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Capítulo 6
– Hoje tenho que sair cedo – anunciou Sebastian. – Tenho um encontro marcado com o Castleford, no centro da cidade.
– O dever vem sempre em primeiro lugar, claro – replicou Morgan. – Fico satisfeito por ver que consegue negociar com o Castleford. Devo admitir que nunca fui capaz de esconder a minha antipatia pelo homem e pelo seu comportamento infame. É por isso que se revelou eficaz no governo tão rápido. Você tem a capacidade de lidar com canalhas sem que eles percebam seu desdém.
– Quem sabe não acreditam que eu também sou um deles, e não os desdenho? Talvez pensem que somos companheiros de viagem.
– Até parece! Um passado mais rebelde como o seu era a norma entre os jovens. Nunca chegou a fazer nada verdadeiramente desonroso. Ao contrário.
Sebastian não ia discutir sobre o próprio caráter, muito menos para convencer Morgan de que tinha mais máculas do que as que ele conhecia. A verdade era que o duque de Castleford via de fato um companheiro de viagem quando falava com Sebastian, pois no passado haviam seguido lado a lado pelos caminhos mais aventurosos.
Agora, a sua associação, com toda sua aparência de afabilidade e utilidade prática, era a de dois lutadores em confronto, movimentando-se à procura de fraquezas um no outro. Castleford achava inconveniente que Sebastian tivesse ocupado o lugar de Morgan na vida pública. Quando Morgan enfrentou uma luta política, ele bateu em retirada.
– Seja como for, o Kennington e o Symes-Wilvert vão passar aqui, por isso sua falta não será sentida – comentou Morgan. – A minha manhã será ocupada.
– Estou indo embora agora, então.
O criado pessoal de Sebastian aguardava à saída do apartamento de Morgan, segurando o chapéu e as luvas. Preparado para o dia, Sebastian saiu para a rua.
Percival Kennington e Bernard Symes-Wilvert entraram na casa no momento em que Sebastian saía. Ambos segundos filhos de barões, eram amigos de Morgan desde os primeiros dias da escola. Visitavam-no pelo menos uma vez por semana, sempre juntos assim, e sempre de manhã, porque Morgan à tarde sentia cansaço. Os dois loiros, com um ar rosado e saudável e corpulência de guerreiros, podiam ser irmãos apesar do tamanho desigual. Kennington era a versão grande e Symes-Wilvert, a versão pequena.
Sebastian nunca achara nem um nem outro interessante, mas começou a gostar deles no último ano pela dedicação que mostravam a seu velho amigo.
– Está de saída, Summerhays? – perguntou Kennington. – Tínhamos esperança de conseguir persuadi-lo a ficar para um jogo de cartas.
– Lamento ter de recusar, hoje. – O alívio temperado pela culpa impôs sua marca desconfortável. Aquelas sessões de uíste habitualmente acabavam sendo um tédio. Kennington e Symes-Wilvert ressuscitavam fofocas antigas, ou questionavam Sebastian sobre assuntos do governo e ele esquivava-se das perguntas que não eram da conta deles. Morgan se deleitava com o raro prazer de ter amigos por perto.
– Nós vamos subir, então – anunciou Kennington. – Talvez ainda estejamos aqui quando voltar.
– Tratarei de verificar isso. Sim, por favor, subam. Ele está à espera.
As visitas de Morgan dirigiram-se para a escada. Sebastian, para o cavalo. O encontro com Castleford era apenas dali a uma hora, e tinha outro lugar para ir primeiro.
– Se ficarmos aqui muito mais tempo, os hóspedes do hotel vão todos interpretar mal – advertiu Celia.
– O que quer dizer com isso? – perguntou Audrianna.
Celia revirou os olhos.
– Duas mulheres jovens, se exibindo a qualquer viajante que olhe pela janela? Pensa um pouco.
Audrianna só precisou de um momento para compreender.
– É um preconceito revoltante da parte deles.
Por outro lado, estavam em frente ao Miller’s Hotel, do outro lado de Jermyn Street, há dez minutos apenas e ela já se sentia exposta.
– Qual é o objetivo de vir aqui, afinal? – indagou Celia. – Se eu imaginasse que pretendia ficar de vigília em frente a um hotel, nunca teria sequer vindo contigo para a cidade.
– Tenho esperança de ver o intruso da estalagem. – Audrianna relatara uma versão muito breve dos acontecimentos no Duas Espadas às mulheres da casa. Não havia outra maneira de explicar a visita de Lord Sebastian, ou de ser honesta com Daphne acerca da pistola. – O Dominó era estrangeiro, eu acho. Me disseram que eles muitas vezes ficam neste hotel. Esperava... – O que ela esperava? Que se ficasse tempo suficiente olhanod para a fachada do Miller’s Hotel, o Dominó aparecesse?
Qualquer coisa do gênero, admitiu para si mesma. Esperava um milagre.
– Vamos continuar andando – insistiu Celia.
Nesse momento, saiu um homem do hotel. Sua aparência chamou a atenção de Audrianna. O chapéu dele lembrava o de Dominó, com a copa baixa e aba mole. Observava-o atentamente, enquanto ele caminhava do outro lado da rua.
Não tinha cabelo ruivo, mas ela podia ter se enganado, já que só havia a luz da lareira. Mas ele também parecia alto de mais. A própria forma de andar...
– Veja só – murmurou Celia entredentes. – Isso é que é uma coincidência interessante.
Audrianna seguiu o olhar de Celia. Lord Sebastian descia a rua a cavalo.
– Vamos. – Deu meia-volta e arrastou Celia na direção contrária.
– É muito rude não cumprimentá-lo – criticou Celia. – Tenho certeza de que a viu.
– Não quero falar com ele. Vamos embora, anda!
– Está ficando muito corada, Audrianna – comentou Celia, abafando um risinho. – O que aconteceu quando ele a visitou? Tem mais alguma história do que aquela que nos contou?
– Não aconteceu nada – respondeu Audrianna. – Ele foi incorreto e eu...
– Miss Kelmsleigh? Mas claro, é mesmo. Achei que tinha reconhecido a capa. – A voz, muito próxima, pregou Audrianna no chão.
Virou-se e viu uma bota de pele de qualidade superior encostada a um cavalo muito grande. Ergueu os olhos para o rosto voltado para ela. Lord Sebastian tirara o chapéu para cumprimentá-las. Estava ali como um conquistador examinando os despojos de guerra.
– Lord Sebastian, que encontro inesperado. – Audrianna não pretendia nunca mais voltar a vê-lo. Sentiu o rosto ficar quente. Memórias das carícias que haviam trocado no jardim invadiram sua mente. Apresentou Celia.
– Vieram passear pela cidade só pelo exercício ou estão a negócios? – perguntou ele.
– Um pouco dos dois.
Ele olhou ao redor, detendo-se no hotel.
– Interessante que o passeio de vocês tenha dado nesta rua. Pretendiam, por acaso, ir àquele hotel perguntar pelo nosso amigo?
– Por que eu faria isso?
– É frequentado por comerciantes estrangeiros. Você tinha me falado sobre um plano de visitar este tipo de lugar para localizá-lo. Têm certeza de que não estão aqui por isso?
– Nem um pouco.
Sebastian apeou-se do cavalo.
– Bem, eu estou.
– Você roubou minha ideia!
– É uma ideia que é melhor executada por um homem. Fico satisfeito por ter aprendido sua lição e não ir fazer nenhuma tolice. Se tivesse vindo aqui hoje para proceder a alguma investigação, poderia ter de castigá-la por me desobedecer. – Fez uma pequena reverência e começou a conduzir o cavalo de volta ao hotel.
Celia observava-o enquanto ele se afastava.
– Está se dirigindo a você de forma muito íntima. Daphne sabe?
Audrianna seguiu no encalço de Sebastian, ignorando as perguntas de Celia.
– O que está fazendo? – indagou Celia, segurando seu braço.
– Vou ver o que é que ele vai fazer.
Ao atar as rédeas a um poste, Lord Sebastian reparou nela. Sorriu aquele sorriso maldito dele. Audrianna fingiu não sentir efeito nenhum. A expressão de Celia era de absoluto espanto.
– Se vai ficar aí plantado vendo quem entra e sai, eu devia ficar também – começou Audrianna. – Afinal, fui eu que consegui vê-lo bem.
– Só porque eu estava distraído. – O calor dos seus olhos exigia que ela recordasse o como e o porquê de isso ter acontecido. – Não pretendo ficar aqui plantado. Seria ineficaz. Entrarei e falarei com o dono e os criados, para saber se está tem alguém hospedado aqui que corresponda à sua descrição.
– Eu mesma podia fazer isso.
– Você nunca teria recebido uma resposta. Eu sim.
Encaminhou-se para o hotel. Audrianna foi atrás, arrastando Celia.
Lord Sebastian parou à porta.
– Eu lhe direi qualquer coisa.
– Eu mesma ouvirei, obrigada.
– Dou minha palavra de que não lhe esconderei nada.
– As suas convicções e as minhas não são as mesmas. Os nossos objetivos divergem em todos os sentidos.
– Isso não é verdadeiro. Eu quero a verdade.
– Não, você quer mostrar que tem razão. Acho que só ouvirá o que quer ouvir, por isso devo confiar só em mim para descobrir a verdade.
Ele abriu a porta para ela e Celia entrarem, a contragosto.
A missão podia não ser executada melhor por um homem qualquer, mas era evidente que aquele homem em particular conseguia resultados. Seu cartão produziu um corre-corre entre os criados do hotel, que queriam atenção daquele membro da alta sociedade.
– Você diz que ele é ruivo... – repetiu o proprietário, pensativo, ao ouvir a descrição vaga da presa deles. – Mr. van Aelst não tem cabelo ruivo, embora use um chapéu muito parecido com o que descreve. Uma coisa disforme, devo dizer. Acabou de sair, senão arranjava uma desculpa para puxar assunto com ele, para você poder olhar bem para ele.
– Ele não é o homem que procuramos, tenho certeza – afirmou Audrianna. – Ainda assim, de que país vem Mr. van Aelst?
– Dos Países Baixos. Armsterdam.
– Tem mais algum hóspede de Armsterdam? – inquiriu Lord Sebastian.
– Não, não neste momento.
– Teve algum recentemente? Durante a última semana?
O gerente balançou a cabeça.
Não havia mais nada a perguntar. De volta à rua, Audrianna preparou-se para se despedir.
– A informação foi escassa, mas não deixou de ser alguma coisa. Dominó pode ser dos Países Baixos.
– Ou não – retrucou Lord Sebastian. – Posso ficar descansado de que não passará a tarde questionando todos os criados de todos os hotéis e estalagens sobre este assunto? Não será bem recebida, nem bem-sucedida, se o fizer.
– Não pode ficar descansado com nada porque eu não faço promessas. Não espero que exista reconhecimento da sua parte de que eu, tendo visto Mr. van Aelst, pude riscá-lo da lista, enquanto o senhor nunca poderia fazê-lo. Bom dia, Lord Sebastian.
Depois de deixarem Lord Sebastian, Audrianna e Celia terminaram o que tinham para fazer na cidade. Visitaram duas floristas de Mayfair para lembrar aos proprietários que havia dívidas atrasadas no Flores Preciosas. Normalmente, Daphne cumpria ela mesma esse dever, mas ficara em Cumberworth para uma reunião privada.
Em seguida desceram Albemarle Street, em direção à loja de Mr. Trotter. Audrianna terminara uma canção nova. Tinha esperança de que Mr. Trotter concordasse em publicá-la.
– Ele a beijou? – perguntou Celia. – Lord Sebastian. Beijou-a?
– Que pergunta extraordinária, Celia.
– Beijou?
– Lembre-se da regra de Daphne. Nós não nos intrometemos na...
– Beijou. Eu sabia. Sempre adivinho.
– Duvido de que adivinhe sempre.
– Se fosse mais experiente, talvez não adivinhasse, mas é inocente nesses assuntos, por isso consigo.
– Ah, é verdade, você é tão experiente! – provocou Audrianna.
– Mais do que você.
De fato, naquele momento algo em Celia a fazia parecer experiente. Um véu de maturidade cobriu seu rosto, suscitado por... quê? Uma memória? Uma perda?
– Ele a quer – confirmou Celia. – Está nos olhos dele quando olha para você. Certamente consegue ver isso.
– Não tenho certeza daquilo que vejo. – Nada de bom, contudo. O suficiente para assustá-la. E excitá-la. E, considerando a pessoa que ele era para sua família, deixá-la triste. – Seja como for, o que ele quer não é significativo.
Começava a dar para ver o letreiro de Mr. Trotter, pendurado bem alto, ao fundo da rua, mostrando duas flautas em cruz por cima de uma folha com notas musicais inscritas.
– Lord Sebastian era um libertino, não faz muito tempo – disse Celia. – Não era o pior. Não era completamente implacável. Mas era um libertino. Dizem que se regenerou, mas homens assim nunca se regeneram completamente, por isso deve ter cuidado.
Audrianna virou-se para Celia quando pararam em frente à porta de Mr. Trotter.
– É muito cínico dizer que uma pessoa não pode se regenerar. Talvez ele tenha conseguido. – As provas indicavam que não, mas ela queria defender uma posição moral mais abrangente, por isso ignorou esse fato. – E como é que sabe tanto sobre ele ou sua reputação? Anda lendo aqueles pasquins todos que a Lizzie compra? Achei que tinha melhores...
– Audrianna. – Celia se desviou da conversa, olhando fixamente para a loja de Mr. Trotter. – Audrianna, olha.
Audrianna virou-se. Mr. Trotter tinha uma grande variedade de pequenos instrumentos musicais em exposição na vitrine, a par do grande quadro coberto de veludo onde fixava suas partituras mais recentes. O quadro tinha a escolha habitual de hinos e velhos favoritos, com as notas impecavelmente impressas por placas gravadas. A maioria tinha pequenas vinhetas no topo, com imagens de aves canoras ou flores ou símbolos religiosos.
Não foram aquelas que fizeram Celia abrir a boca, porém.
Uma cópia da música da canção de Audrianna, “O meu amor inconstante”, estava em destaque, o meio do quadro. Em vez da moldura de rosas que antes a encabeçara, via-se agora uma gravura grande com duas pessoas.
Um homem bastante parecido com Summerhays desfalecia agarrado ao braço que sangrava. E a mulher que segurava a pistola que o atingira se assemelhava espantosamente à própria Audrianna.
Sebastian se remexeu na cadeira do enorme quarto do duque de Castleford, onde estava sentado. No quarto ao lado, uma mulher deu uma risadinha.
Era típico de Tristan convocar uma reunião e ficar entretido com outra coisa. Sebastian tentou ignorar as razões da demora. Para se distrair, ficou olhando pela janela, via andaimes subindo pelos fundos de Apsley House, no final de Piccadilly Street. Diziam que Wellington pretendia expandir a casa mais um bom pouco.
A porta se abriu finalmente e Castleford apareceu à entrada, meio vestido, de camisa e calças. O cabelo castanho caía em desalinho sobre a testa e o rosto. A diversão de que gozara na porta ao lado devia tê-lo distraído durante os preparativos para o dia.
– Summerhays, que bom que veio. Peço desculpa pelo atraso mas...
– Castleford – chamou uma voz de mulher.
Castleford olhou para trás, para o quarto. Da sua cadeira, Sebastian também conseguia olhar o interior. Uma mulher nua, morena, estava descontraidamente deitada na cama, dobrando o dedo num chamamento sedutor. Por trás dela, deitada de braços e pernas afastados, estava outra mulher nua, loira, baixa.
– Eu disse que não tenho mais tempo para jogos – repreendeu. – Vistam-se e saiam daqui.
A sedutora fez beicinho. Uma expressão de malícia apareceu nos olhos. Com cuidado deliberado, espreguiçou-se exibindo completamente suas glórias. Depois engatinhou e se virou. As costas afundaram e o rabo se levantou, numa descarada oferta erótica.
Castleford ficou completamente parado. A loira reparou que tinha mais alguém no quarto. Virou-se rapidamente até imitar a posição da amiga.
Castleford olhou para Sebastian.
– Não se importa de aguardar mais um pouco, não é?
– Absolutamente.
Castleford apontou para os rabos.
– Ali a Katyzinha quer fazer uma festa. Acompanhe-me. Lado a lado, como nos velhos tempos.
Sebastian não era imune a seduções femininas e traseiros desejosos. Naquele momento tinha a boca seca e o corpo contraído.
– Declino. Mas vai. Eu espero.
Castleford voltou ao quarto. Deu uma palmadinha no rabo de Katy.
– Ele diz que não. O que posso fazer? Converteu-se em santo e nos deixou.
Katy olhou para trás fazendo beicinho. Ele se inclinou-se e deu-lhe um beijo.
– Não é justo, não é? Vamos fazer o seguinte. Enquanto dou prazer à Janie, fico vendo-a fazer o mesmo em você própria.
Sebastian levantou-se para fechar a porta. Antes de ela bater, Katy posicionara-se perto da cabeça de Janie, de pernas bem abertas e os quadris levantados, para colocar sua suma glória ao alcance fácil da boca da amiga. Castleford posicionou-se por trás do rabo firme e redondo de Janie e baixou as calças.
– Não me parece. – A resposta de Castleford seguiu-se a uma longa pausa. A conversa decorrera como Sebastian planejara, mas agora o decepcionara, com aquela afirmação.
Talvez seu estado de descontração e saciedade tivesse causado a incompreensão de Castleford. Parecia meio adormecido e em estado beatífico.
O humor de Sebastian não estava grande coisa naquele momento. Ouvira mais guinchos e gemidos femininos do que homem algum deveria suportar quando não era ele mesmo que os provocava.
– Se não cooperar com este projeto de lei no Senado, não poderei ajudá-lo com os próprios interesses quando eles chegarem à Câmara dos Comuns – lembrou Sebastian.
Castleford estava preguiçosamente recostado na cadeira, vestindo ainda apenas camisa e calça. Fez um encolher de ombros lento.
– Não estou convencido de que seja capaz de me ajudar, de qualquer forma, por isso, por que gastar capital político para adquirir sua ajuda?
O homem estava pedindo que lhe dissesse as coisas preto no branco.
– Sabe a influência que tenho na Câmara dos Comuns. Esteve do lado oposto dessa influência vezes o suficiente para saber.
– Verdade. Verdade. Você é uma voz forte, com o dom da persuasão. Quem esperaria que tivesse os dotes de Maquiavel? O mundo esqueceu rapidamente seu passado, também. Mas a Câmara dos Comuns... bem, é composta por homens tacanhos que são inconstantes em suas lealdades. Nunca se sabe realmente o que faz com que sejam persuadidos a ir numa direção ou na outra.
– E se dispõe a arriscar que, ainda assim, eu leve a melhor?
– Questiono sua capacidade de cumprir com a sua parte do acordo. Pode ser já uma moda ultrapassada, tanto quanto sei. Por pouco que seja, pretendo considerar essa troca que me propõe, para decidir que caminho mais me beneficia.
Não adiantava nada continuar discutindo. Aborrecido com a perda de tempo, Sebastian foi para casa.
Assim que o mordomo se aproximou, ele entrou.
– Senhor, foi solicitado que atendesse a seu irmão assim que regressasse. Ele precisa do senhor.
– Está doente? Já chamaram o médico? – O pavor de receber uma má notícia saiu do fundo de seu inconsciente.
– Não sei. Sua mãe está com ele. Foi ela que mandou chamá-lo.
– Devia ter mandado alguém me procurar – reagiu Sebastian, pondo-se a caminho.
Subiu os degraus de dois em dois. Abriu de chofre a porta do apartamento de Morgan, examinando a pequena biblioteca e a saleta.
Ao verificar que estavam vazias, dirigiu-se para o quarto, receoso do que poderia encontrar.
A cena com que deparou no interior do aposento fez com que se detesse à entrada. Não havia médico. Morgan não estava doente. O irmão estava sentado numa cadeira estofada, debaixo da manta que cobria suas pernas inertes, com a aparência de sempre.
Numa cadeira colocada à beira, elegante apesar da postura de ferro, estava a mãe deles. Majestosa como sempre, num vestido branco que fazia o cabelo escuro se sobressair, tinha no rosto pálido o estoicismo sofrido que demonstrava como de costume na presença de Morgan.
Esther, marquesa de Wittonbury, voltou-se para a porta. Uma sobrancelha perfeita se ergueu criticamente por cima de um olho castanho.
– Ah! Aqui está ele.
O tom de voz dizia muito mais do que as palavras. Aqui está ele, a grande desilusão. O caprichoso, o imprestável. O que é tão parecido com o pai nos apetites e pecados.
O que devia estar morto ou aleijado, se fosse esse o destino de algum filho.
Sebastian reconheceu a presença dela mas se dirigiu a Morgan.
– Me avisaram que havia pedido a minha presença. Fico aliviado de ver que parece bem.
– Seu irmão não precisa apenas de você quando está para morrer, Sebastian. Como marquês, ainda tem autoridade nesta família, e no Estado.
– Com certeza. O que quer, Morgan?
Morgan apontou para um papel que tinha no colo.
– Nossa mãe trouxe uma coisa. Espero que consiga explicá-la. Ela diz que há outras, e não apenas esta. Que se vendem bem nas lojas.
Sebastian aguardou. A boca delicada da mãe comprimiu-se. Morgan virou o papel.
No outro lado via-se uma imagem, uma gravura tosca, feita à pressa e desajeitadamente colorida.
A imagem mostrava Miss Kelmsleigh, com uma aparência jovem, vulnerável e aflita, submetendo-se à sedução agressiva de um Sebastian Summerhays de rosto maléfico. Um papel identificado como “Inventário de material” ardia na lareira que se via atrás deles.
Capítulo 7
“Dizem que Lady G está em reclusão na sua propriedade do Surrey essa semana, acompanhada apenas pelos criados mais próximos e um convidado, um poeta de considerável reputação. Talvez esteja a caminho mais uma poesia épica.”
Lizzie lia a fofoca num tom monótono, aborrecido. De queixo pousado na mão, aproximava o papel do candeeiro. Audrianna deixou-se absorver pela elegância do perfil que resultara. O cabelo escuro, puxado para o alto da cabeça, mal se sustinha, e o candeeiro realçava os olhos azuis e feições muito delicadas.
Lizzie suspirou e pegou mais uma página. Não gostava quando Celia pedia aquele entretenimento. Podia se pensar que Lizzie se sentia constrangida com o próprio fascínio pelas colunas sociais.
Só sua voz suave quebrava o silêncio da biblioteca. Daphne lia à lareira e Celia cosia um vestido. Audrianna olhou novamente a folha de papel em branco pousada na escrivaninha à qual estava sentada. Procurava em vão encontrar palavras para avisar a mãe sobre a gravura que ornava a partitura.
– Dizem que EC gastou mais de duzentas libras com o par que comprou de Lord M – leu Lizzie. – Embora em geral se considere que são ótimo gado, há rumores de que na verdade Lord M os tenha oferecido como parte da liquidação de uma dívida de cavalheiros substancial.
Não havia mesmo uma maneira boa de escrever aquela carta. Audrianna perguntava-se como revelar o menos possível. Preferia que fosse muito menos do que confidenciara às mulheres que estavam na biblioteca, e mesmo elas não sabiam daquela longa noite a sós com Lord Sebastian num quarto do Duas Espadas.
Quem pensaria que o bom Mr. Trotter seria ganancioso a ponto de incitar a compra das partituras dela com imagens escandalosas? Infelizmente, como resultado, as vendas teriam aumentado em dez vezes, e Mr. Trotter se fizera de surdo às suas súplicas de voltar com as imagens de flores.
– Dois rapazes do Middlesex, de perto da povoação de Trilby, encontraram os restos...
Embora Audrianna não estivesse realmente ouvindo, o fato de Lizzie parar assim subitamente lhe chamou a atenção, como uma música que tivesse terminado antes das notas finais.
– Estou cansada de ler alto – amuou Lizzie, pousando o papel de lado. – As palavras ficam embaçadas.
– Podia pelo menos terminar esse restinho e não nos deixar sem saber – queixou-se Celia. – Se a Audrianna e eu nos demos ao trabalho de trazer os jornais de Londres, recolhendo todos para você, podia pelo menos ler as melhores partes para nós.
– Por que não nos distrai um pouquinho, Celia? – propôs Daphne. – Podia cantar. A Audrianna tem uma canção nova e podia ensiná-la a nós.
Celia pousou a costura. Levantou-se e se aproximou de Lizzie, tirando-lhe o papel.
– Primeiro quero saber o que os rapazes encontraram. – Procurou a notícia.
– Dois rapazes do Middlesex, perto da povoação de Trilby, encontraram os restos deteriorados de uma bolsa presa nos ramos de uma árvore caída nas margens do Tâmisa. – Celia deu um gritinho. – Uma bolsa? Não se pode dizer que seja muito excitante. Pensei que fosse um corpo. – Olhou novamente. O texto prendeu sua atenção.
– O que mais diz? – perguntou Daphne.
Celia se sobressaltou.
– Foram identificados como sendo propriedade da noiva desaparecida de Lord Hawkeswell, segundo o magistrado local... Oh, Céus! Parece que afinal há um corpo envolvido. Que triste.
Daphne voltou-se para o livro. Celia foi até Audrianna e olhou para a carta que ela escrevia.
– Tem uma letra tão bonita, Audrianna. Admiro sua escrita. É evidente que se trata da caligrafia de uma senhora.
Enquanto admirava as palavras invisíveis na folha em branco, Celia pousou o pasquim na escrivaninha e apontou para lá.
– Não é um bom augúrio, não é, esta bolsa e o destino da moça desaparecida? Entendo por que a Lizzie não quis continuar lendo depois de ter visto esta história trágica.
Seu dedo não apontava para a história da bolsa. Tocava a que estava abaixo.
Histórias recentes vindas de Brighton têm feito muitos se interrogarem se um cavalheiro ilustre, com reputação de garanhão selvagem mas recentemente tido como domado, voltou secretamente às suas travessuras nos pastos.
A identidade da mulher faz muitos suporem o pior tipo de sedução, baseado na repressão e no prejuízo do dever.
Audrianna ficou lendo as palavras. Por mais vagas que fossem, tinha certeza de que se referiam a Lord Sebastian e ela mesma. Mas era uma mentira estúpida. Não houvera repressão e decididamente nenhuma travessura, apenas um mal-entendido ridículo.
Audrianna encarou Lizzie, que no mesmo momento olhou para ela com ar interrogativo. Depois ergueu os olhos para Celia, incapaz de esconder o espanto. O rosto jovem de Celia tinha novamente um véu de maturidade. Isso não é nada de bom, dizia a expressão dela.
– Já que sou a única que desconhece a razão de todos os olhares comprometidos e das poses estudadas, quem sabe uma de vocês possa partilhar o segredo comigo – disse Daphne.
Audrianna olhou por cima do ombro. O livro de Daphne estava fechado. Estivera observando-as.
– É melhor mostrar a ela – incentivou Celia. – Afinal, vai saber alguma hora mesma, pelo jeito que as coisas estão.
Não só Daphne descobriria. Todo mundo descobriria.
Audrianna levantou-se e foi à estante. Tirou o tomo no qual escondera a partitura que trouxera da loja de Mr. Trotter. Colocou-a na mão de Daphne.
Daphne desdobrou o papel e o estudou.
– E o pasquim? – pediu, sem desviar os olhos da imagem.
Celia levou o pasquim. Lizzie juntou-se a elas, à lareira, e também examinou os papéis.
– Receio que esteja completamente comprometida. – O rosto doce de Lizzie comunicava a compaixão de uma boa amiga, mesmo sendo tão abrupta na sua afirmação. Abanava tristemente a cabeça morena. – O escândalo será insuperável.
– Que me importa? – reagiu Audrianna. – Já estou comprometida, pela desgraça do nome do meu pai e pela maneira como Roger me rejeitou.
– Isto é muito pior – replicou Lizzie. – Não há comparação. Afetará sua irmã e sua mãe e suas amigas. As mulheres vão evitá-la intencionalmente para protegerem suas próprias reputações.
– Receio que ela tenha razão – anuiu Celia. – Você sabe que sim, Audrianna.
E aquelas suas amigas, a evitariam? Ela conseguiria superar aquilo se tivesse o santuário daquela casa e família, mas se elas a expulsassem...
– Isso é muito pior, é verdade – anuiu Daphne. – Contudo, é também muito melhor.
– Não concordo com as previsões calamitosas da Lizzie – contrapôs Audrianna, ainda que na verdade concordasse. Mantinha um semblante de bravura, mas uma preocupação angustiante apertava seu estômago. – No entanto, também não vejo como pode ser um cenário muito melhor do que outros, Daphne.
– Lord Sebastian pode não se importar de ser ridicularizado e desprezado em público desta forma – começou Daphne, acenando com a partitura. – No entanto, a mãe e o irmão se importarão consideravelmente. E, ao contrário do que aconteceu com seu pai ou com o Roger, haverá compensações pelo seu sofrimento desta vez. Com a permissão da sua mãe, eu cuidarei que assim seja.
– Preferia que não.
Daphne estudou-a. Depois levantou-se como se a conversa tivesse terminado e voltou a colocar o livro no seu lugar da estante de mogno.
– Vai estar muito frio esta noite – declarou Daphne. – Lizzie, por favor, acende os potes de aquecimento da estufa. Celia, ficarei grata se ajudá-la.
As duas saíram. Audrianna estava de olhos fixos no fogo, imaginando como seria aguardar que o escândalo se dissipasse. Poderia ser um escândalo muito grande, como Lizzie presumia.
Pensando bem, talvez não. Poderia ficar confinado em Londres apenas. Ela poderia conseguir manter sua obscuridade ali no campo. Quantas pessoas que passaram pela loja de Mr. Trotter teriam também ouvido os rumores, afinal? Pensando nisso, uma mulher que dispara num homem não era uma imagem absurda de se colocar no frontispício de uma canção intitulada “O meu amor inconstante”. – Pode não haver grande alarido e...
– Audrianna, lamento, mas terei de quebrar a minha própria regra. – A voz de Daphne, mesmo atrás da sua cabeça, fez Audrianna se sobressaltar.
Daphne contornou a cadeira de Audrianna e sentou-se novamente na sua. Inclinou-se para a frente e estendeu a mão para pegar na de Audrianna.
– Como minha familiar, e jovem ainda inexperiente na sua independência, aqui não é uma mera convidada. Sua mãe concordou que ficasse aqui porque partiu do pressuposto de que estaria em segurança.
– E tenho estado.
– Sim. Esta imagem, porém... Devo pedir que me diga novamente o que aconteceu no Duas Espadas, Audrianna. E, desta vez, imploro para não deixe metade da história de fora.
Sebastian perscrutou o monte de papéis espalhado sobre a escrivaninha. Além da gravura que tinham dado a Morgan, cinco outras tinham sido trazidas da cidade pelos criados, por ordem de Sebastian. Outra ainda adornava o frontão de uma partitura publicada por Mr. Thomas Trotter de Albermarle Street.
A música e canção tinham sido escritas por nada mais nada menos do que a própria Miss Kelmsleigh: “O meu amor inconstante”. Sebastian cantarolava a melodia mentalmente à medida que lia a letra. Parecia uma canção sentida, repleta da dor recente de um coração partido. Parecia que Miss Kelmsleigh havia sofrido uma desilusão amorosa, e soltara sua dor naquela cançãozinha triste.
Voltou-se para os diversos relatos publicados nos pasquins da semana anterior. Não fora identificado em nenhum deles, mas qualquer pessoa que soubesse do rumor sobre os acontecimentos no Duas Espadas (e ele supunha que àquela altura seria toda a alta sociedade) não teria qualquer problema em seguir a direção que a especulação estava tomando. Parecia que o escândalo ia pegar, e pegar bem.
Ter sido acusado de seduzir Miss Kelmsleigh, quando não o fizera, não o surpreendeu. Ele praticamente convidara a essa interpretação quando deixara implícito a Sir Edwin que eles tinham se encontrado porque eram amantes. O mundo sabia que ele não fora nenhum santo, por isso dificilmente poderia esperar que alguém visse as provas de outra forma.
Aquelas gravuras e notícias, contudo, não implicavam uma ligação amorosa. A acusação era de que ele usara o seu papel na investigação sobre o pai dela para coagi-la a ir para a cama com ele. Qualquer pessoa presumiria facilmente que ele descobrira mais do que alguma vez revelara sobre a pólvora ruim, mas que escondera as provas em troca dos favores de Miss Kelmsleigh.
O que o transformara num canalha da pior espécie. Ele era retratado não só como um homem capaz de se aproveitar cinicamente de uma inocente, mas também de alguém capaz de comprometer o seu dever para com a sua posição e a verdade em troca de prazer ilícito.
Reparou que Miss Kelmsleigh, cuja obstinação provocara aquilo tudo, era tratada de forma favorável em todas as imagens e notícias insinuantes. As gravuras mostravam-na doce, inocente, assustada, confusa, abatida, resistente e vitimizada, mesmo as que a desenhavam com uma pistola na mão.
A difamação foi distração suficiente para não estar pronto quando as dez horas chegaram. Mesmo assim, dirigiu-se aos aposentos de Morgan, sem vestir o casaco ou a gravata.
Morgan escondeu qualquer reprovação, já que teria alguma, presumiu Sebastian. Mesmo doente, Morgan se vestia para enfrentar o dia.
– Como vai o seu braço? – perguntou Morgan.
– Ainda está preso e dolorido, mas a recuperação é certa.
Não houve grande conversa durante o café da manhã. Não tinham falado muito desde o encontro de dois dias atrás, em que Morgan mostrara a gravura.
– Está piorando – disse Sebastian por fim. – O escândalo. Toma um rumo infeliz.
– Eu sei. Nossa mãe trouxe várias gravuras diferentes ontem.
– Que atencioso da parte dela.
– A posição que ocupa na sociedade tem muita importância para ela. É tudo o que lhe resta.
– As minhas preocupações são mais vastas do que descobrirmos nossa mãe exposta a algumas insinuações durante as suas visitas sociais. Houve uma mudança na maneira como sou visto. É sutil, mas impossível de ignorar. A minha influência foi comprometida, em comparação com a reputação de Miss Kelmsleigh.
A reação não foi inteiramente sutil. Castleford se retirara imediatamente de negociações sérias. Entre outros membros do parlamento que vira, alguns olhos revelavam um brilho de júbilo quando o fitavam. Mais revelador era o fato de não ter sido convidado para uma reunião importante naquele dia, na qual normalmente esperaria estar presente.
Morgan ponderou a informação.
– Sua chegada pode ter sido abrupta demais para umas pessoas, e a sua ascensão rápida demais para outros. Sempre haverá aqueles que se ressentem de um homem de mérito e importância social que os ultrapassa.
O mérito pode ter ajudado na subida, mas o nascimento e o sangue tinham contado mais. Todo mundo sabia que, apesar de ser ativo na Câmara dos Comuns, Sebastian era o substituto do seu irmão no parlamento, e o próprio lugar que ocupava estava sob a alçada de Wittonbury. Morgan não só era marquês como também fora um dos cordeiros da nobreza sacrificados ao deus da guerra, o que também dava mais peso à influência de Sebastian.
No entanto, Sebastian suspeitava que este ataque indireto ao seu caráter tinha outras razões além da inveja. Um homem não podia ser eficaz na política sem fazer inimigos. Havia vencedores, o que queria dizer que havia perdedores.
Uma vez que Sebastian costumava estar entre os primeiros, havia indubitavelmente homens que procuravam conseguir a maior vingança possível através do escândalo. A única questão era se ele acabaria se tornando completamente inútil. Como Castleford dissera, se tornaria instantaneamente uma moda ultrapassada?
– Nossa mãe está atormentada com as consequências em nível pessoal – retomou Morgan. – Como se referiu, a verdade é que isto lhe provocará alguns momentos de constrangimento e pouco mais. Não há dúvida de que você consegue tomar conta de si mesmo; por isso, mesmo que aconteça o pior, não receio que se volte para a bebida. A única pessoa que sairá verdadeiramente prejudicada com isso será Miss Kelmsleigh.
Morgan olhou brevemente para a rua através da janela. Depois, apoiou os braços na cadeira e acomodou-se melhor. Por fim, pegou a cafeteira e se dedicou à refeição, deixando a referência a Miss Kelmsleigh pairando no ar.
Morgan sempre se revelara um pouco apagado, mas, por outro lado, nunca deixara de ser honesto. Direto, franco e honrado da maneira simples que se ensina aos rapazes, as nuances da vida não raro o desconcertavam. O que o tornava pouco habilitado para o tipo de manipulação dissimulada da conversa que agora tentava.
Não era claro como viera a nascer na família aquele homem bom e decente de poucos vícios. Não saiu do pai, isso era certo. Sebastian sim, para tormento da mãe. Mas Morgan também tinha pouco em comum com ela, não possuindo nenhuma da sua implacável indiferença à dor dos outros.
– Não fiz nada daquilo – afirmou Sebastian. – Não tive os favores de Miss Kelmsleigh em nenhuma circunstância, muito menos naquelas insinuadas por essas más-línguas.
– Não pensei que tivesses feito isso.
– Ah, isso é que não pensou!
Morgan expressou desilusão com o tom áspero de Sebastian.
– Independentemente do que tiver acontecido, ela é vítima duas vezes, não é? Da negligência do pai e agora desses rumores.
– Todos os criminosos têm famílias que se tornam vítimas dos seus atos.
– Foi isso o que disse a nossa mãe. Eu não lhe respondi, porque ela, seja como for, nunca ouve. Digo-lhe, porém, que não gosto do fato de esse criminoso, se realmente era, ter uma família que agora tem de sofrer mais porque seus inimigos resolveram se divertir com esse... mal-entendido.
Morgan olhou com determinação para Sebastian, que susteve o olhar. O resto da conversa aconteceu sem palavras. Depois voltaram ao café e ao correio.
– Vou revelar a verdadeira história por trás do que ficou sabendo no Duas Espadas – declarou Sebastian, quando se levantou para sair. – Para o bem de todos, poderá ser melhor.
– A verdade é sempre melhor.
O inferno que era.
Um escândalo provocava uma agitação muito estranha, pensou Audrianna na tarde seguinte. A casa se tornara fúnebre, mas, ao mesmo tempo, repleta de determinação.
Lizzie e Celia haviam ficado noite adentro debatendo a forma de resgatar Audrianna. Abordaram o problema de perspectivas muito diferentes. Lizzie acreditava que, na melhor das hipóteses, seriam necessárias algumas décadas de uma vida impecável e trabalho de caridade significativo para redimir uma falha que envolvia a perda da virtude. Celia opinava que um comportamento confiante, um estilo admirável e um amante importante conseguiam recolocar mais depressa a mulher na sociedade, e numa posição mais elevada.
Nenhuma das duas perguntou qual era a preferência de Audrianna, que se limitou a ficar sentada na cama enquanto elas dissecavam o desastre em que a sua vida se tornara.
Na manhã seguinte deslocaram-se as duas a Cumberworth para pôr no correio uma carta que Audrianna escrevera finalmente à mãe. Meia hora depois de terem saído, tornou-se claro que a carta não era necessária. Uma carruagem alugada subiu o caminho e parou em frente à casa de Daphne. Esgueirando-se numa janela, Audrianna reconheceu as ocupantes.
Daphne materializou-se ao seu lado e ficaram juntas vendo a mãe e a irmã se dirigirem para a porta.
– Está perturbada, claro – disse Daphne. Referia-se à expressão do rosto da mãe de Audrianna.
Audrianna nunca vira a mãe com um ar tão abatido.
Nem sequer após a morte do pai, nem sequer durante a perseguição constante de Lord Sebastian e de outros, a mãe quebrara completamente. Agora caminhava como se fosse um tormento estar viva. Ainda se vestia toda de preto, apesar de as amigas que restavam argumentarem que o período de luto profundo devia ser encurtado quando é o marido que dera fim à própria vida.
– Sua irmã Sarah parece revoltada – disse Daphne. – Por você, imagino.
– Não é por mim. Ela sabe o que isso vai lhe custar. – Existira uma possibilidade, ainda que pequena, de que Sarah escapasse do pior da desgraça do pai. Com uma pensão modesta e alguns anos decorridos, podia casar decentemente, ainda que não tão bem quanto desejasse. Fora uma das razões pelas quais Audrianna saíra para viver com Daphne – para permitir à mãe gastar o pouco que tinha na única filha para a qual ainda era possível obter um futuro respeitável.
Audrianna seguiu Daphne até a porta. Quando se abriu, tanto a mãe quanto Sarah tinham substituído os seus reais sentimentos por máscaras de compaixão.
– Querida tia Meg – cumprimentou Daphne, inclinando-se para um beijo. – Que oportuno ter vindo. Temos muito sobre que conversar.
– Chegou aos meus ouvidos a história mais absurda, Lord Sebastian. – Mr. John Pond, astrônomo real, espiava pelo novo telescópio meridiano de três metros enquanto falava. Inclinou o mecanismo uma fração de centímetro e voltou a espiar. Acima deles, um painel do Edifício do Meridiano de Greenwich abria-se para as estrelas.
– Era sobre aquela ocorrência no Duas Espadas, à saída de Brighton. Agora o que se ouve é uma narrativa elaborada, comprida e fantasiosa. Algo acerca de um intruso misterioso e um encontro por coincidência. Os seus amigos deviam conceber uma explicação mais plausível, se pretendem absolvê-lo.
Sebastian conhecia Pond há mais de dez anos. Foram apresentados quando Sebastian ainda estava na universidade e desde então o famoso astrônomo lhe ensinara algumas coisas acerca da sua ciência, que não se aprendia em livros nem conferências. Havia se desenvolvido uma amizade que agora dava a Sebastian acesso fácil ao observatório e também dava a Pond a possibilidade de falar assim abertamente.
– Não tenho amigos de imaginação fértil a ponto de criar uma história dessas. Ou estúpidos a ponto de esperarem que uma verdade tão absurda fosse mais rapidamente credível do que uma mentira mais condenatória. A história que ouviu saiu da minha própria boca.
Pond virou a cabeça o suficiente apenas para olhar de soslaio para Sebastian com o olho livre.
– Está dizendo que aquilo foi o que realmente se passou com aquela moça?
– Sim. Tem a minha palavra de cavalheiro.
Pond voltou ao seu estudo dos Céus.
– Ninguém acreditará.
Não, provavelmente não. Todavia, tampouco alguém diria que era mentira. Poderia implicar um duelo. Mas faziam-se conversas inteiras com risos irônicos e sobrancelhas erguidas que diziam o que a boca não podia.
Era uma situação ingrata. A verdade, que se espalhara mais depressa do que o escândalo, parecia apenas suscitar especulação, devido às suas circunstâncias peculiares, e ao fato de tocar na morte do pai de Miss Kelmsleigh.
Melhor seria se não tivesse aberto a boca sobre o assunto.
– Os Céus estão invulgarmente limpos – informou Pond. – Escolheu uma boa noite para vir aqui. Fazia muito que não aparecia.
Há bastante tempo, como em tantas outras coisas. Bastante tempo sem uma mulher, a não ser que cumprisse com a discrição mais sufocante. Bastante tempo sem uma boa cavalgada no campo sem destino. Bastante tempo se não se permitisse dedicar a nenhum dos seus interesses que requeriam tempo, como aqueles estudos astronômicos que outrora reivindicara não terem quaisquer objetivos a não ser a busca do prazer.
Ao ocupar o lugar do irmão, devia ter executado aquelas funções como ele fizera, e não permitir que o dever e o governo absorvessem sua vida. O próprio Morgan nunca fizera isso. Mas Morgan era o marquês, e não tinha de provar nada.
Pond se afastou do telescópio e escreveu algumas notas num papel que tinha perto da cadeira.
– Terminei. É todo seu. Deixo para você a lista das estrelas que estou observando e pode fazer suas observações. Pode me ajudar a fazer Brinkley engolir a teoria dele.
Sebastian ajustou a cadeira, que fora concebida para permitir um ângulo semirreclinado, alinhado com a trajetória do telescópio. Acomodou-se, se encostou e posicionou na ponta do escuro e comprido tubo de metal firmemente suportado por dois pilares maciços, um de cada lado.
– Tenha o cuidado de avisar o vigia quando sair, para que tranque o edifício – advertiu Pond.
Sebastian ajustou a ocular. Observou o céu escuro, entregando-se à reverência da eternidade que o cosmos implicava. Absolutamente nada neste mundo pequeno e transitório parecia muito importante quando contemplava as estrelas. Menos ainda a decisão que o fizera ir até a Greenwich naquela noite, procurando uma distração.
Capítulo 8
– Ele veio – anunciou Celia, entrando correndo na estufa. – Eu estava passando perto da janela da biblioteca quando um movimento lá fora, no fundo do caminho, me chamou a atenção. Está a cavalo. Está com um ar magnífico.
– Claro que veio – comentou Daphne, começando a desatar o avental. – Se tivesse esperado muito mais, teríamos de ter ido nós mesmas até ele. Ele não iria querer isso.
Audrianna desejou que ele não tivesse aparecido. Ia ser horrível.
– Eu não pactuarei com isso – declarou a Daphne. – Não é justo esperar que ele pague, muito literalmente, por algo que não foi culpa dele.
– Intencional ou não, inevitável ou não, você ficou comprometida. Pior, o mundo inteiro se convenceu de que aconteceram mais coisas do que corresponde à verdade. Ele sabe que não pode simplesmente cruzar os braços.
– Não aceitarei nenhum pagamento por conta desse escândalo. Fazer isso faria de mim... – Cúmplice. Verdadeiramente suja. Talvez até calculista, aos olhos dele.
– Então sua mãe aceitará por você. Acho até mesmo que ele, de qualquer maneira, pretende agir dessa forma, para manter as aparências. Não terá nenhuma escolha.
Daphne indicou que entrasse na sala da frente. Celia foi à porta abri-la para Lord Sebastian.
Ele entrou na sala de visitas sozinho, com um ar sóbrio, determinado e bastante duro. Não havia ilusões; não se tratava de uma simples visita social. Mesmo assim, a descrição de Celia tinha sido adequada. Ele tinha de fato um ar magnífico. Alto, moreno e altivo, cumprimentou Daphne e em seguida Audrianna.
Daphne convidou-o a se sentar. Ele preferiu continuar de pé. Daphne fixou seu corpo etéreo perto da janela, deixando claro que pretendia ficar, como mentora e negociadora. Audrianna sentou-se tão longe de Lord Sebastian e da humilhação iminente quanto possível.
– Veio sem dúvida por causa dos rumores que se espalham – começou Daphne depois de uma pausa desconfortável.
– Em parte, sim.
Audrianna podia imaginar bem a outra parte. Fúria, com grande probabilidade, por ver o seu nome posto em causa de modo tão prejudicial, e logo com a filha de Kelmsleigh.
– A minha tia, Mrs. Kelmsleigh, está apreensiva pela família toda, como é de esperar – prosseguiu Daphne. – Não bastavam as acusações falsas sobre o marido... Bem, receia que estejam todas completa e irremediavelmente arruinadas. Ela acredita que o futuro da filha mais nova ficará tão comprometido como o de Audrianna. A tia Meg considera que o que as espera é a indigência.
Lord Sebastian sorriu, mas não era um dos seus sorrisos vencedores. Tenso e duro, a sua expressão indicava que sabia aonde ela queria chegar e não pretendia ser conduzido a esse ponto por ninguém, incluindo ela.
– Assumo responsabilidade pelo escândalo, Mrs. Joyes. Não faço isso por causa do que quer que tenha ocorrido antes da noite em que conheci Miss Kelmsleigh, por mais que a senhora ou a mãe dela queiram ligar as duas coisas.
– Então vamos nos focar na conversa sobre a noite em que conheceu a minha prima e as consequências que advieram.
– A conversa que me trouxe aqui seria com Miss Kelmsleigh, ainda que eu tenha certeza de que a senhora é uma companhia excelente em qualquer interlocução.
– A minha prima é tão inocente que nem sequer pensaria em ter a conversa necessária. Idealmente, esse dever seria cumprido por um familiar do sexo masculino, mas como não há nenhum, vejo-me obrigada a...
– Eu estou aqui – interrompeu Audrianna. – Ouvindo cada palavra. Por favor, pare de se referir a mim como se nem sequer estivesse na sala.
Daphne olhou para ela, como se de fato tivesse se esquecido de que Audrianna lá estava.
– Mrs. Joyes, acho que Miss Kelmsleigh se conduzirá da melhor forma – contrapôs Lord Sebastian. – Se pôde viajar sozinha até Brighton, confrontar um homem desconhecido e empunhar uma pistola, uma breve conversa comigo será em comparação bobagem.
– Concordo que a conversa deva ser entre mim e Lord Sebastian – reafirmou Audrianna.
A sua rebelião surpreendeu Daphne.
– Considerando o assunto, é indelicado demais.
– Perdi uma consideração indevida pela minha própria delicadeza há alguns meses, querida prima. As mulheres independentes, aprendi, devem se desembaraçar dessas indulgências.
Lord Sebastian não se dirigiu mais à Daphne para indicar que ficariam por ali.
– O dia está bonito, Miss Kelmsleigh. O que acha de darmos outra volta pelo jardim?
Audrianna havia planejado não voltar a ficar sozinha em jardim nenhum com aquele homem.
– Preferiria sinceramente dar uma volta na rua, se estiver tudo bem.
– Como desejar.
Audrianna foi buscar a peliça cinzenta e o xale lilás, pendurados perto da biblioteca, e foi até ele em direção à porta, onde a aguardava. Daphne ficou na sala de estar, com os pensamentos escondidos por trás de uma máscara de serenidade.
A umidade matinal secara a grama que ladeava o caminho havia muito. O sol quente prometia um tempo melhor, mas a brisa áspera era suficientemente fria para Audrianna dar graças pelo seu xale.
Lord Sebastian caminhava ao lado dela, as botas esmagando os galhos que se amontoavam no chão. Seu semblante sério sugeria que a missão do dia não lhe agradava e que o incomodava que a cortesia o obrigasse a apresentar desculpas, preocupação e a aceitação da culpa.
Audrianna olhou para trás, para a casa cada vez menor a distância. Presumia que veria Daphne à janela, vigilante. No entanto, não via nenhuma cabeça loira lá.
– Os acontecimentos tomaram um rumo infeliz – disse finalmente Lord Sebastian. – O escândalo aumenta. Fiz com que se soubesse a verdade sobre o meu ferimento, mas assim como aconteceu com Sir Edwin e o estalajadeiro, a verdade parece fictícia quando comparada à explicações mais corriqueiras.
– Vi algumas alusões nos jornais, por isso estou a par de tudo. Foi oportuno da sua parte ter vindo me avisar, contudo.
– Lamento, mas está na boca do mundo.
– Não é mesmo nada justo. Porém, a vida muitas vezes não é. Sobreviverei como já sobrevivi a outras desventuras da minha vida e estou certa de que você também.
– É compreensiva demais.
– Se se tratasse de um tipo normal de comprometimento, duvido que fosse. No entanto, a nossa situação tem circunstâncias muito peculiares, e acho que as regras normais não se aplicam.
– O mundo não se importa com o que eu ou você pensamos, Miss Kelmsleigh.
– Acredito que de uma forma ou de outra já não me interessa o que o mundo pensa, por isso tanto faz.
– É muito valente da sua parte. E muito insensato.
A satisfação moral que ela sentia por ter feito a coisa certa passou num ápice. Foi substituída por irritação. Acabava de livrar o homem de apuros e agora ele a insultava.
– Devia ficar satisfeito com a minha falta de sensatez, senhor, e não me repreender. Daphne e a minha mãe conceberam um plano para exigir uma reparação da sua parte. Se não viéssemos dar esta volta e eu não insistisse que falássemos a sós, e a esta altura estaria consideravelmente mais pobre.
– Mrs. Joyes teria negociado em vão. Eu não farei pagamento nenhum.
– Claro que não fará. Não é culpado. Por que você deveria pagar?
A ênfase o fez mostrar um sorriso sarcástico.
– Ah, mas eu pagarei, Miss Kelmsleigh. De uma maneira ou de outra, haverá acerto de contas. Contudo, apresentar a você e a sua família uma soma em dinheiro é a alternativa menos promissora.
– Então estamos conversados. Suportaremos o périplo com valentia e pagaremos o que houver a pagar ao tribunal da infâmia, e ficaremos por aí. Venha, vamos voltar à casa da minha prima, deixar isso claro e acabarmos de vez com tudo isso.
Deu meia-volta em direção à casa. Uma mão firme no seu braço deteve-a após o primeiro passo.
– Está sendo equivocada, Miss Kelmsleigh.
Audrianna olhou com desdém para aquela mão enluvada que controlava seu movimento de maneira tão fácil e descortês. De repente, lembrou-se da outra vez em que ele fizera aquilo no jardim e aonde aquilo havia levado. Arriscou um olhar para o rosto dele e pareceu ver a própria memória no calor que viu nos seus olhos por um segundo.
Ele a soltou, mas sua postura, agora bloqueando a passagem, deixava claro que não voltariam à casa de Daphne imediatamente.
– Há cinco anos, até há dois, teria feito as coisas à sua maneira – começou ele. – Ou mesmo à maneira da sua prima. Hoje em dia não posso me dar a esse luxo. O meu caráter foi insultado e a minha honra francamente posta em dúvida. – Tirou um papel do bolso. – É a isto que me refiro.
Ela pegou na folha e a abriu. Mostrava uma gravura tosca e grosseira. Via-se uma mulher vagamente parecida com ela sentada numa cama, quase sem roupa e com um seio já à mostra, resistindo ao abraço abusivo de um homem que se assemelhava muito a Lord Sebastian. Através de uma janela via-se o letreiro do Duas Espadas. Por baixo, quase invisível à luz do luar, estavam uns barris de pólvora meio enterrados.
Ela não tirava os olhos do seio nu.
– É chocante. Eu sabia que Mr. Trotter tinha posto uma imagem na minha partitura, mas não era nada parecido com isso.
– Mr. Trotter é o de menos. As tipografias competem entre elas e compra-se pior do que isso por meros xelins.
Ela devolveu-lhe a gravura.
– Talvez deva pedir uma reparação, afinal de contas, se estou sendo exposta de maneira tão escandalosa.
– Não resolveria nada. Apenas confirmaria os piores rumores e seria uma admissão de culpa da minha parte.
– Então não há a menor esperança. Obrigada por ter sido honesto comigo. Acho que a única opção que me resta é ir viver em outro lugar qualquer. – Deu uma risadinha para esconder sua tristeza. – No Brasil, talvez.
Esquivou-se e avançou para casa a passo resoluto. Não queria conversar mais com ele. A gravura a fazia corar cada vez que pensava nela. Não fazia a menor ideia do que “pior do que isso” queria dizer. Temia que o seu retrato estivesse fazendo as coisas mais obscenas em inúmeras imagens naquele momento.
Ouviu galhos serem esmagados com firmeza atrás dela.
– Miss Kelmsleigh, não era minha intenção vir aqui hoje, comunicar más notícias e deixá-la aflita.
– Como poderia não ficar aflita? – retrucou ela, por cima do ombro.
Outra vez aquela mão enluvada no braço dela.
– Pare. Ouça-me. Deixe-me falar, por favor.
A força dele não lhe deixava outra escolha a não ser parar. Não se virou para ele, porém, ficando de frente para a casa. Achava que não conseguiria mais ver novamente o seu rosto sem ver também o Lord Sebastian da gravura olhando-a com lascívia, perigosamente, acariciando sua nudez de tinta.
– Estamos ambos comprometidos, Miss Kelmsleigh. Pagaremos ambos. A prestação de contas será muito menor, porém, se casarmos.
Durante um momento o mundo ficou quieto. Até as folhas mortas pararam de esvoaçar pelo caminho. O seu cérebro esvaziou-se, incapaz de absorver o que ele acabava de dizer.
Depois pareceu compreender melhor. Virou-se para ficar de frente para ele.
– Está me gozando, como é evidente.
– De jeito nenhum. É a única solução que vejo. É muito melhor do que pagar-lhe como a uma criada que eu engravidasse. Sendo você filha de um cavalheiro, é o que lhe é devido. Não fosse a nossa desafortunada história, seria o que esperaria, assim como sua mãe e sua prima.
– A nossa desafortunada história... Tem o jeito de um político para as palavras, caro senhor. Essa história faria dessa união um caso de comédia. As tipografias passarão anos ocupadíssimas.
– O casamento tornará a nossa associação tão banal que o escândalo se acalmará antes do início da temporada. Dará continuidade à ficção iniciada com Sir Edwin no Duas Espadas. A nossa indiscrição será considerada amorosa, e não cínica e sórdida.
– Tudo muito bonito para você. Será absolvido por ter me seduzido, mas eu continuarei a ser uma mulher que concedeu os seus favores a um homem antes do casamento. Pior, a um homem que perseguiu o pai dela até a sepultura. Não, obrigada. Prefiro ir para o Brasil.
A mão dele cortou o ar com impaciência.
– Por favor, seja razoável. Não vai nada para o Brasil. Acabará por ficar aqui vivendo o resto da sua vida, com medo de mostrar a cara na cidade, mal suportando o desdém da gente daqui. Não conseguirá dar aulas de música por causa da sua má fama e ficará completamente dependente da sua prima. Esta propriedade se converterá numa prisão na qual envelhecerá e morrerá.
Aquelas previsões cruéis e sem rodeios foram como bofetadas na cara. Não teve dificuldade em imaginar a existência limitada e sombria que ele descrevia. Uma maré de temerosa desolação submergiu a sua fundamentada ira.
– Joga para vencer, estou vendo – disse ela.
– Quando tenho de fazer, sim. – Deu um passo à frente, deixando-a com o nariz na altura do seu peito. – Então, um casamento comigo não será tão ruim assim – disse ele, mais suavemente. – Não lhe faltará nada e viverá como lhe aprouver. – A sua luva suave ergueu seu queixo, para que ela olhasse para o seu rosto. – E queremos um ao outro, por estranho que isso lhe pareça. O prazer é muito eficaz em tornar o casamento tolerável para uma mulher.
Ela detestava que ele soubesse que a afetava. Desejou que o rosto dele não a maravilhasse e o coração dela não fizesse aquela dança tola quando o olhava nos olhos.
A cabeça dele mergulhou e os seus lábios tocaram os dela. Ele permaneceu tempo suficiente para se certificar de que as flechas começavam a ser disparadas. Ele a fez recordar deliberadamente as sensações avassaladoras do jardim.
Ela permitiu, meio esperando que ele a deixasse novamente estupidificada. Só que não estava sendo surpreendida num jardim e desta vez não podia esquecer quem era.
Ela viu centelhas de desejo e vitória em seus olhos quando ele terminou o beijo e a fitou. Deu um passo atrás, afastando-se do corpo e da mão dele, e olhou-o de frente. Sentiu-se inundada por uma calma desnatural.
– Provavelmente está certo, Lord Sebastian, e eu não tenho coragem de deixar para trás tudo o que conheço para buscar uma vida nova numa terra distante. Tenho ainda escolha, porém.
– Claro que tem. – Ele não acreditava nisso. Ela conseguia ver que ele se convencera de que a história só poderia ter um desfecho.
– Por favor, não me trate como uma menina, senhor. Eu tenho escolha. Uma escolha mais importante do que aquelas que você apresenta. Posso viver a existência triste que descreve, mas assim consigo me assegurar de que você perca a sua influência no governo e na sociedade. Ou posso viver luxuosamente casando com um homem que usou a posição dele para prejudicar enormemente o meu pai e a minha família. Eu diria que a decisão honrada é clara, não acha?
Ele não mostrou espanto. Nem raiva. Apenas olhava para ela.
Ela afastou-se a passos largos.
– Um bom dia para você, Lord Sebastian.
Capítulo 9
Audrianna decidiu dedicar-se a encontrar Dominó, que ainda poderia ter a chave que permitiria limpar o nome do seu pai. Também existia a hipótese remota de que ele pudesse confirmar ao mundo que os pressupostos que acompanhavam o escândalo eram mentira.
Não se permitiu contar com isso. Quando dera as costas à proposta de Lord Sebastian, aceitara que o pior podia acontecer. Não tinha a ilusão de não estar condenada.
Na noite seguinte à reunião com Lord Sebastian, sentou-se na biblioteca com as outras mulheres e tentou escrever um anúncio para o Times. Se Dominó estivesse em Londres, era possível que o visse. Havia sido assim que ele procurara o pai dela, afinal.
Trabalhou nele durante meia hora mas não conseguia encontrar palavras que fossem simultaneamente críticas e simples. Desencorajada, dobrou a folha de papel e colocou-a de lado. A seguir tinha de escrever à mãe. O que ia ser ainda mais difícil.
Seria muito mais fácil escrever uma canção nova. Podia intitulá-la “A minha escandalosa inocência”. Ou “Um vaso lascado mas intacto”. Ou “Orgulho vencido pelo destino”. Ou...
– Então? – inquiriu Celia. A sua pergunta quebrou o silêncio da última hora.
– Ninguém vai explicar o que aconteceu quando Lord Sebastian apareceu de visita, hoje?
– Era um assunto privado, Celia – esclareceu Daphne sem tirar os olhos do livro.
– Até parece! Todas sabemos por que veio. Ofereceu uma reparação? É grande? Pode comprar propriedade com ela ou terá de viver do rendimento? Haverá um depositário ou poderá fazer o que quiser com ela?
– Não ofereceu uma reparação monetária – esclareceu Audrianna. Molhou ostensivamente a caneta, fazendo menção de se debruçar sobre a carta.
– É estranho. Não tem fama de não ser honrado. Eu teria chutado, considerando algumas das gravuras que tenho visto na cidade, que ofereceria pelo menos vinte mil.
Aquilo captou a atenção de Daphne. – Existem outras imagens?
Celia acenou que sim com a cabeça. – Bastante explícitas.
– Como é que vê uma coisa dessas, Celia? Quando vamos à cidade não sai do meu encalço nem por dez minutos – reclamou Daphne.
Celia encolheu os ombros.
– Precisa saber para onde olhar, só isso.
Audrianna sentiu então a atenção curiosa de Daphne recair sobre ela. Voltou a molhar a caneta.
– Na verdade – assinalou Lizzie, discretamente –, para um homem da posição dele e uma mulher com o berço da Audrianna, ele devia era ter proposto casamento em circunstâncias como estas. Oferecer uma reparação teria sido ofensivo.
Audrianna dobrou-se por cima da mesa. – Querida mãe...
– Às vezes é tão criança, Lizzie – censurou Celia. – Depois de todos os “devias” que aprendeu, o mundo afinal tem mais do que o seu quinhão de exceções.
– Tem razão, Celia. No entanto, a Lizzie também tem – declarou Daphne. – Sei que a tia Meg ficou muito dividida. Sabia que devia exigir que fizesse o que estava certo, mas depois do escândalo com o marido dela, sabia que ele nunca poderia fazê-lo.
Audrianna pousou a caneta e voltou-se para Daphne. Dito da forma que Daphne dissera, parecia invertido. Retorcido.
– Está dizendo que a mãe acreditava que, com as mentiras sobre o pai, deixava de se esperar que Lord Sebastian fizesse a coisa certa? É uma boa suposição, tendo em vista que ele ajudou a disseminar as mentiras.
– Acalme-se, querida prima. No mínimo, seria uma receita para a infelicidade.
– Ficaria muito mais bem servida com dinheiro – concordou Celia.
– Se o detesta, provavelmente é verdade – concedeu Lizzie. – Eu queria dizer que o dinheiro não lava essa mancha terrível que agora carrega da mesma forma que o casamento.
– Obrigada, Lizzie – interrompeu Daphne. – No entanto, comentários desses dificilmente ajudam.
A admoestação levou Lizzie a voltar ao seu livro. Daphne pegou igualmente no dela. Celia, todavia, não se deixava vencer.
– Quanto, então?
– Nada – admitiu Audrianna.
– Nada? – repetiu Celia com espanto.
– Recusei qualquer reparação e, para começar, ele não estava inclinado a oferecer nenhuma.
Lizzie franziu a testa. – Que estranho. Ele a seduz e o mundo todo descobre, e ele prepara-se para não fazer absolutamente nada a respeito disso?
– Ele não me seduziu. – Audrianna olhou para as amigas exasperada. – Todas acham isso, não é?
Celia disse que sim com a cabeça, verificando o cadarço do sapato. Lizzie fez o mesmo, deixando-se distrair pelo quadro pendurado na parede. Daphne virou uma página do livro.
– Claro que achamos, querida.
* * *
A indignação de Sebastian não conhecia limites. Só cresceu no caminho de volta a Londres. Memórias do encontro com Miss Kelmsleigh distraíram-no durante dias.
Sem ser normalmente um homem dado a confidências, deu por si no Brook’s uma semana mais tarde, desfiando a história para o conde de Hawkeswell, o único homem que pelo menos sabia parte da verdade, já que estivera mesmo presente no Duas Espadas. Hawkeswell era também um dos poucos homens em cuja discrição podia confiar.
– Ela me rejeitou. Fez isso para se vingar.
Hawkeswell manteve metade da atenção nos dados que rolavam na mesa.
– Não pode estar assim tão surpreendido. Ela tem um bom motivo para detestá-lo, e não aceitaria tal solução para o seu comprometimento, independentemente do que dizem as regras. Está se saindo melhor do que você nesse escândalo, e não tem motivo para querer ajudá-lo a se absolver.
Só que ele fora surpreendido. Não pela primeira rejeição, mas pela final. Presumira que o beijo selaria a sua vitória. A resposta dela indicava que seria assim.
Vê-la depois ali de pé, afastada e direita, numa atitude calma mas ainda corada de excitação, definindo as suas escolhas... Não pensara nela como sendo especialmente forte até aquele momento. Tampouco havia compreendido completamente a sua determinação em vingar o pai, apesar de toda a valentia que mostrara no Duas Espadas.
Ela terminara o encontro com aprumo. Deixara-o impressionado e furioso em igual medida.
– Devia ter levado umas joias – sugeriu Hawkeswell.
– Se ela não se deixa comprar pelo casamento, dificilmente se deixaria tentar por joias.
– As coisas tangíveis têm a capacidade de tornar as ideias teóricas sólidas e reais. Ela recusou uma vida de luxo e segurança, mas não compreende verdadeiramente aquilo a que renuncia.
– Então isso explica a facilidade com que faz tantos estragos entre as mulheres. Suborna as hesitantes com rubis e pérolas.
Os dois riram da piada, já que um ou outro sabiam que Hawkeswell precisava pouco da ajuda de joias nas suas conquistas e que, de qualquer forma, tinha pouco dinheiro para comprá-las.
– Falando de grandes estragos, tem visto o Castleford recentemente? – perguntou Hawkeswell.
– Eu o vi há uma semana. – Memórias de nádegas eróticas invadiram a mente de Sebastian. O que levou a vívidas especulações sobre as nádegas de Miss Kelmsleigh.
– É como se já não o conhecesse. Aplaudo o hedonismo saudável, mas o dele tornou-se obscuro. Torna-se dissoluto. É como se lhe desse prazer o ato vil.
– Há um demônio que o atormenta, mas não sei o seu nome.
– Ora, que demônio o atormentaria? Ele não tem os nossos problemas. Deixa-o se colocar na minha pele durante uma semana ou duas que isso sim lhe daria razão para se converter num asno.
Era a primeira alusão em mais de um ano que Hawkeswell fazia à sua noiva desaparecida, e às vagas suspeitas que pairavam sobre ele quanto ao seu desaparecimento. Ninguém acreditava verdadeiramente que ele a tivesse mandado embora, ou pior, mas persistia um ponto de interrogação, pairando mais ameaçador naqueles últimos dias.
– Era dela? – perguntou Sebastian, arriscando-se ao mau gênio que o amigo podia revelar inesperadamente. – A bolsa encontrada na margem do Tâmisa.
Hawkeswell inspirou profundamente e ficou com um olhar absorto. Passou a mão pelo cabelo e voltou a dar atenção às cartas.
– O tutor diz que era. Não é um bom sinal e eu temo o pior. Pobre moça.
Pobre Hawkeswell também. A moça era acompanhada de um lucrativo dote do qual ele precisava desesperadamente. O desaparecimento dela, no dia do casamento, deixara-o num limbo – sem poder casar outra vez, mas sem conseguir arrancar a quantia do procurador dela, que insistia que não fosse paga sem um parecer do tribunal, caso ela estivesse morta.
Hawkeswell abriu um sorriso sarcástico.
– É dos diabos, não é? Eu é que devia beber até a morte, não o Castleford.
– Talvez tenha as suas razões também, mas aceitei que ele não quer nem conselho nem compaixão da minha parte. Nem todas as amizades duram para sempre.
– Palavras verdadeiras, mas tristes. – Hawkeswell ergueu o copo. – A Tristan St. Ives, duque de Castleford, que consiga aniquilar o seu demônio.
Sebastian bebeu, erguendo em seguida o seu.
– Ao hedonismo saudável e à sua atual senhora, seja ela quem for.
– A Miss Kelmsleigh, e à esperança de que possa ser comprada.
– E se não for, a todas as outras que possam ser.
Como acontecia sempre que brincavam com aquele ritual, Hawkeswell ergueu o copo mais uma vez. A quem ou a que brindava era sempre um pensamento reservado, antes de despejar no copo o resto da bebida.
Lady Wittonbury raramente procurava o segundo filho. A sua súbita aparição na biblioteca enquanto Sebastian redigia cartas o surpreendeu, portanto.
A senhora montou a sua imperiosa figura num canapé, de frente para ele. Irradiava a autoridade e confiança habituais.
Sebastian cumprimentou-a, perguntou-lhe como ia a saúde e voltou à carta com uma ênfase de movimento que, confiou, a faria retirar-se. Não seria assim.
– Quero que saiba que estou grata pela atenção que dá ao teu irmão – começou ela.
– Faço isso com satisfação.
– Claro, é apenas aquilo que lhe é devido.
– Com certeza.
– Todo mundo sabe que ele não devia ter comprado aquela patente. Sendo ele o marquês, não lhe cabia fazê-lo, mas a você, se alguém tivesse de ser.
Sebastian pousou a caneta. Lá fora, o chuvisco contínuo convertia o jardim numa paleta de verdes-esmeralda e cinzas frios.
– Precisou de bom tempo para colocar essa acusação em palavras – disse. – Talvez se sinta melhor, agora que o fez.
Ela não era mulher de se deixar intimidar facilmente, muito menos por um filho.
– Se uma família tivesse de enviar um filho para a guerra, não devia ser o primogênito e senhor.
– Por vezes isso acontece. Dalhousie. Uxbridge. Existem outros exemplos que ambos conhecemos. Ele não era o único par de uniforme.
– Os outros provêm de famílias com tradições militares excessivas. Nega qualquer culpa na tragédia que isso causou?
Se ela queria atribuir à culpa os seus complicados sentimentos em relação ao irmão, que assim fosse. Não fazia grande sentido discutir com ela.
– Mas o que está feito, está feito – concluiu ela.
Ele suspeitava que com aquela tardia aceitação do destino ela não oferecia a absolvição de uma mãe. O mais provável era que mudasse de uma frente de batalha para outra, na sua campanha privada.
– Já me disseram que executa as suas funções bem. Que através de você o poder de Wittonbury sobrevive.
– Faço o meu melhor.
– Esta questão com aquela mulher vai interferir na sua capacidade de fazer o seu melhor no futuro. O diz-que-disse é bastante destrutivo. Desmente a impressão de que tinha se transformado.
Sebastian não se defendeu. Isso também não faria qualquer diferença.
– Há algum tempo que penso que devia se casar.
– A sua preocupação com a minha felicidade é comovente. Contudo, não consigo decidir se me agrada esta mudança de tópico na nossa conversa. Vejamos: culpa, escândalo ou casamento? Culpa, escândalo ou casamento. Confesso que nenhum me parece apetecível. Sempre teve talento para tornar as nossas conversas desagradáveis.
Os olhos dela se estreitaram.
– Não mudei nem um pouco de assunto, como bem sabe. Em breve ocupará o lugar do seu irmão. Atendendo à sua saúde, deve se casar, porque rapidamente será marquês. O escândalo só virá a comprometer a sua eficácia, aí como agora. Portanto, o casamento irá prepará-lo para a inevitabilidade do título, assegurará a sucessão e também distrairá o mundo dessa sua última escapadela amorosa.
Ela costumava falar assim com o pai dele. Não tinha sido uma união feliz.
– Na verdade, tenho pensado em casamento – avançou ele, depois de ter permitido que ela o olhasse furiosamente durante um bom minuto.
Ela ficou muda de espanto. Franziu o cenho, suspeitando da vitória fácil. Mas a possibilidade de se intrometer na vida dele levou a melhor.
– Fico encantada em ouvir isso. Cuidarei para que seja apresentado às melhores jovens. Nós nos decidiremos por uma ainda nesse semestre.
– Já tenho alguém em mente.
Novamente a suspeita.
– Apropriada, espero.
– Dadas as circunstâncias, é muito apropriada – esclareceu ele. – Agora, por favor, me dê licença. Chegarei tarde ao café da manhã com Morgan.
Saiu antes que ela o inundasse de perguntas.
Sebastian entrou no apartamento principal e juntou-se a Morgan, à janela. Bebeu um bocado de café e abriu o Times.
Como era de hábito, espiou as notícias e anúncios da primeira página. O seu olhar percorreu a longa coluna, depois parou e voltou a subir até um deles.
– Está acontecendo alguma coisa? – indagou Morgan.
Sebastian olhou para o relógio de bolso.
– Não está acontecendo nada. Hoje terei de deixá-lo cedo, porém. Tenho um encontro às onze e quinze.
Audrianna fingiu examinar os livros da loja. O rosto permanecia virado para as lombadas mas lançava olhares furtivos ao balcão circular central.
Podia ter compreendido mal o aviso, claro. Era bastante crítico. O suficiente para ela duvidar que mais alguém compreendesse que se relacionava com a queda dela.
Ao futuro parceiro interessado em espadas, arte negra e más-línguas, encontre-se comigo por baixo da cúpula, na morada das musas, às onze e meia de quinta-feira.
“Arte negra” referia-se ao fabrico de pólvora. A cúpula referia-se àquela que existia no alto da livraria grande de Finsbury Square, comumente chamada de Templo das Musas. Ela estava praticamente certa de que se tratava de outra mensagem do Dominó.
Acreditava também que fora escrita especificamente para ela. Se Dominó sabia do escândalo, naquela altura já teria conhecimento de que o pai dela estava morto e que a mulher que o aguardara no Duas Espadas era ela. Que estava agora sujeita às más-línguas.
Audrianna mal conseguia conter a excitação. Desejou que entrasse pela porta um homem de cabelo ruivo. Ponderou como conversariam depois de se encontrarem. Se ambos contemplassem os livros do balcão, perto um do outro, e se falassem baixinho, podiam conversar sem que nenhum cliente reparasse.
Olhou para o relógio de peito que segurava na mão enluvada. Ele já deveria estar lá. Não via, porém, ninguém de cabelo ruivo sob a cúpula central. Apenas duas mulheres se encontravam lá, assim como dois homens que não tinham nada de parecido com o Dominó.
Talvez ele observasse, assim como ela, de um canto que não estivesse à vista. Talvez achasse que a sua mensagem não tivesse sido vista.
Caminhou até o balcão grande, que tinha uma caixa de vidro na ponta. Ela espiou através do seu reflexo ondulante para as bonitas encadernações que estavam no interior.
– Bem que parecia que seria você.
Ouviu a voz grave, desagradada, mesmo em cima da sua orelha. Focou-se novamente no seu reflexo. Outro rosto reunira-se ao seu. Lord Sebastian estava agora mesmo ao lado dela.
– Vá embora! – suspirou ela furiosamente. – Vai estragar tudo outra vez.
– Não vou a lugar nenhum. Também quero conhecer o nosso amigo. Além disso, não posso deixá-la desprotegida.
– Este estabelecimento é movimentado e seguro. Além disso, tenho a pistola.
– Maldição, Miss Kelmsleigh. Os seus esforços para se proteger acabarão por matar alguém. Posso apenas rezar para que não seja eu.
– Se se meter na sua própria vida, pode ter certeza de que não será. Agora, vá embora. Ele nunca aparecerá se o vir aqui.
– O que a faz pensar que ele viu sequer a sua mensagem? Ele pode até estar em Armsterdam.
– É muito inteligente da sua parte pensar assim. Só que eu não escrevi a mensagem. Foi ele.
O olhar dele desviou-se logo, examinando intensamente a loja, estudando todos os clientes que estavam no interior.
– Ele não está aqui.
– Como sabe? Não sabe como ele é.
Ele limitou-se a abanar pensativamente a cabeça, continuando a observar atentamente a loja. Puxou o relógio de bolso.
– Já passou mais de quinze minutos da hora marcada.
– Você estragou tudo mesmo. Ele provavelmente olhou pela janela, o viu, e foi embora. – Desanimada e sem paciência, Audrianna ansiava por se livrar daquele homem intrometido. – Licença, por favor. Devo retornar à casa de Daphne. Ela vai se perguntar o que foi feito de mim.
Audrianna encaminhou-se para a porta. Na rua, um par de botas brilhantes acompanhou seus passos.
– Não se intrometa comigo agora – reclamou ela. – Sinto-me meio inclinada a atirar a sério em você. Se vou pagar o preço, é melhor consumar o ato.
– Pode se dizer que fez realmente isso. Puxou o gatilho. De outra forma, a pistola nunca teria disparado.
– Por favor. Não quero ser vista andando com você. Não quero que ninguém pense que combinei um encontro secreto.
– Já a viram comigo. Dentro de uma hora, o nosso encontro será do conhecimento geral em todo o Mayfair.
– Oh! Simplesmente maravilhoso. Muito obrigada.
– Então, o escândalo dificilmente pode piorar. Além disso, hoje o nosso encontro foi completamente ao acaso.
– Acho que foi completamente exasperante. Ora, a minha prima está ali dentro à minha espera. – Apontou para uma chapelaria.
– Devo me despedir.
Ele não se deixava abandonar facilmente. Ela atravessou a rua e as botas continuaram a andar atrás dela.
– Deixe-me explicar o porquê de ser ao acaso, Miss Kelmsleigh.
O meu irmão exprimiu interesse pela sua situação. Gostaria de conhecê-la. Eu planejei enviar convites a você e à sua mãe.
– À minha mãe!
– Claro. No entanto, visto que está hoje na cidade, podia levá-la até ele se quiser.
– Que interesse pode o seu irmão ter em me conhecer? – Audrianna imaginou-se sentada, sujeita ao escrutínio de um marquês com razões de sobra para não gostar do que via.
– Acho que pretende exprimir a tristeza dele pela sua situação, por ter de suportar estas más-línguas cruéis. É uma pessoa muito compassiva.
– Ele não é doente demais para receber convidados?
– Devido aos ferimentos de guerra, tem os movimentos restringidos e a saúde frágil. Mas não está tão doente que não goste de ter companhia.
Ela vacilou. Pareceria muito rude recusar a visita de um inválido confinado em casa que exprimira pena pela sua situação difícil.
– Ah! Ali está a sua prima. Mrs. Joyes, acabo de convidar Miss Kelmsleigh a visitar o meu irmão. Espero que concorde em acompanhá-la, para que as línguas parem de fofocar.
Daphne não mostrou surpresa em vê-lo à saída do chapeleiro, nem ao ouvir o convite improvisado.
– É generoso, Lord Sebastian. Receio, todavia, ter ainda várias diligências para finalizar.
– Pena. Teremos de aguardar os outros convites, afinal, Miss Kelmsleigh.
Daphne inclinou a cabeça, curiosa.
– Ele quer convidar a mim e à mãe, juntas – explicou Audrianna.
Os olhos de Daphne arregalaram-se uma fração mínima. Sem dúvida que imaginava a reação da tia a semelhante convite, e o caráter gélido de tal visita se ela decidisse aceitar. O que se sentiria forçada a fazer. Ninguém dizia que não a um marquês.
– Podia acompanhá-la até sua casa, no máximo – concedeu Daphne. – Se a marquesa está em casa, ninguém questionará a propriedade da reunião.
– Esplêndido! Quando chegarmos, terá a carruagem ao seu dispor para terminar as suas diligências. Direi igualmente ao nosso criado que leve as duas em casa.
Wittonbury House era uma mansão localizada em Park Lane, virada para Hyde Park e ladeada por outras casas gigantescas de famílias notáveis. A fachada denotava uma exuberância contida que sugeria o século anterior como período de construção. Audrianna percorreu os seis andares com o olhar até o grande frontão em voluta empoleirado perto da cornija, que realçava a ligeira projeção do edifício, no centro.
Ela nunca visitara uma casa tão ilustre. Roger tinha algumas relações na alta sociedade, mas como estivera ausente com o exército durante a maior parte do noivado, ela nunca tivera direito a convites para bailes ou festas.
Daphne seguiu na carruagem e eles dirigiram-se para a porta. Uma vez lá dentro, Lord Sebastian falou em particular com o mordomo e depois convidou-a para acompanhá-lo até a sala de visitas.
– Teremos de ir até o meu irmão. Ele não sai dos seus aposentos – explicou Sebastian enquanto subiam as escadas. – Espero que não se importe.
– Espero nunca ser tão exigente com a etiqueta a ponto de insistir que um inválido tenha o incômodo de vir até mim. – Deu uma volta pela sala de estar. O compartimento reluzia com tecidos e mobília suntuosos. Até as paredes proclamavam riqueza, com óleos de Rafael, Ticiano e Poussin. – Viveu sempre aqui?
Ele observou-a cambalear de um lado para o outro como se achasse interessante a sua forma de andar.
– Voltei quando trouxeram o meu irmão de Espanha. Vivi em outro lugar da cidade durante alguns anos antes disso.
Ela passou os dedos pela voluptuosa borla de seda que segurava uma cortina em verde de Viena. O toque era tão sensual como aparentava.
– Não sentiu a diferença quando regressou?
Toda a casa era um luxo, mas o retorno dele devia ter sido um pouco como ela voltar agora à casa da mãe. Amava a mãe, mas não lhe parecia possível retomar o seu lugar lá sem fricção.
Provavelmente seria diferente com os homens. Eram livres onde quer que vivessem, assim que atingiam a maioridade. A única penalização do regresso à velha vida seria algum inconveniente, talvez, especialmente na satisfação dos seus prazeres voluptuosos.
– Achei que eu seria necessário aqui – disse ele.
– Foi bom voltar, então, independentemente das suas preferências.
Ela espiou um jardim por uma janela.
– Espero que não tenha falado ao seu irmão da nossa última conversa. Aquela que tivemos no caminho da casa da minha prima.
– Não lhe disse uma única palavra a respeito disso.
– Obrigada. Caso contrário, seria muito embaraçoso.
– O meu irmão acharia divertido que tivesse recusado a minha proposta. Podia pensar que a notícia era a melhor parte do seu dia.
Sorriu ao dizê-lo, como se também achasse divertido. Certamente estaria aliviado por ela ter recusado. O resultado era o ideal – ele oferecera-se para fazer a coisa certa, mas acabara por não ter de concretizá-la.
– Não esperava que se mostrasse tão bem-humorado com o assunto se voltasse a vê-lo – disse ela.
– Compreendo a sua posição, Miss Kelmsleigh. Não fiquei muito ofendido. Um pouco, mas não muito.
Outra vez aquele sorriso. Ela forçou alguma clareza aos seus pensamentos para não ficar olhando para ele como uma tola deslumbrada.
Então apareceu um lacaio à porta, que comunicou a sua mensagem sem dizer uma palavra.
– O meu irmão está pronto, Miss Kelmsleigh. Deixe-me levá-la até ele.
O apartamento de Wittonbury era maior do que a maioria das casas. Entraram numa divisão que parecia servir de antessala.
As paredes claras e estofos vermelho-escuros faziam qualquer pessoa ignorar que se tratava de um quarto interior.
Um homem impecavelmente vestido, corpulento e rosado os cumprimentou. Lord Sebastian apresentou-o como Dr. Fenwood.
– O meu irmão está bem, Fenwood?
– Muito bem, senhor. E satisfeito por ter trazido companhia. Está na biblioteca. – Dr. Fenwood fez uma pausa. – Lady Wittonbury acaba de chegar e está com ele.
– O meu irmão mandou chamá-la?
– Acho que não, senhor.
– A fortuna está nos acompanhando hoje, Miss Kelmsleigh, se a minha mãe vem juntar-se a nós – disse ele, acompanhando-a a uma porta que dava para o compartimento à esquerda.
– Quer dizer uma boa sorte, não é?
– Duvido.
A biblioteca revelou-se muito maior do que a antessala, além da grande vantagem de possuir janelas grandes em duas paredes. Com o dobro do tamanho da biblioteca da casa da sua família, fez Audrianna interrogar-se sobre a biblioteca verdadeira, a do andar de baixo, que servia mais do que uma pessoa.
A sua observação minuciosa dos objetos e estantes escuras, do carpete turco e das janelas altas, terminou abruptamente quando viu a marquesa sentada ao pé da lareira.
Lady Wittonbury estava formidável. Qualquer outra descrição seria secundária. Audrianna enumerou-as, de qualquer maneira. Bela, mesmo na meia-idade, com os olhos escuros e intensos do filho mais novo e um corpo esguio e alto, e cabelo negro como azeviche. Imperiosa na forma de se sentar, as costas direitas como uma barra de ferro, a pose de uma rainha. Captou a atenção de Audrianna tão completamente que ela precisou de uns momentos para reparar no homem que estava na poltrona ao seu lado.
Tirando o rosto, a gravata e o colarinho da camisa do marquês, era tudo completamente escuro. O seu rosto era uma versão mais suave do de seu irmão, e de aparência muito mais envelhecida, com uma expressão cansada e melancólica. O casaco preto caía sobre um cobertor escuro que lhe cobria a parte inferior do corpo. Estava sentado numa cadeira escura. Parecia que o marquês desapareceria nas sombras, não fosse a sua luminosa mãe que estava ao seu lado, derramando a sua vitalidade sobre ele.
– Por favor, sente-se aqui, Miss Kelmsleigh – instruiu ele, após as apresentações. Indicou uma cadeira à sua direita. Lord Sebastian permanecia de pé.
– Vive na cidade, Miss Kelmsleigh? – indagou a marquesa.
– Vivo em Cumberworth, no Middlesex.
As sobrancelhas dela se ergueram. Comunicava mais desdém do que curiosidade.
– Cumberworth? Não me recordo de ver mencionado nos jornais que o seu pai tinha propriedade em Cumberworth.
A referência ao pai dela e às histórias dos jornais não foi acidental. Audrianna ficou ressentida por aquela mulher fazer questão de mencioná-lo, como se existisse o risco de algum deles o ter esquecido.
– Vivo com a minha prima.
– A prima, Mrs. Joyes, cultiva flores numa estufa imensa – explicou Lord Sebastian. – Têm uma videira lá dentro.
– Uma videira? – repetiu Lady Wittonbury. – Que... rústico.
– É um fato que vivemos no campo, senhora. Por isso, sim, é um pouco rústico.
– O jardim não é nada rústico – arguiu Summerhays. – Quando está com flor, estou certo de que seria um orgulho nos melhores solares.
À Audrianna pareceu simpático da parte dele defender o jardim e o resto da sua casa, embora suspeitasse de que ele, mais do que elogiá-la, gostava de discordar da mãe.
– Então não vive com a sua mãe – cogitou Lady Wittonbury. – Duas jovens solteiras vivendo sozinhas no campo... É incomum.
– De jeito nenhum – interveio o marquês. – Desde a guerra que se tornou bem comum.
– Mrs. Joyes, a prima de Miss Kelmsleigh, na verdade é uma viúva de guerra – acrescentou Summerhays.
A informação silenciou Lady Wittonbury, mas não pôs um fim ao seu exame minucioso. Alvo daquela atenção intensa, Audrianna sentiu-se um inseto desagradável.
– Que tipos de flores são cultivados nessa estufa? – indagou a marquesa.
Audrianna descreveu os bulbos que cultivavam no final do inverno, e as amarílis no outono, e os muitos pelargônios que se reproduziam e até hibridavam.
– Seus jardineiros devem ter muito que fazer – comentou Lady Wittonbury.
– Nós mesmas cuidamos, minha senhora. Ou melhor, a Daphne e a Lizzie fazem a maior parte e a Celia e eu ajudamos.
– Lizzie? Mais mulheres. Semelhante a uma abadia.
– É o que diz a minha prima. Não uma abadia, mas uma casa de beguinas. Eram comuns na França medieval. Mulheres leigas que viviam juntas como nós. Algumas tinham trabalhos fora da habitação e nenhuma professava votos, mas viviam comunalmente.
– A sua prima deu bom uso à propriedade dela, então – disse a marquesa em tom de aprovação.
A mãe pôs-se de pé, ficando ainda mais formidável aos olhos de Audrianna e do marquês, que permaneciam sentados.
– Encantada por tê-la conhecido, Miss Kelmsleigh, e à sua casa peculiar. Parece tudo muito radical e de uma independência exagerada, mas eu sou uma mulher antiquada. Agora devo pedir a sua compreensão. Devo tratar de um assunto premente. – Inclinou-se e beijou o marquês na cabeça, como se ele fosse uma criança. Dirigiu a Lord Sebastian um olhar firme ao preparar-se para sair.
– Eu a acompanho – disse ele. – Miss Kelmsleigh, o meu irmão terá todo o gosto em desfrutar da sua companhia enquanto eu não volto, se tiver a gentileza de fazer a vontade aos dois.
– Sim, fique – anuiu o marquês. – Me conte do caramanchão com a videira.
– Porque está ela aqui? – A pergunta, baixa e tensa, surgiu assim que a porta se fechou atrás deles.
– Está aqui porque eu a convidei – disse Sebastian.
– Ah, dai-me paciência. Você fica igualzinho a ele, com essas evasivas irônicas. – Não se dirigiu para os seus aposentos, mas para a biblioteca. Lá dentro, andava para a frente e para trás, lançando-lhe olhares de desagrado.
– Não fez nada imprudente, certo? – exigiu saber. – Uma coisa é ficar por aí entretido com a filha de um homem exposto como o pai dela foi. Outra é tentar retificar a indiscrição com...
– Com o quê?
Ela parou de andar e colocou-se de frente para ele.
– É chocante trazê-la aqui, parece querer mais chacota da sociedade. Ela é inadequada. De todas as formas. Mesmo sem esse escândalo humilhante, mesmo sem a desgraça do pai, não serviria. Não é uma situação em que a honra exija que se faça a coisa certa. Além do mais, o que quer que exista entre você e esta mulher tem de acabar. Prosseguirem com a ligação apenas prejudicará a família e a sua influência.
– Se eu fico igualzinho a ele, é porque você é tão igual a si mesma – observou Sebastian. Ouvi-la criticar Miss Kelmsleigh o aborrecia profundamente, mais do que devia.
– Estou apenas lhe lembrando do seu dever.
– Não irei tolerar a sua rudeza com os meus amigos.
– Amigos! Agora a inclui como seus amigos? É seu objetivo me envergonhar a ponto de eu ter um ataque?
– É meu objetivo recordar-lhe que sim, que me pareço de fato muito com ele, logo sou pouco inclinado a aceitar a sua interferência. Nisso, pelo menos, não ocupei o lugar do Morgan.
Os olhos dele se estreitaram e o rosto pálido dela corou.
– Como se pudesse ocupar o lugar dele em alguma coisa.
– Claro que não. Não sou ele.
– Isso é certo.
– Essa aflição toda está na sua cabeça, e vou deixá-la se banhar nela. Encha o meu irmão com os seus conselhos, se assim quiser, mas pode poupá-los comigo no futuro.
Sebastian saiu da biblioteca e subiu para o andar de cima. A mãe tinha azedado seu humor mais do que gostaria de admitir. Ambos sabiam que ele havia, de fato, ocupado o lugar de Morgan de várias formas. Essa era a verdadeira fonte da raiva dela.
E da dele, às vezes.
CONTINUA
Capítulo 6
– Hoje tenho que sair cedo – anunciou Sebastian. – Tenho um encontro marcado com o Castleford, no centro da cidade.
– O dever vem sempre em primeiro lugar, claro – replicou Morgan. – Fico satisfeito por ver que consegue negociar com o Castleford. Devo admitir que nunca fui capaz de esconder a minha antipatia pelo homem e pelo seu comportamento infame. É por isso que se revelou eficaz no governo tão rápido. Você tem a capacidade de lidar com canalhas sem que eles percebam seu desdém.
– Quem sabe não acreditam que eu também sou um deles, e não os desdenho? Talvez pensem que somos companheiros de viagem.
– Até parece! Um passado mais rebelde como o seu era a norma entre os jovens. Nunca chegou a fazer nada verdadeiramente desonroso. Ao contrário.
Sebastian não ia discutir sobre o próprio caráter, muito menos para convencer Morgan de que tinha mais máculas do que as que ele conhecia. A verdade era que o duque de Castleford via de fato um companheiro de viagem quando falava com Sebastian, pois no passado haviam seguido lado a lado pelos caminhos mais aventurosos.
Agora, a sua associação, com toda sua aparência de afabilidade e utilidade prática, era a de dois lutadores em confronto, movimentando-se à procura de fraquezas um no outro. Castleford achava inconveniente que Sebastian tivesse ocupado o lugar de Morgan na vida pública. Quando Morgan enfrentou uma luta política, ele bateu em retirada.
– Seja como for, o Kennington e o Symes-Wilvert vão passar aqui, por isso sua falta não será sentida – comentou Morgan. – A minha manhã será ocupada.
– Estou indo embora agora, então.
O criado pessoal de Sebastian aguardava à saída do apartamento de Morgan, segurando o chapéu e as luvas. Preparado para o dia, Sebastian saiu para a rua.
Percival Kennington e Bernard Symes-Wilvert entraram na casa no momento em que Sebastian saía. Ambos segundos filhos de barões, eram amigos de Morgan desde os primeiros dias da escola. Visitavam-no pelo menos uma vez por semana, sempre juntos assim, e sempre de manhã, porque Morgan à tarde sentia cansaço. Os dois loiros, com um ar rosado e saudável e corpulência de guerreiros, podiam ser irmãos apesar do tamanho desigual. Kennington era a versão grande e Symes-Wilvert, a versão pequena.
Sebastian nunca achara nem um nem outro interessante, mas começou a gostar deles no último ano pela dedicação que mostravam a seu velho amigo.
– Está de saída, Summerhays? – perguntou Kennington. – Tínhamos esperança de conseguir persuadi-lo a ficar para um jogo de cartas.
– Lamento ter de recusar, hoje. – O alívio temperado pela culpa impôs sua marca desconfortável. Aquelas sessões de uíste habitualmente acabavam sendo um tédio. Kennington e Symes-Wilvert ressuscitavam fofocas antigas, ou questionavam Sebastian sobre assuntos do governo e ele esquivava-se das perguntas que não eram da conta deles. Morgan se deleitava com o raro prazer de ter amigos por perto.
– Nós vamos subir, então – anunciou Kennington. – Talvez ainda estejamos aqui quando voltar.
– Tratarei de verificar isso. Sim, por favor, subam. Ele está à espera.
As visitas de Morgan dirigiram-se para a escada. Sebastian, para o cavalo. O encontro com Castleford era apenas dali a uma hora, e tinha outro lugar para ir primeiro.
– Se ficarmos aqui muito mais tempo, os hóspedes do hotel vão todos interpretar mal – advertiu Celia.
– O que quer dizer com isso? – perguntou Audrianna.
Celia revirou os olhos.
– Duas mulheres jovens, se exibindo a qualquer viajante que olhe pela janela? Pensa um pouco.
Audrianna só precisou de um momento para compreender.
– É um preconceito revoltante da parte deles.
Por outro lado, estavam em frente ao Miller’s Hotel, do outro lado de Jermyn Street, há dez minutos apenas e ela já se sentia exposta.
– Qual é o objetivo de vir aqui, afinal? – indagou Celia. – Se eu imaginasse que pretendia ficar de vigília em frente a um hotel, nunca teria sequer vindo contigo para a cidade.
– Tenho esperança de ver o intruso da estalagem. – Audrianna relatara uma versão muito breve dos acontecimentos no Duas Espadas às mulheres da casa. Não havia outra maneira de explicar a visita de Lord Sebastian, ou de ser honesta com Daphne acerca da pistola. – O Dominó era estrangeiro, eu acho. Me disseram que eles muitas vezes ficam neste hotel. Esperava... – O que ela esperava? Que se ficasse tempo suficiente olhanod para a fachada do Miller’s Hotel, o Dominó aparecesse?
Qualquer coisa do gênero, admitiu para si mesma. Esperava um milagre.
– Vamos continuar andando – insistiu Celia.
Nesse momento, saiu um homem do hotel. Sua aparência chamou a atenção de Audrianna. O chapéu dele lembrava o de Dominó, com a copa baixa e aba mole. Observava-o atentamente, enquanto ele caminhava do outro lado da rua.
Não tinha cabelo ruivo, mas ela podia ter se enganado, já que só havia a luz da lareira. Mas ele também parecia alto de mais. A própria forma de andar...
– Veja só – murmurou Celia entredentes. – Isso é que é uma coincidência interessante.
Audrianna seguiu o olhar de Celia. Lord Sebastian descia a rua a cavalo.
– Vamos. – Deu meia-volta e arrastou Celia na direção contrária.
– É muito rude não cumprimentá-lo – criticou Celia. – Tenho certeza de que a viu.
– Não quero falar com ele. Vamos embora, anda!
– Está ficando muito corada, Audrianna – comentou Celia, abafando um risinho. – O que aconteceu quando ele a visitou? Tem mais alguma história do que aquela que nos contou?
– Não aconteceu nada – respondeu Audrianna. – Ele foi incorreto e eu...
– Miss Kelmsleigh? Mas claro, é mesmo. Achei que tinha reconhecido a capa. – A voz, muito próxima, pregou Audrianna no chão.
Virou-se e viu uma bota de pele de qualidade superior encostada a um cavalo muito grande. Ergueu os olhos para o rosto voltado para ela. Lord Sebastian tirara o chapéu para cumprimentá-las. Estava ali como um conquistador examinando os despojos de guerra.
– Lord Sebastian, que encontro inesperado. – Audrianna não pretendia nunca mais voltar a vê-lo. Sentiu o rosto ficar quente. Memórias das carícias que haviam trocado no jardim invadiram sua mente. Apresentou Celia.
– Vieram passear pela cidade só pelo exercício ou estão a negócios? – perguntou ele.
– Um pouco dos dois.
Ele olhou ao redor, detendo-se no hotel.
– Interessante que o passeio de vocês tenha dado nesta rua. Pretendiam, por acaso, ir àquele hotel perguntar pelo nosso amigo?
– Por que eu faria isso?
– É frequentado por comerciantes estrangeiros. Você tinha me falado sobre um plano de visitar este tipo de lugar para localizá-lo. Têm certeza de que não estão aqui por isso?
– Nem um pouco.
Sebastian apeou-se do cavalo.
– Bem, eu estou.
– Você roubou minha ideia!
– É uma ideia que é melhor executada por um homem. Fico satisfeito por ter aprendido sua lição e não ir fazer nenhuma tolice. Se tivesse vindo aqui hoje para proceder a alguma investigação, poderia ter de castigá-la por me desobedecer. – Fez uma pequena reverência e começou a conduzir o cavalo de volta ao hotel.
Celia observava-o enquanto ele se afastava.
– Está se dirigindo a você de forma muito íntima. Daphne sabe?
Audrianna seguiu no encalço de Sebastian, ignorando as perguntas de Celia.
– O que está fazendo? – indagou Celia, segurando seu braço.
– Vou ver o que é que ele vai fazer.
Ao atar as rédeas a um poste, Lord Sebastian reparou nela. Sorriu aquele sorriso maldito dele. Audrianna fingiu não sentir efeito nenhum. A expressão de Celia era de absoluto espanto.
– Se vai ficar aí plantado vendo quem entra e sai, eu devia ficar também – começou Audrianna. – Afinal, fui eu que consegui vê-lo bem.
– Só porque eu estava distraído. – O calor dos seus olhos exigia que ela recordasse o como e o porquê de isso ter acontecido. – Não pretendo ficar aqui plantado. Seria ineficaz. Entrarei e falarei com o dono e os criados, para saber se está tem alguém hospedado aqui que corresponda à sua descrição.
– Eu mesma podia fazer isso.
– Você nunca teria recebido uma resposta. Eu sim.
Encaminhou-se para o hotel. Audrianna foi atrás, arrastando Celia.
Lord Sebastian parou à porta.
– Eu lhe direi qualquer coisa.
– Eu mesma ouvirei, obrigada.
– Dou minha palavra de que não lhe esconderei nada.
– As suas convicções e as minhas não são as mesmas. Os nossos objetivos divergem em todos os sentidos.
– Isso não é verdadeiro. Eu quero a verdade.
– Não, você quer mostrar que tem razão. Acho que só ouvirá o que quer ouvir, por isso devo confiar só em mim para descobrir a verdade.
Ele abriu a porta para ela e Celia entrarem, a contragosto.
A missão podia não ser executada melhor por um homem qualquer, mas era evidente que aquele homem em particular conseguia resultados. Seu cartão produziu um corre-corre entre os criados do hotel, que queriam atenção daquele membro da alta sociedade.
– Você diz que ele é ruivo... – repetiu o proprietário, pensativo, ao ouvir a descrição vaga da presa deles. – Mr. van Aelst não tem cabelo ruivo, embora use um chapéu muito parecido com o que descreve. Uma coisa disforme, devo dizer. Acabou de sair, senão arranjava uma desculpa para puxar assunto com ele, para você poder olhar bem para ele.
– Ele não é o homem que procuramos, tenho certeza – afirmou Audrianna. – Ainda assim, de que país vem Mr. van Aelst?
– Dos Países Baixos. Armsterdam.
– Tem mais algum hóspede de Armsterdam? – inquiriu Lord Sebastian.
– Não, não neste momento.
– Teve algum recentemente? Durante a última semana?
O gerente balançou a cabeça.
Não havia mais nada a perguntar. De volta à rua, Audrianna preparou-se para se despedir.
– A informação foi escassa, mas não deixou de ser alguma coisa. Dominó pode ser dos Países Baixos.
– Ou não – retrucou Lord Sebastian. – Posso ficar descansado de que não passará a tarde questionando todos os criados de todos os hotéis e estalagens sobre este assunto? Não será bem recebida, nem bem-sucedida, se o fizer.
– Não pode ficar descansado com nada porque eu não faço promessas. Não espero que exista reconhecimento da sua parte de que eu, tendo visto Mr. van Aelst, pude riscá-lo da lista, enquanto o senhor nunca poderia fazê-lo. Bom dia, Lord Sebastian.
Depois de deixarem Lord Sebastian, Audrianna e Celia terminaram o que tinham para fazer na cidade. Visitaram duas floristas de Mayfair para lembrar aos proprietários que havia dívidas atrasadas no Flores Preciosas. Normalmente, Daphne cumpria ela mesma esse dever, mas ficara em Cumberworth para uma reunião privada.
Em seguida desceram Albemarle Street, em direção à loja de Mr. Trotter. Audrianna terminara uma canção nova. Tinha esperança de que Mr. Trotter concordasse em publicá-la.
– Ele a beijou? – perguntou Celia. – Lord Sebastian. Beijou-a?
– Que pergunta extraordinária, Celia.
– Beijou?
– Lembre-se da regra de Daphne. Nós não nos intrometemos na...
– Beijou. Eu sabia. Sempre adivinho.
– Duvido de que adivinhe sempre.
– Se fosse mais experiente, talvez não adivinhasse, mas é inocente nesses assuntos, por isso consigo.
– Ah, é verdade, você é tão experiente! – provocou Audrianna.
– Mais do que você.
De fato, naquele momento algo em Celia a fazia parecer experiente. Um véu de maturidade cobriu seu rosto, suscitado por... quê? Uma memória? Uma perda?
– Ele a quer – confirmou Celia. – Está nos olhos dele quando olha para você. Certamente consegue ver isso.
– Não tenho certeza daquilo que vejo. – Nada de bom, contudo. O suficiente para assustá-la. E excitá-la. E, considerando a pessoa que ele era para sua família, deixá-la triste. – Seja como for, o que ele quer não é significativo.
Começava a dar para ver o letreiro de Mr. Trotter, pendurado bem alto, ao fundo da rua, mostrando duas flautas em cruz por cima de uma folha com notas musicais inscritas.
– Lord Sebastian era um libertino, não faz muito tempo – disse Celia. – Não era o pior. Não era completamente implacável. Mas era um libertino. Dizem que se regenerou, mas homens assim nunca se regeneram completamente, por isso deve ter cuidado.
Audrianna virou-se para Celia quando pararam em frente à porta de Mr. Trotter.
– É muito cínico dizer que uma pessoa não pode se regenerar. Talvez ele tenha conseguido. – As provas indicavam que não, mas ela queria defender uma posição moral mais abrangente, por isso ignorou esse fato. – E como é que sabe tanto sobre ele ou sua reputação? Anda lendo aqueles pasquins todos que a Lizzie compra? Achei que tinha melhores...
– Audrianna. – Celia se desviou da conversa, olhando fixamente para a loja de Mr. Trotter. – Audrianna, olha.
Audrianna virou-se. Mr. Trotter tinha uma grande variedade de pequenos instrumentos musicais em exposição na vitrine, a par do grande quadro coberto de veludo onde fixava suas partituras mais recentes. O quadro tinha a escolha habitual de hinos e velhos favoritos, com as notas impecavelmente impressas por placas gravadas. A maioria tinha pequenas vinhetas no topo, com imagens de aves canoras ou flores ou símbolos religiosos.
Não foram aquelas que fizeram Celia abrir a boca, porém.
Uma cópia da música da canção de Audrianna, “O meu amor inconstante”, estava em destaque, o meio do quadro. Em vez da moldura de rosas que antes a encabeçara, via-se agora uma gravura grande com duas pessoas.
Um homem bastante parecido com Summerhays desfalecia agarrado ao braço que sangrava. E a mulher que segurava a pistola que o atingira se assemelhava espantosamente à própria Audrianna.
Sebastian se remexeu na cadeira do enorme quarto do duque de Castleford, onde estava sentado. No quarto ao lado, uma mulher deu uma risadinha.
Era típico de Tristan convocar uma reunião e ficar entretido com outra coisa. Sebastian tentou ignorar as razões da demora. Para se distrair, ficou olhando pela janela, via andaimes subindo pelos fundos de Apsley House, no final de Piccadilly Street. Diziam que Wellington pretendia expandir a casa mais um bom pouco.
A porta se abriu finalmente e Castleford apareceu à entrada, meio vestido, de camisa e calças. O cabelo castanho caía em desalinho sobre a testa e o rosto. A diversão de que gozara na porta ao lado devia tê-lo distraído durante os preparativos para o dia.
– Summerhays, que bom que veio. Peço desculpa pelo atraso mas...
– Castleford – chamou uma voz de mulher.
Castleford olhou para trás, para o quarto. Da sua cadeira, Sebastian também conseguia olhar o interior. Uma mulher nua, morena, estava descontraidamente deitada na cama, dobrando o dedo num chamamento sedutor. Por trás dela, deitada de braços e pernas afastados, estava outra mulher nua, loira, baixa.
– Eu disse que não tenho mais tempo para jogos – repreendeu. – Vistam-se e saiam daqui.
A sedutora fez beicinho. Uma expressão de malícia apareceu nos olhos. Com cuidado deliberado, espreguiçou-se exibindo completamente suas glórias. Depois engatinhou e se virou. As costas afundaram e o rabo se levantou, numa descarada oferta erótica.
Castleford ficou completamente parado. A loira reparou que tinha mais alguém no quarto. Virou-se rapidamente até imitar a posição da amiga.
Castleford olhou para Sebastian.
– Não se importa de aguardar mais um pouco, não é?
– Absolutamente.
Castleford apontou para os rabos.
– Ali a Katyzinha quer fazer uma festa. Acompanhe-me. Lado a lado, como nos velhos tempos.
Sebastian não era imune a seduções femininas e traseiros desejosos. Naquele momento tinha a boca seca e o corpo contraído.
– Declino. Mas vai. Eu espero.
Castleford voltou ao quarto. Deu uma palmadinha no rabo de Katy.
– Ele diz que não. O que posso fazer? Converteu-se em santo e nos deixou.
Katy olhou para trás fazendo beicinho. Ele se inclinou-se e deu-lhe um beijo.
– Não é justo, não é? Vamos fazer o seguinte. Enquanto dou prazer à Janie, fico vendo-a fazer o mesmo em você própria.
Sebastian levantou-se para fechar a porta. Antes de ela bater, Katy posicionara-se perto da cabeça de Janie, de pernas bem abertas e os quadris levantados, para colocar sua suma glória ao alcance fácil da boca da amiga. Castleford posicionou-se por trás do rabo firme e redondo de Janie e baixou as calças.
– Não me parece. – A resposta de Castleford seguiu-se a uma longa pausa. A conversa decorrera como Sebastian planejara, mas agora o decepcionara, com aquela afirmação.
Talvez seu estado de descontração e saciedade tivesse causado a incompreensão de Castleford. Parecia meio adormecido e em estado beatífico.
O humor de Sebastian não estava grande coisa naquele momento. Ouvira mais guinchos e gemidos femininos do que homem algum deveria suportar quando não era ele mesmo que os provocava.
– Se não cooperar com este projeto de lei no Senado, não poderei ajudá-lo com os próprios interesses quando eles chegarem à Câmara dos Comuns – lembrou Sebastian.
Castleford estava preguiçosamente recostado na cadeira, vestindo ainda apenas camisa e calça. Fez um encolher de ombros lento.
– Não estou convencido de que seja capaz de me ajudar, de qualquer forma, por isso, por que gastar capital político para adquirir sua ajuda?
O homem estava pedindo que lhe dissesse as coisas preto no branco.
– Sabe a influência que tenho na Câmara dos Comuns. Esteve do lado oposto dessa influência vezes o suficiente para saber.
– Verdade. Verdade. Você é uma voz forte, com o dom da persuasão. Quem esperaria que tivesse os dotes de Maquiavel? O mundo esqueceu rapidamente seu passado, também. Mas a Câmara dos Comuns... bem, é composta por homens tacanhos que são inconstantes em suas lealdades. Nunca se sabe realmente o que faz com que sejam persuadidos a ir numa direção ou na outra.
– E se dispõe a arriscar que, ainda assim, eu leve a melhor?
– Questiono sua capacidade de cumprir com a sua parte do acordo. Pode ser já uma moda ultrapassada, tanto quanto sei. Por pouco que seja, pretendo considerar essa troca que me propõe, para decidir que caminho mais me beneficia.
Não adiantava nada continuar discutindo. Aborrecido com a perda de tempo, Sebastian foi para casa.
Assim que o mordomo se aproximou, ele entrou.
– Senhor, foi solicitado que atendesse a seu irmão assim que regressasse. Ele precisa do senhor.
– Está doente? Já chamaram o médico? – O pavor de receber uma má notícia saiu do fundo de seu inconsciente.
– Não sei. Sua mãe está com ele. Foi ela que mandou chamá-lo.
– Devia ter mandado alguém me procurar – reagiu Sebastian, pondo-se a caminho.
Subiu os degraus de dois em dois. Abriu de chofre a porta do apartamento de Morgan, examinando a pequena biblioteca e a saleta.
Ao verificar que estavam vazias, dirigiu-se para o quarto, receoso do que poderia encontrar.
A cena com que deparou no interior do aposento fez com que se detesse à entrada. Não havia médico. Morgan não estava doente. O irmão estava sentado numa cadeira estofada, debaixo da manta que cobria suas pernas inertes, com a aparência de sempre.
Numa cadeira colocada à beira, elegante apesar da postura de ferro, estava a mãe deles. Majestosa como sempre, num vestido branco que fazia o cabelo escuro se sobressair, tinha no rosto pálido o estoicismo sofrido que demonstrava como de costume na presença de Morgan.
Esther, marquesa de Wittonbury, voltou-se para a porta. Uma sobrancelha perfeita se ergueu criticamente por cima de um olho castanho.
– Ah! Aqui está ele.
O tom de voz dizia muito mais do que as palavras. Aqui está ele, a grande desilusão. O caprichoso, o imprestável. O que é tão parecido com o pai nos apetites e pecados.
O que devia estar morto ou aleijado, se fosse esse o destino de algum filho.
Sebastian reconheceu a presença dela mas se dirigiu a Morgan.
– Me avisaram que havia pedido a minha presença. Fico aliviado de ver que parece bem.
– Seu irmão não precisa apenas de você quando está para morrer, Sebastian. Como marquês, ainda tem autoridade nesta família, e no Estado.
– Com certeza. O que quer, Morgan?
Morgan apontou para um papel que tinha no colo.
– Nossa mãe trouxe uma coisa. Espero que consiga explicá-la. Ela diz que há outras, e não apenas esta. Que se vendem bem nas lojas.
Sebastian aguardou. A boca delicada da mãe comprimiu-se. Morgan virou o papel.
No outro lado via-se uma imagem, uma gravura tosca, feita à pressa e desajeitadamente colorida.
A imagem mostrava Miss Kelmsleigh, com uma aparência jovem, vulnerável e aflita, submetendo-se à sedução agressiva de um Sebastian Summerhays de rosto maléfico. Um papel identificado como “Inventário de material” ardia na lareira que se via atrás deles.
Capítulo 7
“Dizem que Lady G está em reclusão na sua propriedade do Surrey essa semana, acompanhada apenas pelos criados mais próximos e um convidado, um poeta de considerável reputação. Talvez esteja a caminho mais uma poesia épica.”
Lizzie lia a fofoca num tom monótono, aborrecido. De queixo pousado na mão, aproximava o papel do candeeiro. Audrianna deixou-se absorver pela elegância do perfil que resultara. O cabelo escuro, puxado para o alto da cabeça, mal se sustinha, e o candeeiro realçava os olhos azuis e feições muito delicadas.
Lizzie suspirou e pegou mais uma página. Não gostava quando Celia pedia aquele entretenimento. Podia se pensar que Lizzie se sentia constrangida com o próprio fascínio pelas colunas sociais.
Só sua voz suave quebrava o silêncio da biblioteca. Daphne lia à lareira e Celia cosia um vestido. Audrianna olhou novamente a folha de papel em branco pousada na escrivaninha à qual estava sentada. Procurava em vão encontrar palavras para avisar a mãe sobre a gravura que ornava a partitura.
– Dizem que EC gastou mais de duzentas libras com o par que comprou de Lord M – leu Lizzie. – Embora em geral se considere que são ótimo gado, há rumores de que na verdade Lord M os tenha oferecido como parte da liquidação de uma dívida de cavalheiros substancial.
Não havia mesmo uma maneira boa de escrever aquela carta. Audrianna perguntava-se como revelar o menos possível. Preferia que fosse muito menos do que confidenciara às mulheres que estavam na biblioteca, e mesmo elas não sabiam daquela longa noite a sós com Lord Sebastian num quarto do Duas Espadas.
Quem pensaria que o bom Mr. Trotter seria ganancioso a ponto de incitar a compra das partituras dela com imagens escandalosas? Infelizmente, como resultado, as vendas teriam aumentado em dez vezes, e Mr. Trotter se fizera de surdo às suas súplicas de voltar com as imagens de flores.
– Dois rapazes do Middlesex, de perto da povoação de Trilby, encontraram os restos...
Embora Audrianna não estivesse realmente ouvindo, o fato de Lizzie parar assim subitamente lhe chamou a atenção, como uma música que tivesse terminado antes das notas finais.
– Estou cansada de ler alto – amuou Lizzie, pousando o papel de lado. – As palavras ficam embaçadas.
– Podia pelo menos terminar esse restinho e não nos deixar sem saber – queixou-se Celia. – Se a Audrianna e eu nos demos ao trabalho de trazer os jornais de Londres, recolhendo todos para você, podia pelo menos ler as melhores partes para nós.
– Por que não nos distrai um pouquinho, Celia? – propôs Daphne. – Podia cantar. A Audrianna tem uma canção nova e podia ensiná-la a nós.
Celia pousou a costura. Levantou-se e se aproximou de Lizzie, tirando-lhe o papel.
– Primeiro quero saber o que os rapazes encontraram. – Procurou a notícia.
– Dois rapazes do Middlesex, perto da povoação de Trilby, encontraram os restos deteriorados de uma bolsa presa nos ramos de uma árvore caída nas margens do Tâmisa. – Celia deu um gritinho. – Uma bolsa? Não se pode dizer que seja muito excitante. Pensei que fosse um corpo. – Olhou novamente. O texto prendeu sua atenção.
– O que mais diz? – perguntou Daphne.
Celia se sobressaltou.
– Foram identificados como sendo propriedade da noiva desaparecida de Lord Hawkeswell, segundo o magistrado local... Oh, Céus! Parece que afinal há um corpo envolvido. Que triste.
Daphne voltou-se para o livro. Celia foi até Audrianna e olhou para a carta que ela escrevia.
– Tem uma letra tão bonita, Audrianna. Admiro sua escrita. É evidente que se trata da caligrafia de uma senhora.
Enquanto admirava as palavras invisíveis na folha em branco, Celia pousou o pasquim na escrivaninha e apontou para lá.
– Não é um bom augúrio, não é, esta bolsa e o destino da moça desaparecida? Entendo por que a Lizzie não quis continuar lendo depois de ter visto esta história trágica.
Seu dedo não apontava para a história da bolsa. Tocava a que estava abaixo.
Histórias recentes vindas de Brighton têm feito muitos se interrogarem se um cavalheiro ilustre, com reputação de garanhão selvagem mas recentemente tido como domado, voltou secretamente às suas travessuras nos pastos.
A identidade da mulher faz muitos suporem o pior tipo de sedução, baseado na repressão e no prejuízo do dever.
Audrianna ficou lendo as palavras. Por mais vagas que fossem, tinha certeza de que se referiam a Lord Sebastian e ela mesma. Mas era uma mentira estúpida. Não houvera repressão e decididamente nenhuma travessura, apenas um mal-entendido ridículo.
Audrianna encarou Lizzie, que no mesmo momento olhou para ela com ar interrogativo. Depois ergueu os olhos para Celia, incapaz de esconder o espanto. O rosto jovem de Celia tinha novamente um véu de maturidade. Isso não é nada de bom, dizia a expressão dela.
– Já que sou a única que desconhece a razão de todos os olhares comprometidos e das poses estudadas, quem sabe uma de vocês possa partilhar o segredo comigo – disse Daphne.
Audrianna olhou por cima do ombro. O livro de Daphne estava fechado. Estivera observando-as.
– É melhor mostrar a ela – incentivou Celia. – Afinal, vai saber alguma hora mesma, pelo jeito que as coisas estão.
Não só Daphne descobriria. Todo mundo descobriria.
Audrianna levantou-se e foi à estante. Tirou o tomo no qual escondera a partitura que trouxera da loja de Mr. Trotter. Colocou-a na mão de Daphne.
Daphne desdobrou o papel e o estudou.
– E o pasquim? – pediu, sem desviar os olhos da imagem.
Celia levou o pasquim. Lizzie juntou-se a elas, à lareira, e também examinou os papéis.
– Receio que esteja completamente comprometida. – O rosto doce de Lizzie comunicava a compaixão de uma boa amiga, mesmo sendo tão abrupta na sua afirmação. Abanava tristemente a cabeça morena. – O escândalo será insuperável.
– Que me importa? – reagiu Audrianna. – Já estou comprometida, pela desgraça do nome do meu pai e pela maneira como Roger me rejeitou.
– Isto é muito pior – replicou Lizzie. – Não há comparação. Afetará sua irmã e sua mãe e suas amigas. As mulheres vão evitá-la intencionalmente para protegerem suas próprias reputações.
– Receio que ela tenha razão – anuiu Celia. – Você sabe que sim, Audrianna.
E aquelas suas amigas, a evitariam? Ela conseguiria superar aquilo se tivesse o santuário daquela casa e família, mas se elas a expulsassem...
– Isso é muito pior, é verdade – anuiu Daphne. – Contudo, é também muito melhor.
– Não concordo com as previsões calamitosas da Lizzie – contrapôs Audrianna, ainda que na verdade concordasse. Mantinha um semblante de bravura, mas uma preocupação angustiante apertava seu estômago. – No entanto, também não vejo como pode ser um cenário muito melhor do que outros, Daphne.
– Lord Sebastian pode não se importar de ser ridicularizado e desprezado em público desta forma – começou Daphne, acenando com a partitura. – No entanto, a mãe e o irmão se importarão consideravelmente. E, ao contrário do que aconteceu com seu pai ou com o Roger, haverá compensações pelo seu sofrimento desta vez. Com a permissão da sua mãe, eu cuidarei que assim seja.
– Preferia que não.
Daphne estudou-a. Depois levantou-se como se a conversa tivesse terminado e voltou a colocar o livro no seu lugar da estante de mogno.
– Vai estar muito frio esta noite – declarou Daphne. – Lizzie, por favor, acende os potes de aquecimento da estufa. Celia, ficarei grata se ajudá-la.
As duas saíram. Audrianna estava de olhos fixos no fogo, imaginando como seria aguardar que o escândalo se dissipasse. Poderia ser um escândalo muito grande, como Lizzie presumia.
Pensando bem, talvez não. Poderia ficar confinado em Londres apenas. Ela poderia conseguir manter sua obscuridade ali no campo. Quantas pessoas que passaram pela loja de Mr. Trotter teriam também ouvido os rumores, afinal? Pensando nisso, uma mulher que dispara num homem não era uma imagem absurda de se colocar no frontispício de uma canção intitulada “O meu amor inconstante”. – Pode não haver grande alarido e...
– Audrianna, lamento, mas terei de quebrar a minha própria regra. – A voz de Daphne, mesmo atrás da sua cabeça, fez Audrianna se sobressaltar.
Daphne contornou a cadeira de Audrianna e sentou-se novamente na sua. Inclinou-se para a frente e estendeu a mão para pegar na de Audrianna.
– Como minha familiar, e jovem ainda inexperiente na sua independência, aqui não é uma mera convidada. Sua mãe concordou que ficasse aqui porque partiu do pressuposto de que estaria em segurança.
– E tenho estado.
– Sim. Esta imagem, porém... Devo pedir que me diga novamente o que aconteceu no Duas Espadas, Audrianna. E, desta vez, imploro para não deixe metade da história de fora.
Sebastian perscrutou o monte de papéis espalhado sobre a escrivaninha. Além da gravura que tinham dado a Morgan, cinco outras tinham sido trazidas da cidade pelos criados, por ordem de Sebastian. Outra ainda adornava o frontão de uma partitura publicada por Mr. Thomas Trotter de Albermarle Street.
A música e canção tinham sido escritas por nada mais nada menos do que a própria Miss Kelmsleigh: “O meu amor inconstante”. Sebastian cantarolava a melodia mentalmente à medida que lia a letra. Parecia uma canção sentida, repleta da dor recente de um coração partido. Parecia que Miss Kelmsleigh havia sofrido uma desilusão amorosa, e soltara sua dor naquela cançãozinha triste.
Voltou-se para os diversos relatos publicados nos pasquins da semana anterior. Não fora identificado em nenhum deles, mas qualquer pessoa que soubesse do rumor sobre os acontecimentos no Duas Espadas (e ele supunha que àquela altura seria toda a alta sociedade) não teria qualquer problema em seguir a direção que a especulação estava tomando. Parecia que o escândalo ia pegar, e pegar bem.
Ter sido acusado de seduzir Miss Kelmsleigh, quando não o fizera, não o surpreendeu. Ele praticamente convidara a essa interpretação quando deixara implícito a Sir Edwin que eles tinham se encontrado porque eram amantes. O mundo sabia que ele não fora nenhum santo, por isso dificilmente poderia esperar que alguém visse as provas de outra forma.
Aquelas gravuras e notícias, contudo, não implicavam uma ligação amorosa. A acusação era de que ele usara o seu papel na investigação sobre o pai dela para coagi-la a ir para a cama com ele. Qualquer pessoa presumiria facilmente que ele descobrira mais do que alguma vez revelara sobre a pólvora ruim, mas que escondera as provas em troca dos favores de Miss Kelmsleigh.
O que o transformara num canalha da pior espécie. Ele era retratado não só como um homem capaz de se aproveitar cinicamente de uma inocente, mas também de alguém capaz de comprometer o seu dever para com a sua posição e a verdade em troca de prazer ilícito.
Reparou que Miss Kelmsleigh, cuja obstinação provocara aquilo tudo, era tratada de forma favorável em todas as imagens e notícias insinuantes. As gravuras mostravam-na doce, inocente, assustada, confusa, abatida, resistente e vitimizada, mesmo as que a desenhavam com uma pistola na mão.
A difamação foi distração suficiente para não estar pronto quando as dez horas chegaram. Mesmo assim, dirigiu-se aos aposentos de Morgan, sem vestir o casaco ou a gravata.
Morgan escondeu qualquer reprovação, já que teria alguma, presumiu Sebastian. Mesmo doente, Morgan se vestia para enfrentar o dia.
– Como vai o seu braço? – perguntou Morgan.
– Ainda está preso e dolorido, mas a recuperação é certa.
Não houve grande conversa durante o café da manhã. Não tinham falado muito desde o encontro de dois dias atrás, em que Morgan mostrara a gravura.
– Está piorando – disse Sebastian por fim. – O escândalo. Toma um rumo infeliz.
– Eu sei. Nossa mãe trouxe várias gravuras diferentes ontem.
– Que atencioso da parte dela.
– A posição que ocupa na sociedade tem muita importância para ela. É tudo o que lhe resta.
– As minhas preocupações são mais vastas do que descobrirmos nossa mãe exposta a algumas insinuações durante as suas visitas sociais. Houve uma mudança na maneira como sou visto. É sutil, mas impossível de ignorar. A minha influência foi comprometida, em comparação com a reputação de Miss Kelmsleigh.
A reação não foi inteiramente sutil. Castleford se retirara imediatamente de negociações sérias. Entre outros membros do parlamento que vira, alguns olhos revelavam um brilho de júbilo quando o fitavam. Mais revelador era o fato de não ter sido convidado para uma reunião importante naquele dia, na qual normalmente esperaria estar presente.
Morgan ponderou a informação.
– Sua chegada pode ter sido abrupta demais para umas pessoas, e a sua ascensão rápida demais para outros. Sempre haverá aqueles que se ressentem de um homem de mérito e importância social que os ultrapassa.
O mérito pode ter ajudado na subida, mas o nascimento e o sangue tinham contado mais. Todo mundo sabia que, apesar de ser ativo na Câmara dos Comuns, Sebastian era o substituto do seu irmão no parlamento, e o próprio lugar que ocupava estava sob a alçada de Wittonbury. Morgan não só era marquês como também fora um dos cordeiros da nobreza sacrificados ao deus da guerra, o que também dava mais peso à influência de Sebastian.
No entanto, Sebastian suspeitava que este ataque indireto ao seu caráter tinha outras razões além da inveja. Um homem não podia ser eficaz na política sem fazer inimigos. Havia vencedores, o que queria dizer que havia perdedores.
Uma vez que Sebastian costumava estar entre os primeiros, havia indubitavelmente homens que procuravam conseguir a maior vingança possível através do escândalo. A única questão era se ele acabaria se tornando completamente inútil. Como Castleford dissera, se tornaria instantaneamente uma moda ultrapassada?
– Nossa mãe está atormentada com as consequências em nível pessoal – retomou Morgan. – Como se referiu, a verdade é que isto lhe provocará alguns momentos de constrangimento e pouco mais. Não há dúvida de que você consegue tomar conta de si mesmo; por isso, mesmo que aconteça o pior, não receio que se volte para a bebida. A única pessoa que sairá verdadeiramente prejudicada com isso será Miss Kelmsleigh.
Morgan olhou brevemente para a rua através da janela. Depois, apoiou os braços na cadeira e acomodou-se melhor. Por fim, pegou a cafeteira e se dedicou à refeição, deixando a referência a Miss Kelmsleigh pairando no ar.
Morgan sempre se revelara um pouco apagado, mas, por outro lado, nunca deixara de ser honesto. Direto, franco e honrado da maneira simples que se ensina aos rapazes, as nuances da vida não raro o desconcertavam. O que o tornava pouco habilitado para o tipo de manipulação dissimulada da conversa que agora tentava.
Não era claro como viera a nascer na família aquele homem bom e decente de poucos vícios. Não saiu do pai, isso era certo. Sebastian sim, para tormento da mãe. Mas Morgan também tinha pouco em comum com ela, não possuindo nenhuma da sua implacável indiferença à dor dos outros.
– Não fiz nada daquilo – afirmou Sebastian. – Não tive os favores de Miss Kelmsleigh em nenhuma circunstância, muito menos naquelas insinuadas por essas más-línguas.
– Não pensei que tivesses feito isso.
– Ah, isso é que não pensou!
Morgan expressou desilusão com o tom áspero de Sebastian.
– Independentemente do que tiver acontecido, ela é vítima duas vezes, não é? Da negligência do pai e agora desses rumores.
– Todos os criminosos têm famílias que se tornam vítimas dos seus atos.
– Foi isso o que disse a nossa mãe. Eu não lhe respondi, porque ela, seja como for, nunca ouve. Digo-lhe, porém, que não gosto do fato de esse criminoso, se realmente era, ter uma família que agora tem de sofrer mais porque seus inimigos resolveram se divertir com esse... mal-entendido.
Morgan olhou com determinação para Sebastian, que susteve o olhar. O resto da conversa aconteceu sem palavras. Depois voltaram ao café e ao correio.
– Vou revelar a verdadeira história por trás do que ficou sabendo no Duas Espadas – declarou Sebastian, quando se levantou para sair. – Para o bem de todos, poderá ser melhor.
– A verdade é sempre melhor.
O inferno que era.
Um escândalo provocava uma agitação muito estranha, pensou Audrianna na tarde seguinte. A casa se tornara fúnebre, mas, ao mesmo tempo, repleta de determinação.
Lizzie e Celia haviam ficado noite adentro debatendo a forma de resgatar Audrianna. Abordaram o problema de perspectivas muito diferentes. Lizzie acreditava que, na melhor das hipóteses, seriam necessárias algumas décadas de uma vida impecável e trabalho de caridade significativo para redimir uma falha que envolvia a perda da virtude. Celia opinava que um comportamento confiante, um estilo admirável e um amante importante conseguiam recolocar mais depressa a mulher na sociedade, e numa posição mais elevada.
Nenhuma das duas perguntou qual era a preferência de Audrianna, que se limitou a ficar sentada na cama enquanto elas dissecavam o desastre em que a sua vida se tornara.
Na manhã seguinte deslocaram-se as duas a Cumberworth para pôr no correio uma carta que Audrianna escrevera finalmente à mãe. Meia hora depois de terem saído, tornou-se claro que a carta não era necessária. Uma carruagem alugada subiu o caminho e parou em frente à casa de Daphne. Esgueirando-se numa janela, Audrianna reconheceu as ocupantes.
Daphne materializou-se ao seu lado e ficaram juntas vendo a mãe e a irmã se dirigirem para a porta.
– Está perturbada, claro – disse Daphne. Referia-se à expressão do rosto da mãe de Audrianna.
Audrianna nunca vira a mãe com um ar tão abatido.
Nem sequer após a morte do pai, nem sequer durante a perseguição constante de Lord Sebastian e de outros, a mãe quebrara completamente. Agora caminhava como se fosse um tormento estar viva. Ainda se vestia toda de preto, apesar de as amigas que restavam argumentarem que o período de luto profundo devia ser encurtado quando é o marido que dera fim à própria vida.
– Sua irmã Sarah parece revoltada – disse Daphne. – Por você, imagino.
– Não é por mim. Ela sabe o que isso vai lhe custar. – Existira uma possibilidade, ainda que pequena, de que Sarah escapasse do pior da desgraça do pai. Com uma pensão modesta e alguns anos decorridos, podia casar decentemente, ainda que não tão bem quanto desejasse. Fora uma das razões pelas quais Audrianna saíra para viver com Daphne – para permitir à mãe gastar o pouco que tinha na única filha para a qual ainda era possível obter um futuro respeitável.
Audrianna seguiu Daphne até a porta. Quando se abriu, tanto a mãe quanto Sarah tinham substituído os seus reais sentimentos por máscaras de compaixão.
– Querida tia Meg – cumprimentou Daphne, inclinando-se para um beijo. – Que oportuno ter vindo. Temos muito sobre que conversar.
– Chegou aos meus ouvidos a história mais absurda, Lord Sebastian. – Mr. John Pond, astrônomo real, espiava pelo novo telescópio meridiano de três metros enquanto falava. Inclinou o mecanismo uma fração de centímetro e voltou a espiar. Acima deles, um painel do Edifício do Meridiano de Greenwich abria-se para as estrelas.
– Era sobre aquela ocorrência no Duas Espadas, à saída de Brighton. Agora o que se ouve é uma narrativa elaborada, comprida e fantasiosa. Algo acerca de um intruso misterioso e um encontro por coincidência. Os seus amigos deviam conceber uma explicação mais plausível, se pretendem absolvê-lo.
Sebastian conhecia Pond há mais de dez anos. Foram apresentados quando Sebastian ainda estava na universidade e desde então o famoso astrônomo lhe ensinara algumas coisas acerca da sua ciência, que não se aprendia em livros nem conferências. Havia se desenvolvido uma amizade que agora dava a Sebastian acesso fácil ao observatório e também dava a Pond a possibilidade de falar assim abertamente.
– Não tenho amigos de imaginação fértil a ponto de criar uma história dessas. Ou estúpidos a ponto de esperarem que uma verdade tão absurda fosse mais rapidamente credível do que uma mentira mais condenatória. A história que ouviu saiu da minha própria boca.
Pond virou a cabeça o suficiente apenas para olhar de soslaio para Sebastian com o olho livre.
– Está dizendo que aquilo foi o que realmente se passou com aquela moça?
– Sim. Tem a minha palavra de cavalheiro.
Pond voltou ao seu estudo dos Céus.
– Ninguém acreditará.
Não, provavelmente não. Todavia, tampouco alguém diria que era mentira. Poderia implicar um duelo. Mas faziam-se conversas inteiras com risos irônicos e sobrancelhas erguidas que diziam o que a boca não podia.
Era uma situação ingrata. A verdade, que se espalhara mais depressa do que o escândalo, parecia apenas suscitar especulação, devido às suas circunstâncias peculiares, e ao fato de tocar na morte do pai de Miss Kelmsleigh.
Melhor seria se não tivesse aberto a boca sobre o assunto.
– Os Céus estão invulgarmente limpos – informou Pond. – Escolheu uma boa noite para vir aqui. Fazia muito que não aparecia.
Há bastante tempo, como em tantas outras coisas. Bastante tempo sem uma mulher, a não ser que cumprisse com a discrição mais sufocante. Bastante tempo sem uma boa cavalgada no campo sem destino. Bastante tempo se não se permitisse dedicar a nenhum dos seus interesses que requeriam tempo, como aqueles estudos astronômicos que outrora reivindicara não terem quaisquer objetivos a não ser a busca do prazer.
Ao ocupar o lugar do irmão, devia ter executado aquelas funções como ele fizera, e não permitir que o dever e o governo absorvessem sua vida. O próprio Morgan nunca fizera isso. Mas Morgan era o marquês, e não tinha de provar nada.
Pond se afastou do telescópio e escreveu algumas notas num papel que tinha perto da cadeira.
– Terminei. É todo seu. Deixo para você a lista das estrelas que estou observando e pode fazer suas observações. Pode me ajudar a fazer Brinkley engolir a teoria dele.
Sebastian ajustou a cadeira, que fora concebida para permitir um ângulo semirreclinado, alinhado com a trajetória do telescópio. Acomodou-se, se encostou e posicionou na ponta do escuro e comprido tubo de metal firmemente suportado por dois pilares maciços, um de cada lado.
– Tenha o cuidado de avisar o vigia quando sair, para que tranque o edifício – advertiu Pond.
Sebastian ajustou a ocular. Observou o céu escuro, entregando-se à reverência da eternidade que o cosmos implicava. Absolutamente nada neste mundo pequeno e transitório parecia muito importante quando contemplava as estrelas. Menos ainda a decisão que o fizera ir até a Greenwich naquela noite, procurando uma distração.
Capítulo 8
– Ele veio – anunciou Celia, entrando correndo na estufa. – Eu estava passando perto da janela da biblioteca quando um movimento lá fora, no fundo do caminho, me chamou a atenção. Está a cavalo. Está com um ar magnífico.
– Claro que veio – comentou Daphne, começando a desatar o avental. – Se tivesse esperado muito mais, teríamos de ter ido nós mesmas até ele. Ele não iria querer isso.
Audrianna desejou que ele não tivesse aparecido. Ia ser horrível.
– Eu não pactuarei com isso – declarou a Daphne. – Não é justo esperar que ele pague, muito literalmente, por algo que não foi culpa dele.
– Intencional ou não, inevitável ou não, você ficou comprometida. Pior, o mundo inteiro se convenceu de que aconteceram mais coisas do que corresponde à verdade. Ele sabe que não pode simplesmente cruzar os braços.
– Não aceitarei nenhum pagamento por conta desse escândalo. Fazer isso faria de mim... – Cúmplice. Verdadeiramente suja. Talvez até calculista, aos olhos dele.
– Então sua mãe aceitará por você. Acho até mesmo que ele, de qualquer maneira, pretende agir dessa forma, para manter as aparências. Não terá nenhuma escolha.
Daphne indicou que entrasse na sala da frente. Celia foi à porta abri-la para Lord Sebastian.
Ele entrou na sala de visitas sozinho, com um ar sóbrio, determinado e bastante duro. Não havia ilusões; não se tratava de uma simples visita social. Mesmo assim, a descrição de Celia tinha sido adequada. Ele tinha de fato um ar magnífico. Alto, moreno e altivo, cumprimentou Daphne e em seguida Audrianna.
Daphne convidou-o a se sentar. Ele preferiu continuar de pé. Daphne fixou seu corpo etéreo perto da janela, deixando claro que pretendia ficar, como mentora e negociadora. Audrianna sentou-se tão longe de Lord Sebastian e da humilhação iminente quanto possível.
– Veio sem dúvida por causa dos rumores que se espalham – começou Daphne depois de uma pausa desconfortável.
– Em parte, sim.
Audrianna podia imaginar bem a outra parte. Fúria, com grande probabilidade, por ver o seu nome posto em causa de modo tão prejudicial, e logo com a filha de Kelmsleigh.
– A minha tia, Mrs. Kelmsleigh, está apreensiva pela família toda, como é de esperar – prosseguiu Daphne. – Não bastavam as acusações falsas sobre o marido... Bem, receia que estejam todas completa e irremediavelmente arruinadas. Ela acredita que o futuro da filha mais nova ficará tão comprometido como o de Audrianna. A tia Meg considera que o que as espera é a indigência.
Lord Sebastian sorriu, mas não era um dos seus sorrisos vencedores. Tenso e duro, a sua expressão indicava que sabia aonde ela queria chegar e não pretendia ser conduzido a esse ponto por ninguém, incluindo ela.
– Assumo responsabilidade pelo escândalo, Mrs. Joyes. Não faço isso por causa do que quer que tenha ocorrido antes da noite em que conheci Miss Kelmsleigh, por mais que a senhora ou a mãe dela queiram ligar as duas coisas.
– Então vamos nos focar na conversa sobre a noite em que conheceu a minha prima e as consequências que advieram.
– A conversa que me trouxe aqui seria com Miss Kelmsleigh, ainda que eu tenha certeza de que a senhora é uma companhia excelente em qualquer interlocução.
– A minha prima é tão inocente que nem sequer pensaria em ter a conversa necessária. Idealmente, esse dever seria cumprido por um familiar do sexo masculino, mas como não há nenhum, vejo-me obrigada a...
– Eu estou aqui – interrompeu Audrianna. – Ouvindo cada palavra. Por favor, pare de se referir a mim como se nem sequer estivesse na sala.
Daphne olhou para ela, como se de fato tivesse se esquecido de que Audrianna lá estava.
– Mrs. Joyes, acho que Miss Kelmsleigh se conduzirá da melhor forma – contrapôs Lord Sebastian. – Se pôde viajar sozinha até Brighton, confrontar um homem desconhecido e empunhar uma pistola, uma breve conversa comigo será em comparação bobagem.
– Concordo que a conversa deva ser entre mim e Lord Sebastian – reafirmou Audrianna.
A sua rebelião surpreendeu Daphne.
– Considerando o assunto, é indelicado demais.
– Perdi uma consideração indevida pela minha própria delicadeza há alguns meses, querida prima. As mulheres independentes, aprendi, devem se desembaraçar dessas indulgências.
Lord Sebastian não se dirigiu mais à Daphne para indicar que ficariam por ali.
– O dia está bonito, Miss Kelmsleigh. O que acha de darmos outra volta pelo jardim?
Audrianna havia planejado não voltar a ficar sozinha em jardim nenhum com aquele homem.
– Preferiria sinceramente dar uma volta na rua, se estiver tudo bem.
– Como desejar.
Audrianna foi buscar a peliça cinzenta e o xale lilás, pendurados perto da biblioteca, e foi até ele em direção à porta, onde a aguardava. Daphne ficou na sala de estar, com os pensamentos escondidos por trás de uma máscara de serenidade.
A umidade matinal secara a grama que ladeava o caminho havia muito. O sol quente prometia um tempo melhor, mas a brisa áspera era suficientemente fria para Audrianna dar graças pelo seu xale.
Lord Sebastian caminhava ao lado dela, as botas esmagando os galhos que se amontoavam no chão. Seu semblante sério sugeria que a missão do dia não lhe agradava e que o incomodava que a cortesia o obrigasse a apresentar desculpas, preocupação e a aceitação da culpa.
Audrianna olhou para trás, para a casa cada vez menor a distância. Presumia que veria Daphne à janela, vigilante. No entanto, não via nenhuma cabeça loira lá.
– Os acontecimentos tomaram um rumo infeliz – disse finalmente Lord Sebastian. – O escândalo aumenta. Fiz com que se soubesse a verdade sobre o meu ferimento, mas assim como aconteceu com Sir Edwin e o estalajadeiro, a verdade parece fictícia quando comparada à explicações mais corriqueiras.
– Vi algumas alusões nos jornais, por isso estou a par de tudo. Foi oportuno da sua parte ter vindo me avisar, contudo.
– Lamento, mas está na boca do mundo.
– Não é mesmo nada justo. Porém, a vida muitas vezes não é. Sobreviverei como já sobrevivi a outras desventuras da minha vida e estou certa de que você também.
– É compreensiva demais.
– Se se tratasse de um tipo normal de comprometimento, duvido que fosse. No entanto, a nossa situação tem circunstâncias muito peculiares, e acho que as regras normais não se aplicam.
– O mundo não se importa com o que eu ou você pensamos, Miss Kelmsleigh.
– Acredito que de uma forma ou de outra já não me interessa o que o mundo pensa, por isso tanto faz.
– É muito valente da sua parte. E muito insensato.
A satisfação moral que ela sentia por ter feito a coisa certa passou num ápice. Foi substituída por irritação. Acabava de livrar o homem de apuros e agora ele a insultava.
– Devia ficar satisfeito com a minha falta de sensatez, senhor, e não me repreender. Daphne e a minha mãe conceberam um plano para exigir uma reparação da sua parte. Se não viéssemos dar esta volta e eu não insistisse que falássemos a sós, e a esta altura estaria consideravelmente mais pobre.
– Mrs. Joyes teria negociado em vão. Eu não farei pagamento nenhum.
– Claro que não fará. Não é culpado. Por que você deveria pagar?
A ênfase o fez mostrar um sorriso sarcástico.
– Ah, mas eu pagarei, Miss Kelmsleigh. De uma maneira ou de outra, haverá acerto de contas. Contudo, apresentar a você e a sua família uma soma em dinheiro é a alternativa menos promissora.
– Então estamos conversados. Suportaremos o périplo com valentia e pagaremos o que houver a pagar ao tribunal da infâmia, e ficaremos por aí. Venha, vamos voltar à casa da minha prima, deixar isso claro e acabarmos de vez com tudo isso.
Deu meia-volta em direção à casa. Uma mão firme no seu braço deteve-a após o primeiro passo.
– Está sendo equivocada, Miss Kelmsleigh.
Audrianna olhou com desdém para aquela mão enluvada que controlava seu movimento de maneira tão fácil e descortês. De repente, lembrou-se da outra vez em que ele fizera aquilo no jardim e aonde aquilo havia levado. Arriscou um olhar para o rosto dele e pareceu ver a própria memória no calor que viu nos seus olhos por um segundo.
Ele a soltou, mas sua postura, agora bloqueando a passagem, deixava claro que não voltariam à casa de Daphne imediatamente.
– Há cinco anos, até há dois, teria feito as coisas à sua maneira – começou ele. – Ou mesmo à maneira da sua prima. Hoje em dia não posso me dar a esse luxo. O meu caráter foi insultado e a minha honra francamente posta em dúvida. – Tirou um papel do bolso. – É a isto que me refiro.
Ela pegou na folha e a abriu. Mostrava uma gravura tosca e grosseira. Via-se uma mulher vagamente parecida com ela sentada numa cama, quase sem roupa e com um seio já à mostra, resistindo ao abraço abusivo de um homem que se assemelhava muito a Lord Sebastian. Através de uma janela via-se o letreiro do Duas Espadas. Por baixo, quase invisível à luz do luar, estavam uns barris de pólvora meio enterrados.
Ela não tirava os olhos do seio nu.
– É chocante. Eu sabia que Mr. Trotter tinha posto uma imagem na minha partitura, mas não era nada parecido com isso.
– Mr. Trotter é o de menos. As tipografias competem entre elas e compra-se pior do que isso por meros xelins.
Ela devolveu-lhe a gravura.
– Talvez deva pedir uma reparação, afinal de contas, se estou sendo exposta de maneira tão escandalosa.
– Não resolveria nada. Apenas confirmaria os piores rumores e seria uma admissão de culpa da minha parte.
– Então não há a menor esperança. Obrigada por ter sido honesto comigo. Acho que a única opção que me resta é ir viver em outro lugar qualquer. – Deu uma risadinha para esconder sua tristeza. – No Brasil, talvez.
Esquivou-se e avançou para casa a passo resoluto. Não queria conversar mais com ele. A gravura a fazia corar cada vez que pensava nela. Não fazia a menor ideia do que “pior do que isso” queria dizer. Temia que o seu retrato estivesse fazendo as coisas mais obscenas em inúmeras imagens naquele momento.
Ouviu galhos serem esmagados com firmeza atrás dela.
– Miss Kelmsleigh, não era minha intenção vir aqui hoje, comunicar más notícias e deixá-la aflita.
– Como poderia não ficar aflita? – retrucou ela, por cima do ombro.
Outra vez aquela mão enluvada no braço dela.
– Pare. Ouça-me. Deixe-me falar, por favor.
A força dele não lhe deixava outra escolha a não ser parar. Não se virou para ele, porém, ficando de frente para a casa. Achava que não conseguiria mais ver novamente o seu rosto sem ver também o Lord Sebastian da gravura olhando-a com lascívia, perigosamente, acariciando sua nudez de tinta.
– Estamos ambos comprometidos, Miss Kelmsleigh. Pagaremos ambos. A prestação de contas será muito menor, porém, se casarmos.
Durante um momento o mundo ficou quieto. Até as folhas mortas pararam de esvoaçar pelo caminho. O seu cérebro esvaziou-se, incapaz de absorver o que ele acabava de dizer.
Depois pareceu compreender melhor. Virou-se para ficar de frente para ele.
– Está me gozando, como é evidente.
– De jeito nenhum. É a única solução que vejo. É muito melhor do que pagar-lhe como a uma criada que eu engravidasse. Sendo você filha de um cavalheiro, é o que lhe é devido. Não fosse a nossa desafortunada história, seria o que esperaria, assim como sua mãe e sua prima.
– A nossa desafortunada história... Tem o jeito de um político para as palavras, caro senhor. Essa história faria dessa união um caso de comédia. As tipografias passarão anos ocupadíssimas.
– O casamento tornará a nossa associação tão banal que o escândalo se acalmará antes do início da temporada. Dará continuidade à ficção iniciada com Sir Edwin no Duas Espadas. A nossa indiscrição será considerada amorosa, e não cínica e sórdida.
– Tudo muito bonito para você. Será absolvido por ter me seduzido, mas eu continuarei a ser uma mulher que concedeu os seus favores a um homem antes do casamento. Pior, a um homem que perseguiu o pai dela até a sepultura. Não, obrigada. Prefiro ir para o Brasil.
A mão dele cortou o ar com impaciência.
– Por favor, seja razoável. Não vai nada para o Brasil. Acabará por ficar aqui vivendo o resto da sua vida, com medo de mostrar a cara na cidade, mal suportando o desdém da gente daqui. Não conseguirá dar aulas de música por causa da sua má fama e ficará completamente dependente da sua prima. Esta propriedade se converterá numa prisão na qual envelhecerá e morrerá.
Aquelas previsões cruéis e sem rodeios foram como bofetadas na cara. Não teve dificuldade em imaginar a existência limitada e sombria que ele descrevia. Uma maré de temerosa desolação submergiu a sua fundamentada ira.
– Joga para vencer, estou vendo – disse ela.
– Quando tenho de fazer, sim. – Deu um passo à frente, deixando-a com o nariz na altura do seu peito. – Então, um casamento comigo não será tão ruim assim – disse ele, mais suavemente. – Não lhe faltará nada e viverá como lhe aprouver. – A sua luva suave ergueu seu queixo, para que ela olhasse para o seu rosto. – E queremos um ao outro, por estranho que isso lhe pareça. O prazer é muito eficaz em tornar o casamento tolerável para uma mulher.
Ela detestava que ele soubesse que a afetava. Desejou que o rosto dele não a maravilhasse e o coração dela não fizesse aquela dança tola quando o olhava nos olhos.
A cabeça dele mergulhou e os seus lábios tocaram os dela. Ele permaneceu tempo suficiente para se certificar de que as flechas começavam a ser disparadas. Ele a fez recordar deliberadamente as sensações avassaladoras do jardim.
Ela permitiu, meio esperando que ele a deixasse novamente estupidificada. Só que não estava sendo surpreendida num jardim e desta vez não podia esquecer quem era.
Ela viu centelhas de desejo e vitória em seus olhos quando ele terminou o beijo e a fitou. Deu um passo atrás, afastando-se do corpo e da mão dele, e olhou-o de frente. Sentiu-se inundada por uma calma desnatural.
– Provavelmente está certo, Lord Sebastian, e eu não tenho coragem de deixar para trás tudo o que conheço para buscar uma vida nova numa terra distante. Tenho ainda escolha, porém.
– Claro que tem. – Ele não acreditava nisso. Ela conseguia ver que ele se convencera de que a história só poderia ter um desfecho.
– Por favor, não me trate como uma menina, senhor. Eu tenho escolha. Uma escolha mais importante do que aquelas que você apresenta. Posso viver a existência triste que descreve, mas assim consigo me assegurar de que você perca a sua influência no governo e na sociedade. Ou posso viver luxuosamente casando com um homem que usou a posição dele para prejudicar enormemente o meu pai e a minha família. Eu diria que a decisão honrada é clara, não acha?
Ele não mostrou espanto. Nem raiva. Apenas olhava para ela.
Ela afastou-se a passos largos.
– Um bom dia para você, Lord Sebastian.
Capítulo 9
Audrianna decidiu dedicar-se a encontrar Dominó, que ainda poderia ter a chave que permitiria limpar o nome do seu pai. Também existia a hipótese remota de que ele pudesse confirmar ao mundo que os pressupostos que acompanhavam o escândalo eram mentira.
Não se permitiu contar com isso. Quando dera as costas à proposta de Lord Sebastian, aceitara que o pior podia acontecer. Não tinha a ilusão de não estar condenada.
Na noite seguinte à reunião com Lord Sebastian, sentou-se na biblioteca com as outras mulheres e tentou escrever um anúncio para o Times. Se Dominó estivesse em Londres, era possível que o visse. Havia sido assim que ele procurara o pai dela, afinal.
Trabalhou nele durante meia hora mas não conseguia encontrar palavras que fossem simultaneamente críticas e simples. Desencorajada, dobrou a folha de papel e colocou-a de lado. A seguir tinha de escrever à mãe. O que ia ser ainda mais difícil.
Seria muito mais fácil escrever uma canção nova. Podia intitulá-la “A minha escandalosa inocência”. Ou “Um vaso lascado mas intacto”. Ou “Orgulho vencido pelo destino”. Ou...
– Então? – inquiriu Celia. A sua pergunta quebrou o silêncio da última hora.
– Ninguém vai explicar o que aconteceu quando Lord Sebastian apareceu de visita, hoje?
– Era um assunto privado, Celia – esclareceu Daphne sem tirar os olhos do livro.
– Até parece! Todas sabemos por que veio. Ofereceu uma reparação? É grande? Pode comprar propriedade com ela ou terá de viver do rendimento? Haverá um depositário ou poderá fazer o que quiser com ela?
– Não ofereceu uma reparação monetária – esclareceu Audrianna. Molhou ostensivamente a caneta, fazendo menção de se debruçar sobre a carta.
– É estranho. Não tem fama de não ser honrado. Eu teria chutado, considerando algumas das gravuras que tenho visto na cidade, que ofereceria pelo menos vinte mil.
Aquilo captou a atenção de Daphne. – Existem outras imagens?
Celia acenou que sim com a cabeça. – Bastante explícitas.
– Como é que vê uma coisa dessas, Celia? Quando vamos à cidade não sai do meu encalço nem por dez minutos – reclamou Daphne.
Celia encolheu os ombros.
– Precisa saber para onde olhar, só isso.
Audrianna sentiu então a atenção curiosa de Daphne recair sobre ela. Voltou a molhar a caneta.
– Na verdade – assinalou Lizzie, discretamente –, para um homem da posição dele e uma mulher com o berço da Audrianna, ele devia era ter proposto casamento em circunstâncias como estas. Oferecer uma reparação teria sido ofensivo.
Audrianna dobrou-se por cima da mesa. – Querida mãe...
– Às vezes é tão criança, Lizzie – censurou Celia. – Depois de todos os “devias” que aprendeu, o mundo afinal tem mais do que o seu quinhão de exceções.
– Tem razão, Celia. No entanto, a Lizzie também tem – declarou Daphne. – Sei que a tia Meg ficou muito dividida. Sabia que devia exigir que fizesse o que estava certo, mas depois do escândalo com o marido dela, sabia que ele nunca poderia fazê-lo.
Audrianna pousou a caneta e voltou-se para Daphne. Dito da forma que Daphne dissera, parecia invertido. Retorcido.
– Está dizendo que a mãe acreditava que, com as mentiras sobre o pai, deixava de se esperar que Lord Sebastian fizesse a coisa certa? É uma boa suposição, tendo em vista que ele ajudou a disseminar as mentiras.
– Acalme-se, querida prima. No mínimo, seria uma receita para a infelicidade.
– Ficaria muito mais bem servida com dinheiro – concordou Celia.
– Se o detesta, provavelmente é verdade – concedeu Lizzie. – Eu queria dizer que o dinheiro não lava essa mancha terrível que agora carrega da mesma forma que o casamento.
– Obrigada, Lizzie – interrompeu Daphne. – No entanto, comentários desses dificilmente ajudam.
A admoestação levou Lizzie a voltar ao seu livro. Daphne pegou igualmente no dela. Celia, todavia, não se deixava vencer.
– Quanto, então?
– Nada – admitiu Audrianna.
– Nada? – repetiu Celia com espanto.
– Recusei qualquer reparação e, para começar, ele não estava inclinado a oferecer nenhuma.
Lizzie franziu a testa. – Que estranho. Ele a seduz e o mundo todo descobre, e ele prepara-se para não fazer absolutamente nada a respeito disso?
– Ele não me seduziu. – Audrianna olhou para as amigas exasperada. – Todas acham isso, não é?
Celia disse que sim com a cabeça, verificando o cadarço do sapato. Lizzie fez o mesmo, deixando-se distrair pelo quadro pendurado na parede. Daphne virou uma página do livro.
– Claro que achamos, querida.
* * *
A indignação de Sebastian não conhecia limites. Só cresceu no caminho de volta a Londres. Memórias do encontro com Miss Kelmsleigh distraíram-no durante dias.
Sem ser normalmente um homem dado a confidências, deu por si no Brook’s uma semana mais tarde, desfiando a história para o conde de Hawkeswell, o único homem que pelo menos sabia parte da verdade, já que estivera mesmo presente no Duas Espadas. Hawkeswell era também um dos poucos homens em cuja discrição podia confiar.
– Ela me rejeitou. Fez isso para se vingar.
Hawkeswell manteve metade da atenção nos dados que rolavam na mesa.
– Não pode estar assim tão surpreendido. Ela tem um bom motivo para detestá-lo, e não aceitaria tal solução para o seu comprometimento, independentemente do que dizem as regras. Está se saindo melhor do que você nesse escândalo, e não tem motivo para querer ajudá-lo a se absolver.
Só que ele fora surpreendido. Não pela primeira rejeição, mas pela final. Presumira que o beijo selaria a sua vitória. A resposta dela indicava que seria assim.
Vê-la depois ali de pé, afastada e direita, numa atitude calma mas ainda corada de excitação, definindo as suas escolhas... Não pensara nela como sendo especialmente forte até aquele momento. Tampouco havia compreendido completamente a sua determinação em vingar o pai, apesar de toda a valentia que mostrara no Duas Espadas.
Ela terminara o encontro com aprumo. Deixara-o impressionado e furioso em igual medida.
– Devia ter levado umas joias – sugeriu Hawkeswell.
– Se ela não se deixa comprar pelo casamento, dificilmente se deixaria tentar por joias.
– As coisas tangíveis têm a capacidade de tornar as ideias teóricas sólidas e reais. Ela recusou uma vida de luxo e segurança, mas não compreende verdadeiramente aquilo a que renuncia.
– Então isso explica a facilidade com que faz tantos estragos entre as mulheres. Suborna as hesitantes com rubis e pérolas.
Os dois riram da piada, já que um ou outro sabiam que Hawkeswell precisava pouco da ajuda de joias nas suas conquistas e que, de qualquer forma, tinha pouco dinheiro para comprá-las.
– Falando de grandes estragos, tem visto o Castleford recentemente? – perguntou Hawkeswell.
– Eu o vi há uma semana. – Memórias de nádegas eróticas invadiram a mente de Sebastian. O que levou a vívidas especulações sobre as nádegas de Miss Kelmsleigh.
– É como se já não o conhecesse. Aplaudo o hedonismo saudável, mas o dele tornou-se obscuro. Torna-se dissoluto. É como se lhe desse prazer o ato vil.
– Há um demônio que o atormenta, mas não sei o seu nome.
– Ora, que demônio o atormentaria? Ele não tem os nossos problemas. Deixa-o se colocar na minha pele durante uma semana ou duas que isso sim lhe daria razão para se converter num asno.
Era a primeira alusão em mais de um ano que Hawkeswell fazia à sua noiva desaparecida, e às vagas suspeitas que pairavam sobre ele quanto ao seu desaparecimento. Ninguém acreditava verdadeiramente que ele a tivesse mandado embora, ou pior, mas persistia um ponto de interrogação, pairando mais ameaçador naqueles últimos dias.
– Era dela? – perguntou Sebastian, arriscando-se ao mau gênio que o amigo podia revelar inesperadamente. – A bolsa encontrada na margem do Tâmisa.
Hawkeswell inspirou profundamente e ficou com um olhar absorto. Passou a mão pelo cabelo e voltou a dar atenção às cartas.
– O tutor diz que era. Não é um bom sinal e eu temo o pior. Pobre moça.
Pobre Hawkeswell também. A moça era acompanhada de um lucrativo dote do qual ele precisava desesperadamente. O desaparecimento dela, no dia do casamento, deixara-o num limbo – sem poder casar outra vez, mas sem conseguir arrancar a quantia do procurador dela, que insistia que não fosse paga sem um parecer do tribunal, caso ela estivesse morta.
Hawkeswell abriu um sorriso sarcástico.
– É dos diabos, não é? Eu é que devia beber até a morte, não o Castleford.
– Talvez tenha as suas razões também, mas aceitei que ele não quer nem conselho nem compaixão da minha parte. Nem todas as amizades duram para sempre.
– Palavras verdadeiras, mas tristes. – Hawkeswell ergueu o copo. – A Tristan St. Ives, duque de Castleford, que consiga aniquilar o seu demônio.
Sebastian bebeu, erguendo em seguida o seu.
– Ao hedonismo saudável e à sua atual senhora, seja ela quem for.
– A Miss Kelmsleigh, e à esperança de que possa ser comprada.
– E se não for, a todas as outras que possam ser.
Como acontecia sempre que brincavam com aquele ritual, Hawkeswell ergueu o copo mais uma vez. A quem ou a que brindava era sempre um pensamento reservado, antes de despejar no copo o resto da bebida.
Lady Wittonbury raramente procurava o segundo filho. A sua súbita aparição na biblioteca enquanto Sebastian redigia cartas o surpreendeu, portanto.
A senhora montou a sua imperiosa figura num canapé, de frente para ele. Irradiava a autoridade e confiança habituais.
Sebastian cumprimentou-a, perguntou-lhe como ia a saúde e voltou à carta com uma ênfase de movimento que, confiou, a faria retirar-se. Não seria assim.
– Quero que saiba que estou grata pela atenção que dá ao teu irmão – começou ela.
– Faço isso com satisfação.
– Claro, é apenas aquilo que lhe é devido.
– Com certeza.
– Todo mundo sabe que ele não devia ter comprado aquela patente. Sendo ele o marquês, não lhe cabia fazê-lo, mas a você, se alguém tivesse de ser.
Sebastian pousou a caneta. Lá fora, o chuvisco contínuo convertia o jardim numa paleta de verdes-esmeralda e cinzas frios.
– Precisou de bom tempo para colocar essa acusação em palavras – disse. – Talvez se sinta melhor, agora que o fez.
Ela não era mulher de se deixar intimidar facilmente, muito menos por um filho.
– Se uma família tivesse de enviar um filho para a guerra, não devia ser o primogênito e senhor.
– Por vezes isso acontece. Dalhousie. Uxbridge. Existem outros exemplos que ambos conhecemos. Ele não era o único par de uniforme.
– Os outros provêm de famílias com tradições militares excessivas. Nega qualquer culpa na tragédia que isso causou?
Se ela queria atribuir à culpa os seus complicados sentimentos em relação ao irmão, que assim fosse. Não fazia grande sentido discutir com ela.
– Mas o que está feito, está feito – concluiu ela.
Ele suspeitava que com aquela tardia aceitação do destino ela não oferecia a absolvição de uma mãe. O mais provável era que mudasse de uma frente de batalha para outra, na sua campanha privada.
– Já me disseram que executa as suas funções bem. Que através de você o poder de Wittonbury sobrevive.
– Faço o meu melhor.
– Esta questão com aquela mulher vai interferir na sua capacidade de fazer o seu melhor no futuro. O diz-que-disse é bastante destrutivo. Desmente a impressão de que tinha se transformado.
Sebastian não se defendeu. Isso também não faria qualquer diferença.
– Há algum tempo que penso que devia se casar.
– A sua preocupação com a minha felicidade é comovente. Contudo, não consigo decidir se me agrada esta mudança de tópico na nossa conversa. Vejamos: culpa, escândalo ou casamento? Culpa, escândalo ou casamento. Confesso que nenhum me parece apetecível. Sempre teve talento para tornar as nossas conversas desagradáveis.
Os olhos dela se estreitaram.
– Não mudei nem um pouco de assunto, como bem sabe. Em breve ocupará o lugar do seu irmão. Atendendo à sua saúde, deve se casar, porque rapidamente será marquês. O escândalo só virá a comprometer a sua eficácia, aí como agora. Portanto, o casamento irá prepará-lo para a inevitabilidade do título, assegurará a sucessão e também distrairá o mundo dessa sua última escapadela amorosa.
Ela costumava falar assim com o pai dele. Não tinha sido uma união feliz.
– Na verdade, tenho pensado em casamento – avançou ele, depois de ter permitido que ela o olhasse furiosamente durante um bom minuto.
Ela ficou muda de espanto. Franziu o cenho, suspeitando da vitória fácil. Mas a possibilidade de se intrometer na vida dele levou a melhor.
– Fico encantada em ouvir isso. Cuidarei para que seja apresentado às melhores jovens. Nós nos decidiremos por uma ainda nesse semestre.
– Já tenho alguém em mente.
Novamente a suspeita.
– Apropriada, espero.
– Dadas as circunstâncias, é muito apropriada – esclareceu ele. – Agora, por favor, me dê licença. Chegarei tarde ao café da manhã com Morgan.
Saiu antes que ela o inundasse de perguntas.
Sebastian entrou no apartamento principal e juntou-se a Morgan, à janela. Bebeu um bocado de café e abriu o Times.
Como era de hábito, espiou as notícias e anúncios da primeira página. O seu olhar percorreu a longa coluna, depois parou e voltou a subir até um deles.
– Está acontecendo alguma coisa? – indagou Morgan.
Sebastian olhou para o relógio de bolso.
– Não está acontecendo nada. Hoje terei de deixá-lo cedo, porém. Tenho um encontro às onze e quinze.
Audrianna fingiu examinar os livros da loja. O rosto permanecia virado para as lombadas mas lançava olhares furtivos ao balcão circular central.
Podia ter compreendido mal o aviso, claro. Era bastante crítico. O suficiente para ela duvidar que mais alguém compreendesse que se relacionava com a queda dela.
Ao futuro parceiro interessado em espadas, arte negra e más-línguas, encontre-se comigo por baixo da cúpula, na morada das musas, às onze e meia de quinta-feira.
“Arte negra” referia-se ao fabrico de pólvora. A cúpula referia-se àquela que existia no alto da livraria grande de Finsbury Square, comumente chamada de Templo das Musas. Ela estava praticamente certa de que se tratava de outra mensagem do Dominó.
Acreditava também que fora escrita especificamente para ela. Se Dominó sabia do escândalo, naquela altura já teria conhecimento de que o pai dela estava morto e que a mulher que o aguardara no Duas Espadas era ela. Que estava agora sujeita às más-línguas.
Audrianna mal conseguia conter a excitação. Desejou que entrasse pela porta um homem de cabelo ruivo. Ponderou como conversariam depois de se encontrarem. Se ambos contemplassem os livros do balcão, perto um do outro, e se falassem baixinho, podiam conversar sem que nenhum cliente reparasse.
Olhou para o relógio de peito que segurava na mão enluvada. Ele já deveria estar lá. Não via, porém, ninguém de cabelo ruivo sob a cúpula central. Apenas duas mulheres se encontravam lá, assim como dois homens que não tinham nada de parecido com o Dominó.
Talvez ele observasse, assim como ela, de um canto que não estivesse à vista. Talvez achasse que a sua mensagem não tivesse sido vista.
Caminhou até o balcão grande, que tinha uma caixa de vidro na ponta. Ela espiou através do seu reflexo ondulante para as bonitas encadernações que estavam no interior.
– Bem que parecia que seria você.
Ouviu a voz grave, desagradada, mesmo em cima da sua orelha. Focou-se novamente no seu reflexo. Outro rosto reunira-se ao seu. Lord Sebastian estava agora mesmo ao lado dela.
– Vá embora! – suspirou ela furiosamente. – Vai estragar tudo outra vez.
– Não vou a lugar nenhum. Também quero conhecer o nosso amigo. Além disso, não posso deixá-la desprotegida.
– Este estabelecimento é movimentado e seguro. Além disso, tenho a pistola.
– Maldição, Miss Kelmsleigh. Os seus esforços para se proteger acabarão por matar alguém. Posso apenas rezar para que não seja eu.
– Se se meter na sua própria vida, pode ter certeza de que não será. Agora, vá embora. Ele nunca aparecerá se o vir aqui.
– O que a faz pensar que ele viu sequer a sua mensagem? Ele pode até estar em Armsterdam.
– É muito inteligente da sua parte pensar assim. Só que eu não escrevi a mensagem. Foi ele.
O olhar dele desviou-se logo, examinando intensamente a loja, estudando todos os clientes que estavam no interior.
– Ele não está aqui.
– Como sabe? Não sabe como ele é.
Ele limitou-se a abanar pensativamente a cabeça, continuando a observar atentamente a loja. Puxou o relógio de bolso.
– Já passou mais de quinze minutos da hora marcada.
– Você estragou tudo mesmo. Ele provavelmente olhou pela janela, o viu, e foi embora. – Desanimada e sem paciência, Audrianna ansiava por se livrar daquele homem intrometido. – Licença, por favor. Devo retornar à casa de Daphne. Ela vai se perguntar o que foi feito de mim.
Audrianna encaminhou-se para a porta. Na rua, um par de botas brilhantes acompanhou seus passos.
– Não se intrometa comigo agora – reclamou ela. – Sinto-me meio inclinada a atirar a sério em você. Se vou pagar o preço, é melhor consumar o ato.
– Pode se dizer que fez realmente isso. Puxou o gatilho. De outra forma, a pistola nunca teria disparado.
– Por favor. Não quero ser vista andando com você. Não quero que ninguém pense que combinei um encontro secreto.
– Já a viram comigo. Dentro de uma hora, o nosso encontro será do conhecimento geral em todo o Mayfair.
– Oh! Simplesmente maravilhoso. Muito obrigada.
– Então, o escândalo dificilmente pode piorar. Além disso, hoje o nosso encontro foi completamente ao acaso.
– Acho que foi completamente exasperante. Ora, a minha prima está ali dentro à minha espera. – Apontou para uma chapelaria.
– Devo me despedir.
Ele não se deixava abandonar facilmente. Ela atravessou a rua e as botas continuaram a andar atrás dela.
– Deixe-me explicar o porquê de ser ao acaso, Miss Kelmsleigh.
O meu irmão exprimiu interesse pela sua situação. Gostaria de conhecê-la. Eu planejei enviar convites a você e à sua mãe.
– À minha mãe!
– Claro. No entanto, visto que está hoje na cidade, podia levá-la até ele se quiser.
– Que interesse pode o seu irmão ter em me conhecer? – Audrianna imaginou-se sentada, sujeita ao escrutínio de um marquês com razões de sobra para não gostar do que via.
– Acho que pretende exprimir a tristeza dele pela sua situação, por ter de suportar estas más-línguas cruéis. É uma pessoa muito compassiva.
– Ele não é doente demais para receber convidados?
– Devido aos ferimentos de guerra, tem os movimentos restringidos e a saúde frágil. Mas não está tão doente que não goste de ter companhia.
Ela vacilou. Pareceria muito rude recusar a visita de um inválido confinado em casa que exprimira pena pela sua situação difícil.
– Ah! Ali está a sua prima. Mrs. Joyes, acabo de convidar Miss Kelmsleigh a visitar o meu irmão. Espero que concorde em acompanhá-la, para que as línguas parem de fofocar.
Daphne não mostrou surpresa em vê-lo à saída do chapeleiro, nem ao ouvir o convite improvisado.
– É generoso, Lord Sebastian. Receio, todavia, ter ainda várias diligências para finalizar.
– Pena. Teremos de aguardar os outros convites, afinal, Miss Kelmsleigh.
Daphne inclinou a cabeça, curiosa.
– Ele quer convidar a mim e à mãe, juntas – explicou Audrianna.
Os olhos de Daphne arregalaram-se uma fração mínima. Sem dúvida que imaginava a reação da tia a semelhante convite, e o caráter gélido de tal visita se ela decidisse aceitar. O que se sentiria forçada a fazer. Ninguém dizia que não a um marquês.
– Podia acompanhá-la até sua casa, no máximo – concedeu Daphne. – Se a marquesa está em casa, ninguém questionará a propriedade da reunião.
– Esplêndido! Quando chegarmos, terá a carruagem ao seu dispor para terminar as suas diligências. Direi igualmente ao nosso criado que leve as duas em casa.
Wittonbury House era uma mansão localizada em Park Lane, virada para Hyde Park e ladeada por outras casas gigantescas de famílias notáveis. A fachada denotava uma exuberância contida que sugeria o século anterior como período de construção. Audrianna percorreu os seis andares com o olhar até o grande frontão em voluta empoleirado perto da cornija, que realçava a ligeira projeção do edifício, no centro.
Ela nunca visitara uma casa tão ilustre. Roger tinha algumas relações na alta sociedade, mas como estivera ausente com o exército durante a maior parte do noivado, ela nunca tivera direito a convites para bailes ou festas.
Daphne seguiu na carruagem e eles dirigiram-se para a porta. Uma vez lá dentro, Lord Sebastian falou em particular com o mordomo e depois convidou-a para acompanhá-lo até a sala de visitas.
– Teremos de ir até o meu irmão. Ele não sai dos seus aposentos – explicou Sebastian enquanto subiam as escadas. – Espero que não se importe.
– Espero nunca ser tão exigente com a etiqueta a ponto de insistir que um inválido tenha o incômodo de vir até mim. – Deu uma volta pela sala de estar. O compartimento reluzia com tecidos e mobília suntuosos. Até as paredes proclamavam riqueza, com óleos de Rafael, Ticiano e Poussin. – Viveu sempre aqui?
Ele observou-a cambalear de um lado para o outro como se achasse interessante a sua forma de andar.
– Voltei quando trouxeram o meu irmão de Espanha. Vivi em outro lugar da cidade durante alguns anos antes disso.
Ela passou os dedos pela voluptuosa borla de seda que segurava uma cortina em verde de Viena. O toque era tão sensual como aparentava.
– Não sentiu a diferença quando regressou?
Toda a casa era um luxo, mas o retorno dele devia ter sido um pouco como ela voltar agora à casa da mãe. Amava a mãe, mas não lhe parecia possível retomar o seu lugar lá sem fricção.
Provavelmente seria diferente com os homens. Eram livres onde quer que vivessem, assim que atingiam a maioridade. A única penalização do regresso à velha vida seria algum inconveniente, talvez, especialmente na satisfação dos seus prazeres voluptuosos.
– Achei que eu seria necessário aqui – disse ele.
– Foi bom voltar, então, independentemente das suas preferências.
Ela espiou um jardim por uma janela.
– Espero que não tenha falado ao seu irmão da nossa última conversa. Aquela que tivemos no caminho da casa da minha prima.
– Não lhe disse uma única palavra a respeito disso.
– Obrigada. Caso contrário, seria muito embaraçoso.
– O meu irmão acharia divertido que tivesse recusado a minha proposta. Podia pensar que a notícia era a melhor parte do seu dia.
Sorriu ao dizê-lo, como se também achasse divertido. Certamente estaria aliviado por ela ter recusado. O resultado era o ideal – ele oferecera-se para fazer a coisa certa, mas acabara por não ter de concretizá-la.
– Não esperava que se mostrasse tão bem-humorado com o assunto se voltasse a vê-lo – disse ela.
– Compreendo a sua posição, Miss Kelmsleigh. Não fiquei muito ofendido. Um pouco, mas não muito.
Outra vez aquele sorriso. Ela forçou alguma clareza aos seus pensamentos para não ficar olhando para ele como uma tola deslumbrada.
Então apareceu um lacaio à porta, que comunicou a sua mensagem sem dizer uma palavra.
– O meu irmão está pronto, Miss Kelmsleigh. Deixe-me levá-la até ele.
O apartamento de Wittonbury era maior do que a maioria das casas. Entraram numa divisão que parecia servir de antessala.
As paredes claras e estofos vermelho-escuros faziam qualquer pessoa ignorar que se tratava de um quarto interior.
Um homem impecavelmente vestido, corpulento e rosado os cumprimentou. Lord Sebastian apresentou-o como Dr. Fenwood.
– O meu irmão está bem, Fenwood?
– Muito bem, senhor. E satisfeito por ter trazido companhia. Está na biblioteca. – Dr. Fenwood fez uma pausa. – Lady Wittonbury acaba de chegar e está com ele.
– O meu irmão mandou chamá-la?
– Acho que não, senhor.
– A fortuna está nos acompanhando hoje, Miss Kelmsleigh, se a minha mãe vem juntar-se a nós – disse ele, acompanhando-a a uma porta que dava para o compartimento à esquerda.
– Quer dizer uma boa sorte, não é?
– Duvido.
A biblioteca revelou-se muito maior do que a antessala, além da grande vantagem de possuir janelas grandes em duas paredes. Com o dobro do tamanho da biblioteca da casa da sua família, fez Audrianna interrogar-se sobre a biblioteca verdadeira, a do andar de baixo, que servia mais do que uma pessoa.
A sua observação minuciosa dos objetos e estantes escuras, do carpete turco e das janelas altas, terminou abruptamente quando viu a marquesa sentada ao pé da lareira.
Lady Wittonbury estava formidável. Qualquer outra descrição seria secundária. Audrianna enumerou-as, de qualquer maneira. Bela, mesmo na meia-idade, com os olhos escuros e intensos do filho mais novo e um corpo esguio e alto, e cabelo negro como azeviche. Imperiosa na forma de se sentar, as costas direitas como uma barra de ferro, a pose de uma rainha. Captou a atenção de Audrianna tão completamente que ela precisou de uns momentos para reparar no homem que estava na poltrona ao seu lado.
Tirando o rosto, a gravata e o colarinho da camisa do marquês, era tudo completamente escuro. O seu rosto era uma versão mais suave do de seu irmão, e de aparência muito mais envelhecida, com uma expressão cansada e melancólica. O casaco preto caía sobre um cobertor escuro que lhe cobria a parte inferior do corpo. Estava sentado numa cadeira escura. Parecia que o marquês desapareceria nas sombras, não fosse a sua luminosa mãe que estava ao seu lado, derramando a sua vitalidade sobre ele.
– Por favor, sente-se aqui, Miss Kelmsleigh – instruiu ele, após as apresentações. Indicou uma cadeira à sua direita. Lord Sebastian permanecia de pé.
– Vive na cidade, Miss Kelmsleigh? – indagou a marquesa.
– Vivo em Cumberworth, no Middlesex.
As sobrancelhas dela se ergueram. Comunicava mais desdém do que curiosidade.
– Cumberworth? Não me recordo de ver mencionado nos jornais que o seu pai tinha propriedade em Cumberworth.
A referência ao pai dela e às histórias dos jornais não foi acidental. Audrianna ficou ressentida por aquela mulher fazer questão de mencioná-lo, como se existisse o risco de algum deles o ter esquecido.
– Vivo com a minha prima.
– A prima, Mrs. Joyes, cultiva flores numa estufa imensa – explicou Lord Sebastian. – Têm uma videira lá dentro.
– Uma videira? – repetiu Lady Wittonbury. – Que... rústico.
– É um fato que vivemos no campo, senhora. Por isso, sim, é um pouco rústico.
– O jardim não é nada rústico – arguiu Summerhays. – Quando está com flor, estou certo de que seria um orgulho nos melhores solares.
À Audrianna pareceu simpático da parte dele defender o jardim e o resto da sua casa, embora suspeitasse de que ele, mais do que elogiá-la, gostava de discordar da mãe.
– Então não vive com a sua mãe – cogitou Lady Wittonbury. – Duas jovens solteiras vivendo sozinhas no campo... É incomum.
– De jeito nenhum – interveio o marquês. – Desde a guerra que se tornou bem comum.
– Mrs. Joyes, a prima de Miss Kelmsleigh, na verdade é uma viúva de guerra – acrescentou Summerhays.
A informação silenciou Lady Wittonbury, mas não pôs um fim ao seu exame minucioso. Alvo daquela atenção intensa, Audrianna sentiu-se um inseto desagradável.
– Que tipos de flores são cultivados nessa estufa? – indagou a marquesa.
Audrianna descreveu os bulbos que cultivavam no final do inverno, e as amarílis no outono, e os muitos pelargônios que se reproduziam e até hibridavam.
– Seus jardineiros devem ter muito que fazer – comentou Lady Wittonbury.
– Nós mesmas cuidamos, minha senhora. Ou melhor, a Daphne e a Lizzie fazem a maior parte e a Celia e eu ajudamos.
– Lizzie? Mais mulheres. Semelhante a uma abadia.
– É o que diz a minha prima. Não uma abadia, mas uma casa de beguinas. Eram comuns na França medieval. Mulheres leigas que viviam juntas como nós. Algumas tinham trabalhos fora da habitação e nenhuma professava votos, mas viviam comunalmente.
– A sua prima deu bom uso à propriedade dela, então – disse a marquesa em tom de aprovação.
A mãe pôs-se de pé, ficando ainda mais formidável aos olhos de Audrianna e do marquês, que permaneciam sentados.
– Encantada por tê-la conhecido, Miss Kelmsleigh, e à sua casa peculiar. Parece tudo muito radical e de uma independência exagerada, mas eu sou uma mulher antiquada. Agora devo pedir a sua compreensão. Devo tratar de um assunto premente. – Inclinou-se e beijou o marquês na cabeça, como se ele fosse uma criança. Dirigiu a Lord Sebastian um olhar firme ao preparar-se para sair.
– Eu a acompanho – disse ele. – Miss Kelmsleigh, o meu irmão terá todo o gosto em desfrutar da sua companhia enquanto eu não volto, se tiver a gentileza de fazer a vontade aos dois.
– Sim, fique – anuiu o marquês. – Me conte do caramanchão com a videira.
– Porque está ela aqui? – A pergunta, baixa e tensa, surgiu assim que a porta se fechou atrás deles.
– Está aqui porque eu a convidei – disse Sebastian.
– Ah, dai-me paciência. Você fica igualzinho a ele, com essas evasivas irônicas. – Não se dirigiu para os seus aposentos, mas para a biblioteca. Lá dentro, andava para a frente e para trás, lançando-lhe olhares de desagrado.
– Não fez nada imprudente, certo? – exigiu saber. – Uma coisa é ficar por aí entretido com a filha de um homem exposto como o pai dela foi. Outra é tentar retificar a indiscrição com...
– Com o quê?
Ela parou de andar e colocou-se de frente para ele.
– É chocante trazê-la aqui, parece querer mais chacota da sociedade. Ela é inadequada. De todas as formas. Mesmo sem esse escândalo humilhante, mesmo sem a desgraça do pai, não serviria. Não é uma situação em que a honra exija que se faça a coisa certa. Além do mais, o que quer que exista entre você e esta mulher tem de acabar. Prosseguirem com a ligação apenas prejudicará a família e a sua influência.
– Se eu fico igualzinho a ele, é porque você é tão igual a si mesma – observou Sebastian. Ouvi-la criticar Miss Kelmsleigh o aborrecia profundamente, mais do que devia.
– Estou apenas lhe lembrando do seu dever.
– Não irei tolerar a sua rudeza com os meus amigos.
– Amigos! Agora a inclui como seus amigos? É seu objetivo me envergonhar a ponto de eu ter um ataque?
– É meu objetivo recordar-lhe que sim, que me pareço de fato muito com ele, logo sou pouco inclinado a aceitar a sua interferência. Nisso, pelo menos, não ocupei o lugar do Morgan.
Os olhos dele se estreitaram e o rosto pálido dela corou.
– Como se pudesse ocupar o lugar dele em alguma coisa.
– Claro que não. Não sou ele.
– Isso é certo.
– Essa aflição toda está na sua cabeça, e vou deixá-la se banhar nela. Encha o meu irmão com os seus conselhos, se assim quiser, mas pode poupá-los comigo no futuro.
Sebastian saiu da biblioteca e subiu para o andar de cima. A mãe tinha azedado seu humor mais do que gostaria de admitir. Ambos sabiam que ele havia, de fato, ocupado o lugar de Morgan de várias formas. Essa era a verdadeira fonte da raiva dela.
E da dele, às vezes.