas se estava tentando sabotar suas pesquisas, não queria que o fizesse a suas costas. Queria o ter lá onde pudesse vigiá-lo.
Mas bem desfrutava vigiando.
Suspirando ao ver que sua mente acabava todo o momento centrada no sexo cada vez que pensava em Nathan, forçou-se para mostrar um sorriso esperançoso ao proprietário do videoclube, quem seguia estudando a foto que tinha entregue. Ele e sua mulher mantiveram uma conversa em japonês.
O coração começou a pulsar mais depressa em Rachel. Quase podia sentir como se esquentava o frio rastro de Von. Em pouco tempo o localizaria, graças a uma velha reclamação de compensação trabalhista rejeitada. Que sorte que o governo guardasse sempre qualquer informação que recolhesse sobre uma pessoa.
Parece ser que Von tinha trabalhado em um trem de lavagem de carros durante um tempo, onde teve a má sorte de que um Suv passasse por cima de um pé. O encarregado o tinha levado a urgências para que fizessem uma radiografia, e algum burocrata aborrecido tinha considerado necessário apresentar uma reclamação diante ao Estado. A reclamação tinha sido rejeitada porque Von não era oficialmente um empregado. Tinha estado trabalhando cobrando em dinheiro e evitando assim ter que pagar impostos.
Mesmo assim, o registro da reclamação seguia aí, e tinha conduzido Rachel até seu chefe, quem tinha estado mais que disposto a identificá-lo quando ameaçou levando-o a julgamento por evasão de impostos e violação da lei do trabalho por não pagar o Seguro Social de empregados sem papéis. O homem inclusive entregou uma foto que tinha sido pendurada no quadro de anúncios da empresa. Na imagem, Von e uma jovem mulher que o chefe disse que estava acostumado a visitar o jovem com frequência estavam abraçados atrás do volante de um Lamborghini que tinha chegado para um trabalho de enceramento no verão passado.
O encarregado não sabia onde podia estar Von agora, nem quem era a garota, mas Rachel tinha o que tinha estado procurando: um fio para puxar. Alguém em Chicago tinha que conhecer essa garota: seu nome, onde vivia, a que colégio foi... Rachel a encontraria, e tinha a sensação de que quando a encontrasse, encontraria também Von.
Por desgraça, não ia acontecer nesse momento. O dono de videoclube sacudiu a cabeça e devolveu a foto a Rachel com o cenho um tanto franzido. Respondeu em japonês, e sua mulher fez de intérprete.
—Sinto muito. Não sabemos nome nem onde encontrar. Garota vem às vezes.
—Veio recentemente?
—Não — A mulher encolheu os ombros — Duas semanas. Ou talvez, três.
Decepcionada mas impávida, Rachel agachou a cabeça e agradeceu sua ajuda ao casal. A foto seguia sendo uma pista sólida, e conseguiria aproveitá-la.
O sino situado sobre a porta tilintou quando Nathan abriu a porta para ela e depois saiu atrás. Rachel estava tão imersa em seus pensamentos que sua mente quase não registrou a corrente elétrica produzida quando seu ombro roçou o peito de Nathan.
—Lojas de bairro, videoclubes, licoreiras, cadeias de comida rápida. — Disse Rachel, movendo a bochecha enquanto pensava. Tinham comprovado todos os comércios do local — Aonde iria um casal de namorados para dar rédea solta a seu amor?
Nathan riu zombador.
— Camelos, apartamentos abandonados, hotéis baratos.
Rachel fez uma careta.
— Procuraremos até no canto mais escondido do bairro, mas não sei... Olhou com dureza a foto e sacudiu a cabeça — Parece uma boa garota.
— As boas garotas não saem com meninos como Von.
— Vamos, não tem lido alguma vez uma novela romântica?
— Não. — Elevou uma sobrancelha — E você?
— Milhares. E me acredite. As boas garotas sempre se apaixonam por meninos maus.
—Possivelmente nos livros.
— A arte é o espelho da vida. — Sorriu de forma travessa, depois voltou a olhar a foto de Von e sua namorada — Sabe aonde quero ir?
Nathan não se incomodou em responder. Sua expressão deixou claro que estava seguro de que ela ia dizer tanto se queria ouvi-lo como se não.
—Ao St. Michael. O homem que o dirige...
Nathan parou abruptadamente, levando Rachel para ele enquanto seguia movendo-se.
—O diretor?
—Teryn Carnegie.
—Sei como se chama.
Rachel perdeu o trem de seus pensamentos durante um instante ao observar a expressão amarga que a mera menção do diretor tinha provocado em Nathan.
—Obviamente, não o associa com lembranças agradáveis.
Com o cenho franzido, Nathan cruzou a intercessão situada frente ao videoclube para o estacionamento onde tinha deixado o carro.
Rachel correu para alcançá-lo.
—O que te passa com esse lugar?
—O que te faz pensar que Teryn pode te ajudar?
Rachel apertou os dentes. O senhor Enigmático e seu costume de responder as perguntas com perguntas estava começando a lhe tirar do sério.
—É responsável pelo bem-estar de uma escola cheia de meninos, assim sem dúvida se produzem topadas com as garotas do bairro.
Nathan olhou seu relógio.
—São mais de cinco horas.
—É um internato. Haverá alguém.
—Tenho uma ideia melhor.
—Qual?
Balbuciando, Nathan brincou com as chaves do carro, depois suspirou e abriu a porta do passageiro a Rachel. Tinha a mandíbula fechada com força, as costas retas e os ombros tensos, e a olhou com olhos impenetráveis.
—Jantar — Disse em um tom que ela não se atreveu a discutir.
Dez minutos mais tarde, Rachel abriu os olhos como pratos quando Nathan parou o carro junto ao meio-fio e entregou as chaves ao manobrista. Rachel ficou sem palavras enquanto Nathan abria o porta-malas e tirava um paletó perfeitamente engomado.
Quando tentou acompanhá-la para a entrada do Olivetto's, por fim foi capaz de falar.
—Não, não, de maneira nenhuma!
—Você disse que íamos jantar.
—Pensei que íamos parar no primeiro posto de cachorros quentes que encontrássemos, não... Não aqui. — Incomodou-a não poder encontrar uma palavra para descrever o lugar.
Rachel observou o tapete vermelho que levava do bordo da calçada até o restaurante, a entrada de mármore iluminada por enormes candelabros e o uniformizado porteiro que esperava na porta para recebê-la.
Ou dar um chute no traseiro.
Nathan tinha tirado o paletó do porta-malas como um mago tira um coelho da cartola, mas ela não levava um vestido de noite na bolsa.
—Em realidade, não tenho tanta fome.
—Mas se não comeu o dia todo.
Rachel cruzou os braços. E os pés na calçada. Nathan entendeu a mensagem e se voltou para olhá-la.
—Não estou vestida para a ocasião.
Nathan percorreu com um olhar de apreciação masculina o corpo de Rachel. A pele de Rachel se esquentou. Deus, se continuasse reagindo diante ele dessa forma, ia ter um ódio de verdade antes que acabasse a semana.
Ainda parecia zangado, mas agora se misturou com uma espécie de excitação de predador que a deixou de petrificada.
—Não tire o casaco até que estejamos sentados. — Disse, dando ao porteiro uma nota de vinte dólares — Ninguém saberá o que usa.
Recuperando o ar quando Nathan por fim desviou o penetrante olhar, ficou olhando com conformismo as calças de pata de elefante de veludo cotelê e as botas que se sobressaíam por debaixo de seu tercã azul marinho.
—Sim, claro.
Mas já tinham entrado antes de poder continuar discutindo, além de que sua cabeça já estava ocupada em outras coisas.
Tinha ouvido falar do famoso restaurante Olivetto's de North State Parkway, mas nunca tinha tido a oportunidade de vê-lo por si mesmo. O tapete era como um leito de musgo embaixo de suas botas. Uns painéis de mogno lavrados recobriam a maior parte das paredes, ligeiramente iluminados pelos mesmos candelabros que adornavam a entrada. Umas preciosas plantas formavam barreiras discretas, com o que cada mesa ficava em uma agradável intimidade. De algum lugar que não via, um quarteto de corda tocava com tanta suavidade que era quase inaudível, mas tampava o tinido do faqueiro de prata na porcelana da China.
E os aromas... Fruto do mar e massa. Magnífico queijo parmesão e cerejas chamejantes.
Nathan se inclinou para sussurrar algo ao maître e entregou ao homem outra nota, um que Rachel suspeitou que era de mais valor que o entregue ao porteiro. Voltou a situar-se junto a Rachel justo quando seu estômago traidor deixou escapar um gemido.
—Me alegro de que em realidade não tenha tanta fome. — Tomou pelo braço e a guiou atrás do garçom.
Antes que ela pudesse pronunciar “opulento”, estavam sentados a uma mesa junto a uma lareira de pedra. As chamas rangiam na lareira, o que lhe conferia muito mais calor à aura da sala. A luz das velas brilhava em um candelabro situado no centro da mesa, seu brilho intermitente se refletia nos abajures de cristal situados sobre eles.
Nathan permaneceu de pé enquanto o garçom separava a cadeira para Rachel e desdobrava o guardanapo de linho sobre o colo. Depois, sentou-se e pediu sem que perguntassem.
—Eu tomarei um Manhattan. Duplo.
Levantou uma sobrancelha e a olhou.
Olhou e pensou que tinha sido muito mal educado. Depois, sorriu com educação ao garçom para pedir desculpas.
—Vinho, por favor. O da casa...
—Traga a carta de vinhos — Nathan estirou a mão e uma carta de vinhos apareceu de um nada. Começou a folheá-la — Tinto ou branco?
—Branco — Respondeu ela, surpreendida de que se incomodou em perguntar apesar de seu mau humor.
—Doce ou seco?
—Seco.
Dobrou a carta e o deixou sobre a mesa.
—O parfait coup du banois. Chateau du Golvie, 1905.
Rachel quase deixou escapar um grito. Seu francês não era tão perfeito como o dele, mas sabia o que tinha pedido... E o que custava. Parece ser que ele se deu conta de que ela sabia. Olhou-a de forma ameaçadora se atrevia a trocar o vinho.
O que estava acontecendo? Levava todo o dia comportando-se como uma barata, mas agora se converteu em alguém do mais insuportável. Rachel tinha os nervos a flor de pele, seu corpo estava a ponto para sair de sua pele. E nem sequer sabia por que.
Inclinou a cabeça e o estudou. A pele tensa na parte superior das bochechas e a atraente mecha de cabelo que caía pela testa aumentou seu alarme interno de amarelo a vermelho. Mas era a maneira em que seus lábios, em geral grossos e sensuais, afinaram-se e curvado para abaixo o que a alarmava de verdade.
Parecia um homem preparando-se para lutar.
Demônios, pois ela estava de humor para a guerra.
Tinha sido ele o que tinha arrastado até uma íntima mesa para dois no restaurante mais exclusivo e romântico, de Chicago. Se não gostava da companhia, era problema dele. Ia ter que aguentar.
Não ia suportar seu mau caráter. Ela também estava bastante nervosa. Muito desequilibrada, também...
Quente. Excitada. Tão cheia de luxúria que doía. Desejava esfregar seu corpo com o dele, colocar a língua na boca desse homem, rodeá-lo com os braços e as pernas, abraçá-lo, e fazer sentir o vazio e doloroso desejo que produzia nela.
Deixou escapar um gemido de frustração. Nathan levantou uma sobrancelha e a olhou como dizendo “O que?”, embora não pronunciou a palavra. Sem fazer caso, Rachel baixou o olhar até os punhos apertados que descansavam sobre seu colo.
A força de sua necessidade por ele a surpreendia. Nunca tinha sido uma amante agressiva, mas bem preferia que fosse o homem quem levasse as rédeas. O que tinha Nathan que a fazia sonhar acordada todo o dia que se esquecia de suas inibições e se lançava para ele de maneira selvagem?
E como ia evitar que seus sonhos a obrigassem a fazer algo que na realidade se arrependeria?
Sua frustração cresceu até ressoar nos ouvidos como o motor de um carro a mil evoluções por minuto.
Era óbvio que ele não se sentia da mesma forma. Nem sequer gostava...
A não ser que ambos os estados de humor, apesar de ser diferentes, tivessem a mesma origem.
Acelerou seu coração. Seus olhares se cruzaram em um instante de segundo. Ele a observou misterioso por cima de seu copo vazio, depois chamou o garçom para pedir outra taça.
Era a atração entre eles só imaginação dela?
Tinha que pensá-lo.
Com um ligeiro movimento de cabeça, desculpou-se e se dirigiu ao lavabo de senhoras. De pé diante do enorme espelho debruado, fez caso omisso do mal intencionado olhar da perfeitamente uniformizada garçonete do lavabo, que olhava com desdém a camisa desabotoada que levava sobre um simples pulôver de pescoço alto, e as botas que calçava. Bom, a verdade é que não tinha pensado em ir jantar num restaurante de cinco estrelas, não é?
É possível que não ia vestida para um jantar elegante, mas isso não significava que tinha que parecer algo que devia atirar-se ao lixo. Depois de respirar fundo, tirou a borracha do cabelo e penteou com os dedos os grossos cachos até que caíram sobre seus ombros em doces ondas loiras. Depois de procurar na bolsa, suspirou aliviada quando encontrou uma velha máscara de cílios e um batom sob a arma de serviço. A máscara conseguiu que seus olhos parecessem maiores, mais profundos, e o batom destacou sua magnífica boca.
Lavou as mãos e colocou um pouco de colônia da disponível no lavabo nos pulsos e depois dos lóbulos das orelhas. Teria que servir, já que não levava perfume na bolsa. Por último, tirou uma nota de cinco dólares do bolso, a pôs na jarra das gorjetas, com o que conseguiu que a garçonete sorrisse por fim, jogou os ombros atrás e saiu pela porta, pronta para a batalha.
Rachel nunca tinha sido uma mulher que flertava com os homens. Tampouco era recatada. Mas, de qualquer maneira, essa noite ia descobrir se Nathan Cross a desejava tanto como ela a ele.
Capítulo 12
—Me conte algo sobre você.
O estômago de Nathan se estremeceu diante o brilho dos verdes olhos de Rachel. O jantar tinha ido melhor do esperado. Quando Rachel tinha ido ao lavabo, tinha pensado que talvez saísse correndo por uma janela ou pela porta de trás e o deixaria esperando toda a noite. É o que merecia, pelo seu comportamento durante todo o dia.
Mas havia retornado, e com um aspecto impressionante. Tinha desaparecido a decidida policial com o rabo-de-cavalo e face sem maquiar. Em seu lugar, tinha aparecido uma deusa núbil com um halo de cabelo dourado e uns lábios de framboesa amadurecida que se sentou à mesa com um movimento de quadril que deixaria louco a qualquer homem. Só recordando-o, sentia uma pressão na virilha que doía.
A princípio, resistiu a seu encanto, tomando outra dose de bebida com a intenção de desconectar essas terminações nervosas que pareciam hipersensíveis a sua presença. Depois, tinha pedido o pedaço de carne maior da carta, tinha-o pedido tão pouco passado que não parecia ter sido cozinhado, só passado volta e volta pela churrasqueira uma vez, e se lançou sobre a vermelha parte de carne como um leão sobre sua presa assim que puseram o prato na frente.
Passou toda a noite lutando contra si mesmo e contra ela, incapaz de decidir se a tinha levado a esse lugar para seduzi-la ou para assustá-la de uma vez por todas.
Tinha-a levado ali para evitar que fossem ao St. Michael essa noite, recordava-se com firmeza, embora não estava seguro de por que pensar nela na escola o incomodava tanto.
Ninguém ali a ajudaria a encontrar Von. Mesmo assim, a ideia dela entrando no velho castelo de uma catedral em que não tinha a entrada permitida, caminhando pelos estreitos corredores pelos que não tinha o passo permitido, passando os dedos pela pedra que não tinha permitido tocar acendia um fogo dentro dele. Ao olhar mais em profundidade a seus curiosos olhos, as chamas se avivaram, ardendo brilhantes, mas frias, como uma longínqua estrela uma noite de inverno.
Recordando que tinha pedido que contasse algo dele, obrigou-se a sair de seus mutismo.
—O que quer saber?
—Nasceu em Chicago?
—Sim. — Duas vezes.
—Contou-me sobre seus pais. Sinto. — Acrescentou rapidamente — Tem mais família aqui?
—Não.
—Ninguém?
—Ninguém.
Rachel franziu o cenho.
—Alguma vez responde perguntas sobre você com mais de uma palavra?
—Sim.
Rachel esperou e, quando viu que Nathan não ia dizer nada mais, disse:
—Muito engraçado.
Nathan deixou seu prato a um lado e, em questão de segundos, apareceu um garçom para levá-lo.
—Sou filho único e meu pai era filho único. — Disse, sem ter nem ideia de por que. Nunca falava disso, sobre tudo com uma mulher — Nunca conheci minha mãe. Não tenho nem ideia de se esta viva ou morta, nem se tem família.
—Sinto. — Disse Rachel, com uma cara que mostrava a tristeza que sentia.
—É igual. — Incômodo com as emoções que provocava nele, resistiu diante o impulso de retorcer-se.
—Sei o que é estar sozinho desde pequeno.
—Suponho que sim. — Já não gostava de retorcer-se. Agora tinha que resistir a tentação de acariciar as bochechas com o dorso da mão para consolá-la.
Maldição, como ia seguir zangado com ela se ela fazia que quisesse beijar esses preciosos lábios até que seu cenho franzido se convertesse em um sorriso.
—Passei uns anos em vários orfanatos do governo. Depois tive sorte e fui adotada por um agradável casal.
—Eu cresci no St. Michael. Meu pai deixou um dinheiro que cobria o ensino, e Teryn, o diretor, converteu-se em meu tutor legal.
—Comportou-se bem contigo?
Não soube o que responder a isso. Teryn tinha ido mais à frente. Tinha-o amado.
Até o dia em que o expulsou.
—Tive uma boa infância — Disse por fim — Melhor que a da maioria.
Isso pareceu ser suficiente. A preocupação se apagou de seu rosto, e ele se sentiu comovido ao ver o que preocupava a ela.
Sentia-se um pouco tonto devido aos dois coquetéis que bebeu antes do jantar e o café com licor que tomou ao acabar. Sentia-se tão cheio que tinha medo de não poder caber atrás do volante de seu carro, mas, mesmo assim, certas partes de sua anatomia continuavam acordadas, vivas e reagindo cada vez que ela movia a cabeça e a luz das velas iluminava seu rosto de um ângulo diferente. Cada vez que sua respiração levantava seus firmes seios e os fazia patentes através do pulôver.
Deus, como desejava estender as mãos por cima da mesa e tocar esses seios, sentir os duros mamilos contra as palmas das mãos.
Ao notar que sua respiração se fazia mais profunda e alterava seu sangue, decidiu que teria que se mover. Mas, em uma amostra de masoquismo, não estava disposto a deixar que ela se fosse ainda.
Sentiu como a indecisão se apoderava dele. Sentia-se apanhado em um purgatório desenhado só para ele. Não podia deixá-la, mas tampouco poderia leva-la à cama.
Inclinando-se um pouco para frente, tirou a carteira e deixou uma pilha de notas sobre a mesa.
—Estamos a uma quadra só do Navy Pier. — Disse, tomando-a pela mão — Vamos passeando.
Os dedos de Rachel se entrelaçaram com os seus. Ficou sem resistência? Era a excitação? Não tinha nem ideia.
—Está de brincadeira? Faz um frio de descascar.
—Eu te manterei quente. — As palavras saíram de sua boca antes de dar-se conta do que estava dizendo. Maldição. Ia ser só um passeio. Um pouco de tempo para pensar. Para reunir as forças para afastar-se dela de novo.
Tocá-la não tinha sido uma boa ideia.
O vento do lago Michigan soprava frio e limpo a diferença do quente ambiente do restaurante. Sobre o famoso mole, viam-se contraluz flocos de neve de efeito lago. Os aromas de pipocas e algodão doce se misturavam com os sons de ondas golpeando contra os pilares de madeira e as bandeiras ondeando ao vento.
Em uns segundos, o vento coloriu as bochechas de Rachel. Levantou o pescoço do casaco e se juntou um pouco mais a ele enquanto caminhavam. Por um momento, Nathan se permitiu acreditar que não eram mais que um par de turistas típicos desfrutando das brilhantes luzes da gigantesca Noria Ferris pensando na viagem que iam compartilhar de volta ao quarto de hotel.
—Posso te perguntar algo? — Rachel esfregou a bochecha contra o ombro de Nathan.
Ele passou o braço por trás dela e a atraiu para ele.
Rachel ficou tensa durante um instante, mas em seguida voltou a relaxar.
—Por que não quer que encontre o Von?
Nathan viu como a luz da lua se refletia nas ondas ao longe. Sua mandíbula fazia frente ao vento gelado. As luzes giratórias da Noria Ferris começaram a o enjoar, a música de órgão típica de feira que chegava do final do mole o pôs doente, como uma gravação que fica à velocidade incorreta. Revolveu seu estômago.
Deteve-se e girou Rachel para ele.
—Me deixe te perguntar algo. Se encontrar a seus monstros, o que vai fazer? O que acontecerá?
Seus grandes olhos disseram que a estava segurando muito forte, e se esforçou por não apertar tanto, embora a emoção seguia afetando sua voz.
—Os encerrará e os exporá em algum lugar para que os meninos se entretenham com eles como se fossem os animais de um zoológico? Ou os caçará e os matará até que desapareça qualquer rastro de sua existência?
—Pensava que não acreditava nos monstros. — Sua respiração deixou escapar uma nuvem.
Nathan a soltou, virtualmente afastando a dele, e seguiu caminhando pela calçada.
Ela o alcançou em seguida.
—Você sabe que existem, não é?
—Esquece.
—Não posso.
Nathan lançou uma advertência em forma de olhar à mão que segurava a manga. Poderia ter se afastado dela com facilidade, mas sentia os pés como se alguém tivesse pregado os sapatos ao chão. Os cristalinos olhos de Rachel eram doces e estavam úmidos e, apesar de que notava os pés cravados à calçada, sentia-se cair. Cair sob o feitiço dessa mulher.
—Então, me esqueça. — Disse Nathan.
—Não posso. Necessito-o. — Afastou o olhar dele — Necessito sua ajuda. —Corrigiu brandamente.
Uma nuvem tampou a lua, obscurecendo ainda mais o escuro céu. As luzes e a música da feira pareciam desvanecer-se na distância. Nathan pensou que ouvia tambores, até que se deu conta de que eram os batimentos de seu coração. Os antigos cânticos ressoaram como um eco com os batimentos do coração.
Sacudiu a cabeça.
—E se te dissesse que já não posso te ajudar?
—Seguiria sozinha.
—E se houvesse outros aí fora que tentassem te deter? Que se assegurassem de que nunca encontrasse o que está procurando?
Um ligeiro calafrio percorreu seu corpo e Nathan se perguntou se era o frio ou a direção de seus pensamentos.
—Seguiria procurando.
—Embora te custasse a vida? — Supunha-se que os Gargouillen protegiam os humanos, mas se a sobrevivência da congregação estava em jogo, Nathan não podia garantir como reagiria sua gente.
—Embora me custasse a vida. — Respondeu Rachel com solenidade. Elevou o olhar para encontrar-se com o dele e o estômago de Nathan se retorceu. Viu seu engano nos duros e verdes olhos de Rachel. Olhos de policial, de novo. — Quem me mataria para evitar que encontrasse Von e por quê?
Nathan sacudiu a cabeça e encolheu os ombros.
—Vai com um bando de caras duros. Quem sabe o que fazem e por quê? —Mentiu, embora admirou a mais.
Seu coração tamborilava contra as costelas. Agora, era o momento de realizar uma retirada estratégica, mas de novo comprovou que não podia se mover. Não podia afastar-se dela.
Maldição, isso não era só a magia de Romanus, o empurrando a emparelhar-se. Era algo mais. Era ele, o homem que estava acostumado a ser, procurando uma mulher que desejava. Pela primeira vez em muitos anos, suas razões para desejar iam além do físico. Gostava de Rachel. Respeitava-a. Em outro tempo e lugar, poderia tê-la amado.
E isso o aterrava.
Controlando sua libido galopante, estendeu a mão para a testa dela para colocar um cacho loiro atrás da orelha. Ela se inclinou para ele, com delicadeza ao princípio, apoiando a bochecha contra seu peito. Ele a rodeou com os braços, permitindo-se esse momento de felicidade. Um momento de humanidade. Depois, se afastaria dela.
—Como o faz? — Pressionou os lábios contra o cabelo dela e inalou seu aroma — Como persegue seu sonho dia após dia, ano após ano, sem importar quem tente te deter? Sem importar quais sejam os custos?
O desespero fez que as palavras soassem mais duras do que pretendia. Deu-se conta de que não se referia a seu sonho. Referia-se ao seu próprio. Como podia seguir obstinado a seu sonho de ser humano quando já havia custado seus amigos e sua família? Quando custaria inclusive a oportunidade de voltar a estar com uma mulher? Amar e ser amado?
Abraçou com mais força a Rachel. Esse corpo parecia pequeno em comparação ao dele. Feminino e vulnerável. Ela estremeceu, apertando-se contra seu peito, e Nathan pensou que por fim tinha recuperado a prudência e tinha decidido ter medo.
Justo o contrário; assim que a soltou, ela se separou só o justo para poder olhá-lo sem dobrar o pescoço. Tomou a face de Nathan e a girou para ela, segurando com decisão com o polegar por debaixo do queixo e outros dedos ao longo da mandíbula.
—Tudo se resumi no desejo. — Disse com luxúria. Com os seios roçando o peito de Nathan, o que o fez estremecer, tomou ar como um morto que de repente volta para a vida. Seu pênis cresceu e se alongou, pressionado contra o ventre de Rachel.
Ela se aproximou mais a ele e levantou a face até que sua boca ficou a milímetros da de Nathan. A parte inferior do corpo de Rachel pressionou contra a parte dele que mais ansiava por pressão, que mais a necessitava. Suas respirações nublavam o diminuto espaço que havia entre ambos, e se combinavam sem problemas, sem costuras, como dois bancos de névoa que se encontram.
—Nunca desejou nada com tanta força que não pode pensar em nada mais? — Sussurrou Rachel.
Deus, claro que sim.
A pressão era tal na virilha que Nathan sentia que o coração se mudou para lá.
Rachel roçou a mandíbula com o nariz, como uma pétala de rosa sobre um papel de lixa. Ele permaneceu quieto como uma estátua de pedra, tentando não reagir, mas fracassando em sua tentativa.
—Conhece o tipo de ânsia que te come de dentro para fora? Que te desperta na metade da noite, que te faz procurar algo que não está aí?
Ele tinha procurado muitas noites e nunca tinha encontrado nada mais que ar junto a ele. Maldita fosse por fazê-lo recordar.
Um floco de neve caiu sobre o lábio inferior de Rachel. Podia ver sua estrutura única sobre o batom vermelho, algo único repousando sobre algo único.
Sem aviso prévio, pousou seus lábios sobre os dela. O floco gelado do lábio se desfez imediatamente, desaparecendo pelo calor de sua união.
Pensava que sabia o que era a necessidade. Pensava que conhecia o desejo. Esta noite, descobriu como carente que tinha sido sua educação. Ela acabava de contribuir significados novos às palavras.
Agora, ele ia ensiná-la um par de coisas, começando por como um homem com mil anos de experiência beija a uma mulher.
A força do sensual assalto de Nathan fez tremer Rachel da ponta dos pés à cabeça. Isso não era um beijo, era posse. Não se limitava a abraçá-la, a tocá-la, estava dentro dela. Sentia-o no sangue, no ar que respirava, quando a deixava respirar, nos impulsos elétricos que percorriam seus nervos até chegar ao centro do prazer de seu cérebro.
Os pensamentos de Nathan se misturaram com os dela. Inclusive antes que a ponta da língua de Nathan abrisse caminho através dos lábios fechados dela, Rachel ouviu a indicação de abrir-se para ele. Sentiu a satisfação de Nathan quando ela se rendeu. A ereção que pressionava o abdômen como um mastro se fez maior e mais dura.
Nathan tinha os dedos enredados no cabelo de Rachel, com os polegares nas têmporas, realizando uma doce massagem e inclinando a cabeça ligeiramente para poder ter um maior acesso a ela. Inclinou a boca sobre a dela, possuindo, mas também dando. Dando muito.
Os pensamentos de Nathan davam voltas na cabeça de Rachel. Depois do fino véu do desfrute, Rachel sentiu uma ânsia que roçava a violência. Uma escuridão tão completa que pensou ser capaz de engolir os dois. Uma solidão tão devastadora que não pôde imaginar-se suportando-a.
Mas, mesmo assim, lhe dava ternura. Dava luz.
Dava o calor de outro ser humano para suportar o frio de uma gelada noite de inverno.
Nathan se esticou como se o tivessem golpeado. Retirou a língua, rompendo o contato entre ambos. Rachel estremeceu de dor pela perda da conexão entre os dois. Suas mentes tinham estado tão conectadas que era como perder uma parte de si mesmo.
Pensava que suas pernas iam falhar. Como era possível? Como podiam converter-se com tanta facilidade em parte um do outro até o ponto de que separar-se era como se arrancassem uma extremidade de repente?
Nathan a segurou, sendo as mãos que a tinham presa pelos cotovelos o único ponto de contato entre ambos. As respirações cortavam o ar como duas espadas oxidadas.
—O que... O que aconteceu? — Perguntou Rachel, surpreendida de ter a força suficiente para pronunciar as palavras.
—Acredito que respondi a sua pergunta.
Rachel olhou a esses olhos escuros que brilhavam como longínquas e frias estrelas. Pergunta? Sua cabeça seguia dando voltas. Tinha perguntado algo? Ah, claro.
Sobre o desejo.
Acenderam suas bochechas. Nathan Cross não era estranho ao desejo. Queria muitas coisas, e ela era uma delas.
Rachel clareou garganta.
—Sem dúvida.
Soltou-a, deu meia volta, e começou a afastar-se a grandes passos pelo mole por onde tinham vindo.
Depois da perda do calor corporal de Nathan e do fogo que se iniciou entre ambos, a noite parecia ainda mais fria que antes. Trêmula, fechou mais o casaco e foi atrás dele. O medo pressionava seu estômago, embora não sabia de quem tinha medo, se dele ou de si mesma.
Ao menos, já não tinha que perguntar se ele a desejava. Mas, com essa resposta, criaram-se duas perguntas novas:
Uma: Se era capaz de sentir não só suas próprias emoções e reações, sensações físicas, mas também as dele durante um simples beijo, o que sentiria ao fazer amor com ele? Experimentaria também ambas as partes da equação?
E dois: Quanto tempo passaria antes que caíssem na tentação e o descobrisse?
Capítulo 13
Depois de deixar Rachel no hotel, agarrando com tal força o volante que parecia que ia parti-lo em dois enquanto a via entrar e reprimia o impulso de segui-la, Nathan conduziu até seu apartamento como alma que leva o diabo e colocou o carro na garagem subterrânea.
Entrou no elevador feito uma fúria, tão rápido que deixava atrás a esteira de seu casaco, e dando um murro no último botão, passou de comprimento seu andar.
Só no elevador, olhava fixamente os números vermelhos em cima da porta, desejando que a maldita gaveta hidráulica fosse mais depressa. Os tambores voltavam a golpear as têmporas. As veias inchavam e os músculos se estiravam e contraíam dolorosamente enquanto a magia tentava o possuir.
Deu um murro no painel de madeira e inclinou a cabeça, resistindo à transformação. Resistindo aos impulsos primitivos que ameaçavam levando de novo à garagem para pegar o carro e voltar para hotel de Rachel.
Por que não deveria possuí-la? Por que não aliviar sua frustração em seu corpo se ela estava disposta? Ela o desejava e ele podia fazê-lo com carinho, uma vez que tivesse acalmado seu instinto de procriação. Com tudo o que tinha aprendido a respeito das mulheres em suas numerosas reencarnações, podia mostrar o prazer como nunca antes tinha conhecido.
O suor escorria pelas têmporas e pelo pescoço. Arrancou o casaco amaldiçoando e o atirou no chão. A cólera se apoderou dele. Relâmpagos cegadores cintilavam na parte de atrás de seus olhos, poderosas correntes elétricas percorriam seus nervos. Podia cheirar o ozônio. Podia ouvir o crepitar das chamas.
Deus, estava fora de controle. Se não tivesse permitido que o instinto de procriação o possuísse, a magia o teria feito de outra maneira. Estilhaçava a mandíbula, alargando-se. Os dedos retorciam e endureciam, convertendo-se em garras que deixaram três arranhões na parede quando retirou a mão.
A câmara de segurança. Tinha que parar. Não podia transformar-se ali, mas já era muito tarde. Teve que fazer provisão de todas suas forças para girar-se contra a parede, tampar a face com os cotovelos e esconder as mãos, agora garras, no peito.
Amaldiçoava-a por lhe fazer isto.
Mas embora ao final deixasse cair a maldição sobre ela, sabia que não tinha razão. Ela não tinha a culpa, tinha ele. Sabia que tinha estado brincando com fogo ao aproximar-se dela; não devia se surpreender que ardesse diante dele.
Graças a Deus soou o toque do elevador que punha fim a seu cativeiro. Tomando cuidado para proteger o rosto da câmara e manter as mãos fora da vista, apressou-se pela escada de serviço e procurou provas a fechadura da porta do telhado. Por razões de segurança, aos vizinhos não permitiam o acesso ao telhado, mas não havia custado muito roubar uma chave.
Quando conseguiu abrir a porta com as mãos tremulas, correu para a noite. A porta contra incêndios deu uma portada atrás dele, com um ressoar metálico, mas não se importou.
Era livre. Levantou o bico ao vento, inalando milhares de essências, cada uma única e identificável para seus sentidos animais. Cheirou felicidade e medo. Ódio e perdão. Dúvida e coragem. A sensação que provocava cada uma daquelas emoções humanas que sua memória humana armazenava, o que significavam, desvanecendo-se com cada segundo que passava.
Arrancou o que ficava de roupa, embora não tinha por que fazê-lo. O Despertar da besta em seu interior era algo mágico, não estava submetido às leis da física. Se as tivesse deixado postas, teriam se convertido em parte da matéria e da energia que compunham sua nova forma e teriam voltado para seu estado anterior quando se voltasse a transformar.
Nu, caminhou até o beiral e se deixou cair.
A transformação se finalizou no ar. Sua pele se transformou em pele de animal de cabelo curto e liso quando o vento a açoitou. Seu olhar se agudizou, enfocando o chão que se aproximava a grande velocidade. Nem sequer quando caía sentiu a urgência das asas rompendo a pele para sair através de suas omoplatas. As penas saíam e seus ossos se faziam mais leves, ocos por dentro.
Quase desejando poder continuar caindo, entregar-se à gravidade, levantou as asas e as bateu com força. Imediatamente a descida ficou lenta. Uma rajada de ar manteve a flutuação.
Incapaz já de pronunciar sons humanos, rompeu em um alarido de raiva e se dirigiu para o lago. Normalmente teria sobrevoado a água, onde era menos provável ser visto, mas hoje se dirigiu à cidade, escutando, farejando.
Essa noite, a liberdade de voar sozinho não era suficiente para acalmar a fúria em seu sangue.
Precisava caçar.
Não custou muito encontrar sua presa. Com sua visão de águia, localizou um homem andrajoso balançando uma faca agachado sobre a figura de uma mulher inconsciente.
Nathan desceu satisfeito, com o bico afiado sobressaindo, as garras completamente estendidas e o aroma de sangue e vingança subindo à cabeça como uma garrafa de bom vinho.
Estendida na aborrecida cama de seu aborrecido quarto de hotel, o sono tinha decidido evitar Rachel embora o esgotamento a fazia cair pesadamente sem forças. Tinha tentado procurar Von em suas notas, trocando de um canal a outro de televisão, inclusive lendo a revista gratuita da mesinha de noite, mas nada podia evitar que sua mente evocasse “o beijo”.
Em realidade, era uma tolice. Por pouco não escapa uma risadinha tola quando se viu alcançando, tocando seus lábios como uma adolescente, perdendo a cabeça quando mitigou a pressão da boca de Nathan contra a sua. Salvo que não havia nada juvenil no que ela queria fazer a Nathan Cross. As cenas que sua imaginação evocava eram definitivamente para maiores de dezoito anos.
Nunca pensava em si mesma como uma mulher especialmente sexual. Seu trabalho, sua missão, estavam sempre em primeiro lugar. Os homens e as relações eram coisas às que dedicava o pouco de tempo que sua carreira e a busca de monstros deixavam livre.
De todos os modos que homem quereria uma mulher que acredita em monstros?
As feições cinzeladas de Nathan apareciam diante de seus olhos cansados. Ele a desejava. Não tinha rido de suas ideias.
Uma pontada de tristeza percorreu seu estômago, ao perguntar-se se ele teria rido alguma vez, ao menos de menino.
Resignada a uma noite de insônia, passou a mão em seus documentos. Com todas as luzes apagadas exceto a da mesinha de noite, esquadrinhou as fotos e os informe que já se sabia de cor.
Um ser humano não podia ter cometido esses crimes. É que ninguém mais se dava conta?
As espantosas imagens teriam bastado para produzir pesadelos a qualquer pessoa normal, mas quando Rachel finalmente ficou adormecida, aconchegada de lado com os joelhos dobrados e uma mão sob o travesseiro e a outra sob sua bochecha, não foram cenas sangrentas o que viu.
Foi uma criatura gigante com um poderoso corpo de leão e cabeça e asas de águia caindo através da escuridão de Chicago, com as garras ensanguentadas e um grito de vitória e vingança atravessando o ar da noite.
Connor Rihyad subiu cansativamente as velhas escadas de pedra que se dirigiam à torre norte amaldiçoando a madrugada. A luz da lanterna atravessava a escuridão úmida diante dele. Odiava esta parte da escola. As escadas de pedra escorregadia eram traiçoeiras inclusive iluminadas, o que acontecia só de dia, já que aqui acima não havia eletricidade. O corredor estreito cheirava a meias três-quartos usadas já que a única ventilação vinha das fendas que serviam como ventilação de janelas e fazia um frio polar, já que evidentemente ao não haver eletricidade tampouco havia calefação.
Não, Connor não gostava deste lugar. Preferia as comodidades modernas, o micro-ondas, a conexão a Internet de banda larga e o som digital.
Mas o Wizenot parecia que gostava deste lugar. Quando não o encontravam, estava acostumado a estar escondido aqui. Connor se perguntava o que faria aí tanto tempo, com a porta fechada por dentro, para que ninguém pudesse entrar sem avisar.
Falando com suas pombas ou algo do estilo, dizia Teryn.
Enquanto não exigisse réplica, Connor supunha que não havia nada mau nisso.
Velho louco.
Deixe que tenha seus pássaros. Não viveria para sempre e quando se fosse, sua gente necessitaria um novo Wizenot. Com Nathan fora de jogo, Connor era o seguinte na linha de sucessão. Então se produziriam algumas mudanças na congregação. Ele não toleraria dissidentes como tinha tolerado Teryn. O desterro de Cross era muito benévolo em sua opinião, ainda podia influenciar os mais fracos. Connor não toleraria a insurgência de Nathan. Devolveria-o ao redil, ou inclusive iria mais à frente.
A porta de madeira no final das escadas se abriu com um rangido, golpeando o muro atrás dela. Uma rajada de vento quase o atira para atrás. Ouviram passos frenéticos que desciam pelas escadas de pedra, acompanhados de maldições e bater de asas. Connor levantou a lanterna para ver quem, ou o que, era o que se jogava em cima.
—Ai! — Teryn parou e levantou um braço para proteger os olhos. Tinha a pele cinza e os lábios azuis. O cabelo grisalho formava redemoinhos na cabeça — Tire essa maldita luz dos olhos.
—Teryn? Está bem? O que aconteceu?
—Que me está deixando cego, isso é o que acontece! Afaste isso!
Antes que Connor pudesse baixar a lanterna, Teryn tinha se afastado do caminho e se dirigia cansativamente ao quarto. Em algum momento da confusão enquanto o Wizenot passava, Connor se fixou em que ia descalço e que só vestia uma túnica fina de algodão atada com uma corda negra.
No que estava pensando? Devia fazer um frio de mil demônios ali fora a essas horas da manhã.
Velho louco.
Suspirando, seguiu seu líder que tinha cruzado a porta aberta e o encontrou na sala dos meninos pequenos, ajoelhado sobre a cama do pequeno Patrick, de só seis anos e que ainda chorava a perda de seu pai. Teryn acariciava uma das bochechas rosadas do menino.
O velho lançou um grande suspiro e deixou cair os ombros.
—Senhor?
—O que quer Connor? — Teryn respondeu sem se voltar.
Não foi o que disse o velho o que fez ele se deter e sim como o disse. Nunca tinha parecido tão cansado. Tão velho.
Talvez ia converter se no Wizenot antes do que pensava. A possibilidade não o agradava. Maldição, não era nenhum chacal esperando que morresse sua presa para se regalar com a carne de seus ossos. Ele ganharia o direito a guiar a sua gente. Teria paciência.
—Alguém quer vê-lo. É a mulher.
Não fazia falta que dissesse que mulher. Não havia muitas mulheres em suas vidas.
—Nathan está com ela?
Um rugido feroz subiu pela sua garganta, mas o tragou, não mostraria falta de respeito ao Wizenot.
—Não — Conseguiu dizer amavelmente — Quer que me desfaça dela?
Teryn beijou suavemente Patrick na testa, depois franziu o cenho e se levantou com dificuldade.
—Leva-a a meu escritório. — Disse — Vou em seguida.
Teryn estava de pé diante da pia do lavabo e passava uma toalha úmida e temperada sobre a face, não só em uma tentativa de esquentar-se depois de uma noite intensa, muito mais longa do que tinha planejado, de ritual no telhado, mas também para dar-se tempo para se acalmar antes de sentar-se no escritório com Rachel Vandermere. Já tinha despertado a preocupação de Connor descendo as escadas como um louco. Não queria despertar também a curiosidade de uma investigadora da Interpol.
Finalmente, recuperada algo da sensibilidade nos dedos congelados das mãos e dos pés, penteou-se e trocou a túnica cerimoniosa que levava por umas calças cinza e um pulôver de pescoço alto cinza. Quando por fim voltou a sentir-se humano, olhou-se no espelho por última vez e se dirigiu a seu escritório.
—Senhorita Vandermere, me alegro de voltar a vê-la.
Sorriu-lhe francamente e estendeu ambas as mãos enquanto cruzava a sala. Ela se levantou e alisou as rugas das pernas das calças dos jeans gastos que rodeavam a forma suave de seus quadris e abaixou as mangas de seu grosso pulôver de lã irlandesa que envolvia partes dela nas que um homem de sua idade não deveria nem pensar.
Realmente, era uma mulher encantadora. Entendia por que Nathan se interessava por ela.
—Obrigado, senhor Carnegie. Ou devo chamá-lo diretor?
—Me chame Teryn, por favor. — Deram-se um apertão de mãos.
Seus maravilhosos olhos se abriram ainda mais.
—Tem as mãos congeladas, Teryn. Encontra-se bem?
Cobriu-lhe as mãos com as suas, esquentando-as. Este simples gesto de amabilidade encolheu seu coração. Definitivamente entendia por que Nathan se interessava por ela.
—Perfeitamente. Estive dando de comer a meus pássaros. Tenho uns quantos no telhado e sempre me esqueço das luvas. Um mau costume. — Disse, permitindo-se captar seu calor um momento mais antes de retirar as mãos e assinalar a poltrona diante de sua mesa — Sente-se, por favor. Connor — Se dirigiu ao homem que espreitava na sombra ao lado da porta — Nos traga um pouco de meu chá caseiro. Quente e bem forte.
Necessitava algo quente, embora o chá só pudesse esquentar o corpo. Necessitava algo muito mais forte para desfazer o gelo de seu coração. Era algo mais que a temperatura o que havia chocado as horas que tinha passado no telhado, era o que tinha visto. .. Fogo e gelo. Morte, tanto de humanos como de gárgulas. A destruição de sua gente. E das crianças. Meu deus, as crianças. A visão tinha feito precipitar-se ao quarto de Patrick. Devia comprovar por si mesmo que o menino estava bem. A devastação que tinha visto pertencia ao futuro. Não tinha acontecido ainda. E se ainda não tinha acontecido, é que podia ser mudado. Ele a mudaria.
Teryn se acomodou no couro suave de sua poltrona e se sentiu reconfortado pela familiaridade da sala que o rodeava. Este era seu espaço, seus domínios, da desordenada mesa e as estantes na parede de frente transbordantes de todo tipo de coisas, desde primeiras edições de livros encadernados em couro até novelas de bolso, passando pelo velho globo do mundo que havia no canto com seus extravagantes monstros marinhos pintados nos oceanos e as ervas que cresciam na esquina em cima da mesa sob a luz.
Aspirou as essências familiares de erva-cidreira, manjericão e romeiro. Necessitava essa familiaridade agora mesmo, ajudava-o a esquecer as estranhas visões que tinha tido.
—Talvez teria preferido um café, senhorita Vandermere. — Disse a quão jovem seguia seu olhar pela sala, notando nos mesmos detalhes — Mas as planto eu mesmo e eu gosto de presumir de minhas habilidades botânicas.
—O chá está bem.
Ele sorriu.
—E o que a traz por aqui esta manhã tão cedo? — Perguntou.
Ela jogou uma olhada por cima de seus ombros às fotos que tinha penduradas na parede atrás dele. Se deu conta do momento exato no que seu olhar pousou em uma foto com marco dourado em que ele e Nathan estavam em um catamarán de dois lugares em uma regata benéfica que se celebrou no lago fazia vários verões. O troféu que tinham ganho estava na estante situada ao lado da foto.
Olhando-a, seus olhos verdes se voltaram de esmeralda a musgo, e um sorriso melancólico percorreu os lábios.
—Você navega.
—Estava acostumado a navegar.
—Por que parou?
Encolheu os ombros. Porque navegar era algo que ele e Nathan faziam juntos. Eram seus momentos. Trabalhavam como uma equipe. Sem ele não tinha graça deslizar o casco sobre a água, nem a força do vento.
—Navegar é um esporte para homens jovens.
—Homens como Nathan Cross?
—Não, competir era minha paixão, não a de Nathan. Ele só me acompanhava para agradar um velho. Duvido que subiu em um barco desde o verão em que ganhamos esse troféu.
Fez um gesto com a cabeça em direção ao troféu.
—Vocês dois estão muito unidos.
—Estávamos. — Fez uma pausa muito longa e foi consciente disso.
—E já não estão mais?
Suspirou e deixou o abridor de cartas na mesa do escritório, examinando a intrincada cabeça de leão cinzelada na manga como lembrança.
—Nathan já não está envolto na escola. Tem sua própria vida.
—Quanto sabe a respeito dessa vida?
Que Nathan estava decidido a viver a sua maneira, custasse o que custasse. A ele ou a qualquer outro. O coração de Teryn pulsava devagar enquanto pensava em seu próprio papel nas decisões de Nathan.
—Posso perguntar por que se interessa por Nathan? Acreditava que estava procurando Von.
—Assim é, só que Nathan esteve me ajudando, me mostrando o bairro, e eu, bom, só sentia curiosidade por ele.
Teryn se acomodou na poltrona de couro, notando como se ruborizava.
—Pode ser um homem curioso.
Ela evitou seu olhar e tirou uma foto da bolsa.
—Encontrei esta foto de Von com uma garota. Perguntava-me se você saberia quem é.
Tomou a foto do jovem casal e fez o que pôde para dissimular sua surpresa. Alguns dos meninos do St. Michael tinham mostrado interesse por Jenny Lovell, mas não se deu conta de que Von a tivesse estado vendo. Não parecia seu tipo.
Devolveu-lhe a foto.
—Chama-se Jenny, vive em um dos velhos bairros operários no sul de Jefferson.
—Sabe seu endereço? O nome da rua ao menos?
—Temo-me que não o tenho.
—E o sobrenome?
—Lovern, Loveless, Lovejoy. Algo do tipo — Levantou a vista — Nathan deve sabê-lo. — Não quereria que encontrasse Jenny por sua conta.
—Se sabe, não me disse.
Levantou a cabeça perguntando-se o que significava isso.
Ela mordiscava a bochecha.
—Provarei com a listas telefônica. Talvez tenha sorte.
Levantou-se, recolheu a bolsa, dirigiu-se para a porta e se despediu.
Teryn olhou como partia e depois fechou a porta suavemente atrás dela. Isto não ia bem. Nathan tinha que encontrar um casal para procriar, para voltar para o redil, e se Teryn ia salvar a sua gente, necessitava de Nathan de seu lado. Não sabia por que nem como, mas sabia que Nathan era essencial para sua sobrevivência.
Pela graça do deus e da deusa, tinha-o visto. Mas não sabia o que fazer a respeito.
Connor entrava no escritório com duas xícaras de chá de erva-cidreira justo quando a mulher se esfumava pela porta.
—Aonde vai?
Teryn se aproximou, pegou uma das xícaras e deu um comprido gole.
—Tem uma pista sobre Von. — Respondeu, soando muito tranquilo.
—Como? Onde diabos está Cross? Pensei que ia vigiá-la.
—Modere sua linguagem, isto é uma escola. Eu dei a pista. E não sei onde está Nathan.
—Se encontrar Von antes de nós...
—Não o fará.
Maldito velho. Como podia estar tão seguro? Inspirou devagar para se acalmar. Repreender o Wizenot não traria nada bom.
—Quer que a siga?
—Não. Quero que encontre Nathan. Diga que Rachel Vandermere vai caminho de Buchanan Street. Pode ser que encontre o Von ali.
Fazendo um esforço para não franzir o cenho, Connor assentiu com a cabeça em um gesto forçado e se despediu. A que jogava Carnegie? E por quê?
Colocou o casaco e saiu. O ar frio da manhã provocava que sua respiração fosse entrecortada. Se já fazia tanto frio, é que ia ser um inverno muito duro.
Ao final da rua a mulher da Interpol tentava torpemente abrir o carro com as luvas postas. Voltando a franzir o cenho, voltou-se na outra direção para ir procurar seu carro, mas se deteve.
Por que tinha que procurar correndo o Nathan? O mascote do diretor estava fora disto. Fora de tudo. Tinham-no excomungado. Nathan era um radical com ideias condenadas a levar sua gente ao desastre. Connor, por outra parte, sempre tinha sido leal à congregação. Só tinha no coração o bem de sua gente.
Voltou-se lentamente para Rachel Vandermere e se apressou para ela decidido. Alcançou o carro justo antes que arrancasse e bateu na janela. Quando a baixou cortesmente, forçou um sorriso.
—O diretor Carnegie sugeriu que a acompanhe. Conheço o bairro onde vive a garota. Posso ajudar a encontrá-la.
Depois teria problemas se Teryn descobrisse que tinha desobedecido suas ordens, mas no momento e com um pouco de sorte, o idiota do Von seguiria seguro em seu esconderijo graças a Connor.
E, por ele, Nathan Cross poderia apodrecer no inferno.
Capítulo 14
Jenny Lovell vivia em uma casinha ordenada de dois andares de tijolo vermelho com uma escada de concreto e um corrimão de ferro em uma rua cheio de casinhas ordenadas de dois andares de tijolo vermelho com escadas de concreto e corrimões de ferro. A pequena parcela de grama frente à casa, embora já marrom devido ao outono, estava cuidadosamente recortada, o caminho de entrada limpo e os canteiros cobertos com húmus para o inverno. O único minimamente desordenado do lugar era o cabo com luzes de natal do ano anterior que ainda pendia da canaleta. As lâmpadas vermelhas e brancas emolduravam as linhas do telhado e depois se enroscavam no pilar do alpendre como uma barrinha de caramelo.
Longe de ter humor para apreciar velhos elfos joviais e renas voadoras, Nathan se apoiou na lateral de uma casa idêntica do outro lado da rua, duas casas mais abaixo, procurando sinais de vida na porta dos Lovell. Doíam-lhe os pés de estar sobre o chão frio e seus olhos acusavam a falta de sono. Apesar do frio, seu flanco ardia por culpa da folha da faca que o drogado que tinha matado na noite anterior conseguiu cravar entre as costelas antes de morrer. As pálpebras fechadas palpitavam. Jurou a si mesmo que não voltaria a matar, mas o homem merecia morrer, tinha golpeado uma mulher mais velha até o coma pelos oito dólares e trinta e dois centavos que levava no moedeiro. Nathan ainda sofria por causa de suas ações. Já não era um guardião; não era seu lugar.
Tinha dado ao muito imbecil uma oportunidade para fugir. Não importava que tivesse visto Nathan transformado em guardião, estava tão drogado que ninguém teria acreditado na história fantástica sobre uma besta, metade águia, metade leão que o tinha separado da mulher e o tinha jogado contra uma parede a mais de cinco metros. Mas as drogas controlavam o homem. Haviam-no tornado irracional e em vez de sair dali correndo, tinha tirado uma faca e tinha atacado Nathan. Não teve outra escolha senão matá-lo. Ou isso é o que dizia a si mesmo.
Abriu os olhos deglutindo a lembrança como um gole amargo. Um Honda azul se deteve diante da casa dos Lovell. Conteve a respiração. Era o carro de aluguel de Rachel.
Sabia que encontraria a pista de Jenny antes ou depois. Só esperava que fosse depois.
Um punho invisível apertava seu coração quando desceu do carro. Usava uns jeans azuis, umas botas de vaqueiro, o jaquetão de lã que tanto gostava e as luvas que davam esse toque infantil incongruente com a mulher sensual que ele via nela. Sua imaginação evocava passagens nos que se inclinava e recolhia um punhado de neve com essas luvas, para depois disparar o projétil poeirento contra seu peito enquanto ria de seu ataque. Mas não havia neve e, em realidade, ele não estava rindo.
Doía vê-la e não ser capaz de falar com ela, de tocá-la. Mas era o melhor, pensou. Não podia estar perto dela. A noite anterior no mole tinha sido uma suficiente prova disso.
Voltou-se e apoiou as costas contra a parede para não ter que vê-la. Assim era mais seguro para os dois. Ouviu como se fechava de um golpe a porta do carro... E logo ouviu outra portada. Girou a cabeça para olhar por cima do ombro.
Filho de puta!
Que fazia Connor com ela?
A raiva despertou em seu interior. Já não era Nathan Cross, e sim o leão protegendo seu orgulho, a águia defendendo seu casal. Um rugido subiu pela sua garganta. Acelerou o pulso e as veias incharam.
Contendo toda essa energia, concentrou-se e emitiu um grito ultrassônico, o assobio de alta frequência que só outro gárgula podia ouvir, dirigido diretamente a Connor. A Chamada. E desta vez, um desafio.
Com a face petrificada, viu como Connor dizia algo a Rachel, depois se voltava e caminhava para ele. Assim que girou a esquina da casa, Nathan o agarrou pelo pescoço e o lançou contra a parede. A ferida do lado se ressentiu com o movimento, mas não prestou atenção. Deu uma olhada à rua para assegurar-se de que Rachel não o tinha seguido.
—O que disse a ela? — Inquiriu voltando-se para Connor.
—Que tinha que mijar. — Replicou — Me solte, merda.
Nathan soltou o pescoço do casaco de Connor e o agarrou pelo pescoço com mais força.
—O que faz com ela?
—Mantendo-a vigiada no caso de que consiga encontrar Von. O que você devia estar fazendo, acredito.
Nathan teria gostado de replicar. Teria gostado de arrancar a cabeça de Connor, mas Connor tinha razão. Tinha permitido que sua atração por Rachel e sua determinação em resistir se interpusesse no caminho de suas obrigações.
Deu a Connor um último empurrão de graça e depois o puxou pelo cabelo.
—Não acredito que teria encontrado a garota tão rápido.
—Equivoca-se. — Connor rodeou Nathan devagar. Aspirou o ar, deteve-se e sorriu ironicamente — Saiu para caçar. Cheira a sangue.
Sacudiu a cabeça, fazendo caso omisso de seus sarcasmos. Ainda não entendia como Rachel tinha chegado até a garota... A não ser que a tivessem ajudado.
—É impossível que tenha podido localizar Jenny tão rápido por sua conta.
Connor mostrou a língua.
—Pensei que já não gostava de se transformar em besta. Que não queria ter as mãos manchadas de sangue humano.
—Merda, Connor! Quem falou deste lugar? Foi você? — Replicou, embora esta vez a acusação de Connor não passou despercebida, mas sim ressoava em seus ouvidos. Sangue em suas mãos, sangue humano.
—Muito para seus princípios, não? — Zombou Connor — Muito para seus votos sagrados.
Connor riu. Nathan tinha matado aquele homem, tinha tirado uma vida, e ele ria e o som fazia ferver o sangue de Nathan como se fosse ácido. Corroia-o.
—Suponho que depois de toda a lembrança de sua querida esposa falecida não era suficiente para fazer esquecer o que realmente é.
Nathan baixou a cabeça e atacou Connor, dando uma cabaçada na face. Sentiu o rangido da cartilagem e o fio quente de sangue. Ouviu o grunhido de surpresa, a respiração rápida e dolorosa, enquanto Connor fugia pela lateral da casa.
Então umas garras mais poderosas que qualquer mão humana agarraram Nathan pelos bíceps com uma força arrebatadora. Levantaram-no do chão, sacudiram-no no ar como a uma boneca quebrada e o fizeram cair.
O impacto sobre a grama gelada o deixou sem respiração. Resfolegando, segurou o lado ferido por debaixo da jaqueta, sentindo o morno sangue fresco que gotejava da ferida e levantou a cabeça.
Connor estava em cima dele ameaçador meio transformado em gárgula.
Estava erguido, mas sua pele mudou em escamas. Tinha uma protuberância na cabeça que formava um ângulo para trás. Tirava a língua longa, estreita e viperina para lamber o sangue que gotejava pelo bico. Em seus olhos brilhava uma luz verde sobrenatural e balançava uma adaga sobre o pescoço de Nathan.
—Procura briga, Nathan? — Sua voz soou artificial. Nasal. Recuou um passo, e com um golpe do pulso direito desdobrou a navalha retrátil.
—Briga como adulto. Solta à besta.
Nathan se apoiou sobre um braço.
—Está louco? A plena luz do dia.
Connor deu um chute no braço que servia de apoio.
—Solta!
—Não!
Rodou devido ao golpe e fez uma careta de dor quando abriu a ferida do lado.
—Está aí, Connor?
A voz de Rachel fez que apagasse a luz incandescente dos olhos de Connor.
—Sim, estou aqui!
Sua pele reanimou uma vez, como se uma criatura vivente se retorcesse debaixo dela antes de voltar para sua aparência humana. A cabeça foi arredondando até alcançar sua forma normal.
—Um momento, não estou apresentável.
Sua voz tilintou como cristais, aproximando-se.
—Quanto do chá de Teryn bebeu esta manhã? Deve ter sido o xixi mais comprido da história.
—Saio em um minuto.
“Saia daqui”, indicou Nathan gesticulando. Connor sacudiu o polegar por cima do ombro em um gesto de “vai você”. Levantando-se, Nathan sacudiu a cabeça furioso.
—Tem certeza que está bem? — Perguntou Rachel — De verdade que demorou muito.
—Estou bem — Secou o nariz ensanguentado com o dorso da mão — Me dê um segundo.
—Não me dá a sensação de que esteja bem.
Já não ria. Nathan e Connor se olharam um instante. Grunhindo, Connor piscou.
—Suba zíper, cavalheiro. — Disse com sua voz de policial — Estarei aí no três. Um...
Connor cedeu e se voltou para partir, mas se deteve e disse a Nathan no ouvido, baixinho para que Rachel não pudesse ouvir:
—Teryn lhe disse como encontrar Jenny. Está jogando contigo.
—Dois.
Nathan se negou a mover-se um milímetro sequer ao contato do fôlego quente e zangado em sua cara.
—Se mande.
—O velho quer que rompa mais alguns de seus votos. Como o de tomar um casal. Está te usando.
—Três. — Os passos de Rachel se ouviam agora justo atrás da esquina.
Connor inclinou a cabeça para o som.
—E a está usando.
Então se foi, cruzou o pátio traseiro e saltou a cerca tão rápido que o movimento foi quase imperceptível.
Rachel parou frente à casa vazia. Se Connor estava realmente mijando, não queria interromper. Mas parecia ter ouvido vozes. Claro que fazia uns minutos tinha parecido ouvir um assobio ultrassônico jamais descrito, só que provinha do interior de sua cabeça, não do exterior, assim possivelmente estava pegando uma infecção de ouvido ou algo pelo estilo. Isso era melhor que pensar que o tinha imaginado. Escutou outro sussurro e soube que desta vez não estava imaginando nada. Ergueu-se, girou a esquina da casa e ficou petrificada ao vê-lo.
—Nathan?
Encolheu o estômago como se um montão de mariposas formassem redemoinhos em seu interior. Sua presença a sacudia fisicamente, punha seus nervos de ponta.
—Onde está Connor?
—Foi embora.
O tom irritado de sua voz normalmente suave, raspou a pele como uma manta de crina de cavalo e a fez estremecer.
—Aonde foi?
—Por que deveria sabê-lo? Terá voltado para buraco do qual saiu, suponho. Que droga estava fazendo com ele?
Agora que mitigava a surpresa de encontra-lo ali, fixou-se nele. Algo não ia bem. Não parecia ele. O cabelo que normalmente se penteava para trás cuidadosamente agora caía sobre a testa em uma cortina escura. As olheiras pareciam um par de pálidas luas crescentes azuis e a barba de um dia escurecia a mandíbula. Tinha os jeans escuros enrugados e com gramas e folhas pegas. Uma jaqueta de couro gasta substituía o elegante casaco de caxemira que estava acostumado a usar. Tinha as mãos sujas e... Era sangue isso que tinha na manga?
Tinha um aspecto duro e até algo perigoso. Exceto a noite em que mataram a seu amigo, não o tinha visto nunca com tão mau aspecto. Refletia-se uma profunda dor em sua expressão enquanto se sustentava em pé e apertava e soltava os punhos, o que provocava o desejo inquietante de fazê-lo apoiar a cabeça em seu ombro e acariciar o cabelo para reconfortá-lo. Então suas palavras chegaram a seu cérebro e a indignação limpou o estupor da atração física que tinha turvado o julgamento.
—Desde quando se importa com quem estou?
—Desde que não tem suficiente sentido comum para não subir em um carro com um homem que nem sequer conhece.
—Conheço-o. Trabalha na escola. Ele... — Travou a língua ao se dar conta do pouco que sabia realmente do homem que se apresentou como Connor. Levantou o queixo teimosa — O diretor disse que me ajudasse.
—Está segura? — Um brilho diabólico apareceu nos olhos de Nathan.
Avançou para ela até que seus sentidos se encheram com o aroma de terra que só associava a ele. Não podia reconhecer todo o aroma. A descrição mais próxima que ocorria era a de pedra molhada. Granito esquentado pelo sol do verão e depois refrescado por uma chuvarada repentina.
—Está segura ou é só o que ele te disse? — Insistiu Nathan.
—Disse... — Cruzou os braços. Nathan tinha razão e sabia. Uma vitória escura brilhava em seus olhos.
Amaldiçoava-o por fazê-la se questionar a cada passo. Qual era a diferença entre que o diretor tivesse enviado Connor ou que ele tivesse agido por sua conta?
—Deixou-me na porta da entrada da melhor pista que tive de Von até o momento, que é mais do que você tem feito. — Entreabriu os olhos, devolvendo o golpe — E você o que faz aqui, por certo? Acreditava que não conhecia Jenny Lovell.
Deu um passo atrás, uma retirada simbólica.
—Fiz algumas chamadas.
—Chamadas que não podia ter feito ontem? — Era seu turno de avançar por volta dele — Sabia quem era desde o começo, não? Sabia exatamente onde encontrá-la.
A raiva bulia em sua voz quando se colocou sob seu queixo. Ele se estremeceu, mas não cedeu terreno. Ao menos, não negou aquilo do que ela estava totalmente segura. Levantou a vista para ele.
—Poderia te deter por obstrução à justiça.
—Não tem autoridade.
—Eu não, mas a polícia local sim. Poderia fazê-los vir antes que golpeasse os calcanhares e dissesse “fiança” três vezes.
—E o que ia contar? Que não te ajudo a provar que existem os monstros? Seria você a que acabaria presa.
Rachel se afastou dele ofegando. A dor era tão repentina e tão intensa como se a tivesse golpeado no meio do coração. Seus olhos se umedeceram e teve que morder o lábio para evitar fazer um bico.
—Bom, Rachel. — Disse com um suspiro atrás dela. Afastou-lhe o cabelo do pescoço e apoiou a mão em seu ombro no que supunha que era um gesto tranquilizador. Uma oferta de paz, agora que ele tinha ganho e sabia.
Ela voltou a girar, apertando os dentes para que não tremesse a voz e golpeou forte no peito com as duas mãos, que ricochetearam com o impacto, mas ele não se moveu. Era como empurrar um tanque blindado.
—Não seja condescendente comigo. E nunca, nunca, me chame de louca.
—Quer me bater por ter mentido? Me bata. — Baixou as mãos e as colocou ao lado do corpo com as palmas para cima mostrando que não reagiria.
Fechou o punho, mas não era da espécie de garotas que bate.
—Por que não quer que encontre Von?
—Não te ocorreu alguma vez que pode ser que não me importe se encontrar o Von ou não? Que simplesmente pode ser que eu não goste de vê-la se torturar assim, perseguindo as sombras que viu em um pesadelo faz mais de vinte anos?
As lágrimas empanaram seus olhos. Abriu a mão e voltou a fechar o punho. Não queria bater nele, o que queria era abraçar esse corpo estoico, beijar essa cara rude e sincera, enterrar a face em seu peito e esquecer os monstros. E isso a deixava louca. Não tinha sido nenhum pesadelo, sabia o que tinha visto. E não podia esquecer; não o faria, pela memória de seus pais.
Inspirou lentamente, abriu a mão outra vez, baixou a cabeça e se foi por onde tinha vindo.
Ele a seguiu.
—Aonde vai?
—Interrogar Jenny Lovell.
—Sozinha?
—Não preciso de você.
—Sei.
Voltou a alcançá-la e desta vez ela não se afastou. Tocou-lhe o pescoço e afastou o cabelo.
—Mas quero estar aí.
Massageou seu couro cabeludo brandamente e um calafrio de prazer percorreu as costas. Relaxou, deixando cair a cabeça para trás sobre sua mão. A pele fazia cócegas com um milhão de diminutas espetadas eletrificadas e apesar de que todos seus instintos de policial gritavam opondo-se, sabia que não podia resistir. A nada.
—É verdade que Connor se foi?
Levantou a cabeça e abriu um olho, embora a contra gosto, antes de perder-se para sempre na lânguida calidez de seus braços.
—Ou tenho que te ajudar a enterrar o cadáver?
—Muito engraçada. — Disse, mas se separou dela como entendendo que necessitava espaço — Quer seguir assim um momento mais ou quer ir fazer esse interrogatório?
—Quanto tempo leva vigiando a casa? — Perguntou Rachel quando chegaram à porta dos Lovell.
Nathan meteu as mãos nos bolsos. Ao menos voltava a falar com ele.
—Desde o amanhecer.
—Viu algo?
—O senhor Lovell saiu para recolher o jornal da manhã e jogou de um chute um gato de ruas que havia no caminho. Pouco depois a senhora Lovell saiu às escondidas pela porta lateral com um prato de leite para o pobre animal. Isso é tudo.
—Saiu às escondidas pela porta lateral? — Repetiu pondo ênfase em “saiu às escondidas”.
Encolheu os ombros.
—É o que me pareceu. Suponho que o senhor Lovell não gosta dos animais.
E a senhora Lovell não queria enfrentar ele por isso.
A casa dos Lovell estava igualmente ordenada por dentro como por fora. Nathan se colocou ao fundo em uma cadeira com braços e respaldo estofada em veludo, para deixar Rachel levar o peso do interrogatório enquanto ele ficava com os detalhes do lugar e de seus habitantes. Os móveis estavam velhos, mas imaculados e a sala de jantar cheirava a limpador de limão. A senhora Lovell insistiu em trazer café e um prato de bolachas.
Era uma mulher pequena, vestida com um roupão de algodão estampado que parecia ainda mais velho que os móveis. O senhor Lovell observava cada um de seus movimentos, mas não moveu um dedo para ajudá-la. A senhora Lovell levantou o olhar nervoso quando derramou uma gota de café pela borda da xícara ao servi-lo.
Depois de comprovar duas vezes suas credenciais, o senhor Lovell concordou a que Rachel falasse com Jenny, mas insistiu em estar presente. Vestida com jeans largos, sapatilhas brancas e uma jaqueta cinza dos Chicago Bears, a garota estava sentada com os joelhos juntos e as mãos entrelaçadas em cima delas.
—Conhece um jovem que se chama Von Simeon? — Perguntou Rachel.
O senhor Lovell respondeu por sua filha.
—Não a deixamos sair com garotos. Só tem dezessete anos.
Rachel sorriu a Jenny.
—Pode ser que só sejam amigos. Viram-no alguma vez?
—Minha menina não vê tipos como esse.
Nathan sorriu para si enquanto Rachel se tranquilizava inspirando sutil, mas profundamente.
—Conhece o Von senhor Lovell?
—Vi-o por aí. É um vândalo. Sempre disposto a fazer alguma tolice.
Nathan não pôde negar essa afirmação. Rachel se voltou para Jenny.
—Você também viu Von por aí?
Jenny retorcia os dedos nervosa.
—Às vezes.
—Talvez no túnel de lavagem do Jefferson?
Não tirou a foto, já que isso teria zangado o senhor Lovell e teria significado o final da entrevista. Garota preparada. Os olhos azuis da jovem se abriram de par em par. O senhor Lovell deixou a xícara sobre a mesinha de café com muita força e derramou parte do líquido quente. A senhora Lovell acudiu imediatamente para recolhê-lo com um pano de linho. Suas mãos tremiam enquanto o fazia.
—Jennifer. — Disse o senhor Lovell — Falou com esse vândalo?
—Não papai. — Respondeu rapidamente, muito rápido. Baixou o olhar às mãos enquanto beliscava o dedo polegar.
—Viu-o em algum lugar, carinho? — Perguntou Rachel brandamente — A semana passada ou assim?
O olhar de Jenny foi de Rachel a seu pai e voltou para o Rachel.
—Não, sinto muito.
—Está bem, obrigado de todos os modos.
Rachel se levantou e se dirigiu para a porta. Nathan e o senhor e a senhora Lovell a seguiram. Deu a Jenny um tapinha no joelho ao passar e estendeu seu cartão de visita.
—Se te ocorre algo mais ou o vê, me chame, de acordo?
O senhor Lovell arrebatou o cartão das mãos a sua filha.
—Faremos isso.
Rachel não disse nada até que chegaram ao carro.
Uma vez que se colocou atrás do volante e ele se sentou no assento do copiloto, olhou-o com uma expressão pensativa.
—O que te parece?
—Acredito que o queridíssimo papai leva a casa dos Lovell com mão de ferro.
Fechou a porta do carro e colocou o cinto.
—E não acredito que tenha nem a menor ideia de com quem sai ou deixa de sair sua filha.
Pôs o motor em movimento.
—Deveria ter sido policial.
Ele soprou.
—De nenhuma maneira. E agora o que?
—Agora nos partiremos e daremos um pouco de tempo para que se esqueçam de nós.
—E depois voltaremos a vigiar à garota?
—E depois voltaremos a vigiar à garota.
Nathan se recostou para atrás no assento e sorriu. A besta em seu interior grunhiu e se revolveu impaciente. Horas seguidas confinado em um espaço reduzido com Rachel, com nada mais para fazer que olhá-la, escutá-la, inalar seu aroma embriagador. Ou o matava ou o convertia em um louco.
Estava impaciente por averiguá-lo.
Capítulo 15
—Não sinto os pés. — Nathan se inclinou para tocar os blocos de chumbo para comprovar que seguiam presos a suas pernas.
—Porei a calefação em um momento. — Disse Rachel.
—Não é o frio. — Levantou, batendo com a cabeça no porta-luvas e amaldiçoando ao inventor dos carros compactos — É esta porcaria de carro que alugou. Teria que ser um pigmeu para caber bem nesta lata de sardinhas.
Rachel olhou com uma sobrancelha arqueada.
—É um pouco chorão.
—Só digo o que é. Deveríamos ter vindo no meu.
—Seu enorme carro cantaria neste bairro.
Não tinham se movido de sua posição frente à casa vazia situada duas portas mais abaixo e em frente da casa dos Lovell desde as nove da manhã. Alguns vizinhos os tinham olhado com curiosidade, mas até o momento ninguém tinha saído nem entrado na casa de Jenny. Começava a deixar de gostar deste trabalho de vigilância.
Moveu-se, tentando em vão ganhar outro centímetro para estirar as pernas e recuperar a circulação antes que gangrenassem. Ao voltar-se para o outro lado, olhou atrás dele à casa com o cartaz de “Vende-se” pendurado na porta e franziu o cenho.
—Aconteceu algo? — Perguntou Rachel.
—Essa luz na janela. Antes não estava.
—É que se está fazendo de noite. Possivelmente os da casa não tinham necessitado acendê-la até agora.
—Mas aí não vive ninguém.
—Só porque esteja à venda não significa que não viva ninguém.
—Não parece que viva ninguém nela. — Não podia dizer que não tinha detectado nenhum aroma humano mais recente que uma semana quando esteve no jardim — Ninguém saiu nem entrou, e não vi nenhum movimento em todo o dia.
—Talvez as luzes se liguem por um temporizador para que os ladrões e malfeitores pensem que há gente dentro.
—Talvez. — Deu voltas a essa ideia na cabeça — Poderíamos ajudá-los um pouco.
—O que?
—A manter afastados os ladrões e malfeitores. Poderíamos entrar e vigiar os Lovell dali. — Pôs sua cara mais encantadora — Há uma vista maravilhosa da baía.
—Está louco? E se alguém chama à polícia?
—Mostra sua identificação e explique tudo.
Rachel ficou olhando-o.
—Certo. — Concordou Nathan — Nos asseguraremos de que ninguém saiba que estamos dentro.
—E como propõe que o façamos?
—Entraremos pela porta de trás. Acredito que posso abrir a fechadura. A sala de estar está às escuras. Ninguém nos verá.
—Esqueça.
—Estaremos mais quentes dentro dela. Podemos nos estirar.
—Você esta sonhando.
—Podemos beber um pouco de água, talvez há um pouco de comida na despensa. — Guardou o melhor para o final — Por não mencionar que podemos utilizar as instalações.
—As instalações?
—O banheiro.
Rachel olhou a casa vazia com interesse, e Nathan soube que sentia curiosidade.
—E se os proprietários realmente seguem vivendo aí e apenas estiveram fora todo o dia?
—Então correremos como alma que leva o diabo assim que cheguem a casa.
—Um banheiro, não?
—Talvez dois. Um para cada um.
Rachel baixou o lábio inferior para morder com os dentes inferiores; sempre o fazia quando tentava tomar uma decisão e depois soltou:
—Eu não gosto da possibilidade de que uns civis nos peguem, mas, sabe o que? Os cem metros rasos eram minha especialidade na escola. Você como corre?
Cinco minutos depois, estavam em uma casa um pouco parecida com a dos Lovell, exceto em que os móveis eram mais novos. Rachel fez uso do banheiro enquanto ele comprovava o forno.
—Más notícias. — Disse quando ela saiu.
O olhar de Rachel mostrou preocupação.
—Vem alguém?
—Não. — Nathan riu — Cortaram o gás. Não há calefação.
Rachel deixou escapar o ar com ruído.
—Não me pregue estes sustos. Tem razão não vive ninguém aqui. Não havia nenhum objeto pessoal no banheiro, nem sequer sabão.
—Tampouco há nada para comer na geladeira. — Não se podia ter tudo, pensou. Talvez podia convencer Rachel a pedir uma pizza dentro de um momento.
—Só há alguns móveis para que tenha melhor aspecto diante de possíveis compradores, suponho.
—E também mais cômodo para uns investigadores intrépidos.
—Investigadores?
—Investigadora. — Corrigiu Nathan —E um cupincha.
Deu a volta ao sofá para que ficasse de frente à janela da baía enquanto Rachel reunia um par de mantas e comprovava o temporizador para assegurar-se de que as luzes não se acenderiam e os deixariam à vista de todos. Com nada mais que fazer exceto esperar, se acomodaram, cada um em um extremo do sofá.
Para Nathan, o escasso metro que havia entre ambos parecia tão longo como uma viagem à lua, mas, ao mesmo tempo, muito pequeno para sentir-se cômodo.
—Aconteceu algo entre Teryn Carnegie e você para fazer que se separassem? — Perguntou Rachel, incapaz de suportar o silêncio um segundo mais. Tremendo, subiu a manta até o queixo e colocou os pés descalços entre duas almofadas que havia no meio do sofá. A escuridão tinha tomado o tranquilo bairro fazia horas, e com ela a temperatura tinha caído dois ou três graus mais.
—Por que pergunta?
Nathan poderia ter sido uma estátua, por como tinha permanecido quieto durante todo o tempo. O pouco de luz que se filtrava na sala de uma luz da rua produzia em seu rosto sombras irregulares. Faziam que os ângulos se vissem mais pronunciados e as cavidades mais profundas.
—Diz que te criou. Tem uma foto de você dois navegando pendurada na parede do escritório, sabe? Parece que havia muita intimidade. E o vi muito triste quando disse que já não se vêem.
Em sua normal reticência a falar de si mesmo, perguntou algo em vez de responder ao que tinha perguntado.
—Está em contato com seus pais adotivos?
—Não muito.
Rachel se estremeceu, muito mais desta vez, e tirou os pés das almofadas do sofá e começou a massageá-los e esquentá-los com as mãos.
—Me deixe adivinhar. Não sabem que acredita nos monstros.
Rachel sacudiu a cabeça.
—Aprendi a manter essa parcela para mim quando os primeiros quatro casais de pais no orfanato me devolveram.
—Devolveram-na?
—Pensaram que estava louca. Suponho que tinham medo de que enlouquecesse e assassinasse a toda a família enquanto dormiam ou algo assim. — Encolheu os ombros — Não posso dizer que os culpe. Não só contava que acreditava nos monstros, mas também dizia que tinha visto um. A primeira família pensou que era o estresse e não fizeram caso até que comecei a assustar a meus irmãos. Um par de noites com seis meninos despertando a gritos pelos pesadelos bastou para que me devolvessem ao orfanato.
Nathan torceu o lábio em sinal de desaprovação.
—Que caridosos.
—Os seguintes três casais me chamaram “atormentada”. Me mandaram aos assistentes sociais, psiquiatras, psicólogos, a todos os que lhes ocorreu. — Baixou o olhar para observar seus pequenos pés nas grandes mãos dele. Era realmente terno com ela. E o efeito era surpreendentemente erótico. Estava começando a pensar nessas enormes mãos tocando outras partes do corpo.
—Mas, por onde ia? Ah, sim, a medicação.
A vergonha apagou parte da sobrecarga sensorial que estava provocando seu sistema nervoso.
—Quando fiz dez anos, decidiram que os médicos solucionariam o problema. Deram-me algo que me mantinha atordoada durante dias. Às vezes, guardava as pastilhas debaixo da língua e as cuspia depois, assim começaram a me dar injeção. Chamavam-me, bom, chamavam-me... — Tinha tão frio que batiam os dentes — Me chamavam de louca.
Elevou o olhar e o olhou como pedindo desculpas.
—Por isso me pus assim hoje com você. Ponho-me à defensiva quando ouço essa palavra.
Suas mãos seguiam nos pés dela. Um fogo irado ardeu em seus olhos, mas ela soube que não ia dirigido a ela, e sim aos que tinham feito mal a ela.
Decidiu terminar. Bem podia sabê-lo tudo.
—Falaram de me internar em um... hospital. Em um sanatório. Então, foi quando decidi não voltar a falar disso. Deixei que ganhassem.
Quando soltou seus pés e a abraçou, ela se deixou ir sem resistir. Aceitou-o com muito prazer.
—Não ganharam. — Disse, abraçando-a com força. Rachel inclinou a cabeça para trás e viu a face de um guerreiro. Estava lutando. Por ela.
—Você ganhou. — Agarrou com as mãos a parte superior dos braços com a força suficiente para produzir hematomas — Me ouve? Você sobreviveu e se manteve fiel a suas crenças, tanto se falava delas como se não. Eles não ganharam. Você ganhou. De todos eles.
Rachel inalou o aroma de terra úmida em seu pescoço. Percorreu com os dedos o forte músculo de suas costas, repassando as linhas, medindo o volume. Contra seus seios, o coração de Nathan marcava um ritmo constante, e ela se aproximou mais a ele. O corpo do Nathan ardia, e ela tinha tanto frio.
Não tinha rido dela. Não a tinha afastado dele quando soube que quase a tinham internado em um manicômio antes de fazer vinte anos.
Não a tinha chamado de louca.
De acordo, não havia dito que acreditava nos monstros. Mas, em realidade, parecia orgulhoso dela por defender o que acreditava durante tanto tempo, contra todo mundo.
Uma maravilhosa sensação invadiu seu coração e sua cabeça. Nathan afastou o cabelo da face e a olhou e ela sorriu apesar de que corriam lágrimas pelas bochechas. Ele sustentou o olhar, sem retirar-se, sem medo.
Não se importava que ela acreditasse em monstros.
Não parecia o tipo de homem muito dado a mostrar afeto, mas não podia pensar em um presente melhor que o que acabava de fazer.
Rachel adiantou a mão e tocou os lábios com uns dedos trêmulos. Era incrível. A boca humana é capaz de tanta crueldade e tanta ternura. Ele tinha escolhido ternura.
—Tome cuidado. — Advertiu Nathan, mas tomou a mão com a sua e começou a beijar as pontas dos dedos com tanta ternura que ela pensou que ia desfazer o coração. O único problema é que não queria que tomasse sua mão. Já tinha tomado seu coração.
—Me deixe te tocar. — Murmurou Rachel, soltando sua mão e acariciando a bochecha com a palma, enquanto brincava com a sensível pele de trás das orelhas com as unhas.
Ele estremeceu e fechou os olhos.
—Mmm — Rachel acariciou com o nariz sua mandíbula, respirou fundo e sorriu ao ver como acelerava o pulso e dançava sob a fina pele do pescoço — Que colônia usa?
—Não uso colônia.
Pedra de afiar, essa era a descrição que tinha estado procurando. Seu pai tinha uma. Afiava com ela a navalha que tinha, enquanto um fino jorro de água caía sobre a suave pedra. Assim cheirava Nathan: a terra e a limpeza. A macho.
Rodeou seu pescoço com os braços e acariciou com os dedos o sedoso cabelo enquanto sussurrava.
—Parece que sou a única trabalha aqui.
Ele estava sentado totalmente quieto. Se não tivesse sido porque respirava, com um fôlego quente e úmido que chegava às pálpebras e pela sensação de seu coração palpitando no torso contra seus seios, não teria sabido se estava vivo ou morto.
—Se começarmos com isto. — Disse com uma voz rouca — Não sei se serei capaz de parar.
Rachel elevou a cabeça até poder olhá-lo nos olhos e disse:
—Pois não pare.
Com um gemido que pareceu surgir do mais profundo de sua alma, agarrou-a pelos quadris e a pôs em cima. Acabava de perguntar-se se estava vivo ou morto? Sem dúvida, estava vivo. Estava duro, ereto e palpitante de vida.
Jogou a cabeça para trás agarrando-a pelo cabelo. Suas bocas se encontraram, fundiram-se em uma união de necessidade mútua. Tocou seu seio com uma mão, e ela se pressionou contra a palma, sentindo que o mamilo já estava duro. As sensações físicas a afligiam, deixavam-na dolorida e em carne viva, mas com Nathan sabia que podia ter mais. Muito mais.
Deixando que suas mãos e boca a excitassem até um ponto febril, procurou sua mente. Visualizou uma porta entre eles, aproximou-se dela e ao tocar o pomo, abriu-se de par em par. Um vento forte chegou do outro lado, golpeando-a, quase atirando-a ao chão. No outro lado, havia um escuro lugar cheio de sons de criaturas e brilhos de movimentos.
Chamou Nathan.
—Estou aqui — Respondeu ele, mas não podia vê-lo.
Cruzou a soleira e se encontrou em um profundo bosque. Girou a cabeça e viu como a porta se fechava com força atrás dela, depois voltou a olhar para frente e viu algo grande e peludo que desaparecia entre a vegetação diante de seus olhos. Umas pesadas asas sobrevoaram por cima de sua cabeça, mas não soube dizer de que tipo de pássaro se tratava. Certamente, era tão grande como um condor.
—Aqui. — Voltou a dizer Nathan, com mais urgência, e então o viu, de pé nu na sombra sob uma figueira. Se deu conta de que ela também estava nua, assim que tampou com os braços o seio e a pélvis até que ele abriu os seu de par em par e ela correu para eles, aterrada pelos sons envolventes e os uivos dos animais selvagens que os rodeavam. Com roupa ou sem ela, sentia-se segura entre seus braços.
Acariciou ambos os lados do corpo com as mãos até que Nathan vaiou e ficou tenso. Baixou a vista e viu um corte irregular em um lado. Parecia uma ferida de arma branca.
Percorreu com os dedos os inchados bordos vermelhos.
—Meu Deus, o que aconteceu?
—Nada. Não é nada. — Murmurou ele sobre sua cabeça e dirigiu as mãos de Rachel para seu peito.
Ela usou os centímetros de separação entre ambos para olhar ao redor, com menos medo já dos ruídos escuros do bosque que estavam tão perto.
—Onde estamos?
—Em minha casa. — Inclusive embora só estavam a uns milímetros de distância, parecia realmente afastado dela, como se estivesse falando do final de um comprido túnel — Aqui é de onde procedo.
O rugido de um grande gato ressoou como um trovão na distância, e depois se ouviram chiados aterrados de outros animais menores. As árvores e arbustos se moviam freneticamente.
Com as últimas frestas de sua mente racional, Rachel se deu conta de que aí não podia viver nenhum homem. Não podia ser Nathan com quem estava falando, e sim uma criação de sua imaginação. Só que esta criação tinha forma e massa. Tinha uma pele como seda banhada pelo suor e com músculos de aço por todo o corpo. Tombou-a no musgoso chão e a cobriu com seu calor.
—O que... O que é?
Ele desenhou um círculo sobre seu mamilo com a língua.
—O que quer que seja?
Ele, ou isso, sugou seu mamilo, mandando ondas de prazer tão intensas que quase gritou. Quando baixou a cabeça, deixou um rastro úmido que produziu um calafrio em Rachel e fez que se pusessem ainda mais duros os mamilos. Inundou-se em seu ventre e mais abaixo, depois, deslizou outra vez para cima por seu corpo, lambendo e mordiscando todos os centímetros de seu corpo. Com cada movimento, os quadris do desconhecido golpeavam contra as dela provocando uma fricção deliciosa. Ela se arqueou e se moveu, procurando aumentar a pressão e, portanto, o prazer para ambos.
Uma parte dela se deu conta de que algo não ia bem, que esse sonho não era como os outros nos que se sentia totalmente conectada com Nathan, capaz de ouvir o que ele ouvia, sentir o que ele sentia. Isto parecia mais uma fantasia orquestrada, a cargo de um e posta em cena.
Uma parte dela sabia que não estava no bosque, e sim em um sofá na sala de estar de uma casa vazia.
Mas não se importava.
A necessidade era tão forte dentro dela que sentia que podia chegar a queimar sua pele.
—Estou preparada. — Disse ao Nathan de fantasia, a criação de sua imaginação — Por favor, estou preparada já.
Rachel procurou sua ereção. Ele deixou escapar um gemido e, por um momento, a fantasia ficou um tanto desfocada. Voltava a estar no sofá com o Nathan de carne e osso sobre ela, respirando de maneira entrecortada. Sua face estava tensa e seus olhos fechados. O suor esmagava o escuro cabelo sobre a testa. Movia os lábios, mas não emitia nenhum som, como se estivesse murmurando ou recitando para si mesmo.
Então, como um disco aranhado que salta e volta a encontrar a pista, voltou para bosque. Tentou procurar na paisagem do sonho a saída para a sala de estar. Procurou algo tangível ao que se agarrar, por Nathan, mas era como estar apanhada dentro de um globo gigante. O véu entre realidade e fantasia cedia a seu tato, mas também a empurrava para trás. Quanto mais forte empurrava, mais opressiva e total era a escuridão do bosque.
As árvores estavam cheias de sons. Os insetos zumbiam e cantavam. Os pássaros piavam. Um pássaro carpinteiro batia no tronco de uma árvore e uma coruja ululava perto. Reconhecia estes ruídos. Acalmavam-na.
Mas não queria pensar nos grunhidos mais profundos e as potentes pisadas.
Em uns segundos, não pôde nem pensar. O Nathan do sonho estava ajoelhado entre suas pernas e baixou seu peso pouco a pouco sobre ela. A ponta de seu pênis mediu sua entrada, realizando círculos e esfregando as sensíveis dobras até que ela se sentiu molhada para ele. Então, ele pôs a palma sobre a úmida pele sobre o coração dela e a deslizou para baixo entre seus seios, sobre seu ventre, deixando um rastro de fogo pelo caminho.
Fechando as pernas com força ao redor dos quadris dele, o animou a entrar.
Ele abriu as dobras dela com o polegar e o dedo do meio, enquanto que a ponta do indicador fazia pressão justo no centro de prazer.
Rachel gemeu e se apertou contra sua mão. Ele tampou a boca com a sua e se inundou nela com um único impulso que a deixou sem respiração.
Dançaram juntos a um ritmo suave ao princípio, inundando e saindo, deslizando e se movendo. Depois, o ritmo aumentou. Os quadris de Nathan do sonho investiam com toda a força de seu poderoso corpo. Rachel gemeu, abrindo-se e inclinando os quadris para que ele pudesse entrar até o fundo. Depois, agarrou-se fortemente, tentando segurar-se a ele quando se retirou para outra investida.
O ritmo voltou a acelerar. As erráticas tentativas de Rachel por respirar seguiam o ritmo dos corpos chocando e os gemidos e gritos de prazer. Tentou pensar, memorizar o momento, as sensações, mas foi incapaz de nada. Só havia calor e desejo e a absorvente sensação do pênis de Nathan se inundando até o mais profundo de seu ser, acariciando partes dela que nunca pensou em expor a um homem. Sentia que se partia em duas e que estava completa.
Segurou suas costas com os dedos. Arqueou-se debaixo dele, sedenta dele, o animando a seguir. O corpo de Nathan se estremecia quando o tocava.
O sangue começou a se concentrar em seu clitóris, como um fluido que escorre por um túnel. Gemeu incapaz de controlar o enorme poder do orgasmo. Mas tampouco desejava controlá-lo.
O tempo parou. Um segundo se transformou em um século. Nathan se movia sobre ela com movimentos lentos. Olhou nos olhos dele e a criação de sua imaginação e o homem de carne e osso se fundiram. Sentiu a necessidade dele, dez vezes mais intensa que a sua e sentiu seu controle, suspenso por um fino fio. Quase não teve tempo de pensar em que algo não ia bem, que não estava perdida na paixão de fazer amor, antes de se desfazer.
A onda do clímax levou qualquer pensamento possível. Qualquer tipo de controle. Cegou-a. Deixou-a surda. Quão único podia fazer era esperar e sentir. Sentir os espasmos que recomeçaram em seu corpo como convulsões. Sentir a onda de calor entre as pernas. A doce volta à realidade à medida que o sonho desaparecia.
—Merda!
Rachel tinha os olhos abertos, mas, por um momento, sua mente não foi capaz de processar o que via porque não coincidia com o que esperava ver.
Voltava a estar no sofá e, exceto pelas botas que tirou antes, seguia com toda a roupa posta, igual a Nathan. Ele se inclinou sobre ela, mas teve que sustentar todo seu peso com um só braço. Seu outro braço... Rachel procurou ar. Seu outro braço estava metido pela cintura desabotoada de suas calças jeans. Tinha os dedos dentro dela, três deles. Os últimos vestígios de seu orgasmo envolveram com suavidade os dedos dele. Seu membro, embora fazia uma tremenda pressão contra a braguilha de seu jeans negros, estava guardado e fora da vista. E, sem dúvida, fora de seu corpo. Rachel tinha a mão direita entre suas duas fortes coxas, tomando seus testículos através do duro tecido do jeans.
Tirou a mão. Um rubor subiu pelo pescoço até a face.
Tinha sido tudo imaginação dela? Tinha estado sonhando que faziam amor enquanto ele a masturbava?
Por certo, tinha sido uma masturbação de primeira.
Confusa tanto como podia estar, abriu a boca para perguntar, mas foi incapaz de pronunciar palavra.
Nathan olhava pela janela, alheio a suas dúvidas. Tinha as costas rígidas, os ombros tensos. Respirava tomando grandes baforadas de ar, como alguém que esteve sob a água muito tempo e acaba de sair para respirar. Os tendões do pescoço se esticavam com cada respiração. Uma veia destacava em seu pescoço e apesar da falta de calefação da sala, o suor caía pelas têmporas a ambos os lados do rosto formando um fluxo regular. Embora não se movia, seus músculos se esticavam e relaxavam de maneira aleatória, como se algo vivo se movesse por debaixo de sua pele, tentando encontrar uma maneira de sair.
Mas foram seus olhos os que pararam seu coração e devolveram a lembrança daqueles que brilhavam entre os arbustos do bosque de seu sonho. Por um instante, seu olhar adquiriu o resplendor de uma espécie de luz do exterior. Brilhou com um verde profundo.
Depois, piscou e o efeito desapareceu.
—Maldição. — Exclamou entre respirações. Tirou os dedos de dentro dela e a deixou sentindo-se tão vazia como uma maçã sem semente.
Esfregou a face com as mãos. O relógio do suporte da lareira marcava uma da madrugada.
—O que acontece? Algo não vai bem?
—Jenny Lovell acaba de sair pela janela de seu quarto. Está a caminho.
Capítulo 16
Nathan sabia que tinha que se separar de Rachel, rapidamente, mas não estava seguro de poder se mover. As pernas eram como de borracha e não importa quão profundamente respirasse porque não podia conseguir suficiente ar. Manter o controle das imagens que tinha introduzido na mente de Rachel o tinha esgotado.
Manter o controle sobre seu próprio impulso de arrancar a roupa e introduzir algo mais que sonhos quase o tinha matado.
Continuava matando-o. Era uma morte lenta e dolorosa.
“Se limite a respirar”, disse a si mesmo. Dentro e fora.
Não, não era uma boa imagem.
Se limite a respirar.
Rachel se apoiou sobre seu torso e saiu de debaixo dele.
—Temos que ir.
O animal dentro dele cobrou vida, reagindo e agarrando-a pela cintura e segurando-a. Para trazê-la arrastada se precisasse. Custou a controlar o rugido que ameaçava sair de sua garganta.
— Nathan! — Rachel resistiu — Vamos perdê-la. Temos que ir já!
Suas palavras soavam longínquas. Os tambores que retumbavam na cabeça dele as apagavam. Sobre o estrondo, elevou-se o eco de um cântico antigo, chamando Nathan para cumprir sua obrigação. Procriar. Povoar o mundo com sua espécie.
Apertou os delicados ossos da cintura de Rachel com uma força tremenda, viu que ela fazia uma careta e conseguiu afastá-la com as últimas forças restavam.
Não! Não ia ceder diante da magia que ia contra sua vontade. Resistiria.
As pernas tremiam como as de um cervo recém-nascido quando ficou em pé.
Esfregando o braço, Rachel observou com uns enormes olhos luminosos.
—Está bem?
A risada de Nathan foi fraca e trêmula, mas real. Olhou seu dolorido e ereto pênis, depois olhou a ela e conseguiu encontrar de algum jeito a força para esboçar uma espécie de sorriso.
—Me dê dez minutos e um cubo de água fria e depois volta a perguntar.
Seguiram à namorada de Von quatro quadras até chegar a um bairro comercial de baixa renda, mantendo-se a certa distância e caminhando ocultos, porque Jenny tinha o costume de olhar para trás com frequência e não queriam assustá-la. Girou para o sul no semáforo de Delta Drive e caminhou quase um quilômetro entrando em uma zona cada vez pior.
Os comércios protegidos por persianas de ferro deram passo a negócios cobertos com pranchas de metal. As ruas se estreitaram e se fizeram mais escuras, enquanto o vapor de lixo podre se fazia mais patente. Rachel deu um pulo quando uma pilha de jornais que havia na calçada se moveu ao pisar nela e de entre eles apareceu a cabeça de um homem com um desarrumado gorro de lã.
—Olhe por onde pisa, puta. — O vagabundo gesticulou, enquanto os dedos apareciam por uns buracos situados nos extremos de um par de velhas luvas.
Nathan se interpôs entre Rachel e o vagabundo em um décimo de segundo.
—Não passa nada, amigo. Tudo bem.
O homem grunhiu e voltou a tampar a cabeça com os jornais. Eles seguiram caminhando.
Na seguinte esquina, reduziram o passo. Jenny abriu caminho através de um solar vazio cheio de lixo e apareceu pela esquina de uma lâmina de lata colocada sobre uma janela situada ao mesmo nível chão de um edifício abandonado. Quando desapareceu da vista, os dois assentiram olhando-se e a seguiram.
Escondidos no exterior do refúgio de Jenny, olharam pelo escuro corredor. As pisadas das botas de Jenny contra o chão de concreto eram claramente audíveis, mas nem sequer Nathan, com sua excepcional visão, podia distinguir a magra figura da garota caminhando pelo corredor. Se perguntou se Rachel, com olhos humanos, podia ver algo.
Obteve sua resposta quando uma segunda figura saiu das sombras e tomou à garota entre seus braços. Era Von.
Rachel girou a cabeça para Nathan. Um sorriso de satisfação iluminava seu rosto.
—Temos ele. — Disse em voz muito baixa.
Quando o casal se introduziu por um corredor perpendicular ao primeiro, Rachel afastou a lâmina de lata e levantou uma perna que colocou pela janela.
—O que está fazendo? — Sussurrou Nathan.
—Vou atrás deles. Vem ou não?
—Não tem nem ideia de quantos drogados e vagabundos se metem por aqui para se resguardar do frio. Não pode entrar.
—Não vou deixar que escape. E, se este lugar for tão perigoso, não penso deixar Jenny aqui. — Colocou a outra perna pelo oco — Pode vir comigo ou ficar. Você escolhe.
Como se tivesse escolha. Subiu atrás dela antes que desaparecesse na escuridão.
Em silêncio, seguiram os pequenos ruídos que Jenny e Von produziam ao caminhar. Um murmúrio. Um fraco passo. O ruído do tecido sendo movido. Uma porta se fechando.
A luz das velas iluminavam algumas partes do corredor principal. As sombras escuras deslizavam pela descascada pintura das palavras como macabras sombras chinesas, dando ao lugar uma sensação tenebrosa. Chegavam ruídos de gente de por trás de uma porta fechada, e em algum lugar mais acima um bebê começou a chorar. Nathan tinha razão. Von não era a única pessoa que rondava por esse lugar essa noite. Mas, por sorte, ninguém os incomodou. Por agora.
Nathan permanecia perto de Rachel.
O percurso terminou no terceiro andar, em um corredor de linóleo quebrado que se dobrava nas esquinas como as páginas de um velho livro. Von e Jenny estavam tombados face a face sobre uma manta no final do corredor. Três círios derramavam cera por um velho radiador situado sobre eles. Von tinha um dos braços por debaixo da cabeça de Jenny. O outro estava sob a jaqueta da garota.
Antes que Nathan pudesse detê-la, Rachel caminhou para eles até estar a uns cinco metros de distância. Ele permaneceu onde estava, oculto atrás da parede. Se ia se produzir uma luta, o elemento surpresa iria a seu favor.
—Ela merece algo mais que uma suja manta no chão de uma favela como esta, não acha, Von? — Disse Rachel.
Jenny se assustou e afastou o Von de um empurrão e depois baixou o pulôver. Von ficou em pé de um salto e se agachou, preparado para lutar. Olhou para a escuridão, e o reconhecimento apareceu em seu rosto. Ao menos, teve a decência de parecer quase tão envergonhado como a vermelha garota que aparecia por trás de seu ombro.
—Quem é você, dona? O que quer de mim?
—Rachel Vandermere e só quero te perguntar algumas coisas.
Von ficou um pouco tenso, mas pela forma em que percorria com o olhar o lugar, Nathan supôs que estava procurando um lugar para saltar. Depois de tirar em silêncio o casaco, preparou-se imediatamente para a luta.
—Me perguntar o que? — Perguntou Von, protegendo atrás dele uma assustada Jenny.
—Sobre William Bishop e o tiroteio do museu da semana passada.
—Não conheço nenhum William Bishop. E não sei nada do tiroteio.
—Então, talvez possa me explicar por que suas digitais estavam em sua pistola.
Já estava, Von se assustou, tal como havia predito Nathan. Equilibrou-se para uma porta situada a meio caminho entre ele e Rachel. A porta tremeu em seu marco, mas aguentou. Rachel se dirigiu para ele. Jenny a olhou, depois olhou Von e depois voltou a olhá-la a ela, com lágrimas caindo pelas bochechas.
—Não o machuque, por favor .— Agarrou-se à costas de Von.
—Não vou...
Von voltou a golpear a porta com um grito. A ombreira cedeu, e o tolo quase cai de cabeça pelas escadas. Quando conseguiu recuperar o equilíbrio, Rachel estava sobre ele. Nathan se jogou. Rachel estendeu os braços e os arrumou para segurar Von pelo pescoço da camisa, mas ele empurrou Jenny para ela e se soltou, descendo pelas escadas a toda pressa.
Rachel agarrou Jenn, e Nathan agarrou Rachel. Rachel deu meia volta e empurrou à garota nos braços de Nathan. Então, saiu disparada escada abaixo com um suave movimento. Nathan deixou Jenny a um lado e saltou os primeiros três degraus correndo atrás dela.
Rachel realizou uma pausa e olhou para cima.
—Fica com a garota. — Disse, e seguiu descendo as escadas.
Nathan olhou para a porta. Jenny estava com as mãos entrelaçadas na parte inferior da jaqueta. Estava pálida e seu queixo tremia.
Amaldiçoando, Nathan subiu e a agarrou pelo pulso, puxando-a para ele.
—Vamos. Temos que alcançar a seu amorzinho antes que faça alguma tolice pior que as que faz normalmente.
Ter que arrastar Jenny o fazia ir mais lento, mas podia ouvir a perseguição. As portas se fechavam de repente e as pranchas do chão rangiam. Os vagabundos gritavam:
—Se mande daqui!
Preocupava-se com Rachel, e se expôs deixar a Jenny, mas Rachel tinha razão. Este não era lugar para deixar sozinha a uma garota de dezessete anos.
Percorreram um corredor no segundo andar, mas ouviu Rachel gritar sobre ele. Amaldiçoando, encontrou outras escadas e subiu a grandes pernadas por elas, com a jovem arrastada a reboque.
O silêncio que o recebeu ao chegar acima o assustou mais que o violento ruído da perseguição.
—Rachel? — Chamou, mas não respirou até que ela respondeu.
—Aqui.
Encontrou-a na intercessão de um pequeno corredor com um corredor lateral.
—Onde? — Perguntou.
Rachel indicou uma porta ao final do curto corredor.
—Não há saída. — Disse.
O coração de Nathan se deteve por um instante. Von estava encurralado, e como qualquer besta encurralada, era muito perigoso. Imprevisível. Era jovem, muito jovem para controlar por completo seus poderes, mas a energia primária da raça de guardiões fluía por suas veias. O instinto selvagem de caçar. De matar.
Não se renderia sem lutar, e se ia lutar, ia usar todas as vantagens que possuía para ganhar. Lutaria como um gárgula e Rachel se interpunha entre ele e sua liberdade.
—Vou atrás dele. — Disse Rachel.
Nathan a agarrou pela jaqueta.
—Dê a ele um minuto para pensar. Deixe que se acalme.
Com desespero, procurou a mente de Von e mandou imagens ao menino. Imagens serenas. Calma.
Em troca, obteve um ataque de fúria que quase o atirou ao chão. O menino era forte, isso sim tinha que reconhecê-lo.
—Acabou-se o tempo. Acabemos com isto antes que alguém saia ferido.
Isso era justamente o que Nathan estava tentando fazer, só que não pensava que Rachel pudesse consegui-lo. Rachel avançou um pouco, passo a passo lentamente.
Maldição, a coisa ia ficar feia.
Tinha que tirá-la dali. Já. Se fosse necessário, a tiraria arrastada.
Sua gente se encarregaria de Von. Com um rastro fresco que seguir, encontrariam-no.
Voltou-se para Jenny, afastou-a até o lugar mais afastado do corredor, e pôs os ombros contra a parede.
—Fique aqui.
—Von? — Ouviu que Rachel chamava. Quando voltou, ela quase tinha chegado à porta — Só quero conversar.
Esperando que aguentasse uns quantos segundos mais, Nathan concentrou sua energia e lançou a Chamada. Agora, quão único podia fazer era esperar que sua gente respondesse, dado que ele era um proscrito.
Rachel estava junto à porta, não diante dela, tal como a tinham ensinado. Com cuidado, estendeu uma mão e provou a abrir o pomo. Não estava fechado! Preparou-se para saltar em caso de que Von tentasse se jogar sobre ela, e a abriu empurrando-a.
Ouviu uma forte respiração dentro, depois um par de bufos, quase grunhidos. Estava bem? Estava ferido?
—Von, está me ouvindo? Não vou te machucar. Só quero falar contigo.
A única resposta que obteve foi um brusco bufo e um ruído como se alguém arrastasse algo pelo chão. O bufo se fez mais forte, mais nervoso. Arriscou-se a aparecer pela soleira da porta, retirando-se quando dois olhos verdes brilhantes resplandeceram olhando-a do ponto mais afastado da sala. Algo rugiu e grunhiu.
Havia alguma espécie de fera com Von!
Respirou fundo, pronta para saltar em defesa do menino, mas assim que começou a mover-se para frente, o mesmo assobio desagradável que tinha ouvido na casa dos Lovell no dia anterior a deteve em seco. O estridente ruído a imobilizou durante uns instantes. Sobrecarregou seus sentidos durante uns três segundos, depois se deteve com a mesma secura com a que tinha começado, mas era muito tarde. Ouviu o ruído de umas patas sobre o chão dirigindo-se para a porta onde ela estava. Viu os estranhos olhos olhando-a diretamente, a silhueta de uns chifres serrados que se sobressaíam da cabeça da besta. Sentiu a úmida carne de um focinho golpeando-a por cima do joelho, depois o toque de um cabelo duro. Viu as presas, brilhando brancas sob a fraca luz, justo antes de sentir que os dente rasgavam os jeans e se afundavam em sua panturrilha atravessando a carne. O resto do corpo do animal passou raspando-a, trocando de pelo a escamas à medida que uma afiada cauda de réptil abria sua carne de uma só chicotada. Uma aguda dor a invadiu em questão de segundos depois do ataque inicial, e sentiu como o sangue escorregava pelas meias três-quartos.
Ao final, sentiu que caía, com o corpo intumescido pela dor. Mas Nathan estava aí para segura-la. Deu um chute na besta e esta saiu correndo, dolorida. Rachel tentou vê-la melhor, mas tinha a vista imprecisa. O teto parecia dar voltas sobre sua cabeça enquanto ela caía.
A cabeça e o mundo que a rodeava davam voltas sem cessar, mas ela as arrumou para pensar algo justo antes de chegar ao chão: tinha visto um monstro.
Agora Nathan teria que acreditar.
Nathan golpeou com os dedos o volante do Honda alugado de Rachel enquanto observava como Jenny Lovell subia até a janela de seu quarto e entrava às escondidas. As luzes da casa seguiram apagadas. Parece ser que os pais seguiriam desconhecendo sua pequena escapada ao mundo selvagem dessa noite. Inclusive embora se sentia culpado por ajudá-la a entrar às escondidas, sentiu-se aliviado. Não acreditava que o senhor Lovell tomasse muito bem as notícias de suas aventuras noturnas.
Enquanto punha em marcha o carro, olhou para Rachel. Tinha os olhos abertos e a cabeça levantada, mas parecia ausente. Virtualmente, levou-a todo o caminho do até Buchanan Street, e seu carro também. Por um acordo não verbalizado, nenhum deles havia dito uma palavra, não diante de Jenny. Mas agora que a garota estava segura em sua casa, Nathan sentia que a conversa que tanto temia estava a ponto de se realizar.
Tinha razão.
Depois de percorrer três quadras, girou a cabeça para ele e disse:
—Não posso acreditar que deixou que Von voltasse a escapar.
—Preocupava-me mais você. Desmaiou em meus braços.
—Viu-o, não é?
Nathan apertou a mandíbula de maneira inconsciente.
—O que?
Rachel se incorporou. Estava tão pálida como a lua e suas pupilas eram grandes e escuras. Destacou a perna. Tinha-a envolto com o casaco de Nathan para deter a hemorragia.
—Pois a coisa que me fez isto!
—O cão selvagem?
—Não era um cão!
Nathan voltou a olhar para a escura estrada que se desdobrava diante deles.
—Vou te levar ao hospital. Terão que limpar e costurar essa ferida.
—Não quero ir ao hospital. Quero que me diga o que viu.
Nathan apertou os dedos sobre o volante. O que podia dizer?
—Estava escuro. — É a desculpa que ocorreu.
Rachel voltou a se recostar no assento e ficou olhando o teto. Desenhou ganchos de ferro sem sentido na janela. Ao menos, ele pensava que eram aleatórios até que olhou e viu que estava desenhando seu reflexo no vidro.
—Covarde. — Disse Rachel.
A acusação retorceu os intestinos como um trapo velho.
—Se sentirá melhor pela manhã, quando tiver tido tempo de pensar sobre isto e verá que foi o choque e a adrenalina e esse estranho lugar o que fez que parecesse...
—Não me trate como a uma criança, Nathan. Tinha os olhos amarelo esverdeados incandescentes, patas e focinho.
—Possivelmente havia aí algum tipo de javali.
—Em Chicago?
—Poderia ter sido um mascote ou ter escapado do zoológico.
Rachel cruzou os braços diante do seio e deu a volta para voltar a olhá-lo.
—Tinha chifres. E uma cauda de lagarto.
A boca de Nathan secou. Maldita mulher que se fixa em tudo. Tinha visto bem. Esperava que não tivesse visto o aro do nariz e os brincos das orelhas que Von tanto gostava de usar, inclusive em forma de gárgula, ou somaria dois mais dois e eles teriam problemas. Muitos problemas. Por agora, suas esperanças de que abandonasse a busca de Von tinham desaparecido.
Rachel suspirou quando viu que Nathan não reagia diante sua descrição.
—É o homem mais teimoso que conheço. Tem a cabeça mais dura que a dessa besta que me atacou.
Nathan tentou não sorrir, mas não pôde evitá-lo.
—Bom, isso é algo no que estamos de acordo.
—Não me importa se o admite ou não. Sei o que vi. E vou voltar a encontrá-lo. Não pararei até que achá-lo.
Que é justamente o que temia Nathan.
A verdade do que tinha que fazer cravou nos ossos como um frio invernal. Pensou que era terrivelmente valente por seguir com suas crenças até o final. Não deixava que ninguém dissesse que o que ela acreditava não era certo. Enfrentava à vergonha e à humilhação por suas crenças. Lutava contra a coerção e as críticas diretas, mas nunca deixava que acabassem com ela nem com seu espírito.
Mantinha o voto que tinha tomado diante das tumbas de seus seres amados, seus pais, e nunca deixou que a pressão os rompesse.
Mas agora tinha visto um de sua espécie. Não podia permitir que guardasse essa lembrança.
A ideia de roubar algo precioso para ela, a prova de que todos estes anos tinha estado certa, punha-o doente. Mas se não o fazia e outros gárgulas se inteiravam do que tinha visto, algum deles o faria.
Forçou a aliviar a pressão que exercia com os dedos sobre o volante.
—Está segura de que não quer que te leve a hospital?
—Sim. Estou bem. — Tentou levantar o pé e realizou uma careta de dor — De verdade.
Um suor começou a escorregar sob o pescoço de sua camisa enquanto dirigia o Honda para o Lake Shore Drive e seu apartamento.
Sua gente levava muito tempo protegendo-se frente aos poucos humanos inocentes que tinham visto substituindo a imagem por uma lembrança pré-fabricada. Não era algo difícil de fazer.
Com a maioria dos humanos.
Mas a mente de Rachel funcionava de maneira diferente. Parecia ter tanto acesso a seus sentimentos e estímulos sensoriais como ele aos dela quando estabelecia a conexão. Tinha usado a técnica para criar a experiência de fazer amor para ela para poder fazê-la gozar, para poder tê-la, de algum jeito, sem tomá-la e seu controle sobre a fantasia tinha sido muito tênue. Ela tinha tirado o cenário do bosque de sua mente e ele tinha sido incapaz de voltar a colocá-la nele. Durante toda a fantasia, ela tinha exercido pressão sobre a barreira que ele tinha conseguido criar entre suas mentes.
Se tentava voltar a influir sobre ela e ela conseguia superar essa barreira, poderia entrar no mais profundo de sua mente, onde não haveria lugar para se esconder. Não haveria segredos.
Veria exatamente quem e o que, era na realidade.
Capítulo 17
Fazendo malabarismo com uma bandeja de bambu que continha uma xícara de chá e o estojo de primeiro socorros que tinha reunido para Rachel, Nathan avançou com cuidado pelo tapete que se encontrava entre sua cozinha e a sala de estar, onde a tinha deixado sobre o sofá com o pé apoiado em umas almofadas.
Não estava.
—Rachel?
—Aqui. — Respondeu da sala de jantar.
—Passa algo?
—Estava procurando, bom, o banheiro, acredito que chegou antes.
Nathan deixou a bandeja e pôs o pano de cozinha limpo que tinha pendurado do braço ao lado.
—Necessita ajuda?
—Só se quer me salvar a perna e ver como morro do ódio.
Essa era sua garota. Nunca deixe que o vejam nos momentos de debilidade.
Nathan assinalou com a cabeça as portas duplas situadas à esquerda da cama de seu apartamento.
—Por ali. E aproveita para tirar as calças.
Rachel piscou incrédula.
—Para que assim possa limpar sua perna. — Disse ele — Há um penhoar atrás da porta do banheiro. Ponha-o.
Nathan esperou no sofá, mentalizando para a noite que vinha. Quanto mais perto estava do momento em que tentaria trocar as lembranças, mais inseguro se encontrava. Não sabia se poderia fazê-lo.
Quando suas mentes se conectavam, a atração sexual que havia entre eles superava os dois. E quanto mais longe chegava com ela, quanto mais perto se encontravam de fazer amor, na realidade, não em uma fantasia, mais perto precisava estar. Era como um drogado, que sempre necessita um pouco mais. Ela era sua droga.
Levantou a vista e viu que estava observando da outra ponta da sala. Dobrou os dedos dos pés sobre o tapete e observou o entorno.
—É mais acolhedor do que esperava.
Ele seguiu o olhar dela sobre o quente sofá de pele cor creme com almofadas marrons e douradas em ambos os extremos, até chegar ao tapete de um bege neutro. Umas claras linhas sobre a malha deixavam claro que a mulher da limpeza tinha passado o aspirador fazia pouco.
Rachel tomou seu tempo para observar as estantes de livros que foram do chão ao teto e que enquadravam ambos os lados de uma lareira de mármore, com umas saudáveis samambaias sobre ela.
A grande cama de ferro repleta de almofadas pega à parede mais afastada.
Depois de voltar-se para ele, arqueou uma sobrancelha.
—Contratou um decorador?
—Não. — Tinha escolhido todos os móveis ele mesmo, comprando-os por sua comodidade assim como por sua estética. Deu uns golpes sobre a almofada que tinha ao lado.
—Venha. Acabemos com isto.
Rachel chegou até ele coxeando e Nathan afastou um montão de revistas de arte para que ela pudesse pôr o pé sobre a mesa auxiliar de pinheiro negro com pernas de ferro forjado. Depois, passou o chá que tinha preparado para ela.
—Bebe-o. Te fará esquecer o que vou fazer.
Tudo o que ia fazer, espero.
Rachel sorveu em silêncio enquanto Nathan molhava o pano de cozinha e esfregava a perna. Sua panturrilha era suave e fresca, firme sem estar muito musculosa, e se afinava até chegar a um delicado tornozelo. Enquanto ele limpava o sangue seco, sentiu-se como um restaurador que restaura uma valiosa obra de arte. Cada milímetro da pele de marfim que descobria era perfeita. Imaculada.
Exceto pelos dois grandes cortes.
Uma onda de proteção percorreu o corpo. Era capaz de matar Von por isso.
A raiva o fez esfregar a perna com muita força, e ela se queixou.
—Perdoa.
O pior dos dois cortes gotejava um líquido claro, mas o sangramento se deteve. Não parecia haver sujeira nem restos na ferida, mas a limpou, pondo o pano debaixo e vertendo um fino jorro de água do copo que havia na bandeja para se assegurar. Não parecia doer. Tinha os músculos da face relaxados, o que dava um ar de inocência infantil. Os olhos tinham adquirido um brilho cristalino.
—Se te perguntar algo me responderá com sinceridade, Nathan?
Ele se inclinou sobre a perna para inspecionar seu trabalho.
—Se for me perguntar se vi um monstro, a resposta é não.
—Por que não fez amor comigo esta tarde?
Controlou-se antes de elevar o olhar, antes de ter que olhar a esses cristalinos e inocentes olhos verdes e mentir, mas não pôde deter a pressão que começava a produzir-se na virilha.
Escorreu a água do pano e voltou a esfregar a perna.
—Porque você teria se arrependido depois.
—Não pode sabê-lo.
—Sei.
Nathan se inclinou sobre a bandeja e tomou o pote de pedra de remédio da bandeja de bambu.
Ela enrugou o nariz.
—O que é?
—Uma massa de ervas. Ajudará com o inchaço.
—Cheira a esgoto.
Nathan esperou que o fedor não fosse o suficientemente forte para esclarecer a cabeça. Necessitava que estivesse um pouco tonta.
—Não é de esgoto, juro isso. Só um pouco de confrei, mirra e suco de alho.
—Bom, ao menos estarei a salvo dos vampiros esta noite. — Rachel olhou com desconfiança, mas não tirou a perna — Teryn tinha uma pequena estufa de ervas em seu escritório. Ele te ensinou o que sabe sobre elas?
—Eu ensinei a ele.
Rachel inclinou a cabeça com curiosidade, mas não respondeu nada.
Recordando-se com firmeza que tinha que pensar no objeto que segurava com as mãos e não em uma longa e sensual perna que terminava em uma alta e sensual mulher, lubrificou com suavidade a massa pelas bordas das feridas com suaves movimentos circulares. Elevou a vista para assegurar-se de que não estava fazendo mal a ela e viu um rosto doce e tranquilo. Rachel fechou os olhos e se estirou como um gato em um batente ensolarado.
Agora era o momento, enquanto ela estava relaxada. Agora era o momento de trocar suas lembranças.
Mas, maldição, não queria fazê-lo. Odiava a ideia da invasão, a manipulação. Mas o que ele queria não importava. Tinha que fazê-lo.
Procurou em sua mente uma forma de levar a perseguição de Von à primeira fila dos pensamentos de Rachel, para levar a mente de volta ao edifício abandonado.
Não precisou. Ela já estava ali.
Um ardiloso sorriso, cheio de regozijo, apareceu no rosto de Rachel pouco a pouco.
—Nega o quanto queira, Nathan, mas sei o que vi hoje. E sei que você viu também.
Os dedos de Nathan apertaram os delicados ossos do tornozelo de Rachel. O coração palpitava lento e com força, como um tambor dentro de seu peito.
—O que vimos?
—Um monstro. Depois de todos estes anos, por fim vi outro monstro. — Seus acetinados olhos verdes se abriram, mas parecia que pesavam as pálpebras.
Com grande cuidado e delicadeza, Nathan provou com sua mente e encontrou as etéreas bordas da lembrança. Ela estava diante a porta pela que tinha entrado Von a toda pressa. O coração pulsava com força, podia senti-lo em seu próprio peito. Viu o brilho verde de uns olhos ferozes como ela. Ouviu o animal grunhir e rugir. O medo percorreu seu corpo como um trem bala tentando chegar a tempo, mas com o medo havia outra emoção. Júbilo. O doce sabor da vitória.
Rachel sorriu como o gato proverbial que conseguiu o canário.
—Que pena que todos esses assistentes sociais e psicólogos não tenham estado aí. Eu gostaria de ter visto se me chamavam louca então.
O estômago de Nathan se retorceu. Se deu conta que Rachel não só procurava monstros para vingar a morte de seus pais. Tentava demonstrar-se a si mesma que não estava louca.
Agora que por fim tinha a prova que levava tanto tempo procurando, ele ia arrebatá-la.
Controlando as náuseas que sentia, inundou-se mais dentro na mente dela, concentrando seus pensamentos em algo concreto. Tentou afogar os olhos brilhantes na escuridão recordada, os sons no silêncio. Rachel franziu o cenho, mas a fina malha de sua lembrança permaneceu. Tinha que levá-la a um momento anterior, até antes de ter visto o Von em forma de gárgula.
—Acredita em mim, não é? — Disse sonolenta — Desta vez, tem que me acreditar.
—Me diga o que viu. Tudo, do momento em que se afastou de Jenny e de mim.
Nathan visualizou a lembrança de Rachel como uma bola de cristal com os acontecimentos desenvolvendo-se no interior e tomou nas palmas das mãos. Sentiu que se esquentava ao tato, adotando a forma das mãos para poder manipulá-la.
Rachel esfregou a testa ausente.
—Persegui-o escada abaixo até chegar a um corredor comprido. Estava escuro. Havia caras nas sombras. Observavam-me, algumas me gritavam. Estava a ponto de alcançar Von, mas tropecei. Olhei para o chão e me dava conta de que um velho me tinha agarrado pelo tornozelo. Respirava com tanta força que não podia gritar.
Nathan sentiu a profunda aspiração de ar nos pulmões do Rachel. Ouviu a voz áspera.
—Mas me soltou. Não era mais que um vagabundo que despertou com a perseguição. Von girou e subiu por outras escadas.
—Você o seguiu até o terceiro andar. Ao menos, pensava que estava nesse andar. — Sugeriu Nathan.
Nathan imaginou um corredor vazio e tentou forçar essa imagem sobre a de Von correndo pelo corredor. A memória maleável se endureceu, resistindo a seu ponto de vista sobre o que tinha acontecido.
Rachel enrugou a testa.
—Estou segura de que subi ao terceiro andar. Quero dizer que... Vi-o. Acredito que vi.
—Confundiu-se. Perdeu-o, mas decidiu olhar nessa planta no caso dele estar ali. Caminhou pelo corredor.
—Detive-me diante a última porta. — Disse ela, com uma voz menos convencida agora.
—Mas não viu nada. A sala estava vazia.
Nathan espremeu a lembrança imaginária em suas mãos. Ela choramingou. Arqueou as costas como se doesse algo.
—Vi... Bom, acredito... Estava escuro.
Os ombros de Nathan doíam pela tensão. Limpou o suor da testa com a manga.
—A janela estava quebrada. A luz da lua entrava através dela e podia ver com claridade que não havia ninguém na sala.
Rachel moveu a cabeça da esquerda para direita. Movia o peito enquanto respirava de maneira entrecortada pelo desespero.
—Não, estava escuro. A janela estava tampada. Apareci pela soleira da porta.
—Mas não viu nada. Não ouviu nada.
Nathan concentrou toda sua energia na mente de Rachel, em sua lembrança, mas ela seguia resistindo às tentativas de trocar o que tinha visto. Assaltaram-no as lembranças de outros momentos da vida de Rachel: seu pai segurando-a enquanto ela estava montada em um cavalinho de um carrossel, sua mãe estendendo a toalha do piquenique sob um arce em um prado verde. Cada vez que ele jogava a um lado um desses momentos familiares, sentia uma dor que atravessava o crânio. Agora Rachel não estava resistindo, estava lutando.
Como demônios podia fazer isso uma humana?
Apertando os dentes, Nathan se segurou à lembrança do corredor do edifício abandonado. Da sala.
A sala vazia.
—Ao princípio, não. — Disse Rachel, esfregando-as têmporas sem consciência. Parece que a guerra que estavam liberando também custava um preço a ela, embora não fosse consciente de estar lutando. — Estava a ponto de entrar quando começou esse maldito assobio.
Nathan perdeu o controle mental da lembrança de Rachel como se fosse uma barra de sabão que tentou segurar com muita força com as mãos molhadas.
—Que assobio?
—Não o ouviu? Esse ensurdecedor assobio um minuto ou dois antes que descesse pelas escadas atrás de mim. Todo mundo deve tê-lo ouvido em um raio de duas quadras. Por um momento, pensei que Von tinha disparado o alarme de incêndios ou algo assim. Durou só uns segundos, mas era tão alto que parecia vir de dentro de minha cabeça e não do exterior.
A temperatura do corpo de Nathan passou de estar superaquecida a congelada em um abrir e fechar de olhos. O suor que tinha escorregado por segundos em seu rosto antes parecia água gelada sobre sua pele. Sabia exatamente o que tinha ouvido, e não era um alarme de incêndios.
Tinha ouvido a Chamada.
Desta vez, não era o coração de Rachel o que sentia palpitando no peito e sim o seu próprio. Era impossível!
—Depois, olhei na sala, mas não era Von quem estava olhando. Era uma espécie de criatura com uns estranhos olhos verdes incandescentes e focinho. Fiquei paralisada. Não podia acreditar, não podia me mover, então o... Essa coisa, o monstro me roçou. Não sei como Von poderia ter estado aí dentro com isso todo o momento a não ser que...
Suas mentes seguiam conectadas. Nathan tinha perdido todo o controle sobre os pensamentos de Rachel, mas ainda podia senti-la. Sua emoção crescia. A paixão por sua busca fervia dentro dela. Estava embebida pela emoção de seu descobrimento.
—A não ser que troquem de forma. A não ser que essa espécie de porco selvagem fosse Von. — Esfregou os olhos com o antebraço e riu em voz alta — Meu Deus, sei que parece uma loucura, inclusive a mim. Nunca pensei... Quero dizer, suspeitava. Como podiam mover-se por aí, como podiam viver sem que ninguém os visse? Mas nunca tive nenhuma prova. Mas agora...
—A isso chama prova? O que vai fazer com isso? — Um fogo irado ardeu em suas veias — Vai realizar uma conferência de imprensa? Contar sua história ao Newsweek? — Sacudiu a cabeça negando-o — Duvido que nem sequer os tabloides de supermercado comprem uma estupidez como essa.
Sentiu como o alvoroço de Rachel diminuía um pouco e se viu forçado a conter-se mentalmente, sem esquecer que com suas mentes conectadas, ela podia sentir suas emoções, ver as imagens de sua mente com tanta claridade como as da sua própria, se ocorria olhar. Sua verdadeira natureza era vulnerável a ela. Estava exposto.
Rachel levantou o braço e o estendeu para ele como se quase não pudesse manter os olhos abertos.
—Não necessito de nenhum jornal para validar o que vi com meus próprios olhos. E sabe que não procuro publicidade.
—Que busca, então?
—A verdade, Nathan. Só a verdade.
Como podia discutir isso?
Rachel se incorporou e se esfregou a face com as mãos.
—Deus, de repente me sinto tão cansada.
Nathan tirou os pés de cima de seu colo e os pôs no chão de maneira um tanto brusca.
—É tarde. Deveria dormir.
Um deles deveria dormir e não seria ele. Tinha muitas coisas nas que pensar. E não podia levá-la de volta ao hotel. Não podia deixar que se fosse enquanto seguia com ideias sobre homens que se convertem em monstros na cabeça.
Deus santo, o que ia fazer com ela?
—Pode dormir em minha cama. — Esfregou a face com as mãos e tentou não pensar em levá-la ele mesmo, tombar junto a ela, em cima dela. Não poderia passar nunca, e menos essa noite em que não era responsável por suas ações.
Rachel suspirou, e girou o corpo de forma que as pernas que estavam longe dele se dobraram para seu lado. Com uma das mãos começou a brincar com o cabelo da nuca de Nathan. Com a outra palma da mão, acariciou seu peito. O coração de Nathan procurava os dedos de Rachel com cada pulsar.
Com a cabeça apoiada sobre seu ombro, Rachel elevou a vista. Seus olhares se encontraram e o fogo que ardia dentro dele se esquentou mais. Maldição era preciosa.
—Está bem. — Sussurrou Rachel — Não tem que admitir que também o viu. Não esta noite.
—Rachel...
—Sei que há muito que aceitar. — Rachel refugiou o rosto na curva do pescoço de Nathan. Uns suaves lábios beijaram os tendões de seu pescoço — Mas, no final, entrará em razão.
Essa simples aceitação, esse simples perdão, embora estivesse provocado a partes iguais pelo chá e por um sentimento real, provocou que outro tipo de monstro começasse a cobrar vida dentro dele.
Deveria tê-la afastado, mas era quão único podia fazer para não apertá-la contra si. O movimento do peito de Rachel junto a ele era como o canto das sereias, chamando-o e empurrando a tocá-lo. Sua cálida respiração sobre a pele de Nathan era o fôlego da vida, que o revivia da morte em vida que era sua existência.
Ela passou a mão entre as costas de Nathan e a almofada do sofá, percorreu toda a coluna e fez que todos os nervos se acendessem como os foguetes de Quatro de julho. Rachel beijou o lado da mandíbula, de tal maneira que Nathan teve que girar a cabeça e procurar seus lábios com os seus.
Nathan teve um último resquício de prudência.
—Está ferida. — Murmurou junto a sua boca.
—Tenho a perna muito melhor, graças a sua poção mágica. — Percorreu com os dedos a pele de cima do cinto, se detendo por um momento na fivela. Esboçou um sorriso junto à bochecha de Nathan — É uma espécie de xamã, Nathan Cross? Um médico ou um mago ou um feiticeiro ou algo assim?
Quão único podia fazer Nathan era respirar, era incapaz de pensar, mas uma parte de seu cérebro ainda era consciente de que a pergunta chegava de algo mais que uma imaginação desbocada. Tinha deixado seu material da investigação estendido sobre a mesa da sala de jantar. Deveria ter adivinhado que antes Rachel não estava procurando só o banheiro. Tinha estado bisbilhotando.
—Viu os livros.
—Magia de Druidas, Paganismo na História, Ritos antigos, Feitiços e Encantamentos. — Fez cócegas na orelha com a ponta do nariz — Deveria estar preocupada se por acaso me transforme em uma rã ou algo assim?
Nathan separou as pernas para deixar lugar a sua crescente ereção. Abriu caminho com uma das mãos por debaixo da jaqueta de Rachel e brincou com a borda de renda do sutiã.
—Só se voltar a realizar uma façanha tão descabelada como perseguir um fugitivo por um edifício desmantelado.
Rachel jogou o pescoço para trás, deixando a garganta exposta diante os famintos lábios de Nathan.
—Acredito que já me lançou um feitiço.
Curioso, Nathan a olhou.
Seus olhos abertos mostravam um verde sonolento tal que Nathan supôs que quase poderia flutuar sobre o sofá. Bem. Estava a ponto de desfalecer, e era o melhor momento.
—Quando olho nos olhos, tenho umas fantasias do mais pecaminosas.
Não tão bem. A pressão quente e dura que sentia entre as pernas começou a palpitar.
—São tão reais — Disse Rachel — É como se eu fosse eu, mas também sou você. Estou dentro de sua pele. Posso sentir sua tensão e seu poder, misturados e preparados para emergir, como um cavalo de corrida na linha de saída. Posso sentir quanto me deseja.
—Não é mais que uma fantasia, Rachel.
—Não tem por que sê-lo.
—Não posso. — Se queixou ele.
Rachel deslizou a mão pela coxa de Nathan até que tomou o palpitante pênis. Apertou-o com delicadeza e Nathan pensou que poderia explodir só com essa ligeira pressão. O zumbido de um enxame, centenas de enxames, de abelhas martelava sua cabeça. Não podia ver.
—Não pode me dizer que não me deseja. — Disse Rachel.
—Estou te dizendo que não posso fazer amor com você. — Fechou os olhos enquanto os dedos de Rachel deslizavam para cima.
Rachel encontrou o fecho do zíper da braguilha e a abriu.
—Então, deixa que eu seja quem faça amor com você.
Capítulo 18
Nathan alongou os braços impulsivamente para detê-la, mas Rachel foi muito rápida. Quando saboreou seus lábios pela primeira vez, as mãos que tinha levantado para afastá-la já estavam enredadas em sua juba, atraindo-a para ele.
Como sempre que estava com Nathan, Rachel era consciente de suas próprias ações, de seu corpo e sensações e entretanto, também era uma parte dele. Seu poder, sua força assustadora, invadiam suas veias, igual a sua luxúria, suas ânsias de tocá-la. Mas também percebia seu autocontrole. Notava o peso da corrente que o freava, que o impedia de entregar-se completamente a ela.
E Rachel jurou que a romperia.
Mordiscou-o e chupou, massageou e modelou, alimentando seu lado selvagem que lutava por se soltar. Provocou com os lábios, os dentes, a língua perversa até que Nathan levantou os quadris com um gemido. Ele empurrou e ela o rejeitou, o incitando a procurá-la.
A cabeça dava voltas, embotada de seu aroma de pedra, almíscar e homem, seu sabor salgado e doce de uma vez, e de suas sensações dela, todo pele suave e curvas, a fricção escorregadia de sua boca úmida.
Nathan avançou para ela outra vez e Rachel sentiu a corda que o atava apertando-o, esticando-o.
Tirou a camisa da calça e deslizou as mãos debaixo, passou as palmas pela pele tensa de seu peito, encontrou os mamilos duros e pressionou as mãos antes de ir mais abaixo. Nathan levantou as costelas ao notar sua carícia. Arranhou os lados com as unhas para aumentar seu...
Dor?
Notou a ardência que sua carícia provocava nele.
Nathan puxou o ar e estremeceu. Ela levantou a cabeça, subiu a camisa e deixou a ferida ao descoberto. Era igual a da fantasia da casa abandonada.
—Não era um sonho. — Sim, tinha uma navalhada nas costelas, não era profundo, mas era recente, como no sonho.
—O que? — Nathan tinha a cabeça apoiada no respaldo do sofá. Sua respiração era agitada, como uma bandeira depois de uma batalha encarniçada.
Rachel percorreu as bordas da ferida com o dedo indicador, com cuidado para não machucar. Se a primeira vez que viu o corte não estava sonhando, o que tinha acontecido? Nathan estava totalmente vestido quando ela despertou. Não podia tê-lo visto. Não tinham feito amor, isso era certo... Ao menos não no sentido bíblico.
Ou talvez sim. Não com seus corpos, e sim com a mente. Deus sabia que seus pensamentos não eram seus quando estavam juntos. Algo mágico passava entre eles. Algo místico.
Utilizando só sua mão, tinha-a levado a um clímax mais intenso que nunca tinha experimentado com uma relação completa. Fazia com que se sentisse amada, respeitada, sumida na paixão mútua e não cabia a menor dúvida de que era por ele.
Tinha dado um presente. A expressão mental do ato do amor que não podia dar fisicamente por motivos que não queria explicar.
Se Nathan podia fazer que pensasse que estava nua em um bosque, ofegando debaixo de seu corpo nu com seu membro dentro dela, amando-a, podia fazer ela o mesmo com ele?
Podia tentá-lo perfeitamente. Talvez não estivesse disposto a fazer amor com ela no mundo real, mas não parecia ter nenhum problema em suas fantasias compartilhadas.
Deslizou-se até o chão e se ajoelhou entre suas pernas.
Ele a agarrou pelos ombros.
—Rachel, por favor.
Não sabia se suplicava que parasse ou que seguisse. Não importava.
Gemeu de novo quando Rachel baixou a cabeça e tomou seu pênis em sua boca até a garganta e mais à frente. Enquanto se inchava e crescia dentro dela, concentrou-se na imagem mental do bosque, só que esta vez não havia olhos espiando-os da escuridão. Não tinha rugidos selvagens entre as árvores. Só o bater das asas de algum pássaro nos ramos rompia o silêncio de vez em quando.
Durante um momento, encontrou-se sozinha em um pequeno claro, resistindo o impulso de abraçar o corpo nu. Preocupava-se que não pudesse fazê-lo. Não poder projetar o sonho a Nathan e trazê-lo até aqui.
Então, rangeu um ramo. A mata se agitou atrás dela. Deu a volta quando Nathan apareceu no círculo aberto de erva.
Era um homem magnífico, pensou. Tinha as pernas largas e musculosas, os ombros largos. O cabelo escuro caía sobre uma testa inquietante e os lábios grossos davam um ar perigoso. Seu sexo, orgulhosamente ereto e aceso, ainda úmido pelos cuidados de Rachel, estava arqueado para seu estômago plano.
A fúria escurecia seu rosto.
— Como pode ser? Como me trouxe até aqui?
Aturdida pelo êxito, avançou despreocupadamente para ele, já não se interessava em se cobrir. Queria que a visse. Adorava ver como dilatavam as pupilas e soprava pelo nariz quando a olhava.
—Do mesmo modo que você me trouxe. — Respondeu ela e, quando o alcançou, agarrou um mamilo plano acobreado entre os dentes e o chupou. Puxou um segundo, depois o soltou e levantou a cabeça — Com a mente.
—Por quê?
—Para que possa me fazer amor.
—Eu disse que não posso.
Roçou seu quadril com a mão e baixou até sua ereção.
—Parece que tem um pequeno conflito.
Movendo a mão de cima a baixo, apertando, Rachel desfrutou da sensação de notar como crescia. Agora era ela quem tinha o poder. Quem tinha a força.
—Além disso. — Disse e percorreu sua clavícula com a língua. — É só um sonho, recorda?
—Não é nenhum sonho e sabe.
—O que é então? — Acreditava que teria que sabê-lo, mas não podia pensar. O atordoamento se transformou em tontura. Sentia que seu cérebro não estava conectado com seu corpo.
Estava segura de que não era um sonho. Bastante segura. O pênis quente e duro que palpitava na palma de sua mão parecia muito real. Mas uma parte dela também sabia que não se encontrava em um bosque, e sim no chão do apartamento de Nathan com a cabeça em seu colo, roçando os joelhos com o carpete. Era duas pessoas de uma vez, a Rachel do bosque e a do apartamento, depois o quatro, ao recolher também as sensações das imagens do Nathan em ambos os lugares.
A cabeça começou a dar voltas de verdade. O bosque, a sala, inclusive o próprio Nathan se converteram em um caleidoscópio de cor que trocava e adotava várias formas.
Seus músculos tremeram. Suas pernas ameaçavam fraquejando. Não sabia se poderia manter-se em pé, ou de joelhos, neste caso, e então Nathan tirou o problema das mãos. Passou um pé atrás de seus joelhos e a tombou sobre a grama, acomodando sua queda com seu corpo girando de forma que Rachel aterrissou em cima dele.
Sua cabeça ainda ameaçava se separar e sair rodando, mas decidiu que agora não necessitava isso, ao menos não na fantasia.
Entretanto, desempenhava um papel crucial na cena do apartamento.
Nathan acariciou os seios sensíveis e ela deixou de se preocupar. Quão único precisava era seu corpo. Seu estômago, que se contraiu ao notar o toque de sua barba de quatro dias, elevando suas terminações nervosas até novos níveis de sensibilidade. Suas mãos, que guiavam o pênis para a entrada úmida de seu corpo.
Entrou sem vacilações e a pegou de surpresa. Ela ofegou e se inclinou, debatendo um momento entre o prazer e a dor e em seguida sucumbiu ao prazer.
Suas carícias se suavizaram. Imprimiu um ritmo tranquilo, subindo e baixando com investidas longas e preguiçosas. Ela se segurou com as pernas ao redor de suas coxas e o fez saber com seu corpo que podia levá-lo mais dentro. Necessitava que o levasse mais dentro. Mais depressa.
Pareceu encantado de fazê-lo.
Sua respiração dificultosa se converteu em um fôlego irregular. Rachel passou os braços ao redor de seus ombros e se agarrou para a viagem, subindo os quadris para ele, recreando-se nesse contato tão profundo que quase sentiu que tocava seu coração.
Sim, tocou seu coração. Não fisicamente, e sim emocionalmente. A intensidade da conexão que sentia com ele a assombrou. Sem dúvida, o que experimentavam juntos não pertencia ao mundo natural. As pessoas normais não podia ver os pensamentos de outros, representar fantasias compartilhadas.
Entretanto, os sentimentos de Rachel não provinham só da parte sexual de sua relação. Conhecia-o como amante, mas tinha visto o professor, o vizinho, o protetor que também era. Amava a arte, tinha um gosto delicioso pelo vinho e falava francês como se fosse nativo.
Sobre tudo, acreditava em monstros.
Reconhecesse ou não, ela tinha visto a verdade em sua mente.
Aquele pensamento floresceu em seu interior como um hibisco ao sol. Nathan acreditava nela.
De repente, abriu os olhos. Vamos, o sol aparecia por entre as copas das árvores. O bordo de uma nuvem de algodão passou empurrada pelo vento. Um pássaro cantava nos ramos de baixo. E um terror aprazível percorreu de repente com um dedo frio sua coluna vertebral.
Algo estava errado.
Seu corpo físico gemeu enquanto continuava balançando-se. Notou um ruído no peito e soube que era o gemido de Nathan e não o dela.
Seu corpo imaginário se agarrou a seus ombros ao notar que se esticava, sentiu a tempestade e a força formando redemoinhos em seu interior, dispostas a lançar uma descarga em seu sangue.
Um lugar escuro atraiu o olhar de Rachel atrás dele. Cravou o queixo em seu corpo, mas não pôde evitar olhar. Através das árvores o viu: uma cova. Fazia frio dentro; sentia-o de onde estava. Era uma mina de dor e desesperança. Maldição. O mal rondava por ali.
Apesar do medo, tentou ver dentro. Levantou a cabeça, um pouco somente, mas com um rugido, todo o peso de Nathan caiu em cima e a esmagou. Ele elevou os quadris, moveu-os ao inundar-se pela última vez nela e então esticou as costas e alargou o pescoço ao sair dela e retirar-se.
No mundo real, Rachel caiu para trás. Bateu o cotovelo na mesinha de café e gritou enquanto Nathan agarrava o pano de cozinha que tinha utilizado para limpar a perna. Apertando-a contra ele, deixou-se cair de lado e enterrou a face na almofada do sofá enquanto seu corpo convulsionava.
Rachel tentou ficar de pé, ir para ele, e quando não pôde, tentou arrastar-se. Tratou de mover-se, mas viu que suas pernas eram como as extremidades de uma boneca de pano cheias de algodão. A sala estava imprecisa. Quando fecharam as pálpebras apesar de esforçar-se ao máximo por manter os olhos abertos, entendeu.
O bode.
— Colocou algo no chá! — Gritou, arrastando as palavras.
Ele não respondeu. Simplesmente ficou olhando-a com seus olhos escuros e devastados enquanto ela desabava no tapete.
Depois de levar Rachel a sua cama, Nathan ficou um bom momento sentado na poltrona de brocada em um canto escuro e a velou. Em sua época tinha conhecido a místicos. Havia visto feitos mágicos e conhecido a criaturas de invenção mítica. Caralho, sua própria alma imortal tinha sido criada por um feitiço mil anos atrás.
Mas nunca tinha visto ninguém como Rachel Vandermere.
Esta mulher, tão bonita como inteligente, mais teimosa que uma mula em um prado cheio de trevos, boa e abnegada, tinha-o intrigado. Também desconcertava e o fazia perder o controle.
Em mil anos, nunca tinha permitido que uma mulher fizesse o que ela tinha feito esta noite. Nem sequer imaginava deixar que outra o fizesse.
Sua sensualidade não era a única habilidade especial que possuía. Não só resistia às imagens que ele tentava implantar em sua mente, mas também por sua vez enviava visões. Tinha-o seduzido, mas não ficava com o prazer. Só entregava. Deixava que fizesse amor a sua mente, enquanto se ocupava de seu corpo.
Incapaz de ficar sentado passeou pelo quarto escuro e passou a mão pelo cabelo. Arrastava os pés descalços pelo carpete. Fora, o lago Michigan absorvia as luzes da cidade. A bruma se levantava da água, formando redemoinhos e girando no ar mais frio. Parou um momento para observar o baile fantasmal, depois seguiu passeando.
Rachel tinha ouvido a Chamada.
Não era possível. Os humanos não tinham a capacidade de fazer nenhuma das coisas que ela tinha feito. E entretanto, ela tinha feito. Tinha que haver alguma explicação. Algum precedente para sua habilidade.
Talvez sim tivesse telepatia. Nunca antes tinha conhecido um humano com aptidões sobrenaturais. Que ele soubesse, ninguém em sua congregação tinha conhecido a nenhum.
Mas se estava equivocado, a história figuraria nos textos antigos do St. Michael. Sua gente registrava tudo. Nathan acreditava recordar vagamente a história de uma mulher com certos poderes, mas não se lembrava dos detalhes.
Possivelmente Teryn sim sabia. O Wizenot levava mais tempo que Nathan estudando os volumes medievais. Talvez soubesse de alguma informação.
Voltou a deter seu passeio sem rumo, desta vez junto à cama. Com sua face suave adormecida e suas longas pestanas frisadas sobre as bochechas, quase parecia uma menina. Mas não havia nada de menina no que tinha feito esta noite. Com apenas olhar para ela seu corpo reacendeu.
Não tinha voltado para o St. Michael desde seu desterro. Agora só as circunstâncias mais extremas podiam obrigá-lo a ir ali. Não era bem-vindo, mas agora estava além de políticas e protocolos.
Tinha perguntas, cujas respostas talvez o ajudassem a compreender o que tinha acontecido entre ele e Rachel. Se o velho não queria vê-lo, estava fodido.
O sedativo que tinha jogado no chá de Rachel faria que dormisse algumas horas mais. Tinha tempo.
Depois de deter-se só um momento para pôr um cacho dourado atrás da orelha e dar um beijo silencioso na testa, partiu e se dirigiu ao telhado, os músculos já tensos e os ossos encurvados para o Despertar.
Tinha muita energia acumulada esta noite para conduzir seu carro. Muita tortura. Necessitava ar e exercício. A liberdade de um meio de transporte mais primitivo...
Suas asas.
Capítulo 19
Teryn sentiu a presença em suas dependências assim que pôs a mão no pomo. O ritual que tinha estado realizando durante a maior parte da noite tinha acentuado suas sensações, aberto sua mente às energias do universo.
Não percebeu nenhum perigo por parte do intruso, nenhuma ameaça e, mesmo assim, seus dedos se fecharam instintivamente em torno do punho dourado da adaga ritual embainhada em seu cinturão. As visões de morte e destruição avançando sigilosamente para sua gente sem forma nem aparência, como uma névoa formada redemoinhos na boca-de-lobo, tinham-no inquietado o suficiente para não querer se arriscar.
Devagar, abriu a porta da sala escura, tentando recordar quanto tempo tinha passado desde que tinha engordurado as dobradiças chiantes. A confusão mental invadiu a soleira, sacudiu-o e formou um redemoinho de ira e dor. De ressentimento.
E de culpa, como se o homem que esperava entre as sombras acreditasse às vezes que a tortura infligida sobre ele estava justificada. Como se merecesse a marginalização de sua gente. Passar sua vida no exílio.
Os dedos de Teryn soltaram o punho da faca. Com os ombros cansados, entrou na sala com um suspiro.
—Me alegro de vê-lo, Nathan. Esperava que viesse.
A silhueta de Nathan se recortava na estreita janela que deixava passar a única luz da sala. Talvez sua mente fosse um caldeirão de pensamentos e emoção, mas seu corpo estava tão imóvel como uma das estátuas que penduravam do velho edifício de pedra de frente.
Teryn guardou suas ferramentas rituais na cômoda.
—Como entrou?
—A janela do banheiro do sexto andar estava aberta. Cheirava como se um dos meninos tivesse estado fumando.
— Collin Waverly. — Disse Teryn e suspirou — Imaginava que ao menos seria mais criativo na hora de escolher o lugar.
— Todos os meninos de quinze anos têm que fumar no banheiro ao menos uma vez. É um rito de iniciação.
Teryn escutou um deixe do antigo Nathan em sua voz e arqueou uma sobrancelha, esperando conservar o bom ambiente.
— Incluindo você?
— Em especial eu. Eu era o paytreán do diretor. O preferido do profe, por assim dizê-lo.
Teryn poderia ter se posto a chorar pelo que tinham compartilhado em seu dia. Pelo que tinham perdido.
Ninguém podia dizer que agora favorecia o Nathan.
—Têm o Von? — Perguntou Nathan, rompendo os pensamentos do Teryn.
—Perdemos seu rastro a um quilômetro e meio da casa abandonada. Importa-se que dê um pouco de luz? — Tirou uns fósforos para acender as velas de sua mesa. Preferia a luz natural às cruas lâmpadas modernas.
Nathan soltou uma maldição.
—Como perdeu um rastro fresco?
—Colocou-se no rio. Não pudemos encontrar onde saiu. Sonjay e Christian continuam procurando. — Não acrescentou que se seus dois melhores rastreadores não o tinham encontrado já, não era provável que o fizessem.
—Maldição, teria que ter seguido a pista eu mesmo.
—Por que não o fez?
—Rachel estava comigo — Hesitou — Viu Von.
—Viu? — Teryn arranhou o fósforo. Um aroma de enxofre serpenteou para seu nariz. A luz saltou de suas mãos e a imagem da face de Nathan o golpeou como um murro no estômago.
Estava pálido. Seus olhos escuros ressaltavam em sua tez leitosa como os botões negros em um colete branco. Não tinha se barbeado; ia despenteado. Seus lábios desenharam uma careta de sofrimento que Teryn suspeitou que nascia de algo mais que a tendência exasperante de Von a escapar e evitá-lo.
A culpa sossegava a alegria que sentia por ver Nathan aqui. Tinha-o feito. Em um momento nas vidas infinitas de Nathan em que se questionou tudo o que era, em que mais tinha necessitado o apoio das únicas pessoas no mundo que podiam compreender pelo que estava passando, aquelas que compartilhavam seu legado, Teryn o tinha jogado.
Tinha abandonado à pessoa mais importante para ele e agora teria que viver com aquilo durante suas inumeráveis vidas.
Possivelmente Nathan fazia bem em não permitir reencarnar-se outra vez, a final. A imortalidade não era tão boa como a pintavam.
Mas ele era o Wizenot. Tinha uma responsabilidade para com sua gente. Tampouco podia abandoná-la. Nem sequer por Nathan. E menos agora, quando uma nuvem misteriosa de mal espreitava no horizonte.
Deixou-se cair no colchão fino de sua cama. O frio do telhado tinha intumescido o corpo. O que tinha visto o tinha deixado esgotado.
—E a fez esquecer o que viu?
Nathan passeou pela sala larga e estreita e passou a mão pelo cabelo até a nuca, esfregando-se. Teryn se reclinou e esperou a que tirasse o que o preocupava.
—Teryn — Disse ao fim — Alguma vez conheceu um humano que tivesse... Telepatia?
—Não que eu saiba.
—Nunca topou com algum relato sobre nossa espécie interagindo com humanos que tivessem algum tipo de... Capacidades sobrenaturais?
—Não que eu recorde. — Tentou adivinhar para onde ia aquela conversa — Acha que Rachel Vandermere tem telepatia?
Aquilo fez que Nathan deixasse de passear incessantemente e se detivesse de repente. Entrecerrou os olhos um momento, depois esfregou a cara.
—Conhece-me muito bem, velho.
Teryn riu. Conhecia-o muito bem porque via muito de si mesmo em Nathan.
—O que te faz pensar que nossa bonita e intrépida investigadora tem mais que visões de confeitos bailando em sua cabeça?
Nathan lançou um olhar feroz.
—Tem uma mente inusualmente poderosa. Posso lê-la com facilidade, mas quando tento enviar imagens, tenho problemas para as controlar. Parecem cobrar vida própria, ou se não, Rachel influi nelas.
Teryn franziu o cenho. Havia humanos mais difíceis de influir que outros, mas Nathan tinha uma mente excepcionalmente poderosa. Sua alma era uma das mais velhas da congregação. A mulher não deveria ser capaz de resistir os pensamentos que tentava implantar.
Nathan parou do outro lado da sala e voltou a olhar a fria luz da lua.
—Esta noite, quando olhei em sua mente, houve um momento em que juraria que estava me olhando . Viu tudo. Ou ia ver quando quebrei a conexão. — Meteu as mãos nos bolsos e deu a volta para olhar Teryn, sua expressão transmitia preocupação e assombro em partes iguais — Escutou a Chamada, Teryn.
Teryn lançou um assobio, baixo e suave.
—Sério?
—Como pode ser? Não acreditava que fosse possível.
—Não deveria sê-lo.
—Deve ter... Um dom. Telepatia. Uma cigana sequestrada de sua caravana quando nasceu. Deus, não sei. Tem que haver alguma explicação.
—Por que não se senta antes que abra um buraco em meu chão?
—O que?
Teryn assinalou a cadeira diante da mesa de tampa corrediça.
—Sente-se.
Nathan o olhou com desconfiança, mas se sentou. Apoiou os cotovelos nos joelhos e estralou as juntas dos dedos. Nathan não estralou as juntas desde que tinha doze anos.
—Algum problema? — Perguntou Teryn, ocultando o sorriso de sua voz. Esperava.
—Nenhum salvo o fato de que uma humana possa ler meu pensamento. —Disse em um tom irascível, mas captou a mensagem. Deixou de rangê-los ossos.
—Está seguro de que sua mente é diferente? — Perguntou Teryn com cuidado. Não poderia ser a sua?
—O que se supõe que significa isso?
—É uma mulher bonita.
—Isso não tem nada a ver.
—Sente-se atraído por ela. Talvez seja algo mais que atração. Talvez pense muito nela. No que você gostaria de fazer com ela.
As bochechas de Nathan se tingiram de cor. Dilataram as pupilas muito pouco, o que confirmou as especulações de Teryn. É obvio que se sentia atraído por ela, pensava nela, fantasiava com ela. Era um gárgula. Levava-o no sangue.
A mandíbula de Nathan se apertou.
—Isso não tem nada a ver.
—Talvez. Ou talvez, a certo nível, queira que ela veja quem é. O que é.
—Por que diabos ia querer isso?
—Não sei. Possivelmente, a certo nível, assustá-la para que se vá. Porque a deseja e te dá medo que se passa suficiente tempo perto dela, a tomará e então romperia essa estúpida promessa que fez.
Nathan ficou de pé de um salto e lançou a cadeira giratória contra a parede. Torceu o gesto e fechou os punhos.
—Obrigado por sua ajuda, sábio. E por sua compreensão.
Nathan deixou de caminhar.
Teryn começou a avançar para ele, depois se deteve e alargou a mão.
—Nathan, espera.
Nathan esperou com a mão no pomo da porta, mas não se voltou. Teryn suplicou às suas costas.
—Vem algo maligno, Nathan. Pela graça dos deuses, vi-o. Vamos necessitar de todos os membros da congregação juntos, para sobreviver.
Os dedos de Nathan se esticaram quase imperceptivelmente no pomo.
—Bom, tenham sorte.
—Também me referia a você, Nathan. Necessito-te. Nós o necessitamos.
—Não me disse isso quando me deu um chute e me disse que não podia voltar a vê-lo ou falar contigo.
—Se cumprir com sua obrigação com a congregação e buscar uma companheira, podemos anular o desterro.
Nathan voltou a agarrar o pomo. Teryn fechou os olhos. Que deixe cair a mão.
—Se preocupa por essa mulher. A deseja e, em minha opinião, ela também te deseja. Assim vá com ela. Agarra toda a felicidade que possa conseguir.
Agora Nathan se voltou, seu rosto era uma máscara de fúria.
—“Agarrar” é a palavra chave aqui. Agarrar a felicidade. Agarrar a ela. Agarrar depois o bebê que tenhamos. Não. — Sacudiu os punhos aos lados — Não voltarei a fazê-lo.
Nathan abriu a porta de um puxão e saiu ao vestíbulo. Tinha dado dois passos, Teryn o seguindo, quando se deteve e inclinou a cabeça para o teto.
Teryn ouviu a Chamada no mesmo momento e imitando a Nathan, escutou.
—Von?
Da janela pela que tinha entrado, Nathan assentiu com contundência.
—Está em apuros.
Rachel despertou com o mesmo chiado que tinha ouvido na casa abandonada. Parecia uma mistura entre um grito de um pássaro furioso e uma sirene de tornados. Tampou a cabeça com o travesseiro, mas viu que só piorava, porque o ruído procedia de dentro de sua cabeça, não de fora.
Imaginando que tinha a mãe das ressacas, embora não pudesse recordar exatamente de onde vinha, tentou fazer pouco caso do ruído e voltar a dormir, mas viu que o som era estranhamente absorvente... Assim que se acostumou a essa sensação como se alguém tivesse colocado uma porção de gelo no ouvido.
O som a atraía. Chamava-a em um idioma que não podia entender de tudo, mas que tampouco podia evitar.
Devagar, levantou o travesseiro. O sol entrava em torrentes por uma janela alta em uma parede branca. Entrecerrou os olhos.
Não estava em seu quarto. Nem em seu hotel.
Nathan.
Grunhindo, tombou de novo no colchão, os braços estendidos. Recordou tudo de repente. Von e a casa abandonada. O corte na perna. O unguento de ervas.
O sofá.
Tinha jogado algum narcótico no chá, o bode, mas por alguma razão inclusive isso parecia carecer de importância. Eclipsado pelo assobio insistente em sua mente.
Levantou-se da cama e se vestiu depressa, não estava segura de aonde ia, só sabia que tinha que partir. Um registro rápido revelou que Nathan não estava no apartamento. Não se incomodou em deixar uma nota. O assobio se tornou mais premente. Quando chegou à calçada do edifício de Nathan, já tinha se posto a correr, fechando o casaco na garganta e com a pistola no bolso.
Deteve-se na esquina de Rush Street e Limmerman Drive, olhou a direita e esquerda, então soube que tinha que seguir reto e que tinha que andar depressa. Não tinha nem ideia de como sabia. Simplesmente sabia.
O semáforo de pedestres ficou vermelho. Cruzou de todas formas, esquivando os táxis que apitavam e um ônibus cheio de Autoridade de Tráfico de Chicago.
Levava correndo quase um quilômetro e meio quando o som a levou a descer as escadas de uma das estações do metro. Desceu os degraus de três em três e os viu no final da plataforma, dois homens de jeans, casacos de lona sujos e chapéus rígidos seguravam um terceiro pelos braços enquanto dois mais davam murros na face e o corpo. Entre eles e Rachel, um grupo de homens de negócios com cara de sono lia o jornal, bebia café em xícaras de plástico e fazia caso omisso à violência como se fosse o pão de cada dia.
Talvez o fosse.
O homem apanhado entre os dois captores se sacudiu quando outro golpe alcançou a têmpora. O assobio cessou. A cabeça da vítima caiu para um lado, depois para frente. Rachel viu os cachos loiros e vislumbrou um brilho dourado entre o sangue que brotava de seu nariz. Dois diamantes brilhavam em sua orelha.
Von Simeon! A versão sem o focinho e a cauda afiada.
O medo a paralisou. Por um momento voltava a ter seis anos, contemplando a sombra de um monstro que rondava o lugar onde seu pai jazia morto. Ouviu o tamborilar das asas e um gemido subiu por sua garganta.
Que diabos estava acontecendo? Levava anos procurando monstros e agora que tinha encontrado um, fugir era a única coisa não podia fazer.
Ficou observando os homens enquanto golpeavam o jovem loiro. Com cada murro, o terror diminuía, como uma maré alta que retrocedia um pouquinho mais por volta do mar com cada onda. Não podia machucá-la; já não era uma menina indefesa.
Recordava a essa menina. Recordava lutas de cócegas e risadas desdentadas. Coelhos de pelúcia o aroma das flores de mamãe ao outro lado da janela. Recordava o dia que tinha perdido tudo aquilo. O dia que perdeu sua juventude. Sua inocência.
Recordava o que um monstro como Von fez a seus pais.
Uma parte dela queria unir-se à surra. Queria vingar-se pelo que tinham feito a sua família. Queria machucá-lo por todo o dano que um de sua espécie tinha infligido.
Então Von levantou a cabeça e pareceu olhá-la diretamente. Com as costas encurvadas como se não pudesse erguer de tudo, olhou-a enquanto ela contemplava como os homens que batiam nele uma e outra vez. Partiu o lábio inferior. O sangue gotejou pela comissura e manchou o queixo. Tinha a cara vermelha e torcida já dos diversos golpes e, entretanto, seus olhos não suplicavam. Não pediam ajuda a gritos, nem perdão.
Seus olhos simplesmente observavam, até que os homens voltaram a bater, então se dobrou, caiu no chão e bateu a nuca e, mesmo assim, ela não fez nada e logo Von alargou o pescoço para olhá-la uma vez mais e o olhar a condenou.
Um calafrio percorreu a coluna vertebral. Estavam-no matando diante dela. Não era um monstro, e sim um menino. Um menino agarrando-a cintura e tossindo sangue enquanto quatro adultos se alternavam para dar chutes enquanto se retorcia no chão e tentava enroscar-se para proteger-se.
O ser humano que levava dentro queria gritar. Sua parte de policial rugiu:
—O que acreditam que estão fazendo? — Gritou Rachel, respirando com dificuldade enquanto se perguntava que diabos tinha estado fazendo, como tinha permitido que acontecesse aquilo sem intervir. A vergonha acendeu suas bochechas — Soltem-no!
Um homem deu um último chute em Von nos rins, então se voltou para Rachel. Era o senhor Lovell, o pai de Jenny.
—Isto não é assunto seu, senhorita.
Rachel tirou seu distintivo da Interpol do bolso do casaco e o mostrou. Lovell sabia quem era ela e era óbvio que não se importava, mas talvez sim impressionaria a outros.
—Já é meu assunto, senhorzinho.
Seus companheiros riram.
—Se calem. — Espetou o senhor Lovell, depois se voltou para Rachel — Disse a este vândalo que não se aproximasse de minha filha.
—Que se fodam. — Balbuciou Von com os lábios inchados. Lovell deu um chute na face com tanta força que a cabeça do menino caiu para trás outra vez. Em troca, Von cuspiu sangue na perna da calça do homem. O tipo que tinha o que parecia uma navalhada na ponta do nariz e que estava junto a Lovell levantou um pé para trás.
—Toque no garoto e terá sorte de poder voltar a utilizar essa perna. — Advertiu Rachel enquanto tirava sua arma. Os poucos trabalhadores de primeira hora da manhã que tinham fingido não ver nada estranho na plataforma se dirigiram às saídas.
Cara de talho baixou o pé.
Rachel avançou com prudência, observando a todos.
—Tocou na minha filha. — Lovell cuspiu no chão — Pôs suas sujas mãos por todo seu corpo. Ela mesma reconheceu.
E Jenny pagaria por ter feito, Rachel estava convencida. Mas agora a preocupava Von. Saltou o torniquete da estação desatendida.
—Isso não te dá o direito de dar uma surra a um garoto e deixá-lo meio morto.
A seu lado, separou-se de uma cotovelada a um dos captores, agachou-se e levantou o Von pelo ombro. Seu peso fraquejou para trás e Rachel quase caiu com ele.
Moveu-o para equilibrá-lo melhor e o levantou. Von fez um gesto de dor e tossiu, um som úmido e convulsivo que provocou que se perguntasse quantas costelas tinham quebrado esses valentões enquanto ela olhava imóvel sem fazer nada.
—Cavalheiros, foi muito interessante. — Rachel recuou, arrastando Von com ela com um braço e apontando sua arma aos quatro homens com a outra mão — Mas agora vamos.
Não disse que esperava vê-los todos muito em breve... No cárcere. Solicitaria ordens de detenção cinco minutos depois de levar a aquele pobre menino ao hospital, mas esperava afastar-se ao menos dois ou três quilômetros antes que imaginassem.
Não percorreram nem trinta metros.
Lovell e Cara de talho a rodearam pela frente. Os outros dois impediram que fugisse por trás.
Von levantou a cabeça. Salvo pelos vergões vermelhos e os hematomas que começavam a sair, tinha a tez lívida. Tossiu e cuspiu sangue e muco ao chão aos pés de Rachel.
—Teria que ficar à margem.
—Calado garoto. — Olhou a seu redor na plataforma, procurando opções. Agora estavam sozinhos. Ninguém os via, ninguém podia ajudá-los. A única saída era subir as escadas, e não ia ser fácil, carregando Von. Embora conseguisse passar entre os homens que a rodeavam, não ia deixar a ninguém para trás.
Ao longe, ouviu o estalo continuado de um trem nas vias, mas não parecia que fosse a chegar a tempo, por como os quatro homens foram se aproximando.
Deu um passo para as escadas, balançando a pistola para o círculo de homens que se ia fechando. Lovell e Cara de talho cortaram o passo, obrigando-a a recuar. Desta vez levantou a pistola de verdade. Nunca tinha disparado a arma contra nada que não fosse um alvo de papel; não estava segura de se poderia fazê-lo.
Parecia que logo o descobriria.
Uma risada forçada retumbou em seu peito. Onde estava Nathan, seu cavalheiro da armadura brilhante, quando realmente o necessitava?
Como se seu nome fosse um talismã, apareceu. Não fisicamente, e sim no pensamento. Estava dentro de sua mente. Piscou e sacudiu a cabeça, tonta pela fusão dos sentimentos dele e os dela.
Pagou caro essa distração momentânea. Um dos homens que tinha atrás se moveu.
—Cuidado! — Von se soltou dela e meio andou, meio caiu sobre seu atacante quando o homem estava a ponto de agarrá-la pelo pescoço.
Enquanto Rachel se afastava, o outro homem agarrou seu pulso e o retorceu. A dor subiu pelo braço. Intumesceu a mão e a arma caiu no chão na borda da plataforma. Escapou e saltou para ela instintivamente.
Por desgraça, deu a volta justo para encontrar-se com o punho do homem atacado por Von, que tinha afastado do garoto ferido.
No momento em que a dor explodiu em sua bochecha, percebeu a mudança na mente de Nathan, instantâneo e violento. Desapareceu a capa de sofisticação, de cultura, tão familiar para ela. Em seu lugar sentiu uma ferocidade tão primitiva que era impossível de compreender para uma mente civilizada.
Umas luzes brilhantes explodiram atrás de suas pálpebras. Balançou-se no ar como se estivesse suspensa de uma corda durante um segundo comprido, aflita por sua própria tontura e a fúria de Nathan e, então, começou a cair para frente. O ar sobre as vias era mais quente. Mais oleoso. Nadou nele e aterrissou com um ruído surdo que a deixou sem respiração.
As luzes fluorescentes e brilhantes se enfraqueciam. Seu mundo se voltou impreciso e cinza. Tinha vontade de vomitar e fechou os olhos, mas aquilo não impediu de notar a vibração na via de aço machucando o quadril. Nem a rajada de ar quente que descia pelo túnel.
Com ironia, se deu conta de que talvez se equivocou e o trem não estivesse tão longe.
De repente, parecia que estava perigosamente perto.
Tentando mover-se, sair do fosso antes que chegasse o trem, embora fracassou, procurou a tranquilidade na mente do Nathan. O consolo.
Mas encontrou ira. Sede de sangue.
Escutou o alarido furioso de uma ave de rapina, sentiu o vento debaixo de suas asas. As suas asas?
Tremendo, olhou para baixo e viu umas garras estendidas diante dela onde teriam que estar as mãos. Tentou falar, chamar Nathan, mas descobriu que suas cordas vocais eram incapazes de produzir sons humanos.
Em um último momento de coerência, abriu os olhos um pouquinho, viu as ruas de Chicago, a entrada à parte subterrânea do trem elevado, de muito acima, como se voasse, e soube sem nenhum gênero de dúvidas que estava vendo a cidade através dos olhos de um monstro.
Dos olhos de Nathan.
Capítulo 20
Nathan amaldiçoou a massa de gente que abarrotava as ruas. Não podia arriscar-se a ser visto, assim teve que desviar-se pelos becos, e inclusive aquilo era perigoso. Enquanto girava e serpenteava ao longo de finas paredes de tijolos e esquivava contêineres, o sentimento de uma iminente fatalidade o envolveu como uma nevada sobre a estátua de um parque.
Não era só a Chamada de Von o que tinha feito que seu coração tivesse sido substituído por uma fria pedra no peito. Outro grito mais fraco se somou à voz de Von. Rachel.
Não havia tempo para perguntar-se como, mas sabia que era ela. Sentiu-a em cada célula de seu corpo, e ser consciente do perigo que ela corria fez com que a fera em seu interior rugisse a mais não poder, a ponto de explodir por uma mistura de temor e indignação. No canto do outro lado da estação de trem, teve que descer a terra e recuperar sua forma humana. Teryn, a coruja, desceu atrás dele, sem fôlego, mas Nathan não pôde esperar. Subiu as escadas de três em três e saltou a catraca de bilhetes.
Três homens quase o atropelaram enquanto saíam do túnel. Formavam parte de fosse o que fosse que tivesse ocorrido, Nathan o detectou em seguida, mas não dedicou um só pensamento. Tinha que chegar até Rachel. Tinha que chegar a tempo.
Só Lovell e Von, meio inconsciente, seguiam na plataforma. Enquanto ainda esquadrinhava a zona em busca de Rachel, Nathan se limitou a agarrá-lo pelo pescoço e lançá-lo a mais do meio metro contra uma parede azulejada.
Lovell caiu desabado contra o chão, inconsciente.
Teryn desceu correndo os degraus atrás de Nathan, com a respiração entrecortada. O Wizenot avaliou a situação rapidamente e se ajoelhou junto a Von.
—Eu me ocupo dele. — Disse — Onde está Rachel?
Nathan a encontrou. Estava estendida, escancarada, transversalmente sobre as linhas do trem, seus cachos se estendiam a seu redor como um halo de cabelos dourados, seus braços esbranquiçados e cheios de arranhões jaziam abertos em cruz a ambos os lados. Seus olhos estavam fechados. Estava tão quieta que nem sequer podia intuir se respirava.
Por favor, que respire.
Uma única luz resplandecente irrompeu na escuridão do túnel atrás dela, e o suor da testa de Nathan se transformou em água gelada. Devia ser um expresso. Vinha a todo gás, sem reduzir a velocidade para fazer uma parada.
Fechou os olhos e despertou de novo à besta em seu interior com uma explosão de energia mental que ameaça fazendo arrebentar seu corpo, célula a célula. Gemeu de dor enquanto sua coluna vertebral se transformava, seus dentes se alargavam, fazendo ranger a mandíbula, e umas garras emergiam das pontas dos dedos enquanto emanava sangue a jorros.
Sem tempo apenas, saltou da plataforma antes de ter completado a transformação, apesar de que corria o risco de cair contra as linhas junto a Rachel, e partir-se em dois já que o ar golpeava suas asas ainda em processo de formação. Mas no segundo último conseguiu o suficiente impulso e a agarrou rapidamente pelo pescoço de seu casaco.
A turbulência provocada pelo trem que se aproximava o sacudiu. Não foi capaz de girar o suficientemente rápido para voltar para plataforma. O quente fôlego do trem acariciou a cauda, e o foco dianteiro fulminou com o olhar como o olho de um ciclope quando olhou para trás por cima do ombro para comprovar o perto que estava.
Voltou-se a girar quão rápido pôde e se dirigiu para abaixo, uns poucos metros na frente do veloz trem. Procurou no mais profundo de seu interior para reunir forças, para conseguir a velocidade suficiente para permanecer na frente, até que encontrou um túnel de serviço em um lateral e torceu bruscamente para o estreito passadiço.
O trem passou trás dele tão perto que pôde sentir o toque do aço sobre suas ancas.
Planou até o final do túnel de serviço, onde depositou Rachel sobre o chão e recuperou sua forma humana. Uma escada de aço conduzia até a rua na superfície, abriu a tampa da boca-de-lobo e a deixou estendida sobre o beco.
Rachel tinha a face poeirenta, seus finos lábios tremiam. Tinha as mãos fechadas em punhos a ambos os lados do quadril, e seus olhos estavam fortemente fechados.
Com muita força para que estivesse inconsciente.
Ela sabia.
Nathan cambaleou sobre os pés e recuou. Não queria olhá-la nos olhos quando os abrisse. Os olhos de Rachel o tinham fascinado e cativado quando ela o olhou como um homem. E assim queria recordá-los, em vez de cheios de horror e medo que é como estariam agora.
Não queria ver o ódio neles quando pela primeira vez o olhasse como se fosse um monstro, assim deu as costas a Rachel e cruzou os braços à altura do peito como se queria manter as partes de seu corpo juntas, em um momento no que sentia que este ia se dividir em um milhão de pedaços.
Que demônios ia fazer agora?
Rachel sabia de Von. Sabia dele.
Não podia alterar sua memória.
Não podia deixá-la partir.
Não podia deixá-la partir.
Sentiu um ruído atrás dele e, depois de voltar-se, viu como Rachel procurava algo a provas, como um caranguejo. Topou com um contêiner e ficou imóvel como se esperasse que a agarrasse e a levasse.
Como ele tinha feito.
Tinha os olhos muito abertos. Respirava a base de ofegos breves e rápidos, e Nathan duvidava de que ela fosse consciente da pedra que segurava na mão. Uma arma.
Rachel se deteve e engoliu seco.
—É você? — Voltou a engoli seco — O que matou a meus pais?
A Nathan formou um nó no estômago.
—Não.
—Mas era um como você. Um com asas.
A expressão de rejeição na face de Rachel sentou como uma punhalada no coração, ao igual a suas palavras.
—Não sei o que ou quem matou seus pais, Rachel.
Olhou-o de cima abaixo, como se esperasse que umas plumas aparecessem pelo pescoço de seu casaco.
—O que... O que é? O que é?
—Não o que você pensa.
—Disso já me dei conta.
—Não sou um monstro. — Recalcou ele. Embora sim que o era, tanto para ela como para ele.
Rachel o assinalou com uma mão, a que segurava a pedra.
—Transformou-se em algo. — Estava ao bordo da histeria a julgar por sua voz que se elevava em cada sílaba — Algo com asas e garras e...
—Um gárgula. A cabeça e as asas de uma águia, o corpo de um leão, isso...
—Sei de sobra o que é um gárgula.
—Na maioria das sociedades são símbolos de coragem e sabedoria. São protetores dos homens.
Rachel soltou uma risada forçada, demente.
—Isso é o que fazia na estação de trem? Proteger Lovell?
Nathan elevou a voz inconscientemente.
—Estava protegendo você!
Ela ficou de pé, apoiando-se fortemente sobre o contêiner de lixo.
—Muito obrigado. Agora por favor, não volte a se aproximar de mim.
Nathan observou como se afastava coxeando ao tempo que um sentimento de amargura brotava em seu interior como um gêiser em erupção.
—Isso não é o que dizia na outra noite. — Que Deus tivesse piedade dele, não podia apagar de sua mente a imagem dela o recebendo em sua boca. Levando-o a bordo da loucura.
Amando o de um modo que nenhuma mulher o tinha feito.
O sangue acumulou na virilha só de pensar nisso.
Embora não pretendia projetar a imagem, viu como ela abria os olhos de par em par e ficava sem fôlego.
—Mentiu para mim. — Disse ela — Mentiu em tudo!
—Não — Disse ele, frustrado, abatido — Te disse a verdade sobre uma coisa.
Ela aguardou sua explicação.
Ele elevou a cabeça.
—Eu disse que se arrependeria na manhã seguinte.
Para aumentar ainda mais o mal-estar de Nathan, os olhos Rachel se encheram de lágrimas. Afogou um soluço enquanto se voltava para afastar-se ainda coxeando.
Sem parar de amaldiçoar tudo, alcançou-a facilmente.
—Mantenha-se longe de mim! — Afastou sua mão quando Nathan tentava reconfortá-la.
—Não posso. — O que ele daria para poder fazê-lo, por poder esquecê-la, por esquecer o que era ele. Por esquecer que nunca poderia ser o homem que ela desejava que fosse.
Rachel quase tinha conseguido chegar à rua. Os carros passavam a toda velocidade, alheios à cena do beco, mas se chegava ali e pedia ajuda...
Chegou até a calçada, aos tropeções.
Nathan a alcançou, agarrou-a por trás contra seu peito. Ela tremeu entre seus braços, seus olhos se abriram de par em par e Nathan praguejou pelo que estava a ponto de fazer. O que tinha que fazer.
E o que era incapaz de fazer.
—Não posso te deixar partir. — Disse ele.
Armou-se de coragem enquanto observava como os olhos de Rachel transbordavam incredulidade e desconcerto. Colocou a mão no bolso do casaco e agarrou com força o cano da pistola que tinha recuperado quando a tinha recolhido contra sua vontade e a tinha levado para o St. Michael.
A sala onde se celebravam os conselhos cheirava ligeiramente a cera, a madeira velha e a homens mais velhos. Durante a assembleia, os membros do Conselho, envoltos em grossos vestidos de veludo com cordões dourados ao redor da cintura, mantinham-se de pé formando um semicírculo sobre um soalho longo e curvo, cada um atrás de um púlpito esculpido de maneira elaborada que representava a forma de um gárgula que correspondia a seu dono. Alguns dos suportes de livro descreviam cenas gráficas da vingança dos guardiões, com gárgulas que se equilibravam sobre humanos encolhidos de medo; o autor do crime tinha sangue nas mãos e o corpo de um inocente a seus pés. Outros analisavam traços de diferentes personalidades, mostrando a ira exaltada de um feroz dragão ou o sigilo de um grande felino.
Connor se colocou diante eles, igual ao resto da congregação. Manter-se em pé durante os conselhos era mais que uma tradição, mais que uma amostra de respeito para o resto dos membros. Era questão de eficiência. As decisões estavam acostumadas tomar-se muito mais rápido quando todas as partes se mantinham de pé durante o debate.
—Se esta mulher conseguiu ver algum de nós, por que não alterou sua memória? — Perguntou o velho Dane de sua localização no extremo direito do soalho, posição que correspondia aos membros mais jovens. E com quarenta e cinco anos, sem um só cabelo cinza em sua barba negra ou em sua cabeça, Dane era de fato jovem para ser um dos dirigentes da congregação. Não faz tantas vidas, era incomum que um da congregação subisse ao Conselho antes dos setenta anos.
Esses dias tinham ficado para trás fazia muito. Se a congregação continuava a se reduzir, logo os novatos e os valentões adolescentes como Von seriam os que ficariam para dirigir a sua gente.
Os murmúrios percorreram a assembleia. As cabeças assentiam, esperando uma resposta do rival de Dane.
—Ele tentou. — Disse o Wizenot do centro do soalho, mas suas palavras virtualmente se perderam entre os cochichos do resto.
Teryn levantou as mãos, com as palmas para fora, pedindo silêncio, com uma posição que parecia a da coruja que vai saltar de seu pódio entre a multidão, com as garras para fora e estendidas.
O silêncio se apoderou da sala lentamente. As conversa se foram apagando uma a uma, como folhas outonais que caem sobre chãos florestais e permanecem tendidas sem se mover. Fez-se silêncio.
—Ele tentou. — Repetiu Teryn, mais suave esta vez.
Connor evitou olhá-lo com desdém. Nem sequer o Wizenot podia pronunciar seu nome. Ninguém o observava, exceto Connor, que o olhava abertamente.
Nathan Cross tinha sido excomungado. Nem sequer deveria estar ali. Aquilo era o santuário da congregação. O sancta sanctorum de um mundo ao que já não pertencia, por decisão própria.
Nathan tinha decidido que não necessitava a sua gente. Não necessitava seus princípios ou suas tradições.
Sua gente, sem dúvida nenhuma, tampouco o necessitava.
—O que quer dizer com que o tentou? — Perguntou o velho Dane.
—Ela tem umas capacidades... Fora do comum — Respondeu Teryn.
Os membros da congregação bombardearam de perguntas o Wizenot.
—Que espécie de capacidades?
—Tenho entendido que é telepata.
—É verdade que pode ouvir a Chamada?
—Se só pudesse ouvi-la. Pode emiti-la por si só!
—Como pode ser isso?
—De onde procede essa mulher?
—Por que demônios se mostrou ele diante ela, de todas formas?
—Salvou sua vida! — Disse Teryn, defendendo Cross, como sempre.
—O que vamos fazer com ela?
—O que vamos fazer com os dois!
Toda amostra de decoro se desintegrou e as conversas explodiram em toda a sala. As vozes se elevaram enquanto os ânimos se avivavam. Connor nunca tinha visto algo similar na sala do Conselho. Em nenhuma de suas vidas.
Olhou para Nathan, que permanecia tranquilo e calado do outro lado da sala. Isto era culpa dela. Era responsável pela divisão da congregação, do mal-estar. Se não fazia algo, ele poderia ser sua destruição.
Ou pode que já o fosse, pensou Connor, enquanto observava como aumentava a discórdia na sala. Fez um nó na garganta. Isto não podia continuar. Tinha que fazer algo.
O Conselho não podia fazê-lo. O Wizenot não o faria, não enquanto significasse ficar contra seu apreciado Nathan.
Isto fazia que estivesse em suas mãos.
Depois de girar-se discretamente, saiu pela porta sigilosamente e subiu as escadas em busca de Rachel Vandermere.
—É um deles? — Perguntou Rachel.
O homem que se apresentou como Evan Cain assentiu, ainda inclinado sobre a bandagem que acabava de colocar ao redor do pulso de Rachel.
Era um homem enxuto e robusto, com óculos redondos com aros metálicos e olhos vivos que nunca se detinham muito tempo em um mesmo lugar. Suas mãos também eram rápidas, trabalhavam a base de pequenos movimentos definidos, rápidos e nervosos. A ansiedade daquele homem era tão evidente, tão humana, que era difícil de imaginá-lo como um monstro.
—Então é médico? — Perguntou Rachel, mais que nada para desviar seu pensamento do atalho no que se perdeu.
—Universidade de Illinois. — Disse ele. Ficou de pé e se dispôs a recolher seu material, estetoscópio, antisséptico, gazes, tesouras para as bandagens e o colocou de volta em sua maleta negra — Dois anos na sala de urgências do Centro Médico de Chicago. Três em pediatria no Hospital Infantil de Pearland.
Ela se perguntou se teriam também um veterinário para se encarregar de seus personagens alternativos. Ou se o bom doutor tinha estudado um pouco de anatomia não humana para uma emergência ocasional. Não teve suficiente valor para perguntar assim disse:
—Atendeu Von? Estava muito mais ferido que eu.
—Não o suficiente para o que merece.
—É só um garoto. — Um garoto que podia transformar-se em porco quando o desejava e mesmo assim ela não podia tirar da cabeça a imagem de seu rosto humano que dava uma aparência de necessitado e maltratado.
O médico suspirou.
—Viverá. Igual a você. — Disse ele e fechou sua maleta.
Ela comprovou seu dolorido pulso, tinha que admitir que estava melhor e voltou a dirigir sua atenção para o doutor. Este se dispunha a partir, mas Rachel não estava preparada para que se fosse. Não estava preparada para estar sozinha, inclusive se a única companhia disponível era um monstro autodeclarado.
—Deve ser muito útil aqui. — Disse ela — É prático ter um médico perto que, além disso, é um dos seus.
Ele deu as costas, não respondeu, mas a tensão de seus ombros disse muito ao Rachel.
—Quantos como você vivem em Chicago?
—Não faça muitos esforços nos próximos dois dias. — Disse ele, com umas palavras rígidas como suas costas — Troca a bandagem desse pulso. Coloca neosporin nesses arranhões. Toma um par de aspirinas se o necessitar, mas faz que Nathan me avise se tiver alguma dor intensa.
Não se preocupou em dizer adeus e Rachel sentiu um momentâneo sentimento de culpa por tê-lo ofendido, algo que a irritou, já que era ela a que estava retida contra sua vontade. Demorou uns segundos em dar-se conta de que ele tampouco tinha fechado a porta.
Sem dúvida, sua fuga não ia ser tão fácil.
Cruzou a sala caminhando nas pontas dos pés. Quando estava a ponto de aparecer à porta para comprovar se havia guardas, um corpo imenso tapou a entrada.
Ela recuou de um salto, sua mão cobriu automaticamente o coração antes que reconhecesse o homem que a tinha levado dali e logo tinha desaparecido no dia anterior.
—Connor?
Olhou-a com o cenho franzido, com uma expressão sombria e, então, sem uma palavra, fechou a porta atrás dele.
E passou o ferrolho.
Teryn levou dez longos minutos para estabelecer a ordem na sala do Conselho. Durante vários segundos, não tinha tido a completa segurança de que a ordem seria restabelecida. Aquilo tinha sido um organismo que representava a dignidade e a honra, unificado para conseguir o bem e contra aqueles que se opunham a este.
Que rápido tinha degenerado formando facções e grupos, como meninos no pátio do colégio. Pode ser que Nathan estivesse certo. Pode que a magia que tinha feito que permanecessem unidos durante muitos séculos estivesse se debilitando.
Ou pode ser que simplesmente estivessem cansados.
Teryn estava cansado. Muitas horas à frente dos rituais o tinham privado de dormir. Muitos pesadelos, repetições de suas visões rituais, tinham provocado muita tensão.
Procurou Nathan com o olhar. Nathan, que deveria estar a seu lado, sua mão direita. Estudou a fria expressão de sua cara. Seus inexpressivos olhos não mostravam nenhum pingo da dor que Teryn sabia que sentia em seu interior por estar de volta entre sua gente, nesse lugar e ser uma sombra com quem ninguém falava a quem ninguém via. A distância, física e emocional, entre ambos fez que Teryn tivesse um nó na garganta.
Acreditou que finalmente tinha chegado a entender o que Nathan sentia, ao menos em parte. Nathan era o que tinha sido excomungado e, entretanto, afastado do resto em seu pódio central, com ninguém com quem compartilhar a responsabilidade, ninguém com quem compartilhar os vaticínios sobre a destruição que tinha obtido de suas visões, era Teryn o que se sentia isolado, sozinho.
Quando finalmente a sala ficou em silêncio, voltou-se para a assembleia.
—A mulher é consciente dos Gargouillen. Mas inclusive se contasse a alguém, ninguém acreditaria. O pior que nos pode acontecer é que nos convertamos, indevidamente, no centro das atenções. — Elevou a mão antes que outro revoo pudesse sequer começar — Sobrevivemos a situações piores. O que realmente é importante é que descobrimos como pode resistir a aproximação de nossas mentes e o que sabe a respeito da Chamada. Se um humano tiver semelhantes capacidades, pode ser que não seja a única. Devemos estar preparados.
Uma absoluta quietude alagou a sala. Teryn deixou que seu olhar viajasse de um homem a outro. Quando estes baixavam o olhar para os pés, mãos ou chão, ele continuava.
—O que acontece com ele? — Perguntou Christian, o rastreador, fazendo um movimento com o ombro para assinalar Nathan.
—Nathan é o único que passou tempo com esta mulher. — Utilizou intencionadamente o nome de Nathan, embora estava proibido, dotando o de existência de novo. Dando uma pequena amostra de aceitação, não importava quão diminuta fosse — Se quisermos saber mais dela, precisamos ganhar sua confiança. Ele ficará até que a consigamos.
Nathan deu um pequeno passo à frente, surpreendendo Teryn. O muito idiota não deveria tentar à sorte.
—Não permitirei que a machuquem. — Disse ele.
—Ninguém vai machucá-la, Nathan. — Teryn o olhou nos olhos, tentando transmitir com o olhar o que não podia dizer com palavras.
Uma vez acabada a reunião do Conselho, ele e Nathan subiram as escadas com muita dificuldade, e então se deu conta de quão equivocado tinha estado quando entraram na pequena sala onde se alojava Rachel Vandermere.
Capítulo 21
Rachel não podia respirar, mas não era pelas mãos que rodeavam seu pescoço. Connor a tinha encurralada, mas não a estava afogando.
O campo de visão de Rachel já se tornou completamente branco com pontos negros imprecisos que flutuavam sobre o bordo. Os pontos eram ele. Seus pensamentos, sua visão, tentando de alcançá-la.
Ela sentiu uma invasão em seus processos mentais sentindo algo similar a quando Nathan criou falsas imagens em sua mente, só que esta vez doía. Enquanto que a intrusão de Nathan tinha sido suave e sigilosa, Connor estava tentando penetrar no interior dela, tomar sua mente apoiando-se na força bruta.
As imagens procedentes da mente de Connor tentaram furar a barreira mental que ela tinha elevado entre ambos. Ela sentiu cada espetada como se estivessem cravando uma faca nos olhos.
Presa do pânico, esmurrou-o com as mãos fechadas em punhos. Connor se sentou sobre ela escarranchado sobre uma das camas e imobilizou seus braços sob os joelhos. Continuava com as mãos ao redor de sua garganta.
—Se acalme — Disse ele — Não vou te machucar. Relaxe. Me deixe entrar.
Relaxe? Relaxe?
A quem pretendia enganar? Antes morreria lutando.
Cheia de energia, resistiu, tratou de tirá-lo de cima, mas o único que conseguiu foi gastar energia deslocando-o uns poucos centímetros, já que Connor voltou a cair bruscamente sobre seu peito. Ela tentou tossir, mas não havia suficiente espaço entre os dois para que saísse o ar, de maneira que o transformou em um soluço afogado.
Rachel ao menos tinha uma mão livre. Alargou sua mão com as unhas para fora para tentar tirar os olhos, mas mal pôde alcançá-los.
Ouviu um golpe sobre a porta. O pomo vibrou.
—Senhorita Vandermere? É Teryn.
Connor girou a cabeça e Rachel conseguiu alcançar seu olho com o dedo indicador. E tirou sangue.
—Merda! — Gritou ele e retirou a mão do pescoço de Rachel para pô-la sobre a ferida.
Depois de aspirar ar rapidamente, Rachel se dispôs a gritar, mas sua voz não quis sair. Não obstante devia ter feito algum tipo de som, porque a seguinte coisa que viu foi a porta abrindo-se de uma portada e Nathan irrompendo no quarto, com o Teryn atrás dele.
—Que demônios... ? — A expressão de ira que cobria o rosto de Nathan teria mandado ao mesmo demônio cagando leite ao pior dos infernos. Agarrou Connor tirando-o de cima de Rachel e o lançou contra a parede com tanta força que a sala tremeu. Mas Connor nem se alterou. Em um abrir e fechar de olhos, seu braço se converteu em uma garra. Umas unhas curvas apareceram e alcançaram o pescoço de Nathan. A forma de sua cabeça se converteu em algo escuro, dando passo a um pássaro de pele curtida com um chifre para trás em sua testa.
Nathan também começou a transformar-se. Sua mandíbula se alongou. Seus ombros se incharam com músculos. Abriu a boca e o som que saiu dali não era humano, e sim uma inconfundível chamada animal ao desafio.
Rachel se encolheu formando uma bola sobre o fino colchão e fechou os olhos com força. Agora me recostarei para dormir...
—Parem já, os dois!
Apesar de seu medo, Rachel permaneceu com os olhos abertos. Teryn se colocou diante de sua cama, com os braços elevados a ambos os lados, cada um assinalando a um dos dois homens, quem, felizmente, voltavam a ter forma humana, indicando que parassem. Quando nenhum dos dois tentou equilibrar-se sobre o outro, baixou lentamente os braços.
—Connor. — Disse ele — O que estava fazendo?
—O que ele já deveria ter feito. Fazê-la esquecer o que viu, o que sabe.
Nathan deu um agressivo passo à frente, aguentando ao Teryn o olhar.
—Segurando-a e afogando-a?
Curioso, pensou Rachel, quando Connor baixou o olhar.
—Estava resistindo.
Nathan fez um ruído com a mandíbula. Olhou e se dirigiu a Teryn, só a Teryn.
—Já disse que não podia ser manipulada.
—Eu não ordenei isto.
A suspeita percorreu a sombria expressão de Nathan, depois assentiu ainda mal-humorado. Jogou os ombros para trás e arrumou contas com Connor.
—Volta a tocá-la, com suas mãos ou com sua mente e acabaremos o que começou aqui. — Dedicou um olhar a Teryn, depois voltou a olhar a Connor, seus escuros olhos brilhavam repletos de má intenção — Sem um árbitro.
Teryn agarrou o Connor pelo ombro e o empurrou brandamente até a porta.
—Vá para baixo. Falaremos disto mais tarde.
Rachel se estirou e ficou de pé cautelosamente. O silêncio reinou na sala, nenhum deles parecia saber o que fazer agora. Nathan olhou fixamente a Rachel. Rachel olhava por cima do ombro de Nathan à parede.
Teryn finalmente pôs fim ao ponto morto.
—Teve um dia difícil, querida. Por que não descansa? Nathan ficará com você. Farei com que subam um chá.
Rachel percorreu Nathan lentamente com o olhar, seus fortes ombros, sua mandíbula pronunciada. A agonia em seus olhos.
—O que te faz pensar que vou estar mais segura com ele do que estava com o Connor?
A face de Teryn se iluminou, esboçou um atraente sorriso humano que fez que Rachel sentisse um formigamento no estômago fruto da confusão.
—Talvez por que correu diante de um trem de alta velocidade e quase briga com um de seus irmãos para te proteger?
Assentiu com a cabeça olhando Nathan, um gesto que Rachel não duvidava que significava algo e saiu do quarto.
Nathan caminhou até a janela, com as mãos metidas nos bolsos.
—Está bem?
—Apesar de que estou sendo retida contra minha vontade em uma fortaleza de pedra por um montão de homens que não são humanos e quase violam minha mente? Refere a isso?
Ele se voltou. Ela recuou rapidamente. A parte traseira de seus joelhos se chocou contra a borda da cama, e se sentou para evitar cair. “Melhor sentada”, pensou, “faz que pareça mais tranquila”. “Faz que não veja como tremem meus joelhos”.
—Refiro a se esta machucada.
—Não, não me machucou. Ao menos foi honesto sobre o que pretendia fazer e por que. — Olhou Nathan, doída pela inocência fingida no dia anterior — O que você fez, mentiu, me enganou, me usou. Isso sim que dói.
—Só queria te proteger.
—Babaquices. — Ela se levantou da cama e caminhou até ele, colocando-se cara a cara. O medo fez que arrepiassem os cabelos como quando uma faca chia sobre um prato vazio, mas isto não a deteve. Não a paralisou. Se sua intenção era matá-la, já tinha tido centenas de oportunidades anteriormente.
O que fez que se perguntasse a que se devia o ocorrido na semana anterior.
—Estava protegendo a si mesmo? Não é assim?
—Há uma explicação para esses segredos, Rachel. Há coisas que é melhor que as pessoas não saibam.
—Como o fato de que há um montão de vigilantes fantasmas por todo Chicago e Deus sabe em que outros lugares, que se dedicam a matar pessoas grosseiramente em nome da justiça?
—É isso o que pensa que fazemos?
—Consegui escutar uma ou outra conversas desde que estou aqui. Está me dizendo que entendi mau?
Nathan estremeceu.
—Suponho que alguns nos vêem desse modo.
—E você como o vê?
—Eu vejo uma espécie a borda da extinção. Uma civilização antiga lutando por sobreviver no mundo moderno e fracassando na tentativa — Dirigiu-se à janela a grandes passos e deixou que seu olhar se perdesse no exterior. Então, sacudiu a cabeça — Um montão de dinossauros que não podem continuar vivendo tal e como são e tampouco podem tombar-se e morrer, inclusive embora o desejassem.
Rachel ficou sem fôlego devido a suas últimas palavras.
—Está-me dizendo que são... Imortais?
Nathan se voltou, colocou as mãos nos bolsos, e fez um gesto nervoso enquanto a observava.
—Não. Nascemos como qualquer outra pessoa e também morremos como o resto, bastante antes, de fato. Nossa esperança de vida não é muito longa —Encolheu os ombros — Salários do ofício quando passa as noites entre a escória da cidade. Só que se quando morremos fomos bons gárgulas e produzimos um filho e herdeiro, então voltamos a nascer. E morremos de novo, e voltamos a nascer, e assim até não poder mais.
—Reencarnam?
O sorriso de Nathan não se refletia em seus olhos enquanto passeava ao redor do pequeno quarto, com as mãos ainda nos bolsos.
—Inclusive os gatos conseguem morrer depois de suas sete vidas. E eu? Estou na quatorze.
Rachel se desabou sobre a cama, com as mãos sob o queixo para pensar, e sacudiu a cabeça diante a atrocidade daquilo.
—Quatorze vidas?
—Não acredita? — Perguntou ele — Queria a verdade. Estou proporcionando isso. Toda ela, se é que está preparada para ouvi-la.
—Nada a ver com a que me proporcionou ontem. Ou a que me contará amanhã. Como sei o que tenho que acreditar, Nathan?
—Bem. Não acredita nisso. Pensa que é um conto. — Sentou-se junto a ela sobre a cama, não o suficientemente perto para tocá-la, mas mesmo assim muito perto. Afligindo-a com seu aroma a pedra de afiar e com o calor que sempre parecia emanar dele. — O conto de como os monstros chegaram ao mundo.
Teryn estava contra escutar às escondidas, mas permaneceu pego à porta de Rachel durante um momento para assegurar-se de que não se derramava mais sangue, depois, satisfeito, acendeu uma vela para levá-la consigo e desceu sigilosamente as escadas até o porão.
A sala subterrânea, onde tomos ancestrais que continham a história de sua gente, que se passavam de geração em geração, de vida a vida entre os Gargouillen, estavam hermeticamente armazenados. Teryn levou um pesado manuscrito até a mesa. Depois de acender um pequeno abajur, colocou os óculos de leitura e começou a passar as páginas cuidadosamente, as esquadrinhando lentamente em busca do texto que Nathan tinha pedido que procurasse entre as ilustrações desbotadas e as cartas escritas a mão em pergaminho.
Tinha vagas lembranças da passagem, lembrava tê-la visto faz anos quando pela primeira vez começou a interessar-se pelos manuscritos com letra de vários séculos de antiguidade. Era algo que se encontrou quando começou a ajudar Nathan em sua busca de um modo de inverter a maldição que fazia que os Gargouillen fossem como eram, e depois o tinha esquecido. Ou ao menos o tinha esquecido parcialmente.
Algo sobre uma mulher com o poder de um gárgula.
Embora tinha deixado atrás fazia muito a geração do Gargouillen originais de Rouen, Nathan descreveu a Rachel de cor a cena de sua transformação em bestas.
Em Rouen se originou a história dos gárgulas, que não devia ser esquecida por nenhum da espécie. As imagens se passavam a cada nova alma de um modo similar ao que Nathan tinha empregado para tentar introduzir imagens na mente de Rachel, de maneira que formavam parte de sua consciência continuada, recuperáveis em cada vida cada vez que voltava a nascer.
Com os olhos fechados, Nathan formou na mente várias imagens de uma época simples, com pradarias verdes, gente amável, dias que passavam muito mais devagar em comparação com os de hoje.
—Foi ao redor da mudança de milênio. — Disse ele, e abriu um olho para comprovar que Rachel entendia — O primeiro deles.
Ela tinha o olhar fixo nas mãos, juntas sobre os joelhos, e Nathan voltou a fechar os olhos e retomou de novo o fio da história.
—Os habitantes de Rouen eram pagãos. Rendiam culto ao deus da caçada, e à natureza. Então, o cristianismo estava se propagando pela terra. Mesmo assim, as pessoas de Rouen se mantiveram firmes em suas crenças. Ao menos até que um dragão se estabeleceu em uma montanha próxima. A Gargouille espoliou e saqueou a cidade, queimando os campos antes da colheita e tragando vários navios do porto.
Ainda podia cheirar a azeda fumaça, seus gritos, e sabia que Rachel se empapou de algumas das impressões tanto se queria como se não. Ela tremeu tão forte que a cama vibrou.
—Os habitantes do povoado trataram por todos os meios de se desfazer do dragão, mas quanto mais lutavam, mais destruía a gárgula. Até que um dia um sacerdote chamado Romanus apareceu. Disse que daria morte ao dragão se as pessoas da cidade prometia se deixar batizar e se construía uma igreja católica. As pessoas se opuseram durante algum tempo, mas finalmente estavam tão desesperados que concordaram. — Nathan soprou — Acreditaram que, de todas formas, o idiota de cabelo branco não tinha nenhuma possibilidade, e que possivelmente a carne que rodeava seus ossos saciaria a Gargouille durante uns dias.
Rachel elevou a cabeça. Estava tão apanhada no relato como ele; refletia-se no brilho de seus chorosos olhos verdes.
—Com certeza não era o idiota que todos pensavam que era.
—Não. — Nathan lutou contra a atração que sentia por ela. A necessidade de alongar o braço e acariciar sua suave bochecha com os nódulos, de contar a história na escuridão, com o corpo enroscado ao dela.
Nathan clareou garganta.
—A noite que ia realizar a façanha, matar o dragão, Romanus juntou aos homens de Rouen na colina do bosque sobre a cidade. Não foram conscientes até que foi muito tarde de que os tinha reunido dentro de um pentagrama desenhado dentro de um círculo.
Rachel formou uma ruga na ponte do nariz.
—Símbolos rituais — Explicou ele — O filho de puta lutava pelo cristianismo, mas utilizou a magia pagã de minha gente contra eles, e era uma magia poderosa.
O coração de Nathan palpitava ao mesmo tempo em que uns tambores retumbavam em sua cabeça. O salmo. Não podia distinguir as palavras nem conhecia seu significado, mas seu ritmo era sedutor.
E Unri almasama
E Unri almasama
Calli, Calli, Callio
Somara altwunia paximi
—Acendeu fogueiras nos quatro pontos cardeais do círculo e queimou incenso. — A voz de Nathan era rouca, carregada de fumaça. O sangue se propagava por suas veias enquanto revivia a condenação a seus antepassados e a todos seus descendentes — Apesar de ser uma noite limpa, um relâmpago iluminou o céu. Um vendaval arrancou e inclusive partiu em duas as árvores mais velhas. Os ramos se rachavam e saíam voando.
E Unri almasama.
A testa de Nathan começou a suar. Não foi consciente de que tinha a colcha da cama entre os punhos até que se amarrotou nos dedos. Depois de fazer um grande esforço, estirou os dedos e alisou o edredom.
—Alguns homens agacharam a cabeça, outros saíram correndo ultrapassando a borda do círculo, embora foram empurrados de volta a seu interior por uma mão invisível.
E Unri almasama.
As folhas das árvores se encolhiam e se murchavam. Depois, as murchas folhas marrons formaram redemoinhos com o vento rangendo como se fossem ossos. O enjoativo incenso e a fumaça deixaram Nathan sem fôlego, queimaram sua garganta e seus olhos.
—Romanus se colocou na parte norte do círculo e elevou o cálice. Enquanto bebia, caía sangue de ambos os lados da boca, e o calor da terra, sua energia, levantaram a barra de couro de suas botas e subiu por suas pernas.
Calli, Calli, Callio.
Não protegeu a imagem intencionadamente, embora a intensidade da lembrança era muito forte para reprimi-la. A energia deste flutuou no ar ao redor dele e de Rachel, entre eles. Sentiu como Rachel entrecortava a respiração devido à intensidade. O sentimento explodiu, atravessou e se deslizou pela mente de Rachel até que ela viveu em suas carnes o pesadelo que ele tinha vivido tempo atrás.
—Romanus se moveu ao sul, ao leste, ao oeste, e cada vez que bebia, o calor aumentava até que os homens acabaram respirando fogo e inspirando cinzas.
Não pôde mais que sussurrar quando tentou continuar, o ar quente soprava sobre suas orelhas, sangue quente bombeava em suas veias. Seus músculos cresceram e sua pele se endureceu. Seus ossos começaram a se reestruturar.
Nathan não importou; nesse momento era insensível à dor, estava apanhado no sonho, na lembrança.
—Romanus fez uma Chamada às feras do bosque — Disse Nathan com voz rouca — E se aproximaram até a borda do círculo cativadas pela luz e a energia. Reclamou suas vidas, suas almas. Os homens começaram a se contorcer inclusive enquanto os animais caíam desabados sem vida sobre as árvores. Seus corpos se alongavam e se retorciam. Seus órgãos se modificavam. Os dentes atravessavam suas mandíbulas e seus dedos se fundiam em trevos irregulares, e depois emergiam patas. Alguns caíram sobre o chão a quatro patas e outros se desabaram sobre suas barrigas, com as colunas vertebrais dissolvidas e rastejando como serpentes.
Nathan ficou sem ar, engoliu com secura e recuperou o fôlego para continuar.
—Os homens acolheram as almas das bestas em seu interior, produziram-se combinações de todo tipo de espécies, fundiram-se as diferentes raças. Quando Romanus bebeu o último gole de sangue de sua taça, produziu-se uma explosão na ladeira da colina. Choveu fogo do céu. O chão se abriu formando grandes gretas e engoliu a alguns dos homens. Vários troncos de árvores carbonizadas se partiram em dois, matando a outros.
—Quando tudo acabou, aqueles que ficaram observaram seus corpos, aquilo no que tinham se transformado. O bode do Romanus os tinha traído.
Somara altwunia paximi.
—O que foi deles? — Perguntou Rachel, sem fôlego ao igual a ele.
Nathan a olhou, voltando ligeiramente para seu ser, e quando viu os chorosos olhos vermelhos de Rachel, soube que sua aparência devia ser igual de má.
—Então, a Gargouille com forma de dragão apareceu no topo da colina, furiosa porque o ruído e os tremores a tinham despertado. E os homens, dominados pela rejeição frente a aquilo no que se converteram, o que Romanus tinha feito, sedentos da cólera, aterrados e amedrontados, tomaram a colina e enfrentaram o dragão com seus dentes, chifres e garras enquanto as mulheres e os meninos do povoado o presenciavam horrorizados.
—O Combate de Rouen. — Disse Rachel — A tapeçaria do museu.
Nathan agachou a cabeça.
—O Combate de Rouen.
—Meu Deus.
—Mas nem sequer isso foi o ponto final da traição de Romanus. Tinha conseguido o que queria: A Gargouille estava morta e as pessoas de Rouen estavam obrigados a cumprir sua promessa e converter-se ao cristianismo. Mas Romanus estava muito encantado com seus novos mascotes para renunciar a elas. Ampliou o malefício que acabava de criar dizendo que deveriam proteger à espécie humana para sempre, do mesmo modo que tinham protegido às mulheres e meninos de Rouen frente ao dragão. Proclamou que sempre levariam essas bestas em seu interior, adormecidas até que as necessitassem. E que deviam continuar a espécie e propagar-se, ter filhos que seriam como eles: guardiões.
Rachel se sentou em silêncio, assimilando tudo. Ao menos não tinha saído correndo.
Ele tomou isso como um sinal de que deveria finalizar a história.
—Durante muitos anos fomos venerados pelos humanos. Velávamos por sua segurança. Os protegíamos dos perigos de uma época sombria. Eles nos traziam suas filhas para que copulássemos com elas, de maneira que pudéssemos ter filhos, considerava-se uma honra para uma virgem entregar-se a um gárgula, dar um filho antes de procurar matrimônio com um humano. Inclusive esculpiam nossas imagens nas paredes de seus edifícios como símbolos de proteção: O mal não ousaria rondar por ali. Mas à medida que passaram os séculos, eles simplesmente... Esqueceram de nós. As pessoas evoluíram, escreveram leis e criaram corpos de policiais para se proteger. Já não nos necessitavam e passamos a formar parte da lenda.
Caminhou até a janela, olhou para fora às toscas paredes de pedra.
—Simples estátuas grotescas que penduravam no alto de suas ruas. Artefatos interessantes de um tempo muito longínquo.
Rachel tomou ar estremecida, elevou os ombros, e sacudiu a cabeça como se precisasse esclarecê-la. Aparentemente, acabava de dar-se conta de que ele a agarrava pela mão com as suas; ela se soltou.
—Não escolhemos ser o que somos, Rachel, nenhum de nós, se sequer os mais antigos, as gárgulas originais de Rouen. Fomos objeto de uma maldição. Fomos traídos. — Encolheu os ombros — Vivemos com isso o melhor que soubemos.
Rachel ficou em pé e cruzou os braços à altura do peito enquanto caminhava.
—Não esperará que acredite nisso.
—É a verdade. Viu-a. A sentiu.
—Também nos vi fazendo amor em um bosque quando em realidade estávamos sobre um sofá em uma casa vazia. Senti... — Sua frase ficou no ar enquanto o calor subia ao pescoço — Como posso saber que este não é outro de seus truques caseiros?
O mundo de Nathan caiu aos pés. Sentiu que ia desaparecer, estava como flutuando. Olhou-a fixamente durante um segundo comprido antes que esta sensação se evaporasse, então jogou a cabeça para trás e riu, a primeira risada de verdade originada na barriga que tinha podido desfrutar em muitas vidas.
Rachel enrugou a testa.
—O que é tão divertido?
—Você. — Secou as lágrimas, fruto da risada, com a costa da mão — É o primeiro humano que ouve esta historia em séculos, possivelmente o primeiro humano na história, e você... — Outra risada se propagou barriga acima — Você não acredita nisso.
—Isso é engraçado?
—É uma ironia. Sabe até onde chegamos para manter a salvo nossos segredos? Durante todo este tempo poderíamos ter dito a qualquer um. Qual teria sido a diferença? Se você, que de fato acredita em monstros, não acredita no que te contei, que possibilidades há de outra pessoa acreditasse?
Rachel aparentemente seguia sem encontrar a graça à situação. O silêncio de Rachel acabou com a diversão de Nathan, seu sorriso se desvaneceu.
—Não disse que não acredito exatamente. — Disse ela — Eu só...
—Não confia em mim — Completou a frase por ela. O fato de que não o desmentisse confirmou que Nathan suspeitava — Está bem, você não confia em mim, não confia no que vê em sua mente, mas pode ser que confie no que veja com seus próprios olhos.
Depois de suspirar, abriu a porta e fez um sinal para que saísse. Ela não fez nenhum gesto de segui-lo.
—Aonde... ? — Perguntou ela.
—Não posso demonstrar como chegamos a ser o que somos. Mas ao menos posso te mostrar o que somos agora, como somos. Se tiver coragem para vê-lo.
Capítulo 22
Rachel saiu de seu quarto com passos cambaleantes, enquanto Nathan a guiava por trás apoiando uma mão em suas costas. Sentia as pernas tão duras como troncos de árvore. Os pés pareciam blocos de concreto.
Levava quase toda a vida procurando monstros, e agora que os tinha encontrado, tinha medo de olhar.
—Por aqui. — Nathan a conduziu para a direita, depois desceu umas escadas até chegar a um corredor cheio de portas e se deteve frente à última delas. Rachel passou atrás dele, com o coração a mil por hora a ponto de desbocar-se. Sem saber o que esperar, que horrores ia ver, fixou o olhar no centro das largas costas de Nathan.
— O St. Michael era uma igreja e seminário no final de 1800. Quando o filantropo que a fundou decidiu mudar-se ao oeste em 1898, ficou vazia até que minha congregação a comprou em 1905. Acrescentamos coisas após, mas a estrutura original está intacta. As duas torres funcionam como dormitórios. Os meninos maiores estão na torre norte. Os mais jovens, de dez anos ou menos, estão aqui na torre sul. O andar inferior de cada torre contém meia dúzia de salas de aula — Olhou por trás do ombro para assegurar-se de que Rachel não tinha desaparecido. Ou que não havia morrido de medo — Houve um tempo no que os meninos quase não cabiam, mas hoje só temos dezoito estudantes. A maioria dos quartos estão vazios.
—Por que há tão poucos meninos?
A face de Nathan se apagou.
—Digamos que as pessoas do povoado já não manda suas virgens.
Nathan se fez a um lado. Rachel fechou automaticamente os olhos e se mordeu o lábio inferior. Parou o coração um segundo, e depois seus pulmões deixaram escapar o ar como se desinchasse de repente quando viu o que havia dentro da sala.
Não havia câmaras de tortura. Não havia bestas selvagens arrancando a pele a tiras uns dos outros com terríveis garras. Não havia ferozes olhos brilhantes.
Era uma sala de aula, cheia de meninos entre cinco e seis anos até uns dez anos mais ou menos. O homem de longos ombros com o cabelo grisalho e cavanhaque que se encontrava à frente da classe pôs um globo terrestre sobre a mesa.
—Quem sabe quantos oceanos há no mundo?
Um menino da segunda fila levantou a mão.
—Charles?
—Cinco.
—Correto. Cinco. Paul, diga o nome de algum deles?
Um menino de olhos sonolentos sentado atrás ficou reto.
—Mmm... O oceano Pacífico?
— Muito bem. — O professor deu meia volta e escreveu Oceano Pacífico na lousa com letras redondas e uniformize. Um menino loiro com o cabelo liso fez uma bola de papel. O menino sentado na carteira do lado fez um aro com os dedos e o loiro atirou marcando gol. Sorriram-se e chocaram as mãos de seus assentos antes que o professor voltasse para a classe.
Sorrindo, Nathan levantou o polegar em sinal de aprovação e depois acompanhou com a mão a Rachel para que entrasse na sala de aula.
—Não deveria aplaudir essas coisas. — Disse Rachel.
—Os meninos são meninos. — Nathan a olhou de esguelha — Tanto se são humano como se não.
As palavras golpearam a consciência de Rachel como pedras em um atoleiro. Deveria ter se dado conta de que os meninos eram como Nathan. É obvio.
Mas pareciam tão normais. Tão inocentes.
Rachel sacudiu a cabeça.
—É isto o que queria me mostrar? Quão civilizados são? Nunca duvidei de sua educação, Nathan.
—Não — Respondeu sem olhar para trás enquanto empurrava umas pesadas portas e gesticulava assinalando para o interior — Isso é o que queria te mostrar.
Rachel o seguiu cruzando a soleira que conduzia para uma cavernosa sala, situada possivelmente três andares mais acima. Parecia um antigo ginásio, com um teto pintado de azul céu com umas esponjosas nuvens. Três das paredes estavam pintadas com murais de grama verde, viva flores de todas as cores e árvores, enquanto que uma realista cascata azul profundo caía pela quarta parede. Mas não foi isso o que chamou a atenção, e sim a meia dúzia de meninos gritando e vociferando enquanto se perseguiam uns aos outros pela sala.
Ao menos, supôs que eram meninos.
—Entre as duas torres, estão os escritórios de administração, e isto. O chamamos de o aviário. — Disse Nathan — É onde os meninos cuja outra forma é alada aprendem a voar.
O que pareceram ser um par de jovens falcões vermelhos, exceto pela linha de protuberâncias triangulares que percorriam a coluna vertebral e as caudas que se bifurcavam como uma língua de serpente, apareceram no céu pintado. O de trás estava mordiscando a cauda do primeiro. Ambos se lançaram como kamikazes para Nathan, mas depois o esquivaram e remontaram o voo.
Rachel os observou maravilhada, sentindo uma mistura de fascinação e curiosidade com medo. Um morcego com chifres e umas presas desmesuradas realizou uma perfeita pirueta diante ela.
—Muito bem, Ellis. — Disse Nathan.
Uma a uma, as outras criaturas... Ou eram meninos? Da sala realizaram piruetas, cambalhotas e demais figuras acrobáticas. Nathan teve umas palavras de fôlego e ânimo para cada um deles, e depois se dirigiu para uma plataforma situada a uns três metros do chão contra a parede à direita deles decorada para parecer a cabana de uma árvore.
—E você, Patrick? Não pensa sair para me saudar?
—Patrick? O filho de Rhys? — Rachel se lembrou do menino de olhos tristes do funeral. Tinha partido o coração dela e hoje voltou a acontecer. Ela tinha perdido a seus pais mais ou menos a sua mesma idade.
Nathan assentiu, depois voltou a meter-se na cabana da árvore.
—Não vai me mostrar o que aprendeu desde que fui?
Um par de olhos escuros, meio cobertos por uma mecha de cabelo igualmente de escuro, apareceram pela cabana.
—Não quero.
—Por que não?
Um dos falcões, convertido agora em um pré-adolescente com o cabelo ruivo de ponta, riu.
—Porque não sabe fazer nada!
O outro, também em forma humana e ruivo, colocou as mãos sob as axilas, começou a bater as asas com os cotovelos e começou a caminhar estirando o pescoço enquanto outros meninos riam.
—CO-CO-CO-CO... Quando Patrick acorda, deveria ser uma galinha, porque tem medo de voar.
Nathan olhou por cima do ombro.
—Não chegam tarde à aula de história?
A risada deu passo a uma ronda de queixa, mas os meninos abandonaram a sala. Todos menos Patrick.
— Está tudo bem. Se foram. — Disse Nathan. Sua voz era extremamente doce para ser a de um monstro — Já pode sair.
Patrick percorreu com o olhar a sala, para se assegurar. Olhou para Rachel como se ela fosse a estranha.
—Quem é?
—É a senhorita Vandermere. É uma amiga.
—É uma garota.
Rachel sentiu que Nathan afogava uma risada.
—Sim. É. Venha, saia.
Patrick voltou a escanear a sala e depois saiu de seu esconderijo.
Caminhou pela plataforma e se sentou na borda com as sapatilhas esportivas penduradas. O coração de Rachel se encolheu ao ver o bico de aborrecimento que mostrava. Não era mais que um garotinho.
—Vamos, o que é isso de que não voa? — Perguntou Nathan com um tom de voz suave, nada acusador.
—Tenho medo. — Respondeu Patrick depois de engolir em seco.
—Todo mundo tem medo a princípio. Inclusive Jacen e Josh tiveram medo, com certeza.
Patrick sorveu os mucos. Uma lágrima caiu como um adorno de cristal por suas bochechas.
—Você também?
Nathan olhou para Rachel, depois se apoiou no outro pé e desviou o olhar.
—Sim. Eu também.
—Mas se atreveu a voar?
—Sim. Todos os que despertamos com asas aprendemos a voar, Patrick. O céu e o vento nos chamam. É nossa natureza.
Fez que soasse como uma aventura nobre e de grande envergadura e Rachel se tranquilizou sentindo-se tão afetada pelo feitiço como o garotinho. Até que se perguntou se ser um gárgula pareceria algo tão glorioso quando se inteirasse de que também tinha que matar pessoas.
—Ponha-se de pé e escuta os tambores de seu coração. Escuta as palavras.
E Unri almasama.
—E Unri almasama — Repetiu Patrick. Depois de limpar o nariz com a manga da camiseta, ficou de pé na borda da plataforma. Seus olhos olhavam como se tivesse caído em um transe.
—Calli, Calli, Callio — Recitaram juntos — Somara altwunia paximi.
Em questão de segundos, o precioso garotinho tinha desaparecido e, em seu lugar, tinha aparecido um dragão em miniatura.
— Agora, levanta as asas. — Disse Nathan — Sente o ar embaixo elas. Sente como é sólido. Sente como pode te sustentar. Sente como pode atravessá-lo.
Patrick realizou um bater de asas de prova, enquanto tinha os pés, ou mas bem garras, apoiadas com firmeza no extremo da plataforma.
—Bem — O animou Nathan — Continue pensando assim. Pensa em atravessar o ar. Agora se incline um pouco para frente.
As asas do menino batiam de maneira irregular. Cambaleou, assustou-se e depois se incorporou antes de jogar a cabeça atrás.
—Esta tudo bem. — Disse Nathan rapidamente — Vá mais devagar. Fique aí e move as asas de cima para baixo. Sente o vento.
O ritmo de Patrick se fez mais uniforme.
—Agora se incline um pouco para frente. Arqueia as costas e mantenha a cabeça alta. Continue batendo as asas. Bom. Muito bom. Quando estiver preparado, se incline um pouco mais para frente. Mantenha a cabeça alta e continue batendo as asas, de maneira uniforme e suave.
O menino se inclinou para frente até que ficou em um precário equilíbrio na borda da plataforma. Rachel tinha o coração em um punho e se agarrou ao braço de Nathan, mas ele apertou a mão para tranquilizá-la. Isso ela pensou. Ou possivelmente fosse para calá-la.
—Está preparado? — Perguntou ao menino.
Patrick grasnou. Rachel tomou como um não.
—Se incline para frente um pouco mais. — Indicou — E vêem para mim. Vêem me saudar. Faz muito tempo que não te dou um abraço.
Rachel sentiu carinho ao ver com que doçura Nathan olhava o menino e com que amabilidade falava.
O pequeno menino-dragão piscou e depois deu uns passinhos para frente batendo as asas até que caiu pela borda da plataforma.
Rachel levou a mão à boca. Patrick caiu em queda livre quase um metro, mas depois conseguiu o controle suficiente para se sustentar. Ou algo assim. Conseguiu remontar o voo até uns três metros de altura, perdendo e ganhando um metro de altura cada vez que batia as asas e cambaleando para ambos os lados alternativamente.
—Arqueia as costas .— Gritou Nathan — Com a cabeça em alto. Usa a cauda como um leme, usa-a para decidir o rumo.
Parecia que Patrick sabia o que era um leme, porque a usou para se guiar. Diretamente para o corpo de Nathan. O impacto o fez dar um passo atrás, mas agarrou o menino, que de novo parecia um menino e o rodeou com os braços em um enorme abraço.
—Eu fiz! Eu fiz! Está me afogando! — Disse Patrick apoiado contra o ombro de Nathan.
Desta vez, Patrick não necessitou asas para voar. Nathan o lançou no ar por cima de sua cabeça e o recolheu ao cair. Entre risadas, Patrick disse:
—Sentia sua falta, tio Nathan.
Nathan voltou a dar outro comprido e forte abraço.
—Eu também sentia sua falta, pimpolhinho.
Tio? Rachel pensou, mas não quis interromper o encontro para perguntar. Em vez disso, desfrutou da visão da alegria inocente desse menino que iluminava o rosto. Seus olhares se encontraram por cima do ombro de Patrick e, como sempre, formou-se uma ponte entre suas mentes. Ela viu dentro dele, até chegar a seu coração, e a calidez que tinha alagado o peito se converteu em um líquido que se estendeu pelo centro de seu corpo até formar um atoleiro meloso.
As imagens e sensações que passaram entre eles não foram sexuais desta vez, mas eram igualmente excitantes. O amor que sentia nele por esse menino que tinha perdido seu pai, o amigo de Nathan. A honra da família e a amizade desenhou uma linha que pareceu percorrer os mamilos até baixar ao abdômen. Fez que os seios pusessem duros e desejassem um bebê que se alimentasse deles. Desejava um homem que os abraçasse, que abraçasse a ela.
Um homem, não um monstro.
Começou a sentir como formavam umas lágrimas quentes e salgadas nos olhos. Rompeu a conexão entre Nathan e ela antes que ele pudesse ver e deu meia volta, mas soube que era muito tarde. Ele havia sentido sua reação. Seu desejo.
E sua rejeição.
Olhou-a com tristeza, deixou Patrick no chão e disse que partisse. De novo, sua doçura para o menino a surpreendeu, mas depois viu uma nova realidade, cujas afiadas pontas cravavam em seu ser.
Esperou que a porta se fechasse quando Patrick saiu e perguntou:
—Onde estão as mães de todos estes meninos? Por que não há nenhuma menina?
—Os Gargouillen foram criados faz uns mil anos, muito antes da liberação da mulher. A magia que me converte no que sou só acontece com os homens de minha espécie. Ou ao menos, isso se supõe. — Encolheu os ombros — Provavelmente, nunca ocorreu a Romanus incluir as mulheres em sua maldição. A França na Idade Média não era exatamente um país com igualdade de oportunidades para homens e mulheres.
—Então, como... ?
—Como conseguimos mulheres para acasalarmos nos tempos modernos?
Rachel sentiu como se abria dentro dele um abismo de desespero. A raiva alagou a escuridão. A raiva voltou para seu interior.
Apertou os lábios formando uma fina linha. Seu rosto nunca tinha parecido tão duro, com tantas sombras e ângulos afiados.
—Pois mais ou menos como os homens humanos. Exceto, quando nasce um menino varão, os levamos conosco.
—A que se refere com “os levamos conosco”? — Disse com dificuldade Rachel.
Nathan se aproximou dela. Seus olhos negros ardiam. Sua essência de terra e umidade a rodeou.
—Há muitas formas. Alguns pagam às mulheres para que fiquem grávidas e nos dêem os bebês sem perguntar. Outros preferem não enfrentar a acordos nem negociações. Limitam-se a dizer à mulher que o menino morreu. É fácil falsificar um certificado de morte de um recém-nascido. Há médicos entre nós.
Tudo o sangue de Rachel escapou até a ponta dos dedos das mãos e dos pés. Sentiu as extremidades pesadas e o coração torpe. Abriu a boca para dizer algo, mas não ocorreu nada diante o horror do que estava ouvindo.
Afastou-se um passo. Ele a seguiu.
—Dá nojo, Rachel? Estou tentando que compreenda a minha gente. Mas não pode nos compreender se não souber tudo. O bom e o mau.
—Para.
Pôs as mãos sobre seu torso. Ele as afastou.
—Às vezes, fazemos desaparecer os meninos sem explicação alguma. Há muitos sequestros de meninos humanos. O gárgula representará o papel de pai preocupado durante um tempo, ansioso pela volta de seu filho. No final, ele também... Desaparecerá.
—Eu disse que pare.
Nathan se inclinou para frente. Sua respiração era cálida. Rachel não entendia por que estava fazendo isso. Que demônio o havia possuído.
—Conheço ao menos um caso no que o bebê foi literalmente arrancado dos braços de sua mãe enquanto ela gritava e tentava agarrar-se a seu pequeno.
Rachel tentou dar meia volta. Ele a segurou pelos cotovelos.
—Ainda ouço seus gritos.
Em sua cabeça, Rachel viu a mulher de cabelo escuro frente a uma janela com um bebê nos braços. Viu como seus olhos se abriam como pratos quando uma sombra se equilibrava sobre ela. Sentiu a força e o desespero enquanto arrebatavam de seus braços o que ela tanto queria.
—Meu Deus! — Com lágrimas nos olhos, Rachel lutou por liberar-se dessa imagem de sonho, da dor, do horror e das garras de Nathan.
Conseguiu soltar um cotovelo, depois o outro. Cambaleando, correu para a saída, mas antes de chegar, as enormes portas do aviário se abriram de par em par.
Um homem de pele clara e cabelo tão claro como escuro era o de Nathan apareceu do outro lado. Olhou para Rachel, depois a Nathan e depois outra vez à mulher, com curiosidade patente.
—Mikkel — Disse Nathan — O que aconteceu?
O homem afastou o olhar de Nathan e olhou a Rachel, que se estava limpando as lágrimas dos olhos.
—O Wizenot te necessita na cozinha. — Disse a Rachel.
—A mim?
—Trata-se de Jenny Lovell — Disse o homem a quem Nathan tinha chamado Mikkel — Lhe deram uma surra e está histérica. Não podemos acalmá-la.
—Onde está Von? — Disse soluçando — Quero ver o Von!
Rachel a ouviu chorar antes de chegar à cozinha. Antes de alcançar o corredor que levava a cozinha. É provável que a ouvisse todo mundo do norte de Chicago.
Estava custando muito superar o que acabava de contar Nathan, mas quando por fim chegou à ampla entrada da cozinha repleta de móveis de aço inoxidável e bancadas de mármore, a visão que a recebeu desterrou qualquer outro pensamento de sua cabeça.
É possível que esses caras não tivessem problemas caçando dragões, mas estava claro que não tinham nem ideia do que fazer com uma garota histérica. Oito deles rodeavam a Jenny Lovell, olhando-a como se fosse uma vaca de duas cabeças.
Depois de abrir caminho entre eles, Rachel rodeou com um braço os trêmulos ombros de Jenny e guiou à garota até uma cadeira de madeira.
—Está tudo bem, céu, tudo está bem.
Jenny abriu como pratos seus olhos negros e azuis.
—Você é a que perseguia Von. Fez... ? Está... ?
—Está bem — Inclinou o queixo de Jenny para a luz para poder ver melhor o hematoma da têmpora e depois olhou os homens que estavam em círculo a seu redor sem fazer nada construtivo — Tragam um médico — Ordenou.
—Não necessito nenhum médico — Murmurou Jenny enquanto tentava ficar em pé.
Rachel a fez sentar-se com doçura. Com muita doçura, tendo em conta que gostaria de partir algo... Ou partir a cara a alguém, na verdade.
—Quem te fez isto?
A garota choramingou, mas não disse nada.
Rachel olhou os homens/monstros da cozinha.
—Se um de vocês...
—Não — Choramingou a garota com mais voz — Não foram eles.
Rachel separou da testa de Jenny umas mechas loiras.
—Foi seu pai?
Jenny não respondeu, mas sua expressão falou alto e claro. Começou a chorar de novo.
—Por favor. Só quero ver Von. Me deixem ver o Von.
—Aqui estou. — Com mais hematomas e feridas que sua namorada, Von avançou para Jenny. A jaqueta laranja da Universidade de Illinois que levava engolia os ombros, e sua ampla calça azul marinho se segurava com muita dificuldade nos estreitos quadris. Já não usava brincos nem nas orelhas nem no nariz.
É curioso, mas Rachel não percebeu antes em quão fraco era o menino. Como era imaturo.
Desta vez, quando Jenny se levantou, não a deteve. Lançou-se nos braços de Von com tal força que teve que doer a ambos no estado em que se encontravam.
—Sinto tanto. — Choramingou Jenny — Não queria dizer a meu pai onde estava. Não queria. Me... obrigou.
—Sei, sei — Von sussurrou em um tom muito pouco típico dele — Está tudo. Estou bem.
—Pensei que tinha te matado.
Jenny o abraçou com tanta força que ele contraiu a cara da dor, mas não se soltou. Não se afastou dela. De repente, a todo mundo da cozinha pareceu do mais interessante olhar para o teto enquanto Von sussurrava no ouvido dela e acariciava o cabelo. Ao final, pararam as choramingações, e ele se separou dela só uns centímetros.
O desafio brilhava nos inchados olhos de Von.
—Não vou permitir que volte com ele.
—Von. — Começou a dizer Teryn, com voz amável. Em calma.
—Ela está aqui — O menino assinalou com o queixo para Rachel e Rachel se sentiu em questão de segundos como o alvo em um torneio de dardos. Todas as olhadas se dirigiram para ela.
—Von, isso é dif...
—Sei o que aconteceu no Conselho.
A surpresa apareceu no rosto de Rachel.
—O que aconteceu? Que Conselho?
Von voltou a ser o centro de atenção.
—Se ela ficar, Jenny também fica.
Jenny se pegou ao corpo de Von e olhou ao redor da cozinha com olhos de Barbie.
—Caras, vocês podem fazer que... Bom, podem afastá-lo de mim, não? É meu pai, já. Podem fazer que me deixe em paz? Não quero que façam mal a ele. —Acrescentou com rapidez — Ou seja, odeio-o e isso, mas é meu pai. — Olhou ao chão — Podem fazê-lo, não, caras? Sem o machucar? Isso é o que fazem, não?
A tensão alagou a cozinha. As colunas ficaram retas. As mandíbulas ficaram tensas.
—Vo-on — Disse Teryn, pronunciando o nome em duas sílabas.
Von engoliu seco e pôs Jenny atrás dele, mas ela não ficou aí. Parece que viver com um pai que batia nela não tinha dobrado o espírito dela. A garota era um osso duro de roer.
Mas não tinha muito sentido comum.
—Certo — Disse — Von me contou o seu... o de todos vocês. Contou-me o que fazem. Mostrou-me o que é.
Nathan fechou os olhos. Um dos homens grunhiu.
—Não me importa. — Disse Jenny. Não parecia tão segura agora. É provável que a reação nada entusiasta de outros, dissuadissem-na por fim — A sério. Protegem às pessoas, não é? E Von é tão doce comigo. Às vezes, bebe muito, mas está tentando deixar. E não é violento quando bebe como meu pai. É amável e carinhoso e...
Silêncio. Umas quantas olhadas sobre o Von, cujo rosto, as partes não cobertas de hematomas, se ruborizou.
A voz de Jenny começou a fraquejar, mas seguia firme em suas convicções.
—Von nunca me faria mal como meu pai faz mal a minha mãe. — Disse, levantando o queixo — Quem é o verdadeiro monstro?
Capítulo 23
Demoraram outra hora mais em acalmar de todo a Jenny. Nathan permaneceu de pé sem fazer nada, olhando como Rachel fazia coisas de garotas: acalmava à garota, acariciava sua cabeça e arrumava o cabelo e disse que tudo ficaria bem. Evan apareceu, realizou seu trabalho de médico, explodindo enquanto reconhecia Jenny e via que suas feridas eram superficiais, mas brutais.
Depois, discutiram sobre o que fazer com a garota. Não podia ficar ali. Era menor, por não mencionar humana. E mulher.
Mas não podiam mandá-la de volta com seu pai agressor tampouco. Disse que escaparia. Não podiam deixá-la para que se arrumasse sozinha na rua.
E, embora pudessem, conhecia seu segredo.
Maldito Von.
Agora, havia duas mulheres que sabiam o necessário para destruí-los. Possivelmente podiam trocar as lembranças de Jenny, embora duvidavam. A técnica funcionava bem com lembranças frescas que incluíam breves períodos de tempo. Mas Jenny já fazia um tempo que os conhecia. Teria que apagar muitas coisas. O conhecimento dos Gargouillen estava muito enraizado em sua memória.
Ao final, concordaram em deixá-la passar a noite cuidando de Von, sob supervisão, até decidir o que fazer.
Nathan esfregou a ponta do nariz enquanto Rachel acompanhava à garota pelo corredor de volta ao quarto de Von.
—É muito jovem. — Murmurava Nathan.
—Não o fomos todos nesta idade? — Teryn suspirou cansado e tirou os óculos de ler do bolso — Bom, tenho que voltar para trabalho.
—Já encontrou?
—A passagem? — Sacudiu a cabeça e olhou ao redor para assegurar-se de que não havia ninguém o bastante perto para ouvir — Só palavras vagas. Mas tenho mais textos para ler.
—Estamos ficando sem tempo — Tinham estado expostos. Seus segredos ocultos durante tanto tempo estavam saindo à luz e tomando forma como a bruma sobre o lago uma fria manhã de outono.
Teryn olhou para Nathan de maneira especulativo.
—Iria muito mais rápido com dois pares de olhos. Como nos velhos tempos, nós dois procurando na cripta durante todo o dia.
Nathan detectou a tristeza no tom de voz de Teryn. Sentiu a mesma nostalgia de tempos melhores. Mas não podiam voltar atrás no tempo. O que se fez, não podia se desfazer. E ambos sabiam.
Mas podiam simular que não, embora fosse durante um breve espaço de tempo.
Por esse homem mais velho.
Por ele mesmo.
Rachel caminhava por sua estreita cela e mordia o polegar, um costume que tinha esquecido aos treze anos. Jenny estava cuidando de Von, mas suas palavras ressoavam na cabeça de Rachel como um CD que se reproduzia uma vez atrás de outra.
Quem é o verdadeiro monstro?
De fato, pela boca dos meninos e dos que mamam...
Como policial, havia visto muitos monstros entre os humanos. Assassinos em série, pedófilos, violadores...
As... Pessoas... Que tinha conhecido aqui não podia comparar-se a nenhum deles. À exceção de Connor, embora estava segura de que não tinha pretendido machucá-la, tinham-na tratado com amabilidade e respeito. Com humanidade. Cuidando de Jenny, cujo pai a tinha maltratado, embora sua presença fosse um risco para eles.
Tinha visto honra entre eles. Lealdade. Coragem.
Também sabia que eram assassinos e ladrões de bebês.
Mesmo assim, matavam só para proteger, ou isso haviam dito. E amavam a seus filhos e os educavam bem, pelo que tinha visto. Levavam os meninos por necessidade, inclusive ela podia vê-lo. Isolavam-nos de uma população humana que não os teria aceito.
Então, isso os fazia isso mais homens ou monstros?
Eles Gargouillen punham em dúvida suas preconcepções sobre os monstros que levava mais de vinte anos procurando. Tinham feito ela se dar conta de que a pessoa... Os seres... Nem sempre podem classificar-se em uma categoria definida. Humanos ou animais. Homem ou monstro.
Alguns homens eram verdadeiros monstros.
Alguns monstros eram verdadeiros homens.
Se a pessoa não era de natureza boa e o outro maligno de nascimento, então tinha passado toda sua vida adulta perseguindo o lobo feroz só para dar-se conta ao olhar para baixo de que não era mais que um adorável filhotinhos com a língua rosa e uns tristes olhos negros.
Podia fazer responsável pela morte de seus pais a toda uma raça?
Enquanto estava concentrada em resolver suas dúvidas, em resolver um quebra-cabeças impossível, passeava da porta à janela e da janela à porta. Os minutos se convertiam em horas. Em seguida amanheceria, e ainda dispunha de muita energia. Removia-se dentro dela e emergia. Precisava mover-se mais que dez passos em um sentido e outros dez de volta. Necessitava ar. Precisava escapar.
Desse cárcere e de suas dúvidas.
Tinham posto um guarda lá fora, teria sido uma tolice não fazê-lo. Repassou com o olhar as grossas paredes de pedra. Não havia nenhuma possível saída.
A janela era sua única oportunidade. Deteve-se frente a ela e apoiou a palma da mão no frio vidro. Sete andares. Teria que estar louca para tentá-lo.
Ou desesperada.
Depois de decidir que tinha que haver alguma forma, tirou o fecho e deslizou o vidro para cima. O ar frio da noite entrou, levando consigo restos de contaminação da cidade e o úmido aroma do lago.
Apareceu pela janela. Havia um pequeno balcão, só uma plataforma com um corrimão de ferro para plantas e coisas assim, que pendurava debaixo do batente, mas não havia forma de descer. Não havia tubos nem trepadeiras que crescessem até tão alto pelas paredes de pedra. A rua estava tranquila e escura, não havia ninguém a quem pedir ajuda, inclusive embora quisesse.
A situação parecia desesperada, mas não era típico dela se render. Um bode baliu na distância. Rachel se agarrou ao corrimão e o sacudiu. O oxidado ferro tremeu nas bases.
Sete andares recordou a si mesma. Uma queda longa.
Então, é melhor que não caia.
Tomando ar, subiu até o batente da janela. Debaixo de sua janela havia outra na parede de pedra, uma que dava a uma sala escura e silenciosa e esperou que vazia. Nathan havia dito que a maioria das salas estavam vazias. Se podia deslizar-se até ela, poderia escapar pela porta não vigiada do andar inferior e fugir.
Colocou um joelho na prancha que funcionava como base do balcão, segurando-se com firmeza à janela, pronta para lançar-se dentro de novo em caso de necessidade. Depois de um momento, deslizou a outra perna para fora, depois ficou de pé com cuidado, mas ainda segurando o batente da janela por segurança.
Durante um instante, pensou em Jenny. Deveria levar a garota consigo, mas Jenny tinha deixado claro que não queria partir. Já mandaria às autoridades a procurá-la mais tarde.
Assumindo que Rachel não quebrasse o pescoço antes de poder contatar as autoridades.
Depois de deixar escapar uma longa e lenta respiração, soltou-se da janela e subiu ao corrimão de ferro. Um pó saiu despedido das bases que o seguravam à parede, mas a plataforma aguentou.
Durante um momento.
Uma pequena avalanche de argamassa precedeu ao desastre. O ferro rangeu. A madeira parti, e Rachel se encontrou primeiro com os pés no ar e depois caindo.
Instintivamente, tentou agarrar-se a algo e pôde segurar-se a uma parte de metal retorcido que seguia ancorado à parede. Quando a totalidade de seu peso pendurou desse metal, este cedeu um pouco, mas aguentou. Demorou uns segundos em dar-se conta de que não estava caindo.
Mas estava pendurada.
Não olhe para baixo.
É obvio, fez e entrou o pânico. O chão parecia estar tão longe como a lua. Balançou-se e deu chutes, mas não muito fortes. Não se atrevia a fazê-lo com muita força.
A pesar do frio, sua mão começou a suar. Escorregou uns centímetros de seu cabo de ferro salvador. Levantou o outro braço para segurar-se à barra com as duas mãos.
Pensa. Pensa.
A janela de baixo. Os dedos dos pés penduravam uns trinta centímetros sobre a parte superior, ainda a meio metro do outro balcão de ferro oxidado. Não ia saltar. O impacto da aterrissagem o faria cair, com certeza.
Olhou para cima. Tinha outros trinta centímetros, possivelmente mais, da barra a qual se segurava. Avançando lentamente até o final, sentiu a parede com os dedos dos pés e procurou algum lugar no qual se apoiar. Como não sentia nada mais que pedra, arriscou-se a olhar para baixo. Ainda faltavam quinze centímetros.
Teria que balançar-se até poder colocar as pernas pela janela. Separou-se da parede apoiando-se com os cotovelos. Caíram mais fragmentos de argamassa na cara.
Deixou escapar um suspiro. Não tinha conseguido o impulso necessário.
Respirando em breves aspirações e mordendo o lábio, balançou-se com mais força. O metal começou a ceder da parede de pedra. Sujeira e partes de concreto a cegaram. Escorregou a mão e a barra se separou outros centímetros da parede. A barra acabou por ceder de tudo justo quando seus pés golpeavam o cristal da janela inferior.
Durante um instante, sentiu-se cair em queda livre, mas depois seus quadris golpearam o batente da janela. O impacto percorreu as costas enquanto ela se agarrava com desespero ao marco da janela e conseguia entrar antes de cair para trás.
A adrenalina golpeou o sistema nervoso uma vez que o perigo tinha passado. Sentou-se no chão de um quarto às escuras, rodeada de fragmentos de vidro, e engoliu as lágrimas. Esta tinha que ser a coisa mais estúpida que tinha feito na vida. E a mais valente. Mas, sobre tudo, a mais estúpida.
Tremeu durante uns quinze segundos e depois, dando-se conta de que teriam ouvido o ruído de sua escapada e começariam a procurá-la, ficou de pé com uns joelhos trêmulos, sacudiu a sujeira do corpo e procurou pro feridas. Uma vez que decidiu que não ia sangrar até morrer antes de encontrar a saída, dirigiu-se para a porta.
Seus passos pareciam disparos no silencioso corredor. Umas débeis luzes noturnas, proporcionavam a suficiente luz para evitar que tropeçasse com o tapete que cobria o chão de madeira e com a esquina de uma mesa que sobressaía de um quarto.
Em um cruzamento de corredores, realizou uma pausa. Entrava luz em ângulo de um quarto aberto situado à esquerda, assim girou para a direita e procurou as escadas. Encontrou uma porta com um cartaz que dizia SAÍDA, e já tinha uma mão no pomo e a outra sobre as dobradiças, como se tocá-la não fossem fazer ruído, quando um agudo grito a fez dar um pulo e arrepiar o pelo da nuca.
A angustiosa voz soava muito, muito mais jovem que a de Von e inclusive a de Jenny. Era um dos meninos, e soava como se alguém o estivesse torturando.
Dizendo a si mesma que tinha que ir, abriu a porta de saída e apareceu como um corredor a ponto de chegar à meta, mas se deteve. Os gritos do garotinho aumentaram em volume e desespero. Deus, mas o que estavam fazendo?
Sem pensar de forma consciente em sua decisão, deu meia volta e correu pelo corredor para os gritos. A sola das botas golpeavam com ruído o suave chão de madeira, e se detiveram em seco quando viu que Teryn tinha chegado antes dela.
Em realidade, Teryn tinha sido o segundo em chegar. No interior de um quarto pouco iluminado idêntico ao que acabava de escapar à exceção do edredom dos Chicago Cubs e as estrelas e luas que brilham na escuridão que estavam pegas no teto, Nathan embalava Patrick, de pra frente e pra trás, enquanto acariciava o cabelo e sussurrava palavras tranquilizadoras. Rachel não entendia as palavras, mas o idioma pareceu estrangeiro. Francês, possivelmente. Rachel ficou paralisada, olhando em transe, diante da visão do diminuto menino apertado contra o grande corpo de Nathan. Comoveu-se com a ternura com que seus dedos acariciavam a pele do menino. Era uma visão que merecia ser retratada em um quadro. Merecia um pintor de renome.
Pai e filho, titularia-se, embora Patrick o tinha chamado “tio” Nathan, e atrairia os olhares de todos os pais e futuros pais. Era uma imagem de magia pura. De amor puro.
Os choros do garotinho foram desaparecendo pouco a pouco. Os dedinhos obstinados com força à camisa de Nathan começaram a relaxar-se, mas Nathan seguia embalando-o.
—O que aconteceu? — Perguntou Rachel a Teryn.
—Só foi um pesadelo. Nathan e eu nos tínhamos ficado conversando. Estávamos comprovando que os pequenos estivessem bem pela última vez quando o ouvimos. — Separou um passo, longe da porta — Te contou o nosso Nathan?
Sentindo um repentino medo, Rachel hesitou um segundo antes de assentir. Tinha a sensação de que iam contar mais coisas que não queria saber sobre os monstros, e não estava segura de poder absorver nada mais.
—Na anterior vida do jovem Patrick, ele morreu no grande incêndio de Chicago. Queimou-se enquanto tentava salvar a uma velha de seu apartamento. — Deixou um momento para que Rachel processasse a informação antes de continuar — Patrick está na idade em que se começam a recuperar lembranças dessa vida, mas não é capaz de compreender totalmente o que aconteceu e por que. Só recorda as chamas e a dor. Às vezes, sonha com isso.
—Meu Deus. Revivê-lo uma vez atrás da outra. Se só é um menino.
Teryn sorriu com ironia.
—Um dos inconvenientes de renascer uma vez atrás da outra. Desfruta dos bons momentos muitas vezes mais, mas também sofre as tragédias para sempre. —Olhou longamente a Nathan — Alguns sofrem mais que outros.
Depois, deu uns tapinhas no ombro e partiu.
Rachel caminhou até a porta, apoiou o ombro na ombreira e observou como Nathan abraçava ao menino como se fosse algo precioso. Perguntou-se que tragédias teria sofrido. Se revivia o momento que tinha introduzido em sua cabeça, a mulher que gritava e o menino, todas as noites de sua vida.
Desde que era menina, havia sentido a perda de seus pais e tinha sonhado com uma enorme besta alada.
Agora, perguntava-se quantos seres queridos teria perdido ele, quantas mulheres que importavam e teve que deixar.
Algum dia, possivelmente tivesse coragem de perguntar, mas não seria essa noite.
Ao final, os olhos de Patrick se fecharam, e Nathan o tombou na cama e agasalhou até o pequeno queixo do menino. Saiu ao corredor com o pior aspecto com o que o tinha visto. Parecia alterado.
Ainda levava a mesma roupa desse dia. Seu olhar foi frio e escuro ao observá-la de cima abaixo, detendo-se nos sujos joelhos dos jeans e o corte em um lado da mão.
—O que faz aqui embaixo?
—Ia fugir — Para que ia mentir. Nathan tinha visto a prova disso.
—Por onde?
—Pela janela.
Levantou um braço e se passou a mão pelo cabelo.
—Virgem Santa, seu quarto está no sétimo andar.
Rachel encolheu os ombros.
—Não foi uma de minhas ideias mais brilhantes.
Nathan voltou a passar a mão pelo cabelo, como se não soubesse exatamente o que fazer com ela. Rachel nunca o tinha visto tão perdido.
Sentiu sua dor e sua intranquilidade dentro dela, e despertou uma inexplicável necessidade de consolá-lo. De abraçá-lo e afastar sua dor, de enterrá-lo em seu próprio corpo. De enterrar a ele em seu corpo.
Tentou apagar a chama de excitação que sentia e assinalou a porta fechada de quarto do Patrick.
—Tem-no feito muito bem.
O olhar de Nathan se obscureceu. Dilataram as asas do nariz, e Rachel soube que tinha detectado o aroma de sua excitação.
Maldita a forma em que suas libidos confiavam uma na outra, compartilhavam uma com a outra, inclusive quando o resto deles não o desejava.
Nathan rompeu o contato visual.
—Não é mais que um menino pequeno.
E você é o monstro que o abraça quando chora.
—É igual, fez muito bem.
Tinha muitas perguntas para ele, sobre ele e sobre ela mesma. Depois de levantar a mão e tocar a bochecha, deixou que se formasse a ponte de energia entre ambos. Deixou que o calor de seu corpo, sua curiosidade, seu latente desejo fluíram para ele, e sentiu seu redemoinho nela. Agora era mais fácil de controlar fosse o que fosse que havia entre ambos. Era mais fácil de se abandonar diante disso.
Imagens deles dois juntos, de seus suarentos corpos entrelaçados, fluíram para a mente de Rachel. Deixou que a banhassem as imagens mentais, o calor de sua união, deixou que a atravessassem, até que a corrente entre ambos se cortou de forma repentina, como se tivessem fechado as comportas de um dique. Nathan agarrou pelo pulso e abaixou a mão.
O coração deu um tombo ao olhar por cima do ombro e ver o homem que se aproximava para ela, que tinha estado vigiando sua porta até que escapou.
—Aqui está — Disse o homem com uma respiração entrecortada — A procurei por toda parte. Ela...
—Leve-a de volta a seu quarto — Nathan aproximou o pulso de Rachel ao homem com um olhar duro — E desta vez evita que escape. Sela a maldita janela se for necessário.
Depois, afastou-se dela sem olhar para trás.
Nathan estava apoiado no batente da porta do escritório de Teryn e observava o texto que o Wizenot tinha copiado de um dos antigos livros.
Teryn tomou um gole de sua xícara chá de erva-cidreira.
—Dirá a ela o que encontramos?
—Esta noite, não.
—Merece sabê-lo.
—Não está preparada.
Como podia alguém estar preparado, perguntou-se, para descobrir que toda sua vida tinha sido uma mentira?
Meteu as mãos nos bolsos e bloqueou a imagem da dor fazendo-a empalidecer quando ele a tinha mandado de volta a seu quarto, sozinha, de sua mente.
—Poderia mandar Connor à congregação de Nova Iorque.
Teryn sorriu cansado.
—De verdade, têm que acabar de uma vez por todas com suas ré...
Nathan deteve o sermão.
—A maioria das grandes cidades dos Estados Unidos possuem ao menos uma pequena congregação dos Gargouillen. A de Nova Iorque é a mais antiga. E uma das mais tradicionalistas e conservadoras. Poderíamos obter mais respostas se alguém fosse em pessoa.
—Estou seguro de que o Wizenot da Siracusa conhece o uso do telefone. Já deixei uma mensagem. — Apertou o ombro de Nathan — Além disso, eu gostaria de ter a todo mundo perto de casa agora mesmo.
Nathan franziu o cenho.
—É pelas visões?
Teryn não tinha contado exatamente o que tinha visto, mas fosse qual fosse a visão que tinham mandado as deidades, preocupava ao velho. Nathan nunca o tinha visto tão intranquilo por uma premonição.
—Algo se aproxima. Não sei o que é nem quando chegará, nem sequer se o que estou fazendo o deterá ou será o catalisador que o atraia, mas algo se aproxima.
Voltou a apertar o ombro de Nathan, mas desta vez seu sorriso não era tão triste.
—Me alegro de que tenha retornado Nathan. Vamos necessitar de você dentro de pouco tempo. Posso senti-lo. Vou necessitá-lo.
—Sabe que não posso ficar.
—Não pode ou não quer? — Apareceu um tom de aborrecimento na voz de Teryn.
—Não posso segundo minhas condições. — Dirigiu-se para a porta — Não quero, segundo as suas.
Partiu sem olhar para trás, porque não queria ver a sombra que teria caído sobre a esperançada expressão de Teryn. Em todo o tempo que tinha estado fora, que tinha sido excomungado, nada tinha trocado entre eles. Seguia fazendo mal ao velho sem nem sequer tentá-lo.
Sempre fazia mal às pessoas a que mais queria.
Como Rachel.
Com a dor dentro dele percorrendo todas as células do corpo, Nathan subiu as escadas a grandes pernadas até chegar ao sétimo andar, onde realizou uma pausa, apoiando a testa na fria pedra. Se deu conta de que era esse lugar. Ele o fazia recordar tudo. Abria as feridas. O fazia dar-se conta de quão sozinho tinha estado.
Não tinha querido apaixonar-se por ela. Deus sabia, tinha tentado evitar. Seguia sem querer estar apaixonado por ela.
Apoiou um punho também na fria pedra. Era culpa dela. Tinha aberto a porta a todas essas emoções, sacudindo sua mente.
Ao menos, agora sabia como tinha feito.
Levantando a cabeça, olhou pela última vez as escadas que acabava de subir e abriu a porta que dava ao sétimo andar. Fora da habitação de Rachel, indicou ao guarda que se fosse com um movimento de cabeça.
Rachel se levantou e se tampou com os lençóis até o peito quando ele entrou sem bater. O abajur da mesinha de noite estava apagado. Só o resplendor da lua que se filtrava iluminava o quarto, dando a seus ombros nus um brilho prateado.
Fechou a porta atrás dele e se apoiou nela. Desta vez, quando se estabeleceu a conexão entre ambos, abriu os condutos de par em par. Deixou que Rachel sentisse sua frustração. A necessidade que enviava todo o sangue de seu corpo a um ponto e que convertia seu pênis em puro aço.
Rachel abriu muito os olhos. Estavam luminescentes.
—Pensei que não ia vir. — Nathan ouviu uma mistura de raiva e desejo nessas palavras.
—Queria que todo mundo descobrisse que ia vir? — Algo mais afetou o tom de voz.
—Não. — Rachel tirou uma perna atrás de outra da cama com lentidão e se descobriu.
A Nathan fez um nó na garganta. O coração parou. Parecia uma boneca de porcelana à luz da lua. Frágil. De valor incalculável. E nua.
Cruzou o quarto até chegar a ela e Rachel rodeou o pescoço com os braços e se inclinou para ele. Seus seios e quadris o tocaram, mandando uma ideia de suas curvas e sua silhueta a sua pele.
—Igual a mim não queria que soubessem que precisava fazer algo mais que falar com você. — Disse Rachel, aproximando os lábios aos dele — Muito mais.
Capítulo 24
Rachel fechou os lábios sobre os tendões do pescoço de Nathan e passou os dedos pelo sedoso cabelo da cabeça.
—Nada de jogos mentais esta noite. — Disse ela, precisando saber que isto era real, que não era uma fantasia — Nada de imagens sensoriais.
—Não. — Disse Nathan com a voz trêmula enquanto recebia uma dentada no pescoço.
—Só você e eu. Aqui.
—Deus, sim.
Nathan elevou as mãos até seus seios, cobriu os montículos e depois beliscou seus doloridos mamilos convertendo-os em casulos duros.
Depois de jogar a cabeça para trás, Rachel arrastou a barra de sua camiseta pela cabeça de Nathan, seguidamente procurou a fivela de sua calça. Ele a levantou ficando imobilizado peito com peito com as mãos de Rachel apanhadas entre ambos. Ela apertou as pernas ao redor de sua cintura, assentando sua virilha contra a malha tirante de seu jeans e a dureza que efetuava pressão de dentro, ao tempo que ele a transportava até a cama. Quando chegaram, Rachel já tinha desabotoado seu cinto, tinha baixado o zíper e sustentava sua ereção com a mão.
Rachel se maravilhou diante do comprimento e sons de animal dele, mais duro inclusive, mais excitado inclusive, que quando o havia sustentado anteriormente. Quando Rachel apertou os dedos ao seu redor, sentiu como seu coração se estremecia. A reação de Nathan a fez nadar em muitas sensações, algo que transmitiu valendo-se da conexão mental entre ambos. O sangue de Nathan palpitava nas orelhas de Rachel, seu fôlego balbuciava sobre seus seios.
Pousou-a sobre a borda da cama e a toda pressa, despojou-se de seus sapatos, calças e roupa interior para permanecer diante ela com todo seu esplendor excitado.
Dispôs-se a subir à cama para se aproximar, mas ela o olhou e rapidamente o empurrou para trás.
—Não. Deixa que te olhe. Quero te tocar.
Ela riscou círculos com as pontas dos dedos em torno de seus joelhos, percorreu ascendentemente com os dedos a parte traseira de suas coxas, deteve-se e sentiu como se contraíam os esplendorosos músculos do glúteo ao tempo que abrangia um traseiro tão perfeito como os das estátuas gregas.
Os ombros de Nathan se elevavam com cada respiração. Apoiou suas mãos sobre os ombros de Rachel, massageando-os com impaciência, embora permitiu que acabasse sua exploração. Deu o tempo que ela necessitava.
Percorreu em sentido ascendente, mal roçando as costas de Nathan com as palmas das mãos, ampliando o atalho ao tempo que media o percurso desde sua estilizada cintura até seus largos ombros. Então, deslocou as mãos até a parte dianteira e repetiu a ação peito abaixo, atravessando os abdomes até a virilha. Depois de evitar o pênis que a atraía como um tubo fluorescente, abrangeu o suave saco embaixo.
—Tem um corpo magnífico. — Sussurrou Rachel no pescoço — É muito... Humano.
Nathan ficou tenso como se o tivessem cravado com uma estaca afiada. Agarrou no único lugar que um homem é incapaz de se soltar, não importa quão forte seja, antes que ele pudesse evitar.
—Quero vê-lo no outro corpo. — Medo e excitação percorreram seu corpo. Ela precisava ver o outro corpo, precisava conhecê-lo a fundo para entender o que era realmente.
Rachel sentiu como um rio gelado de apreensão fluía por sua mente e estremeceu. Realizou movimentos ascendentes e descendentes com a mão, excitando a ambos, chamando-o para que voltasse do escuro lugar ao que se retirou.
Se transforme para mim, insistiu ela sem palavras, valendo-se de seus sentimentos, de imagens. Rachel se sentiu poderosa, que demônios, invencível, enquanto se comunicavam deste modo. Liberou seu pênis e rodeou Nathan com os braços. Com a bochecha pega ao umbigo dele, pensou em algo que a permitisse fazer frente a seus medos de uma vez e para sempre.
Se transforme. Acorda à besta de seu interior.
Não.
E Unri almasama.
Rachel recordava o ritmo e a textura das palavras, inclusive embora não sabia o que significavam.
Nathan gemeu de dor e durante um momento ela pensou que tinha feito algo terrível. Pensou que tinha feito um dano inimaginável.
Então, enquanto Rachel o acariciava, os músculos de suas costas se amontoaram e se relaxaram. Seus ombros se alargaram. A pele de suas costas se esticou e se converteu em uma malha aveludada.
E Unri almasama.
Uma corrente de energia a atravessou, atravessou a ambos. A mente de Rachel voltou a ser primitiva. Nela, só havia capacidade para o impactante corpo de Nathan e um sentimento de fome, por ele.
Calli, Calli, Callio.
Com um grunhido, Nathan ficou a quatro patas, embora elevou a cabeça.
—Por favor. — Disse ele ofegando e olhando-a através de uns ávidos olhos cansados.
Ajoelhou-se junto a ele, puxando-o para cima.
—Tenho que vê-lo. Preciso vê-lo.
—Não! — Soava como se estivesse morrendo — Isto é muito. Certamente você...
Várias imagens começaram a passar com rapidez no interior de Rachel como um ciclone. Uma mulher de cabelo escuro com um vestido de algodão estampado que parecia dos anos quarenta, segurava um bebê. Tinha os olhos completamente abertos e gritava.
—Por favor. — A expressão parecia ter sido arrancada do coração de Nathan.
Estava agachado no chão, olhando-a, suplicando com sua mente, mas ela o expulsou dali. A mulher reteve as imagens mentais e não as deixou sair. A expressão do rosto de Nathan era agônica. Tinha os músculos tensos e duros sob seus ombros peludos.
A mulher de suas lembranças recuou, agarrando firmemente ao bebê, um sentimento de pavor emanava de seu interior.
—Não — Rachel ouviu uma voz masculina no filme que estava reproduzindo em sua mente. Reconheceu aquela presença, aquela voz como a de Nathan, e mesmo assim, foi consciente de que não era seu Nathan. Era Nathan em uma de suas vidas passadas.
—Meu Deus! — Gritou a mulher — O que é você? Que espécie de monstro é?
—Continuo sendo o homem que está apaixonado por você. Por favor, simplesmente me olhe. Continuo sendo eu.
A mulher se virou para sair correndo. O caminho até a porta estava bloqueado, assim que se voltou para a janela, totalmente aberta, e tratou de sair por esta.
Alguém a perseguiu grandes pernadas.
—Marabella, não! Estamos no décimo andar. A saída de incêndios não é segura!
—Se afaste de mim! Se afaste de meu bebê!
Saiu pela janela cambaleando. Nathan tentou agarrá-la, lutou com ela e, finalmente, arrebatou o bebê dos braços.
Ao tempo que Marabella caía.
Respirando como um peixe fora da água, Rachel abriu os olhos. A imagem desapareceu, e de novo estava no quarto em St. Michael.
Nathan se agarrou a sua cintura como se Rachel fosse Marabella sobre o batente da janela.
—Não pôde suportá-lo. — Resmungou contra o ventre de Rachel — Tentei explicar o que era, de maneira que pudesse sabê-lo, de maneira que pudéssemos permanecer juntos e ambos criarmos a nosso filho. Mas não podia nem me ver. Escolheu morrer antes que me olhar.
Em uma tentativa de regular o amalucado ritmo do coração de Nathan e do seu próprio, acariciou-o no ombro.
—Quero vê-lo. Se transforme para mim, Nathan.
Precisava vê-lo. Também era consciente de que ele necessitava que ela o visse. Precisava saber que ela podia suportar vê-lo.
Nathan ficou rígido.
Rachel se sentou na borda da cama, levantou a cabeça dele pelo queixo e olhou fixamente ao interior de seus irregulares olhos.
—Eu não sou ela. Eu não sou Marabella. Se transforme para mim.
Permaneceu imóvel tanto tempo que Rachel pensou que não tinha nada que fazer, que ele não o faria, que não poderia. Então, tremendo violentamente, apoiou a cabeça contra seus seios como se estivesse muito cansado para mantê-la erguida, beijou-a e sussurrou.
—Somara altwunia paximi.
O frio ar procedente de suas palavras acariciou seu seio ainda úmido depois do beijo, e a fez estremecer ansiosa, embora o que estava acontecendo a Nathan desencadeou um tremor muito mais profundo.
Com soltura, Nathan dobrou seu peso e massa. Seus ossos explodiram como um saco de pipocas de micro-ondas. Ficou de quatro patas e suas mãos se encurvaram, seus nódulos se sobressaíam repletos de grumos, depois se arredondaram e se alisaram dando passo a garras afiadas.
Rachel o observou, fascinada e horrorizada, lutando contra os demônios de seu passado. Sem dúvidas, ia presenciar, tinha esperado toda sua vida para ver isto. E isto era Nathan. Nathan.
Ele necessitava que ela o visse.
Ergueu-se sobre as patas traseiras, e um grito triunfal ameaçou esmiuçando a argamassa que unia as pedras da velha parede. Era uma chamada selvagem, a chamada de um predador durante a caçada.
Apesar do muito que tinha tentado estar preparada para o que ia presenciar, não pôde evitar sua reação. Ele se movia muito depressa, sua mente experimentava mudanças bruscas. Ordenados e disciplinados pensamentos do professor de história da arte, do homem, haviam se esfumado. O que tinha ocupado seu lugar era primitivo, selvagem.
Rachel cambaleou sobre a cama, arrastando-se para trás sobre os cotovelos e calcanhares até que se topou com a parede. Nathan se levantou, estendeu as asas e uivou de novo. O grito repicou nos ouvidos de Rachel, ressoou em sua alma. Tinha escutado um grito similar anteriormente.
A noite em que morreram seus pais.
Rachel também tinha uma besta em seu interior e se chamava terror. Rasgava seus intestinos, fazia arder seus pulmões, valia-se de seu próprio coração para abrir caminho e sair de seu interior, para transformar-se em pânico, mas ela levou os joelhos ao peito e o reteve em seu interior. Sem nenhum lugar para o qual correr, pressionou suas costas contra a tosca parede de pedra e olhou para Nathan.
Lentamente algo se modificou no interior de Rachel. O terror diminuiu até ser mais uma moléstia que uma ameaça. O fio que ainda conectava suas mentes se ampliou, se fortaleceu. Ela sabia que ele estava atrás das mudanças que estava experimentando. Estava-a ajudando para que ela pudesse vê-lo, não a criatura metade leão, metade águia e sim o verdadeiro ele.
Sentiu como a natureza animal de Nathan se filtrava em seu interior. O instinto de emparelhamento corria por seu sangue em forma de fúria e excitação. Ela sentia sua fome e atrás desta, uma violência potencial, sede de sangue.
Rachel começou a sentir também emoções mais profundas, como se semelhante criatura fosse capaz de ter emoções. Detectou orgulho e uma grande fé na justiça. A feroz necessidade de proteger as coisas e as pessoas, a quem amava.
Amava.
Deus, era possível que ele a amasse? E se fosse, era o homem ou a besta quem sentia aquilo? Era a besta sequer capaz de experimentar uma emoção tão complexa como o amor?
Ela se deslocou uns poucos centímetros para frente, depois outros mais, chegou até a borda da cama e estudou o impactante corpo diante dela.
—Poderia me matar tão somente com o toque de uma garra, não é? Se quisesse, poderia me romper o pescoço com um simples golpe. Sempre pode.
Ele se aproximou, mas não para abri-la em duas com suas garras, nem para esmagar seus ossos. E sim para colocar uma mecha de cabelo atrás da orelha com muito cuidado, com muita doçura.
—Deus, Nathan. — Ela se jogou nele — Deus.
Quão único Nathan pôde fazer foi tomar ar e receber o golpe enquanto ela se lançava sobre ele. Então, introduziu os dedos entre as suaves penas de seu pescoço, massageando a cartilagem e os tendões que uniam suas asas as costas.
Já tinha experimentado um estado de desejo incontrolável diante do Despertar. Agora seu pulso gritava através das veias. A febre do emparelhamento o consumia.
Já era suficientemente duro para qualquer dos Gargouillen controlar seus instintos básicos quando estavam em forma humana, mas como gárgulas, bestas em todos os sentidos, a necessidade de acasalar era algo incontrolável. Levava-o a bordo da loucura.
Pior ainda, não só era a magia o que fazia com que desejasse tomá-la, ele podia resistir a aquilo. Era seu lado humano.
Ele a queria, não como um objeto humano para saciar seu apetite sexual ou para que proporcionasse um filho, mas sim como uma companheira de toda a vida. Uma amante em todos os sentidos da palavra, físico e emocional.
Rachel deslizou suas mãos por todos os lugares, fazendo flutuar sem que seus pés e garras se levantassem do chão.
Golpeou sua cauda de leão contra o chão como o felino nervoso que era, advertindo-a, embora não se atreveu a ir mais longe. Não podia tocá-la por medo de cortá-la. Não podia agarrá-la por medo de esmagá-la. Mas quando Rachel concluiu seu detido exame e o olhou à face, viu algo em seus olhos que não tinha visto em nenhuma mulher em suas quatorze vidas, aceitação. Nathan não podia suportar aquela tortura por mais tempo.
Já estava empurrando as costas de Rachel sobre a cama, abrangendo sua cabeça com a mão para protegê-la do impacto e subindo sobre ela, quando ainda não tinha finalizado sua transformação para sua forma humana. A besta em seu interior ainda estava muito acordada, mordiscou-a ferozmente no pescoço, os lábios e as bochechas. Não obstante, já era o suficientemente humano, já que quando dirigiu sua ereção para Rachel, para sua excitação, para suas dobras escorregadias, recuou para dar tempo a ela para se preparar. Para usar seus dedos para pô-la no ponto.
Nathan também deu tempo para que aceitasse aquilo, antes que ele se dirigisse para seu lar.
Seu lar.
Nathan sentiu que pertencia ali dentro. Como se sempre tivesse estado dentro dela. Encaixavam-se à perfeição, sexo com sexo, quadril com quadril, peito com peito. Lábios com lábios.
Desta vez, beijou-a com mais ternura. Ela estirou as mãos até sua face, ele as agarrou com as suas e as jogou para trás por cima da cabeça de Rachel, com os dedos entrelaçados, enquanto a língua dançava sobre sua boca. Rachel abriu os lábios e o recebeu em seu interior do mesmo modo que o tinha recebido mais abaixo.
Nathan se empurrou uns centímetros mais dentro. Ela inclinou a cabeça bruscamente. Engoliu ar necessitada.
—Mais. Quero mais. Tudo.
Nathan recuou até que o úmido calor de Rachel recobria tão somente a ponta, comprovou que a besta em seu interior estivesse completamente adormecida e depois proporcionou o que ela tinha pedido.
Ela o recebeu ansiosa, com a boca aberta, arredondada, com os olhos em branco. Ele dobrou um braço atrás dela para segurá-la e se manteve imóvel durante o que pareceu um milênio, mas ninguém, homem ou animal, poderia ter permanecido ali para sempre, não com Rachel Vandermere estendida sobre seu braço como uma boneca quebrada, com os braços pendurando a ambos os lados e seus seios se sobressaindo, com os mamilos rígidos e enrugados como amoras amadurecidas a ponto para saborear. Acariciou com a língua um deles riscando círculos, separou-a dele empurrando seus quadris para trás, enquanto grunhia quase incapaz de ir tão devagar.
Rachel chocou seus quadris contra ele e gemeu, mas mais que um som de dor parecia de frustração, assim que ele recuou e voltou a investir. As paredes interiores de Rachel escorregavam sobre a sensível cabeça de seu pênis, acolheram a haste enquanto experimentavam uma deliciosa tortura. Quando Rachel bloqueou suas pernas atrás dele e se cravou mais profundamente, foi a vez de Nathan gemer.
Nathan tinha passado muito tempo evitando isto, muito tempo lutando contra isto, e agora era para vê-lo. Nada parecia suficiente. Não podia cravar-se com suficiente profundidade. Não podia mergulhar suficientemente rápido ou longe.
Rachel tinha a mente tão aberta quanto seu corpo e ainda assim ele queria mais. Não só queria receber, também queria compartilhar. Assim abriu várias das portas trancadas de sua mente. Trocaram imagens, nada de falsas composições ou lembranças, destinados ao engano e sim fotografias de suas vidas.
Ela mostrou um recital de baile. Quando tinha doze anos era algo torpe, muito alta para sua idade. Caiu em meio da atuação e sua professora a tinha tirado dali e tinha dado uma boa bronca. Ele mostrou um pônei mourisco que tinha montado quando era um menino em 1640. Adorava aquele cavalo.
Esquivaram os tempos difíceis, concentraram-se nos felizes e acabaram sorrindo enquanto se beijavam e tomavam ar ao mesmo tempo. Quase no final, Nathan rodou, levando-a com ele e elevou seus joelhos para segura-los a suas costas.
—Agora você pode me cavalgar. — Disse sem fôlego — Eu serei seu pônei.
—Mas bem um alce. — Disse Rachel ofegando — Não que eu esteja me queixando.
—Não, Stephen é o alce, ao menos em sua forma de gárgula. Ainda não o conhece e depois de seu comentário, me assegurarei de que não o faça.
Ela se deteve durante um segundo, montada sobre ele e deixou escapar uma gargalhada, embora débil. Ambos estavam muito sumidos na paixão para rir. Além disso, ficaram sem fôlego. Nenhum dos dois dispunha de suficiente ar para rir.
Nathan empurrou as fotografias fora de sua mente e se concentrou nos sentimentos, nos seus e nos de Rachel. Não havia nenhum rastro de temor em Rachel agora, só júbilo e desejo. Ela estava quase tão desesperada como ele por chegar até o final. Cada nervo em seu interior vibrava. Sua pele estava a ponto de se rasgar de desejo. O batimento de seu coração retumbava como um trovão e seu sangue bramava como um rio a ponto de transbordar, cuja corrente fluía para o sul, para o palpitante ponto situado entre suas pernas.
Ele introduziu a mão entre ambos, lubrificou o dedo na umidade dela e riscou movimentos circulares sobre seus clitóris. Ela jogou a cabeça para trás, seu cabelo loiro cobriu os joelhos de Nathan e cravou os dedos nas coxas dele.
—Deus, Nathan! — Gritou ela.
Ele fez movimentos circulares sobre o lugar onde seus corpos se roçavam e colidiam, até que sentiu que uma vibração atravessava o corpo de Rachel, sentiu como seus músculos tremiam e então pressionou seu polegar e o manteve no lugar.
—Meu Deus, Nathan!
Seus músculos se agarraram sobre ele, contraindo-se como um punho, relaxando e contraindo de novo. Onda atrás de onda a percorreram, chegando até ele. Ele aguentou até que a última onda perdeu intensidade, depois a tombou de costas, arremeteu contra seus quadris duas, três vezes, cravou-se tudo o que pôde enquanto ela permanecia com a cabeça apoiada sobre seu ombro, sem forças e ainda tremendo, e ele se deixou ir.
Um rugido gutural retumbou em seu interior, verteu sua semente no interior dela, não se atrevendo a pensar nas consequências, ainda não e depois desabou, apenas capaz de recuar suficientemente a um lado para permitir que ela respirasse.
—Rachel. — Sussurrou, meio súplica meio prece, embora não o suficientemente esgotado para não poder se fascinar diante dos seios de uma mulher vigorosa a poucos centímetros de sua cara — Deus, Rachel. — Começava a ser consciente das consequências, embora ainda não tinha voltado para seu estado normal — O que vou fazer com você agora?
Ela não respondeu; já estava adormecida.
Estava escuro. Papai tinha esquecido de deixar a porta de seu quarto aberto deixando uma fresta para que a luz do corredor pudesse entrar. Ele nunca se esquecia. Então Rachel recordou: não estava em seu quarto. Estava no armário sob as escadas. Mamãe tinha entregue Levi para que o segurasse e era muito escorregadio. Desejou que não montasse um escândalo. Mamãe havia dito que estivessem em silêncio, mas Levi era apenas um bebê. Não entendia algumas coisas, como aquela.
Ouviu vozes enfurecidas gritando no exterior, gente esmurrando a porta, diziam coisas más, palavras feias. Mamãe dizia a papai que tinham que ir; ele disse que era muito tarde.
Rachel não entendia por que a tinham metido no sótão. Por que a tinham deixado a cargo de Levi, quando ela não sabia cuidar de bebês. Nem sequer tinha sido capaz de cuidar do senhor Mott, seu coelhinho de pelúcia. Tinha amputado sua orelha com as tesouras da mesa de costura no verão anterior. E se cortava uma orelha de Levi?
As lágrimas escorregavam sobre suas bochechas até cair em sua camisola rosa. Sentiu como impregnavam e apesar de que eram mornas, fizeram-na tremer.
Abriu a portinhola do sótão um pouco. Necessitava luz; tinha medo da escuridão.
As vozes malvadas estavam agora no interior da casa. Várias sombras formavam um borrão sobre a parte de parede da sala de estar que podia ver. Um dos homens maus brigou com seu papai. Caíram no chão, grunhindo e dando murros, depois se ouviu um forte estrépito e um incrível alarido. O homem mau se levantou, só que tinha deixado de ser um homem. Era um monstro, com grandes asas e horríveis, horríveis garras. A sombra do monstro matou à outra sombra, a sombra de seu pai, e então saiu voando da sala.
Sentou-se tão calma como pôde, segurou Levi e rezou para que o monstro não a encontrasse. Sentou-se durante um bom momento, até que a fumaça a fez tossir. Finalmente, teve que sair engatinhando. Começaram a chorar; não podia ver. A fumaça a estava asfixiando; não podia respirar.
Apertou Levi, que então estava chorando, com sua pequena cara avermelhada e desencaixada, contra seu peito e correu.
—Mamãe? Papai?
O chão queimava sob seus pés. O calor procedente das chamas abrasava sua pele. Tropeçou e viu seu papai sobre o chão. Tinha sangue por toda a face e sobre o peito. Havia um atoleiro sob seus ombros. Seus olhos a olhavam sem vida.
Gritando, correu para a porta, mas não pôde atravessar o fogo, assim que se dirigiu a uma janela e golpeou o cristal até que o fez pedacinhos.
Tinha que escapar antes que o monstro a apanhasse.
Nathan caminhava tranquilamente corredor abaixo para o pequeno quarto onde tinha deixado Rachel dormindo, com as mãos nos bolsos e com a mente no que ele e Teryn tinham descoberto graças ao Wizenot da Siracusa e em como ia dizer a Rachel.
O primeiro grito o tirou de seu estado de sonho como quando um pescador tira vigorosamente de seu cano porque há uma truta enganchada ao anzol. Correu os últimos metros até seu quarto e abriu a porta com tanta força que quase a arranca das dobradiças.
Rachel estava junto à janela, com um travesseiro agarrado contra seu peito com uma mão e golpeando o cristal com a outra. Nathan não tinha nem ideia do que estava fazendo, ou por que, mas sabia que tinha que detê-la antes que se machucasse.
Quando a agarrou e a voltou para ele, então entendeu. Seus olhos estavam frágeis, estavam olhando, mas não a ele. Tampouco o quarto, ou ao sol do frio inverno que tinha saído enquanto conversava com Teryn. Rachel continuou esmurrando o peito de Nathan como se tratasse da janela.
—Tenho que sair — Gritou com voz de menina, apanhada no pesadelo de seu passado — Fogo. Tenho que tirar Levi. Mamãe? Papai? Paaa-pááá?
Atraiu-a para si fortemente e imobilizou os braços a ambos os lados. O travesseiro que ela sustentava com tanto cuidado ficou esmagada entre ambos, e ele sussurrou em seu cabelo do mesmo modo que tinha sussurrado a Patrick fazia horas. Esfregou suas mãos para cima e para baixo de seus braços, fazendo desaparecer a pele arrepiada, de ambos.
—Está bem. Está bem. Só foi um sonho. Está a salvo.
Depois de uns segundos, seus soluços se sossegaram. Suas pernas continuaram tremendo, assim que a conduziu até a cama, sentou-a sobre ela e jogou o edredom sobre seus ombros, tampando todo o corpo. Durante um segundo se arrependeu de cobrir um corpo tão bonito, mas sua pele estava fria, como a de um peru congelado. Rachel precisava ficar quente. Não necessitava que ele se equilibrasse sobre ela.
Ainda.
Nathan esfregou a mão com a sua, esperou que ela voltasse a si.
—Sente-se melhor? — Perguntou quando seus olhos finalmente centraram a vista e ela forçou uma imagem imprecisa.
—Eu... — Ela agarrou a manta com força — Tive um pesadelo.
—Já me dei conta. Quer falar disso? — Sentou-se a seu lado, atraiu-a para ele. Felizmente, ela não o afastou.
—Era sobre a noite que morreram meus pais.
—Já imaginei isso.
—Imagino que tudo isto. — Encolheu os ombros — Me fez revivê-lo.
Fechou os punhos sobre a manta a ambos os lados, amaldiçoando a si mesmo pelo dano que tinha causado a Rachel. E pela dor que estava a ponto de causar.
—Refere-se a mim. Eu tenho feito você revivê-lo.
Ela baixou o olhar, secou as lágrimas. Todas exceto uma. Essa uma deixou um rastro luminoso bochecha abaixo e caiu sobre a manta.
—Você não pode evitar ser o que é. Não o escolheu. Viveu com isso o melhor que soube. Agora o entendo, entendo-o seriamente.
—Mas?
Ao menos tinha a cortesia de olhá-lo ao dizer adeus.
—Mas não posso estar com você. Não posso viver com você. Dói muito.
Ela se levantou, envolvendo-se com a manta enquanto se soltava dele.
Devido a sua condição de gárgula, Nathan não tinha conhecido o medo em nenhuma de suas vidas. Tinha tido poderes nos que confiar: a besta. Tinha tido a sua congregação. Tinha conhecido a dor e tinha conhecido a cólera.
Mas não o medo. Não até agora.
Rachel o estava deixando e estava aterrorizado porque não se sentia capaz de detê-la. Só vinha à mente uma coisa capaz de detê-la.
Nathan engoliu a bílis.
Tinha que contar a Rachel. Agora, antes que fosse muito tarde.
Antes de perdê-la.
—Eu não matei seu pai. — Observou atentamente sua reação, adoeceu só de pensar que estava a ponto de destruir a lembrança de tudo o que ela queria. — Nenhum...
—Sei que você não o fez. — O interrompeu — Essa... Opção a descartei faz muito, mas mesmo assim não posso suportá-lo. As lembranças são muito imprecisas.
—Não me deixou terminar. Eu não matei seu pai. — Repetiu ele — E nenhum de nós o fez.
Ela ficou tensa, a confusão abriu caminho atrás de seus olhos, ao redor de seu franzido cenho.
—Eu o vi! Só era uma menina, mas vi a coisa que assassinou a minha mãe e a meu pai. Está me chamando mentirosa, ou simplesmente insinua que tenho delírios?
—Calma. — Nathan se levantou e se colocou atrás dela, rodeou-a com os braços, embora era como segurar uma coluna de concreto, estava muito tensa — Não é uma mentirosa e não está louca. Viu duas sombras cair, dois homens. Não podia saber quem era quem. Um deles se levantou, só que tinha deixado de ser um homem, era um...— A palavra engasgou na garganta dele — Monstro.
Voltou-a para si e abriu sua mente completamente, com a esperança de que ela pudesse ver a verdade com seus próprios olhos, através de seus pensamentos, ao tempo que o ouvia de sua boca.
—O monstro não matou seu pai, céu. O monstro era seu pai.
Capítulo 25
—Não! — O pai de Rachel não tinha sido um monstro. Tinha sido um homem amável, carinhoso E... e... e um carpinteiro dedicado que sempre lutava por melhorar suas habilidades, embora nunca pôs o trabalho por diante da família. Tinha sido a pessoa mais humana que tinha conhecido. Não ia permitir que sujassem sua memória. — Está equivocado. Equivoca-se com ele.
—É a verdade, Rachel. Olhe dentro, recorda tudo dessa noite e verá.
—Não! — Rachel não queria recordar aquela noite. Não queria reviver o pesadelo, mas apesar de tentar fechar a lembrança, ouviu o bater de asas de umas enormes asas e escutou o agudo grito do monstro.
Fechou a garganta e tossiu como se tivesse respirado uma fumaça amarga, só que eram suas próprias palavras o que a afogavam.
—Não. Equivoca-se. Deus, tem que estar equivocado.
—Falei eu mesmo com o Wizenot da Siracusa. Seu pai era um dos nossos. Era um Gargouillen.
—Teria me dito. Teria sabido que meu pai não era humano.
—Talvez pensava contar isso mais adiante. Possivelmente pensou que era muito jovem. Ou talvez nunca quis que o descobrisse. Mas sei que é verdade. Tem sentido.
—Tem sentido? — Sua voz se transformou um grito angustiante. Tentou escapar de suas mãos, mas Nathan a segurava com força pelos cotovelos — Como pode ter sentido que meu pai seja uma besta maldita?
Nathan ficou petrificado ao ouvir estas palavras e recuou como se o tivesse empurrado. Então, Rachel se deu conta de que Nathan era uma dessas bestas malditas. Nathan, que tinha feito amor com esse magnífico corpo e essa mente ainda mais magnífica.
Nathan sacudiu os ombros um pouco.
—Disse-me que ouviu um assobio no edifício abandonado na noite em que encontramos Von e Jenny. Isso é a Chamada, a forma com a que fazemos saber a outros que necessitamos ajuda e sua frequência está muito por cima do ouvido humano.
—Tenho um ouvido excelente. Eu...
—Ouviu Von pedir ajuda da plataforma do metrô. Depois, quando você esteve em perigo, não se limitou a ouvi-lo, mas sim o fez. Você me chamou céu.
—Não!
—Aceite-o. Sabe que é verdade.
Rachel deu as costas.
—Mas, fomos uma família. Estavam casados. Você disse que os gárgulas levam a seus filhos... Levam-se a seus filhos varões, e... e...
Uma feia possibilidade tentou invadir sua cabeça, mas ela a expulsou para fora.
Até que Nathan verbalizou o que ela não se atreveu a pensar.
—Seu irmão não era mais que um bebê. Talvez seu pai teria abandonado a sua mãe e a você e o teria levado com ele e teria voltado para a congregação ao final.
Rachel sentiu como se alguém tivesse dado um murro no centro do seu coração.
—Ou talvez teria quebrado a tradição. Talvez estava tão cansado das mentiras e da dor como eu. Talvez queria ficar com você e te amar para sempre. — A voz de Nathan se adoçou. Tomou os ombros com ambas as mãos — Como quero fazê-lo.
Era muito. Não podia absorver tudo. Não podia processá-lo. Não podia acreditar.
Não ia permitir a si mesma acreditar.
Com os olhos abertos como pratos e negando com a cabeça em silêncio, afastou-se, correu para o diminuto banheiro e fechou a porta atrás dela.
Nathan pensou em deixá-la a sós cinco minutos para que pudesse recompor-se antes de ir atrás dela, embora fossem os cinco minutos mais compridos de sua vida.
Sua dor e seu sofrimento transpassavam as paredes do pequeno banheiro como a onda expansiva de uma explosão nuclear. Tentou mandar ondas de tranquilidade, ondas de carinho, mas ela tinha fechado sua mente fortemente.
Fantástico. Agora também sabia como se proteger.
O que deixou a ele ali plantado sentindo toda a agonia que ela sentia, além da sua própria e sem ser capaz de fazer nenhuma maldita coisa para aliviar a dor.
A merda os cinco minutos. Ia entrar já.
O ruído da ducha afogou o seu próprio.
—Rachel?
O vapor alagava o banheiro e empanava o espelho. Do outro lado da lua transparente da ducha, só via uma silhueta clara. Estava apoiada na parede, com as palmas pegas aos ladrilhos e a cabeça caída entre os ombros.
—Rachel?
Um choro afogado foi a única resposta que obteve, quase inaudível entre o ruído da água caindo.
Sem pronunciar palavra, Nathan tirou a roupa, abriu a porta e se situou atrás de Rachel. A magra figura tremeu sem dizer nada enquanto ele percorria com as mãos ambos os lados de sua coluna vertebral, recolhia o cabelo e deixava enrolado sobre o ombro de Rachel, rodeava-a com os braços pela cintura e ia fechando até que a branca curva de seu traseiro ficou em contato com sua virilha.
—Parecia-me tão familiar. — Disse por fim Rachel — Do momento em que te vi pela primeira vez, foi familiar.
—Eu pensei o mesmo sobre você.
—Não só fisicamente falando, mas também todo você. Sabia quando estava triste, quando ia sorrir. Sabia quanto amava este lugar.
—Sentia minha mente. Estávamos conectando antes inclusive de ser conscientes disso. — Segurando-a colada a ele com uma mão, baixou a outra até chegar ao triângulo de cachos situado entre suas pernas, abriu caminho entre as dobras de seu sexo e introduziu o dedo do meio dentro dela.
Em questão de segundos, a água da ducha não era o único lubrificante que facilitava o caminho. Apesar de tudo, Rachel continuava querendo-o e esse era o milagre do dia. Dessa vida.
—Tocou minha mente. — Disse a ela, enquanto movia o dedo dentro e fora — Por isso comecei a suspeitar que era diferente. Os humanos não deveriam ser capazes de fazer as coisas que você e eu temos feito. Com nossas mentes.
Ela se pegou a ele.
—Disse que as filhas dos gárgulas eram humano normais e correntes. Que não nasciam sendo gárgulas.
—Leva sendo assim há séculos. Mas tenho lido velhos manuscritos que documentam a história dos Gargouillen do começo. Lembro ler uma passagem que falava de que as primeiras fêmeas mostravam habilidades de vez em quando. Teryn e eu encontramos o texto ontem à noite de novo. Parece ser que a magia que nos criou é mais forte nas almas velhas que nas novas.
—Novas almas?
Nathan encolheu os ombros.
—Nossos membros aumentaram muito durante centenas de anos. Em Rouen, só havia trinta e oito homens. À medida que produzíamos filhos, criavam-se novas almas. Ou ao menos as almas dos meninos nascidos de nós se transformavam nos Gargouillen em vez de humanos.
Deslizou a mão da cintura de Rachel até seus seios, sustentou-os com as mãos e os apertou com carinho. Depois, pôs a palma da mão plana entre eles como se quisesse acalmar seu prejudicado coração.
—Seu pai era um dos Antigos, um dos habitantes originais de Rouen.
Com o polegar, acariciou o nó de carne situado sobre o ponto no que seu dedo se deslizava dentro e fora do corpo dela.
—Abre a mente e me deixe que mostrar isso. Posso te ajudar a compreender o que significa ser um gárgula.
Rachel soluçou.
—Meu pai não era um... Não era como você.
Caindo no desespero, Nathan depositou um triste beijo em cada vértebra das costas de Rachel. Ela podia aceitar que ele fosse uma gárgula, mas a natureza da besta era muito feia, muito selvagem e primitiva para associá-la a seu santo pai.
O que esperava? Que ia acreditar em seu conto de pagãos e dragões e rituais de magia, que ia aceitar o que ela era, embora tinha passado toda a vida achando que era justamente o contrário, odiando o que ele era e seguir adiante?
Que seriam felizes e comeriam perdizes?
Era um tolo. Nunca seria dele. Não de tudo.
Mas não era tão tolo para deixar escapar a parte dela que tinha: sua paixão. Seu corpo.
Sua mente continuava fechada para ele, mas seu corpo estava totalmente aberto. Rachel arqueou as costas, empurrou o traseiro contra a ereção de Nathan acomodada entre seu traseiro e animou o ritmo da mão, enquanto sua respiração se acelerava. Mas isso não era suficiente para ela. Ele sabia que não era suficiente.
—Deus, sinto-me tão vazia. — Ofegando, jogou a cabeça para trás e deixou que a água caísse diretamente sobre o rosto — Como se tudo dentro de mim escapou e tivesse caído pelo ralo. — Desenhou círculos contra ele, fazendo que quase chegasse ao limite nesse momento.
—Encha-me. — Rogou — Encha-me inteira. Não quero estar vazia mais tempo.
Por trás, pensou Nathan. Rachel queria que tomasse por trás como o animal que ela acreditava que era. Assim, não teria que o olhar na sua face.
E não foi o bastante homem para se negar.
Rachel tinha sabido desde que tinha seis anos que faltava algo na vida dela. Tinha pensado que era a falta que sentia de seus pais. Crescer na segurança de um lar familiar. Uma mãe e um pai que a preparassem para sua vida adulta, que a aconselhassem, que a exortassem porque não os chamava com frequência e que a recordassem que levasse um garrafão de gasolina no carro se por acaso ficava sem no meio da estrada.
Agora, dava-se conta de quão equivocada tinha estado.
Tinha sentido falta da necessidade de receber conselhos, uma voz conhecida do outro lado do telefone ou inclusive um lugar ao que chamar de lar quando a vida ficasse difícil.
Mas isso era o que necessitava: um homem que estivesse a seu lado, que enchesse as escuras e vazias curvas de seu interior. Que a afastasse dos pesadelos e a fizesse sentir completa.
Um homem que afastasse as sombras.
Tinha pensado que Nathan era esse homem; queria que fosse esse homem.
Exceto não era um homem, não é?
Sentia-o como um homem dentro dela, abrindo caminho, entrando tão dentro dela que não parecia possível. Levava-a sem problemas até o prazer mais absoluto.
Desejava fingir que era um homem, só durante uns minutos, para alcançar a liberação. Ocultar as possibilidades que tinha exposto antes, as dúvidas que sentia ela mesma.
Enquanto não tivesse que olhá-lo, enquanto não tivesse que ver a escura mecha de cabelo que caía pela testa, arruinando sua impecável imagem, os olhos negros que viam muito mais que o resto do mundo, podia fingir que era um homem.
E era algo do que se sentia envergonhada.
A água se esfriou. Se deu conta de que Nathan se inclinou sobre ela, esquentando-a e a protegendo e esse simples gesto estragou o orgulho. Arruinou sua autoestima.
Depois de apoiar uma mão no quadril de Nathan, deu um passo para frente, separando-se dele e desligou a ducha. Depois, voltou-se lentamente e olhou nos olhos.
Parece que a autoestima de Nathan estava bastante baixa por seu olhar.
E era culpa dela. Sabia disso. Tinha-o ferido e ele continuava amando-a.
Temerosa de que trocasse de ideia agora e a afastasse dele, rodeou o pescoço com os braços e ficou nas pontas dos pés para ficar com os rostos pegos. Deu um pulo quando o pelo peitoral de Nathan roçou os mamilos. Estremeceu quando o pênis de Nathan fez pressão sobre seu ventre.
—Acredito que eu gostaria de acabar assim — Disse Rachel, e conseguiu suavizar as duras linhas de decepção do rosto de Nathan.
Tomou sua mão e a beijou. Chupou todos os seus dedos.
—Posso suportá-lo.
Levantou-a, a pôs contra os frios ladrilhos e voltou a entrar nela. Uma vez depois da outra. Ela se inclinou para trás, utilizando a parede para não perder o equilíbrio. Seus corpos se chocaram, suavam, molhavam-se. Suas bocas se devoravam. Suas mãos percorriam todos os cantos do corpo do outro, encontravam todas as zonas erógenas, despertavam todos os nervos como se fosse sua última vez juntos.
A segurança disso caiu sobre Rachel como uma laje ao mesmo tempo em que alcançava um magnífico orgasmo. A barreira que tinha levantado ao redor de sua mente caiu e Nathan estava aí, ao redor dela, dentro dela, e ela estava dentro dele. Não podia pará-lo, não queria pará-lo. Quão único podia fazer era se agarrar com os dedos às costas de Nathan, enterrar a cabeça em seu ombro e tentar que não visse as lágrimas que caíam pelas bochechas.
—Nathan!
Seu nome seguia ressoando nos ouvidos quando suas costas ficaram rígidas. Os quadris de Nathan realizaram uma investida, duas investidas mais, conseguindo entrar dentro dela tudo o que podia.
—Deus. Estou desmoronando. — Abraçou-a com tanta força que quase não podia respirar — Não posso...
Quisesse o que quisesse dizer, perdeu-se em um grunhido, depois um rugido enquanto gozava dentro dela em três potentes ondas. O abraçou enquanto sua consciência se afastava além de seu alcance.
Quando por fim afrouxou os braços que a mantinham segura e sua respiração voltou a normalidade, ela se separou dele e ficou de pé sustentada por uns trêmulos joelhos.
Nathan elevou a cabeça e a olhou com conhecimento. Tinha estado em sua mente. Sabia tudo o que ela sabia.
—Continua com a ideia de partir.
Ela resistiu o impulso de abraçar-se embora tivesse frio.
—Tenho que fazê-lo.
Nathan franziu o cenho com ferocidade. Afastou-se dela até que topou com os ombros na lua de cristal.
—Então isto foi uma transa de despedida? Poderia ter me mandado um cartão postal.
Ele se afastou e saiu do banheiro.
Ela o seguiu.
—Não pensou que talvez não permitamos que vá? Sabe muito.
Depois de recolher sua roupa da penteadeira, colocou a roupa interior e as calças.
—O que vai fazer, me prender em sua torre para o resto de minha vida? Ou me matar e acabar de uma vez com tudo?
Ele bloqueou o passo com seu molhado corpo nu.
—Os Gargouillen não matam inocentes.
Rachel suspirou. Forçou-se a relaxar os dedos, tocou seu ombro e falou com doçura.
—Já sei. Tenho uma confiança total em que não vai me machucar, Nathan. —Colocou a camiseta, tirou o cabelo por cima e escorreu os restos de água fria com uma indiferença que era pura charada — Por isso sei que não vai me deter.
Xeque-mate.
Rachel estremeceu ao afastá-lo para passar.
Não houve mais palavras.
Capítulo 26
Rachel desceu as escadas para o andar de baixo com Nathan pego aos seus calcanhares.
Nathan tropeçou, golpeando em um dedo do pé e amaldiçoou.
—Quer partir. Certo. Vá aonde queira. Só quero que saiba que estarei pego aos seus calcanhares aonde quer que vá.
—E se te dissesse que não quero que esteja pego a meus calcanhares? —Olhou por cima do ombro para vê-lo.
Nathan sorriu como um lobo faminto.
—Perguntaria o que te faz pensar que pode escolher.
Rachel franziu o cenho imaginando o que ele pensava. Tinha acertado quando disse que não podia evitar que partisse, assim que ele ia fazer o que faziam todos os machos do planeta quando eram rejeitados por uma mulher.
Intimidava-a.
Só que Rachel Vandermere não estava disposta a permitir que a intimidassem. Voltou a olhá-lo enquanto girava uma esquina na parte inferior das escadas. Pôs uns jeans, mas não tinha tido tempo de abotoá-lo ia descalço e estava colocando a parte inferior da camisa, com amargura, dentro das calças. Se esse homem não a amava, ao menos a desejava com luxúria. Tinha-a observado com desejo enquanto se vestia, e já estava excitado de novo.
Rachel estalou a boca.
—Talvez não seja bom que me siga muito de perto com essa coisa plantada. É possível que batam nisso com a primeira porta que tente cruzar atrás de mim.
Nathan realizou uma careta como resposta.
Rachel se deu conta muito tarde de que deveria ter estado olhando onde pisava em vez desse espetacular exemplo de dignidade que tentava liberar do fechamento dos jeans de Nathan.
Chocou-se contra Teryn, que a agarrou e arrumou para impedir que caísse de cabeça pelas escadas.
Rachel sentiu como se ruborizava ao se dar conta de que seu último comentário tinha sido ouvido, mas não disse nada. Franziu o cenho como se tivesse algo mais importante na mente. Algo alarmante.
—Venham comigo — Disse — Os dois.
Conduziu-os abaixo a um ritmo rápido.
Nathan deu uma cotovelada em Rachel nas costas, obrigando-a a caminhar.
—O que aconteceu? — Perguntou — Há algum problema?
—O pai de Jenny Lovell está aqui procurando sua filha. Leva um taco de beisebol e está montando uma cena. — Sem reduzir o passo, Teryn olhou para trás a Rachel de forma que fez sentir um nó no estômago — Ele e uma dúzia de seus amigões mal encarados.
—Chamou à polícia? — Perguntou Rachel.
—Preferia não chamar a atenção.
Nathan assentiu.
—Se a polícia chegar e vê sua face, seu querido papai vai jogar a culpa em nós. Não o imagino reconhecendo que deu uma surra na sua filha diante de todos seus amigões.
—Jenny contaria a verdade. — Disse Rachel.
—Tem dezessete anos. Por certo, se seu pai comentar o fato de que passou a noite em uma escola cheia de homens e meninos. Inclusive embora ela tentasse nos defender, ele alegaria que a ameaçamos ou lavamos seu cérebro.
—Eu sou policial. Me acreditarão.
Nathan sorriu com sarcasmo.
—Sim, sobre tudo quando disser que te sequestrou um monstro e que a retivemos aqui contra sua vontade.
Golpe baixo. Maldição porque o homem tinha voltado para outro golpe baixo.
—Pensava evitar essa parte, mas já que o menciona...
Teryn passou uma mão pelo cabelo grisalho em um movimento que se parecia tanto ao que realizava Nathan que sentiu um calafrio.
—Não temos tempo para isto.
Ela o agarrou pela manga.
—Não pode entregar Jenny. Não depois do que ele fez!
Teryn suspirou frustrado.
—Não é eu que decido. Mas tenho que dizer algo antes que alguém saia ferido. Se raciocinar com ele...
—Tá. — Espetou Nathan — Pois mais vale que ponha primeiro uma armadura se essa for sua estratégia.
—Tenho que tentá-lo. Não tenho escolha.
Encontraram-se com Connor e Mikkel no primeiro andar e voltaram como um grupo ao vestíbulo. Os homens de ambos os lados da porta principal abriram as portas duplas de carvalho à medida que se aproximavam.
A vista do exterior era como tirada de Frankenstein, as pessoas do povoado assaltando o castelo.
Teryn se deteve sobre as escadas de mármore, com a cabeça alta e as costas retas. Todos com expressões ferozes, Connor, Mikkel e Nathan permaneceram de pé ombro com ombro atrás dele.
Tornando-se a um lado o tempo justo para deixar escapar um comprido suspiro, Rachel se uniu a eles.
Que demônios. Pensando no que tinha sentido pelos monstros toda sua vida, sempre tinha animado à massa enlouquecida a carregar contra o monstro cada vez que via o filme em preto e negro, mas de algum jeito um linchamento não parecia um ato tão heroico na vida real.
Lovell levantou o taco de beisebol e assinalou com seu extremo.
—É essa. Essa é a puta e seu namorado que levaram a minha filha.
Um frio vento de inverno despenteou o cabelo de Teryn. Levantou as mãos, mostrando as palmas.
—Vamos nos acalmar todos. Ninguém levou sua filha, senhor Lovell.
—Está me dizendo que não está aqui? Está me dizendo que não a estão escondendo, você e esse garoto que a esteve perseguindo?
As pessoas do bairro e os pedestres começaram a parar atrás do bando do Lovell.
—Monstros. — Gritou um homem com traje barato — Ouvi que aí vivem uns monstros.
Teryn fez caso omisso e se concentrou no pai de Jenny.
—Se baixa o taco de beisebol, poderemos falar disso.
—Não vim aqui para falar, velho. Vim para levar minha filha. Tragam esta puta aqui ou entrarei para procurá-la. — Lovell golpeou o taco de beisebol com a palma da mão.
—Isto é uma escola, senhor Lovell — Disse Teryn com voz de diretor de escola — Não penso permitir que invada a escola e assuste aos estudantes.
—E que tipo de escola dirige, cara? — Gritou um homem com uma marmita de metal e um macaco de trabalho — Minha mulher limpa o edifício da frente. Contou-me que acontecem coisas estranhas no alto da torre a altas horas da noite.
A postura de Teryn trocou sutilmente. A maioria das pessoas não teria fixado nas tensas costas, nos dedos apertados, mas Rachel era policial. Tinham-na formado para observar o comportamento das pessoas. O que faziam estava acostumado a significar mais que o que diziam e se estivesse em uma sala de interrogatório com um suspeito, teria sabido que estavam a ponto de mentir.
Teryn tinha muitas razões para mentir, dado que era o líder de uma sociedade secreta, mas que segredos ocultava a torre?
—Crio pássaros no telhado — Disse — Pombas. Cuido delas de noite quando os meninos estão deitados.
Um homem com uma suja barba loira caminhou até ficar diante das pessoas que começava a converter-se com rapidez em multidão.
— Por que não vemos esses meninos fora, jogando ou fazendo esporte? Onde estão todos os meninos que se supõe que estudam aqui?
— Temos um ginásio coberto. Preferimos manter os meninos longe da rua.
O homem se voltou para a multidão reunida atrás dele.
— Digo, há algo errado neste lugar.
— Não há nada de errado neste lugar.
— Sempre pensei que era estranho que houvesse meninos vivendo em uma escola como esta. Onde estão suas mães?
A massa de gente se adiantou até o primeiro degrau.
—O que estão fazendo aos meninos?
Lovell os conduziu até metade das escadas da entrada. Sua face estava inchada e vermelha.
—O que estão fazendo a minha filha? Saíam já!
Um tijolo rompeu a vidraça situada à esquerda da porta principal. Várias pessoas se agacharam, presumivelmente procurando projéteis que lançar.
—Saíam já! — Exigiu alguém.
—Saíam todos!
—Monstros!
Rachel ficou ao lado de Teryn, tirou a placa do bolso e a abriu diante a turba enfurecida.
—Já é suficiente.
A multidão ficou em silencio espectador.
Lovell foi quem falou:
—Nossa o que é isso? Uma placa de brinquedo?
—Interpol — Respondeu Rachel, olhando nos olhos fixamente e com dureza. Os olhos de Lovell estavam vazios. Como se estivessem acesas as luzes de casa, mas não houvesse ninguém dentro. Não tinha pensado que consumia drogas, mas sem dúvida não parecia um homem com o pleno controle de suas faculdades.
—Aqui não tem jurisdição. — Disse Lovell.
—Não, mas tenho amigos que sim a têm — Mentiu. Não conhecia ninguém da polícia de Chicago exceto o casal de inspetores com os que tinha trabalhado no baile de gala do museu e tampouco os conhecia tão bem — Se der um passo mais, vou fazer que o culpem de tantos delitos que não vai ver por cima da pilha de papéis que vão necessitar só para escrevê-los.
Lovell olhou atrás por cima do ombro para ver se seus torcedores seguiam atrás dele. Ou para assegurar-se de que o público estivesse escutando.
—Bom, ao menos não terei que me preocupar porque terei papel de sobras para me limpar o traseiro por uma boa temporada.
A risada explodiu atrás dele. Depois, produziram-se mais gritos contra a escola. A horda despertou, tomou vida própria. Lovell balançou o taco de beisebol e fez pedacinhos uma das jardineiras de cerâmica que adornava as escadas e depois esmagou com o salto da bota o acebo contra o mármore. O homem situado junto a ele rompeu o corrimão de ferro.
Teryn recuou, indicando a outros que entrassem também e fechou a porta. Apoiou-se contra o painel de carvalho lavrado.
—Mikkel, chama à polícia.
—Mas, sábio...
—Faça-o.
Mikkel deu um golpe no calcanhar e partiu.
Rachel deu um pulo quando a segunda vidraça explodiu em multidão de fragmentos de cores.
Nathan a separou das janelas.
—Se encontrarem Jenny aqui, nos vão deter todos antes de nos deixar explicar nossa versão da história.
As portas de carvalho tremeram, mas aguentaram. Rachel estremeceu ao pensar com o que as teriam golpeado.
Teryn a agarrou pelos ombros.
—Tem que levar Jenny fora daqui. Há um túnel que leva até a porta traseira e sai num beco. Connor, mostre-o.
—Eu mostrarei — Disse Nathan, com o cenho franzido.
—Não. Quero que você pegue dois homens e reúna aos meninos. Leve-os as torres e depois volta. Necessito-te aqui. Comigo.
Connor não pareceu contente da tarefa encomendada, mas Rachel não tinha tempo para perguntar nada.
Olhou os três homens com o pulso acelerado.
—Onde se supõe que tenho que ir? O que faço com ela?
Teryn a girou para a parte traseira da escola.
—Leve-a ao hospital. Fala com os serviços sociais de proteção a infância. Não importa. Pegue a garota e vá.
—A garota já está aqui.
—E não vai a nenhum lado sem mim.
Jenny e Von apareceram na soleira da porta que conduzia a sala de jantar. Entre os dois, conseguiam tantas cores como um par de perus reais. Von seguia segurando as costelas com um braço para proteger-se, mas parecia estável.
Teryn olhou para Nathan, quem assentiu, depois aproximou de Rachel para o Connor.
—Leve os dois. Vá.
Não tinham passado nem dez minutos desde que Rachel partiu quando Nathan já estava perguntando-se onde estaria.
Se voltaria a vê-la algum dia.
Que ironia. Por fim tinha encontrado uma mulher que podia aceitá-lo tal qual era, e a tinha perdido.
Porque era incapaz de aceitar quem ela era.
Teryn levantou a cortina da janela de seu escritório e observou o caos do exterior. O ar se movia com a promessa de violência. Quase podia cheirar já o sangue no ar.
—Isto não é uma loucura natural. Alguma magia alimenta sua ira. Os conduz como um chofer a seus cavalos.
— Quem? O que?
— Não sei, mas deve ter muito poder para transformar nossos amigos e vizinhos em uma turfa enfurecida. Faz décadas que vivemos pacificamente entre esta gente.
—Vi que a senhora Millan da tinturaria lançava uma pedra. Não cuidou de seus netos no ano passado enquanto operavam seu marido do coração?
—Não é sua culpa. Sua cabeça não pertence a ela. O mal está em nossa porta agora mesmo. Em seguida, conseguirá encontrar uma maneira de entrar.
Não se Nathan podia evitá-lo. Não com meninos inocentes nos andares superiores, e a única família que sempre tinha jurado proteger.
—É isto o que viu em suas visões?
—Isto. E muito mais.
Como se isso não fosse o bastante mau. Nathan passeava, muito enojado diante do que tinha visto para voltar a aparecer pela janela. Incapazes de romper a porta. Dedicaram-se a destruir os carros estacionados fora. Os gritos da multidão se elevavam e caíam como uma sinfonia pagã.
—Onde demônios está a polícia?
—Ocupando-se de coisas mais importantes, estou seguro. — Disse Teryn — Na confeitaria. Já sabe que nego a fazer a “doação” que nos exigem cada ano.
Quebrou-se outra janela, mas desta vez alguém gritou no exterior do escritório do Teryn.
—Um coquetel molotov! Fogo!
Teryn fechou com força os olhos.
—Já começou.
Capítulo 27
Connor abriu caminho a provas ao longo da parede do túnel que conduzia à porta traseira de St. Michael. A única lâmpada que iluminava o caminho se apagou. A escuridão cheirava a mofo e sedimentos de rato. Nem sequer queria pensar no que era essa coisa mole que tinha pisado antes.
O trio de desertores avançava atrás dele.
Por que demônios o tinha encarregado Teryn que fosse o cão guia de cegos de duas humanas e um jovem gárgula delinquente enquanto uma turba enfurecida ameaçava sua escola e sua casa?
Porque Nathan Cross havia retornado, por isso.
O dedo maior do pé de Connor se chocou contra algo sólido.
— Escadas — Avisou ao grupo que o seguia.
Graças a Deus. Já quase estavam fora desse pestilento buraco. Contou dez escadas, depois conseguiu encontrar o cadeado que fechava a porta e foi medindo com os dedos até averiguar para que lado estava a chave. O cadeado se abriu. A porta se abriu para fora. Entrou a luz, o obrigando a entreabrir os olhos e a levantar os antebraços para proteger os olhos enquanto saíam do passadiço como múmias de uma tumba.
Connor respirou fundo. Inclusive os escapamentos e o lixo em decomposição da rua cheiravam melhor que o ar viciado do túnel.
Rachel olhou por cima do ombro de Connor a parte traseira de St. Michael.
—Não ouço sirenes.
Connor escutou. Só era audível algum grito ou o ruído de algo quebrando-se de vez em quando.
—Talvez deveria ficar. — Disse Rachel — Poderiam necessitar ajuda.
—Teryn quer que vá. Vá. — De maneira nenhuma ia danificar o simples encargo de se livrar do excesso de bagagem. Um destes dias, Teryn recuperaria a prudência e se daria conta de que ele era a melhor opção para sucedê-lo como Wizenot. Um destes dias, Cross iria muito longe. Traíra à congregação muitas vezes.
Além disso, queria que essa mulher fosse já. Nathan não teria nenhuma razão para ficar se ela não estava.
Entregou um pouco de dinheiro a Rachel, deu meia volta agarrando-a pelos ombros e fisicamente a empurrou para a saída do beco.
—Vá.
Rachel apertou as notas na mão.
—Não vem?
—Como disse, talvez necessitem ajuda.
Connor os observou até que se perderam de vista, e depois voltou para a escola. A argamassa entre as pedras estava rachando. O campanário da catedral central necessitava uma boa limpeza. Mas o chão estava bem. As entradas estavam cuidadas e os arbustos bem podados. As janelas resplandeciam sob o pálido sol de inverno.
Era seu lar, o único que tinha conhecido.
Maldito Nathan por tentar arrebatá-lo ganhou o direito de liderar a sua congregação. Manteve-se junto a sua gente enquanto Nathan os tinha abandonado. Tinha aceito as obrigações dos Gargouillen enquanto Nathan tinha negado sua origem.
Se Teryn não era capaz de vê-lo, ou não queria, então Connor teria que assegurar-se de que os anciões o vissem. Alguns deles não estavam nada contentes com o apoio incondicional do Wizenot a Nathan. Cross tinha sido excomungado. Não deveria estar aqui e muito menos ao lado de Teryn durante um momento de crise, enquanto que Connor era enviado longe com as mulheres e os meninos.
Só precisava chamar a atenção dos anciões, conseguir seu apoio. Demonstrar a todos que ele era o melhor para governá-los. Ele era seu futuro.
Depois de grunhir pela frustração, apoiou os ombros com força na parede de tijolos do edifício abandonado situado atrás dele e tirou um cigarro do bolso da camisa. Acabava de acender um fósforo e a estava levando a cigarro quando ficou paralisado.
Do outro lado da grade de ferro do outro lado da rua, dois homens com gabardinas negras caminhavam ocultos com o passar do muro traseiro de sua escola, de seu lar, comprovando as janelas até que encontraram uma que não estava fechada e penetraram dentro.
Um ataque surpresa, oculto pelo caos que se estava desenvolvendo na porta principal.
A Connor começou a ferver o sangue. Deixou cair o cigarro na calçada. O fósforo se apagou. Desta vez, quando entrou no escuro túnel, não amaldiçoou a luz fundida. O incandescente brilho verde de seus olhos iluminava o caminho.
Nathan permaneceu junto a Teryn enquanto corriam de sala em sala avaliando os danos. Ao menos havia três fogos independentes ardendo: na sala de jantar, no vestíbulo e na biblioteca. Deus, a amada biblioteca de Teryn.
Quando as chamas cruzassem as grandes áreas do vestíbulo do edifício e alcançassem as salas menores da parte superior onde os chãos estavam encapetado e as paredes muito juntas, o fogo seria incontrolável.
O calor já era intenso. O suor colava a camisa de Nathan nas costas e caía pelas têmporas. Os olhos ardiam e a garganta doía.
No salão situado junto ao vestíbulo, Teryn arrancou uma cortina cheia de chamas e pisoteou a malha.
Tossindo, Nathan pôs uma mão no ombro do Wizenot.
—Deixa-o! Temos que evacuar!
—É nossa casa!
Nathan sabia como se sentia. A importância deste lugar para sua gente. Sua história. A congregação se concentrou no St. Michael desde sua construção fazia já mais de cem anos. Mesmo assim, não era mais que um edifício e os edifícios podiam ser substituídos.
—Temos que tirar os meninos! — Gritou entre os rangidos do fogo.
Assentindo a contra gosto, Teryn deixou a cortina e permitiu que o fogo a tragasse. Tinha manchas avermelhadas no rosto. Tinha também uma queimadura em uma bochecha. O peito estava um fundo em sinal de derrota.
—Eu me encarrego da torre sul, você da norte. Se assegure de que todo mundo saia. Não deixe ninguém aqui dentro.
Em Wabash Drive, a cidade seguia com suas coisas como se não estivesse louca a só uns quilômetros de distância. Um executivo comprovava seu relógio enquanto entrava no banco. Uma apurada mãe deteve o carrinho de seu bebê na calçada para recolher a chupeta de seu menino, limpou-a nas calças e o voltou a introduzir na boca chorosa do bebê. Um jovem casal de góticos caminhavam da mão pela calçada, enquanto as correntes tilintavam e as tachinhas da roupa brilhavam sob a luz do sol.
Todos pareciam tão normais.
Tão inconscientes do que acontecia.
Dos distúrbios de outro bairro.
Dos monstros que invadiam a cidade.
Rachel não sabia por que seguia triste. Tinha o que queria: sua liberdade. Não tinha que escutar mais historia loucas sobre rituais pagãos nem mentiras sobre seu pai.
É curioso como às vezes uma pessoa consegue o que quer e então se dá conta de que tampouco o desejava tanto.
Ela tinha encontrado os monstros que estava procurando desde os seis anos.
E tinha se apaixonado por um deles.
Grande ironia.
—Acham que estarão bem?
De volta a realidade por causa da aguda e preocupada voz de Jenny, Rachel olhou por cima do ombro ao casal que estava sentada nos assentos traseiros do táxi.
Von levantou o braço para passá-lo pelos ombros de Jenny, piscou um olho e deu uns tapinhas com a mão sobre o joelho.
—Sabem se cuidar sozinhos.
A garota fungou. A ponta de seu nariz estava tão vermelha como uma cereja.
—Meu pai é um imbecil.
Rachel estava de acordo, mas guardou os comentários para si mesma.
—Às vezes, quando as pessoas formam uma turba assim, não pensam. A mentalidade do grupo toma o poder.
Von realizou uma careta.
—É um imbecil inclusive em um grupo de uma pessoa.
Rachel também estava de acordo com isso, mas se sentiu empurrada a olhá-lo com reprovação.
Jenny apertou os lábios formando uma fina linha.
—Não penso voltar para casa. Não me importa o que diga.
—Ninguém vai deixar que volte a te fazer mal, céu. Mas temos que...
Rachel olhou pela traseira do táxi. Na distância, uma fina pluma de fumaça subia em espiral para as nuvens como um arranha-céu fantasma, fazendo esquecer o que ia dizer.
Não. Não podia ser.
Mas, em seu interior, sentia a terrível sensação de que era verdade.
—Temos que o que? — Perguntou Von.
Jenny piscou com esses enormes olhos úmidos, esperando uma resposta.
—Dar a volta — Disse Rachel, com o coração passando de zero a mil em menos de um segundo. Olhou ao condutor do táxi — Temos que dar a volta.
Connor seguiu os dois intrusos pela torre norte como um leopardo que persegue o último antílope durante uma caçada no Seringuete. Já podia sentir a carne de seus pescoços abrindo-se enquanto a arrancava de seus corpos e saboreava seu sangue na língua.
Não sabia quem eram esses homens nem o que queriam, mas os rodeava uma aura de maldade. A magia negra palpitava neles. Quando se deu conta de que se moviam pelos estreitos corredores e escadas de caracol como se conhecessem o lugar, ou como se tivessem estudado os planos, sentiu calafrios a pesar do calor que emitiam as chamas que ardiam no edifício.
O que poderiam estar procurando aí, nos quartos dos meninos?
Fossem quais fossem suas intenções, iam morrer antes de conseguir seu objetivo. Connor ia assegurar se disso.
Por cima de tudo, os Gargouillen protegiam seus filhos.
Apagando os ruídos do caos da rua, o rugido do fogo, os rangidos do velho edifício cedendo à pressão e o calor, Connor escutou os ruídos que o ajudariam a seguir a suas presas: o rangido de uma tabua do chão, o fechamento de uma porta, a tosse afogada em um corredor cheio de fumaça...
No sétimo andar, atrás da porta de uma sala comum onde os meninos maiores se reuniam para estudar ou descansar, acabou o jogo do gato e o rato. Os sons da perseguição se transformaram em sons de luta. Umas vozes jovens, as dos meninos, gritavam em sinal de alarme e logo depois de medo. Os móveis raiavam o chão e caíam. Connor inspirou uma fumaça que deixou os olhos ardendo e os pulmões feridos e entrou na sala decidido a matar.
Em um instante, seus olhos captaram todos os detalhes da sala que ia ser seu campo de batalha. Havia cadeiras atiradas pelo chão como soldados caídos. Um minicomputador pendurava de uma estante seguro só pelo cabo de alimentação. Quatro meninos estavam pegos à parede mais afastada, com os olhos abertos como pratos e as caras pálidas como a lua. Na janela, um dos homens das gabardinas negras sujeitava aos gêmeos ruivos, Jacen e Joshua, um com cada braço.
Um dos homens. O que significava que o outro...
Sentiu o ataque antes de receber o primeiro golpe. O assobio do ar movendo-se por cima de sua cabeça. O peso de uma fina sombra sobre ele. Um lagarto do tamanho de um crocodilo caiu de uma viga do teto. Com as mandíbulas totalmente abertas, a criatura alcançou para garganta de Connor com duas filas de dentes afiados enquanto suas garras se dirigiam para seus olhos.
Gárgulas! Os filhos de puta eram gárgulas!
Agachou-se e rodou muito lento, muito tarde. Uma das unhas afiadas como facas cortou atrás da orelha e abriu a bochecha até o osso do canto da mandíbula até a ponte do nariz. O sangue saltou nos olhos e alagou sua boca. Às cegas, engolindo seu próprio sangue, tentou escapar apoiado nos cotovelos e joelhos, mas a criatura cravou os dentes na cabeça para segurá-lo. Tentou pronunciar as palavras que trariam o Despertar, para lutar em termos iguais, mas a ruptura de ossos e o rasgo de músculos produzidos pelos ataques do monstro impediam a verbalização do cântico que traria sua forma alternativa.
Escorregando em um atoleiro de seu próprio sangue, sendo empurrado para o monstro, para a morte, a surpresa e a incredulidade apagavam a dor do Connor. Apareceu uma letargia.
Sempre tinha pensado que morreria de forma violenta. Por que ia ser esta vida diferente que as oito anteriores?
Mas o que não tinha pensado era morrer nas mãos de um dos de sua espécie.
Ou morrer antes de ter ganho o direito de voltar.
Ainda não tinha tido um filho. Por que demônios tinha esperado tanto? Abrandou-se, escutando Nathan pregar sobre o equívoco de suas vidas. A injustiça de arrancar os bebês dos braços de suas mães. Inclusive embora tinha rejeitado os fanáticos ideais de Nathan, as palavras tinham criado raízes em seu coração.
E agora ia pagar o preço disso.
A raiva levantou o frio que o envolvia como uma manta mortal. O tato voltou para seus dedos. A dor voltou para todas as partes. Enfurecido, lutou por levantar a cabeça para ver o traidor que o tinha mandado a sua morte final.
O lagarto de escamas amarelas estava sobre ele com os lábios jogados para trás como em um sorriso de réptil. Penduravam babas das mandíbulas, que caíam nas feridas abertas de Connor. O fedor do mal caiu sobre ele como moscas em um montão de merda.
Connor engoliu o sangue que tinha na garganta e emitiu um uivo animalesco que saiu do mais profundo dele. Se este ia ser o final de sua alma eterna, não ia ser um final tranquilo.
Morreria lutando.
Esperou enquanto curvava os dedos sobre o frio chão de ladrilhos. Seu atacante rugia e saltava sobre ele, mas continuou esperando. Até que a besta se retirou como um rebatedor que toma impulso e depois se jogou sobre a garganta.
Connor realizou um rápido movimento de pulso e afundou a adaga que levava oculta na manga no suave ventre da besta.
O lagarto caiu a um lado, transformando-se de novo em forma humana e segurando com ambas as mãos o cabo da adaga que sobressaía da tripa.
Depois de empurrar o homem ao chão, Connor tirou a adaga do corpo e rodou até enfrentar o gárgula que se encontrava junto à porta, quem deixou no chão Jacen e Josh e ficou a quatro patas, sendo já mais animal que humano.
—Corram! — Gritou aos surpreendidos meninos. Os garotos saíram correndo para a porta.
Arrastando-se sobre os joelhos com suas últimas forças, e a adaga na mão, Connor se interpôs entre os meninos e o grande urso furioso que carregava sobre eles.
O estômago de Rachel se encolheu como o de um paraquedista sem paraquedas quando desceu do táxi na frente do St. Michael. A rua era um caos. Os insultos da multidão davam a bem-vinda aos meninos e homens que saíam da escola manchados de fuligem. Produzia-se uma troca de acusações. Os veículos que tentavam abrir caminho pela rua bisbilhotavam a animação e os condutores gritavam e realizavam gestos obscenos pelas janelas.
Na distância, começaram para ouvir umas sirenes. Por fim.
Rachel lutou para abrir caminho até chegar às escadas que conduziam à porta principal a cotoveladas e empurrões a torto e direito. Disse a si mesma que devia acalmar-se, que tinha que se tranquilizar, mas o pânico golpeava seu autocontrole como uma grua de demolição que golpeia um edifício condenado. Procurou Nathan com a mente, mas não pôde encontrá-lo na tempestade de energia mental e emoções da multidão.
Onde está, Nathan?
Na porta principal, deteve todos os homens que escapavam da asfixiante fumaça. Olhava os olhos incandescentes e procurava caras cobertas de cinza. Quando por fim reconheceu uma, não era Nathan e sim Teryn, com meia dúzia de meninos chorosos agarrados às pernas de suas calças.
Tossindo, afastou-a do calor que saía pela porta atrás dele. Tinha um olhar selvagem. De pânico.
—Viu Patrick? Não encontro o Patrick.
—Não. Onde está Nathan? — Gritou Rachel.
Teryn esfregou as costas de todos os meninos e arrumou o cabelo enquanto observava a rua com atenção. Rachel soube que procurava um menino perdido.
—Estava na torre norte. Já deveria ter saído.
—Não posso encontrá-lo.
Teryn sacudiu a cabeça.
—Há muita gente. Poderia estar em qualquer parte — E Rachel se perguntou se falava de Patrick ou de Nathan.
Rachel elevou a cabeça para a construção norte de sete andares. E se Nathan estava lá em cima? E se não tinha conseguido sair da torre?
Engolindo uma nova onda de medo, afastou-se de Teryn e rodeou com dificuldades a escola. As janelas do andar de baixo estavam escuras, manchadas de fumaça negra. Nos andares superiores, as chamas lambiam as janelas.
Tinha que ter saído.
Todo mundo tinha que ter saído.
Mas não era assim.
Rachel recuou como se a tivessem esbofeteado quando um par de diminutas mãos se apoiaram no vidro de uma janela do sétimo andar. As mãozinhas esmurravam a janela, depois lutaram com os fechos e, ao final, abriram a janela.
Patrick apareceu e tentou aspirar ar entre soluços, enquanto a fumaça rodeava a cabecinha como um opaco halo.
Deus, não, Deus, não. Patrick. Já tinha morrido em um incêndio antes, e conhecia esse horror. Conhecia a dor. Estava-o revivendo.
As lágrimas queimavam na garganta. Um terrível temor se apoderou dela, sacudiu-a e fez que saísse disparada para o edifício em chamas em um ataque de angústia ousada.
Meu Deus, não era mais que um menino, com inteligentes olhos azuis e um redemoinho no cabelo.
Um garotinho que podia transformar-se em dragão quando o desejava.
Um garotinho que tinha voado pela primeira vez diante seus olhos.
O que importava o que era? O que seria ao ficar maior?
Não era mais que um menino.
Abriu a porta batendo com um ombro e entrou dando tombos na cozinha até chegar à pia. Abriu a torneira. Por sorte, ainda havia água corrente, embora a água estava ardendo.
Encontrou dois panos de cozinha e os molhou em água. Envolveu um ao redor da cabeça como um turbante. Colocou o outro sobre a boca e começou a subir as escadas.
A intensidade do calor nos dois primeiros lances de escada a assustou. Podia sentir como formavam bolhas na sua pele. Custava respirar, inclusive através do pano molhado.
Os seguintes três andares foram piores. Havia fogo, que ardia nas paredes e, às vezes, sob seus pés. Teve que se deter duas vezes e tirar o pano da cabeça para apagar as chamas das escadas antes de poder continuar.
O mundo começou a dar voltas quando a fumaça começou a deixá-la tonta. Não podia ver, assim que abriu caminho a provas pelas paredes ardentes. Secaram os lábios e gretaram pelo calor. Tentou umedecê-los com a língua, mas tinha a boca igualmente seca.
Quando chegou ao sétimo andar, não estava seguro de onde estava. Não estava segura se importava. Quase não podia mover-se. Quase não podia pensar. O fogo tinha alcançado os pulmões. Não podia respirar. Não podia ver.
Caiu em um corredor escuro, não pôde levantar-se, assim seguiu engatinhando. O fogo estava tão quente que queimava as mãos. Perdeu um sapato, deu meia volta e voltou dois passos atrás antes de dar-se conta de que não importava.
Estava perdida. Perdida e condenada. E tinha falhado com Patrick. E com Nathan.
O teto rangeu sobre ela. Caíram brasas sobre o pescoço, os ombros, incendiaram as pontas de seu cabelo. Bateu na cabeça e se pegou à parede, com os joelhos pegos ao peito e os braços protegendo-a, derrotada.
Então, ouviu um gritinho, fraco e assustado.
Levantou a cabeça.
—Patrick?
Não obteve resposta, mas ela girou em direção ao som e começou a engatinhar de novo.
—Patrick, pode me ouvir? Já vou!
Encontrou-o na sala situada no canto do edifício, escondido sob a janela em posição fetal, movendo-se para frente e para trás e choramingando.
—Ayayayayayay... !
O assoalho estava tão quente que o acabamento estava cortando e dobrando como aparas. As chamas se elevavam pelas paredes como os rios do inferno.
Com rapidez, tomou Patrick nos braços e o envolveu com os trapos molhados o melhor que pôde. Inclinou-se sobre ele, apareceu à janela pedindo ajuda, mas a fumaça era tão densa que não podia ver a calçada. Não havia forma de que a vissem. Nem de que a ouvissem, devido aos rugidos do incêndio.
Ao menos, não podiam ouvir sua voz.
Mas podiam ouvir a Chamada.
Ela a tinha ouvido quando Von tinha pedido ajuda. Nathan disse que ele a tinha ouvido chamá-lo no metro, embora ela não era consciente disso.
De verdade podia mandar um assobio ultrassônico que fizesse Nathan saber que o necessitava?
Se ele tinha razão sobre seu pai, sobre seus poderes...
Não. Seu pai não era um monstro, não importava o que dissesse Nathan. Ela não era um deles.
Patrick estremeceu, fechou os olhos com força e se agarrou a sua camisa. Ela o embalou, enquanto acariciava o cabelo. Então, tudo foi muito para ela. O calor do fogo, o aroma da fumaça, a sensação de um menino apavorado em seus braços... Tudo era muito familiar. Foi catapultada de volta a sua vida na casa de Nova Iorque.
O sótão sob as escadas estava escuro. Havia gente fora, depois na casa, gritando. Mamãe estava assustada. Papai lutava contra um homem mau, e alguém atirou uns foguetes.
Não, não eram foguetes, descobriu sua mente adulta. Uma pistola. Alguém disparou uma pistola. Seu pai não tinha armas em casa.
Umas sombras se deslizaram pela parede. A sombra de mamãe caiu e a de papai se equilibrou sobre outro homem. Rodaram juntos e depois apareceu o monstro.
Rachel tentou fechar o olho de sua mente. Não podia continuar olhando. Não queria. Nathan estava equivocado, tinha que estar equivocado.
Patrick tentou respirar em seus braços. Deixou cair os braços. Saiu um gemido de seu peito. Rachel o sacudiu até que abriu os olhos.
Ainda vivia. Ainda estava vivo.
Mas não por muito tempo.
As lágrimas ardiam na garganta. Era tão pequeno. Tão inocente. Deus santo tinha que salvá-lo. Tinha que tentá-lo sem importar quão inúteis acabassem sendo seus esforços.
Apertando o Patrick contra seu peito, Rachel fechou os olhos, mordeu o lábio inferior e concentrou sua mente sem formar, todas as fibras de seu ser, na Chamada que faria Nathan saber que o necessitava.
E enfrentou a uma verdade sobre si mesma que não estava segura de poder ser capaz de suportar quando tudo tivesse acabado.
Assumindo que sobrevivesse.
Capítulo 28
Cada degrau das escadas da torre norte era como um passo mais para um forno. Agachado para proteger a cara, Nathan abria caminho através do calor como se fosse uma barreira física. Podia ouvir o fogo nas paredes, subindo, devorando, procurando uma via de escapamento, de ar, do que já ficava pouco nas escadas.
Os meninos maiores que dormiam nesta parte da escola passaram voando por seu lado, descendo as escadas de três em três, enquanto ele tentava ir para cima, entrando no inferno.
—Saiam! — Gritou a todos, um por um — Saiam fora.
Dois, quatro, seis meninos, contou. Deveria haver oito. Os gêmeos, dois meninos, um presente tão escasso para sua gente. Não tinha visto nem o Jacen nem o Josh. Tinham encontrado outra forma de sair ou continuavam lá encima, apanhados?
Lutando por conseguir suficiente oxigênio da fumaça para subir outro lance de escadas, agarrou-se aos passamanes e as arrumou para subir até o sétimo andar.
Quando alcançou o pomo da saída das escadas, a porta se abriu de repente. Josh e Jacen passaram voando, com um olhar selvagem e os pés arranhando o chão enquanto trocavam de forma humana a falcão.
Depois deles, um urso pardo do tamanho de um caminhão se elevava sobre as patas traseiras e rugia, abrindo as presas e deixando à vista umas enormes presas amareladas. Arranhava o ar com intenções mortais.
—Vão! — Gritou aos gêmeos — Voem!
Os teria seguido, mas suas asas eram muito grandes para as estreitas escadas, além de que não havia forma de correr mais que o urso.
O urso investiu para ele. Nathan se agachou para esquivar o golpe, rodou e se levantou do outro lado da besta, mas a pontada em suas costas disse que não se livrou. Sangue e suor escorregaram pelo ombro.
Tinha tido sorte. Ao menos, podia usar o braço. Poderia ter sido pior.
Olhando através da porta aberta situada a sua esquerda, viu algo muito pior. No chão dentro da sala, Connor estava caído imóvel junto a um enorme atoleiro de sangue.
Nathan se voltou para a besta, preparando-se para a luta.
—Filho de puta. Quem é?
A criatura ficou de quatro patas e avançou. Nathan trocou imediatamente e confrontou o ataque em forma de grifo, bicando os olhos do urso e rasgando pele e carne com as garras de leão.
Lutaram e rodaram. Os grunhidos e grasnidos se misturavam com sangue e babas. As brasas voaram pelo ar quando o teto caiu sobre o chão junto a eles. A fumaça invadia tudo, afogando a ambas as bestas.
O urso arrumou para morder a asa direita de Nathan, afundou seus dentes atravessando as penas até chegar ao osso, e então sacudiu sua enorme cabeça. A carne se rasgou e os tendões se romperam.
Nathan arqueou as costas de maneira involuntária. Seus músculos se endureceram espasmodicamente. Por um instante, a dor ameaçou tirar sua forma de gárgula e emitiu um grito com voz humana.
O urso o atirou no chão de barriga para cima e se lançou à sua garganta. Nathan golpeou com a asa sã a cara do monstro para proteger-se, mas sabia que não seria suficiente. Nem de longe.
Interpôs suas poderosas garras entre ele e o urso, e tentou afastá-lo de um chute. Quando isso não funcionou, estendeu as garras, procurou a carne suave entre as patas da criatura e quando a encontrou, rasgou-a com toda a força que pôde.
O urso pardo recuou. Já não era um urso, e sim um homem vestido de negro e com uma gabardina negra aberta em cima.
O sangue corria entre os dedos quando colocou a mão no lugar do ataque. Cambaleou para trás e aterrissou de traseiro.
Nathan o seguiu e, sem hesitar um segundo, cercou o pescoço do homem com os esporões e arrancou a traqueia de um puxão.
Limpando o sangue das mãos nos jeans, ajoelhou-se junto a Connor. Surpreendentemente, os olhos azuis de Connor se abriram, olharam-no, desfocados, mas com conhecimento.
—Matei um. — Murmurou, assinalando quase imperceptivelmente para o cadáver caído do outro lado da sala.
—Eu o outro. — Disse Nathan.
—E os meninos?
—Saíram todos. Graças a você.
Connor sorriu com uns lábios inchados. Seu rosto era um atoleiro de sangue, e tinha uma ferida na bochecha que chegava até o osso. Sua perna esquerda estava dobrada debaixo dele e a carne de sua panturrilha pendurava em tiras. Mas o que mais preocupou a Nathan foi a ferida do abdômen.
Connor tinha os braços cruzados sobre o estômago como se fossem a única coisa que o mantinha inteiro. O sangue corria pelos antebraços, caindo sobre o chão formando um atoleiro ao redor de sua cintura.
O urso poderia tê-lo matado com rapidez, com piedade. Em vez disso, o bode tinha aberto as vísceras e tinha o deixado para morrer lentamente.
Só por isso, Nathan quis voltar para rachar o pescoço dele. De novo.
Uma tosse que não acabava começou a afetar ao peito de Nathan. A sala se desmoronava a seu redor, as travessas se dobravam e os parafusos saltavam devido ao calor.
—Vá — Conseguiu dizer Connor — Antes que seja muito tarde.
Levantou um pouco o Connor pelos ombros, desejando fazê-lo com delicadeza e sabendo que não tinha tempo para essas coisas.
Connor deu um tapinha com uma mão sangrenta na cintura de Nathan.
—Não. O deixarei. Não há tempo. Tem que andar depressa.
Nathan olhou com os olhos entreabertos aos incandescentes olhos de Connor. Eles dois nunca tinham sido amigos. Estavam em lados opostos de muitas ideias. Connor tinha sido um fator chave na facção que o tinha excomungado. Havia dias nos que o tinha odiado por isso.
Mas não o bastante para deixá-lo morrer.
—Cale-se. — Disse e utilizou seu braço livre para jogar Connor sobre o ombro.
Connor grunhiu de dor. Seu sangue empapou a camisa de Nathan, escorregou por seu peito e costas em longos rios. Fazendo caso omisso, Nathan saiu correndo da sala, desceu os degraus às cegas de três em três, segurando-se as pilastras para balançar-se neles em cada giro da escada.
Os sexto andar e o quinto estavam cheios de fumaça. Aguentou a respiração e se abriu caminho a provas através da escuridão. O fogo formava um túnel de chamas nos terceiro e quarto andares. Utilizou sua mão livre para proteger os olhos, gritou ao Connor que cobrisse a cara e cruzou o túnel de chamas.
Quando chegou às carbonizadas escadas do segundo andar, pensou que tudo tinha acabado.
Até que o ouviu. O gemido longínquo e agudo que chegava em forma de assobio.
Rachel!
Utilizando toda a força que pôde, saiu correndo pela porta principal da escola, deixou o Connor nos braços de Teryn e correu em busca da origem do som.
Em busca de um lugar fora da vista do olho humano para variar.
Rachel se escondeu contra a parede debaixo da janela com a cabeça de Patrick sob seu queixo e o corpo curvado para protegê-lo.
Os diminutos ombros do menino tremeram.
—Não quero morrer — Chorava — Por favor, não quero me queimar outra vez!
O velho edifício rangia e ressoava à medida que o fogo o consumia, pedaço a pedaço.
Rachel recuou no tempo com a mente, até transformar-se na garotinha escondida debaixo da escada. “Agora me recostarei para dormir”. Movia os lábios em silêncio junto ao cabelo do garotinho, só que não era Levi. Não era seu irmão. Era Patrick, e ela já não era uma assustada e indefesa menina. Fazia muito tempo que não era.
Mas o pesadelo vinha a ela e ela estava perdida. Abria a porta do sótão e cheirava a fumaça e via o resplendor da luz de um fogo. Via sombras que se deslizavam pela parede. Homens lutando. Vozes iradas.
Sua mãe, gritando.
Disparos.
Depois, o horrendo chiado. A sombra se fez maior, depois se aproximou. Podia cheirar seu medo. Podia saborear o pânico em sua garganta. O ar vibrava com o pesado bater de asas de umas asas gigantes e o viu. O monstro ao que tinha temido durante vinte anos.
—Rachel?
Abriu os olhos e viu Nathan agachado junto a ela. Nathan ficou em pé, levantou-a pelos cotovelos e tomou o desacordado Patrick de seus braços.
As lágrimas caíam pelas bochechas dela.
—Era ele. Olhei pela porta do sótão da escada e vi o monstro. Tinha umas enormes asas e garras amarelas e um bico como de obsidiana negra, mas quando olhei nos olhos, soube que era ele. O monstro era meu pai.
Segurando Patrick com um braço, apoiou a palma da outra mão na parte de trás da cabeça de Rachel e a atraiu para ele.
—Sei.
Durante um instante, o consolo de sua cercania, sua compreensão, fizeram desaparecer a fumaça, o calor e o faminto fogo de sua mente, mas depois o chão cedeu. As paredes se dobraram e começaram a rachar-se. Começaram a cair pó e entulhos do teto.
O dano estrutural era muito grave. O velho edifício já não podia aguentar mais. Suas vísceras estavam desmoronando e a fachada estava caindo, deixando um esqueleto nu e descascado exposto.
Nathan a afastou.
—Temos que sair daqui.
Rachel olhou por cima do ombro de Nathan e viu o inferno que estava acostumado a ser o corredor.
—Como? Não há nenhuma saída possível.
Tinha chegado muito tarde. Por fim, tinha aceito a verdade, mas era muito tarde. Para todos eles.
Nathan sacudiu a cabeça.
—Sairemos voando, tal como entrei. Eu posso levar Patrick, mas você terá que se segurar a meu lombo.
Queria sair voando? Da janela do sétimo andar?
O coração de Rachel ferveu no peito como uma gota de azeite em uma frigideira quente.
—Há muitas pessoas. Nos verão.
—Não com esta fumaça.
Rachel piscou e, quando abriu os olhos, Nathan já tinha trocado. Estava de pé junto à janela aberta e a ajudou a subir a seu lombo com uma das asas.
Então, foi quando Rachel viu o sangue. As feridas abertas em um de seus ombros. A dentada onde a asa se unia ao lombo.
—Está ferido! — Rachel aproximou a mão, mas não se atreveu a tocar as feridas por medo de causar mais dano.
O teto do outro extremo da sala desmoronou em uma ducha de brasas e cinzas.
Nathan grasnou e a segurou com mais força com a asa boa.
Engolindo seco, Rachel se apoiou no lombo, agarrou-se com as pernas debaixo das asas, com cuidado de evitar o ponto da ferida e rodeou o pescoço com os braços.
Suave como a seda flutuando com a cálida brisa do verão, Nathan saiu voando pela janela.
Rachel se agarrou às penas da ave e fechou os olhos com força, mas, depois de uns instantes, se deu conta de que não caíam. Estavam realizando um suave voo. O ar se respirava melhor aí acima. O calor não era tão intenso.
Atreveu-se a abrir um olho. Fiel a sua palavra, a nuvem de fumaça situada debaixo deles obscurecia a vista da rua. Mas a cidade que os rodeava resplandecia como o povoado de uma bola de cristal nevada. As ruas e edifícios e a água pareciam tranquilos daí acima. Limpos e tranquilos.
E a sensação de calma não chegava só do exterior, tampouco. Uma sensação de segurança se estendia dentro dela, relaxando-a. Sorriu maravilhada diante o movimento e contrações dos poderosos músculos de leão que sentia debaixo dela, o forte batimento de seu coração, o coração de Nathan, entre suas coxas.
Realizou uma breve parada no telhado para abrir as portas de umas jaulas de pássaros e depois voltou a levantar o voo.
Rachel esteve a ponto de rir. Que espécie de monstro se lembraria em meio de todo o caos de se deter e liberar um grupo de indefesas pombas antes que pegassem fogo?
Nenhum, isso o fazia alguém bondoso.
Era um ato de pura bondade humana.
Com um suave suspiro, afrouxou os dedos, inclinou-se para frente e esfregou a bochecha na luxuosa pelagem que rodeava o pescoço de Nathan. O vento que sentia no rosto era frio e limpo e sorriu.
Depois de todo esse tempo, todos esses anos de busca, por fim tinha encontrado o que tinha estado procurando.
A verdade.
Capítulo 29
Tiveram que passar seis dias para que os gárgulas do St. Michael se recuperassem o suficiente e se sentissem o bastante seguros para celebrar um Conselho em seu lar temporário, uma velha hospedaria que tinham alugado. Inclusive agora, estavam ausentes quatro membros da congregação, porque se encarregavam de fazer guarda enquanto os meninos dormiam. Quatro mais tinham partido em missões secretas de Teryn.
Os presentes estavam plantados com as faces sombrias diante do semicírculo de anciões frente a eles. Os luxuosos assentos tinham desaparecido, igual às coloridas e suntuosas túnicas e os capuzes de veludo, tudo isso vítima do fogo. Os anciões estavam de pé diante toda a congregação com simples calças e jérseis, jaquetas e camisas com as mangas arregaçadas até os cotovelos.
Nathan achou que nunca tinha assistido a um conselho mais honesto. Como fez da última vez, permaneceu de pé no fundo, ali, mas não ali aos olhos de seus irmãos. Que tivessem permitido assistir era já um milagre. Mostrava o grande golpe que tinha recebido a congregação com todo o acontecido.
Agora que estava ali, quase desejou não ter ido. Era difícil ser parte da congregação, mas também não sê-lo. Sentiu-se como um viajante que realizou uma comprida viagem de volta a casa e o obrigam a permanecer fora olhando como seus seres queridos se sentavam para jantar em família.
De sua posição no meio do semicírculo dos anciões, Teryn repassou os rostos dos reunidos diante dele.
—Uma grande sombra paira sobre St. Michael. Acredito que os dois que vieram não estão sozinhos em suas intenções.
Não disse como sabia, e por sorte ninguém perguntou. Nathan duvidava de que Teryn gostasse de explicar a fonte de seu conhecimento.
Teryn levantou o queixo, um pequeno desafio ao mal ao que enfrentavam.
—Um perigo como o que nunca conhecemos se abate sobre nós, já que eles não são meros ladrões que tentavam roubar a nossos meninos, não eram humanos levados pela avareza nem o orgulho nem a depravação. São Gargouillen.
— Não — Espetou Eric Stevens através de uma descuidada barba loira — Os Gargouillen não matam os de sua espécie. Não roubam os meninos dos outros. Estas criaturas são uma abominação. Uma praga de nossa raça!
Outros assentiram e murmuraram diferentes coisas. Teryn os silenciou levantando a mão.
— Estes homens estão dirigidos por um poder malvado, que não posso explicar. Demonstraram que podem usar suas habilidades para voltar os nossos amigos e vizinhos contra nós. Para influir nas mentes humanas e fazer que cometam atos que não acredito que fossem capazes de perpetrar de outra forma.
Lovell e alguns de seus amigos tinham sido detidos. Todos afirmavam não recordar ter iniciado o fogo.
A senhora Lovell tinha deixado seu marido, levando sua filha com ela. Ela e Jenny viviam em uma casa de acolhida para mulheres até encontrar um lugar próprio.
—Mandei alguns de nossos irmãos a congregações de todo o país para descobrir o que sabem desses homens — Prosseguiu Teryn — Para saber de onde vêm e qual é sua intenção.
—Sabemos o que querem. Querem a nossos meninos! — Gritou um dos pressente.
— Mas não sabemos por que. Até que saibamos, não sabemos como detê-los.
— Mataremos a esses bodes, assim os pararemos. — Disse Connor de sua cadeira de rodas situada na primeira fila. Recém-saído do hospital, seu rosto (o que Nathan podia ver) era apagado e escuro, mas sua voz era firme. Outros se uniram a ele.
Teryn esperou que se apagassem os murmúrios.
— Devemos estar muito atentos para manter a salvo a nossos meninos, isso sem dúvida. Necessitaremos todos os olhos, todos os corpos. O que me leva a seguinte ordem do dia desta noite. Uma petição aos anciões. — Assentiu respeitosamente a sua direita, depois a sua esquerda, e depois levantou o queixo.
—Uma petição para reintegrar Nathan Cross na congregação.
O bater de asas de um colibri teria sido como o motor de um avião no silêncio da sala. Um momento que pareceu uma eternidade.
— Arrependeu-se de sua recusa a aceitar nossas normas? — Perguntou por fim o ancião Price, com suas duas grossas sobrancelhas brancas unidas em uma só linha que cruzava sua testa.
Teryn se voltou para o ancião situado no extremo direito.
— Emparelhou-se.
O grupo voltou a murmurar. Um chute de adrenalina pôs a trabalhar um martelo no peito de Nathan e custou um momento dar-se conta de que era seu coração que tentava abrir caminho entre as costelas.
— Deixe Rachel fora disto — Disse. Abriu caminho até situar-se diante de todos. A merda com as regras. Não importava se o viam ou não.
Mas estava claro que iam escutá-lo.
Situado em frente a todos, enfrentou à congregação.
—Eu não pedi nada. Não o quero.
—Está a mulher disposta a te dar um filho? — Perguntou o ancião Price como se Nathan não estivesse ali.
—Eu disse que a deixem fora disto. Ela... — Nathan começou a se voltar enquanto falava, mas um movimento no canto da sala chamou sua atenção. Uma figura embelezada com uma capa abaixou o capuz e o coração de Nathan deu um tombo.
— Rachel.
Ela piscou os olhos, um precioso olho esmeralda enquanto avançava com serenidade até situar-se diante de todo o grupo de homens. Nunca na história dos Gargouillen, pelo que Nathan sabia, tinha assistido uma mulher ao conselho.
— A mulher. — Olhou com dureza o ancião Price quando chegou à frente — Está disposta a dar todos os filhos e filhas que ele deseje.
Sua voz se suavizou quando se deteve na frente diante de Nathan e o olhou nos olhos.
—Desde que os criem juntos.
Alguns homens emitiram exclamações. Outros franziram o cenho ou encolheram os ombros e se coçaram a cabeça.
—Isto é um ultraje — As bochechas de Price ficaram vermelhas como um tomate — É inaudito!
—Não é inaudito. — Respondeu Rachel, mas não deixou de olhar para Nathan — Há um precedente. Meu pai era...
Ficou sem ar. As palavras ficaram engasgadas na sua garganta e Nathan enviou um carinhoso ânimo. Uma carícia de segurança. De força.
— Meu pai era um de vocês. Era um dos Antigos, os gárgulas originais de Rouen.
Os presentes giraram suas cabeças para todos lados. Os homens sussurraram coisas uns aos outros.
—É certo. — Confirmou Teryn — Falei com o Wizenot da congregação de Damien Paré, que era o pai biológico de Rachel, em pessoa. Ele confirmou a história. Damien rompeu com a congregação. O Wizenot daquele tempo não sabia onde se foi. Mas sabia que tinha tido um filho antes de partir. Uma menina.
A sala murmurou.
Também tinha um filho, pensou Nathan. Rachel tinha descoberto com rapidez que isso significava que seu pai poderia ter se reencarnado. Mas como nasciam tão poucos meninos gárgulas, não era algo seguro. Não havia suficientes corpos para todas as almas que esperavam. Mas Nathan estava seguro de que ela quereria averiguá-lo. Quereria buscá-lo.
—Casou-se com minha mãe e ficou com ela inclusive depois de nascer eu —Prosseguiu Rachel — Inclusive depois de nascer meu irmão.
—Tem um irmão — Sussurrou um dos homens — O filho de um antigo.
O homem situado junto a ele assentiu.
A Rachel tremeram os lábios. Nathan se aproximou dela, mas indicou que permanecesse quieto com o olhar.
—Segundo o que pudemos descobrir através de velhos recortes de jornais, vivia em paz com sua família até que um dia viu como o filho do vizinho caía através do gelo em um lago. Salvou o menino, mas, por desgraça, alguns vizinhos presenciaram o Despertar. Mataram-no porque tinham medo do que era.
O zumbido de murmúrios na sala aumentou de volume.
—Pelo que eu sou. — Acabou, levantando o queixo — Levo o sangue de um dos antigos. — Disse — E quero corrigir a petição. — Percorreu com o olhar a sala — Solicito ao Conselho que reintegrem Nathan Cross e a sua companheira, Rachel Paré, na congregação.
—A uma mulher? — Perguntou alguém.
—Isso é uma blasfêmia. — Disse Price — É indecente!
Connor elevou a vista de sua cadeira de rodas e Nathan não soube se a expressão desse apagado rosto era uma careta ou um sorriso. Possivelmente havia algo de ambas.
—Solicito que se vote a petição. — Disse.
—Eu apoio esta petição.
Nathan girou a cabeça e Ethan Keller, o pai de Rhys, o avô de Patrick, assentiu. Ethan não tinha estado no dia do incêndio e, pelo que Nathan sabia, não conhecia Rachel, mas estava seguro de que tinham contado o que essa mulher tinha feito por seu neto.
Teryn elevou ambas as mãos para sossegar a sala.
—Solicitou-se o voto e se apoiou.
Nathan olhou para Rachel.
—Não tem por que fazê-lo.
Desta vez, estava bastante seguro de que o que via no rosto de Connor era um sorriso.
—Calado Nathan.
—Todos a favor? — Perguntou Teryn.
Connor e Ethan levantaram as mãos, mas o resto permaneceram imóveis. Por tradição, Teryn não podia votar se não era para romper um empate.
Passaram os segundos, mas Rachel permaneceu quieta com a cabeça bem alta e sem demonstrar por nada a ansiedade que sentia devorando-a, até que, um a um, todos os homens da sala, inclusive o ancião Price, levantaram as mãos.
De pé diante da enorme janela da sala de estar às escuras de seu apartamento, Nathan não podia pensar em quão incrível tinha sido essa noite. No incrível que essa mulher, Rachel Vandermere, agora Rachel Paré, tinha resultado ser.
Não faz muito tempo, tinha estado de pé nesse ponto exato com os olhos fixos nas tranquilas e negras águas do lago Michigan. Tinha desejado a paz de um lugar assim. A escuridão eterna. Agora, quando olhava pela janela, seus olhos não se sentiam atraídos para a escuridão e sim para a luz. A vida. Para as janelas, algumas acesas e outras apagadas, dos edifícios de escritórios próximos. Para as linhas vermelhas e brancas dos faróis dianteiros e traseiros dos carros que circulavam pelo Lake Shore Drive. O néon que piscava convidando aos pedestres a entrar em lojas e bares e hotéis.
Viu um futuro para ele, e tudo isso graças a um cruzamento de olhares em uma galeria de arte repleta de gente.
Um olhar de interesse feminino. De curiosidade.
Um olhar não diferente do que mostrava agora no rosto enquanto saía da cama situada atrás dele e olhava seu reflexo na janela com as bochechas ainda vermelhas e o cabelo despenteado por ter estado fazendo amor.
—Olá — Aproximou-se até ele descalça, amarando o penhoar velho de Nathan e rodeando-o com os braços. Apoiou as palmas no peito de Nathan e a bochecha em suas costas — O que faz aqui?
Ele agarrou as mãos de Rachel e se voltou para ela.
—Só pensava.
—Em coisas boas ou más?
—Sobre tudo nas boas.
—Sobre tudo?
Sorrindo, acariciou com a ponta dos dedos os antebraços dela.
—Fizeram-me uma armadilha hoje. Teryn e você.
Ela apoiou o queixo no ombro dele.
—O pegamos.
—Poderia ter me dito o que planejava solicitar diante do Conselho. Ou o que fez.
—Não está mal que o surpreendam de vez em quando. — Ela se abraçou a ele com mais força — Tivemos um longo bate-papo. Disse-me o que tinha acontecido entre você e sua gente, como tinham te exilado.
—Disse que cometeu um engano. Um grande engano. — Rachel sorriu, e ele sentiu a curva de seus lábios sobre sua omoplata recém curada e em seu coração — Eu gosto dele. Me lembra você.
—Deveria. É meu filho.
Rachel levantou a cabeça e olhou intrigada o reflexo de Nathan da janela.
—Em realidade, é meu saytreán. O filho de minha alma, ao que tive em outra vida.
—O filho da Marabella. — Disse ela e ele assentiu.
—Acontece de vez em quando. Um de nós tem um filho, depois morre e se reencarna enquanto o filho ainda continua vivo. Nossas almas se reconhecem. O filho se chama seu saytreán, filho de sua alma; o pai é o paytreán do filho, o pai de sua alma.
—Não te ocorreu me contar isso antes? — Perguntou incrédula.
—Não está mal que a surpreendam de vez em quando.
Rachel riu, rodeando a cintura com os braços.
Nathan sorriu e seu olhar se sentiu atraído para outra luz do reflexo, o brilho do diamante montado em ouro branco, seu anel, que Rachel usava no dedo anelar.
Sorriu mais ainda.
—Morro por ver sua cara quando pedir que te chame mamãe.
Rachel tinha feito um presente incrível esse dia, comprometendo sua vida e seu amor a ele. O devolvendo a sua gente.
Nathan se perguntava se ela entendia realmente o que custaria a ela.
O que custaria aos dois.
Ele estava disposto a pagar o preço, o preço que fosse, para tê-la.
Um dia, morreriam. Só que ele renasceria. Viveria outra vida e outra, sentindo saudades delas. Amando-a.
Mas que demônios. Por uma vida com ela, um dia com ela, valeria a pena suportar a tortura de viver as seguintes mil vidas sem ela. Além disso, ela era uma dos Gargouillen. A filha de um dos antigos. Era capaz de emitir a Chamada. Quem sabia o que outros poderes poderia ter.
Talvez se reencarnaria.
Se fosse assim, ele a encontraria. Sem importar quanto demorasse, ele encontraria sua alma.
Pagaria o preço de boa vontade, mas tinha que saber que ela também estava disposta a pagar o seu.
Deu meia volta, beijou-a saboreando a doçura do momento e depois se separou enquanto ainda era capaz de fazê-lo.
—Teryn acredita que se aproximam tempos escuros. Piores que os que tivemos até agora.
—Ele me disse isso. Mas não posso me afastar de você nem de sua gente agora. Me disse que me ajudaria a encontrar o Levi.
—O adotaram enquanto você estava no orfanato?
Rachel assentiu.
—Tentei encontrá-lo mais adiante, uma vez que fui independente, mas o tribunal de Jackson County se queimou uns anos antes. Arderam todos os registros. Procurei em todas as webs sobre adotados que encontrei em Internet, mas não obtive resposta.
—Deve haver alguém que recorde de algo.
—Custou-me anos, mas ao final encontrei uma enfermeira que me deu o nome de um médico que guardava arquivos velhos de pacientes. Estava segura de que voltaria a ver meu irmão, mas quando o investigador a quem contratei encontrou a família de adoção, soube que Levi escapou de casa antes deles o acharem. Não tinham nem ideia de onde estava. Tinha quinze anos quando fugiu de casa. —Segurou-se com força o penhoar que cobria o corpo como se houvesse sentido um repentino frio — Deus, não me surpreende que escapasse. Como deveria ser a vida de meu irmão, sendo tão diferente, mas sem entender como ou por que nem sequer o que era?
—O encontraremos.
—Sei que fará tudo o que possa. E eu farei tudo o que possa para te ajudar no que seja que está a ponto de chegar. A todos vocês. Agora são minha família.
Nathan respirou fundo, desejando que fosse tão fácil.
—Nem todo mundo da congregação vai aceitá-la. Demônios, a metade deles ainda não me aceitam. Terá que aceitar nossos... Costumes.
—Estou preparada.
—De verdade? Estará preparada para a primeira vez que um dos irmãos chegue com as mãos cobertas de sangue e você pergunte a quem matou? Estará preparada para quando alguém chegue com um bebê e você se pergunte onde está a mãe?
—Está tentando me assustar de novo?
—Estou te dizendo que se precisar partir daqui, ir viver em outro lugar, só nós dois, estou preparado.
Nathan não queria deixar a sua gente agora que os tinha recuperado, mas o faria. Enquanto pudesse ter a ela, não necessitava a ninguém mais.
Rachel o pensou um instante, depois sacudiu a cabeça.
—Meu pai já tentou e não funcionou. Necessitamos da congregação, Nathan. Somos mais fortes com eles.
—Mais fortes, mas não necessariamente melhores.
—Não posso dizer que esteja de acordo com tudo os costumes de sua gente. Não estou segura de como enfrentarei a cada situação, mas espero ser uma influência positiva e os fazer ver que podem escolher.
—Não puderam escolher ser o que são.
—Mas podem escolher como viver. Você, mais que ninguém, sabe. Von escolheu. Entrou em um programa de alcoólicos e já está falando de pedir ao Conselho que aceitem Jenny na congregação também. — Abraçou-o com força — Os tempos mudam. Os Gargouillen podem mudar.
—Mas isso não acontecerá do dia para noite.
—Não, mas mudaram.
—Espero que tenha razão.
—É possível que o passado de nossa gente esteja gravado em pedra, Nathan. — Rachel acariciou o rosto com a palma da mão com uma expressão tão honesta e tão cheia de fé que conseguiu que ele acreditasse — Mas não nosso futuro.
[1] Espécie de proteção de vidro onde ficam expostas as obras de artes e jóias.
[2] Líder
[3] Policial
[4] Escoteiros
Vickie Taylor
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