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Uma mulher independente é uma mulher desprotegida. Audrianna nunca compreendera tão bem a primeira lição que a sua prima lhe ensinara como naquele dia. Uma mulher independente era também uma mulher de respeitabilidade duvidosa.
A sua entrada no Duas Espadas, uma estalagem à saída de Brighton, atraiu mais atenções do que qualquer mulher decente desejaria. Sentiu-se examinada da cabeça aos pés. Vários homens observaram o seu percurso solitário até o outro lado da sala de estar com descarado interesse; o tipo de homens aos quais ela nunca se vira exposta.
As certezas patentes naqueles olhares deixaram-na ainda mais apreensiva. Embarcara naquela viagem cheia de justa determinação. O brilho do sol e a temperatura inusitadamente amena para o final de janeiro lhe pareceram a forma de a Providência favorecer a sua grande missão.
A Providência revelara-se caprichosa. Uma hora depois de sair de Londres surgira o vento, a chuva e o frio crescente, fazendo-a se arrepender amargamente de ter escolhido um lugar no tejadilho da carruagem. Agora estava encharcada pelas horas que passara na chuva gelada, e, no mínimo, um tanto irritada.
Recuperou a compostura e procurou o estalajadeiro. Pediu um quarto para passar a noite. Ele observou-a longa e duramente, depois olhou ao redor, à procura do homem que a tinha perdido.
– O seu marido ainda está no estábulo?
– Não, estou só.
A pele branca e fina do rosto envelhecido do homem enrugou-se numa expressão desconfiada. A boca contorceu-se de cinco maneiras diferentes enquanto procedia com um novo exame.
– Tenho um quarto pequeno com que pode ficar, mas dá para o pátio do estábulo.
O seu tom relutante deixava claro que a alojava a contragosto.
Uma mulher independente também fica com o pior quarto da estalagem, ao que parecia.
– Serve, se estiver seco e quente.
– Venha comigo, então.
O estalajadeiro levou-a para um quarto no segundo andar, ao fundo. Avivou o fogo, mas não muito. Ela reparou que a quantidade de combustível não era o suficiente para aquecer o quarto muito mais e durar a noite toda.
– Vou precisar que me adiante a primeira noite.
Audrianna não se mostrou insultada. Enfiou a mão na bolsa e tirou três xelins. Seria mais do que suficiente para uma noite, mas ela pôs tudo na mão do homem.
– Se chegar alguém fazendo perguntas sobre Mr. Kelmsley, envie-a para cá mas não diga nada sobre a minha presença nem sobre mim.
O pedido fez o homem franzir ainda mais a testa, mas as moedas que tinha na mão mantiveram-no em silêncio. Foi embora com os xelins e ela presumiu que tinham chegado a um acordo. Só esperava que os frutos da sua missão compensassem a facada na sua reputação.
Reparou no dinheiro que restava na bolsa. De manhã a maior parte estaria gasta. Só estaria ausente de Londres durante dois dias, mas a viagem consumiria as poupanças que ela juntara com todas aquelas aulas de música. Teria de aguentar meses de escalas desajeitadas e moças chorosas para repor a lição.
Tirou um pedaço de papel da bolsa. Aproximou-o da luz do fogo apesar de saber as palavras de cor. O dominó solicita Mr. Kelmsley a se encontrar com ele no Duas Espadas em Brighton daqui a duas noites, para discutir um assunto de interesse mútuo.
Fora pura sorte ela ter sequer sabido que tinham posto o anúncio no Times. Se a sua amiga Lizzie não passasse a pente fino aqueles anúncios todos, em todos os jornais e gazetas de fofocas disponíveis, poderia ter escapado ao olhar de Audrianna.
O apelido não estava bem escrito, mas ela tinha a certeza de que o Mr. Kelmsley a que se referia era o seu pai, Horatio Kelmsleigh. A pessoa que queria encontrar-se com ele não sabia, seguramente, que ele tinha morrido.
Imagens do pai invadiram sua mente. Sentiu o coração se apertando e os olhos queimando como acontecia sempre que as memórias tomavam conta dela.
Viu-o brincando com ela no jardim e assumindo a culpa quando a mãe brigava por causa dos seus sapatos sujos. Evocou uma recordação distante, difusa, provavelmente a mais antiga que tinha dele. O pai trajava o uniforme do exército, pois isso fora antes de vender a patente, quando Sarah nasceu, e de assumir um cargo no Gabinete do Material de Guerra, que superintendia a produção de munições durante a guerra.
Em geral, porém, o que via era o rosto triste e perturbado daqueles últimos meses em que ele se tornou objeto de tanto desprezo.
Guardou o anúncio, que a fazia recordar o motivo da sua presença ali. Nada mais importava realmente, nem a chuva, nem os olhares, nem a antipatia. Com sorte, iria ser comprovado que ela tinha razão em pensar que o Dominó possuía a informação que teria ajudado o pai a recuperar o bom nome.
Despiu a capa azul e a peliça que trazia por baixo e pendurou-as no gancho para secar. Tirou a touca e sacudiu-a. Em seguida, colocou o único candeeiro do quarto em cima da mesa ao lado da porta e a cadeira na sombra, no canto oposto, atrás da lareira. Se sentasse ali, conseguiria ver imediatamente quem entrasse, mas a pessoa não a veria muito bem de imediato.
Pousou a mala em cima da cadeira e abriu-a. Veio à mente o resto da primeira lição de Daphne. Uma mulher independente é uma mulher desprotegida, por isso tem de aprender a proteger-se.
Então, enfiou a mão na mala e tirou a pistola que escondera por baixo das roupas.
Lord Sebastian Summerhays entregou sua montaria a um criado encharcado. O rapaz entrou na longa fila que aguardava o atendimento dos cavalariços do Duas Espadas.
Sebastian entrou na sala comum da estalagem. Debaixo das vigas de madeira do teto, amontoava-se uma amostra da diversidade humana. A chuva obrigara os cavaleiros a se refugiarem e as carruagens tinham sofrido atrasos. Mulheres e crianças ocupavam a maior parte das cadeiras e bancos enquanto os homens ficavam espalhados na sala, esperando a vez de chegarem perto da lareira para se secarem.
Foi aí que Sebastian estacionou, deixando que os estragos do tempo escorressem por sua capa de montar. Sentia-se no ar o odor da lã úmida e corpos por lavar. Alguns criados se esforçavam para recompor chapéus de seda e toucas de tecido crepe, enquanto outros serviam comida cara e pouco apelativa. Sebastian dirigiu um olhar experiente ao mar de rostos, procurando algum que lhe parecesse suspeito, estrangeiro ou pelo menos tão curioso como ele.
O nome de código do anúncio deixava-o igualmente irritado e intrigado. Dificultaria a sua missão, mas também significava que havia segredos envolvidos. O próprio anúncio, dirigido a Kelmsley, indicava que quem o escrevera não sabia que o homem estava morto há quase um ano. O que sugeria, por sua vez, que o Dominó não era de Londres, nem sequer da Inglaterra, talvez. O fato de o nome não estar corretamente escrito o fazia pensar que Dominó não seria um bom amigo nem um colega próximo de Horatio Kelmsleigh. Com sorte, ele nem sequer saberia como Kelmsleigh era.
O suicídio de Kelmsleigh fora lamentável em muitos aspectos, um deles era ter fornecido uma explicação fácil demais para um mistério que, Sebastian estava convencido, possuía muito mais facetas. Naquela noite tinha esperança de descobrir se estava certo.
– Então, Summerhays? Não esperava vê-lo por aqui, neste refúgio decadente.
A saudação, tão próxima do seu ouvido, arrancou-o da inspeção da sala. Grayson, conde de Hawkeswell, estava ao seu lado, radiante, com um copo de vinho quente quase vazio. Um sorriso deliciado iluminava o rosto de olhos azuis e a cabeleira preta de corte exímio.
– A uns oito quilômetros de distância fui atingido por um pé d’água – explicou Sebastian. Hawkeswell era um velho amigo, um grande companheiro dos dias de farra. Normalmente Sebastian ficaria encantado por poder contar com a sua companhia para passar uma noite que prometia ser miserável. Mas o motivo que o levara lá tornava inconveniente o seu encontro com Hawkeswell.
– Está a caminho de Londres ou de regresso?
– Estou de regresso. Fui me encontrar com um agente imobiliário em Brighton esta manhã.
– Colocou a propriedade à venda, então?
– Não tenho escolha.
Sebastian manifestou o seu pesar. As finanças de Hawkeswell iam mal desde que herdara o título, e já se desfizera da maior parte das propriedades de alienação consentida. A tentativa de retificar o problema através do casamento correra lamentavelmente mal, pois a noiva rica desaparecera no dia do casamento.
Hawkeswell examinou-o.
– Sem bagagem? Espero que não a tenha deixado no cavalo. Se tiver alguma coisa de valor, amanhã de manhã já não estará lá.
Sebastian reagiu com uma gargalhada moderada e desprendida. Não tinha bagagem porque planejava voltar a cavalo naquela mesma noite, apesar do mau tempo e da escuridão.
– Você tem um quarto lá em cima? A bagagem está lá? Pedi que me arranjassem um mas o estalajadeiro já os tinha alugado todos, diz ele. Nem sequer o título me serviu de alguma coisa. Mas se tiveres quarto podemos fumar e beber lá e escapar a este fedor.
– Está em algum quarto lá em cima? E a bagagem está lá? Pedi que me arranjassem um mas o estalajadeiro já tinha todos alugados, diz ele. Nem sequer o título me serviu de alguma coisa. Mas se estiver em algum quarto podemos fumar e beber lá e escapar deste fedor.
– Não tenho quarto nenhum, lamento.
As sobrancelhas de Hawkeswell se arquearam sobre os olhos astutos.
– Não está aqui exatamente para se abrigar, não é? Nem está a caminho de Brighton, aposto. Está aqui para se encontrar com uma mulher. Não, não fale nada. Eu compreendo a necessidade desses esquemas elaborados nestes dias. Você agora é quase um marquês, certo? Não pode ficar levantando saias quando e sempre que quiser. – Colocou o dedo sobre os lábios, zombando da necessidade de discrição.
Era uma explicação tão boa como qualquer outra, por isso Sebastian não a contestou. Sempre receptivo e atento, terminou de inspecionar a profusão de rostos. Não havia nenhum que se destacasse como possível Dominó.
Aparentemente, Hawkeswell ficaria com ele a noite toda. Sentindo necessidade de se livrar dele, Sebastian decidiu utilizar a teoria do próprio para conseguir.
– Com sua licença, por favor. Preciso falar com o estalajadeiro sobre a pessoa com quem vim me encontrar.
Conseguiu libertar-se. Encontrou o estalajadeiro, que servia cerveja a um sujeito de chapéu marrom enterrado na cabeça.
– Chegou alguém aqui perguntando por Mr. Kelmsley ou falando o nome dele?
O estalajadeiro olhou para ele e depois concentrou-se em receber o dinheiro do freguês.
– Em cima, ao fundo, última porta. O hóspede que procura está lá, não me pergunte por quê.
Sebastian dirigiu-se para as escadas. Tomara que Hawkeswell estivesse certo. Aguardar que o tempo melhorasse deitado numa cama de penas, seco e confortável, com o calor de um corpo feminino nos braços, seria uma recompensa agradável pela viagem miserável até aquele lugar e àquela que o esperava no fim da missão.
Em vez disso, estava preso ao dever e à obrigação, e a uma longa conversa com alguém que era conhecido como Dominó.
Audrianna se encolhia debaixo do xaile, nas sombras. O fogo débil não conseguia anular o frio úmido do quarto. Aquela não era, no entanto, a única razão pela qual tremia.
A vigília enfraquecia a determinação que ganhara ao ler novamente o anúncio. Começara a ver seu plano por uma perspectiva diferente, a da vida que tivera até aqueles últimos sete meses.
Desse ponto de vista, o seu comportamento daquele dia era completamente louco e de uma imprudência sem justificativa.
Certamente, teriam sido as palavras da mãe. O pai teria concordado. Roger também teria ficado chocado se soubesse. As jovens de respeito não pegavam carruagens públicas sozinhas para se dirigirem a estalagens vulgares e ficarem à espera de desconhecidos em quartos escuros.
A expedição começava a parecer um sonho bizarro. Obrigou-se a se acalmar e exigiu que a sua mente recuperasse alguma determinação.
Estava ali porque mais ninguém estaria. O mundo havia enterrado o bom nome do pai juntamente com o seu corpo. A sua morte fora prova suficiente de que era culpado das acusações que se levantaram. Todos presumiram que tinha sido o remorso, e não uma melancolia profunda, que o tinha levado a se matar.
A família inteira ainda estava marcada pela vergonha. A mãe chorava a perda dos amigos sem deixar de defender a sua memória com valentia. Até o tio Rupert deixara de escrever quando o escândalo se espalhara, na tentativa de se livrar de máculas por associação. E Roger, bem, o seu amor eterno também não bastou para vencer o escândalo.
Audrianna tentava conservar uma aparência de indiferença diante desse assunto, mas ao se lembrar de Roger sentia uma mágoa profunda no coração. Eventualmente não se sentiria mais assim, acreditava. Pelo menos tinha a pequena consolação de saber que não voltaria a se desiludir-se tanto com alguém. Com o rumo que os acontecimentos tomaram, homem nenhum voltaria a pedi-la em casamento.
Dissera à mãe que ia viver com a prima Daphne para aliviar a sobrecarga financeira provocada pela morte do pai, pois a família vira o seu rendimento reduzido às magras poupanças da mãe. Na verdade, quisera era escapar de uma vida prisioneira da tristeza e construir uma nova na qual encontrasse um contentamento adequado às suas atuais expectativas.
A multidão do andar de baixo produzia um barulho suave que chegava aos ouvidos. Ali no segundo andar nada se ouvia, a não ser uma porta ou outra se fechando. O silêncio a deixava mais desconfortável. Apesar de ter mais viajantes nos outros quartos. Se o tal “Dominó” tentasse alguma coisa inconveniente e ela gritasse, acreditava que a ajuda chegaria rapidamente.
Puxou o xale mais para cima, para se livrar do frio. Protegida pelo calor da lã, apertou na mão a pistola de Daphne. Levara-a para tomar coragem, e para que não se repreendesse depois por andar desprotegida.
Infelizmente, sentir o peso da pistola apenas provocou mais um calafrio.
Sebastian pressionou o trinco. Para sua surpresa, ele cedeu. Empurrou a porta do quarto.
Logo à entrada, foi recebido pelo clarão de um candeeiro. A luz intensa transformava o resto do compartimento em um mar de escuridão. Avançou para escapar da iluminação agreste. Os olhos foram se adaptando lentamente.
Um fogo baixo na lareira criava o seu próprio contraste de claro eescuro. Contudo, assim como os quadros que exploravam um efeito semelhante, a escuridão começava a tomar formas e volumes quanto mais tempo ficava olhando.
Surgiu a cabeceira da cama de dossel, voltada para a lareira, que assim se uniu aos pés, banhados pelas chamas. Pregos mostraram-se na parede ao lado da porta, segurando tecidos. Os cantos do quarto revelaram finalmente o seu conteúdo. Uma mesa. O vulto pesado de um roupeiro.
Contornos tênues no outro canto ganharam forma, mais próximo da luz da lareira. Compuseram algo que reconheceu. Uma mulher.
A presença deteve-o. Presumira que o Dominó era um homem. Um erro desculpável, afinal, mas era uma opinião infundada.
A descoberta de que o Dominó era apenas uma mulher animou-o imediatamente. Ficaria rapidamente sabendo aquilo de que precisava e a reunião não tomaria tempo.
Abriu um sorriso que cativara muitas mulheres no seu tempo. Dirigiu-se para a lareira.
– Por favor, fique aí – disse ela. – Devo insistir.
Era sério? Aquilo o fez sorrir ainda mais. Ela tinha uma voz jovem. Sem ser imatura, no entanto. Com mais atenção, conseguiu distinguir melhor a aparência dela.
Cabelo escuro. Talvez aquela cor interessante em que o ruivo invade o castanho, como a tonalidade do cavalo alazão. Difícil avaliar a idade, mas parecia de vinte e poucos. O rosto parecia bonito, mas àquela luz a maioria das mulheres seria atraente. Um xale escuro cobria o colo e o peito. O vestido parecia ser cinzento ou alfazema e era bastante simples, pelo que via.
– Ia apenas me aquecer perto da lareira – esclareceu ele. – A viagem me deixou encharcado.
A cabeça dela inclinou-se para trás ao ponderar a explicação dele.
– Até a lareira, então. Sem chegar mais perto.
Ele tirou a capa. Ela ficou visivelmente assustada.
– É para eu pendurá-la e secar, se não se importar – explicou ele.
Ela assentiu com a cabeça.
Pendurou-a num dos pregos. Habituado agora à luz do quarto, conseguiu perceber que as outras roupas que estavam penduradas eram uma capa e peliça de mulher. Aproximou-se do fogo e fingiu se concentrar no calor que emanava, mas observava-a de esguelha.
Sorriu novamente para ela quando se virou de costas para o fogo. Ela mexeu-se por baixo do xale.
– Devo avisá-lo de que tenho uma pistola. – A voz dela tremia de ansiedade.
– Fique descansada que não irá precisar dela.
Ela não pareceu convencida. Olhos verdes, pensou ele. Mostravam determinação e algum medo. O último era bom sinal. Indicava que ela não era estúpida, e um pouco de medo teria utilidade.
– Esperava um homem – retomou ele.
– Mr. Kelmsleigh não estava disponível, por isso vim no lugar dele. Creio que pretende ser recompensado pelas informações que tem e estou preparada para pagar se a soma for razoável.
Ele disfarçou a reação de surpresa. Ela pensava que ele era o Dominó. O que significava que ela, obviamente, não era.
Nunca acreditara que a má pólvora que chegara à frente de batalha se tratasse de mera negligência da parte de Kelmsleigh, embora uma negligência dessas fosse grave a ponto de acabar com um homem. Suspeitava, sim, de conspiração e fraude, e duvidava de que Kelmsleigh tivesse concebido e controlado o esquema. Ainda assim, nunca esperara que houvesse mulheres envolvidas. Agora esta cúmplice indicava que havia pelo menos uma.
Só que, quem era ela? Sua identidade podia fornecer uma ligação com as outras pessoas envolvidas no esquema.
Ela observava-o cautelosamente. Agora conseguia ver melhor o medo dela. Não era o que ele esperava, mas supôs que também era uma surpresa para ela.
Fora lá para se passar por Kelmsleigh. Afinal, mais alguém lera o anúncio e também viera comprar informação.
Mudou de planos. Já não podia ser Kelmsleigh. Mas podia ser o Dominó.
Capítulo 2
Ah, meu Deus! Ah, Céus!
Decididamente, o dia não estava se desenrolando da forma que ela tinha imaginado.
Não estava à espera de que o Dominó fosse um cavalheiro. Não esperava certamente um homem alto e atraente com um sorriso tão arrebatador.
Não tinha certeza do que tinha imaginado. Só sabia que não era aquilo.
Ele não parecia nada perturbado pela presença dela em lugar do seu pai, nem pela declaração de que tinha uma pistola. Continuou com uma atitude amável enquanto se aquecia à lareira. Não parava de cintilar com aqueles sorrisos breves, deslumbrantes, de quem quer tranquilizar.
E que não a deixavam nada tranquila. Pelo contrário, pareciam muito perigosos. Talvez fosse porque a luminosidade do fogo o transformava num conjunto de ângulos fechados, ou os seus olhos parecerem muito mais intensos e alertas do que sua postura.
Podia ser pela riqueza, evidente pelo corte e pelo tecido da capa de montar cinza-escura que tirara, e na qualidade das botas altas e da confortável pele de gamo que cobriam as pernas. Até o cabelo escuro era de rico, com aquele corte esvoaçante, curto e solto, que em vez de arrepiar melhorava com a umidade e o vento.
Mas a aparência dele ainda era o de menos. Era impossível ignorar a alteração que a chegada dele provocara na atmosfera do quarto, como se emanasse raios de poder minúsculos e invisíveis.
– Meu senhor, parece que devemos avançar com o propósito da reunião.
– Com este tempo, não há pressa. Nem você nem eu vamos a lugar algum tão cedo.
Desejou não ter permitido que se aproximasse tanto. Ele não estava nem a dois metros de distância e era imponente, muito mais alto do que ela. Não conseguia ignorar o seu tamanho nem o quanto ele a fazia se sentir pequena e vulnerável, e em maior desvantagem do que era justo.
– Ainda assim, gostaria de tratar do assunto rapidamente.
Ele começou a formar um daqueles sorrisos, mas um peculiar, que refletiu algum pensamento que passou pela cabeça.
– Quem é a senhora? – perguntou ele.
– Isso é importante?
– Pode ser muito importante. Pelo que sei, você pensava que eu queria me encontrar com um Kelmsleigh diferente, e sairá daqui com fatos que não deveria possuir. Para um homem inocente e insuspeito, isso pode ser danoso.
– Eu diria que isso é improvável. – A voz soou aguda ao seus próprios ouvidos. Ele falava como se a informação que tinha não fossem boas notícias. – Contudo, se receia fazer revelações a quem não tem a ver com o assunto, identificarei o Kelmsleigh em que estou interessada. Era funcionário do Gabinete do Material de Guerra. A minha esperança é que a sua informação esteja relacionada com esse cargo.
Dito isso, o sorriso dele mostrou-se menos amigável. Um tanto predatório, para dizer a verdade. Podia ser da luz crua, claro, mas... Para seu desgosto, ele avançou em sua direção, olhando fixamente o seu rosto.
– Insisto que fique onde está. – Detestou que a exigência tivesse saído em tom de lamúria.
Ele continuou a se aproximar.
Pôs-se em pé num salto. O xale caiu ao chão. Não apontou a pistola mas segurou-a com força.
– Não se aproxime mais. Eu sei como isso dispara.
Ele parou à distância de um braço. Perto o bastante para ela ver que seus olhos estavam sombrios. Muito sombrios. Tão perto que, se ela disparasse, não havia como falhar. Ele ignorou a pistola, preferindo estudar o rosto dela.
– Quem é você? – voltou a perguntar.
– Você se autonomeia pelo nome bobo de “Dominó” e exige que eu revele o meu? A minha identidade não é mais importante do que a sua.
– Que papel tem nisto? É cúmplice? Amante de alguém? Parente de algum dos soldados que morreram, talvez? Eu não desejaria que este encontro desencadeasse uma vingança entre familiares.
Pouco faltava para os olhos dele a atravessarem, e o seu escrutínio perturbava-a de forma curiosa. Mesmo com todas as suas suspeitas, ele não deixava aquele sorriso vago, cativante, que oferecia... amizade e... excitação e... coisas nas quais não deveria sequer pensar naquele momento. Ele tinha o tipo de rosto que deixava as mulheres tontas, e a incomodava o fato de se revelar mais suscetível do que a situação alguma vez deveria permitir.
Levantou ligeiramente a pistola, apontando-a ao nível do quadril, em vez de para baixo. Ele olhou para a arma, mas depois o olhar voltou para o rosto dela. Só que agora ele tinha a expressão de um homem que fora desafiado, mas que sabia ser o vencedor.
– Que informação tem? – insistiu ela.
– Quanto dinheiro tem?
– Suficiente.
– Quanto é suficiente para você?
– Não sou estúpida a ponto de adiantar o valor. Diga o seu preço.
– E se não tiver? – Indicou a pistola com a cabeça. – Planeja me forçar a revelar tudo, aconteça o que acontecer?
Subitamente, ele encontrava-se ainda mais perto, o corpo dele estava a dois dedos do cano da pistola e poucos mais dela. Ela o olhou com surpresa.
Ficou sem ar. Agora parecia muito perigoso, sem levar em conta a pistola. O olhar e o sorriso dele se destinavam a conquistar e seduzir, e havia algo invisível a que ele dera livre curso também para esse efeito.
Duvidava de que alguma mulher conseguisse ficar imune àquele homem. Era como se a masculinidade dele falasse ao seu eu primitivo sem que sua mente pudesse intervir na conversa.
Reagia fisicamente, ainda que se agarrasse a um escudo mental. Pequenas flechas de estímulo eram disparadas pelo corpo. Valente, procurou contrariar o efeito que ele provocava, mas as flechas prosseguiam os seus excitantes trajetos, ignorando a tristeza que lhe era própria.
– Seria melhor abaixar a arma – disse ele suavemente. – Este encontro deve fazer de nós aliados, não adversários. Amigos, não inimigos.
Disse a palavra amigos com uma voz de veludo. Ela agarrou a pistola com mais firmeza.
– Dê-me a arma – ele falou calmamente, mas era uma ordem firme. Os olhos mostravam confiança de que levaria a melhor, como em qualquer outra coisa.
Numa rebelião desesperada, ela engatilhou a arma.
– Dois cliques. Afinal sabe como usá-la – disse ele, aborrecido. Deixara de ser um “amigo” e estava com um ar duro e zangado. – Está sendo burra. Pelo menos não a aponte para mim. Pode disparar acidentalmente agora.
– Eu uso-a se precisar. Não ponha à prova a minha determinação.
– Não é determinação que sinto em você neste momento.
– Então os seus sentidos o enganam.
– No que diz respeito às mulheres, os meus sentidos nunca me enganam. Pelo menos não nesse sentido.
Ele se referia às flechas estúpidas e ao medo ofegante que ela sentia, à excitação chocante. Ele sabia. Pior, abordava o assunto em voz alta.
Ele estudava-a, avaliando algo. O olhar dele a atraía e assustava ao mesmo tempo.
Aquele sorriso outra vez, tentando deixá-la à vontade como se a elogiasse sem usar palavras.
– Não me atrevo a confidenciar o que tenho sem saber o papel que desempenha. Sua presença é inesperada.
– Se estou pagando, por que se interessa em quem ouve a sua história?
– Duvido que tenha dinheiro suficiente para pagar, ainda que eu vendesse.
Ela temeu que ele tivesse razão. Tudo nele denotava a mais alta qualidade. Uma corrente de ouro pendia do colete bordado com bom gosto, presa a um relógio de ouro, sem dúvida. As dez libras e o medalhão de ouro que trazia escondidos na bolsa não impressionariam um homem daqueles.
Sujeitava-se a ter feito aquela viagem toda, arriscando a pele e a reputação, e a acabar falhando só porque as exigências do Dominó seriam dispendiosas demais.
Ele observava-a como se ouvisse os seus cálculos mentais.
– Quer mesmo essa informação? Você é tão bonita que eu até lhe dava em troca de um beijo.
– Um beijo! Começo a pensar que é um charlatão, se aceita pagamento tão simples.
– Dá tão pouco valor aos seus beijos?
– É fugaz, o valor de qualquer beijo, por maior que seja.
– Que triste moral. E contrária à verdade, espero. Dizem os poetas que há beijos que sustêm a alma de uma pessoa para sempre.
– Os poetas são idiotas. – A conversa havia tomado um rumo muito peculiar.
– Receio que tenha razão, mas espero que não. Daí a minha oferta. A minha alma me diz que pode ser aquela mulher cujo beijo terá valor eterno.
Que absurdo ridículo. Ambos sabiam que ele elogiava para servir os seus fins e que o beijo não era sequer o objetivo. Sua expressão denunciava o jogo ao mesmo tempo que ele descaradamente o jogava. Devia colocá-lo em seu lugar e fazê-lo ver que não era uma pateta qualquer que arquejava e desfalecia com as investidas de um homem belo de olhos desconcertantes e sorriso sedutor.
Só que, apesar das repreensões mentais, sentia mesmo alguma tontura e excitação, para dizer a verdade. Saía quase um arquejo. Os elogios faziam o seu sangue correr e pulsar.
– Tenho que descobrir se você é essa mulher, obviamente – prosseguiu ele. – Uma vez que não quer negociar, vejo-me forçado a roubar. – A cabeça dele inclinou-se e mergulhou. Seus lábios roçaram nos dela.
O choque paralisou-a. O coração bateu forte. As flechas provocadoras multiplicaram-se e espalharam-se por todo o corpo. Roger beijara-a algumas vezes, e embora os beijos tivessem sido muito agradáveis, o efeito não era comparável. Mas Roger também não era um estranho, e os beijos dele não tinham sido escandalosos, perigosos e deliciosamente proibidos.
Os lábios dele não se limitaram a pousar nos dela. Brincavam e mexiam-se e insistiam sutilmente. Uma dentadinha inesperada fez o seu coração dar uma cambalhota.
Um novo toque a distraiu. Sobressaltou-a. Outra suavidade, úmida e endiabrada. Santo Deus, a ponta da língua dele fazia a zona sensível por baixo do lábio tilitar, provocando-lhe cascatas de arrepios pelo corpo abaixo.
No meio do torpor, ela sentiu-o agarrar suavemente seu pulso, afastando o braço para virar a pistola para a parede à direita.
A arma deixara de os separar, e de protegê-la. A mão dele controlava-a e à arma, mas este beijo interessava-a muito mais do que a voz da razão, que, em pânico, tentou emitir um protesto.
Ele aproximou-se mais. Ela ficou com o coração na garganta. A mão direita dele deslizou lentamente pelo pescoço numa carícia de assombrosa ligação física. Cuidadosa, mas controladora. Calorosa, mas não completamente doce. A sensação da pele dele na dela e a ligeira aspereza do seu toque deixaram-na hipnotizada. Sua mão suscitava arrepios deliciosos. Ele segurou sua nuca e beijou-a novamente.
Mais impetuoso desta vez. Mais ávido. Mais agressivo. Ele brincava com a vulnerabilidade dela e manifestava um domínio ao qual, Deus lhe valesse, ela não sabia sequer como resistir. Havia deixado de reparar que era devassa por permitir, ou que se estupidificara inexplicavelmente. Um caos de sensações aprazíveis obscurecia pensamentos assim tão sensatos.
A mão esquerda dele deslocou-se, envolvendo a dela, por cima da pistola. Com dedos carinhosos, cuidadosos, sedutores, retirou-lhe a arma.
A mão subitamente vazia fez com que uma réstia de bom senso se afirmasse.
O que ela estava fazendo?
Abriu os olhos, literal e metaforicamente. O que viu arrancou-a de seu torpor.
A porta estava aberta. E eles não estavam sozinhos. Outro homem estava atrás de Dominó.
O sedutor interrompeu o beijo. Franzindo a testa, seguiu o olhar dela e olhou por cima do ombro. Atravessou-o uma sensação de alarme.
– Mas o que...?
O intruso viu a pistola e atacou. Dominó deu meia-volta e empurrou-a para o lado. Ela caiu na cadeira com um baque.
À frente mal distinguia o turbilhão de movimento. O recém-chegado se atirara para cima de Dominó, fazendo com que ambos caíssem no chão. Outra mão agarrou a arma enquanto eles, atracados, se debatiam.
Um estouro atravessou o quarto. E depois o intruso se levantou, correu e foi engolido pelo corredor escuro.
Dominó olhava para o braço. O sangue escorria da manga queimada e rasgada da camisa, por cima do cotovelo.
– Droga!
Ficou de pé num salto e saiu correndo. Audrianna agarrou os braços da cadeira e tentou acalmar o coração retumbante.
Sons. Altos. Vozes agitadas no andar de baixo e gritos assustados nos quartos vizinhos.
Dominó voltou ao quarto e fechou a porta.
– O seu braço! – gritou ela.
– A bala está na parede, ali. – Ele apontou um buraco preto novo, no reboco por baixo da janela. – Mas, mais um centímetro e...
Mais gritos. Mais próximos.
Ele olhou atentamente para ela.
– Está bem? Recomponha-se e nem pense em desmaiar agora.
– Estou bem. Só com um pouco de falta de ar, por causa do choque.
– Você trouxe uma pistola carregada e armou o gatilho. Não devia se chocar de que ela tenha acabado disparando. – Com uma mão firme no queixo dela, levantou a cabeça, para verificar como ela estava, presumiu ela, e quão perto estava de desmaiar.
– Estarão aqui em breve – comunicou ele. – Questão de segundos. Não fale. Eu responderei as perguntas.
O olhar dela percorreu o quarto em todas as direções. Claro que haveria perguntas. Um tiro fora disparado na estalagem e todo mundo ouvira.
A confusão aproximava-se da porta. Vozes e passos pesados e excitação. Depois, de repente, silêncio. Uma fresta se abriu.
– Não fale – ordenou Dominó novamente.
A porta se abriu completamente, mostrando o estalajadeiro com uma expressão de preocupação no rosto. Que foi substituída por alívio, depois raiva. Atrás dele, uma massa de rostos se esgueirava para conseguir olhar para dentro do quarto também.
– Não tem ninguém morto – anunciou o estalajadeiro por cima do ombro. Enquanto a notícia se espalhava pelo corredor, ele entrou no quarto, cruzando os braços. Olhou para a ferida no braço do hóspede, depois para a cadeira onde Audrianna estava sentada, depois para a pistola, ainda no chão.
Voltou a olhar para Audrianna. – Assim que chegou soube que só traria problemas. A minha estalagem é um estabelecimento de respeito e eu não...
– Summerhays! Mas que diabos...? – Juntou-se ao aglomerado que estava à porta um novo rosto, belo, com olhos azuis e cabelo muito escuro.
O recém-chegado abriu caminho e transpôs a soleira. Apreciou a cena e balançou a cabeça.
– Que lindo serviço, Summerhays. Lindo serviço.
Audrianna constatou, alarmada, como a situação devia parecer.
Um homem e uma mulher sozinhos numa estalagem... O homem ferido por uma pistola... Todos pensavam que ela e Dominó eram amantes e que houvera uma discussão e que ela disparara.
– Está sangrando, Summerhays – alertou o recém-chegado.
– Foi atingido?
Ela percebeu que o cavalheiro de presença altiva se dirigia a Dominó e não ao estalajadeiro. Summerhays. Um membro do parlamento chamado Summerhays estivera envolvido na investigação feita ao seu pai. Lord Sebastian Summerhays. Era irmão do marquês de Wittonbury e fora inflexível, cruel e implacável.
Mas como podia ele ser o Dominó? Se havia pessoa que sabia que o seu pai estava morto...
Entendendo o que se passava, começou a encará-lo.
– A bala está aqui na minha parede. – O estalajadeiro dobrou-se para examinar o estrago. – Mas foi apontada para o braço, ou pior, isso é certo. Esta mulher atirou nele sem dúvida alguma e a sorte dele foi ela ter má pontaria.
Fora do quarto, a multidão concordou com aquela opinião.
Vozes transmitiram a notícia de que uma mulher tinha tentado matar o amante.
– Não foi isso que aconteceu. – Lord Sebastian arrancou o que restava da manga e usou o retalho para comprimir a abertura grande e escura que tinha no braço. – Alguém entrou. Um ladrão. Tentei me defender e ele me atacou. Na luta, a pistola disparou.
– É uma história improvável – disse o estalajadeiro, entredentes.
– Questiona a minha palavra de cavalheiro? – perguntou Lord Sebastian, ameaçador.
– Não questionarei nada, senhor. Vou deixar isso ao magistrado, se não se importar. Pode contar do ladrão audaz que entrou num quarto ocupado, simplesmente para atirar e fugir sem dinheiro. – O estalajadeiro dirigiu a Audrianna um olhar de desdém. – Quer que mande alguém a Brighton buscar um cirurgião, senhor? Ou esta mulher consegue cuidar do ferimento enquanto espera pelo juiz de paz? Fico com a sua palavra do cavalheiro que realmente é de que vai ficar e não fugir.
Lord Sebastian tirou o farrapo e olhou para o braço.
– Tem a minha palavra. Conseguimos tratar da ferida. Mande trazer água fresca e um trapo limpo. Além do mais, a senhora vai precisar de um quarto para ela, para passar a noite, por isso trate de providenciá-lo.
– Os outros quartos estão ocupados, e não vou mandar ninguém sair para alojá-la. Nem quero essa mulher perambulando por minha propriedade depois do que ela fez. Não tenho tempo para ficar de carcereiro, por isso deixo também isso a seu cargo. Ficarei com a sua palavra também a respeito disso, de que a manterá por perto e se certificará de que ela permaneça aqui até o juiz de paz chegar.
– Que assim seja, então, já que insiste. Agora pode ir embora.
Foi uma ordem calma, mas com uma autoridade tal que o estalajadeiro se voltou imediatamente para a porta. Na saída, os corpos começaram a dispersar, abrindo caminho.
– Você também, Hawkeswell – indicou Lord Sebastian. – Preciso de privacidade. Peço também sua discrição, não que espere que seja de grande ajuda. Deve compreender.
– Concedo ambas de bom grado. Também tenho uma camisa a mais na minha bagagem. Vou mandar para você. – Fez uma pequena mesura a Audrianna e saiu do quarto seguindo o estalajadeiro.
Capítulo 3
Lord Sebastian fechou a porta para afastar os retardatários que persistiam em espiar perto da ombreira da porta. Em seguida aproximou-se do fogo e examinou mais atentamente o ferimento.
– Por que ficou tão preta? – perguntou Audrianna.
– Pólvora quente. A bala só me tocou de raspão, mas fiquei bem chamuscado. – Voltou-se para ela. – O seu nome. Preciso dele agora, e não pense em mentir. O juiz de paz o arrancará de você com certeza, e nem pense que vou continuar sem saber o que se passa aqui.
Ela estava assustada e consternada demais para mentir.
– Sou Audrianna Kelmsleigh, filha de Horatio Kelmsleigh.
Ele ficou perplexo.
– Vi uma mensagem no jornal de alguém que se autointitulava Dominó e parecia ser para o meu pai – explicou ela. – Eu vim, para ver se o homem tinha informação que pudesse limpar o seu nome. – Tudo aquilo havia parecido tão certo, tão necessário, no dia anterior. – Por que você está aqui?
– Também vi o anúncio, e também tive esperança de falar com o tal Dominó.
– Por quê? Meu pai está morto. O mundo seguiu em frente.
– Acho que há algo mais nessa história.
– Não vejo como poderia obter informações do Dominó fingindo ser o próprio Dominó.
– A minha intenção era fingir ser o Kelmsleigh. Quando você presumiu que eu era Dominó, decidi entrar no jogo e descobrir quem era aquela mulher inesperada, e que papel desempenharia no esquema geral.
Esquema geral?
Então alguém abriu a porta. Uma criada trouxe uma bacia e um balde de água. Colocou alguns panos limpos sobre a cama.
– Um cavalheiro me pediu que trouxesse também esta camisa – explicou, colocando-a de lado. Deu uma boa olhadela a Audrianna e saiu apressada.
Lord Sebastian pôs o balde perto do fogo. Sentou na cama, despiu o colete e depois tirou a camisa rasgada. Fez uma careta de dor quando o tecido roçou na ferida.
Audrianna piscou os olhos repetidamente, espantada mais um vez. Aquele homem não tinha nada que o cobrisse. Estava ali sentado, preocupado com o ferimento, sem roupa, meio nu na verdade. Não parecia achar nada estranho que ela estivesse sentada ali mesmo ao lado dele.
Nunca vira um homem sem camisa. Tentou fingir uma indiferença espontânea, mas não pôde evitar reparar que, se uma mulher tinha de ver um homem meio nu pela primeira vez na vida, Lord Sebastian não era um mau começo. Já não era rapaz, mas ainda possuía a firmeza ágil da juventude, que não interferia nos músculos que definiam o peitoral.
– Vou precisar dessa cadeira, Miss Kelmsleigh. Se não se importar.
Ela soltou-a num salto. Ele agarrou o móvel pelo encosto, posicionou-o à frente da lareira e sentou. Com a água quente e sabão, começou a limpar o corte que tinha no braço.
Supunha que aquilo devia doer, mas ele não mostrava reação alguma. Talvez não estivesse tão indiferente à sua presença como parecia.
– Vou lá para baixo enquanto você...
– Dei a minha palavra de que não sairia deste quarto. Além disso, lá embaixo somente desprezo a aguarda, senão pior. Ficará aqui até o magistrado chegar e decidiremos o que lhe dizer.
Ela se aproximou, hesitante. A parte de trás do braço escapara em muito aos cuidados dele.
– Deixe que o ajude, então. Passe o trapo.
Ele o deu a ela. Ela limpou o pó preto. Agora via melhor o corte. Não era profundo, mas tinha uma queimadura feia de uns dois centímetros à volta. Duvidava de que um cirurgião pudesse ter feito mais do que limpá-la como eles faziam.
– Conseguiu vê-lo bem? – perguntou ele. – O Dominó?
– Acha que era ele?
– Tenho certeza. Deve ter me ouvido pedir indicações para o quarto e achou que o Kelmsleigh estava aqui. Viu o rosto dele? Você o reconheceria?
Tentou resgatar a memória. Abrandar a explosão da ação. Vislumbrara o rosto do intruso por baixo da aba larga do chapéu, banhado pela luz da lareira quando se aproximou deles. Recordou o choque dele, primeiro ao ver que ela estava lá, bloqueada pelo corpo de Lord Sebastian, depois ao ver a pistola na mão dele.
– Sim, acredito que conseguiria reconhecê-lo. Acha que ele ainda está aqui?
– Ele acaba de atirar num homem. A esta altura, já está bem longe da estalagem. No entanto, é bom um de nós ter conseguido vê-lo bem. Pode vir a ser útil.
Ele parecia determinado e irritado. Duvidava de que aquele interesse persistente pelo Dominó beneficiasse sua própria causa.
Continuava limpando, enquanto ele olhava o fogo com um ar obstinado. Depois se voltou para ela com o cenho franzido.
– Não devia ter vindo a este lugar. O que tinha na cabeça?
– Que mais ninguém se importava com a verdade e, por isso, eu mesma tinha que tratar disso.
– Criou complicações e distrações desnecessárias.
– Não acredito que um homem da sua envergadura seja escravo de alguma distração. Nem tenho a ilusão de ser o tipo de mulher que faz um homem se esquecer de si mesmo. Mas lembro a você que qualquer distração que tenha resultado neste ferimento foi por sua própria culpa.
Os olhos dele se incendiaram com a acusação dela, mas as chamas acalmaram com bastante rapidez. O rosto permaneceu com uma expressão severa, mas não voltou a culpá-la tão descaradamente.
Audrianna também se agitara. Os acontecimentos e conversas recentes pediam uma explicação.
– Mencionou um esquema maior, Lord Sebastian. O que quis dizer com isso?
– Não acredito que o seu pai tenha sido culpado de negligência. Não acredito que a pólvora ruim que deixou os soldados indefesos tenha sido um acidente.
A resposta dele deixou-a perplexa. Insinuava que o pai dela enviara deliberadamente a pólvora ruim para a frente de combate.
– Como se atreve?! Não basta que ele tenha sido injustamente se sentido infeliz a ponto de se desesperar? Acusá-lo agora de...
– Era dele a última verificação da qualidade numa longa linha de verificações. A distribuição nunca se faria sem a assinatura dele. Fosse por descuido ou conspiração, por alguma razão as atenções se voltaram para ele, Miss Kelmsleigh. Lamento, mas esta é a verdade.
O insulto a deixou com vontade de bater nele. Limpou o ferimento com mais força enquanto lágrimas de raiva turvavam a visão.
– Não, não é essa a verdade. Está enganado. O meu pai não teve culpa de absolutamente nada.
Subitamente, a mão dele fechou-se sobre a mão dela que limpava. O toque dele sugeria que ela estava machucando mais do que percebia e que, agora, ele apenas a fazia parar. Contudo, o toque firme da mão dele por cima da sua e a aproximação do rosto que permanecia estoico produziu um inesperado surto de intimidade.
O desânima que sentira com as insinuações dele sobre seu pai misturou-se com uma nova surpresa. Compreendeu que ele segurava sua mão daquela forma para reconfortá-la.
Ninguém fez aquilo antes. Não desde que o escândalo rebentara. Nem a mãe, que ficara tão perturbada, primeiro com a preocupação, depois com o desgosto. Roger, certamente não. Nem sequer Daphne, a prima, que tratara todo o episódio como um livro cuja capa deveria ficar fechada para sempre.
Agora aquele homem, a quem só faltara entregar a corda ao seu pai para ele se enforcar, fazia uma pequena tentativa de acalmá-la. Devia repelir o toque dele e ignorar seu esforço. Devia lhe dizer que não queria ser consolada, e ainda menos por ele.
Em vez disso, ficou sem conseguir se mexer durante certo tempo. Fechou os olhos e aceitou o gesto humano da preocupação dele, sentindo-a fluir como água cálida no corpo. Permitiu que tocasse seu coração e acalmasse a agitação que sentia. Ignorou a peculiaridade da origem do reconforto por precisar tão desesperadamente do seu bálsamo.
Ele segurou sua mão e tirou o trapo ensanguentado que segurava. Pegou um pano limpo.
– Me ajuda a amarrar isto, por favor, para que eu possa me vestir para nosso convidado.
Com as mãos trêmulas e as dele segurando o pano, ela enrolou o braço.
Depois ele colocou-se de pé. De repente, tinha aquele tórax nu à frente do nariz. Uma consciência aguda daquele peito, da textura da pele e da força, desenhada em sombras profundas pela luz do fogo, deixou-a atordoada durante um longo momento.
Forçou-se a olhar para cima e o flagrou olhando a forma como espiava seu corpo. Sentiu-se muito vermelha e quente. Afastou-se e deu as costas, para que não visse o embaraço.
Não havia nada censurável na maneira como ele a olhara. Nada de insinuante nem lascivo. A expressão fora de longe mais chocante do que isso.
Vira o próprio fascínio que ele sentira e o reconhecimento silencioso de algum segredo partilhado. Confiança, igualmente, como se soubesse que era digno de ser olhado, mas curiosidade também, como se o interesse dela fosse menos previsível do que o de mulheres anteriores.
Ouviu-o se vestindo, e depois o movimento da cadeira.
– Miss Kelmsleigh.
Ela se obrigou a virar e a olhar para ele. Tinha um aspecto decente agora. Além da camisa e o colete, vestia também a capa de montar cinza-escura que tirara quando havia entrado. O lenço tinha sido muito bem atado, se considerasse a dor que provavelmente sentira ao mexer o braço.
– Miss Kelmsleigh, lamento a morte de seu pai. Lamento sua dor e lamento que a minha busca da verdade tenha magoado sua família. Ainda assim, esta noite ou amanhã de manhã o juiz de paz do condado vai levantar algumas questões embaraçosas. Devo pedir que confie em mim e que me permita responder em nome dos dois.
A referência à morte do pai inflamou a raiva que a lançara naquela viagem miserável. Sentia-se grata por aquele momento de consolação, mas, na verdade, aquilo não mudava nada.
– Você conduziu meu pai à sepultura com a perseguição, Lord Sebastian. Você e os outros membros do parlamento, que não paravam de falar daquela pólvora. Não aceitavam nenhuma explicação e insistiram em que o Gabinete do Material de Guerra encontrasse um bode expiatório para condenar em praça pública. Acho que seria estupidez da minha parte confiar em você.
– É compreensível que veja as coisas assim. No entanto, eu sou a única proteção que pode ter a este respeito. A minha palavra de cavalheiro, o título do meu irmão e a minha posição no governo podem poupá-la.
– Me poupar? Não tem como evitar o escândalo, seja você quem for, se souberem que estávamos nós dois sozinhos. Sua posição só me dará mais visibilidade.
– Esse tipo de escândalo é o de menos. Na verdade, seria melhor se o magistrado visse o que aconteceu como uma confusão de amantes. Porque quando ele souber que você é filha de Horatio Kelmsleigh, vai pensar que conseguiu achar uma forma de se encontrar aqui comigo para me matar e vingar o seu pai.
Ela quis rir daquela previsão tão dramática. Só que, num ápice, viu a sórdida cena através dos olhos do estalajadeiro. Lord Sebastian estava certo. Sua identidade proporcionaria uma interpretação diferente, muito pior, dos acontecimentos da noite.
O pensamento a deixou enjoada. Nunca deveria ter saído da obscuridade segura que encontrara na casa de Daphne. Nunca deveria ter se rebelado contra a reviravolta infeliz que a vida dera, ou ser estúpida a ponto de achar que conseguiria alterar o curso do destino.
Lord Sebastian apontou para a cama.
– Não temos forma de saber quando chegará. Vamos arrumar tudo para conseguir descansar um pouco com privacidade enquanto eu planejo a melhor maneira de evitar que seja levada por tentativa de assassinato.
Ele fechou as cortinas da cama com o braço bom. Depois levantou a bainha de um lado e pô-la a meio da cama para formar um túnel, estreito mas decente, para lhe proporcionar alguma privacidade.
– Entre, Miss Kelmsleigh, e tente dormir. Não a incomodarei. Está em perfeita segurança.
Ela observou demoradamente a cama.
– E onde você ficará?
– Do outro lado da cortina.
– Seria perfeitamente inconveniente.
– Nós já passamos da fase das conveniências, não acha?
Fez uma careta de resignação. Envolveu-se no xale, levantou um canto da cortina e desapareceu por trás dela. Estavam aprisionados, de todas as maneiras, e não havia espaço para cerimônias.
Ele não podia passar a noite sentado na cadeira com aquele braço e provavelmente também não permitiria que o fizesse cedendo a cama a ele.
Deitou-se de lado, encolhida, e fechou os olhos. Apesar da exaustão, seu corpo parecia a corda esticada de um arco. Não parava de ouvir os pequenos ruídos da movimentação dele no quarto.
Em seguida, afundou-se no colchão, do outro lado da cortina esvoaçante. Sentiu a presença dele aquecendo-a, apesar de não se tocarem em parte nenhuma.
Tentou dormir. Era impossível. Ele estava logo ali. Imaginou se aproximando dela e...
A ideia a deixou chocada. Assim como a reação de seu corpo.
Tentou dirigir os pensamentos para outras coisas, para a mãe e Sarah, para o pai. Até para Roger. Nada daquilo foi de grande ajuda.
Em vez disso, a intimidade da situação saturava o quarto, tornando-se impositiva.
Era pior do que estar numa carruagem apinhada de estranhos. Nessa situação podia fingir que eles não estavam lá e ignorar a proximidade física, que em qualquer outra ocasião seria malquista.
E todos continuavam a ser estranhos uns aos outros, mesmo se algum gostasse de falar, porque a conversa não era sobre nada importante. No fim da viagem desapareciam, assim como a intimidade, como se nada tivesse acontecido.
Lord Sebastian não desapareceria. De manhã teria de enfrentá-lo e não podia fingir que nada daquilo ocorrera. Também não era nenhum estranho, e a conversa dele tratara de coisas muito importantes.
E ele a havia beijado. E ela permitira. Era aquilo que a deixava verdadeiramente assustada e, sim, na expectativa. Dera motivos para pensar que se ele se aproximasse poderia não se importar. Era isso que aprofundava aquela consciência que tinha do corpo que estava ao lado, ali, daquela forma tão escandalosa, alarmante, permanente.
Ele também não dormiu. Sabia. Por isso não se atreveu a se mexer. Nem um pouquinho, a noite toda.
Sebastian esperou quinze minutos sentado na cadeira de madeira com o braço latejando. Depois, deitou completamente vestido, de bota e tudo, do lado da cama que ficara exposto pela sua obra com as cortinas. Suou muito, literalmente, para evitar sequer tocar na nuvem de tecido que a protegia.
Simplesmente descansar o ombro e o braço ajudava. Ou talvez ter uma presença feminina tão perto o distraísse do ferimento. Assim como a maioria dos homens, talvez mais do que a maioria, tendia a ter fantasias sensuais. Sorriu pesarosamente ao notar que por dentro sinais de excitação o excitavam, só de ouvir a débil respiração dela.
Que droga! Ali estava ele, vestido com casaco e bota, na situação mais casta que era possível criar em tal desastre, e ainda assim o corpo o incitava a especular sobre as possibilidades.
Pior, com aquela imobilidade toda, tinha certeza de que ela também não dormia. Nenhuma mulher com um beijo tão puro conseguiria descansar tendo um homem no mesmo quarto, muito menos a um centímetro de distância, do lado de lá de um pedaço de tecido.
A mesma pureza indicava, claro, que quaisquer especulações seriam uma idiotice. Sem mencionar que o braço mal se mexia.
Forçou sua mente a se desviar do tecido e da mulher que estava por trás e que ajudava a aquecer a cama tão bem. Fixou o olhar para baixo, para as botas, no fogo baixo, até aquele calor delicioso no sangue se extinguir.
Sem distração, o braço começou novamente a latejar como um tambor do inferno. Os pensamentos processaram a rapidez com que a noite se transformara numa catástrofe.
Admirava a coragem de Miss Kelmsleigh de se atrever a se encontrar com Dominó, mas uma boa dose de irritação fervilhava na sua cabeça ao rever os acontecimentos da noite. Se tivesse ficado quietinha em Londres, como qualquer outra mulher, ele poderia ter conseguido executar o plano, e saber a verdade acerca da conspiração do Gabinete do Material. Teria sido agradável poder oferecer uma resolução ao irmão. Em vez disso, ia ser um inferno.
Em nenhum momento deixou de reparar na presença dela ao seu lado. Provavelmente ela também não se esqueceu de que ele estava ali. Um estado de alerta mútuo afetava o ambiente do quarto. De nada servia reconhecer sua existência, nem o quanto os acontecimentos que a noite havia criado acentuava a intimidade forçada.
Tampouco serviria pensar nos beijos. Mas a presença dela, palpável, persistia em trazê-los à sua mente, para repetido desconforto do corpo.
Presumira que era experiente no jogo quando começara a brincar com ela. Erro seu, como em várias outras suposições da noite.
A surpresa e o assombro dela haviam cativado-o demais. Arrastado-o. Aparentemente, inocência conseguia ser muito apelativa. Aqueles beijos o encantaram e não os esqueceria durante um longo tempo. Ela o distraíra tanto que o verdadeiro Dominó já estava no meio do quarto quando um dos dois percebeu que já não estavam a sós.
Tentou recordar o que conseguia sobre o intruso, mas tudo se resumia a um borrão indefinido de instinto e defesa. Via apenas o chapéu, escuro, baixo, com uma aba larga. Suspeitava, mas não tinha certeza, de que o homem que comprava cerveja quando ele questionara o estalajadeiro estava com um chapéu como aquele. Se aquele homem fosse o Dominó, teria ouvido as indicações para o quarto sem que ele mesmo tivesse que pedir ao estalajadeiro.
Por mais que tentasse se sentir irritado com ela, durante as horas em que ficaram à espera não conseguiu. Os beijos tinham muito a ver com aquilo. Também simpatizava com o desejo dela de limpar o nome do pai. Compreendia o amor filial e os sacrifícios que podia requerer. Devia admitir que sua imprudente missão era justificável, mesmo tendo sido em vão. Horatio Kelmsleigh não gerara um filho que lutasse pelo seu nome, por isso um filha havia assumido o papel.
Começou a pensar naquilo que sabia acerca da família do homem, além do que descobrira naquela noite sobre Audrianna. Sebastian vira o funeral de Kelmsleigh, enterrado em solo não consagrado devido ao suicídio. Tinham ido poucas pessoas. Um homem caído em desgraça tinha poucos amigos.
Vira a viúva de vestido crepe preto. Estava acompanhada de duas moças. Uma a agarrava, ficando praticamente debaixo do braço da mãe. A outra estava a uma distância que já sugeria algum isolamento emocional. Ele estava um pouco afastado do pequeno grupo e, além do cabelo escuro, nada mais despertara sua atenção nas mulheres.
Fora espiar naquele dia por pensar que os outros conspiradores podiam estar presentes, como amigos ou colegas. Os poucos homens que se encontravam à volta da sepultura perceberam sua atenção, não as mulheres.
A perda daquelas mulheres não se limitara a um pai e marido. Os meses que se seguiram foram provavelmente difíceis ao nível financeiro e social para as Kelmsleigh. Na verdade, ele não se detivera sobre as consequências que a investigação e a morte pudessem ter para aquelas inocentes. Na verdade, não pensara nem um pouco nelas.
Agora, estava uma ao seu lado numa cama, num quarto onde não deveriam estar juntos e sozinhos.
Cruzou as pernas. Pensou se o juiz de paz seria sensato ou mesquinho.
A entrevista que os aguardava só tinha dois finais possíveis, mas nem um nem outro poderia ser positivo para Miss Kelmsleigh.
A pancada breve e seca pareceu um foguete. Sebastian despertou sobressaltado do sono inquieto. Quando se colocou de pé, o ferimento o deixou atordoado de dor por um instante. Olhou para a janela. Pelas frestas das portas fechadas entravam tênues fios de luz. Em breve seria o raiar do dia.
Miss Kelmsleigh também se levantara. Alisou o vestido, arrumou a cama e foi buscar a peliça que estava pendurada no gancho. Ele esperou que ela se vestisse e se esforçasse para ajeitar rapidamente o cabelo desgrenhado em frente ao espelho.
A pancada voltou a soar. O olhar dela cruzou o dele. Parecia triste e resignada, e constrangida pela noite que haviam passado juntos. Não tinha dúvida de que as horas de reflexão também a tinham feito ver a impossibilidade da situação.
Abriu a porta. Era Hawkeswell que aguardava, não o estalajadeiro.
– Fiz questão de eu mesmo vir – disse.
– Muito atencioso. Obrigado.
– O juiz de paz está lá embaixo. Prefere descer ou posso indicar que suba?
– Este lugar não é o mais adequado mas é melhor do que o outro. Não queremos ter plateia.
Hawkeswell assentiu.
– E o seu braço?
– Foi um mero arranhão. Se não se importar em continuar me ajudando, por favor, descubra a que horas a primeira carruagem para Londres parte, e venha me dizer.
Hawkeswell retirou-se. Sebastian fechou a porta novamente.
– Nove horas – disse Miss Kelmsleigh. – É o horário da primeira carruagem. Eu planejava embarcar.
Ela disfarçava bem o nervosismo. Não fossem as mãos se apertando e a melancolia da expressão, ninguém adivinharia que estava prestes a enfrentar um julgamento.
Decidido de que sua presença e compostura fariam mais bem do que mal, Sebastian abriu as portas das janelas de par em par para dispersar as sombras da noite. Virou-se para ela e pela primeira vez, à luz nova do dia, olhou-a bem.
O cabelo tinha uma acentuada cor de cobre. Os reflexos arruivados pareciam agora uniformes. Os olhos tinham uma tonalidade de verde impressionante. As feições eram regulares e mais delicadas do que a luz crua do fogo dera a entender. O rosto, de uma beleza única e madura, mais atraente que formoso.
Atraente o bastante para fazê-lo parar um momento e recordar vividamente aquele beijo. Depois, pegou a cadeira e a virou para a lareira, mas no canto.
– Por favor, sente-se aqui. Assim que ele entrar verá que é uma senhora e isso afetará toda a conversa.
Ela obedeceu. Sebastian tirou a pistola de cima da mesa, onde ficara a noite toda, e pousou-a na lareira, contra a parede, onde não seria imediatamente visível.
Ouviu-se outra pancada na porta, nem de perto tão forte como a de Hawkeswell. Aquela qualidade hesitante, de certa forma, era um bom sinal.
Sir Edwin Tomlison era um sujeito alto e muito magro cujo farto cabelo preto começava a ser tingido por mechas grisalhas. O traço resignado que Sebastian notou em sua boca quando ele entrou no quarto e se apresentou disse muito. Tratava-se de um homem que gostava de ser juiz de paz pela posição social que lhe proporcionava dentro do condado, mas que não apreciava os deveres jurisdicionais que o cargo acarretava.
– Lord Sebastian Summerhays – cumprimentou Sir Edwin com uma reverência. – Tive a honra de conhecer o seu irmão, antes de ele ir para a guerra e... – A voz dele sumiu. O rosto assumiu uma expressão de condolência.
– Parece que teve suas próprias aventuras de guerra, Sir Edwin. Lembro-me de quando foi armado cavaleiro por causa delas.
O rosto de Sir Edwin se reavivou. Como simples escudeiro de campo armado cavaleiro ficou agradado pelo fato de o irmão de um marquês saber os motivos.
Sebastian apresentou Miss Kelmsleigh. Sir Edwin mostrou surpresa, e reconhecimento, ao ouvir o nome dela.
– Temos aqui uma situação complicada, senhor – disse ele a Sebastian. – Lá embaixo se encontra um grupo apreciável, todo mundo muito excitado com os acontecimentos empolgantes que proporcionou. As histórias deles chegarão a Brighton pelo meio-dia, e a Londres à noite, por isso precisamos conversar francamente.
– É a minha intenção. Disse ao estalajadeiro, como digo agora, que apareceu um intruso, que disparou em mim durante uma luta. Fugiu imediatamente.
– Consegue descrevê-lo ou identificá-lo?
– Não o vi muito bem. Aconteceu tudo muito depressa. Talvez pensasse que o quarto tinha apenas malas e que os ocupantes estivessem jantando no andar de baixo. Ele pareceu tão surpreendido por me ver quanto eu pela invasão – continuou Sebastian. – Mas ele tinha um chapéu diferente. Marrom, talvez, fora de moda. – Fez uma descrição elaborada.
Sir Edwin digeriu a informação. Dirigiu a Audrianna um olhar penetrante e depois caminhou pensativamente até a janela. De cinza-escura, a luz passara a prateada, revelando sua expressão descontente.
Sebastian se aproximou. Sir Edwin olhou pela janela e falou baixinho:
– Por acaso ela é filha de Horatio Kelmsleigh? Não há ninguém na Inglaterra que não conheça esse nome. A presença dela aqui levanta questões.
– Compreendo que isso possa acontecer. Faça suas perguntas que responderei como cavalheiro que sou, tanto quanto é permitido a um cavalheiro.
– Quer dizer que existem perguntas que um cavalheiro não responderia a este respeito?
Sebastian não respondeu. Deixou que o silêncio falasse por ele. E diabos levassem a reputação de Audrianna.
– É minha obrigação dizer que o estalajadeiro me contou que Miss Kelmsleigh disparou o tiro que provocou esse ferimento, senhor.
– O estalajadeiro não estava presente e não pode dar nota dos fatos. Tem a minha palavra de que esteve aqui uma terceira pessoa, um homem, como lhe disse. Jurarei pela inocência dela se assim quiser. Comparecerei às suas sessões trimestrais para isso, se necessário, mas preferia poupá-la da exposição de ter de se defender de uma acusação tão sem fundamento.
Sir Edwin corou. Pedir tal coisa a um cavalheiro que dera sua palavra seria um insulto. Ficou abalado por Sebastian ter sequer insinuado que tal coisa tivesse ficado implícita. No entanto, olhou outra vez por cima do ombro, para as costas de Audrianna.
– É curioso ela estar aqui, desempenhando seu papel na investigação, Lord Sebastian. Não esperava que os dois fossem... conhecidos.
– Essa estranheza não tem interferência alguma no seu dever, correto?
– Não, senhor, corretíssimo. Se houve um intruso, não tem. Tentarei manter o nome dela fora disso, mas se não conseguir... Talvez devesse dizer que ela estava aqui para dar informação a respeito das atividades do pai? Pode ser que impeça que alguns presumam que a presença dela teve outros motivos.
– Pode dizer o que quiser, e os outros podem presumir o que quiserem, mas ela não disparou aquela pistola.
Sir Edwin anuiu.
– Acho que compreendo as circunstâncias que se apresentam, caro senhor.
Sebastian olhou para o relógio de bolso.
– Sir Edwin, a primeira carruagem parte dentro de quinze minutos. Miss Kelmsleigh deseja voltar a Londres. Peço que a acompanhe ao andar de baixo e a coloque em segurança no transporte, para os curiosos e grosseiros não a importunarem com perguntas.
Sir Edwin empertigou-se.
– Com certeza. É provável que isso realmente aconteça logo, acho eu. Seria atencioso poupá-la do pior esta manhã. – Uma nova luz se assomou ao olhar. Uma luz crítica, pois o cavalheiro à sua frente seria para sempre poupado do pior, enquanto Miss Kelmsleigh pagaria qualquer custo que estivesse associado ao infame episódio.
Sebastian acatou a crítica silenciosa. Ninguém acreditaria que a encontrara ali por um capricho do destino. O importante era que Sir Edwin não a deteria até a sessão trimestral, para enfrentar a acusação de tentar assassinar o irmão de um marquês.
Sebastian dirigiu-se para a cadeira dela.
– Miss Kelmsleigh, Sir Edwin terminou e está satisfeito. Irá escoltá-la à carruagem agora.
Ela ergueu os olhos, que estavam fixos nas pernas. Sua expressão estoica sumiu para mostrar o alívio que sentia. Os olhos verdes refletiam a preocupação que ela escondera.
– Estou livre? – articulou, em silêncio, com os lábios.
Ele assentiu e ofereceu a mão para ajudá-la a ficar de pé. A palma suave da mão dela tocou na dele, pousando levemente, mas comunicando, ainda assim, a intimidade silenciosa da noite. Sua mão deixou a dele quando esticou o braço para pegar na capa.
Sir Edwin pegou a mala e ficou na porta à espera. Audrianna se aproximou. Antes de ir embora olhou para dentro do quarto e dos olhos de Sebastian, com uma expressão que ele não conseguiu decifrar.
Capítulo 4
Era perto da meia-noite quando o cabriolé que Audrianna pegara na estalagem local a deixou em casa.
À luz do candeeiro da carruagem, a casa parecia um bloco alto e retangular. O espírito de Audrianna gemeu de alívio assim que viu a forma simples e rústica. A salvo da estrada, longe o bastante de Londres para fingir que o falatório da cidade não existia, aquela casa e as pessoas que nela viviam proporcionavam o apoio e o conforto de um verdadeiro lar e uma verdadeira família.
Só ali vivia há meio ano, mas dentro daquelas paredes conhecera mais contentamento do que em qualquer outro lugar do mundo.
O edifício estava escuro, exceto por uma luz dourada que se via na janela da sala da frente. Era esperar demais que Daphne tivesse deixado um candeeiro aceso e tivesse ido se deitar. A prima estaria cosendo ou lendo enquanto aguardava o retorno do membro ausente da casa.
O papel de Daphne na casa era difícil de descrever. Parte mãe, parte anfitriã, parte dona de casa, tratava as inquilinas como irmãs. As regras que estabelecera para a casa obrigavam a existência de igualdade entre todas elas, em todas as coisas. Na verdade, porém, todas dependiam da sua generosidade.
Audrianna entrou na sala e colocou a mala numa cadeira.
Daphne estava sentada perto da lareira, com o cabelo muito claro completamente solto e já escovado para a noite como um rio de seda. Vestia um roupão que caía solto pelo corpo esguio e alto.
Ergueu os olhos do livro. Um sorriso de alívio surgiu no rosto adoravelmente delicado. Os olhos cinzas depararam com a bainha enlameada e a mala de Audrianna.
– Está cansada e provavelmente com fome – disse. – Vá à cozinha comer alguma coisa.
Era típico de Daphne não reclamar tão quanto era típico que, se ela quisesse, teria motivos de sobra para isso.
Audrianna atravessou a sala atrás da prima, até a curta passagem que dava na cozinha. Originalmente uma estrutura separada, a cozinha fora ligada à casa através daquele corredor estreito na mesma altura em que se aumentara a estufa.
Na grande lareira da cozinha luziam apenas algumas brasas, e Daphne cuidou de alimentar o fogo.
– Quando lhe entreguei sua canção nova hoje, Mr. Trotter me deu dinheiro para que eu desse a você. Vinte xelins.
Mr. Trotter era editor de partituras musicais em Londres e concordara em publicar algumas canções que Audrianna compusera.
– É muito mais do que eu esperava.
– Ele disse que “O meu amor inconstante” vendeu particularmente bem. Disse para que eu lhe dissesse que suas músicas tristes dão mais dinheiro do que as outras.
– Não tenho certeza se quero escrever só canções tristes, mas vou tentar compor mais algumas.
– Certamente qualquer coisa que escreva que vier do coração terá sucesso. “O meu amor inconstante” vendeu bem por causa disso.
Possivelmente era verdade. Quando Audrianna compusera a canção, estava se sentindo devastada com a inconstância de Roger, depois de ele a ter rejeitado por causa da desgraça do pai. As lágrimas a cegavam enquanto trabalhava na melodia.
Daphne abriu um armário, examinando o interior.
– Acho que Mrs. Hills planeja comer o resto deste fiambre amanhã ao jantar, por isso é melhor não roubá-lo. Deixe isso aí que arranjo outra coisa.
– Um pouco de queijo e pão é o suficiente.
– Tem certeza? Se eu tivesse chegando de viagem...
– Pão e queijo está ótimo.
Daphne serviu a comida, sentando-se depois em frente à Audrianna, do outro lado da mesa de trabalho.
– Foi a Londres visitar sua mãe?
– Você bem sabe que só a visito quando combinamos antes, e quase sempre ao domingo.
– Eu não sei de nada, e nem mesmo sobre essa sua aventura. Não havia me dito uma palavra. Nem um recado. Se Lizzie não tivesse reparado que tinha feito as malas, eu poderia achar que tinha caído no rio.
Então Daphne sempre ia reclamar. Tinha sido realmente indelicado partir sem dizer nada, mas uma palavra que dissesse teria dado oportunidade a muito mais protesto do que desejava.
– Devo lembrar-lhe da regra para se viver nesta casa, Daphne. Uma das normas mais importantes é não nos intrometermos nas histórias nem nas vidas umas das outras.
Aquela casa, composta por mulheres solteiras e independentes, mantinha a civilidade e a segurança graças à regra de Daphne. Assim como os códigos dos monges de antigamente, os preceitos da regra governavam seu comportamento e ajudavam-nas a evitar o tipo de desavença que poderia facilmente surgir num ambiente assim. No momento em que chegou, a regra lhe parecia descabida, mas logo passou a apreciar sua sabedoria.
– Tem razão. É uma boa parte da regra. Uma parte essencial – concedeu Daphne. – Não impede, porém, que nos preocupemos, nem que cuidemos umas das outras como irmãs. Razão pela qual a regra inclui também a indicação de que, se nos ausentarmos durante grande período, é necessário informar as outras para que não se preocupem.
Não a repreendia, apesar das palavras. Sua voz era suave demais para ser considerada uma censura. Havia nela preocupação, e uma delicada compaixão, e talvez um pouquinho de mágoa, como se a discrição de Audrianna implicasse uma perda de confiança.
Audrianna manteve-se empenhada em comer. Não se atrevia a olhar para Daphne. A prima era detentora de uma sabedoria de vida que excedia em muito o esperado de uma mulher que ainda não chegara aos trinta. Seria difícil conseguir esconder seu desânimo se Daphne a olhasse nos olhos.
Uma mão branca se esticou e tocou suavemente no braço de Audrianna.
– Visitou algum homem, Audrianna?
Depois dessa, Audrianna teve de olhar para ela. Não foi só a pergunta que a surpreendeu, mas também a forma singela como Daphne a fizera. Falara como se fosse normal Audrianna ter passado a noite anterior com um homem.
E, para ser honesta, ela tinha mesmo.
Sentiu o sangue ferver quando se deu conta disso.
– Não é que eu queira bisbilhotar sua vida ou o estado de sua virtude – retomou Daphne, fingindo não ter reparado no rosto enrubescido nem no abatimento. – Na verdade, eu me pergunto se devia dar tanta importância à virtude, neste sentido, como se dá. É só que...
– É só que, o quê?
– Sei que ainda está se recuperando do que se passou com o Roger e que ainda não superou a desilusão – prosseguiu docemente. – Se visitou algum homem, isso não me preocupa tanto quanto o motivo de tê-lo feito. Espero que a mágoa não a tenha deixado imprudente. Não sentirá nem felicidade nem prazer se estiver ligada a alguém por ressentimento, decepção ou rebeldia.
– Pode ter certeza de que não embarquei em nenhuma ligação, por nenhuma razão. Sou grata pelo meu lugar na sua casa, querida prima. Mais grata do que pode imaginar. Estive ausente esses dois dias por um assunto pessoal, e não um assunto do coração. Por favor, vamos acabar com a explicação agora mesmo.
Daphne baixou a cabeça, aceitando e recuando. Não se mostrava insultada. Ainda assim, Audrianna receou ter ofendido a prima. Normalmente tinham opiniões parecidas e aquela conversa fora o mais perto que já chegaram de um desentendimento.
Não teria se importado em confiar a história a Daphne, mas naquela noite não sabia ao certo como explicar, nem o que dizer. Precisava de um longo descanso antes de se dedicar a destrincar os acontecimentos e implicações da desastrosa viagem.
Levantou-se e levou o prato para a pia. Daphne continuava sentada, numa serenidade pálida e encantadora.
Audrianna inclinou-se e abraçou a prima, sentindo-a calma como sempre, o que a reconfortou.
– Vou para o meu quarto. Amanhã de manhã nos vemos. Agradeço sua preocupação. Peço desculpa por ter causado isso.
Daphne virou-se e a beijou.
– Durma bem, minha querida. – Assim que Audrianna chegou à porta, Daphne falou novamente: – Ah! Tenho outra coisa para lhe falar, senão vou esquecer. Audrianna, a pistola que estava no alto do armário da biblioteca desapareceu. Se encontrá-la, por favor, me avise imediatamente.
Sebastian fez uma careta de dor ao vestir o sobretudo azul que o criado segurava. O braço esquerdo recusava o movimento.
Um cirurgião chegara de madrugada para aplicar unguentos e um novo curativo. Anunciara que o ferimento parecia preservado. Aparentemente, a pior consequência seria aquela maldita rigidez do braço inteiro durante mais alguns dias.
Consultou o relógio de bolso e se certificou de que eram dez horas, seguindo para o andar de baixo, para os aposentos do irmão, Morgan.
Não era só porque estava na cidade de manhã que precisava visitá-lo, mas ainda assim o fazia. Sabia que o irmão desejava passar aquela hora com ele, a companhia silenciosa que se faziam enquanto bebiam café e liam os jornais e a correspondência. As discussões sobre as histórias e as estratégias que ocupavam o governo. O interregno de normalidade, num dia em que tantas coisas serviriam para lembrar que era de se esperar muito pouco.
O Dr. Fenwood saiu para a sala de estar ao mesmo tempo em que Sebastian entrava. Fenwood não era realmente médico, mas sim um criado de força significativa e circunspeção adequada. Morgan tratara-o por Dr. Fenwood uma primeira vez por brincadeira, mas nunca mais parou.
Agora todos o tratavam por Dr. Fenwood, para Morgan manter a pequena pretensão de que a pessoa que o ajudava com uma intimidade por vezes escandalosa era um profissional da medicina. Existiam muitas ilusões semelhantes naquela casa, com todos se esforçando para preservar a dignidade de um homem bom.
– A saúde do marquês hoje de manhã está ótima – informou Fenwood. O título lhe subira ligeiramente à cabeça e ele avançava sua opinião como se soubesse a diferença entre a saúde estar ou não boa. – A disposição do marquês também está boa.
Era essa a informação que Sebastian realmente queria. O irmão com frequência sofria de surtos de depressão. Os médicos verdadeiros haviam avisado desde o início que se tratava de uma coisa comum em inválidos.
Entrou no aposento que servia de pequena sala de estar ao amplo domicílio do marquês. O irmão não ouviu a porta se abrir e continuou a ler a correspondência. Havia um tanto dela. A alta sociedade ainda enviava convites, sabendo que nunca seriam aceitos. E Morgan, terceiro marquês de Wittonbury, lia cada um deles, como se pudesse escolher ir a alguns jantares festivos.
A cadeira de Morgan era recostada à janela, pela qual podia olhar a cidade. Tanto a mesa como um cobertor negro obscureciam qualquer vislumbre das pernas imóveis que o haviam feito prisioneiro daquele aposento desde que fora transportado para casa vindo de uma guerra à qual se juntara nobre e idealisticamente, tardia e impulsivamente.
O fato de Morgan ter comprado a patente com a guerra em estado tão avançado sempre pareceu a Sebastian uma ironia impossível. Dava vontade de perguntar se a retirada francesa na campanha peninsular tinha sido programada para o destino arruinar a vida de Morgan.
Sebastian ocupou seu lugar na cadeira que ficava diante do irmão e se serviu de café da cafeteira que o aguardava. Nenhum criado ficava por perto, para não importuná-los naquela rotina que os dois partilhavam.
Morgan levantou os olhos da carta que lia.
– Que bom que está de volta.
– Não contava que a chuva me atrasasse ontem.
Normalmente, se faltasse às visitas matinais, Sebastian avisava Morgan. No dia anterior não fora possível, claro.
Sebastian não se importava com esta imposição à sua rotina.
Ele próprio a criara, ao iniciar o hábito e permitir que o irmão dependesse dele. Atualmente Morgan tinha tão poucos visitantes que só lhe restava a companhia da família para quebrar o tédio do dia.
Não obstante, enquanto Sebastian justificava a ausência do dia anterior, percebeu que sua vida mudara em comparação com a do irmão. A paralisia que encerrava Morgan naquele aposento, vivendo uma vida tragicamente alterada, também mudara radicalmente o destino de Sebastian.
– Estive perto de Brighton – explicou Sebastian. – Fui verificar uma coisa relacionada com aquela questão das munições.
– Pode ter se tratado apenas de negligência, como todo mundo pensa.
– Não acredita realmente nisso.
– Não. – Morgan olhou pela janela, mas na verdade sua visão voltava-se para dentro. Para as memórias da guerra, suspeitou Sebastian.
Morgan seguira o escândalo de perto, incrédulo com os relatos jornalísticos de uma companhia que ficara indefesa por causa de má pólvora. O marquês de Wittonbury quis que fosse feita justiça aos soldados mortos e Sebastian quis que o irmão conhecesse a satisfação de ver os camaradas de armas finalmente vingados.
– Ficou sabendo de alguma coisa?
– Posso ter descoberto um homem que sabe alguma coisa. Ele pode ter uma informação que acabe revelando a verdade. Finalmente.
Morgan assentiu distraidamente. Pegou um dos jornais impecavelmente passados a ferro que aguardavam sua atenção.
Sebastian fez o mesmo. Aquelas visitas haviam se tornado rotina. Ritualizadas.
– Nossa mãe esteve aqui de visita ontem à tarde – comentou Morgan enquanto perscrutava o periódico. – Queria falar sobre você.
Bom, aquilo não era rotina.
– Mesmo?
– A-hã... Quer que eu lhe diga que deve se casar. Escolheu várias moças que se adequam.
– Tenho certeza de que ela pensa que sim.
– Eu disse a ela que não devia se iludir e pensar que tenha mudado tanto assim. Sugeri que aquilo que ela vê como uma nova página é apenas uma película que obscurece as folhas antigas. Discrição não é o mesmo que arrependimento ou mudança.
– Obrigado.
– Ficou muito decidida e imperiosa... Bom, você sabe como ela é.
– Tem lhe visitado muito estes dias?
Morgan encolheu os ombros.
– Mais do que antes.
– Demais, então. Avise a Fenwood para não recebê-la na próxima vez. Não permita que ela se assenhore do seu apartamento e entre nele a seu bel-prazer.
Existira sempre o perigo de a mãe deles transformar Morgan numa criança assim que tivesse a oportunidade. Intrometia-se, o mimando e dominando, até ele perder o direito de ser um homem distinto.
Esse havia sido o motivo de Sebastian se mudar para aquela casa quando o irmão voltou da guerra. Sua presença assegurava que a mãe não expandiria demais o seu domínio, especialmente no que dizia respeito ao filho mais velho.
– Sempre foi melhor em lidar com ela do que eu. Como em tantas outras coisas – declarou Morgan.
Não havia nada que dizer adiante daquilo, por isso ambos voltaram-se aos jornais.
– Disse que esteve perto de Brighton, ontem? Ouviu alguma coisa acerca do espetáculo no Duas Espadas?
– Espetáculo?
Morgan estreitou os olhos para ler as letras impressas. Deixou sair um sorriso.
– Um homem levou um tiro de uma amante. Aquilo é que deve ter sido um bom teatro. Ele não morreu, parece. Mesmo assim, não se deve ter falado de outra coisa lá embaixo.
– O que está lendo aí?
Morgan corou.
– Um dos jornais de fofoca da nossa mãe.
– De Brighton?
– Londres.
Maldição! Sir Edwin estava certo. A história provavelmente chegara à cidade antes de qualquer uma das suas vítimas. Evidentemente, não havia nomes no jornalzinho, porém.
Ainda.
O ritual terminou às onze horas. Sebastian se despediu e voltou ao próprio quarto. O criado pessoal o saudou com uma carta selada na mão.
– O endereço não estava correto, meu senhor.
Sebastian pegou a carta. Escrevera-a para Miss Kelmsleigh e enviara-a por um mensageiro para a casa do pai.
– Não vivem mais lá?
– Mrs. Kelmsleigh sim, e Miss Sarah Kelmsleigh. Audrianna Kelmsleigh, porém, não. O lacaio perguntou e lhe disseram que ela fora morrar no Middlesex, perto da aldeia de Cumberworth.
Sebastian levou a carta para o quarto. Abriu uma gaveta e olhou para a pistola que trouxera do Duas Espadas. Suas tentativas de devolvê-la de forma discreta não tinham dado certo.
Podia mandar o despachante a Cumberworth. Se Miss Kelmsley havia se mudado para o campo, bastariam algumas perguntas para localizá-la. Podia igualmente embrulhar a pistola e dá-la ao criado, e dar o assunto por encerrado.
Viu a pistola numa mão suave, feminina. Viu olhos verdes de mulher cintilando de vida, depois acendendo de fascínio e paixão, e, por fim, esmaecendo de melancolia. Imaginou ela atravessando a hospedaria até a carruagem, fingindo não reparar que os outros clientes olhavam e sussurravam.
Disse ao criado para mandar buscar o cavalo.
Capítulo 5
Cumberworth continuava uma aldeia rural, mas Londres se aproximava a cada ano que passava. Já fora absorvida pelos subúrbios da cidade, um dos muitos vilarejos do Middlesex que viam recém-chegados se misturar com velhos residentes e agentes imobiliários decompor quintas em pequenas propriedades para as famílias prósperas da sua vizinha maior.
A chegada de Sebastian, portanto, não atraiu grande atenção.
Desceu a rua principal, passando por lojas em edifícios velhos de tabique e casas de pedra alinhadas. Procurou uma taverna.
O Baron’s Board não estava muito cheio às duas da tarde e a cerveja de Sebastian chegou rápido. Bebeu em pé, submetendo-se à inspeção curiosa do proprietário.
– Também está assim úmido na cidade? – perguntou o homem, secando canecas de cerveja.
– Pior – respondeu Sebastian.
– Está a caminho de um lugar mais seco?
– Não, vim à procura de uma pessoa para tratar de negócios. Talvez a conheça. Miss Kelmsleigh.
O proprietário estalou a língua.
– Eu conheço ela e as amigas. Todas as pessoas de Cumberworth conhecem as hóspedes de Mrs. Jones.
– Ah, conhecem? Acho que Miss Kelmsleigh é prima dela, não sua hóspede.
– É difícil saber do que chamar aquelas mulheres, não acha? O resto não são parentes, não me parece. Só um grupo de mulheres que vieram de visita e nunca mais foram embora.
– Mrs. Joyes vive na aldeia?
– Tem propriedade a pouca distância. Uma casa boa e um bom pedaço de terra. Cultiva flores numa estufa grande lá. Vende-as em Londres a floristas chiques. A casa dela fica um tanto afastada da rua, por isso há uma placa pintada no local onde é preciso virar. Flores Preciosas, é assim que o negócio dela se chama. – Estalou novamente a língua. – Até parecem boa gente. São reservadas. Não há razão para pensar que haja alguma coisa imprópria, mas as pessoas falam, não é mesmo?
Sem dúvida. Sebastian acabou de beber a cerveja e pediu indicações para chegar ao letreiro do Flores Preciosas.
Quinze minutos depois, seguia pelo caminho privado que conduzia à casa de Mrs. Joyes.
Era o tipo de casa boa e sólida que se encontrava por toda a Inglaterra. Bonita, na sua alvenaria de pedra cinzenta, era grande demais para uma simples casa rústica e pequena demais para ser um solar. No topo, um sótão com telhado duplo erguia-se em dois pisos de altura tendo apenas janelas bem proporcionadas decorando a fachada simples.
Não apareceu ninguém para ficar com seu cavalo, por isso Sebastian atou as rédeas a um poste. O tempo que esperou depois de bater à porta deixava a entender que poucos criados trabalhavam lá, apesar da propriedade deixar transparecer alguma riqueza.
A porta finalmente abriu. Uma governanta muito magra de meia-idade espreitou-o por entre os folhos da touca. Leu o cartão dele e voltou a espreitar. O olhar dela se demorou na caixa de madeira comprida que ele trazia debaixo do braço.
– Disseram-me que Miss Kelmsleigh vive aqui – explicou ele. – Vim devolver uma coisa que ela perdeu.
Uma moça loira, bonita, surgiu. Também leu o cartão.
– Eu trato disto, Mrs. Hill.
A mulher mais velha se retirou. A loira indicou que entrasse.
– Devia falar com Mrs. Jones – prosseguiu. – É a proprietária da casa. Está na estufa. Vou levá-lo até lá.
Num passo tranquilo, levou-o até os fundos da casa. Passaram por uma biblioteca com bonitas estantes e muitas cadeiras estofadas. Uma segunda sala de estar ocupava a parte de trás da casa. Através de uma das janelas, viu uma estufa.
Situada a vinte metros da casa, a estufa era muito maior do que as encontradas em casas rurais, a não ser que fossem propriedades muito grandes. A metade de cima das paredes era de vidro, num mosaico de painéis retangulares suportados por ferro.
A entrada para a estufa ficava no fundo de um corredor que saía da sala de estar. A mulher que o guiava abriu uma porta e ele foi envolvido por um calor úmido. Olhou para cima. Metade do teto era composto também por pequenos painéis de vidro.
– Aguarde aqui, por favor – indicou ela, desaparecendo por trás de uma enorme palmeira num vaso. Momentos depois reapareceu e gesticulou para que se aproximasse. Apontou Mrs. Joyes e se despediu.
Mrs. Joyes trabalhava sentada a uma mesa coberta de vasos cheios de terra. A mesma terra sujava o avental, as mãos e a touca. Enquanto ele se aproximava, ela pegou um trapo para limpar a pior parte.
Tinha um rosto muito bonito. Muito pálido. Muito perfeito. Olhos cinza-escuro. Possuía uma elegância natural que afetava até sua postura de pé. Se ele nunca a tivesse visto, poderia ter ficado embasbacado. Só que ele já a vira antes. Tinha certeza.
– Lord Sebastian Summerhays, que honra. Não é frequente termos visitas tão ilustres. Procura uma flor para dar de presente a uma pessoa da sua estima? Temos pelargônios raros de nossa própria hibridação que são sempre apreciados.
– Procuro uma mulher que, segundo me disseram, vive aqui. Miss Kelmsleigh. – Indicou com a cabeça a caixa que trazia. – Devo devolver-lhe algo que lhe pertence.
– Miss Kelmsleigh não está em casa. Deve voltar muito em breve, se quiser aguardar. Ou pode deixar a caixa comigo.
Bom, era aquilo. Podia largar a caixa e ir embora. Não havia razão para não confiar que Mrs. Joyes a entregasse a Miss Kelmsleigh quando voltasse. Se avisasse para não abri-la, era bastante provável que controlasse a curiosidade.
– Se estiver voltando em breve, eu mesmo lhe darei.
– Então deixarei a indicação para ela vir para aqui assim que retornar. – Olhou para o lado. – Lizzie, pode... Ora essa, onde é que ela se enfiou? Estava aqui mesmo antes de a Celia trazê-lo e até leu o seu cartão... – Estalou a língua em sinal de exasperação. – Por favor, aguarde aqui, Lord Sebastian, enquanto vou pessoalmente dizer para nos enviarem Miss Kelmsleigh.
Deixou-o no meio da vegetação. O ar tinha um aroma luxuriante cuja densidade úmida continha um pouco de tudo. Citrinos e rosas e até o laivo fresco da erva. Uma pessoa podia se inebriar com um perfume daqueles. Enfiou o dedo na terra de um dos vasos em que Mrs. Joyes estivera trabalhando. Tocou no volume de um bulbo.
Desceu tranquilamente o corredor, passando por vários limoeiros em vasos e por mesas de botões floridos. No fundo do edifício uma videira1 crescia dentro do vidro. A raiz encontrava-se do lado de fora, mas o pé espesso entrava por um buraco aberto na parede de tijolo. As várias gavinhas trepavam por apoios robustos, estirando-se depois por barras de ferro, colocadas meio metro acima da sua cabeça. Debaixo deste frondoso caramanchão interior, estavam uma mesa de pedra e quatro cadeiras, compondo uma vinheta toscana.
– Foi uma experiência – esclareceu Mrs. Joyes, regressando.
– A videira, não pensei que resultasse.
– Deve ser agradável ficar sentado a esta mesa nos dias ensolarados de inverno. Tem um belo conservatório de plantas.
– É uma estufa. A maior parte daquilo que as pessoas chamam conservatórios na realidade são estufas, ou estufas de forçagem. Imagino que a palavra não seja suficientemente requintada e por isso a designação incorreta se tenha tornado comum. Um verdadeiro conservatório de plantas faz isso mesmo, limita-se a conservar as plantas durante o inverno, período em que estão em dormência. Temos um desses, também, no fundo do jardim.
O rosto dela voltou a prender sua atenção.
– Queira me desculpar, acho que fui inadvertidamente grosseiro. Já nos cruzamos, tenho certeza, mas não consigo me lembrar onde.
– Já nos cruzamos, realmente, anos atrás. Eu trabalhava como governanta para a família do duque de Becksbridge. Fomos apresentados um ao outro numa receção no jardim, à qual fui autorizada a ir com a mais velha das minhas pupilas. Tem uma memória excelente para as pessoas insignificantes com as quais se cruza na vida, Lord Sebastian.
Se ela fosse de fato insignificante, ele poderia merecer o elogio, mas duvidava de que algum homem esquecesse que a conhecera.
– Já fui em outras festas com as crianças presentes. Não me lembro de vê-la nessas.
– Só estive com elas um ano, antes de conhecer o capitão Joyes e deixar minha posição. Na cidade ninguém ouviu falar que houvesse algum homem na casa.
– O seu marido está a serviço da marinha?
– Esteve no exército. Morreu na Guerra Peninsular. – A pergunta não alterou a graciosidade da sua postura, mas os olhos, escurecendo um pouco, revelaram que o assunto ainda lhe causava dor. – Se me der licença novamente, vou ver porque que demora Audrianna. Já devia ter voltado.
* * *
Audrianna olhava fixamente para o cartão que Daphne entregara a Celia. Lord Sebastian Summerhays estava na casa.
Por quê? E como é que ele a encontrara?
Num instante, soube a resposta. Ele devia ter ido primeiro à casa da mãe, que não demoraria a lhe escrever, querendo saber por que o perseguidor do pai voltava a importuná-las.
– Sente-se, por favor, Audrianna. Mal consigo me aproximar, mesmo na ponta dos pés – disse Celia.
Audrianna deixou-se cair numa cadeira para Celia poder mexer no seu cabelo. Celia era a melhor de todas com penteados. Apresentava sempre os seus caracóis loiros numa variedade interminável de estilos.
– Bem, ela disse “imediatamente”. – Audrianna lembrou Celia da mensagem que ela própria lhe transmitira assim que chegou em casa.
– Daphne não se incomodará que demore um minuto para se arrumar – retorquiu Celia enquanto deixava as mãos ágeis fazerem sua magia. – É o irmão de um marquês que está na estufa. E membro do parlamento. É o que está no cartão dele.
Como Celia não sabia que ela já conhecia Lord Sebastian, Audrianna decidiu que o silêncio era a melhor resposta.
– É um homem de grande importância e o nome dele está sempre aparecendo nos jornais. Não pode recebê-lo com a aparência de quem passou a tarde no convés de um navio.
Audrianna nem mesmo queria recebê-lo. Rezava para que ele não tivesse trazido más notícias sobre o juiz de paz. E se Sir Edwin tivesse decidido que ela afinal precisava comparecer às sessões trimestrais?
– É o melhor que consigo fazer, a não ser que o deixe todo solto. A culpa é sua, por ter tirado a touca assim que entrou em casa – repreendeu Celia, se afastando. – Devíamos começar do início e ajeitá-lo direito.
– Não fará isso – respondeu a voz de Daphne.
Audrianna levantou a cabeça. Daphne estava à porta da sala de estar, a que dava para o corredor que conduzia à estufa. Vestia o avental de trabalho sujo de terra e sua touca mais velha, mas tinha uma aparência etérea e deslumbrante. Daphne podia se vestir de trapos que continuava linda.
– Deve me seguir imediatamente, Audrianna. Ele está determinado a vê-la – informou Daphne.
– Ele disse por que está aqui?
– Só disse que lhe trouxe uma coisa que havia perdido.
– Eu não perdi nada.
– Está numa caixa comprida. Como uma caixa para luvas. Uma caixa para luvas bem grande.
A pistola!
Audrianna sentiu o rosto ficar corado. Daphne fitou-a com aqueles olhos cinzas.
– Como é que Lord Sebastian Summerhays ficou sequer de posse de algo que é seu? – O lindo rosto de Celia enrugou-se de repente quando reconheceu o propósito daquela visita.
– Não faço a menor ideia – murmurou Audrianna.
Daphne permaneceu serena.
– Alguém viu a Lizzie?
– Estava aqui há pouco – disse Celia.
– Tem um talento para desaparecer no momento menos conveniente. Vem comigo Audrianna. Seu cavalheiro está à espera.
– Ele não é meu cavalheiro – retorquiu Audrianna, descendo o corredor.
As pálpebras de Daphne se estreitaram rápida mas muito eloquentemente.
Daphne parou no meio do corredor que dividia as duas filas de mesas que sustentavam hostes de pelargônios, lírios e jacintos. Quanto a Audrianna, estava feliz demais para fazer uma pausa para se recompor.
Do lugar onde estavam conseguiam ver Lord Sebastian. Estava sentado numa das cadeiras da mesa de pedra, por baixo do caramanchão, com o belo perfil, pois olhava para alguma coisa do outro lado da estufa. Descontraído e confiante, sua presença era tão marcante naquele jardim interior como na estalagem rústica.
– Não parece irritado nem descontente. É muito simpático, mas dá para perceber que não é homem de brincadeira – disse Daphne calmamente.
– Eu não andei brincando com ele.
– Isso é evidente. Não tem nenhuma experiência nisso. Ele, por outro lado, é mestre no assunto.
– Você já o conhece?
– Sei sobre ele, e nos cruzamos uma vez, há muito tempo. Ele também se lembra. Diz que está muito diferente, nos últimos anos. Pergunto-me se é verdade.
Terminadas as considerações do momento, Daphne acompanhou Audrianna até o visitante.
Lord Sebastian levantou-se ao vê-las se aproximar. Daphne apresentou-lhe Audrianna, retirando-se em seguida.
– Devo terminar os bulbos enquanto ainda a luz está boa – explicou.
Audrianna esperou que Daphne desaparecesse. Ela não estaria muito longe, porém. Conseguiria ouvir tudo o que não fosse silenciosamente sussurrado.
Audrianna apontou para a caixa de madeira que estava sobre a mesa.
– É aquilo?
Lord Sebastian notou seu tom de voz baixo e circunspecção.
– Sim.
– Obrigada por ter vindo devolvê-la. Pertence a Daphne e ela reparou que não estava aqui na casa. Acho que terei de me justificar quanto ao seu desaparecimento, mas será mais fácil se a tiver de volta.
Ele pousou as pontas dos dedos em cima da caixa.
– Ela não sabe da sua aventura?
– Esperava poupá-la dos detalhes.
– É melhor que saiba por você do que por outra pessoa.
– Sim, devia lhe contar tudo. Acho que ela já adivinhou uma parte.
– Que parte?
– A parte a seu respeito.
Ele olhou para o lugar onde Daphne trabalhava invisivelmente nos bulbos.
– Parece que existe um jardim agradável lá fora. Dá a impressão de ser abrigado do vento, e o sol está quente. Quer me mostrá-lo, Miss Kelmsleigh?
Sebastian acompanhou Miss Kelmsleigh e saíram os dois para o jardim.
– Foi primeiro à casa da minha mãe? – indagou ela.
– Enviei um mensageiro com uma carta. Duvido que sua mãe saiba que a carta era da minha autoria, e, de qualquer forma, nunca chegou a sair das mãos do mensageiro.
Ela pareceu ficar satisfeita ao ouvir que a mãe não sabia que Lord Sebastian Summerhays andara à procura dela. Era claro que ficaria. Não só ele se incluíra entre os inimigos do pai como sua reputação com mulheres não seria do agrado de nenhuma mãe.
– Vive aqui há muito tempo, Miss Kelmsleigh?
– Apenas há seis meses. A Daphne é minha prima. Depois que o meu pai morreu, me escreveu e me ofereceu um lugar para morar. Achou que eu podia querer sair de Londres. Foi muito gentil da parte dela. Muito mais do que nós fomos na época em que ela precisou de uma casa, quando era mais nova.
– É uma bela propriedade. Ajuda a cultivar flores?
– Todas ajudamos quando podemos, mas são principalmente Daphne e Lizzie que cuidam das flores. Eu dou aulas de música para contribuir para o meu sustento. Era onde eu estava quando você chegou. Na parte alta da rua, ensinando piano a uma mocinha.
Entraram descontraidamente num jardim informal, agora não cultivado, apenas com algum buxo e trepadeiras cobrindo grande parte do muro em tijolo que o cercava. Os caminhos serpenteavam pelo meio de canteiros e à volta de árvores de fruto despidas. Sebastian visualizou tons pastel na primavera e uma profusão de cores no fim do verão, e Miss Kelmsleigh e Mrs. Joyes sentadas no pequeno caramanchão, coberto agora por uma rosa trepadeira.
Miss Kelmsleigh caminhava graciosa nos seus botins, fazendo raminhos e folhas mortas estalarem. Deixava educadamente que ele desse a sua volta no jardim, mas não se esforçava para conversar. Uma vez ou outra, seus lábios se apertavam ligeiramente, lembrando a boca da sua mãe quando tinha visitas indesejadas que tinham de ser toleradas devido à importância social do visitante.
Àquela luz límpida, sua maturidade era mais óbvia do que à luz do fogo ou do suave clarear da aurora. Vinte e tantos, tinha certeza agora. Já era tarde para ficar sem casar. Talvez tivesse perdido o pretendente na guerra, assim como muitas mulheres da sua idade.
– Trouxe a pistola pessoalmente por uma razão – retomou ele, sentindo-se obrigado a justificar a sua intrusão. – Queria avisá-la de que já se deu o primeiro sinal de más-línguas. Veio uma menção num pasquim esta manhã.
Ela parou e bateu com o pé no chão, numa expressão de raiva e frustração. O seu rosto carregou-se de preocupação.
– Já?
– Só as fofocas da estalagem. Sem nomes. Pode não dar em nada.
– Ou pode ficar muito pior, com nomes ditos ou aludidos de maneiras que não deixam dúvidas a ninguém. Quanto tempo até sabermos qual dos desenvolvimentos será?
– Essas coisas têm um padrão. Dentro de uns quatro dias ou morre ou torna-se muito mais público. Se for o último, eu lhe enviarei um aviso e, claro, farei o que for necessário para proteger sua reputação o quanto puder.
– A minha mãe será sem dúvida a primeira a me avisar, Lord Sebastian. Se ela se ver envolvida em mais algum escândalo, nunca serei capaz de me desculpar o suficiente com ela. E ela prontamente censurará a minha missão, taxando-a de inconsequente, apesar de nobre.
Não tinha percebido a referência que ele fizera à sua proteção. Claro que não. Ela o detestava pelo papel que tivera na desgraça do pai. Nunca especularia acerca do que seria necessário, quanto mais aceitar fazê-lo. Consideraria a condenação social preferível a aceitar a proteção dele, sem dúvida.
– Inconsciente, sim. Igualmente imprudente, perigoso e, como acabou se tornando, desastroso. Também...
– Não é necessário ficar recitando o dicionário todo. Já me censurei o bastante e não preciso de suas repreensões.
– Também corajoso. É admirável que tenha querido lutar pelo nome dele, por mais errada que a sua fé possa estar.
Ela o olhou com ar inquiridor, franzindo a testa com desconfiança. Pensou sem dúvida que ele a lisonjeava novamente em perseguição dos seus intuitos.
E provavelmente era isso. Ela ainda não decidira.
– Tenho pensado no Dominó – confidenciou ela. A menção do pai possibilitara um tópico que tornava a presença dele tolerável, embora aquele fosse o último que ele escolheria. – Estudo na minha mente aquilo que recordo da aparência dele. Tinha cabelo ruivo, tenho quase certeza. Pergunto-me também se não seria estrangeiro.
O caminho os levou a contornar uma estrutura de pedra simples com grandes janelas em todas as paredes. Devia ser o conservatório de plantas, o verdadeiro, que Mrs. Joyes mencionara, imaginou ele. Entraram numa pequena zona bravia que florescia ao seu lado, ao fundo do jardim.
– O que a faz pensar que ele possa ser estrangeiro?
– O chapéu dele era esquisito. Mais maleável e baixo do que se vê aqui. E talvez o casaco também fosse. O corte. O peso. – Encolheu os ombros. – Não sei explicar, mas ele não parecia inglês.
– Pode estar certa.
– Seria mais fácil encontrá-lo se estivesse. Existem muito menos estrangeiros do que ingleses na Inglaterra.
– Infelizmente, os homens não andam com penas coloridas nos chapéus por aí proclamando o que são.
– No entanto, os estrangeiros se reúnem em determinados lugares de Londres. Certas hospedarias e tavernas. A Lizzie, outra pessoa da casa, diz que também tem alguns hotéis que são preferidos pelos estrangeiros. Se eu fosse visitar os lugares em que houvesse a possibilidade de um homem desses estar, poderia...
Ele colocou-se à frente dela com um passo, detendo-se, e fazendo-a deter-se também.
– Não deve fazer isso. Não seria seguro.
A expressão indiferente dela deixava bem claro o que pensava daquela ordem.
– Estarei perfeitamente segura. Vou levar alguém comigo desta vez. E, claro, agora tenho a pistola de volta.
Ele não conseguiu perceber se ela estava provocando-o ou se pretendia na verdade repetir aquela imprudência.
– Darei instruções a Mrs. Joyes para fechá-la à chave. A posse de uma arma só a coloca em maior perigo. A próxima vez que apontar uma pistola a um homem, ele pode não reagir de modo muito cavalheiresco.
– Bem, são palavras sábias, com certeza, já que sabe tão bem do que fala.
Sentiu-se pego pelos olhos irônicos. Como também pela leve curvatura da sua boca. E da sua forma descontraída de ser, que o fez reviver os momentos de intimidade que viveram naquela estalagem.
– Refere-se àquele beijo – disse ele, lembrando dele mais distintamente do que seria recomendável. Sentiu excitação, numa espiral lenta de tensão. – Imagino que deva me desculpar agora, embora você tenha tido um comportamento que só podia ser mal interpretado.
– Isso é que não tive! Não fiz nada para que fosse um canalha comigo.
– Tampouco fez alguma coisa para evitar. E sua mera presença naquele lugar desculpava as minhas interpretações precipitadas. No entanto... – disse com uma pequena reverência. – Miss Kelmsleigh, as minhas sinceras desculpas pela minha insolência dessa noite. Uma senhora não deveria ver-se sujeita a um comportamento tão indesculpável. Por favor, me perdoe.
Ela levou as mãos aos lábios.
– Você me espanta! Ultrapassa todos os limites do razoável ao vir aqui me insultar ainda mais, zombando de mim dessa forma.
– Vim devolver uma pistola que você me apontou diretamente, completamente carregada e de gatilho perfeitamente armado – recordou-lhe ele.
Aquilo aplacou o crescimento da ira. Suas faces suaves e pálidas avivaram-se de cor, como aconteceria se ela se tivesse passeado com o tempo frio. Ou se recebesse um beijo que não se esforçasse para rejeitar.
– Foi errado da minha parte. É verdade que eu também tenho desculpas a pedir. Admito que devo partilhar da culpa por quase tudo o que aconteceu durante o nosso peculiar encontro.
Fez o seu melhor sorriso.
– Insisto que coloque toda a culpa em mim. Lembre dos acontecimentos da forma que quiser, e eu não o corrigirei. Não me peça, porém, para que eu minta a mim mesmo, ainda que o sentimento de correção faça com que minta para si mesma.
Um novo lampejo de raiva. Aparentemente, ela era temperamental.
– Eu não minto, meu senhor. Nem sequer a mim mesma.
– Acho que está tentando se convencer de uma mentira. Se convencer de que não gostou do beijo e que eu a importunei muito mais do que o fiz. Eu, por outro lado, admito livremente que não me arrependo, exceto pelo fato de a minha distração ter me dado um tiro.
Ela estudou-o com um olhar que refletia perplexidade e espanto e um vestígio de medo. A última foi devido ao melhor dos motivos, apesar de ela provavelmente ainda não ter percebido.
– A minha prima disse que ainda há pouco tempo você era famoso pelos seus jogos com as mulheres, Lord Sebastian. Por mais que ache um verdadeiro absurdo, penso-o tentando me seduzir neste preciso momento.
Ele olhou para o horizonte, numa tentativa inútil de contrariar o calor impositivo que sentia crescer dentro dele. Analisou o fundo do jardim. Só se via a esquina da casa. O conservatório de plantas tirava toda a visibilidade da estufa. A confirmação de que estavam longe dos olhares de todos os ocupantes da casa não ajudava em nada a situação.
– Talvez esteja, Miss Kelmsleigh. Os velhos hábitos são difíceis de perder.
Ela riu.
– Espero que no passado não tenha praticado o hábito de impressionar uma mulher com tão pouca chance. Ainda que eu tenha ficado um pouco... aturdida no Duas Espadas, não quer dizer que aconteça agora, por isso está usando esse seu sorriso para nada. Por favor, lembre que eu não sabia quem você era quando veio me incomodar.
Ele voltou a olhar para ela com atenção. Para os anéis do cabelo que a brisa levantava e os olhos verdes, cheios das memórias daquela noite. A luz fria daquele pequeno bosque dava à sua pele uma aparência de neve.
– E agora sabe quem eu sou, Miss Kelmsleigh. E eu sei quem você é. Estranho, não acha, a pouca diferença que faz?
Não fazia quase diferença nenhuma, pelo que podia entender da reação dela. Nem de perto nem de longe tanto quanto deveria. Ela tentou manter uma pose de sofisticada indiferença, mas faltava a prática da dissimulação em tais situações.
– Faz toda a diferença, por razões que serão evidentes. – As palavras falhavam e carregavam um tremor.
– Faz? Não estou percebendo.
– Sua lisonja e galanteio seriam mais bem investidos numa rocha. Nunca me deixaria comover por você agora.
– Verdade? – Aproximou-se mais, apesar de saber bem que não devia. – Nunca? Nem um pouco?
Os olhos dela se arregalaram de choque, inocentes e encantadores. Deu meia-volta, abruptamente, para fugir. Ele não podia permitir que aquilo acontecesse.
Agarrou seu braço e, fazendo-a virar, puxou-a para perto.
A intenção era um beijo breve, para mostrar que tinha razão. Nada mais. Pelo menos foi isso que disse a si mesmo.
Ela não resistiu nem se debateu. Simplesmente ficou rígida durante o tempo da surpresa e depois abandonou-se ao beijo. O corpo reagiu como se o calor dos braços dele espantasse um frio profundo.
Lábios suaves. Hesitantes e curiosos e inábeis. Não precisava que ela lhe devolvesse o beijo. Tudo o que precisava saber era dito pela sua respiração, pelo bater do coração e pela sua dócil aceitação.
O beijo não foi breve. Um transformou-se em dois, depois três.
A compulsão do desejo se impôs e só a inocência dela o travava.
Com outro gênero de mulher, o mais comum, não teria se incomodado com seduções, mas lhe agradava surpreendê-la com carinhos e pequenos prazeres, e perceber o atônito deleite dela quando suas carícias contidas se espalhavam pelas costas e pela cintura.
Mais quente agora. Chamas. Imagens das possibilidades. Argumentos para prosseguir. Uma guerra entre corpo e mente como não havia lutado em anos passados, só que não havia real disputa em tais situações.
O abraço envolveu-a completamente até os seios e ventre estarem colados a ele e os tremores ecoarem no corpo. Ele pousou a boca na veia que latejava no pescoço e escutou os arquejos entrecortados de prazer. Aqueles sons o lançavam numa crescente implacável e determinada na busca da satisfação.
Ele segurou sua cabeça para devassar a boca, esquecendo-se da sua inocência. Nela, uma sensação de choque a atravessou antes de se submeter à intimidade, mas não parou. Já louco, ele, imaginando-a nua em cima dele, montada nele, soltando os gritos que agora tentava engolir, acariciou com maior ousadia até sentir sua mão passar pela suavidade do peito dela.
Foi aqui que um grito escapou, o som sublime do prazer de uma mulher. E mais um, e outro, enquanto ele brincava com o seu mamilo duro sobre o tecido fino das vestes.
Ela o acompanhava no delírio agora, apoiando-se nele para manter o equilíbrio, arqueando as costas para encorajá-lo. Pensamentos dispersos tentavam ganhar forma. Ele precisava levá-la dali e procurar um lugar, em qualquer direção, para poderem se possuir. Precisava...
Uma dor dilacerante, incendiária, o cegou. Em seguida, ficou furioso e deixou sair um palavrão pela boca.
Sebastian recuperou a presença de espírito e a visão pela metade. Parecia que o braço esquerdo estava queimando. Miss Kelmsleigh estava a três passos de distância, as mãos tapando a boca numa imagem de horrorizada comoção.
– Peço desculpa! Não tive intenção de machucar seu braço – disse ela desesperadamente num sussurro. – Quando ouvi a porta, empurrei para me libertar e... – Olhou para o jardim com aflição. Risos e falas femininas chegavam até eles na brisa.
Veio juntar-se outra dor àquela que sentia no braço. Muito mais inferior.
– Não importa. Não é nada.
– Tem certeza? Está com um ar muito pálido.
Sem dúvida. O corpo o castigava impiedosamente. Preocupada, ficou observando-o enquanto se recompunha. Ele precisou de um longo minuto.
Ela se acalmou ao ver a melhora.
– Teria sido horrível sermos vistos pela Daphne e pela Celia naquele... no estado em que estávamos. Estou certa de que compreende. Elas saem da casa de repente. Normalmente não vêm até aqui fora a essa hora, ficam trabalhando na estufa.
Ele imaginou uma mulher muito pálida permitindo-se um passeio à luz do sol. Teria de se lembrar de exprimir sua gratidão a Mrs. Joyes, qualquer dia.
– Não devíamos mesmo... Foi muito mau da sua parte... – O abatimento de Miss Kelmsleigh dera lugar a uma repreensão. Ele não queria mesmo ouvir nada daquilo naquele momento.
– Claro que devíamos – rugiu. – Queríamos, por isso devíamos, e fizemos. E pare de fingir que a forço a me beijar.
Se a dor que se dissipava lentamente não estivesse deixando-o inquieto, teria sido menos desbocado. Daquela maneira, só incitava Miss Kelmsleigh a ver tudo à pior luz possível.
Começou a subir o caminho que conduzia à casa.
– Vejo que é tão cruel como pensei. O seu intuito é me humilhar, com que propósito, não sei.
Ele foi no seu encalço e mal resistiu a agarrá-la novamente, para provar que estava certo.
– Sucumbi a um impulso, e à sedução de uma memória muito prazerosa. E o intuito, caso não tenha reparado, é prazer recíproco. No entanto, tem razão. Eu não devia, portanto devo desculpar-me novamente.
– Parece que está é se dando bem! – Assomaram ambos ao fundo do jardim, perto da esquina do conservatório de plantas. Duas toucas na cabeça de duas mulheres permaneciam viradas para lá, como se ignorassem que ele e Miss Kelmsleigh estavam sequer no condado, muito menos ali por perto.
Miss Kelmsleigh apontou para o fundo da parede do jardim.
– Não quero nenhuma desculpa, Lord Sebastian. Quero apenas que vá embora. Há ali uma entrada para o jardim. Não precisa voltar a cruzar a casa.
– Claro. Um bom dia para você, e obrigado.
– Obrigado?
– Pelo passeio no jardim. Pela sua hospitalidade.
Ele fez uma mesura. Ela o fulminou com o olhar. Ele sorriu. Ela corou. Ele olhou-a nos olhos.
Ela deu meia-volta e saiu correndo, em direção à estufa.
1 Em inglês, “grape vine”, que num registro coloquial significa também “boatos, diz-que-diz”. (N. da T.)