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Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.


CONTINUA

Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.


CONTINUA

Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.


CONTINUA

Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.


CONTINUA

Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.


CONTINUA

Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.


CONTINUA

Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.


CONTINUA

Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.


CONTINUA

Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.


CONTINUA

Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.


CONTINUA

Capítulo 10


Morgan e Miss Kelmsleigh não repararam nele quando abriu a porta. Estavam ocupados demais rindo. O som era tão estranho àquele ambiente que Sebastian parou à entrada.

– É bom ouvir o meu senhor se divertindo. – Fenwood falou baixinho. Sebastian virou-se e viu-o atrás dele, esticando o pescoço para espiar a biblioteca, agora que tinham aberto a porta.

A boa disposição de Morgan o transformara. Com as gargalhadas que a piada de Miss Kelmsleigh provocara, o seu rosto ganhara cor. Parecia mais animado, mais vivo, do que em muitos meses.

Havia sido a mera presença de uma mulher que fizera aquilo? Além da mãe e algumas criadas, não entrava nenhuma mulher naquele apartamento havia muito tempo.

Deu um passo para trás a fim de voltar a fechar a porta, mas Morgan reparou nele antes de a retirada se concretizar.

– Não tinha me avisado que Miss Kelmsleigh era assim tão espirituosa, irmão.

Ele aproximou-se deles.

– Sei que é esperta, é verdade. Fico com ciúmes por ter sido privilegiado com a inteligência da sua língua. Lamentavelmente, eu recebi apenas as suas chicotadas.

– Partilharia a sua sagacidade, mas geralmente perde-se muito na repetição – justificou-se Morgan. Os olhos dele chegaram mesmo a piscar quando ele e Miss Kelmsleigh trocaram um olhar conspirador.

– Por que estou achando que a piada se referia a mim? – disse Sebastian.

Ambos riram outra vez.

– A sua companhia foi tão refrescante como um dia de sol, Miss Kelmsleigh. Prometa que vai voltar a me visitar – disse Morgan.

A sugestão apanhou-a de surpresa.

– Tentarei, sim. Obrigada – disse.

Não iria tentar muito. Sebastian sabia que sua intenção era não voltar ali.

– Gostaria que conhecesse a casa e o jardim antes de ir embora. O meu irmão terá de acompanhá-la, já que eu não posso.

– É uma pena, visto que o dia está mesmo bonito, e seria ainda mais revigorante. Não poderia pelo menos ficar observando da janela enquanto damos uma volta pelo jardim?

– Imagino que possa, agora que fala nisso. Posso lhe servir de acompanhante, vigiando daqui de cima, e o meu irmão não terá de solicitar a presença da minha mãe. Chamarei o Dr. Fenwood para ele me mudar para lá.

– Deixe que eu faço isso – ofereceu-se Sebastian. Sem mais, pegou o irmão. Só depois de sentir a leveza surpreendente de Morgan nos braços, Sebastian considerou que movimentar um marquês inválido na presença de Miss Kelmsleigh era pouco digno e desadequado.

Já havia feito isso vezes suficientes para Morgan não mostrar incômodo nem constrangimento. Nem Miss Kelmsleigh mostrou. Ela colocou uma cadeira mesmo ao pé da janela e Sebastian deixou o irmão lá.

– Abra-a, por favor – disse Morgan,

Sebastian não se lembrava da última vez em que Morgan se arriscara a sentir o ar fresco.

– Tem certeza?

– Abra-a.

Miss Kelmsleigh abriu uma fresta da janela. Sebastian encontrou mais uma manta num baú e enrolou-a à volta dos ombros do irmão.

– Vou chamar Fenwood. Ele irá asseguar de que não pegue um resfriado – disse Sebastian.

– Não. Ele fechará a janela, mesmo que eu aceite usar dez mantas e uma pele. Diga-lhe que o proíbo de entrar durante meia hora.

Sebastian não conseguiu encontrar dez mantas, mas localizou mais uma, que também enrolou em Morgan.

Miss Kelmsleigh observava.

– Não tive intenção de colocar a sua saúde em perigo com a minha sugestão.

– O ar fresco é tão delicioso que não me importo se ficar com febre depois. – Morgan expirou profundamente e fechou os olhos, saboreando a brisa suave. – Comecem a andar, agora. Tem de me escrever dizendo o que achou do jardim, Miss Kelmsleigh. Talvez no Flores Preciosas tenham ideias para o seu melhoramento.

O jardim era magnífico, claro. Maior do que grande parte dos jardins do campo, tinha até um pequeno bosque na parte de trás. Desde que vivia com Daphne que Audrianna aprendia sobre a criação de jardins, e os trilhos sinuosos e desenho informal daquele diziam que o mestre projetista o concebera não há muito tempo.

– O que achou da casa? – perguntou Sebastian, caminhando a seu lado.

Ele a havia mostrado a vasta biblioteca e o salão de baile ainda maior. O cômodo mais interessante tinha sido a sala de música circular, que incluía um precioso piano.

– É imponente. Uma mulher mais sofisticada poderia não ficar deslumbrada, mas eu confesso que estou.

– Está sendo injusta consigo mesma. Comporta-se bem o bastante quando quer. O meu irmão já tem afeição por você e não se deixou assustar pela minha mãe.

Ele havia reparado que a mãe tentara.

– Ela não ficou satisfeita com a minha presença na sua casa imponente. Acho que se surpreendeu de me encontrar aqui. Acho que o seu irmão também; e que na verdade ele não pediu para me conhecer.

– Por que acha isso? Ele se deliciou com a sua companhia.

– Acho isso porque lhe perguntei e ele me contou a verdade.

– É mesmo típico dele. – Sebastian lançou um ar carrancudo por cima do ombro ao rosto que estava na janela alta. – Ele me desmascarou. No entanto, mostrou compaixão pela sua situação difícil. Foi bom tê-lo conhecido, e à minha mãe, e ter visto a casa. Deve ver a vida que terá quando nos casarmos. O bom e o mau.

Quando nos casarmos.

– Não aceitei a sua proposta.

– Você estava em estado de choque.

– Foi inesperado, mas eu não fiquei em estado de choque.

– Não compreendeu o que estava recusando.

– Compreendi, com toda a clareza.

Só que ela não tinha compreendido verdadeiramente. Nisso ele estava certo. Ao lhe mostrar aquela casa, aquele conforto, lançava-lhe uma isca.

Revelara muito mais do que luxo, também, apesar de não parecer que ela percebera isso. Vendo-o com a mãe e o irmão, subitamente existia toda uma história e ele se tornara mais real e mais humano. A maneira de pegar o irmão, o cuidado que mostrara com as mantas... Era muito difícil pensar que um homem assim fosse cruel por natureza.

– Miss Kelmsleigh, quero que reconsidere a minha proposta.

E ela quis rejeitá-la, com a mesma força e certeza que da última vez. Só que não conseguia. A pequena estratégia dele resultara bem demais para isso.

– Lord Sebastian, a minha mãe nunca consentiria com tal união, depois do que aconteceu ao meu pai.

Ele olhou por cima do ombro, para a janela. Depois pegou na mão dela e, com firmeza, conduziu-a por outro caminho que virava bruscamente por trás de uma plantação densa de abrunheiro-bravo. Ali, aguardava-os um banco e ele largou-a para ela se sentar.

– Se falar à sua mãe da minha proposta, acho que ela concordará perfeitamente. Quererá as ligações, e a segurança financeira, e a posição para todas vocês. É rara a mãe que pede à filha que recuse o irmão de um marquês, seja qual for a razão.

– O meu pai...

– Ela se convencerá de que é direito seu, e dela, devido a esse sofrimento. Ela me culpa por uma injustiça, e isso ajuda a retificar uma parcela. Você sabe que ela conseguirá adotar essa visão. É por isso que a ideia de convidá-la a vir aqui a alarmou.

– E a minha própria visão?

– Adote a da sua mãe. É prática, pelo menos. Não existirá melhor forma, nem nenhuma outra forma, de me fazer pagar.

– Não o culparei menos depois de casarmos, mesmo acreditando que se trata de um pagamento. Não tem receio de que isso venha envenenar aquilo que propõe?

– Como viu, é uma casa muito grande, Miss Kelmsleigh. Todas as outras são pelo menos tão grandes quanto. Pode viver a sua vida tolerando a minha companhia não mais do que dez horas por semana se essa for a sua escolha. Acredite em mim quando lhe prometo que será muito fácil ser casada e praticamente separada. Já vi acontecer isso antes.

Ela não podia negar que se tratava de um argumento irresistível. Haveria algum tipo de justiça no fato de o homem que tanto magoara a sua família ser o agente da sua ascensão e ressurgimento. O casamento aplacaria igualmente o escândalo e lhe daria mais segurança do que ela alguma vez esperara conhecer.

Quanto ao luxo, ela tentara resistir ao seu encanto, mas era humana. Imagens invadiam sua mente, de vestidos que ela nunca usara e bailes que nunca vira. Ele teria os próprios camarotes nos teatros, certamente, e haveria longos e requintados jantares à luz de velas bruxuleantes, e seda, e a melhor companhia.

Quanto àquelas dez horas por semana...

Dedos tocaram no seu queixo e lhe fizeram inclinar o rosto para a esquerda. Sem luvas desta vez, apenas a sensação inconfundível de pele masculina na sua. O contato a sobressaltou, arrancando-a dos seus devaneios.

Ele sentou-se ao se lado. Os olhos diziam que sabia onde a mente dela havia estado e para onde se virava agora.

– Será mais do que tolerável, prometo.

Os lábios dele tocaram os seus, clarificando aquela referência. Dadas as circunstâncias, ela avaliou o beijo sob perspetivas a que não recorrera para avaliar os outros. Afinal de contas, precisava estar bem certa daquilo com que poderia contar no casamento.

Sim, mais do que tolerável. Muito mais. Não conservou a objetividade durante muito tempo. Ainda assim, notou que o beijo dele era um tanto firme e seco, e que a forma como as mãos seguravam sua cabeça era simultaneamente doce e controladora. Deu-se vagamente conta de que a seguir ele embarcou numa invasão suave da sua boca, que não deixava de ser uma invasão. Sentindo o prazer começando a se espalhar em ondas pelo corpo, ocorreu-lhe que provavelmente ele teria precisado de muita prática para aprender a beijar assim, e admitiu que a mera presença dele, que ainda a afetava muito, a predispusera para aquilo.

Depois não pensou em nada, a não ser nos anseios crescentes que exigiam toda a sua atenção.

Anseios pecaminosos. Chocantes. O seu corpo tornara-se mais experiente naquelas coisas e oferecia pouca resistência. Tremores diabólicos perturbavam-na como se penas invisíveis roçassem e acariciassem seu corpo. Os seios ficaram mais pesados, e impacientes com a roupa que os restringia.

Flutuava agora, como se o corpo tivesse perdido o chão. O braço firme de Sebastian a envolveu, evitando que saísse voando. O abraço fez com que se aterrorizasse bem demais.

– O seu irmão...

– Já passou bem mais de meia hora desde que o deixamos. Fenwood tirou-o da janela.

Que descuido do marquês, deixá-la desprotegida.

– A sua mãe? – Chegara a dizer aquilo? Beijos no pescoço deixaram-na ofegante, por isso não tinha certeza.

– Recebe visitas a esta altura, e não conseguem nos ver das janelas da sala de visitas.

Ela tentou se lembrar do que vira quando olhara pela janela.

As pontas dos dedos dele tocaram nos seus lábios, como que para silenciá-la. Só que essa não era de todo a sua intenção. Ele incitou seus lábios a se afastarem.

– Sim, assim mesmo.

Aquele outro tipo de beijo, desta vez, invasivo e íntimo. A excitação e o prazer intensificaram-se imediatamente e ela voltou a se perder e a entrar num lugar escuro de desejo primitivo.

Não se importou quando o abraço dele a puxou para mais perto. Perversamente, ela se deleitou com os sinais da paixão dele. Não protestou minimamente quando ele acariciou seu seio. Queria aquilo. Quase pediu.

Era bom demais. Sublime. Espantoso. Ele conseguiu descobrir uma maneira de tocá-la que quase a fez gritar. O prazer tornou-se mais agudo e despertou um delírio dentro dela. Um pulsar quente a perturbava insuportavelmente no lugar onde se sentava, causando um desconforto irresistível que alimentava o frenesi da sua mente.

– Suficientemente tolerável? – A sua voz ameaçadora falou baixinho à orelha enquanto ele lhe estimulava impiedosamente os seios.

Ela estava inquieta demais para se importar sequer se ele tinha feito esta pergunta ou aquela.

De repente, ele deixara de estar ao seu lado, abandonando-a, corada e vulnerável, à brisa. O seu deslize fresco a fez abrir os olhos e pestanejar.

Ele não fora para muito longe. Ajoelhara-se mesmo em frente a ela. Ela recuperou presença de espírito suficiente para compreender que ele ia pedi-la novamente em casamento, de joelho no chão. Era encantador demais para se suportar.

Só que ele não o fez, nem nada na sua expressão sugeria intenções assim tão honradas. A expressão dele, e a maneira como a olhava, fez disparar dentro dela uma excitante sensação de alerta.

Ele pegou seu pé esquerdo, tirou o sapato, apoiando a planta do pé no seu joelho. Antes que ela conseguisse recompor-se e objetar, começou a levantar a saia.

Chocada, ela se inclinou para voltar a puxá-la para baixo.

– O que está fazendo?

– O que quer que eu faça, ou pelo menos o que as nossas circunstâncias permitem neste momento.

– Está se equivocando quanto àquilo que quero. – Só que na realidade não se equivocava. Ao empurrar a saia, também acariciava a perna, e os movimentos da palma da mão dele rapidamente ganharam em interesse à saia.

– É impudico demais – repreendeu ela, tentando novamente empurrar a saia, mesmo com esta subindo, mas o prazer tirava-lhe a razão toda.

– Sim. – Ele conseguiu subir a bainha da saia acima do joelho, expondo a coxa. Ignorou as tentativas dela de se tapar. Inclinou-se e beijou o joelho, e a seguir a pele exposta, por dentro, acima da liga.

Ela quase saltou do banco. O choque que representou para o seu corpo deixou-a sem ar. Ficou olhando para ele, vendo-o fazer de novo, com receio por tudo ter se transformado subitamente, e ficado mais sério, e muito perigoso. De repente deu por si em águas profundas, e nem se importava se se afogasse.

A boca dele ocupou o lugar da mão. As suas carícias encheram a cabeça de gemidos e súplicas descontrolados. Tentava a custo contê-los.

Ele observou a impotência dela face à subida da sua mão. O seu corpo latejava em resposta. Ela sentia um pulsar distinto lá embaixo, que subia em espiral, quente.

Os dedos dele baixaram a calcinha, que deslizara até o cimo da sua coxa. Ela fechou os olhos e tentou recuperar algum autocontrole.

– Não devia – sussurrou ela.

– Não, mas não sou tão bonzinho que pare. Nem estou sendo realmente mau. Afinal, o mundo já a entregou a mim e você não tem outra escolha a não ser se submeter ao que o destino já decretou. – A mão dele deslizava, provocante, pela orla do tecido. – Deve saber como será quando o fizer.

Os dedos dele enfiaram-se por baixo do tecido da calcinha dela. Ele tocou naquele pulsar. Ela susteve o fôlego, a sensação obliterando todas as outras.

Ele acariciou e ela sentiu-se fora de si com a intensidade. Fechou os olhos e o prazer a invadiu. Ele disse qualquer coisa e ela não ouviu, ou não conseguia lembrar-se se ouvira.

Perdeu a luta pela contenção. Encostou-se ao banco, insustentavelmente leve. Acomodou os quadris para sentir melhor e sucumbiu completamente ao prazer.

Em breve não conseguia suportar mais. O prazer ganhou um centro, irado, frustrado. Guinchos de necessidade começaram a extravasar pelo seu abandono. Um escapou, tinha certeza, ressoando pelo jardim.

Os toques devassos pararam, substituídos por carícias suaves na coxa. Um grito de frustração escapou-lhe e desta vez ela ouviu-se a si própria. Tapou a boca com a mão, não fora sair mais algum. Ela deixou que os toques apaziguadores fizessem o que podiam, mas queria bater-lhe por ele ter parado e ter deixado dentro dela aquele faminto pico de desejo.

Ela deixou-se acalmar até algo semelhante à sanidade voltar. Ainda sentia a brisa na perna. Abriu os olhos e se endireitou, constrangida agora, e em maior desvantagem relativamente àquele homem do que alguma vez estivera.

Ele já não acariciava sua coxa. Em vez disso, apertava uma corrente em volta dela.

Uma corrente de ouro, com pedras verdes penduradas. A sua coxa usava agora um colar de esmeraldas.

Ela ficou olhando para a joia.

– Pagamento?

– Não, suborno.

Ela tocou nas pedras verdes e elas bateram suavemente na pele. Ele dava-se a grandes trabalhos.

– Por quê?

Ergueu-se e sentou-se ao lado dela. Ela abriu o fecho e tirou o colar, admirando-o à luz do sol.

– Porque merece mais do que escândalo e infâmia, e porque não estou em condições de me permitir ser encarado como libertino e canalha.

– Deixou mesmo de ser assim?

– Gostaria de pensar que nunca fui um canalha.

O que incitava uma pergunta sobre a parte do libertino. Era aviso justo de que fora daquelas horas obrigatórias que passavam juntos, ele também seguiria o seu caminho em separado.

Ela empurrou o vestido para baixo e enfiou o sapato.

– Tenho certeza de que a Daphne está à espera. Tenho que ir.

Retornaram à casa. Ela devia sentir-se mais embaraçada do que se sentia. Só isso a fez pensar sobre as várias implicações tanto da proposta dele como daquela sensualidade poderosa.

Acabara se esquecendo por um momento, no meio daquele prazer, os ressentimentos que tinha com ele. A raiva ficara obscurecida pelo torpor. A momentânea intemporalidade, mais do que as sensações, poderia, realmente, tornar aquele casamento tolerável.

Seria traição ao pai aceitar? Mesmo se conferisse segurança à mãe e à Sarah, a oportunidade de uma vida melhor? Ela não acreditava que o pai lhe quisesse mal por isso. A questão era se ela mesma se condenava.

Por outro lado, podia encontrar mais facilmente uma forma de vingá-lo com a nova posição social, mais elevada, que lhe era oferecida.

– Se fizéssemos isso, presumo que seria uma união sofisticada, como aquelas de que se ouve falar entre a alta sociedade – disse ela. – Que você teria amantes e que, depois de algum tempo, depois de nascer um filho, eu também poderia ter. – Era, descobria, razoavelmente fácil falar francamente com um homem com quem partilhara intimidades escandalosas.

Ele estugou um pouco o passo antes de responder.

– Claro.

Quando chegaram em casa, ela ainda tinha o colar na mão.

– Não posso aceitar isto.

Ele tirou de sua mão e também pegou sua bolsa. Deixou cair o colar lá dentro e devolveu-lhe a bolsa.

– Se voltar a me rejeitar, será a única reparação que terá. Se não o fizer, é um presente de noivado adequado.

Daphne tinha realmente acabado com as suas andanças. Recusara a oferta de aguardar dentro de casa e ainda estava sentada na carruagem de Lord Sebastian.

Lord Sebastian confiou Audrianna ao lacaio que estava à porta da casa. Ela se despediu dele, começou a andar, depois pensou melhor e voltou-se para uma última palavra.

– Imagino que aquelas poucas horas por semana sejam suficientemente toleráveis.

– Hoje foi menos do que nos aguarda nessa parte da nossa união, Miss Kelmsleigh. Talvez queira dar-me a conhecer a sua decisão sobre as outras partes até o final da semana.

– Sim, farei isso.

Ela subiu para a carruagem. Daphne parecia serena e nem um pouco incomodada por ter tido de esperar.

– Conheceu o marquês? – indagou ela quando a carruagem começou a andar.

– Sim, e é muito amável.

Daphne reposicionou-se no banco.

– E a marquesa, estava em casa?

– Como prometido. Também a conheci. – Audrianna franziu o nariz em sinal de aversão.

Daphne riu. Fechou a cortina. Olhou para os aprestos interiores da carruagem, de qualidade.

Olhou pela janela durante alguns minutos, depois dirigiu um olhar muito direto a Audrianna.

– Então, querida prima, quando é a boda?


Capítulo 11


Sebastian recebeu a carta de Audrianna aceitando a proposta dele dois dias após a visita. A carta de Mrs. Kelmsleigh chegou no dia seguinte, expressando alegria contida e convidando-o a visitá-la. Ele assim fez imediatamente e conheceu a sua filha mais nova, Sarah, e bebeu ponche na sua arrumada sala de visitas perto de Russell Square, onde passou meia hora com ela fingindo que não o detestava.

Depois ela passou ao que interessava. Pediu um casamento pequeno, discreto, pois não teria decorrido um ano desde o falecimento do marido. Pediu também autorização para colocar o novo guarda-roupa de Audrianna nas contas dele, juntamente com as roupas de casamento para ela e a filha.

Não foi pedida uma soma específica. Seria indelicado falar em quantias concretas. Ao concordar suportar aqueles custos femininos, ele aceitava que acabava de lhes dar carta-branca. Entre o impulso de vingança e a oportunidade de se mimarem, as mulheres Kelmsleigh provavelmente iriam deixá-lo à mercê dos credores.

Morgan exprimiu satisfação ao saber a notícia de que Sebastian estava “fazendo a coisa certa” por Miss Kelmsleigh, mas, a bem da verdade, ele possuía ideias descomplicadas daquilo que estava certo ou errado, da honra e da decência. Sebastian ficou satisfeito pelo irmão estar satisfeito porque, quando chegou aquela carta de Audrianna, ele se deu por satisfeito também.

Ela mostrava ser animada, inteligente e sensual, e podia ter sido pior. E se mais tarde verificasse que fora aprisionado num inferno temporal, podia seguir o exemplo do pai naquilo como em tanta coisa. Ela até esperava que ele fizesse isso.

A mãe deles não disse absolutamente nada na noite em que Sebastian a procurou para informá-la. Nem sequer olhou para ele. Uma estátua mostraria maior reação, mas nem sequer um ator conseguiria ser mais eloquente.

Finalmente, quando ele estava de saída, ela disse simplesmente que trataria dos preparativos para o casamento e o banquete nupcial, para a família não ficar totalmente humilhada de todas as maneiras possíveis. Uma vez que se preparara para enfrentar uma discussão longa e maçante, Sebastian a beijou de gratidão antes de se retirar da sua presença gélida.

O anúncio do noivado fez erguer sobrancelhas e provocou outro surto de difamação, mas o vento logo deixou de alimentar as velas ao escândalo. Haveria pequenas brisas durante anos, é claro, mas, uma semana depois de selado o acordo, chegou uma carta de Castleford, aceitando a troca de favores reciprocamente benéfica que ele recusara anteriormente. O que assinalou a volta ao normal da influência política de Sebastian.

Um colega da Câmara dos Comuns, Nathan Proctor, tentou ressarcir alguns cortes precipitados abordando-o certa tarde quando saíam ambos do Brook’s.

– Aquele rapaz do meu condado está finalmente de volta – disse ele de passagem.

A cabeça de Sebastian estava em outras coisas e apenas conseguiu sorrir inexpressivamente ao ouvir a referência.

– Aquele que estava com o terceiro regimento, de que lhe falei no ano passado. A explosão deu cabo dele, coitado. Ficou à porta da morte e trataram dele num convento de lá até o outono passado. Finalmente está apto a viajar e vai voltar para casa, para junto da família. Ficará aqui em Londres com uma irmã durante um bocado.

O terceiro regimento incluía a companhia que a pólvora ruim deixara indefesa. Sebastian passara dois anos à procura dos poucos que tinham sobrevivido, para descobrir que luz poderiam lançar sobre o assunto. Com exceção de histórias de morte e impotência, de canhões a negarem fogo e mosquetes inutilizados, não ficara sabendo de nada de novo.

Sua mente recuou nas memórias de todas as provas e fatos que chegara a conhecer.

– Ele era artilheiro, não era?

– Era. É um milagre estar vivo. Eles apontam os canhões deles aos nossos, é evidente. O moço só sobreviveu porque estava dobrado abrindo um barril para ver em que estado se encontrava.

Os artilheiros estavam sempre mexendo em pólvora. Aquele jovem podia saber mais do que os outros sobreviventes.

– Quando estará na Inglaterra?

– Dentro de duas semanas, segundo me disseram. A família conseguiu finalmente dinheiro para enviar alguém que o trouxesse para cá. Não conseguia vir sozinho, é evidente.

Sebastian agradeceu a Proctor e pediu que o informassem quando o soldado chegasse. Retomou então o seu caminho. Destino caprichoso, que lhe oferecia um potencial achado no caso de Kelmsleigh, logo depois de ficar comprometido com a filha do falecido.

Infelizmente, não esperava ficar sabendo de alguma coisa que eximisse o pai de Audrianna. Pelo contrário.

De regresso a Park Lane, foi ver como estava Morgan e descobriu que Kennington e Symes-Wilvert estavam de visita. Incapaz de arquitetar uma fuga, viu-se aprisionado numa longa hora de uíste. Os dois amigos de Morgan queriam falar sobre o casamento.

– Isso é que é decência, Summerhays – ofereceu Kennington sonoramente.

– Sim, extrema decência – concordou Symes-Wilvert.

– O meu irmão só lamenta eles não terem podido anunciar as suas intenções antes do início daquela difamação infeliz – disse Morgan. – Na tentativa de permitir à família de Miss Kelmsleigh que decorresse o período completo de luto pela morte do pai dela, e de deixar que o próprio tempo enfraquecesse futuras considerações maliciosas sobre os caminhos caprichosos que a afeição pode seguir, abriram inocentemente a porta para a pior especulação.

Sebastian olhou para as cartas. Morgan acabava de mentir. Não despudoradamente, pois Morgan não tinha certeza da não existência de uma ligação antes da noite do Duas Espadas, mas... O irmão admirava Audrianna e parecia disposto a esticar a verdade para ajudá-la a vencer a tempestade.

– Dizem que é uma mulher de boa aparência, por isso tenho certeza de que o casamento não é só um capricho – avançou Kennington. – Ele a conheceu enquanto investigava aquele assunto do pai dela, acho eu.

– Sim. – E assim tinha sido.

– Imagino que agora desista disso, como os outros desistiram. De qualquer forma, não parecia levar a lugar nenhum, já que, enforcando-se, só faltou confessar – completou Symes-Wilvert.

Sebastian jogou uma carta.

– Se houve outras pessoas envolvidas, não acho que possam começar a dormir já descansadas – esclareceu Morgan. – O meu irmão consegue ser muito tenaz na execução do seu dever.

– Claro. Não estava insinuando que ele não faria o seu dever – disse Symes-Wilvert, corando. – Só que a noiva dele não vai querer que se volte a desenterrar tudo. Pensei...

Era mesmo de Symes-Wilvert não compreender que, ao casar com Miss Kelmsleigh, Sebastian obrigava-se a exercer a tenacidade que Morgan mencionara. Se desistisse agora da sua investigação, basicamente admitia que aquelas gravuras tinham feito o retrato exato do seu caráter.

Sebastian reparou na expressão séria de Morgan, agora que a conversa recaíra sobre a pólvora. Sempre tinha sido assim. Desde que os primeiros relatos do massacre haviam chegado a Londres que o interesse de Morgan fora sempre muito vivo. Perdera a compostura uma vez, quando falara do horror que os soldados tinham enfrentado devido a negligência ou pior. A afeição de Morgan por Audrianna não mudaria nada disso.

– Miss Kelmsleigh sabe das minhas opiniões e intenções – disse Sebastian. – Agradeço, contudo, a sua preocupação com a minha harmonia matrimonial.

– Acho que aqui o Summerhays pretende manter a harmonia de outras maneiras. – Kennington acompanhou com uma risada a sua própria insinuação. No entanto, tratando-se dele, não arriscaria que os outros pudessem não compreender o seu óbvio objetivo. – Está no momento de dar bom uso àquela prática toda, não é, Summerhays? E assim a sua senhora não se importará com o que fizer quanto a este outro assunto.

Symes-Wilvert riu disfarçadamente. Morgan sorriu com complacência das idiotices do seu amigo fiel. Sebastian riu porque devia e deu uma olhadela ao relógio de bolso.

– Acho que exageramos – disse Audrianna.

– Exageramos? Claro que não. – O rosto suave e pálido e a touca nova debruada a renda da mãe encimavam o vestido de passeio avermelhado que apertava contra o corpo. Aquele, como a maior parte dos seus conjuntos, seria usado apenas em abril, momento em que deixaria as roupas de viúva, mas a expectativa da chegada daquele dia via-se nos seus olhos. – E por que não deveríamos exagerar? Mesmo que fizéssemos isso, o que não é o caso. Será preciso mais do que um guarda-roupa novo para nos compensar por tudo o que aconteceu.

– Muito mais – reforçou Sarah. Depois deu uma risadinha. – Pelo menos dois ou três, certamente.

A mãe conteve uma risada. Pousou o conjunto e pegou num vestido de cerimônia de seda cor de ameixa.

– O que acha deste, Daphne? Não conseguia me decidir quanto à bainha. Acha que escolho bem?

Daphne fez elogios ao vestido. Observava o desfile de uma cadeira. Havia sido convidada especificamente para inspecionar o saque.

A quantidade de benefícios espantou Audrianna, apesar de ter ajudado a comprar aquilo tudo. Toucas e chapéus, xales e bolsas, pendiam de cadeiras e cobriam uma mesa. Vestidos haviam sido desembrulhados e amontoavam-se no sofá, mas muitos mais ainda aguardavam a inspeção nos seus embrulhos de musselina.

– Gostaria que a Lizzie tivesse vindo com vocês – queixou-se Sarah, experimentando uma touca de noite adornada com penas de avestruz. – Ela tem um gosto tão refinado, e comecei a gostar muito dela.

– As dores de cabeça dela voltaram, ao avançar dos dias – explicou Daphne. – O médico diz que só lhe resta suportá-las e descansar, a não ser que queria tornar-se uma habituée do láudano. Tomarei sobre mim, porém, a incumbência de lhe fazer uma descrição pormenorizada de cada vestido, chapéu e conjunto.

– Mostre à Daphne o de cetim rosa, Audrianna – indicou a mãe. – Isto é que é uma penitência para Lord Sebastian.

Audrianna exibiu o seu novo vestido de noite rosa para Daphne admirar.

– Sabe, mãe, na verdade, sou eu quem cumprirá penitência por todo este luxo.

O rosto da mãe transformou-se numa máscara de ternura. Aproximou-se de Audrianna e deu-lhe um abraço e um beijo.

– É fato, minha querida. É tão corajoso da sua parte. Mas você também sempre foi a mais forte de nós. Se não fosse a posição social dele, eu nunca teria autorizado este casamento, mesmo depois do modo imperdoável com que lhe tratou. Mas ele é de uma das melhores famílias e as suas expectativas melhoram muito com ele, por mais desagradáveis que sejam os deveres conjugais.

O pequeno discurso fez Audrianna corar, mas não pelas razões que a mãe poderia pensar.

– Queria dizer que cumprirei penitência porque as contas de tudo isso chegarão assim que nos casarmos.

– Eu não me preocuparia – apaziguou Daphne. – Duvido que Lord Sebastian fique surpreendido ou considere a soma tão elevada quanto nós.

– Está vendo, a Daphne concorda que nós não exageramos – concluiu a mãe, ainda que Daphne não tivesse concordado com isso. – Ah! Já disse? Recebi uma carta do meu irmão Rupert. Ele está radiante com a notícia do casamento e viajará até a cidade para assistir. Parece, Audrianna, que plantou esse distanciamento; outra bênção juntou a tantas outras que o seu sacrifício nos proporcionou.

A expressão de Daphne não se alterou minimamente. No entanto, Audrianna sentiu um estremecimento à volta da cadeira dela pela menção do tio Rupert. Não representaria nenhuma alegria para Daphne vê-lo no casamento. Afinal, o tio Rupert deixara Daphne entregue a si mesma quando perdeu o pai, seu irmão e da mãe de Audrianna.

Audrianna pôs de lado o vestido de seda rosa.

– Já viu o suficiente? A mãe e a Sarah podem continuar a se divertir sozinhas se for o caso. Podemos ir dar uma volta pela praça se quiser.

Daphne achou a ideia agradável. Vestidas as toucas e peliças, começaram a fuga.

– Suportava muito melhor a companhia da mamãe antes de ter experimentado do que depois – confidenciou Audrianna enquanto desciam a rua. Envolveu o braço de Daphne no seu. – Tenho saudades de todas vocês.

Mal aceitara o noivado, a mãe insistira em que ela voltasse ao ninho. Deve sair da casa da sua família para o casamento. Os preparativos serão um inconveniente se estiver no campo.

Na verdade, estar ali não era assim tão conveniente. Precisava de quase tanto tempo para chegar a Mayfair da rua próxima de Russell Square quanto se viesse de Cumberworth. A mãe nunca gostou de viver tão longe dos bairros elegantes da parte ocidental, mas a casa que tinham alugado era cômoda para as funções do pai na Torre.

– Ela apenas a quer perto dela durante esses poucos últimos dias. Em breve deixará a gaiola – aplacou Daphne.

– Voo de uma gaiola para outra, contudo. Acho que olharei para os meses que passei no Flores Preciosas como sendo dos mais felizes e livres que vivi.

Daphne apertou sua mão.

– Estamos sempre lá para o que for preciso. E você nos visitará com frequência.

– Todas vêm me encontrar no sábado? Isso me trará coragem.

– Estarei lá, e a Celia também, acho eu.

– E Lizzie?

– Eu não contaria com isso. Aquelas dores de cabeça são caprichosas demais.

Chegaram em Bedford Square, com as suas arranjadas e modestas casas citadinas alinhadas em filas uniformes de cada lado. Ela e Roger costumavam passear ali antes de ele ir para a guerra. Depois de terem ficado noivos, ele falara em alugarem uma das casas depois do casamento. Ela passara horas, depois de ele partir, imaginando-se numa delas. As memórias que a praça incitava eram suficientes para ela evitar ir lá depois de desobrigar Roger.

Entraram no jardim e caminharam entre as árvores despidas, arbustos e heras.

– Importa-se muito que o tio Rupert e a tia Clara estejam no meu casamento? – perguntou Audrianna.

– Quem sou eu para me importar? As desconsiderações recentes com a sua família significam mais do que quaisquer antigas que tenha tido comigo.

Aquelas desconsiderações recentes não eram pequenas, e, realmente, Audrianna importava-se que aquela reaproximação acontecesse sem mais. Depois da morte do pai, o tio Rupert nada fizera para aliviar as circunstâncias difíceis da família.

– Receio que isso signifique que a mãe acredita que se justificava ele ter cortado relações conosco.

– Só significa que ela conhece os trâmites do mundo. Ela pode não considerar que a atitude do irmão se justificava, mas compreende o que o levou a tomá-la. E compreende a razão pela qual ele quer as ligações que traz para a família.

– Fico sossegada de saber que sou tão útil à família. – Audrianna não conseguiu evitar uma nota sarcástica no tom de voz.

– Eu ficaria sossegada de saber que esse casamento é, de alguma forma, do seu agrado, prima, mesmo que seja apenas pelos guarda-roupas e pelas relações de que a sua família gozará – declarou Daphne. – As circunstâncias eram tais que não poderia ter feito outra escolha, mas...

– Neste momento é do meu agrado, nem que fosse para pôr um fim a esse mês de espera. E para escapar da mamãe. Se é algo que vou fazer, melhor cedo do que tarde.

A mãe, na verdade, pouco tinha a ver com a sua inquietação, e era injusto culpá-la por isso. A verdadeira razão era ela não gostar das formalidades que sufocavam a ela e a Lord Sebastian. Agora, cada encontro deles acontecia num palco, no qual usavam roupas de etiqueta. Cada palavra era planejada e cada elogio previsível. O ambiente era muito diferente dos acontecimentos e conversas fáceis que tinham propiciado o seu comprometimento.

Em vez de aprender a conhecê-lo melhor naquele último mês, ficou conhecendo menos ainda. Ele não parava de regredir na familiaridade. Ela receava que se muito mais tempo passasse, ele se transformasse num completo estranho.

– Uma parte de que não gosto é de Lady Wittonbury – admitiu ela.

– Ela foi grosseira com você?

– A palavra “grosseiro” é aplicável a rainhas? Ela fez questão de me dizer que não sou apropriada para o filho dela com cada olhar e a cada fala. Me enviou uma pequena pilha de livros sobre etiqueta e comportamento na semana passada.

– Bem, isso foi grosseiro.

– Foi o que pensei. Vieram com uma nota pessoal dela. Explicava que aqueles livros eram escritos para aqueles que tentavam se aprimorar, por aqueles que já haviam conseguido, por isso continham erros que os mais bem-nascidos reconheceriam. Portanto, ela corrigira os erros.

– Ela completou os textos com anotações?

– Mas é claro. Todos têm pequenas notas nas margens, sempre na caligrafia dela. – Daphne ria e Audrianna teve de rir também. – A maioria dos comentários explicava que só as pessoas comuns considerariam este ou aquele conselho correto.

Daphne parou para admirar uns crocos que espreitavam entre a hera por baixo de uma árvore.

– A sua mãe lhe disse, Audrianna, com orientações mais úteis do que as que ofereceu a marquesa? Sabe a que me refiro.

– A minha mãe acredita que não há necessidade disso. Seria simpático se alguma pessoa que me conhece acreditasse que os rumores não são verdade.

– Não foi o seu caráter, mas o dele, que originou as dúvidas. Se tiver alguma pergunta, tentarei respondê-la, já que sua mãe não tomou ela mesma a iniciativa da conversa.

Ela tinha muitas perguntas, mas não sobre o assunto que Daphne agora abordava. Lord Sebastian já havia lhe mostrado que aquela parte seria tolerável o suficiente. Não era a vivência das noites que consumia sua mente, mas a do dia a dia.

Como esconderia a raiva que sentia por causa do pai?

Como impediria a marquesa de atormentá-la?

Como faria amigos no mundo novo em que entrava?

Qual era a etiqueta para quando o marido começasse a visitar uma amante? Aqueles livros não explicavam nada sobre aquilo. Talvez ela devesse perguntar à marquesa, um dia desses. Insinuações no último mês indicavam que Lady Wittonbury tinha ampla experiência na maneira dos bem-nascidos lidarem com tais desenvolvimentos.

Audrianna parou de caminhar e olhou para um arbusto despido. Os seus muitos e compridos ramos tinham ficado vermelhos e maleáveis. Exibiam galhos intumescidos por todo o comprimento, à espera de rebentar aos primeiros sinais de calor constante.

Era uma forsythia. A mais comum das flores. Era isso que ela era também. Banal, e nem um pouco preciosa. Se não fosse a progressão de uma série de inesperados caprichos do destino, Lord Sebastian nunca teria reparado nela, muito menos a teria pedido em casamento.

Era de esperar que rejubilasse com a sua boa sorte. Nem era tão nobre que não sentisse. Ela, a mãe e Sarah tinham exagerado nas lojas, e ela se deleitara com cada minuto daquela maratona de compras.

– Na verdade tenho uma pergunta – informou. – Não é sobre ele, nem sobre a vida que terei. É sobre mim.

Daphne inclinou a cabeça de curiosidade.

– O que é?

– É errado eu gostar do beijo de um homem que nunca amarei?

Daphne sorriu brandamente.

– Fico aliviada por ter perguntado. Nem sabe o quanto. Não, não é errado. As mulheres fingem que o amor é obrigatório para existir essa excitação, mas os homens admitem que não é. E essa excitação muitas vezes dá origem a algum afeto, o que torna a vida suportável. – Daphne deu um beijo na bochecha de Audrianna. – E também não é traição ao seu pai gostar do beijo, se é esse o significado da sua pergunta. Ele não quereria que vivesse com pavor da noite.

Daphne por vezes conseguia ser muito sábia. Compreendia o coração humano sem sequer tentar.

– Por que fica aliviada?

– Porque se não gostasse do beijo, seria um inferno para você. Fico grata pela indicação de que não será. Agora, tenho que voltar e me despedir da sua mãe. Tenho várias coisas para fazer na cidade, para conseguir aprontar uma surpresa para o seu casamento.


Capítulo 12


O dia do casamento de Audrianna não teve um início auspicioso. A madrugada revelou que haviam descido sobre Londres um chuvisco e um vento norte cortante. A mãe mandou acender as lareiras e não parava de se alvoroçar por causa da chuva e de como estragaria seus sapatos.

Audrianna tomou banho e se vestiu, sentando-se para a criada nova arrumar seu cabelo. Evitara perguntar à mãe como estava sendo paga aquela criada adicional. Sem dúvida que quando Lord Sebastian fizera a visita obrigatória depois do noivado, a mãe exprimira aflição com os preparativos para o dia do casamento quando as circunstâncias haviam reduzido a uma criada.

Ela ficou pronta muito antes de qualquer outra pessoa, e foi para o quarto de Sarah, apressá-la. Deparou com a mãe e a irmã discutindo que vestido Sarah devia levar. A questão tinha sido decidida há muito tempo, depois do caos financeiro nas lojas.

Audrianna se meteu entre as duas. Tirou o vestido violeta das mãos de Sarah, colocou-o na cama e pegou um vestido florido.

– Usa este, como combinamos quando o encomendou, ou não vai. A carruagem já está à espera lá fora, e eu não tenho o dia inteiro para ser vítima dos seus caprichos.

– O outro é muito melhor – continuou Sarah. – Pareço uma criança neste.

– Os cavalheiros vão reparar em você mais rapidamente se usar o florido – argumentou Audrianna.

Sarah parou de fazer beicinho tempo suficiente para ponderar aquilo.

– Parto na carruagem daqui a quinze minutos – anunciou Audrianna. – Tenho a esperança sincera de que se junte a mim. Mãe, você também devia terminar logo.

– Quinze minutos é, de longe, cedo demais. Chegaremos à igreja antes de qualquer outra pessoa e faremos papel de ridículas – refutou a mãe.

– Não vamos já para a igreja. Quero visitar a lápide do pai primeiro.

O suspiro da mãe encheu o quarto.

– Audrianna, com a chuva... sério, não é recomendado...

– Dificilmente poderei ir depois da igreja. Posso não ter a possibilidade para ir durante muito tempo. Vestirei a capa comprida e mudarei depois para os sapatos de seda. Pode ficar sentada na carruagem se quiser, mas eu quero visitar a sepultura dele para que saiba que eu não o esqueci.

Sebastian aproximou-se de St. Georges com Hawkeswell ao seu lado. Passaram convidados por eles, oferecendo a Sebastian as suas felicitações.

– O destino escolheu concedê-lo o dia mais agreste em semanas – disse Hawkeswell. – Eu não tenho qualquer superstição, porém.

Sebastian também não era supersticioso. Não atribuía à natureza nenhuma atenção para com os afãs humanos, quanto mais escolher o tempo destinado a um homem, mais isso afetava milhares. Mas estudava coincidências irônicas. Por isso, quando ele e Hawkeswell pararam à entrada da igreja, reparou que a última vez que o tempo estivera tão mau havia sido no dia em que conhecera Miss Kelmsleigh.

Todos os pensamentos sobre chuva e vento desapareceram quando viu o interior da igreja. Alguém o transformara num jardim.

Viu pérgulas de madeira em arco cobertas de hera regularmente espaçadas ao longo do largo corredor central. Do ponto em que ele se encontrava, a perspectiva dava a impressão de existir uma abóbada de folhagem por todo o comprimento.

Um conjunto de vasos com tulipas coloridas ladeava a entrada. Outra concentração de flores primaveris derramava-se sobre o altar. Ramalhetes de narcisos e jacintos decoravam as pontas de cada banco. O efeito completo era o de um quadro opulento e radioso que emitia a luz de centenas de flores.

– Impressionante – declarou Hawkeswell. – Seu casamento pode ser pequeno e discreto, Summerhays, mas tão cedo não será esquecido. A sua mãe dará início a uma nova moda.

A mãe dele não tinha nada a ver com aquilo. Aquela exuberância não era o estilo dela e ela provavelmente não aprovava os apontamentos teatrais, especialmente durante a Quaresma.

Mrs. Joyes decorara a igreja, e povoara-a com as flores da sua estufa. A alta sociedade ficaria impressionada, sem dúvidas, o que lhe traria negócio, mas ele não pensava que esse fosse o objetivo dela. Audrianna não conseguia identificar a maioria das pessoas presentes no casamento, mas reconheceria cada vaso e cada flor.

Algum alvoroço atrás deles fez Hawkeswell virar-se para trás.

– Devíamos descer. A carruagem da sua noiva está aqui.

Sebastian virou-se e viu a porta da carruagem se abrir. Mrs. Kelmsleigh e a filha mais nova saíram. Sarah deu um gritinho quando o vento tentou roubar seu chapéu. Um tornozelo elegante e uma bainha branca espreitaram almejando o degrau superior. Mrs. Kelmsleigh gritou e apontou para o que parecia ser uma mancha de erva no tecido alvo.

– É uma carruagem muito boa – comentou Hawkeswell. – Parece nova. As senhoras também vestem a última moda. Não foi poupada nenhuma despesa.

– Nenhuma mesmo, e, infelizmente, falo com conhecimento de causa. – As contas tinham começado a chegar. Mrs. Kelmsleigh não hesitara em endividá-lo.

– Tomara que eu tivesse uma irmã, para poder desfrutar da sua generosidade. Que diabo, tenho pena de não haver uma forma de se casar comigo!

Viraram-se de costas antes de Audrianna estar completamente fora da carruagem e desceram o corredor principal. O padrinho de Sebastian já o aguardava.

– Queixo erguido, Summerhays – sussurrou Hawkeswell. – Não é nem de perto tão doloroso como nós pensamos que será. É mais como a guilhotina do que a forca, diria eu.

Audrianna chorou ao ver as flores. Alegraram o dia e expulsaram o frio. Acenavam para ela enquanto todos os estranhos não paravam de olhar para ela.

O nervosismo crescente dos últimos dias, a melancolia de visitar a lápide do pai, a irritação com a mãe e Sarah, tudo desapareceu assim que ela chegou à porta da igreja e se deparou com o jardim que o Flores Preciosas tinha preparado para ela.

Seus olhos procuraram Daphne. Estava sentada num dos cantos, envergando um vestido lilás clarinho que realçava inacreditavelmente a sua beleza pálida. Teria ofuscado completamente Sarah se ela não tivesse vindo com o vestido florido. Daphne estava sozinha. Chegara um recado no dia anterior dizendo que as dores de cabeça de Lizzie tinham voltado e que Celia também ficaria em casa, para cuidas dela.

Lizzie fizera, entretanto, uma corajosa visita à casa da mãe de Audrianna dois dias antes. Audrianna suspeitava de que, vendo-se livre da dor por um dia, Lizzie na verdade fora à cidade para ajudar Daphne a organizar aquele espetáculo.

Um homem imponente de cabelo grisalho se aproximou para lhe dar o braço. O tio Rupert. A mãe insistira em que fosse permitido fazer aquilo, apesar das suas crueldades passadas. Audrianna aquiescera, mas na sua mente era o pai que a escoltava e aceitava os votos, com o seu bom nome restituído e a sua presença reconfortante ao lado dela.

Lord Sebastian a esperava. Tinha uma aparência esplêndida. Ninguém diria que não era o melhor partido. Seu terno azul-escuro fazia a gravata sobressair por contraste e os olhos dele brilhavam, belos, à luz das muitas velas.

Acompanhou a aproximação dela com um sorriso. Um sorriso meigo. Reconfortante, mas ainda assim um sorriso desenhado para deixar uma mulher tonta. A sua cabeça rodava, como sempre. Os rostos se amontoaram e recuaram. Até as flores se transformaram numa aguarela de tonalidades. Disse os votos como uma mulher dopada.

Audrianna entrou no seu novo quarto. O casamento havia terminado. Tinham ido visitar o marquês antes de se dirigirem ao banquete nupcial, ao qual ele não pôde comparecer. Agora todos os convidados tinham ido embora e todos os rituais haviam sido cumpridos. Exceto um.

Os cômodos haviam ficado encantadores. A marquesa redecorara-os ela mesma. Uma tela novinha em folha pendia sobre a cama e as janelas. Um azul profundo cobria as almofadas de duas cadeiras. Uma escrivaninha com chinoiserie estava encostada perto de uma janela. Abriu-a e deparou com todos os instrumentos necessários à escrita de cartas.

Uma porta numa parede dava-lhe acesso ao quarto. Os seus pertences pessoais tinham sido transportados no dia anterior. Um pequeno exército de criados e criadas invadira a casa da mãe para arrumar aqueles vestidos todos em baús. Agora habitavam os guarda-vestidos que revestiam as paredes daquele compartimento, cujo tamanho excedia o do seu velho quarto.

Uma criada pessoal chamada Nellie também o habitava. Ela havia sido o marechal do exército do dia anterior, e a noiva recente era o seu novo dever. Ruiva e corpulenta, sarapintada de sardas, surgiu com uma mesura do canto onde passava a ferro quando Audrianna entrou.

– Lady Wittonbury me disse para servi-la hoje, senhora. Fui avisada que ainda pode querer escolher a sua própria criada, claro, mas até lá espero conseguir lhe agradar. Foi-me dito que a marquesa me escolheu porque achou que a senhora ia se sentir mais confortável comigo do que com uma criada francesa, e juro que não tenho uma única gota de sangue francês nas veias.

Nellie parecia pensar que se tratava de uma exigência política. O mais provável era Lady Wittonbury ter concluído que a simplicidade de Nellie se ajustava à sua vivência. Quanto às outras condições que Lady Wittonbury especificara para a contratação do serviço, Audrianna só podia imaginar. Tinha de admitir que a marquesa estava certa numa coisa, contudo. Ela ficaria mais confortável com uma criada que não se desse muitos ares.

Nellie foi a um armário e pegou um roupão.

– Estive a serviço de uma senhora mais para o norte, minha senhora. A moda de Londres ainda é novidade para mim, mas os meus penteados não desmerecem, e sei usar uma agulha como ninguém. Quer tirar agora o vestido de casamento?

– Sim, provavelmente será melhor. E pentear o cabelo também.

Nellie deu início à tarefa de desapertar o vestido.

– Devo prepará-la para o leito, minha senhora?

Summerhays não havia dito uma palavra sobre aquilo quando subira com ela para os aposentos. Todavia, ela estava muito certa de que aquele último ritual não esperaria pela noite. Sentia-se no ar e na presença dele a intenção que tinha, e isso fazia o coração dela bater mais forte a cada passo que dava a seu lado. A pequena comoção dentro do seu corpo era em parte medo, mas também outra coisa.

– Vai querer usar esta camisola que veio? – Nellie foi a uma mesa e pegou uma de várias caixas que se empilhavam em cima dela. Levou-a.

Lá dentro tinha uma camisola muito bonita. Um cartão indicava que provinha do Flores Preciosas. Audrianna pegou o tecido diáfano, leve. Era muito mais elegante do que as que a mãe a fizera encomendar. Mais madura também.

– Acho que vou usar isso. Traga-me as outras caixas, também.

O criado de Sebastian enfiou a cabeça no quarto. Nada se disse, mas era sinal de que a criada saíra do quarto de Audrianna.

Ele podia esperar, claro. Pela noite, ou mesmo durante várias noites. Mas não queria. Nem ela esperava ele. Ela soubera, quando ele a beijara à porta do seu quarto, que iria até ela.

Vestido com um roupão de seda azul-escura, abriu a porta que dava acesso ao quarto dela. A entrada fora aberta assim que ficara determinado que Audrianna utilizaria aquele quarto, a norte do apartamento dele.

Os cortinados das janelas do quarto tinham sido corridos, mergulhando-o em modestas sombras. Um, porém, não tinha sido completamente fechado. Um raio de luz poeirenta rasgava o escuro, terminando na cama. Ele viu o que o raio iluminava e sentiu imediatamente uma forte excitação.

A luz banhava uma linda mulher com uma diáfana camisola transparente, reclinada numa cama semeada de flores.

Pequeninos botões saíam do cabelo e salpicavam seu corpo. Alguma renda discretamente colocada quase tornava o corpete recatado. Mas não muito.

Ele previra nervosismo e constrangimento da parte dela. Até ponderara no que fazer se ela chorasse. Não esperara aquilo.

Foi aos cortinados e afastou-os um pouco mais, para conseguir ver mais claramente a sua flora. As pernas dela, as coxas, até a íntima elevação, revelaram-se como formas diáfanas por baixo da gaze ondulante. Ele reprimiu o ímpeto de dar duas passadas até lá, arrancar a camisa provocante e possui-la imediatamente.

– Está muito bonita, Audrianna.

– Tinha medo de que pudesse achar uma idiotice. Foi o que pareceu quando entrou.

– Não acho idiotice nenhuma. Fiquei surpreendido, mas da melhor forma.

– A camisola foi um presente. E as flores. As minhas amigas as mandaram, para estarem à minha espera quando eu subisse.

– Está parecendo uma ninfa primaveril. Gostaria de deixar a luz a banhando, mas fecharei os cortinados se preferir.

Audrianna olhou para o seu corpo deitado e para o roupão dele. Sebastian viu o momento em que ela concluiu que ele não seria o único a ver à luz do dia e que ele veria porventura mais do que flores e tecido.

Ele se virou para fechar os cortinados.

– Seria infantil da minha parte me mostrar nesta roupa e depois me esconder no escuro onde nem sequer poderia ser visto.

– Eu compreenderia, mas fico satisfeito por ser um pouco mais corajosa do que isso. – Aproximou-se da cama e desabotoou o roupão. Os olhos dela se fecharam com firmeza. Virou o rosto para o lado.

Menos corajosa, afinal. Pousou o roupão e enfiou-se debaixo do lençol.

A camisola mostrou-se mais reveladora de perto. Elegantemente erótica. Os seus mamilos escuros pressionavam o tecido, já contraídos e duros. Não era a camisa de núpcias de uma moça inocente, mas ela também já não era nenhuma moça.

Ele a beijou onde a camisa se encontrava com o ombro.

– Mrs. Joyes tem um gosto excelente.

– Acho que talvez tenha sido a Celia que escolheu a camisa. O cartão não dizia, mas... é o que parece. Não foi a Lizzie, isso é certo.

Aquela conversa parecia acalmá-la. Apesar do seu convidativo e teatral acolhimento, era evidente que estava nervosa.

– Porque não a Lizzie? – Ele usou beijos e palavras para acalmá-la e envolvê-la. E para se controlar a si mesmo. – Por que tem estado doente?

A respiração dela deteve-se quando ele beijou seu seio. Mas ela também se mexeu um pouco. Em direção a ele. Não ficou claro se percebera sequer de ter feito aquilo. Uma flor pousada no seu peito caiu em cima do lençol.

– Não, apesar de a sua doença significar que não teria tempo para encomendar uma peça de roupa como esta. Tenho certeza de que não foi a Lizzie porque ela memorizou o tipo de livros que a sua mãe me enviou, e esta camisa é um pouquinho escandalosa.

– Então sabia que era, e mesmo assim a vestiu.

Ela o fitou.

– E isso é chocante?

– Sim, mas é um bom sinal. – Ele reivindicou a boca dela com um beijo e libertou algum do desejo que o queimava por dentro. Ela reagiu com hesitação, no início, mas os sons e os suspiros e os movimentos da sua excitação logo baixaram suas defesas. Ele desapertou os pequeninos botões convenientemente colocados na frente do corpete dela.

Mal respirando, ela desceu o olhar para a mão dele. Pequenas contrações tornavam seu corpo tenso, apresentando uma prova sutil de que aquilo a excitava.

– Não? – perguntou ele quando os dedos chegaram ao último botão. Queria ouvi-la reconhecer o quanto o queria.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas olhava para o lugar onde a mão dele estava pousada.

– Sim – disse finalmente.

Ele afastou o vestido, revelando os seios. Eram encantadores, altos e firmes, com bicos eróticos. Ele passou a língua por um deles e o arquejo de prazer dela quase o deixou fora de si.

Ele estimulou os seios com a boca e as mãos até ela se deixar levar pelo abandono. Perdida na sua própria sensualidade, ela não teve grande reação quando ele tirou o vestido e a deixou nua. Sebastian se colocou em cima dela e tentou combater o desejo ardente que a suavidade e o calor dela incitavam até o ponto de se tornar doloroso.

Refreou os seus impulsos mais básicos e sufocou as suas ânsias mais prementes. Resistindo às profundezas negras do mar de prazer, dedicou-se a enlouquecê-la ainda mais, para ela considerar o resto suficientemente tolerável.

Pele contra pele. Choques de vulnerabilidade e de intimidade, um depois do outro. Mãos conhecedoras e orientação confiante e poder dominador. Perfume por todo o lado, de corpos e de flores esmagadas.

O assombro nunca cessou mas a resistência do corpo dela acalmou. O prazer falava mais alto do que qualquer cuidado. Um prazer tão doce e tormentoso que o achou insuportável, mas que também queria que nunca acabasse.

Ele a impressionou mais do que alguma vez impressionara, de formas que ela não conseguia combater. Tentou perceber o que era sentir aqueles ombros e aquelas costas firmes nas suas mãos quando o abraçou instintivamente. Ele era para ela novo e estranho, antigo e familiar, ao mesmo tempo, em corpo e espírito e em todo o resto.

Ele mudou de posição e se ergueu estendendo um braço, e o abraço dela se desfez. Pegou na perna direita dela e a dobrou. Olhou para o corpo dela, com o cabelo caído sobre a testa e os olhos duros na sua intensidade. Ela também olhou e perguntou-se se ele via o que ela achava que ele via.

O toque do jardim, tão apetecido e necessário. Ela esperara, desejara aquele toque. Continuava a deixá-la sem fôlego. Ela fechou os olhos para não vê-lo observando-a no seu delírio. Ele fez coisas perversas. Tão perversas que ela gritou e mordeu o lábio para não voltar a gritar. Só que voltou. Ele fazia cada vez pior e rapidamente todo e qualquer pensamento foi substituído por uma vontade incontrolável de gritar cada vez mais. Depois nada existia a não ser aquele prazer que a fazia desesperar por algo que ela não conseguia nomear.

Ele voltou a se mexer, subindo pelo corpo até ficar com o peito por cima dela e o seu quadril afastar suas coxas. Encostou-se com força e a sensação arrancou-a do seu transe.

Ela olhou para o rosto dele, sério e duro. Os seus olhos escuros espelhavam a paixão que sentia, e os seus dentes cerrados mostravam o esforço de contenção que fazia.

Tentou não machucá-la, ela tinha certeza. Ainda assim, machucou. Ela fechou os olhos para ele não ver o quanto. Depois, ficaram unidos e a dor acalmou, mas a realidade daquilo, dele e dela e do que estava acontecendo, era avassaladora.

Reminiscências do prazer se agitaram quando ele se moveu dentro dela. O físico dele voltou a impressionar as palmas das suas mãos e os seus dedos. Os momentos fizeram-se longos, e muito reais.

As investidas cuidadosas de Sebastian incitaram novamente o prazer, portanto não foi desagradável. Não voltou a desenvolver nenhum torpor nem nenhuma distância, porém. Agora o prazer não obscurecia a verdade. Em vez disso, uma intimidade inesperada a subjugou, deslumbrou durante a sua vulnerável submissão.

Ele não a deixou depois de terminar. Ela pensou que o faria, para poupar a ambos da realidade intransigente que não deixava de se impor.

Agora não havia o desconhecido. Não havia excitação a obscurecer o que era. Ela estava deitada ao lado de um homem nu que mal conhecia.

Ela era incapaz de ignorar o quão indefesa ele a fazia se sentir. Impotente, mesmo. O fato de a ter possuído colocara-a em desvantagem, e no início de um longo jogo que ela não compreendia totalmente que aceitara jogar.

Fechou os olhos para ter alguma privacidade. Fora completamente desprovida dela naquela cama, tão certo como ele ter tirado aquela camisola. Isso a desanimava mais do que qualquer outra coisa. Muito mais do que qualquer dor. A sua autonomia tinha sido fraturada sem ela dar sequer o seu acordo.

– Parece muito pensativa. – A voz dele, tão próxima, forçou a intimidade a ressurgir.

– Estou fazendo uns cálculos de cabeça. Somas e subtrações.

Ela sentiu-o rindo na sua bochecha apesar de não fazer som algum.

– Calcula o quê?

Ela abriu os olhos, para os seus ombros e peito nus. Não importara enquanto estivera submersa no prazer, mas agora a escandalizava.

– Estou calculando as vezes que se pode fazer isto em dez horas e se quererá voltar a fazer em breve.

Os olhos dele eram doces, como se soubesse como ela se sentia estranha. E confusa, e exposta.

– Não tão breve. Dentro de alguns dias.

Ele se sentou. Ela sabia que ele partiria. Ele não o fez imediatamente. Deu tempo para ela fechar os olhos. Um dia talvez não o fizesse.

Ela o ouvia se deslocar no quarto.

– Chama a criada. Ela prepara um banho para você. Hoje jantamos com o meu irmão nos seus aposentos. Prometi já que ele não podia ir ao banquete nupcial.

Ela sentiu-o mesmo ao seu lado, depois um beijo leve no rosto.

– Lamento tê-la machucado. Tentei não machucar. Não voltará a acontecer.

Tocou-a que ele tivesse tentado. Imaginava que pudesse ter sido infernal se não o tivesse feito.

Ela abriu os olhos e viu o roupão escuro perto da porta que dava para os aposentos dele. Ele não precisava de absolvição da parte dela. Não a pedira, mas só falara para tranquilizá-la. No entanto, uma nova compreensão dele se apoderara dela quando estava despida de qualquer proteção, e falava agora ao seu instinto.

– Não me machucou muito.

Ele parou e olhou para ela através das sombras.

– Sinto-me mais chocada do que machucada, e mais confusa do que chocada. Foi como prometeu. Mais do que suficientemente tolerável.


Capítulo 13


Ele só foi se encontrar com ela no fim de duas noites. Depois, todas as noites. Audrianna calculou que aquelas horas, além do tempo que passavam na companhia um do outro mas sem ser na cama, totalizaram, de fato, cerca de dez horas na primeira semana.

No final da semana, ela já se habituara à presença de um homem nu na sua cama. Ele não ficava por lá muito tempo, mas também não saía imediatamente. Ela presumira que aquilo se tratava de uma coisa que se fazia no escuro e no silêncio, um dever desempenhado furtivamente. Talvez Lord Sebastian adotasse uma visão mais liberal por causa daquelas experiências todas de libertino.

Havia alusões ao seu passado em todos os eventos sociais a que iam. Ninguém chegava a falar realmente, mas ela percebia um espanto divertido por ele ter sequer casado, e, ainda por cima, ter feito um casamento tão mau. As argutas farpas de algumas senhoras insinuavam que ela praticamente lhe montara uma armadilha. Tornou-se claro que Lady Wittonbury era daquela opinião.

Em geral, conseguia evitar Lady Wittonbury. Como Sebastian havia dito, era uma casa muito grande. A biblioteca e a sala da música tornavam-se os seus refúgios quando saía dos seus aposentos.

E o jardim, claro. Era tão grande que podia desaparecer lá dentro, e se sentisse necessidade de ambientes diferentes, pegava a Nellie e ia passear no parque ou em Oxford Street.

Contudo, era habitual ter de suportar a presença de Lady Wittonbury no café da manhã. Eles abriam o correio e Lady Wittonbury aconselhava sobre os convites a aceitar. Alguns dos eventos só aconteceriam daí a semanas, ou meses até, quando a temporada estivesse em plena força. Lady Wittonbury explicou várias vezes que aquela temporada seria bastante calma, comparada com as outras, devido ao luto da corte pela princesa Charlotte, que ainda se prolongaria.

Depois do correio, Audrianna lia os jornais que tinham sido preparados pelos criados, começando pelos anúncios e notícias do Times. Adotara o hábito de Lizzie, mas com um propósito. Dominó usara duas vezes aquele tipo de comunicação e ela esperava que voltasse a fazê-lo.

Sebastian nunca estava nas refeições matinais. Ao seu oitavo dia de casada, Lady Wittonbury explicou que os dois irmãos tomavam a primeira refeição do dia nos aposentos do marquês.

– Wittonbury tem necessidade de instruí-lo, claro. No governo, ele se limita a exercer o poder do meu filho mais velho, não o dele.

Audrianna teve dificuldade em imaginar Lord Sebastian acatando instruções de alguém, ou exercendo poder em segunda mão. Preparava-se para defender o marido, quando a marquesa mudou de assunto.

– Temos de fazer alguma coisa quanto ao seu guarda-roupa, querida. Fiz silêncio sobre o assunto tanto tempo quanto foi suportável. Levo-a à minha costureira hoje de tarde.

– O meu guarda-roupa é novo. Seria um desperdício substituí-lo tão cedo.

– Pode dar. Não será desperdiçado.

– Perdoe-me, minha senhora. Foi uma tentativa de dissimulação desajeitada. A verdade é que não quero substituí-lo. Não há necessidade disso, e eu gosto dele tal como é. Agradeço, porém, a preocupação que me dedica. – Ela gostava especialmente do vestido de musselina indiana florido e do casaquinho de tafetá claro que vestia naquele dia, e ficou ressentida por a crítica parecer ter sido provocada por aquelas roupas específicas.

Nenhuma outra mulher recuaria. Lady Wittonbury não sentia necessidade de fazer aquilo.

– A preocupação é comigo, e com o meu filho, tanto quanto com a menina. Alguns dos seus vestidos não são a melhor escolha em termos de cor ou estilo.

O seu tom de voz continuava a transmitir cuidado mesmo as palavras sendo mais incisivas. O seu rosto mostrava o sorriso de condescendência aplicável a uma criança recalcitrante que seria forçada a obedecer se a lógica não resultasse.

– Todos os vestidos foram trazidos de estilistas consagradas, minha senhora. Os estilos são das últimas estampas e veem-se em outras senhoras da sociedade. Eu não acabo de chegar do campo em cima de uma carroça, e não há nada de antiquado no meu guarda-roupa. Alguns vestidos podem não ser do seu gosto, mas isso é outro assunto.

– Eu era mais nova do que você e já elogiavam o meu bom gosto. Pergunte a qualquer pessoa. Procurei ajudá-la com o meu conselho, mas já vi que foi um erro.

– Mais nova do que eu, a senhora já era marquesa. Pessoa nenhuma criticaria o seu bom gosto, independentemente do que pensasse.

A implicação de os elogios poderem ter sido mera bajulação espantou Lady Wittonbury.

– É uma moça insolente e ingrata, estou vendo.

– Devo discordar novamente, minha senhora. Não sou ingrata, e com certeza não sou uma moça. Tenho idade suficiente para escolher o meu próprio guarda-roupa, por exemplo.

O olhar indignado de Lady Wittonbury podia congelar um oceano. A matrona pôs-se de pé energicamente e seguiu para fora da sala.

Audrianna se censurou, mas o seu coração recusava-se a aceitar qualquer culpa. Ela não insultara Lady Wittonbury. Fora o oposto.

Suspeitava, porém, que no andar de cima estaria sendo contada uma história que daria a impressão de que ela era a culpada. Audrianna preparou-se para uma solicitação de Sebastian para a sua presença assim que o café da manhã dele estivesse terminado.

Chegou rapidamente. O seu estômago revirou-se de expectativa. Encontrou-o no quarto dele, arrumando papéis. Ele se vestira para andar a cavalo e parecia absorto. Ainda mexendo nas folhas, verificando o que continham, mal olhava para ela.

– Disseram-me que teve uma discussão com a minha mãe.

– Tivemos um desentendimento, não foi uma discussão. Eu não fui desrespeitosa.

– Mas disse não às vontades dela, disse ela. Recusou suas ordens.

– Sim.

Ele procurou um pouco mais, depois pousou a pilha de papéis e deu-lhe atenção. Esticou um braço e puxou-a para si.

– Este é um dos vestidos?

Então ele proporcionou uma descrição completa do episódio. Ela submeteu-se à inspeção dele. Se ele lhe dissesse para dar o seu conjunto preferido, para se submeter aos caprichos de moda da mãe dele, talvez houvesse realmente uma discussão naquela casa.

– Não sou perito, mas este vestido e os seus outros me parecem muito bons – disse ele. – Ela vai tentar dizer o que fazer. É a maneira dela. Pode ajudar em algumas coisas, se quiser a ajuda dela. Usa o seu próprio discernimento. Mostra o respeito que ela merece, mas eu sou a única pessoa desta casa que pode exigir obediência de você.

Ele surpreendeu-a tanto que ela o abraçou impulsivamente.

Esticou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Os braços dele envolveram-na. Ele olhou para baixo, meio divertido e muito sério. Depois a largou e pegou os papéis.

– Poderei ter de dizer à minha mãe para discutir contigo mais vezes.

– Espero que não! Por que faria isso?

– Se quero o desenlace, pode ser necessário o primeiro ato.

Ela riu.

– Foi só um beijo. Tem sempre que quiser.

Com um sorrisito estranho, ele voltou a dar atenção aos papéis.

– Sim, imagino que tenha. Sempre que quero.

Mal Sebastian saiu da casa, o marquês mandou chamá-la. Audrianna encontrou-se com ele na biblioteca dele, na habitual cadeira funda onde sempre o via. Ele pousou um livro quando ela chegou.

– Disseram-me que houve uma discussão – principiou ele. Lady Wittonbury teria feito um relato muito dramático, se ambos os irmãos se sentiram obrigados a falar com ela.

– Foi apenas um desentendimento, juro.

– O meu irmão devia levá-la para a sua própria casa. Ele não o fará se for por minha sugestão. Contudo, se a Audrianna lhe disser que é infeliz aqui, ele reconsiderará.

– Se diz que ele não o fará, então não mudará de ideia, muito menos por um pedido meu.

– Eu falarei claramente com ele em seu nome.

– Por favor, não faça isso. Não quero que a minha presença seja fonte de discórdia, muito menos entre vocês dois.

Ele suspirou profundamente e baixou os olhos para a manta que tinha no colo. Então, a cabeça dele levantou-se repentinamente, como se não gostasse da direção que os seus pensamentos haviam tomado.

– Ele só está aqui, na verdade, por minha causa. Mas agora tem outras responsabilidades. Diga-lhe que prefere ter a sua própria casa se for preferível.

Ela sentou-se na cadeira que estava mesmo ao lado dele. A que a marquesa normalmente usava.

– E quanto às suas preferências? Elas também importam.

O rosto dele transformou-se numa máscara impassível.

– Aprendi a aceitar muitas coisas. A primeira é que quase tudo o que eu preferia já não é possível.

Aquele reconhecimento calmo e franco a tocou.

– Tem que aceitar? Não tem escolha?

Surgiu uma centelha de raiva em seu olhar.

– Devo me rebelar contra o meu cruel destino? Ficar para sempre revoltado pela minha invalidez e inutilidade? Nessa direção está a loucura, querida irmã.

– Mas você não é inútil. Isso é a melancolia falando. O seu irmão depende do seu conselho para as funções dele e da sua orientação na política e na finança.

– Ela lhe disse isso? – Ele a olhou de frente. Estava mais parecido com o irmão do que nunca e os seus olhos mostravam mais inteligência e profundidade do que ela alguma vez vira.

– Sim. O seu irmão também.

– Bem, aqui está a verdade. Ele não precisa de conselho meu. É mais inteligente e astuto do que eu. Ele encanta enquanto eu abro caminho, e consegue percorrer a beira do mais alto penhasco na sociedade sem pestanejar ou cair. Não acredito na eterna mentira da minha mãe sobre a dependência dele face a mim, nem a própria pretensão dele a esse respeito. Ficaria grato se não se esforçasse também por acreditar nela. Seria simpático não ter de fingir com alguém.

A sua completa honestidade surpreendeu-a e sensibilizou-a. A falta de presunção dele desarmou todas as formalidades. Ela ficou com uma sensação muito parecida àquela com que ficava quando uma amiga lhe fazia uma confidência.

– É certamente um homem admirável – concordou ela. – No entanto, não é assim tão infalível quando percorre esses penhascos. Afinal, teve de casar comigo.

Ele sorriu para assinalar a nota de humor dela. – Talvez tenha sido obra da mão invisível da justiça. Fosse como fosse, não me parece que ele o lamente.

A aprovação dele fez muito para aplacar o ataque que a mãe lançara ao orgulho dela. Pelo menos uma pessoa da família não pensava que Sebastian fora apanhado por alguém desadequado. Ela gostou ainda mais daquele homem despretensioso pela referência que fizera à justiça. Parecia acreditar que a família dela tinha sido injustiçada.

– Mesmo se for como diz e ele não precisar do seu conselho, não lhe pedirei para ir embora daqui. Não posso fazer isso.

O alívio dele notou-se mais do que ele soube. Isso comoveu-a. Provavelmente detestaria perder a companhia do irmão, e as consultas também, mesmo se fossem um fingimento. Ele oferecera-se para fazer um sacrifício nobre, mas ela via que estava contente por não o ter aceitado.

Ele inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. – Ele disse que você vai sair-se bem com a nossa mãe. Disse que eu não devo preocupar-me com as suas probabilidades nesse jogo. Acho que talvez tenha razão.

Então Sebastian considerava-a uma adversária à altura da mãe, se necessário. Podia-se dizer até que ele tinha falado bem dela, o que lhe levantou mais a moral do que esperava.

Audrianna viu um tabuleiro de xadrez numa mesa afastada. – Gostaria de descansar, ou prefere ter um bocadinho mais de companhia? Não me importava de me esconder aqui, até Lady Wittonbury estar completamente ocupada com os afazeres do dia. Podíamos jogar uma partida.

– Fico satisfeito por ter a sua companhia. E pode esconder-se aqui sempre que precisar.

– Posso transformar-me numa covarde, se me for dada carta-branca para me esconder, portanto só farei uso da sua oferta quando for absolutamente necessário. Contudo, se houver mais alguma discussão, talvez me permita contar-lhe se sentir que tenho de desabafar com alguém. Não quero ser o tipo de mulher que está sempre a queixar-se ao marido, e há alturas em que falar de uma mágoa basta para a fazer desaparecer.

– Estou sempre aqui se precisar de um ouvido solidário. – Morgan chamou o Dr. Fenwood, para que lhes levassem o tabuleiro de xadrez para a beira das cadeiras.

* * *

Sebastian atravessou o portão da Torre. A reunião que estava prestes a ter fizera-se esperar.

Quando por fim se tornaram públicas as notícias sobre o massacre, o Gabinete do Material de Guerra fizera o que qualquer entidade governamental faria quando atacada. Virara-se para dentro para se proteger e negara qualquer responsabilidade.

A integridade da pólvora era vital para qualquer esforço de guerra, e o Gabinete orgulhava-se do protocolo que tinha para garantir que a pólvora militar era fabricada corretamente e dispunha do poder de fogo necessário. Segundo eles, estavam definidos procedimentos e verificações para assegurar que não poderia ocorrer nenhum incidente como aquele. Uma vez que não podia acontecer, não acontecera.

Os diálogos de Sebastian com os funcionários do Gabinete nunca haviam resultado em nada a não ser frustração. Assumiam a posição de que até haver provas de a pólvora testada por eles ter sido a causa do problema, não tinham nada a dizer. Ignoravam relatórios recolhidos junto de sobreviventes de como os canhões britânicos não conseguiam devolver o fogo e ignoravam opiniões de artilheiros e suspeitas do próprio exército de que só material em más condições podia explicar aquilo.

Não havendo provas físicas, permaneceram intocáveis. Visto que a pólvora em questão não se encontrava disponível para exame, mas sim espalhada numa colina espanhola, estavam seguros.

Por outro lado, não haviam feito nada para proteger Kelmsleigh quando as atenções recaíram sobre ele, por ter sido sua a aprovação final da qualidade da pólvora antes da distribuição. A falta de defesa da parte deles veio apenas convidar mais atenção sobre aquela provável fonte de negligência. Os superiores de Kelmsleigh haviam-no deixado só e exposto quando as setas foram apontadas apenas a ele.

Sebastian já se convencera há muito de que não descobriria nada no Gabinete e não tinha sido ele a organizar a reunião. A solicitação de uma conversa partira antes de Mr. Singleton, o paioleiro, que fora o superior máximo de Kelmsleigh.

Foi conduzido para uma divisão da antiga estrutura medieval, que não mostrava sinais de uso regular. A mesa estava vazia e não se viam registros nenhuns. O soldado que o escoltara deixou-o lá, fechando a pesada porta atrás dele. Sebastian imaginou os prisioneiros ao longo dos séculos a ouvir aquele som à época do seu encarceramento.

Olhou pela janela pequena. Via o pátio no qual, em épocas idas, machados haviam separado cabeças dos seus corpos. A Torre cumprira muitas funções ao longo do tempo, mas era aquela que lhe dava maior fama.

Viu as horas no relógio de bolso. Não se teria libertado de Audrianna tão rapidamente se soubesse que haveria aquele atraso. Vieram-lhe imagens da manhã, do ressentimento e lágrimas da mãe e da expressão da mulher quando entrou nos aposentos dele.

Com um olhar, viu que ela estava um pouco receosa. Preocupava-a, muito provavelmente, que ele pudesse colocá-la sob o domínio da mãe. Podia ter tido o receio de que ele a repreendesse, ou mesmo punisse fisicamente.

Oh, sim, a última possibilidade existira naquele olhar e aquilo perturbou-o. Mesmo com toda a paixão, com toda a proximidade sensual da última semana, ela não o conhecia nada bem.

Nem tinha muita noção do que se passara, ou não, entre eles. Aquele beijo alegre de hoje fora o primeiro que ela lhe oferecera, dado por seu próprio impulso. Ela não se apercebera disso.

Ele sim.

Ele não podia queixar-se da disponibilidade nem do comportamento de Audrianna na cama. Ela não protestava nem negava.

Não obrigava a pudores. Era apaixonada e agradável, e muito provavelmente continuaria a sê-lo quando, com o tempo, houvesse novas iniciações.

Não obstante, por vezes pensava para si próprio se, depois de a deixar e o prazer se esvair, ela saía da cama e se sentava à escrivaninha e anotava num livro de contas o tempo exato que ele lá passara e o tempo que ela progredira naquela semana em direção às dez horas.

Era uma coisa ter uma mulher a aceitar-nos, mas como obrigação. Era outra bastante diferente ter uma mulher a oferecer até a intimidade mais pequena de sua própria inclinação. O beijo e o pequeno abraço de Audrianna daquela manhã haviam-no surpreendido e agradado até roçar o ridículo. A memória ainda o fazia.

Ele teria gostado de ficar com ela em vez de sair a correr. Teria sido interessante ver o que os dez minutos seguintes poderiam urdir.

Agora, tanto quanto sabia, ela podia não voltar a beijá-lo por iniciativa própria durante mais cinco anos.

– As minhas desculpas, senhor. Um assunto grave de segurança interferiu com a disponibilidade de o atender imediatamente. Espero que compreenda que a natureza dos nossos armazéns pode criar tais eventualidades. – Mr. Singleton apresentou a desculpa apressadamente. O seu rosto corado mostrava que esperava verdadeiramente que Sebastian não tomasse a mal.

Era um bom sinal, e Sebastian não se coibiu de o apaziguar. – Estou curioso com a razão que o levou a pedir esta reunião. Afinal, passei quase um ano a tentar marcar uma em vão.

O aceno de cabeça de Singleton reconhecia a verdade do comentário. – As minhas desculpas em relação a isso também, senhor. Sou, como espero que saiba, um servidor do Estado.

Não ficou claro se se tratava de um lapso ou de um aviso. Em todo o caso, só lhe faltava dizer que acatava ordens, naquilo como em tudo o resto.

– Espero que o marquês esteja bem, senhor.

– O meu irmão está ótimo, obrigado.

– Por favor dê-lhe os meus cumprimentos. E a sua nova esposa? As minhas sinceras felicitações aos dois.

– Obrigado.

– Esplêndido. – Singleton chamou a si a sua atenção e os seus pensamentos. – Se posso falar francamente, senhor, e por favor acredite que não pretendo faltar-lhe de forma alguma ao respeito...

– Claro.

– Considerando o zelo que demonstrou por certo assunto, a identidade da sua pretendida causou aqui algum interesse.

– Refere-se ao pai dela. Bom, Mr. Singleton, tanto a minha mulher como eu seremos os primeiros a concordar que o destino consegue ser caprichoso.

– É bem verdade, bem verdade. Caprichoso. Perguntávamo-nos, contudo, se agora abriria mão do seu continuado interesse no assunto.

Não era claro qual a resposta que desejava, o que era curioso, considerando a falta de disponibilidade prévia. – Diga-me Singleton, tem opinião sobre se deveria abrir mão dele? Considera os pressupostos correntes sobre Horatio Kelmsleigh uma explicação completa, e justa?

Um sorriso tenso contraiu o rosto de Singleton. – Mantemos que nada aconteceu dentro destas paredes ou sob a nossa jurisdição que dê razão a qualquer opinião.

– E contudo sinto que tem uma.

– A nível privado. E confidencial. Posso apenas dizer que me parece que se continuar a investigar, não ilibará o pai da sua esposa, se a harmonia familiar o inclinou a tentar.

Sabiam alguma coisa. Claro que sabiam. Não se deslocava material de guerra sem vigilância e registos adequados.

Sebastian despediu-se pouco tempo depois. A peculiaridade da confidência de Singleton ocupou-lhe o espírito enquanto descia a colina da Torre. Singleton falara como se a investigação tivesse chegado a uma encruzilhada, não um muro. O que significava que o Gabinete do Material de Guerra previa a chegada de novas informações que reacenderiam o interesse de um certo membro do parlamento.

* * *

Duas noites depois, enquanto Sebastian se vestia para um baile, uma pancada leve soou na porta que dava para o quarto de Audrianna. A porta abriu e a cabeça dela espreitou.

Já tinha o cabelo arranjado. Os cachos cor de avelã formavam um puxo intrincado e espirais delicadas emolduravam-lhe o rosto. Os seus olhos, verde-escuros à luz das velas, procuraram-no.

– Posso entrar? Preciso da tua opinião.

Ela pousou a gravata e fez sinal ao valete que saísse. Uma vez sozinho, ela entrou no quarto de vestir dele.

Ele ficou com a boca seca.

Ela estava com um vestido vermelho. Mais um carmesim profundo. Na verdade, a tonalidade estava contida e o corte era bastante modesto. Mas algo na maneira como lhe assentava, e no cair da seda pelo seu corpo, lhe dava um aspeto maduro e confiante.

– É uma má escolha? Segui os melhores conselhos ao encomendá-lo e adoro-o, mas depois daquela conversa com a tua mãe, estou hesitante.

A cabeça dele divergiu, para imagens onde a virava e a dobrava e a seda vermelha subia, subia...

– Não aprova.

– Está errada. Ficou deslumbrante.

Ela gostou do elogio, mas começou a examinar-se novamente. – Tens a certeza de que não é vulgar? Receio que ela diga que sim. A cor está na moda, mas ela vai querer-me de branco, sempre branco. Como uma menina. Mas eu não sou nenhuma menina, não é?

Não, não era. Era toda mulher naquele vestido. Ele não conseguia tirar as mãos dela, e deixou de tentar. Chamou-a para si num abraço. Calculou as horas, e o tempo que o baile duraria e se ir lá sequer era realmente necessário.

– É generoso da tua parte se importar com o que ela possa pensar. Contudo, ordeno-te que uses esse vestido. Então, é mais fácil voltares a sentir-te segura?

O seu aspeto era sensual e fresco ao mesmo tempo. – Sim, devolve-me a confiança. Não me importará o que mais ninguém pense. É bom saber que gostas dele, porém. É o meu primeiro baile nos altos círculos e sei que irão julgar a minha adequação para ser tua esposa. – Ela afastou-se dele e olhou para o carmesim drapeado. – Ele disse que aprovarias, mas eu queria ter a certeza.

– Ele?

– O teu irmão – disse ela, saindo.

Ele sentiu-se atravessado pela reação mais estranha. Ela saiu sem que ele a tivesse dominado.

A reação não era desconhecida nem nova, mas tê-la naquela altura era estranho.

Ciúme. Era o que deflagrara dentro dele. Ciúme por ela ter tido com Morgan a sua preocupação antes de ter tido com ele.


Capítulo 14


Ela se recusava a se deixar intimidar pela expressão dramática de clemência de Lady Wittonbury ao ver o seu vestido. Summerhays gostava dele. Era tudo o que importava.

O baile quase a intimidara. As sedas e luzes bruxuleantes, o riso e a música, baralhavam seus sentidos. Conhecera senhoras suficientes através da marquesa e de Sebastian para se manter ocupada à margem das conversas. Principalmente, admirou os vestidos e penteados, e concluiu que o seu conjunto era apropriado.

Sebastian dançou com ela duas vezes, mas depois Lord Hawkeswell levou-o para conversar. Ela procurou outro rosto familiar. Subitamente, o último rosto que esperava ver estava mesmo à sua frente.

Roger estacou no mesmo momento que ela. Ficaram ali como dois bonecos de porcelana em cima de uma prateleira.

Ele não mudara nada e, contudo, parecia diferente. A separação permitia vê-lo mais claramente, da mesma forma que o tempo o permitira quando ele regressara da guerra.

No entanto, desta vez não havia amor e excitação para vencer a estranheza. Ela se flagrou enumerando os detalhes do aspecto dele, enquanto esperava que a mágoa e a desilusão apertassem seu coração. Aconteceu, emergindo de onde quer que fosse que ela as havia enterrado. Ao que se juntou um bom pedaço de ressentimento.

– Audrianna. – Os seus olhos azuis acolheram-na de uma maneira que outrora a deixara sem fôlego. – Está com uma boa aparência. Ainda mais adorável, eu acho.

Ele também tinha boa aparência, mas, vendo bem, o uniforme fazia aquilo por um homem. Ela quis pensar que o seu cabelo espesso e castanho-claro tinha perdido volume, mas provavelmente não.

– Está há muito tempo em Londres? Ou passou só de visita?

– O regimento foi transferido para Brighton em janeiro, e aproveitei a oportunidade para tirar uma licença de curta duração.

A menção de Brighton fez seu rosto corar. Se ele agora vivia lá, ficaria a par de cada detalhe do escândalo. Provavelmente já teria se congratulado por ter escapado por tão pouco.

– A sua mãe está bem? – perguntou ele.

– Sim, muito bem. Devia visitá-la. A nossa situação mudou consideravelmente, como provavelmente sabe. Ela já não tem rancor de você. Deve ficar contentíssima por voltar a vê-lo.

O sorriso dele vacilou à menção do rancor. Aproximou-se dela.

– E você, Audrianna? A sua nova situação acalmou a raiva que sentia por mim? Espero que sim, e que possamos ser amigos.

Por quê? Quase lhe perguntou, só que sabia a resposta. Ela já não era uma noiva cujo desgraçado pai mancharia a carreira de um oficial e o sujeitaria a suspeitas ou pior. Tornara-se uma via para ligações valiosas.

Isso a desanimara. Implicava que, desde o início, o interesse ou a rejeição de Roger não tinham tido a ver com ela. Mesmo as atenções e o pedido de casamento não tinham a ver com amor. Roger provavelmente via o Gabinete do Material de Guerra como um bom lugar onde ficar uma vez terminada a guerra, e o pai dela como o meio para chegar lá.

De repente, ele estava ainda mais perto. Não perto demais, mas quase. Falava rápido e baixo. – Por favor, diga que aceitaria uma amizade. Está tão bela hoje que eu mal consigo pensar. Tenho sido um infeliz desde que voltou atrás no nosso noivado.

O descaramento dele a espantou. Lançou olhares à esquerda e à direita para ver se alguém poderia ouvir.

– Nada posso fazer pelo seu sofrimento, se de fato sente algum. E não nos esqueçamos, nesta partilha de memórias, que foi você que pediu para que eu terminasse com você. Muito cruelmente.

Aquela memória se impôs subitamente. Ela aguardara com excitação e alívio o regresso dele em casa, mas ele evitara o reencontro. Quando acontecera finalmente, ele mostrara-se formal, duro e indiferente. Enumerara as formas como a desgraça do pai dela se refletiria nele. Exprimira impaciência quando ela chorara.

– Sim, e não tenho direito de esperar outra coisa senão crueldade de você em troca. Não tive escolha, porém. Acho que sabe disso.

– E sei. Compreendi que a minha convicção de que você seria melhor do que o mundo era infantil. – Ela nunca o detestara por aquele dia, por mais que tivesse tentado. Chorara nas semanas seguintes os sonhos destruídos e um futuro sem esperança, mas compreendera completamente.

Ele inclinou a cabeça e falou secretamente.

– Nunca deixei de amá-la, Audrianna, ou de lamentar a minha covardia. Lamento-a ainda mais ao vê-la aqui hoje, assim tão... – Ele riu de si mesmo e balançou ligeiramente a cabeça, como se quisesse despertar o cérebro atordoado.

– É uma pena que assim seja, mas não tenho nada a fazer. Se pede amizade apenas, contudo, é sua. Se voltarmos a nos ver não a negarei. E se a minha amizade puder ser benéfica a você de alguma forma, sem a minha intervenção direta, não a negarei se me perguntarem sobre você.

Afastou-se e procurou a densa multidão. Esperava que a sua compostura forçada encobrisse a tristeza provocada pelo que ele realmente pedira.

* * *

Mas quem era ele?

O homem de cabelo castanho-claro aproximara-se um pouco demais de Audrianna para ser confortável. E ela não parecia uma mulher que estivesse falando com um estranho.

– Ouviu uma palavra do que acabo de dizer, Summerhays?

– Claro. Estava me dizendo que os Thompson contrataram um investigador. – Não podia ter certeza àquela distância, mas parecia que Audrianna corava.

– Isso foi há cinco minutos. Estava dizendo agora que o sujeito está fazendo perguntas sobre mim. Estão tornando as suspeitas deles explícitas e eu me sinto meio inclinado a apresentar queixa por difamação criminosa.

Aquilo captou a atenção de Sebastian. Alguma parte dela, pelo menos. Ficou com um olho na conversa que acontecia no outro lado do salão de baile. Se aquele homem não recuasse, ele teria de ir até lá e...

E o quê? Notou a raiva que faiscava na sua cabeça. Ciúme outra vez. Injustificado e inesperado. Só que ali não se tratava de um parente inválido que oferecia conforto, mas um homem de boa aparência com olhos azuis que apreciavam aquele vestido vermelho mais do que deviam. Todos os seus instintos, especialmente os aprimorados pela experiência naqueles assuntos, informavam que o sujeito tinha como propósito seduzi-la.

– Suponho que quererão outro inquérito – prosseguiu Hawkeswell. – Não me agrada um em que alguém me impugna e me acusa de machucá-la.

– Podem querer apenas vê-la declarada morta.

– Só acontecerá depois de decorridos sete anos. Todo mundo sabe disso.

– Estão reunindo provas que permitirão uma resolução mais certeira. O xale no ano passado, e agora a bolsa. Se o investigador encontrar mais alguma coisa, terminará tudo em breve.

– Desde que não tente me culpar, será um alívio.

– Ele não consegue encontrar uma forma de incriminá-lo, por isso os esforços dele não darão em nada se é esse o seu objetivo. Deve ignorá-lo.

Audrianna estava dizendo alguma coisa. Assemelhava-se muito a quando rejeitara a sua primeira proposta. O homem não estava recebendo aquilo bem. É isso mesmo. Põe o patifezinho no lugar dele.

– Com o que diabos está se distraindo? – Hawkeswell olhou na direção dos olhares repetidos de Sebastian. – Uma nova inclinação? Tão cedo? Podia deixar a tinta da certidão de casamento secar primeiro.

– Aquele sujeito ali está atrás da minha mulher.

Hawkeswell esforçou-se para ver melhor.

– É difícil perceber daqui.

– Eu consigo.

– Reconhece o jogo do patife, não é?

– Não andei atrás de mulheres casadas há uma semana.

Hawkeswell riu.

– Ah! Pontos de honra. Ele contradiz os seus, vê-se no seu tom indignado. Importa-se mesmo ou está apenas sendo um daqueles macacos possessivos que têm ciúmes de todas as suas propriedades?

Importava-se? Ou era apenas sentimento de posse por uma nova aquisição? A pergunta o apanhou desprevenido.

Hawkeswell o rodeou, impedindo-o deliberadamente de ver Audrianna.

– Se alguma vez houve um casamento feito no altar da obrigação, foi o seu, Summerhays. Para você e para ela. Sabem os dois que vão ter amantes, mais tarde ou mais cedo. Aposto o meu dinheiro em mais cedo para você e muito mais tarde para ela. É assim que habitualmente acontece.

– Nem sempre.

– Verdade, nem sempre. Às vezes a mulher permanece fiel e amarga. Bom, vai até lá então e coloque-o para correr, para ela aprender com que fios se coserá.

Não seria necessário. Audrianna ficou novamente visível, atravessando o canto do salão. Sozinha.

– Às vezes você é extremamente irritante, Hawkeswell.

– Só quando quer se comportar como um asno, Summerhays.

Audrianna relembrou o baile enquanto Nellie desapertava seu vestido. Tinha corrido bem, pensou. Numa multidão daquele tamanho, a sua insignificância tornou-se uma forma de proteção. Mesmo assim, houvera apresentações e até alguns sorrisos amistosos. Talvez dentro de alguns meses ela não se sentisse uma intrusa em reuniões daquele tipo, mesmo se nunca acreditasse pertencer ali.

Pôs as mãos nas ombreiras do vestido, para tirá-lo.

– Ainda não.

Assustada, ela olhou por cima do ombro. Nellie desaparecera. Sebastian estava no vão da porta que dava para o quarto dela, encostado à jamba, com os braços cruzados e sem o casaco e a gravata. A luz da vela realçava o branco da camisa e a profundidade dos olhos, que a observavam.

Se ele não queria que ela tirasse o vestido, ela não devia fazê-lo. Ela não conseguia pensar em nada que pudesse fazer em lugar disso, por isso limitou-se a ficar ali de pé com a seda vermelha apertando suas costas.

– Fica deslumbrante nesse vestido. Todo mundo pensou o mesmo.

– No meio daquelas pessoas todas não me parece ter havido muitas reparando em mim.

– Eu reparei. Mal conseguia tirar os olhos de você.

Ela perguntou-se se os olhos dele a haviam procurado enquanto Roger insistia pela sua atenção. A ideia perturbou-a o bastante para se dedicar a tirar o colar, tentando esconder a sua consternação.

– Este ouro que me deu ia bem com ele, eu achei. As esmeraldas não, por mais que quisesse usá-las.

Ele se aproximou para ajudá-la. A presença dele aqueceu suas costas e logo o colar caiu na sua mão. O braço dele envolveu-a e puxou-a para trás. Um beijo quente no pescoço fê-la arquejar. Carícias lentas na seda que cobria os seios fizeram com que o prazer a percorresse em correntes rápidas, ondulantes. O colar escapou dos dedos e caiu ao chão.

As mãos dele passaram por cima daquela seda toda. Dela toda. Carícias firmes se assenhoravam do seu ventre e quadril e coxas enquanto aquele corpo robusto se apertava contra as costas dela. O prazer embatia dentro dela numa sucessão rápida de ondas que a deixavam sem força. Quando ele estimulou seus mamilos, só lhe restou arquear-se contra ele procurando apoio enquanto o seu corpo suplicava pela tortura.

Beijos penetrantes. Febris, duros e impacientes. Ele queimava seu pescoço e ombro e ela voltou-se para aceitar mais.

Depois flutuou, transportada para a cama no seu torpor. Ele não a pousou lá dentro, mas pousou seus pés no chão. As pernas dela quase não se seguravam, e vacilou.

Abraçando-a ainda com aquele braço controlador, ainda a segurá-la, a sua outra mão pegou as almofadas. Fez um monte à frente dela.

Ergueu-a ligeiramente.

– Ajoelhe-se aqui.

Ela não compreendeu, mas obedeceu. Depois ele empurrou um pouco mais o corpo dela até ela ficar deitada na cama com as almofadas por baixo do quadril. Ela compreendeu as implicações da sua posição. Atravessou-a um sobressalto de surpresa. Dentro do seu corpo, lá embaixo, no fundo, apertava-se uma potente antecipação.

A seda subiu lentamente pelas pernas numa carícia sensual. Mais alto ainda, até o vermelho se amontoar na sua cintura e cair sobre a cama. Ele puxou a calcinha para baixo até os joelhos.

Um toque. Uma estocada segura e profunda. Ela não conseguiu conter um gemido.

Ele deixou-a assim, exposta e expectante. Pulsava de impaciência. Aquele desejo não se parecia com nada que ela tivesse experimentado antes. Olhou para trás e viu a camisa dele caindo, depois o corpo nu dele vir na sua direção.

Ele a arrebatou com ardor e ela queria mais força ainda. Ele enchia-a até o ponto de ser aquela a única sensação que conhecia. As investidas dele incitavam uma nova fome que se fazia cada vez pior, crescendo dentro do prazer. Ela queria aquilo, queria ele e que aquela voracidade revoltada encontrasse libertação na sua ausência de comedimento. Era louco, selvagem, e tão vermelho quanto a seda que fluía entre eles.

As sensações tornaram-se mais tensas e agudas. Desvairada agora, louca de necessidade, ela perdeu o controle. Clamando, querendo mais, disparou até um ponto de intensidade absurdo, que explodiu num grito longo e gutural de delicioso alívio.

Ele tirou seu vestido do corpo lânguido, saciado, e atirou-o para o lado. Provavelmente estava sujo. Não se importava.

Afastou as almofadas e a indireitou na cama, deitando-se depois ao lado dela. Não dormiu. O contentamento era perfeito demais para desistir tão cedo.

Ela procurou o flanco dele como que por instinto. Ele rodeou-a com um braço e puxou-a mais para perto ainda.

A felicidade foi celestial, mas fugaz. Ela regressou à agitação do mundo. A cabeça dele começou a pensar novamente. Revivia os acontecimentos da noite. Demorou nas memórias da bunda nua dela eroticamente erguida, rodeada por uma espuma de seda vermelha, e as coxas afastando-se convidativas enquanto aguardava por ele.

Imagens do baile se impunham. Uma em particular. Há duas horas ele não teria perguntado, e duas horas depois também não perguntaria, mas o erotismo cru forma os seus próprios laços, ainda que sejam temporários.

– Quem era ele? O homem do baile?

Ela ficou muito quieta, mesmo no meio de uma espreguiçadela. Pode ter deixado de respirar. Ele praticamente ouviu a sua mente ficar alerta, escolhendo as palavras, decidindo se mentia. O cuidado dela lhe disse tudo o que precisava saber para querer matar o homem.

– É um velho amigo. É oficial do exército. – O silêncio tremeu durante uma longa pausa. – Ficamos comprometidos antes de ele ir para a França.

– E deixaram de estar depois de ele voltar. O que aconteceu?

– Eu me descomprometi dele. O tempo mudou as coisas.

– Para você ou para ele?

– Para ambos. É uma história comum, acho eu. As alianças feitas antes de longas separações muitas vezes não sobrevivem.

Dificilmente. Quase sempre sobreviviam porque a mulher não aceitava a alteração. Além do mais, ela mentia. O canalha partira seu coração. A canção que ela escrevera fora acerca daquela dor.

– Se separou recentemente?

– Há mais de um ano. Antes do último Natal. É recente?

Recente o suficiente para o homem ainda ser um rival.

Não a forçaria a falar mais daquilo. Sabia como tinha sido. O covarde pedira para se separar, para não ser manchado pela desgraça do pai dela.

Em todas as suas acusações, mesmo no Duas Espadas, ela nunca mencionara aquilo. Estava dentro dela, porém, sempre que o culpava pela infelicidade da família. Ainda estava.

– Ainda o ama? – Era difícil fazer aquela pergunta. Mais difícil do que deveria ser. Tampouco gostou da forma como aguardou pela resposta, como um homem pronto a ter uma atitude estúpida se a resposta fosse a errada.

– Nunca poderia ter casado com você se ainda o amasse. Não teria sido honesto, por mais prático que esse enlace se revelasse. Examinei minuciosamente o meu coração antes de aceitar a sua proposta.

Ela tinha um talento para espantá-lo. Não eram muitas as pessoas que, sendo-lhe oferecidos lucro e riqueza, posição e redenção, se preocupariam com o estado de um velho amor antes de agarrar a oportunidade.

– Deveria ter falado disso antes de casarmos? Está zangado por não o ter feito?

– Não havia razão para me dizer. Está tudo no passado e não tem significado presente. – Só que tinha, pelo menos o suficiente para motivar a pergunta dele. Ela teve a decência de não o mencionar.

– É isso que diz a Daphne. Era parte da regra pela qual vivíamos. Não fazíamos perguntas sobre o passado umas das outras, porque algumas mulheres têm boas razões para deixarem o passado para trás.

– A sua falta de curiosidade é assinalável.

– Não disse que não tinha curiosidade. E uma pessoa faz conjeturas. Mas nunca perguntei.

– A mim acho uma regra estúpida. Uma das Flores Preciosas podia ser assassina, sem que saiba.

– Imagino que sim. – Ela ergueu-se num braço e olhou para ele. O seu cabelo castanho-arruivado caiu em ondas desalinhadas pelo rosto e ombros. – Nós não nos chamamos Flores Preciosas, sabe. Só o negócio tem esse nome.

– Vocês são todas flores preciosas e eu fiquei com a mais preciosa de todas. – Aproximou a cabeça dela para conseguir beijá-la. – E a mais bela. Agora vire-se para eu tirar esse espartilho.

– Vou chamar a Nellie.

– Não, não vai. – Ele a virou e começou a desapertar o espartilho. – Ainda não estou de saída, Audrianna.


Capítulo 15


Entre os luxos proporcionados a Audrianna com o seu casamento constava uma carruagem própria. Três dias depois, ela pediu que a aprontassem e instruiu o cocheiro para levá-la ao Flores Preciosas.

Encontrou todas na estufa, rodeadas de vasos de lírios e jacintos. Através do vidro, viu o jardim a ganhar vida, com filas de folhas novas surgindo no solo.

Elas não fizeram grande alarido com a sua chegada. Audrianna podia vir de uma das suas aulas de música. O círculo abriu-se e absorveu-a, como se nunca tivesse ido embora.

– Com o início da temporada, estamos muito atarefadas – disse Lizzie, como forma de explicar o fato de Daphne estar tão entretida com os vasos. – Foi pedido que replicássemos em dois jardins o que fizemos para o seu casamento.

– As pessoas conseguem ser muito pouco originais – comentou Celia. – Uma senhora até queria exatamente as mesmas flores. A Daphne teve de explicar que pareceria ridículo ter narcisos e tulipas em vasos quando cresceriam livremente nos jardins na altura da recepção.

– Depois do verão de há dois anos, todo mundo receia que as suas próprias flores sejam pequenas ou que nem sequer cresçam. Será preciso bom tempo até o nosso próprio jardim recuperar. – Daphne referia-se ao ano sem verão, e às graves consequências que se seguiram. Contou alguns lírios que desabrochavam, apontando para cada um à medida que calculava. Contente, tirou o avental. – Estão prontos para Mr. Davidson transportá-los. Lizzie, por favor, certifique-se de que ele leve todos quando vier.

Voltaram todas à sala de estar dos fundos. Celia foi fazer café. Audrianna submeteu-se a uma longa inspeção por parte de Daphne.

– Parece satisfeita neste casamento. Por favor, diga-me que está.

– Estou, mais do que esperava. Não tem sido livre de surpresas, claro.

– Refere-se à interferência de Lady Wittonbury, tenho certeza.

Não se referia mesmo a Lady Wittonbury, mas à rica sensualidade do casamento. Cativava-a mais do que carruagens e sedas. Ela esquecia quem era quando se perdia naqueles prazeres. Até as circunstâncias que a haviam conduzido àquela cama se turvavam durante um momento.

– Ela revelou ser uma pequena nuvem, mas felizmente não tão grande quanto poderia ser. E o marquês tornou-se um bom amigo. – O seu melhor amigo, na verdade. O seu único amigo, até, naquele mundo. Comparativamente, à luz do dia Sebastian continuava a ter algo de estranho. Ela não falava tão livremente com ele como com o marquês. Não se esquecia de ser cuidadosa. Sebastian ainda a deslumbrava e impressionava a ponto de ficar em desvantagem, e o que ele fazia à noite só intensificava aquela reação.

– Ela está tentando intimidá-la? – perguntou Daphne.

– Claro. Mas não vim aqui chorar no seu ombro nem falar sobre a indelicadeza de Lady Wittonbury. Vim para estar com amigas queridas e para ler os jornais e as fofocas da Lizzie.

Celia chegou com o tabuleiro do café.

– Vai buscá-los Lizzie. Ela agora tem uma pilha deles, pois vamos muitas vezes à cidade com o negócio que o seu casamento nos trouxe, Audrianna. Nem as dores de cabeça dela a impedem de ler a todos.

Lizzie foi a um armário e trouxe uma densa pilha de jornais dobrados.

– Gosto de saber o que acontece no mundo. Não sei por que implica tanto comigo, Celia.

– Porque gosta de você, é por isso – afirmou Audrianna. – Fico contente de ver que está livre da sua doença hoje, Lizzie. Receei encontrá-la prostrada e ser privada da sua companhia.

– Atacam sem aviso nem razão, não é assim, Lizzie? – indagou Daphne. – Acho que o tempo instável é o culpado.

Beberam o seu café e falaram de coisas comuns. Audrianna deleitou-se com a conversa fácil. Ali não havia etiqueta. Não havia relógio dando nota da passagem do tempo prescrito para uma visita matinal. Nem preocupação que alguém se risse alto demais ou na altura errada.

Observou as amigas queridas e as palavras de Sebastian voltaram. A sua falta de curiosidade é notável. Inicialmente, ela também pensara que a regra era estúpida e na verdade tivera muita curiosidade. Logo, porém, soube o que precisava saber sobre aquelas mulheres e os seus passados deixaram de importar minimamente.

E, no entanto, ali conversando, ela pensou no pouco que sabia realmente. Nada sobre Lizzie e Celia. E até Daphne, que era sua prima... houvera anos em que a perdera completamente de vista.

Agora que pensava naquilo, ela era a única pessoa na casa cuja história era um livro aberto para as outras.

Celia pegou um dos jornais de Lizzie.

– O que está procurando? Por que os queria?

– Eu sabia que ela teria muitos mais do que aqueles que eu vi. Seria inusitado pedir aos criados que trouxessem tantos todos os dias. Quero ver se houve algum anúncio do Dominó. Já comprou dois, e penso que pode voltar a fazê-lo.

– Não me lembro de ler nenhum com esse nome, mas da última vez foi mais uma alusão – disse Lizzie. – Nós a ajudamos, para não se ocupar o tempo todo aqui. – Pegou um monte e entregou-o a Daphne.

Meia hora mais tarde tinham terminado sem sucesso. Os poucos anúncios obscuros não revelavam nada que indicasse que tinham sido colocados pelo Dominó.

– Por que você não põe um? – sugeriu Lizzie.

– Tentei uma vez, mas não consegui escrevê-lo de maneira a que o Dominó adivinhasse que era eu sem que mais ninguém descobrisse.

– Ela não pode se arriscar a que Lord Sebastian o veja – disse Daphne. – Uma pessoa sensata não coloca dedos em feridas.

Audrianna reparou que se tratava de uma metáfora adequada. Explicava tudo acerca do teor do seu casamento recente. O desejo e o prazer formavam um bálsamo para aquela ferida, mas não a curavam realmente. Dúzias de dedos na ferida todos os dias mantinham-na aberta. As referências oblíquas que outros faziam ao pai, a natureza de obrigatoriedade do próprio casamento, a certeza de que Sebastian, se conseguisse, provaria aquilo que o mundo já tomara como certo.

Pôs-se a pensar como teria sido o casamento deles se aquela ferida não existisse. Era uma pergunta romântica sem sentido. Se não fosse a ferida, não teria sequer havido casamento, evidentemente.

– Além disso, percebi que não posso combinar uma série de encontros aos quais pode não comparecer ninguém – prosseguiu Audrianna. – Os meus dias não são completamente meus.

– Deixa-o vir até você – propôs Celia. – Escreve um anúncio que peça meramente um contato, e usa o endereço de uma loja, para a reposta não ir parar no seu correio. Fazem isso constantemente. Os amantes, por exemplo. Editoras e livrarias muitas vezes oferecem o serviço, assim como algumas estalagens e advogados.

– Talvez faça isso. – Pôs de lado a curiosidade sobre o fato de Celia saber aquelas coisas todas. Ela já não era uma delas e a regra já não se aplicava, mas seria traição intrometer-se agora.

Conseguiria ela escrever um anúncio que não chamasse a atenção de Sebastian, mas que fosse identificado pelo Dominó? Seria preciso escolher bem as palavras.

– Podes também dar a saber que o procura em lugares onde se reúnam estrangeiros – avançou Lizzie. – Se pagar a um empregado para ficar de olho aberto por você, ele pode instruir o homem a escrever a você, caso apareça.

– Pagar a alguém seria melhor do que fazer vigilância você mesma – defendeu Celia, com um sorriso sugestivo que fazia referência à visita delas ao Miller’s Hotel.

– Parece ineficaz, mas realmente pode funcionar – aprovou Daphne. – Providencie uma descrição. A pessoa que contratar fica atenta. Se aparecer um homem assim, o seu ajudante pergunta-lhe simplesmente se é o Dominó. Se não for, a pergunta será estranha mas rapidamente esquecida. Se for, pode dizer como contatá-la.

– Onde devo procurar essas ajudas, então? Em certos hotéis, suponho. – Outro sorriso de Celia. – O Royal Exchange, talvez?

– Lugares de entretenimento – sugeriu Lizzie. – Teatros e outros. Lojas também, que vendam livros em línguas estrangeiras. – Lizzie bateu com o dedo no queixo. – Que outros estabelecimentos poderiam atrair homens que estão longe de casa com tempo para gastar?

– Bordéis.

A resposta direta de Celia provocou um silêncio coletivo.

– Sem deixar de ser uma sugestão útil, e muito possivelmente acertada – principiou Daphne –, a Audrianna dificilmente poderá visitá-los para encontrar alguém que a ajude.

Celia encolheu os ombros.

– É uma pena. É muito provável que esse Dominó visite algum, e são estabelecimentos onde todo mundo se presta a serviços.

Mr. Davidson chegou naquela altura. Audrianna ajudou as outras a carregar vasos para dentro da carroça dele, para transporte até as floristas de Londres que compravam regularmente ao Flores Preciosas. Desempenhou com satisfação a tarefa familiar.

Sentiu o peso da nostalgia ao sair do Flores Preciosas para regressar a Londres. Na viagem de carruagem para casa, escreveu o anúncio para os jornais.

* * *

– Lady Ophelia contratou o Flores Preciosas para fazerem a recepção no jardim. Devo admitir que elas transformaram completamente aquele jardim, que é muito fraco mesmo na melhor das estações. Nem sequer se notava aquela maneira estranha como ela manda sempre podar o arbusto.

Audrianna não sabia se devia aceitar o elogio como uma aproximação. Lady Ferris insistira em falar acerca do Flores Preciosas, apesar dos esforços de Lady Wittonbury para desviar a conversa.

Ela e Lady Wittonbury tinham ido visitar Lady Ferris juntas. Lady Wittonbury decretara que a visita era importante para a aceitação de Audrianna.

Com táticas cuidadosamente engendradas como aquela, a sogra aproximava-se do objetivo de conseguir um passaporte para Audrianna para o Almack’s, mas sem se diminuir pedindo diretamente às patronas do estabelecimento, mulheres que detinham uma influência social à qual Lady Wittonbury julgava também ter direito.

Tanto quanto Audrianna conseguiu depreender, Lady Ferris era uma favorita de longa data de Lady Jersey, e uma palavra favorável dela poderia valer as repetidas visitas matinais.

– Eu estava lá quando Mrs. Joyes chegou para fazer os arranjos – comentou animadamente Lady Ferris, como se abordasse aquele assunto à falta de outro. – É uma mulher elegante, encantadora.

– Todos os que travam conhecimento com a minha prima comentam sobre a sua graça. Mesmo assim, ela ficará lisonjeada com as suas amáveis palavras.

– Ouvi dizer que foi governanta, há alguns anos. Só podemos lamentar que as circunstâncias a tenham obrigado a estar no comércio agora. Tinha uma moça com ela. Uma loirinha muito bonita. Percebi que a mais nova tinha um caráter vivaz por natureza, embora se mostrasse submissa.

– Seria a Celia.

Lady Wittonbury inclinou-se para a frente, inserindo-se fisicamente ente as duas.

– Vai dar uma recepção no jardim quando iniciar a temporada? No ano passado descreveram-na com admiração durante semanas.

– Sim. Em meados de abril. Pretendo usar o Flores Preciosas também – respondeu Lady Ferris. – Reconheci-a. A jovem. Celia.

Audrianna não sabia o que dizer. Nem Lady Wittonbury. Ambas emudeceram e Lady Ferris saboreou o receio que surgiu nos olhos de Lady Wittonbury.

– Eu a tinha visto uma vez, numa carruagem. Há um ano, talvez dois. Estava com Lady Jersey no parque e passou uma carruagem particular. Todo mundo conhece aquele veículo. Pertence a... desculpe-me, minha querida, espero que não fique chocada... a uma mulher célebre pelos amantes afluentes que a sustentam.

– Com certeza está enganada – reagiu Audrianna. – Alguns anos é muito tempo para nos lembrarmos de um rosto que vimos dentro de uma carruagem.

– Era uma carruagem aberta, como é da preferência de tais mulheres, e o rosto da moça era memorável. “Quem é aquela?”, perguntei a Lady Jersey. É para verem como me impressionou a beleza da moça. “É a filha dela”, respondeu, “que veio do campo agora que está crescida”.

Até Lady Wittonbury, tão treinada em manter a compostura, não conseguiu esconder completamente a sua consternação. As suas costas continuaram direitas e o rosto uma máscara amistosa, mas assomou um pouco de loucura ao olhar.

– Já que a companheira de Mrs. Joyes não vive na cidade, mas continua no campo, parece que se enganou – disse por fim Lady Wittonbury.

– Quem sabe. – Lady Ferris sorriu de deliciosa satisfação.

Os olhos de Lady Wittonbury fulminaram-na. Discretamente, encontrou forma de terminar a visita.

Uma vez na carruagem, a sua compostura se desfez.

– Não é suportável. Ser forçada a fazer amizade com uma zé-ninguém como Lady Ferris para servir os seus interesses, e acabar com ela dando tudo para me humilhar... – Lançou um olhar furioso a Audrianna. – Cortará relações com todas elas, imediatamente. Devia tê-lo dito no início. Agora vejam ao que a minha contenção levou. Oh, santo Deus, e se ficarem sabendo que você viveu ali com ela? – Aquela última constatação a deixou com os olhos arregalados e a boca aberta de horror.

– Lady Ferris está enganada. – Só que ela não tinha certeza absoluta disso. Ela não sabia nada da vida de Celia anterior à chegada a casa de Daphne. Na verdade, a ideia de Celia ser filha de uma cortesã até fazia sentido.

Batia certo com a sua visão experiente e a forma confiante como falava da alta sociedade quebrar regras em privado que observava em público. E quando Celia ia à cidade, era frequente passar algum tempo sozinha. Para visitar a mãe?

– Cortará relações com elas. Tem de fazer isso. Não pense que o meu filho a apoiará nisto. Usará mulheres dessas livremente, mas nunca as elevaria nem permitiria à mulher andar com elas.

– Ela não disse que a Celia era... era ela mesma cortesã.

– Deus me dê paciência! A filha de uma meretriz... sim, meretriz. Para que mais seria ela trazida do campo e mostrada no parque ao lado da mãe, se não para se tornar ela mesma meretriz?

Audrianna suportou corajosamente o resto do furioso discurso. Não disse nada e refreou-se de revelar a sua própria decepção. Poderia ser aquela a razão real para Celia não ter ido ao casamento. Não para cuidar de Lizzie. Celia talvez soubesse que poderia ser reconhecida por alguém na igreja.

Só que Celia não era meretriz, fosse qual fosse a lógica aplicada por Lady Wittonbury. Celia era uma amiga boa e compreensiva. Vivia com outras mulheres na obscuridade e em paz. Celia nunca sequer desaparecera durante uma noite inteira, como Audrianna fizera. E a sua forma alegre e divertida de ser animava sempre os dias e fazia Audrianna rir.

Audrianna apressou-se em sair quando a carruagem parou. Lady Wittonbury impediu sua passagem com a sombrinha.

– Não são bem-vindas nesta casa no futuro. A menina não é estúpida e sabe que eu estou certa sobre como isto deve ser feito. O meu dever é elevá-la a algo parecido com aceitabilidade para o papel que um dia terá. Não permitirei que em vez disso nos arraste para baixo.

Audrianna empurrou a sombrinha e apeou-se da carruagem. Correu para dentro de casa antes que Lady Wittonbury visse suas lágrimas.

Sebastian entrou no quarto do doente. Não se retraiu ao ver a imagem que o jovem artilheiro apresentava. Tinha alguma experiência naquilo, afinal.

A explosão que quase matara Harry Anderson fizera grandes estragos. Faltavam uma perna e meio braço, e na cabeça marcada o cabelo não voltaria a crescer direito. Ele ainda não tinha vinte anos quando a guerra lhe fizera aquilo.

Sebastian não conseguiu evitar pensar em Morgan quando viu Anderson. O futuro daquele jovem seria igualmente limitado e isolado, ali na casa da irmã. Podia cuidar de si mesmo, era verdade, mas ele e o marquês de Wittonbury tinham agora muito em comum.

Anderson cumprimentou-o com uma passividade que Sebastian reconheceu. Era assim com os estropiados. A aceitação acabava sempre por chegar, pois não havia outra escolha.

– Agradeço a honra que me dá em me receber – começou Sebastian. – Disseram-me que não quer falar do assunto.

– Só concordei em fazer isso porque Mr. Proctor disse que vem em nome do seu irmão. Lord Wittonbury sabe como é, não é assim? Não posso recusá-lo.

– Tem o agradecimento dele, lhe asseguro.

Anderson mexeu o seu meio braço. O fundo da manga abanou.

– Salvou a mim e a minha perna. Eu estava virado e fui atingido aí em vez de nas tripas. Fui atirado, e isso provavelmente também me salvou. Apontavam aos canhões, claro. Não sabiam que não serviam para nada.

– Você é o único artilheiro que sobreviveu, por isso acho que tem razão. A explosão que o atingiu foi o que o salvou.

– Que sorte tive.

Sebastian permitiu a Anderson a sua amargura. Tinha direito a ela.

– De que se lembra, desses canhões não servirem para nada?

– Não muito. Nós o carregamos normalmente e o acendemos em condições. Não aconteceu nada. Bem podia ter areia lá dentro, para aquilo que a pólvora fazia. Não chegaram a disparar e só saía um bocado de fumo. – Encolheu os ombros. – Então o limpamos e fizemos tudo de novo, com outros barris de pólvora, e ainda mais cuidado para que tudo estivesse seco, sempre debaixo de fogo. Aconteceu a mesma coisa. Compreendemos que cairíamos como pássaros. As armas deles já nos tinham feito em farrapos quando os oficiais deram sinal de retirada. A essa altura eu já estava meio morto.

Os restos daqueles farrapos lá acabaram por conseguir voltar para casa. E contaram a história da estrondosa derrota.

– Poderá colocar a memória dos acontecimentos por escrito? Atestá-la oficialmente?

– Pois acontece que deixei de escrever, senhor.

– Trarei um escrivão que escreva suas palavras e testemunhe sua marca.

Anderson hesitava em dar o seu acordo.

– Um oficial me visitou quando eu estava no convento francês. Eu lhe contei o que aconteceu. Ele me disse que a guerra tinha acabado e que não havia nada de bom em dizer ao mundo o que acontecera. Disse para deixar os mortos em paz.

– E acha que ele tem razão? Se sim, eu o deixarei em paz.

Anderson debateu-se silenciosamente durante um bom tempo.

– Apenas me parece que os outros foram mortos pelo erro de alguém, tanto quanto pelo fogo inimigo – concluiu. – Não parece correto que ninguém pague por isso, embora tenha ouvido dizer que um homem se enforcou por causa disso. E estou sempre pensando: e se se comete outra vez o mesmo erro?

– A sua visão é muito parecida com a do meu irmão, e da minha.

– Então ponho a minha marca na história, se pensa que pode ajudar. Traga aqui o escrivão que eu faço isso.

Sebastian agradeceu-lhe.

– Tenho mais uma pergunta, se for tolerável para você. Gostaria que me descrevesse esses barris. Diga-me tudo de que se lembre. Tente recordar-se de cada marca que tinham.

Sebastian subiu aos aposentos do irmão logo que voltou a Park Lane. Estava finalmente na posse de informação que podia rebentar com o dique que impedia a resolução daquela questão do material. Ansiava por partilhá-la com Morgan e discutir os passos seguintes.

O Dr. Fenwood não estava na antessala. Sebastian ouviu uns sons na biblioteca. A porta estava aberta e, ao aproximar-se, ouviu soluçar baixinho.

Espreitou. Morgan estava sentado na poltrona dele, bastante curvado. Audrianna estava sentada no chão ao lado dele, com as mãos no rosto, tentando esconder o choro. Morgan falava numa voz doce, tão baixinho que Sebastian não conseguia ouvir, e passava carinhosamente a mão na cabeça.

A imagem o deixou perplexo. Vazio. Espiou em silêncio, suspenso no tempo. Eclodiu depois uma fúria do fundo das suas entranhas, obliterando a calma antinatural que dele se apoderara.

Afastou-se a passos largos com um caos negro enchendo a cabeça. A casa não conseguia contê-lo. Talvez nem o mundo inteiro conseguisse. Dirigiu-se ao jardim, ao bosque nas traseiras. Entre as árvores florescentes e as ervas esmeralda, deu livre curso à raiva sombria.

Explodiu e rugiu e uivou incoerentemente. Acalmou, por fim, numa chuva constante. E naquele aguaceiro mais transparente, ele soube que não se tratava de simples ciúme o enlouquecendo. Aquela insanidade em particular avolumava-se desde o dia em que Morgan comprara aquela maldita patente.

A chuva sombria pedia a verdade. Expunha a realidade sem contemplações. A sua raiva não lhe permitiria mascarar coisa nenhuma naquele momento.

Morgan fora um asno em comprar aquela patente. Um idiota. Não era nenhum soldado, não tinha experiência. O exército também não lhe dera preparação nenhuma, colocando-o assim no comando de vidas humanas como se um título conferisse capacidades militares juntamente com a propriedade. Foi uma bênção não ter havido mais lordes e fidalgos a escolherem fazer sacrifícios tão nobres e dramáticos.

Quantos tinham morrido por causa dele? Qual era a verdadeira razão para o interesse que ele demonstrava pelo escândalo das munições? Teriam os seus próprios erros provocado mortes que nunca seriam vingadas e portanto ele procurava vingar aqueles outros erros?

E agora, Audrianna o amava. A ligação que eles tinham fora palpável na biblioteca. Ela estava aninhada aos pés dele, chorando, aceitando o consolo dele. Dependendo do afeto dele. Ela levara a sua infelicidade ao amigo querido porque sabia que lá encontraria compreensão e carinho. Ela ria e brincava com Morgan, ao passo que ao marido ainda fazia cortesia.

Ele não acreditava no que lhe fizera vê-los. Uma raiva crua dividia-o em pedaços. Seguiu-se a culpa, revoltante. Culpa por não ter dado uma sova em Morgan quando falara pela primeira vez da compra da patente. Culpa por viver a vida do irmão. Culpa por interpretar mal a Morgan a afeição de Audrianna no seio daquela existência diminuída à qual ele estava condenado.

Normalmente reconciliava-se com a culpa. Naquele preciso momento detestava-a e detestava tudo o que estava relacionado com ela. As obrigações. A reserva forçada. As amizades perdidas e as concessões entediantes.

Mas detestava ainda mais constatar que ele e o irmão partilhavam Audrianna como faziam com tantas outras coisas. Enquanto dava zelosamente o corpo ao marido, a Morgan dera livremente uma parte do seu coração.

Principalmente, no entanto, detestava admitir o quanto isso importava.


Capítulo 16


– Dá a impressão de que Lady Ferris tinha razão sobre sua amiga – disse calmamente Wittonbury. – Acho que acredita que sim.

Audrianna limpou os olhos.

– Não acredito em tal coisa. Vou escrever à Celia para perguntar. Quando ela negar, faço Lady Ferris comer a carta.

– E se ela não negar?

Ela sabia aonde ele a conduzia. Não precisava de mapa.

– Terá outras amigas, Audrianna. Antes de passar um mês desde o início da temporada, haverá matronas jovens e compreensivas que procurarão a sua companhia.

Ela encostou-se ao lado do cadeirão dele, sem sair do lugar onde se escondera quando perdera a sua compostura, ao entrar na biblioteca. Não quisera que ele visse as suas lágrimas, e agora não queria que visse a sua reação de rebeldia àquilo que ele insinuava.

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto se mexeu e roçou sutilmente a face. Aquilo a tirou do seu devaneio. Pôs-se de joelhos, depois em pé.

– Obrigada por me deixar esconder e pelo ouvido solidário. Peço desculpa por ter chorado. Espero não ter...

A manta enrodilhada ao lado do seu rosto mexeu-se.

O significado daquilo subitamente penetrou a sua disposição ensimesmada. Ficou olhando para a manta e as pernas invisíveis que aquela cobria. Os braços dele continuavam pousados nos da poltrona. Ele não puxara a manta, nem lhe tocara, ela tinha certeza.

– Há algum fantasma por baixo da minha cadeira? – perguntou o marquês. – Chocada como está, parece que viu algum.

Ela se recompôs.

– Um pensamento me assolou e me deixou desprevenida. Vou deixá-lo. Já abusei o bastante da sua bondade.

– Receio não ter mostrado a compreensão que esperava.

– O seu conselho foi honesto e justo e a sua compaixão sincera. Sinto-me mais grata do que pode imaginar.

Audrianna fechou a porta da biblioteca atrás dela. Depois procurou o Dr. Fenwood. Encontrou-o no quarto arrumando lençóis.

– Senhora. Está acontecendo algo com o meu senhor?

– Acabo de deixá-lo e ele está bem. Quero perguntar-lhe sobre uma coisa. O marquês ainda tem algum movimento nas pernas?

A expressão de Dr. Fenwood ficou triste. Abanou a cabeça.

– Nada mesmo?

– O ferimento foi na coluna. Não tem sensação abaixo da cintura. Nenhuma.

– Existe alguma possibilidade de recuperação?

– Só com um milagre. Houve uma vez um médico, um alemão, que disse que com o tempo... Dizia que vira casos em que o corpo curou a si mesmo ao fim de alguns anos. Um pouco investigada, a reputação do médico veio a revelar-se no mínimo questionável. Não, minha senhora. Receio que o meu senhor permaneça como o vê.

Audrianna deixou Dr. Fenwood. Não levantaria falsas esperanças com tão fracas provas como uma sensação contra o seu rosto. Talvez ela tivesse imaginado a manta se mexendo. Talvez ela tivesse feito alguma coisa que provocasse esse efeito.

Ainda assim, e se a perna tivesse mexido mesmo?

* * *

Quando Sebastian regressou a Park Lane, a meia-noite já soara há muito. A viagem até Greenwich servira em muito para aplacar a sua agitação, e durante algumas horas, enquanto olhava para os Céus através dos telescópios do observatório, esquecera a fúria que havia tomado conta dele. A tempestade não acalmara totalmente quando entrou nos seus aposentos, mas já não desejava dar um murro numa parede.

Preparou-se para a noite. Vestiu o robe e dispensou o criado. Fitou a porta de Audrianna.

Sem dúvida que dormiria, mas diligente como era, não se queixaria se ele a acordasse. E se se importasse, podia sempre ir chorar aos pés do irmão dele no dia seguinte. Queria entrar ali e possuí-la de cinco maneiras diferentes, para se apossar do que era decididamente seu e não se importar com o que muito seguramente não era.

Bastava aquele desejo sombrio para lhe dizer que não devia entrar de maneira nenhuma. Hawkeswell não estava lá para impedi-lo de ser um asno, por isso teria de contrariar aquela inclinação sozinho.

Atirou-se na cama e ficou pensando na conversa com Anderson. Ponderou o que fazer com a informação que recebera. Necessitava investigar em outra direção, mas cuidadosamente. Não queria pôr em causa homens bons que podiam estar no caminho nem suscitar a fúria do Gabinete do Material de Guerra.

Analisava uma estratégia quando a porta do seu quarto de vestir abriu. Audrianna espreitou para dentro do quarto de dormir, muito à semelhança do que fizera quando estava com aquele vestido vermelho.

Não era ainda de noite para pensar naquele vestido.

– Importa-se que eu entre? Sei que é muito tarde.

Lá se iam as nobres intenções. Ela não fazia ideia de que brincava com o fogo. Devia dizer-lhe imediatamente para ir embora.

– Claro que pode entrar. É sempre bem-vinda.

Audrianna atravessou silenciosamente o quarto, com os chinelos aparecendo por baixo da camisa de noite a cada passo. Nellie escovara seu cabelo numa cascata de seda escura. Assaltavam-no imagens eróticas à medida que se aproximava.

Pareceu alegre ao saltar para cima da cama. Empolgada por vê-lo. O que o deixou derretido. Se voltasse a lhe dar um beijo por iniciativa própria talvez só a possuísse de duas formas diferentes. Que diabo, provavelmente recitaria um poema piegas ao mesmo tempo.

– Estava à espera que voltasse. Eu o ouvi no quarto e, quando não entrou, constatei que dada a hora tardia não o faria. – Sorriu. – Foi muito atencioso da sua parte.

– Deve se lembrar de me dizer isso amanhã. O atencioso que sou.

A testa dela enrugou-se.

– Deixa para lá. É tarde e eu não digo coisa com coisa. Fico satisfeito por ter vindo até aqui, uma vez que eu não fui até você.

– Era necessário. Preciso lhe falar de algo muito importante.

Não viera por prazer, nem mesmo pela companhia. Queria alguma coisa. Três maneiras então. Metade da sua atenção começou a rever todas as posições sexuais que já experimentara, como um conhecedor que escolhesse entre vinhos raros.

– Tem a ver com o seu irmão.

De volta às cinco. Pelo menos.

– Diz. – Iria prová-la decididamente. Estava morto por isso desde aquela noite no Duas Espadas. Se assumira o acordo de possuir o corpo de uma mulher e nada mais, mais valia possuí-la completamente e parar de se preocupar tanto com as suas delicadas sensibilidades.

– Hoje de tarde aconteceu uma coisa extraordinária.

Os olhos dela faiscavam de excitação. Ele faria com que aqueles olhos o vissem tomá-la uma das vezes.

– Uma das pernas dele se mexeu. Tenho quase certeza.

Uma cortina desceu imediatamente sobre as imagens do seu êxtase.

Ela acabava de dizer uma coisa tão absurda que só lhe ocorria responder com riso, o que não era possível.

– Eu estava com ele, sentada ao lado dele, e a manta se mexeu. Um movimento pequeno, muito pequeno, mas eu revi o episódio mil vezes na minha cabeça e tenho certeza de que se mexeu.

– Disse antes que tinha quase certeza. Agora tem certeza. Qual das duas?

– Está chateado?

– Não estou chateado. Mas está enganada e, insisto, ele sofrerá uma desilusão tremenda. Você o lançará numa melancolia da qual ele pode nunca recuperar.

Ela acenou com a cabeça e ficou pensativa.

– Não estou quase certa. Tenho certeza.

Ele se limitou a mirá-la. Se ela tinha certeza, é porque tinha. Não era mulher de se deixar levar nas asas da fantasia.

Ele saiu da cama, foi até uma janela e abriu-a. O ar da noite estava frio, mas não se importou. Ficou olhando para lugar nenhum enquanto o frio aclarava as ideias.

– Houve um médico, um alemão, que dizia que havia esperança. Aconselhou certos exercícios. O meu irmão não conseguia suportá-los e parou bastante rápido.

– Eu sei. O Dr. Fenwood me disse.

Ele olhou logo para ela.

– Contou-lhe isso?

– Só perguntei se o dano era total e permanente. Nunca tinham explicado antes, por isso pensei que talvez tivesse havido algum pequeno movimento.

Ele voltou a se concentrar na noite.

– Não sei o que fazer com isso. Ele é tão... frágil. A saúde dele, o espírito dele...

– Se há uma possibilidade, com certeza que ele quererá tentar para ver se consegue voltar a ser inteiro.

– É o que seria de pensar, mas não tenho certeza. – Virou-se para ela. – Eu falo com ele. Tenho de encontrar um bom momento, em que me pareça que ele ouvirá razoavelmente. Não fale disto a mais ninguém. Especialmente, não mencione à nossa mãe.

Ela assentiu com a cabeça. Juntou todos os folhos brancos e começou a descer da cama.

– Onde você pensa que vai, Audrianna?

Ela parou no meio do caminho.

– Para o meu quarto. Dormir.

– Não me parece.

Ela voltou a se sentar. Aquela espuma branca envolvia-a e o cabelo caía pelo corpo. Da tempestade, só havia resquícios agora, mas a expectativa silenciosa saturava o ar e o corpo dele respondeu energicamente.

Ele ardia. Já não de irada possessividade, mas com chamas que excitavam mais do que o corpo. Ele ainda queria tomar as partes dela que eram suas de direito, mas a conversa havia pelo menos suavizado os traços mais negros do seu desejo.

De qualquer forma, não se sentia muito cavalheiro naquela noite.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Os seus pensamentos aumentavam a profundeza do seu olhar. O tempo abrandou, pulsando entre eles, e também dentro dela. Pequenas batidas de expectativa crescente a provocavam.

Talvez quisesse devassá-la com a sua mera presença. Ele ainda conseguia aquilo. E estava ficando pior, não melhor. Ou talvez ele ponderasse se o prazer com ela valeria o tempo naquela altura. A noite avançara, e estavam mais perto da aurora do que do crepúsculo.

– É muito tarde – disse ela, quando a expectativa a deixara tensa. – Talvez amanhã...

– Não. Você veio até aqui. Não pode ir embora já.

– Não vim para isso. Não tem qualquer obrigação. Se está cansado ou...

– Ou o quê?

– Saciado.

Ela aceitara a localização mais provável dele quando o seu relógio passara das duas. Estupidamente, fora um choque, aquela súbita explicação. O mundo inteiro a avisara. Ela aceitara o inevitável e, contudo, quando aconteceu, ela ficara surpreendida e... magoada. Muito magoada. Durante um longo minuto, um minuto horrível, o peso no seu coração ficou insuportável de carregar.

Ela esperara que a alusão o divertisse. Ou irritasse. No entanto, talvez o tivesse surpreendido. Olhava para ela muito à semelhança de quando ela anunciara que a perna do irmão tinha se mexido.

Ele ficou pensativo e taciturno. Ameaçador. O olhar dele inflamou-se e ela sentiu um arrepio no seu íntimo.

– É isso que pensa? Às vezes consegue ser mesmo inocente, Audrianna. Eu não fico me convencendo a querê-la, por obrigação. Estou resistindo a despi-la já e a tomá-la sem cerimônia, ou...

Aquele “ou” ficou suspenso, como uma provocação perigosa. Ela reconheceu a tensão nele, visível agora no seu corpo e rosto. Ele tinha razão. Às vezes ela conseguia ser inocente. Aquela noite ele achara aquilo inconveniente. Ainda assim, não procurara alguém menos inocente.

Ela pegou na bainha da camisola.

– Não é minha intenção negar a você a parte do despir, mas preferia que isso não se rasgasse. – Deixou que o tecido deslizasse pelos ombros, e retirou os braços das mangas. Amontoou-se à volta das coxas.

Fosse qual fosse o debate dele, terminou ali. Fitou-a por mais algum tempo, o bastante para deixá-la corada e palpitante. A seguir, foi até a cama. Não se deitou. Ficou de pé ao lado dela, a seda negra do robe em frente ao seu rosto. A mão dele esticou-se e afagou levemente um mamilo.

Foi o suficiente para reunir todas as sensações torturantes numa fome concentrada. Era impudica, realmente, a facilidade com que ela sucumbia agora.

– Olha para mim.

Ela ergueu os olhos enquanto aquela leve carícia a provocava sem misericórdia. O seu corpo saboreava o prazer que alastrava.

– Me toque.

Ela esticou a mão para a seda negra. Deslizou nela as palmas das mãos, delineando o peito dos ombros à cintura, sentindo os ângulos e as elevações do seu tronco. Ele continuava a enlouquecê-la. Tocava-a com ambas as mãos agora. Dedos maliciosos fizeram o seu pior até o próprio toque dela precisar de mais. Transferiu as mãos para debaixo da seda e acariciou-o com mais firmeza, comprazendo-se com a sensação da pele nos seus dedos.

– Me beije.

Não eram pedidos nem instruções. Proferia ordens, que esperava serem obedecidas.

O rosto e a boca dele estavam altos demais. Ele não se inclinou. Ela compreendeu que não se referira à boca. Inclinou-se, até os lábios tocarem o calor do tronco dele. Passou a língua, para provar. Um novo prazer fluiu, quente e misterioso, como uma corrente profunda, por baixo das outras.

Fascínio agora, pela sensação do corpo dele. Pela superfície suave de veludo da sua pele e da forma dura que esta cobria. Encolheu as pernas debaixo de si e ajoelhou-se para acariciar mais livremente. Seguiu músculos e braços e ombros com as mãos e a boca.

Empurrou o roupão dos ombros para sentir mais dele. O roupão caiu no chão e ele ficou ali de pé, mais nu do que ela alguma vez o vira, a sua força e beleza masculinas, a sua excitação, completamente visíveis.

Ela estendeu os braços e o acariciou por todo o comprimento, continuando a olhar. Os seus olhos chegaram ao seu belo rosto, duro agora, da tensão da paixão.

– Me toque. – O seu olhar a penetrava. Conhecedor. Exigente. Ela não podia fingir que não compreendia o que ele lhe dizia. Olhou para baixo e, hesitante, tocou no falo com as pontas dos dedos. Retesou-se ainda mais. O corpo inteiro, aliás.

Ofegante tanto de excitação como da sua própria audácia, ela fez deslizar os dedos pelo comprimento dele.

Ele a empurrou e ela caiu na cama. Ele a seguiu, colocando-se acima dela e descendo a cabeça para beijá-la profundamente, pondo depois a boca aos seus seios.

Ela agarrou no ombro dele com um braço e continuou a acariciá-lo com o outro. O prazer e a intimidade eram celestiais, e ela lutou para não perder a si mesma e à sua consciência daquilo.

Ele olhou para o que ela fazia, e depois para os olhos dela.

– Aquele dia no jardim, quando lhe dei o colar.

– Sim?

– O que acha que teria acontecido se eu não tivesse parado?

A mente dela voltou à surpresa daquele dia. À forma como ele beijara sua perna, depois a coxa.

– O que desejou que acontecesse? – perguntou ele.

Ela não desejara nada. De verdade. Mas o seu escandaloso corpo de mulher previra algo muito devasso, e chocante demais para ser dito.

Ele viu nos olhos dela. Ela sabia o que ele vira. Ele beijou sua face, depois o seio. O corpo dele desceu. A respiração dela encurtava a cada segundo. A reação física que experimentou apanhou-a desprevenida. As sensações da noite desceram também, produzindo uma sensibilidade vital e erótica.

Quando abriu as pernas, fechou os olhos, para se esconder dele e de si mesma. Instintivamente a sua mão mexeu-se num gesto de pudor.

Ele beijou sua coxa.

– Não irá me deter. Você é minha. Toda.

Ele a encantou com beijos que suavizaram aquela ordem. Toques devastadores garantiam que ela não o deteria e preparavam-na para o resto. Quando veio, ela já não estava chocada, já não queria recuar.

Abandonou-se a um prazer violento, inconcebível, que a deixou desamparada e gritando como louca até atingir uma libertação gloriosa que obliterou todos os outros sentidos.

Depois ele voltou a ela, para dentro dela, numa união furiosa e selvagem que fez o prazer reverberar pelo corpo num eco longo e delicioso.

* * *

A aurora rompeu com Audrianna ainda nos seus braços. Ele ainda estava entrelaçado nela, no lugar onde caíra depois de o clímax o rasgar por dentro.

Saiu de cima dela com todo o cuidado. Mesmo assim a acordou. Ela se virou de lado e abriu os olhos. O olhar que lhe dirigiu era consciente, e tinha também um laivo de confusão e constrangimento.

O embaraço passou rapidamente. A nudez cria familiaridade, e ela reconheceu a junção de ambos, que marcara o casamento deles desde a primeira tarde.

Em breve, cada um seguiria o seu caminho. Ele para os seus planos e ela para os dela. Naquele momento, porém, ele adiou tudo e deixou-se embalar pela quietude da manhã.

– A temporada iniciará em breve e estaremos ambos ocupados noite e dia. Antes que comece a acelerar, quero levá-la à propriedade da família e apresenta-la às pessoas de lá. Esperarão que o faça.

– Eu ia gostar. Tenho saudades do campo, agora que voltei a passar o tempo todo na cidade.

– Ficamos por lá um tempo, se gostar. Partimos no fim desta semana.

– Na semana que vem seria melhor.

– Há uma coisa que devo fazer no caminho, que não devo atrasar. Por que seria melhor na semana que vem?

– A sua mãe tem planos para mim, para o final da semana.

– Ela pode mudar os planos. Iremos na quinta-feira, portanto diga à Nellie que prepare tudo.

Ela não tinha pressa de sair daquela cama. Aquilo lhe agradou. A tempestade do dia anterior estava a quilômetros de distância. A noite espantara aquelas nuvens por mais algumas horas, pelo menos.

– Há outra coisa que tenho que te dizer – começou Audrianna.

Ela não tinha o hábito de conversar na cama. A sua abordagem fez surgir uma desconfiança instintiva muito masculina. Se ela fosse uma mulher diferente, seria aquele o momento em que começaria com falas mansas, envolvendo-o para ele lhe dar presentes caros.

– Mais alguma coisa sobre o meu irmão?

– Não. Muito pior, e me aflige. Lady Ferris disse ontem à sua mãe que a Celia é filha de uma cortesã, trazida para a cidade há alguns anos para se juntar à mãe no negócio.

Uma memória surgiu, da filha de uma célebre mulher do prazer, criada no campo, que estava sendo treinada pela mãe. Fez-se um leilão da virgindade dela que se tornou conversa obrigatória nos clubes. Ele não tinha participado, mas muitos sim. Dizia-se que a moça era encantadora e a soma foi elevada.

– Vou escrever à Celia e perguntar se é verdade – disse Audrianna.

– É a atitude mais sensata.

– Se for verdade, não a convidarei para vir aqui. Respeitarei os desejos da sua mãe quanto a isso e não a receberei nem serei vista com ela.

– Lamento dizer que nisto a minha mãe está certa. Lamento que tenha de ser assim.

– Compreendo o porquê de ser assim. Quero lhe dizer, porém, que não cortarei relações completamente com ela nem com as outras, como exige a sua mãe. Eu as visitarei em segredo e não chamarei atenções sobre mim, mas não abandonarei as minhas amigas.

Não lhe escapou que ela não lhe pedia permissão ou conselho.

– O meu irmão sugeriu esta opção?

– De jeito nenhum. Ele concordou com a sua mãe em todos os pontos.

– Assim como eu.

– Elas não me rejeitaram por causa da desgraça do meu pai; pelo contrário, me aceitaram no seu lar. Não me expulsaram quando o nosso escândalo ameaçou manchá-las por tabela. Devo ser tão leal com elas como foram comigo.

– E se eu proibir?

– É minha esperança que não dê uma ordem tão sem sentido.

Provavelmente ele poderia ordenar aquilo que quisesse, que ela faria como lhe aprouvesse.

Naquele momento, não se importava nem um pouco com aquilo. Ela também sabia. Planejara muito cuidadosamente o momento de lhe comunicar.

Ele chamou-a para si. Naquele preciso momento, estava mais interessado em comandar em coisas a que ela gostasse de obedecer.

Dois dias depois, Sebastian contou ao irmão sobre a história de Anderson. As notícias deixaram Morgan abatido, como acontecia com todos os relatos do massacre.

– Comunicarei isso ao exército, claro, e ao Gabinete do Material de Guerra. No entanto, tentarei também descobrir a origem da pólvora.

– É pouco provável que descubra.

– O barril tinha marcas. Verei o que consigo descobrir. Não é muito, mas é mais do que tinha há um mês.

– Não se sinta obrigado a bancar o detetive por minha causa. Sei que é essa a razão pela qual não abandonou ainda o assunto.

– No início, sim, mas no momento tenho outros motivos. Agora faço isso pelo Anderson. E confesso que tenho esperança de descobrir que o Kelmsleigh era inocente.

– E se não era?

– Ele já pagou, por isso, de qualquer forma, tudo estará concluído.

– Isso seria bom. Ver tudo concluído.

Disse aquilo com melancolia, mas não com o tom vago e triste que tantas vezes empregava.

– A sua disposição tem melhorado nos últimos tempos, Morgan. Aquelas melancolias profundas parecem estar deixando-o em paz.

– Como o tempo está esquentando, convenci o Dr. Fenwood a me mudar para a janela durante a tarde. Por poucos que sejam, aqueles minutos de ar fresco têm me dado melhor saúde, acho eu.

– Fico contente em ouvir isso. Queria falar disso também. Estou curioso. Tem havido alguma mudança nas suas pernas?

– Não, claro que não.

– Nenhuma, nem um pouco? Nenhuma sensação? Nada?

– Que perguntas esquisitas. Por que isso agora?

– A sua coluna não foi esmagada nem partiu. Há sempre a possibilidade de...

– Não há possibilidade nenhuma, diabos te levem! Parece aquele charlatão alemão.

– As teorias dele eram controversas, mas ele era um cientista de renome. – Sebastian esperou que o acesso de cólera de Morgan acalmasse. – A Audrianna esteve contigo há alguns dias. Sentada no chão ao lado da sua poltrona.

– Ela estava perturbada porque ficou sabendo que uma das amigas não é como ela pensava. Deve lhe dizer para cortar relações com a moça.

– Não estava falando da razão de ela lá estar. Ela me contou que quando estava assim sentada, a manta mexeu. O que significa que a perna que está por baixo da manta deve ter se mexido.

– Ela se enganou. – O rosto dele voltou a ficar tenso. – Ela não me disse nada disso. Se o tivesse feito, rapidamente a teria aliviado dessa ilusão impossível.

– Não, contou a mim. Não fique zangado com ela. E mesmo tendo grande afeto por você e rezando para estar certa, Audrianna não é dada a ilusões. Viu a manta mexer? Sabe de outra explicação, da qual ela não esteja a par?

Os olhos dele faiscavam como os de um homem desejoso de esmurrar alguém.

– Volto a perguntar. Tem havido alguma sensação? Qualquer que seja?

– Não, raios!

– Acho que está mentindo.

– Por que mentiria para você?

– Não a mim. A você mesmo. E não faço a menor ideia do motivo. – Levantou-se e contornou a mesa. Agarrou na poltrona de Morgan, puxou-a e a girou.

– Mas que raio...? – gritou Morgan.

Sebastian tirou a manta de cima dele.

– Não conseguiria andar agora, nem que estivesse completamente curado, por isso até a mais pequena mudança será sutil. Mas tenta...

– Você está é doido. Sai daqui!

– Tentará, maldição! Se há uma possibilidade, por mais pequena que seja, tem que tentar.

– Possibilidade? Não há possibilidade nenhuma, seu louco! E quem é você para decretar que eu tenho de tentar? Sou eu quem está preso aqui. É da desgraça da minha vida de que estamos falando!

Sebastian avançou para a porta em passadas largas.

– Fenwood, chegue aqui.

Fenwood entrou apressado.

– Tire-o daqui – ordenou Morgan, apontando para Sebastian.

Fenwood olhou para Sebastian, desconfiado.

– Fenwood, a minha mulher diz que houve movimento. Pequeno, quase impercetível. Chame os médicos para o examinarem. E não ponha a manta em cima dele a não ser que ele precise dela para se aquecer. Fique você mesmo atento, vendo se há movimento.

Morgan estava quase apoplético.

– Não tenho de aturar isso!

– Só me faltava deixá-lo aceitar isso se há uma possibilidade de melhorar. – Sebastian agarrou nos braços da poltrona de Morgan e aproximou-se dele. – Vai deixar os médicos o examinarem e se encontrarem algum sinal de esperança vai lutar por essa possibilidade. Eu o obrigo.


Capítulo 17


O cavalo de Sebastian atravessou a Real Fábrica de Pólvora de Waltham Abbey. Quatro anos antes as ruas estariam movimentadas e os canais cheios de barcas de transporte de materiais e barris de pólvora. Desde o fim da guerra, porém, que aquela complexa fábrica de Essex tinha apenas um décimo da sua anterior produção e os pátios e edifícios estavam silenciosos.

Ainda funcionava, porém. Os homens ainda transportavam enxofre para o edifício da mistura. Outros queimavam carvão, que tinha o mesmo destino. Ainda saía fumo da fundição onde se preparava o salitre. Os tanoeiros serravam e martelavam para fazer os barris.

Os homens com os trabalhos mais perigosos perambulavam no exterior do moinho. Lá dentro, os ingredientes, cuidadosamente misturados, eram triturados. Ao lado da estrutura em tijolo, uma enorme roda hidráulica fazia o trabalho, enfiada no ribeiro Millhead.

Um dos homens entrou correndo para verter água na pedra grande, para a volátil pólvora não se colar à superfície do moinho. Todos ali, na fábrica como na cidade, arriscavam o desastre de uma explosão todos os dias, mas ninguém mais do que os homens que trabalhavam no moinho.

No fundo do caminho, e seguindo um canal, Sebastian encontrou os escritórios. Entrou e apresentou-se ao funcionário.

Outro homem, alto e magro, mas robusto, de sobrancelhas abundantes e traços muito vincados, apareceu e apresentou-se como Mr. Middleton, o paioleiro. Chamou Sebastian para o escritório interior. O seu rosto rústico estava vincado de preocupação.

– Não tivemos nada a ver com esse assunto, senhor.

Sebastian ainda não identificara o assunto, mas não ficou nada surpreendido por Mr. Middleton ter adivinhado. Todos os administradores das fábricas reais saberiam quem se mostrara interessado em pólvora ruim.

– Tenho esperança de que possa me ajudar a descobrir quem tem. Não estou aqui para pô-lo em cheque.

– Não serviria de nada. Só recentemente ocupei esta posição. Mr. Matthews esteve aqui antes de mim.

– Então como sabe que esta fábrica não teve nada a ver com o assunto?

– Somos uma fábrica de pólvora real, senhor. Somos propriedade da Coroa, como sabe, juntamente com as de Flavesham e Billingcollig. O pai de Mr. Congreave dedicou a sua vida a garantir que o nosso exército e marinha tivessem a melhor pólvora, e temos orgulho da qualidade que produzimos aqui. Melhor do que as outras fábricas da Coroa. Foi provado pela ciência.

– Mr. Middleton, o senhor é o paioleiro. Traga para cá os materiais e tira daqui a pólvora.

– Correto.

– Conhece todos os processos, e o transporte?

– Sim, conheço.

– Com esse conhecimento, consegue perceber como é que aquela pólvora adulterada chegou à frente de combate?

Ele ponderou a pergunta.

– Não tem como acontecer.

– Aconteceu. Não explodiu, e não estava molhada. A única explicação é a adulteração causada por maus materiais ou trituração incorreta.

A realidade distanciava-se muito da visão do mundo de Mr. Middleton. Continuou a abanar a cabeça.

– Não pode acontecer na fábrica, fosse ela qual fosse – disse enfaticamente. – Muitas pessoas envolvidas. Muitas verificações e muitos testes. Muitos olhos.

– E se não tiver sido nesta fábrica, nem em outra fábrica real? Durante a guerra também se usaram fábricas privadas. Nem toda a pólvora veio de fábricas pertencentes à Coroa.

– A maior parte sim, mas não, algumas não. Não obstante, eram exigidos os nossos níveis de qualidade. Mesmo se acontecesse um erro terrível, seria apanhado no arsenal. É testada lá.

– Todos os barris?

Mr. Middleton apertou os lábios.

– Não todos, acho. Cada lote. A produção de cada dia. Nós testamos aqui e eles testam lá.

– É possível que, sabendo que era testada nas fábricas, alguém pudesse descuidar-se e não testá-la como definido no arsenal?

– Negligência, diz o senhor. Possível, mas há outras pessoas por perto. A pólvora é um assunto sério, senhor. Não há muito que seja deixado à sorte.

Sebastian tirou um pedaço de papel do bolso.

– A pólvora estava em barris com estas marcas. Isto lhe diz alguma coisa?

Middleton olhou para o papel e os desenhos que tinha.

– Aquela é a marca do Gabinete do Material de Guerra. Significa que passou no arsenal e foi verificado. – Levantou os olhos e corou. – O lote, como disse, talvez não este barril em particular.

– E a outra marca?

Middleton abanou a cabeça.

– Não a reconheço... Não, espere, talvez... – Pegou a caneta. Num pedaço de papel, copiou a marca do barril, depois desenhou mais duas linhas. – Veja. Pode ser isto, o que a marca era. Pode ter se apagado ou ter sido descuido de quem marcou. – Estendeu a ele ambos os papéis. Sebastian viu que os dois traços adicionais convertiam D & F em P & E.

– Não há nenhuma fábrica D & F – retomou Middleton. – Mas P & E refere-se à fábrica Pettigrew & Eversham. Era uma das muitas que despontaram durante a guerra, para fazer lucro. E ter algumas más explosões. As privadas nem sempre são tão cuidadosas com isso. Podemos controlar a qualidade daquilo que fazem, mas não como o fazem. Não é um passatempo para amadores.

Não, realmente. Houvera algumas explosões e fogos graves naquelas fábricas. Era uma das razões que o levara a deixar Audrianna na estalagem que tinham usado na noite anterior. Duvidava de que os trabalhadores dali alguma vez se esquecessem que bastava um derramamento, um deslize, para irem todos para o céu.

O quebra-cabeças captara agora a atenção de Middleton. Pegou novamente os papéis e começou a matutar sobre aquele que Sebastian trouxera.

– Põem a marca depressa, diria. É descuidado.

– Possivelmente não. O desenho provém de um artilheiro que sobreviveu. É da memória dele, e pode ser impreciso ou incompleto.

– Ele lembrava-se de mais alguma coisa?

– Não com muita certeza. Só disse que o barril foi fácil de abrir. Mais do que o normal. É importante?

– É impossível saber. Sugere, no entanto, que o barril foi aberto antes. Possivelmente no arsenal.

Middleton não teve de dizer expressamente, nem o faria. Se o barril tinha sido aberto no arsenal, teria sido para testes. Sendo assim, alguém olhara para o outro lado quando saíra a indicação de que era de má qualidade.

– Qual a localização desta fábrica? Pettigrew & Eversham?

– A propriedade fica no Kent – informou Middleton. – No entanto, com o fim das hostilidades, como outras arrivistas, fechou. Acho que a fábrica foi vendida.

– Obrigado, Mr. Middleton. Foi de uma ajuda imensa.

O semblante de Middleton anuviou-se.

– Não lhe disse nada digno de nota. Confio que reconheça e que não informe ninguém da minha prestabilidade.

– Tanto quanto o Gabinete do Material de Guerra possa vir a saber, dando-se o caso de virem sequer a tomar conhecimento desta conversa, o senhor apenas me garantiu a impossibilidade de sair pólvora adulterada de uma fábrica real.

Sebastian amarrou o cavalo à carruagem, subiu para o lado de Audrianna e ordenou ao cocheiro que avançasse.

Ele não lhe dissera aonde ia quando a deixara à espera na estalagem e saíra a cavalo. Podia ter tido um desejo irresistível de se atracar com uma criada num campo próximo, tanto quanto ela sabia.

– Enquanto estamos em Airymont, terei de percorrer a propriedade – disse ele. – Anda a cavalo? Pode vir comigo. Os rendeiros irão apreciar se fizer isso.

– Ando. E também canto, desenho e toco razoavelmente o piano. A minha mãe, tal como tantas outras, acreditava que as jovens deviam saber essas coisas.

Ele a olhou de relance, como se para ver se ela se insultaria com a sua pergunta. Ela sorriu para informá-lo de que a sua resposta fora uma brincadeira. Principalmente.

Ele instalou-se para prosseguir viagem. Havia obviamente pensamentos que o ocupavam, mas ele não parecia inclinado a partilhá-los com ela.

– Soube de alguma coisa interessante na reunião?

Ele encolheu os ombros.

– Foi uma breve conversa de negócios.

– Os seus negócios são a política e o governo. Provavelmente receou de me aborrecer e me deixou aqui para me poupar. Foi gentil da sua parte.

Ele pareceu realmente satisfeito com a gratidão dela. E aliviado?

– No entanto, não seria nada entediante ouvir você falar disso. Absolutamente nada. Tenho muita curiosidade acerca da governação.

– Não foi nada de interessante, garanto. – Atirou aquele sorriso, para incitá-la a pensar em outras coisas, ou mesmo a não pensar em nada além dele.

– A paisagem rural do Essex é lindíssima – comentou Audrianna, sonhadora, olhando pela janela. – É difícil acreditar que existe uma fábrica a poucos quilômetros com o potencial de destruir tudo aquilo para que estamos olhando neste momento. A oficina Waltham Abbey fica ali à beira-rio, mais para baixo.

– Acho que fica, agora que menciona.

– Agora que menciono? Esqueceu assim tão rápido? Mas nem sequer há uma hora esteve lá.

Sentiu-se mortificado, depois resignado por ela ter descoberto.

– Não fiquei sabendo de absolutamente nada de interesse – voltou a sossegá-la.

– Eu expliquei que seria eu a decidir o que para mim era de interesse sobre esta matéria.

– Está se irritando sem motivo. Apenas falei com o armazenista, e aprendi alguma coisa sobre o processo de embarrilagem e transporte da pólvora. Não a levei porque é perigoso ficar ali.

Ela conseguiu reduzir a raiva crescente a um pequeno fervilhar. Analisou o rosto atraente de Sebastian. Sorridente. Apaziguador. Inocente.

Mentia. Não diretamente, mas ela devia ter estado lá. Ele soubera algo daquele paioleiro que o preocupava. Via em seus olhos quando os tirava dela.

Ela se esticou e pousou a luva na dele.

– Peço que me diga, por favor, o que ficou sabendo.

Já não sorria. Sério agora. Pegou na mão dela e a beijou.

– Não pergunte.

– Devo perguntar.

Ele suspirou, com a exasperação de um homem encurralado.

– Soube que a pólvora não pode chegar à frente de batalha sem alguém o autorizar deliberadamente, depois de saber que estava inutilizada.

Ela sentiu um aperto no coração. Não fora negligência, então.

– Foi uma conspiração. Um plano. Como você suspeitava.

Ele assentiu com a cabeça.

As implicações eram inaceitáveis, de tão desconsoladoras.

– Era por isso que eu queria ter ido com você. Acho que ouve o que quer ouvir, para confirmar as suas teorias.

O olhar dele penetrou no dela.

– Acredita mesmo que me daria a tanto trabalho para magoá-la e pôr mero orgulho à frente da sua felicidade?

Ela não queria pensar assim, mas ele tinha fome de culpados como ela tinha de justiça.

– Você é melhor do que isso. Acho, porém, que não é só o orgulho que o faz investigar. Acho... Acho que faz isso por causa do seu irmão, e da vida que deve partilhar com ele agora, e a maneira como ele foi ferido. Não me parece que a minha felicidade tenha significado algum nessa sua busca. Eu sou, afinal, um acrescento tardio, inesperado e inconveniente.

A sua reação de irritação a impressionou. Assustou-a. Parecia que o esbofeteara. Que o desafiara. O olhar dele dizia-lhe que havia dito algo que não devia.

Ela desviou o olhar, para pôr um fim à discussão. Não seria assim.

– Há mais alguma coisa que queria dizer? – perguntou ele rispidamente.

Ela reuniu coragem.

– Mesmo que tenha sido assim que aconteceu, com um plano, o meu pai não esteve envolvido.

– É muito possível que não.

– Seguramente que não.

Ele limitou-se a olhar para ela.

Ela deixou que a carruagem colocasse alguns quilômetros entre eles e a discussão. Depois fez uma pergunta acerca de Airymont, para mudar de assunto. Ele demorou a responder.

Durante uma hora, a conversa discorreu com coisas pequenas, sem importância, e ela tentou ignorar que a ferida tinha sido remexida com tanta força que sangrava.

 


CONTINUA