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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DESTRUA-ME / Tahereh Mafi
DESTRUA-ME / Tahereh Mafi

 

 

                                                                                                                                                

 

 

 

 

 

Atiraram em mim.
E por incrível que pareça, um ferimento a bala dói muito mais do que eu havia imaginado.
Minha pele está fria e pegajosa, estou fazendo um esforço enorme para respirar. A dor no meu braço direito é excruciante, e tenho dificuldade em me concentrar. Tento fechar os olhos com força, ranger meus dentes, e me forço a prestar atenção.
O caos é insuportável.
Várias pessoas estão gritando e muitas delas estão me tocando, e desejo que alguém remova aquelas mãos do meu corpo. Elas não param de gritar — Senhor! — como se ainda estivessem esperando por mim para lhes dar ordens, como se não soubessem o que fazer sem minha ajuda. Perceber isso me deixa exausto.

— Senhor, pode me escutar? — Outro grito. Mas desta vez, uma voz que não detesto.

— Senhor, por favor, está me escutando...

— Levei um tiro, Delalieu. — É o que consigo balbuciar. Abro meus olhos. Vejo seus olhos marejados. — Não estou surdo.

De repente todo o barulho desaparece. Os soldados se calam. Delalieu me olha. Preocupado.

Dou um suspiro.

— Me leva de volta — digo a ele, me mexendo um pouco. Parece que o mundo está rodando, mas de repente se estabiliza. — Alerte os médicos e peça que preparem um leito para a nossa chegada. Enquanto isso suspenda meu braço, e continue a pressionar diretamente no ferimento. A bala trincou ou quebrou alguma coisa e vou precisar de cirurgia.

Delalieu não diz nada por um momento longo demais.

— É bom saber que está bem, senhor. — Sua voz parece nervosa, trêmula. — É bom ver que o senhor está bem.

— Isso foi uma ordem, tenente.

— Claro — ele responde prontamente, com a cabeça curvada. — Certamente, senhor. Como devo instruir os soldados?

— Encontre-a — digo a ele. Está ficando cada vez mais difícil falar. Respiro com dificuldade e passo uma mão trêmula pela minha testa. Estou transpirando copiosamente, e esse fato não me passa despercebido.

— Sim, senhor. — Ele tenta me levantar, mas eu seguro seu braço.

— Uma última coisa.

— Senhor?

— Kent — digo, minha voz parece desigual agora. — Faça com que eles o deixem vivo para mim.

Delalieu ergue os olhos, arregalados.

— O soldado Adam Kent, senhor?

— Sim. — Olho dentro de seus olhos. — Eu mesmo quero lidar com ele.

 

 



 

 


Capítulo 1

Delalieu está parado aos pés da minha cama com uma prancheta na mão.

Sua visita é a segunda que recebo esta manhã. A primeira foi dos meus médicos, que confirmaram que correu tudo bem na cirurgia. De acordo com eles, se eu ficar em repouso esta semana, as novas medicações que me deram devem acelerar o processo de cura. Também disseram que eu poderia retornar às minhas atividades diárias em breve, mas iria precisar usar uma tipoia por um mês, no mínimo.

Disse a eles que era uma teoria interessante.

— Minhas calças, Delalieu. — Estou sentado, tentando estabilizar minha cabeça devido aos enjoos provocados pelos remédios. Meu braço direito não serve para nada agora.

Ergo meus olhos. Delalieu está me encarando sem piscar. Seu pomo de adão está se movendo para cima e para baixo.

Seguro um suspiro.

— O que é? — Uso meu braço esquerdo para me apoiar no colchão e me obrigo a me endireitar. Reúno toda a energia que me sobrou e consigo me segurar na beirada da cama. Faço um sinal com a mão para afastar Delalieu e evitar que ele venha me ajudar; fecho os olhos para não sentir a dor e a tontura. — Conte o que aconteceu — digo a ele. — Não faz sentido prolongar as más notícias.

Sua voz hesita ao declarar:

— O soldado Adam Kent escapou, senhor.

Meus olhos piscam e fica tudo branco sob minhas pálpebras.

Respiro fundo e tento passar a mão boa pelos meus cabelos. Eles estão ásperos e cobertos pelo que parece ser terra misturada com meu próprio sangue. Fico tentado a dar um soco na parede com o punho que me restou.

Ao invés disso, faço uma pausa para me recompor.

De repente percebo com mais nitidez tudo o que se passa à minha volta, os cheiros, os pequenos ruídos e os passos do lado de fora da porta. Detesto essas calças de algodão áspero que colocaram em mim. Detesto não estar usando meias. Quero tomar um banho. Quero me trocar.

Quero colocar uma bala na coluna vertebral de Adam Kent.

— Pistas — exijo. Vou em direção ao banheiro e estremeço só em sentir o ar gelado em contato com minha pele; ainda estou sem camisa. Tento me manter calmo. — Não me diga que me trouxe essa informação sem fornecer nenhuma pista.

Minha mente parece um armário onde estão, cuidadosamente, organizadas as emoções humanas. Quase posso ver meu cérebro funcionando, armazenando pensamentos e imagens. Ponho de lado as coisas que não me são úteis. Me concentro apenas no que precisa ser feito: os componentes básicos de sobrevivência e a infinidade de coisas que preciso fazer durante o dia.

— É claro — Delalieu responde. O medo em sua voz me incomoda um pouco; tento deixar isso de lado. — Sim, senhor — ele diz —, nós acreditamos saber para onde ele deve ter ido e temos motivo para acreditar que o soldado Kent e a — e a garota — bem, como o soldado Kishimoto também fugiu — temos razão para acreditar que eles estão juntos, senhor.

Os compartimentos do meu cérebro estão rangendo para se abrir. Lembranças. Teorias. Sussurros e sensações.

Empurro tudo para longe.

— Claro que sim. — Sacudo a cabeça. Me arrependo. Fecho meus olhos novamente para evitar a tontura repentina. — Não me dê uma informação que eu mesmo já deduzi — consigo dizer. — Quero algo concreto. Me dê uma pista real, tenente, ou só me procure quando tiver uma.

— Um carro — ele completa rapidamente. — Notificaram o roubo de um carro, senhor, e conseguimos rastreá-lo a um local desconhecido, mas então ele desapareceu do radar. Foi como se tivesse deixado de existir, senhor.

Ergo os olhos. Estou atento ao que ele diz.

— Seguimos as pistas que ele deixou no nosso radar — ele diz, falando com mais calma agora — e elas nos levaram a um trecho isolado, a um enorme terreno baldio. Vasculhamos a área e não encontramos nada.

— É alguma coisa, pelo menos. — Massageio o pescoço, lutando contra a fraqueza que sinto dentro dos meus ossos. — Encontro você na Sala L em uma hora.

— Mas, senhor — ele comenta, os olhos presos no meu braço —, o senhor vai precisar de assistência médica — está em tratamento — vai precisar de ajuda para se recuperar...

— Está dispensado.

Ele hesita.

Então concorda:

— Sim, senhor.


Capítulo 2

Consigo tomar banho sem desmaiar.

Foi um banho de gato, com a esponja, mas mesmo assim me sinto melhor. Tenho uma tolerância extremamente baixa para a desordem; ela ofende meu ser. Tomo banho diariamente. Faço seis refeições ao dia. Dedico duas horas todos os dias para treinamento e exercícios físicos. E detesto andar descalço.

No entanto, estou aqui parado agora, nu, faminto, cansado e descalço no meu closet. Isso não é nada bom.

Meu closet é separado em várias seções. Camisas, gravatas, calças, blazers, e botas. Meias, luvas, cachecóis e casacos. Tudo arrumado de acordo com a cor, e depois com os tons de cada cor. Cada peça de roupa guardada aqui foi escolhida meticulosamente, e feita sob medida para servir perfeitamente no meu corpo. Não me sinto eu mesmo até estar completamente vestido; faz parte de quem eu sou e de como começo o dia.

Agora não tenho a mínima ideia do que devo vestir.

Minhas mãos tremem ao pegar um vidrinho azul que me deram essa manhã. Coloco duas das pílulas quadradas na minha língua e as deixo dissolver. Não tenho certeza para que elas servem; só sei que ajudam a recuperar o sangue que perdi. Me encosto na parede até minha cabeça clarear e sentir mais força nos pés.

Isso, uma tarefa tão simples. Está sendo um obstáculo que eu não esperava.

Primeiro coloco as meias; um prazer simples que exige mais esforço do que atirar num homem. Por um instante penso no que os paramédicos fizeram com as minhas roupas. As roupas, digo a mim mesmo, apenas roupas; estou me concentrando apenas nas roupas agora.

Nada mais. Nenhum outro detalhe.

Botas. Meias. Calças. Suéter. Meu casaco militar com tantos botões.

Tantos botões que ela arrancou.

É um pequeno lembrete, mas o suficiente para me atingir.

Tento afastar essas lembranças, mas elas não querem ir embora, e quanto mais eu tento ignorá-las, mais elas se multiplicam num monstro que não pode ser subjugado. Não percebo que caí de encontro à parede, até sentir a friagem subindo pela minha pele; estou respirando com dificuldade e apertando os olhos com força para afastar a repentina onda de humilhação.

Eu sabia que ela estava assustada, até mesmo apavorada, mas nunca pensei que esses sentimentos fossem relacionados diretamente a mim. Eu tinha acompanhado sua evolução durante aquele tempo que passamos juntos; à medida que as semanas passavam ela parecia cada vez mais à vontade. Mais feliz. Tranquila.

Tinha chegado a pensar que ela havia vislumbrado um futuro para nós dois; que ela desejava estar ao meu lado, mas simplesmente achava isso impossível.

Nunca tinha suspeitado que o motivo por trás de sua recém-descoberta felicidade estivesse relacionado a Kent.

Passei a mão na ferida do meu rosto; cobri minha boca. As coisas que eu havia dito a ela.

Uma respiração entrecortada.

O modo como a toquei.

Meu rosto enrijece.

Se fosse apenas uma atração sexual, tenho certeza que não sentiria uma humilhação tão insuportável. Mas eu queria muito mais do que apenas seu corpo.

De repente imploro para minha mente se concentrar apenas nas paredes. Paredes. Paredes brancas. Blocos de concreto. Cômodos vazios. Espaços abertos.

Construo paredes até que elas começam a desmoronar, e então me forço a construir outras para ocuparem seu lugar. Construo e construo e fico sem me mover até minha mente estar limpa, desinfetada, não contendo nada mais que um pequeno cômodo branco. Uma única lâmpada pendurada no teto.

Limpo. Intocado. Intacto.

Pisco para afastar a avalanche que está prestes a inundar o pequeno mundo que construí; engulo com força o medo que sobe pela minha garganta. Empurro as paredes criando mais espaço no cômodo, para poder respirar com mais facilidade. Até ser capaz de ficar em pé.

Às vezes desejo sair por uns instantes do meu corpo. Quero poder deixar para trás esse corpo cansado, mas minhas correntes são tantas, a carga pesada demais. Essa vida é tudo o que me sobrou. E eu sei que não serei capaz de me olhar no espelho pelo resto do dia.

Subitamente fico revoltado comigo mesmo. Tenho que sair daqui o mais rápido possível, ou meus pensamentos irão se rebelar contra mim. Tomo uma decisão apressada pela primeira vez, presto pouca atenção ao que estou vestindo. Coloco um par de calças limpas e saio sem camisa. Enfio meu braço sadio na manga de um blazer e deixo o outro ombro cobrir a tipoia que segura meu braço ferido. Estou ridículo vestido assim, mas amanhã encontrarei uma solução.

Antes tenho que sair desse quarto.


Capítulo 3

Delalieu é a única pessoa que não me odeia.

Ele ainda passa a maior parte do tempo na minha presença se curvando de medo, mas, de certa forma, não está a fim de me derrubar. Posso sentir isso, apesar de não entender. Provavelmente ele é a única pessoa neste prédio que está feliz por eu não ter morrido.

Levanto a mão para afastar os soldados que se apressam em minha direção quando abro a porta. É preciso muita concentração para que meus dedos não tremam quando limpo o brilho da transpiração que cobre minha testa, mas não vou me permitir um momento de fraqueza. Esses homens não temem pela minha segurança; eles querem apenas olhar mais de perto o triste espetáculo que me tornei. Eles querem ser os primeiros a ver as rachaduras na minha sanidade. Mas eu não tenho a menor vontade de virar um objeto de curiosidade.

Meu trabalho é liderar.

Levei um tiro; não será fatal. Há outras coisas para serem resolvidas; eu irei resolvê-las.

Esse ferimento será esquecido.

O nome dela não mais será mencionado.

Meus dedos cerram e descerram enquanto caminho em direção à Sala L. Nunca havia percebido como esses corredores eram compridos e a quantidade de soldados que se alinhavam nos saguões. Não há como evitar os olhares curiosos e sua decepção pelo fato de eu não ter morrido. Nem preciso olhar para eles para saber o que estão pensando. Mas saber como eles se sentem me deixa ainda mais determinado a viver uma vida longa.

Não vou dar a satisfação da minha morte a ninguém.


— Não — recuso o chá e o café pela quarta vez. — Não bebo cafeína, Delalieu. Por que você sempre insiste em servir isso às refeições?

— Pensei que o senhor pudesse mudar de ideia, senhor.

Ergo os olhos. Delalieu está dando aquele sorriso estranho, vacilante. E eu não tenho certeza, mas acho que ele acabou de fazer uma piada.

— Por quê? — Estendo a mão para pegar um pedaço de pão. — Sou perfeitamente capaz de ficar de olhos bem abertos. Só um idiota iria depender da energia de um grão ou de uma folha para ficar acordado durante todo o dia.

Delalieu não está mais sorrindo.

— Sim — ele diz. — Com certeza, senhor. — E olha para sua própria comida. Vejo quando ele afasta sua xícara de café com os dedos.

Coloco o pão de volta no meu prato.

— Minhas convicções — digo para ele, num tom manso dessa vez — não deveriam influenciar as suas com tanta facilidade. Você deve defender suas ideias, Delalieu. Formular argumentos claros e lógicos. Mesmo que eu discorde.

— Claro, senhor — ele murmura. Ele não diz nada por alguns segundos, mas então vejo que ele pega a xícara de café novamente.

Delalieu.

Acho que ele é meu único parceiro para conversas.

Ele foi designado para esse setor pelo meu pai e, desde então, recebeu ordens para continuar aqui até que não seja mais capaz de trabalhar. E embora ele seja provavelmente uns quarenta e cinco anos mais velho do que eu, ele insiste em trabalhar diretamente sob meu comando. Conheço Delalieu desde que eu era criança; costumava vê-lo em nossa casa, participando das muitas reuniões que aconteciam lá nos anos anteriores ao Restabelecimento tomar o controle.

Havia incontáveis reuniões na minha casa.

Meu pai estava sempre planejando coisas, fomentando discussões e conversas sussurradas das quais nunca pude participar. Os homens que compareciam àqueles encontros são os que estão no poder do mundo agora, então, quando olho para Delalieu não consigo deixar de pensar por que ele nunca ambicionou coisas mais importantes. Ele fez parte desse regime desde o início, mas, de certa forma, parece satisfeito em morrer como sempre foi. É sua escolha continuar subserviente, mesmo quando lhe dou a oportunidade de expressar sua opinião; ele se recusa a ser promovido, mesmo quando lhe ofereço um aumento de salário. E embora aprecie sua lealdade, sua dedicação me enerva. Ele parece não almejar nada que já não possua.

Eu não deveria confiar nele.

Ainda assim, eu confio.

Mas comecei a enlouquecer por falta de um papo amigo. Não posso manter nada mais além de uma distância fria dos meus soldados, não apenas porque eles querem me ver morto, mas também porque tenho responsabilidades como líder, e tenho de tomar decisões imparciais. Estou condenado a uma vida de solidão, uma na qual não tenho companheiros, e viver apenas na minha mente. Procurei construir em mim mesmo um líder temido, e fui bem-sucedido; ninguém questionará minha autoridade ou expressará uma opinião contrária à minha. Ninguém fala comigo a não ser como o comandante-chefe e regente do Setor 45. Amizade não é uma coisa que eu já vivenciei. Nem como criança, nem agora.

Exceto.

Há um mês, abri uma exceção a essa regra. Houve uma pessoa que me olhava diretamente nos olhos. A mesma pessoa que falava comigo sem censura, alguém que não tinha medo de expressar raiva e sentimentos verdadeiros e puros na minha presença; a única que já ousou me desafiar, que já levantou a voz para mim...

Aperto os olhos com força pelo que parece ser a décima vez num só dia. Solto meu punho em volta do garfo e o deixo cair sobre a mesa. Meu braço começou a latejar novamente e tento alcançar as pílulas que estão guardadas no meu bolso.

— O senhor não deveria tomar mais do que oito comprimidos num período de vinte e quatro horas, senhor.

Abro a tampa e jogo mais três pílulas na boca. Realmente gostaria que minhas mãos parassem de tremer. Meus músculos estão contraídos, tensos demais. Muito esticados.

Não espero as pílulas derreterem. Mastigo uma a uma, triturando seu amargor. Tem algo de nojento nelas, um sabor metálico que me ajuda a concentrar.

— Me fale sobre Kent.

Delalieu derruba sua xícara de café.

Os ajudantes da sala de jantar haviam se retirado a meu pedido; Delalieu não recebe ajuda de ninguém quando se atrapalha para limpar a bagunça. Fico recostado na cadeira, olhando para a parede atrás dele, calculando os minutos que perdi hoje.

— Deixe o café.

— Eu... sim, é claro, desculpe, senhor.

— Pare com isso.

Delalieu deixa cair os guardanapos ensopados. Suas mãos estão paralisadas, pairando sobre seu prato.

— Fale.

Observo sua garganta se mexer quando ele engole em seco e hesita.

— Não sabemos, senhor — ele murmura. — Deveria ser impossível encontrar aquele prédio, muito menos entrar lá. Ele está trancado e suas travas enferrujadas. Porém, quando o encontramos — ele diz —, quando o encontramos, estava... a porta havia sido destruída. E não temos certeza como conseguiram fazer isso.

Me sento.

— O que você quer dizer com destruída?

Ele sacode a cabeça.

— Foi... muito estranho, senhor. A porta havia sido... destroçada. Como se um animal a tivesse dilacerado com suas garras. Sobrou apenas um enorme buraco no meio da armação.

Me levanto rápido demais, segurando na mesa para me apoiar. Mal consigo respirar ao pensar nisso, na possibilidade do que deve ter acontecido. E não posso evitar o prazer doloroso de lembrar seu nome uma vez mais, porque eu sei que deve ter sido ela. Ela deve ter feito algo extraordinário, e eu nem estava lá para testemunhar.

— Chame o transporte — ordeno a ele. — Encontrarei você no Quadrante em exatamente dez minutos.

— Senhor?

Já estou saindo pela porta.


Capítulo 4

A porta está estraçalhada ao meio. Exatamente como se feito por um animal. É verdade.

Para um observador despreparado, essa seria a única explicação, mas nem assim isso faria sentido. Nenhum animal vivo poderia destroçar todas essas camadas de aço reforçado sem amputar seus próprios membros.

E ela não é um animal.

Ela é uma criatura meiga e mortal. Gentil, tímida e assustadora. Ela está completamente fora de controle e não tem nem ideia do que é capaz de fazer. E muito embora me odeie, não consigo deixar de estar fascinado por ela. Estou encantado pela sua pretensa inocência; até mesmo invejoso do poder que ela detém tão despretensiosamente. Queria tanto fazer parte do seu mundo. Quero saber o que se passa na sua mente, sentir o que ela sente. Deve ser um peso terrível de se carregar.

E agora, ela está solta lá fora, em algum lugar, liberta na sociedade.

Que belo desastre.

Deslizo meus dedos pelas bordas farpadas do buraco, com cuidado para não me cortar. Não houve nenhum planejamento naquilo, nenhuma premeditação. Somente um fervor angustiante, aparentemente pronto a destruir essa porta. Fico imaginando se ela sabia o que estava fazendo quando tudo aconteceu, ou se foi simplesmente tão inesperado para ela como naquele dia que rompeu aquela parede de concreto para chegar a mim.

Tenho que segurar um sorriso. Imagino o que ela se lembra daquele dia. Todo soldado com o qual trabalhei passou por uma simulação sabendo exatamente o que esperar, mas, propositadamente, ocultei os detalhes dela. Acreditava que a experiência deveria ser a mais realista possível; esperava que os elementos realistas disponíveis fossem conferir autenticidade ao evento. Mais do que qualquer outra coisa, queria que ela tivesse uma oportunidade para explorar sua verdadeira natureza — exercitar sua força num espaço seguro — e, devido ao seu passado, eu sabia que uma criança seria a motivação perfeita. Mas nunca poderia ter previsto resultados tão revolucionários. Seu desempenho foi além de todas as minhas expectativas. E embora eu quisesse discutir os efeitos com ela mais tarde, quando a encontrei ela já estava planejando sua fuga.

Meu sorriso fraqueja.

— Gostaria de entrar, senhor? — A voz de Delalieu me traz de volta ao presente. — Não há muito para se ver lá dentro, mas é interessante perceber que o buraco é do tamanho exato para alguém poder passar. Parece claro para mim, senhor, qual era o objetivo.

Aceno com a cabeça, distraído. Meus olhos catalogam cuidadosamente as dimensões do buraco; tento imaginar como deve ter sido para ela estar aqui, tentando abrir passagem. Desejo desesperadamente conversar com ela sobre tudo isso.

Meu coração dá um salto repentino.

Lembro mais uma vez que ela não está mais comigo. Ela não vive mais na base.

A culpa por ela ter partido é minha. Acreditei que ela estava finalmente indo bem, e isso atrapalhou minha avaliação. Eu deveria estar prestando mais atenção aos detalhes. Aos meus soldados. Perdi a noção de quais eram meus objetivos e minha maior razão; o verdadeiro motivo de trazê-la para a base. Fui um idiota. Descuidado.

Mas a verdade é que eu estava distraído.

Por ela.

Quando ela chegou, era tão teimosa e infantil, mas à medida que as semanas passaram ela pareceu se adaptar; parecia menos ansiosa, e de certo modo estava menos assustada. Tento me lembrar de que seus progressos não tiveram nada a ver comigo.

Tinham a ver com Kent.

Uma traição que de algum modo parecia impossível. Que ela fosse me trocar por um ser robótico, um idiota sem sentimentos como o Kent. Seus pensamentos são tão vazios, tão sem sentido; é como conversar com uma lâmpada de mesa. Não entendo o que ele pode ter oferecido a ela, o que ela deve ter visto nele, a não ser como um instrumento de fuga.

Ela ainda não entendeu que não há futuro para ela no mundo das pessoas comuns. Ela não tem lugar na companhia de pessoas que nunca a entenderão. E eu tenho que pegá-la de volta.

Só percebo que disse essas últimas palavras em voz alta quando Delalieu diz:

— Temos tropas por todo o setor procurando por ela — ele explica. — E já alertamos os setores vizinhos, no caso do grupo deles atravessar...

— O que? — Dou meia volta, minha voz baixa e ameaçadora. — O que você acabou de dizer?

O rosto de Delalieu se transformou numa máscara branca.

— Fiquei inconsciente por uma noite! E vocês já alertaram os outros setores dessa catástrofe...

— Imaginei que o senhor quisesse encontrá-los, senhor, e pensei, se eles forem buscar refúgio em algum outro lugar...

Faço uma pausa para respirar, para me concentrar.

— Sinto muito, senhor, achei que seria mais seguro...

— Ela está com dois dos meus próprios soldados, tenente. Nenhum deles é tão burro a ponto de levá-la para outro setor. Eles não têm nem as ferramentas, nem a permissão para poder atravessar a fronteira do setor.

— Mas...

— Eles partiram há um dia. Estão terrivelmente feridos e precisam de ajuda. Estão viajando a pé e com um veículo roubado fácil de ser rastreado. Qual a distância — pergunto a ele, a frustração aparecendo na minha voz — que eles devem ter percorrido?

Delalieu não diz nada.

— Você enviou um alerta nacional. Notificou múltiplos setores, o que significa que o país todo sabe agora o que aconteceu. Isso significa que as Capitais receberam a notícia. O que significa isso? — Cerro os punhos. — O que acha que isso significa, tenente?

Por um instante ele não consegue dizer nada.

Então:

— Senhor — ele fala sobressaltado. — Por favor, me perdoe.


Capítulo 5

Delalieu me segue até minha porta.

— Junte as tropas no Quadrante amanhã às dez horas — digo a ele como forma de despedida. — Terei que fazer um pronunciamento sobre esses acontecimentos recentes o melhor que puder.

— Sim, senhor — Delalieu responde. Ele não ergue os olhos. Ele não me olha nos olhos desde que saímos do depósito.

Tenho outras coisas com que me preocupar.

Sem contar a estupidez de Delalieu, existe uma infinidade de outras coisas que preciso cuidar no momento. Não posso me permitir mais problemas, e não posso me distrair. Não por ela. Não por Delalieu. Nem por ninguém. Tenho que me concentrar.

Esse é um momento horrível para ter um ferimento à bala.

Notícias da nossa situação já se espalharam em nível nacional. Civis e setores vizinhos agora estão cientes da nossa pequena rebelião, e temos que abafar os rumores o mais rápido possível. De algum modo, tenho que neutralizar os alertas que Delalieu já enviou e, simultaneamente, suprimir qualquer tipo de revolta entre os cidadãos. Eles já estão ansiosos para resistir, e qualquer fagulha de controvérsia irá reacender seu fervor. Muitos deles já morreram e eles ainda parecem não entender que ficar contra o Restabelecimento é atrair ainda mais destruição. Os civis devem ser pacificados.

Não quero guerra no meu setor.

Agora, mais do que nunca, preciso estar no controle de mim mesmo e de minhas responsabilidades. No entanto, meu cérebro está disperso, meu corpo cansado e ferido. O dia todo estive prestes a desabar, e não sei o que fazer. Não tenho ideia de como consertar essa bagunça. Essa fraqueza é algo desconhecido para o meu ser.

Em apenas dois dias uma garota conseguiu me incapacitar.

Já tomei mais algumas daquelas pílulas nojentas, mas me sinto ainda mais fraco do que me sentia essa manhã. Pensei que poderia ignorar a dor e a inconveniência de um ombro ferido, mas as complicações se recusam a ceder. Agora estou totalmente dependente do que vai me acompanhar nessas próximas semanas de frustração. Remédios, médicos, horas na cama.

Tudo isso por um beijo.

É quase insuportável.

— Estarei no escritório o resto do dia — digo a Delalieu. — Mande minhas refeições para meu quarto, e não me perturbe, a menos que haja algum novo acontecimento.

— Sim, senhor.

— Isso é tudo, tenente.

— Sim, senhor.


Nem tinha percebido como estava me sentindo doente até a porta do quarto se fechar atrás de mim. Vou cambaleante até a cama e me agarro na beirada para não cair. Estou transpirando novamente e decido tirar o casaco extra que estava usando lá fora para nosso passeio. Arranco o blazer que tinha jogado descuidadamente por cima do meu ombro ferido e caio de costas na cama. De repente estou gelado. Minha mão treme enquanto procuro apertar o botão para chamar o médico.

Preciso que alguém troque os curativos do meu ferimento. Preciso comer algo mais substancial. E, mais do que nunca, preciso de um banho de verdade, o que parece impossível.

Alguém está parado ao meu lado.

Pisco os olhos várias vezes, mas só consigo visualizar o perfil da pessoa. Um rosto fica entrando e saindo de foco várias vezes até que finalmente desisto. Meus olhos se fecham. Minha cabeça parece que vai explodir. A dor está dilacerando meus ossos e subindo pelo meu pescoço; tons vermelhos, amarelos e azuis se mesclam sob minhas pálpebras. Percebo apenas trechos de uma conversa perto de mim.

— parece que está surgindo uma febre...

— talvez sedá-lo...

— quantas ele tomou?...

Eles vão me matar, eu percebo. É a oportunidade perfeita. Estou fraco e incapaz de me defender, e alguém finalmente chegou para me eliminar. É isso. Meu momento. Chegou. E de certo modo não consigo aceitar o fato.

Dou uma pancada forte em direção às vozes; um som inumano escapa da minha garganta. Algo duro bate no meu punho e cai no chão. Mãos estranhas agarram meu braço direito e me seguram no lugar. Alguma coisa está me prendendo em volta dos tornozelos, do meu punho. Estou me debatendo contra essas novas amarras e chutando o ar como um louco. A escuridão parece estar descendo sobre meus olhos, meus ouvidos, minha garganta. Não consigo respirar, escutar ou enxergar com clareza, e o sufoco desse momento é tamanho e tão apavorante que tenho certeza que enlouqueci.

Alguma coisa fria e pontuda belisca meu braço.

Só tenho um momento para refletir naquela dor antes que ela tome conta de mim.


Capítulo 6

— Juliette — murmuro. — O que está fazendo aqui?

Estou parcialmente vestido, me preparando para meu dia, e ainda é muito cedo para visitas. Essas horas anteriores ao nascer do sol são meus únicos momentos de paz, e ninguém deveria estar aqui. Parece impossível que ela tenha conseguido burlar a vigilância e ter acesso aos meus alojamentos particulares.

Alguém deveria tê-la impedido.

Ao invés disso, ela está parada na minha porta, me olhando. Já a havia visto tantas vezes, mas dessa vez é diferente — estou sentindo uma dor quase física só de olhar para ela. Mas de certo modo ainda me sinto atraído, desejando estar perto dela.

— Me desculpe — ela diz, e está torcendo as mãos e evitando me olhar de frente. — Sinto tanto, tanto.

Observo suas roupas.

É um vestido verde-escuro com mangas justas; um corte simples feito de algodão com lycra que molda as curvas macias do seu corpo. Ele combina com os tons de verde dos olhos dela de um jeito que eu não esperava. É um dos muitos vestidos que escolhi para ela. Achei que iria gostar de ganhar algumas coisas bonitas depois de ter ficado tanto tempo engaiolada como um animal. E não sei bem se consigo explicar, mas sinto um orgulho estranho de ela estar vestindo algo que eu mesmo escolhera.

— Desculpe — ela diz, pela terceira vez.

Mais uma vez fico aturdido em pensar como ela conseguiu chegar aqui. No meu quarto. Olhando para mim enquanto ainda estou sem camisa. Seu cabelo é tão longo que cai até o meio das costas; tenho que me segurar para conter minha vontade de passar as mãos sobre eles. Ela é tão linda.

Não entendo por que está se desculpando.

Ela fecha a porta atrás de si. Caminha em minha direção. Meu coração bate descompassado agora, e não é algo natural para mim. Não costumo reagir desse modo. Não costumo perder o controle. Eu a vejo todos os dias e consigo manter uma aparência de dignidade, mas tem alguma coisa errada; isso não está certo.

Ela está tocando meu braço.

Está deslizando seus dedos pela curva do meu ombro, e o toque da sua pele em contato com a minha me dá vontade de gritar. A dor é intolerável, mas não consigo falar; estou paralisado.

Tenho vontade de dizer para ela parar, para ir embora, mas um pedaço de mim está em conflito. Estou feliz em tê-la perto de mim, mesmo que isso doa, mesmo que isso não faça nenhum sentido. Mas eu não consigo alcançá-la, não posso abraçá-la como sempre quis fazer.

Ela olha para mim.

Ela me examina cuidadosamente com seus olhos azuis-esverdeados e de repente me sinto culpado, sem entender o porquê. Porém, tem algo em seu olhar que me faz sentir insignificante, como se ela houvesse percebido que sou vazio por dentro. Ela descobriu as rachaduras nessa armadura que venho usando há anos, todos os dias, e isso me deixa petrificado.

Essa garota sabia exatamente como me destruir.

Ela pousa as mãos no meu ombro.

E então agarra meu ombro, enfia seus dedos na minha pele como se estivesse tentando rasgá-la. A agonia é tão cega que, dessa vez, chego realmente a gritar. Caio de joelhos à sua frente e ela torce meu braço, girando-o para trás até eu ficar sem fôlego, tentando permanecer calmo, lutando para não me entregar à dor.

— Juliette — falo ofegante —, por favor...

Ela passa a mão livre pelos meus cabelos, joga minha cabeça para trás para que eu seja forçado a encarar seus olhos. E então se curva e se aproxima dos meus ouvidos, seus lábios quase tocando meu rosto.

— Você me ama? — ela sussurra.

— O que? — Respiro fundo. — O que você está fazendo?

— Você ainda me ama? — ela pergunta novamente, seus dedos agora deslizando pelos contornos do meu rosto, pela linha do meu maxilar.

— Sim — digo a ela. — Ainda a amo.

Ela sorri.

É um sorriso inocente, tão meigo que fico realmente chocado quando suas mãos se apertam em torno do meu braço. Ela torce meu ombro para trás a tal ponto, que tenho certeza que o deslocou. Meus olhos veem faíscas quando ela diz:

— Está quase acabado agora.

— O que? — pergunto, desesperado, tentando olhar em volta. — O que está quase acabado...

— Só um pouco mais e eu vou embora.

— Não — não, não vá —, onde está indo...

— Você vai ficar bem — ela declara. — Eu prometo.

— Não — estou respirando com dificuldade —, não...

Subitamente ela me empurra para frente e eu acordo tão rápido que me falta o ar.

Pisco várias vezes até perceber que eu tinha acordado no meio da noite. Uma escuridão completa me envolve por todos os cantos do quarto. Meu peito está arfando; meu braço está preso e latejando, e eu percebo que o efeito dos medicamentos contra a dor já passou. Tem um pequeno controle remoto preso debaixo da minha mão; aperto o botão para liberar mais uma dose.

Demoro alguns minutos para me estabilizar. Meus pensamentos lentamente se recuperam do pânico.

Juliette.

Não posso controlar um pesadelo, mas seu nome vai ser a única coisa que vou me permitir recordar quando estiver acordado.

A humilhação que sinto não me permite mais que isso.


Capítulo 7

— Bom, isso é embaraçoso. Meu filho, amarrado como um animal.

Estou quase convencido que estou tendo outro pesadelo. Abro meus olhos lentamente; olho para o teto. Não faço nenhum movimento brusco, mas posso sentir a força das correias em volta dos meus punhos e nos dois tornozelos. Meu braço ferido ainda está na tipoia e apoiado no meu peito. E embora a dor no meu ombro ainda esteja lá, já diminuiu bastante. Me sinto mais forte. Até minha mente está mais clara, mais alerta. Mas então sinto o gosto de algo amargo na boca e imagino há quanto tempo estou nessa cama.

— Você realmente achou que eu não ficaria sabendo? — ele pergunta, divertido.

Ele se aproxima da minha cama, seus passos reverberando dentro de mim.

— Você fez Delalieu choramingar desculpas por me incomodar, suplicando para meus homens culpá-lo pela inconveniência dessa visita inesperada. Sem dúvidas, você apavora aquele velho, que está simplesmente fazendo o trabalho dele, quando a verdade é, eu teria descoberto tudo, mesmo sem ele ter me contado. Isso — ele diz — não é o tipo de trapalhada que se pode esconder. Você é um idiota por pensar o contrário.

Sinto um leve puxão nas minhas pernas e percebo que ele está soltando as amarras. O toque da sua mão na minha pele é abrupto e inesperado, e isso mexe alguma coisa dentro de mim, algo obscuro e profundo que me faz sentir fisicamente mal. Sinto o gosto do vômito no fundo da minha garganta. É preciso todo o meu autocontrole para não vomitar em cima dele.

— Sente-se meu filho. Você deve estar bem melhor agora. Não descansou quando deveria, e agora isso foi corrigido. Você está inconsciente há três dias, e eu cheguei aqui há vinte e sete horas. Agora, levante-se. Isso é ridículo.

Ainda estou olhando para o teto. Respirando com dificuldade.

Ele muda de tática.

— Sabe — ele diz com cuidado —, na verdade eu ouvi uma história bem interessante sobre você. — Ele se senta na beirada da minha cama; o colchão range e estala sob o peso dele. — Gostaria de ouvi-la?

Minha mão esquerda começa a tremer. Cerro os dedos sobre os lençóis.

— Soldado 45B-76423. Fletcher, Seamus. — Ele faz uma pausa. — O nome lhe é familiar?

Aperto meus olhos com força.

— Imagine minha surpresa — ele continua — quando escuto que meu filho finalmente fez a coisa certa. Que ele finalmente tomou a iniciativa e dispensou um soldado traiçoeiro que andava roubando dos nossos depósitos de suprimentos. Fiquei sabendo que você lhe deu um tiro na testa. — Uma risada. — Dei os parabéns para mim mesmo. Disse que você tinha finalmente se juntado aos seus, que finalmente aprendeu a liderar corretamente. Fiquei quase orgulhoso. Por isso, fiquei ainda mais surpreso ao saber que a família de Fletcher ainda está viva. — Ele bateu suas mãos uma na outra com força. — É surpreendente, é claro, porque você, entre todos os demais deveria saber as regras. Traidores vêm de famílias de traidores, e uma traição significa morte para todos.

Ele apoia sua mão no meu peito.

Estou levantando muros no meu cérebro novamente. Paredes brancas. Blocos de concreto. Cômodos vazios e espaços abertos.

Não existe nada dentro de mim. Nada lá dentro.

— É engraçado. — Ele continua pensativo agora. — Porque eu disse a mim mesmo que esperaria para discutir isso com você. Mas, de certo modo, esse momento parece bem adequado, não acha? — Posso ouvir o sorriso dele. — Dizer a você como estou desapontado. Muito embora não possa dizer que esteja surpreso. — Ele dá um suspiro. — Num único mês você perdeu dois soldados, não conseguiu controlar uma garota clinicamente demente, abalou um setor inteiro, e encorajou a revolta entre os cidadãos. E, por incrível que pareça, não estou absolutamente surpreso.

Suas mãos se movem; se demoram nos meus ombros.

Paredes brancas, penso.

Blocos de concreto.

Cômodos vazios. Espaço aberto.

Nada existe dentro de mim. Nada lá dentro.

— Mas o pior de tudo — ele continua — não é o fato de você ter conseguido me humilhar ao subverter a ordem que eu tinha finalmente conseguido estabelecer. Nem que, de algum modo, você conseguiu levar um tiro durante os acontecimentos. Mas que demonstrasse simpatia pela família de um traidor — ele diz, rindo, sua voz num tom feliz e alegre. — Isso é imperdoável.

Meus olhos estão abertos agora, piscando sob a forte luz fluorescente acima da minha cabeça, concentrado nos pontos brancos que borram minha visão. Não vou me mover. Não vou falar.

Suas mãos se fecham em torno da minha garganta.

O movimento é tão abrupto e violento que quase fico aliviado. Uma parte de mim sempre espera que ele vá fazer isso algum dia; que talvez ele realmente me deixe morrer dessa vez. Mas isso nunca acontece. Nunca dura o bastante.

Tortura nunca é tortura quando existe alguma esperança de alívio.

Ele me solta logo e consegue exatamente o que quer. Dou um salto para cima, tossindo e espirrando, finalmente emitindo um som que reconhece sua presença nesse quarto. Meu corpo todo está tremendo agora, meus músculos estão enrijecidos pelo ataque e por ter permanecido imóvel por tanto tempo. Estou suando frio; minha respiração é difícil e dolorida.

— Você tem muita sorte — ele declara, suas palavras suaves demais. Ele está em pé agora, não mais tão perto do meu rosto. — Sorte que eu estava aqui para acertar as coisas. Sorte que eu tive tempo de corrigir seu erro.

Fico paralisado.

O quarto começa a girar.

— Consegui localizar a esposa dele — ele diz. — A esposa de Fletcher e seus três filhos. Acho que eles lhe mandaram lembranças. — Uma pausa. — Bom, isso foi antes que os mandasse matar, então acho que isso não importa muito agora, mas meus homens disseram que eles lhe mandaram um alô. Parece que ela se lembrava de você — ele diz, rindo baixinho. — A esposa. Ela disse que você lhe fez uma visita antes de todo esse... aborrecimento ocorrer. Disse que você estava sempre visitando os complexos. Se informando sobre os civis.

Murmuro apenas as duas palavras que consigo balbuciar.

— Saia daqui.

— Esse é o meu garoto! — ele diz, acenando a mão na minha direção. — Um tolo dócil e patético. Às vezes fico tão revoltado com você que tenho vontade de eu mesmo lhe dar um tiro. Mas então penso que deve ser isso o que gostaria que eu fizesse, não é? Poder me culpar pela sua própria derrota? E eu penso que não, é melhor deixá-lo morrer pela sua própria estupidez.

Olho para frente sem compreender, meus dedos crispados sobre os lençóis.

— Agora me conte — ele pede —, o que aconteceu com seu braço? Delalieu e os outros homens parecem não ter ideia do que aconteceu.

Não digo nada.

— Envergonhado demais para admitir que foi ferido por um de seus próprios soldados, então?

Fecho meus olhos.

— E quanto à garota? — ele indaga. — Como ela conseguiu escapar? Fugiu com um de seus homens, não foi?

Agarro os lençóis com tanta força que meus punhos começam a tremer.

— Me diga — ele diz, se aproximando dos meus ouvidos. — Como você lidaria com um traidor desse tipo? Vai visitar a família dele também? Ser gentil com a esposa dele?

Não queria dizer isso em voz alta, mas não consigo me segurar dessa vez.

— Vou matá-lo.

Ele dá uma sonora gargalhada que mais parece um uivo. Bate a mão na minha cabeça e bagunça meu cabelo com os mesmos dedos que há pouco apertavam o meu pescoço.

— Muito melhor. Agora levante. Temos trabalho a fazer.

E eu penso que sim, não me importaria de fazer o tipo de trabalho que desapareceria com Adam Kent desse mundo.

Um traidor desse tipo não merece viver.


Capítulo 8

Estou no chuveiro há tanto tempo que perdi a noção do tempo.

Isso nunca me aconteceu antes.

Tudo está fora de lugar, desequilibrado. Estou inseguro quanto às minhas decisões, duvidando de tudo que achei que acreditava, e pela primeira vez na vida, estou genuinamente exausto, acabado.

Meu pai está aqui.

Estamos dormindo sob o mesmo teto; algo que eu esperava não ter que vivenciar novamente. Mas ele está aqui na base, hospedado em seus próprios alojamentos até estar bem seguro antes de partir. O que significa que ele vai resolver nossos problemas, causando estragos no Setor 45. O que significa que estarei reduzido a ser seu fantoche e menino de recados, porque meu pai nunca aparece para ninguém, a não ser para aqueles que está prestes a matar.

Ele é o comandante supremo do Restabelecimento e prefere impor suas ordens anonimamente. Ele viaja para todos os lugares, sempre com o mesmo grupo selecionado de soldados, se comunica apenas através dos seus homens, e somente em raríssimas circunstâncias se afasta da Capital.

Notícias da sua chegada no Setor 45 já se espalharam pela base, e muito provavelmente apavorou meus soldados. Porque sua presença, real ou imaginária, significa apenas uma coisa: tortura.

Há muito tempo não me sentia um covarde.

Mas isso, isso é uma bênção. Esse momento demorado — essa ilusão — de força. Estar fora da cama e ser capaz de tomar um banho: é uma pequena vitória. Os médicos envolveram meu braço ferido num tipo de plástico impermeável para o chuveiro, e eu finalmente me sinto capaz de ficar em pé sozinho. Os enjoos passaram, a tontura foi embora. Eu deveria ser capaz de pensar com mais clareza agora, no entanto, minhas ideias ainda parecem muito confusas.

Me forço para não ficar pensando nela, mas estou começando a perceber que não sou forte o bastante; ainda não, e principalmente quando ainda estou ativamente procurando por ela. Isso se tornou uma impossibilidade física.

Hoje, preciso voltar ao quarto dela.

Preciso procurar nas suas coisas por alguma pista que me ajude a encontrá-la. Os beliches e os armários de Kent e de Kishimoto já foram vasculhados; nada incriminador foi encontrado. Mas ordenei aos meus homens que deixassem o quarto dela — o quarto de Juliette — exatamente como estava. Ninguém, a não ser eu mesmo, tinha permissão para entrar naquele espaço. Não até que eu olhasse tudo antes.

E isso, de acordo com meu pai, seria minha primeira tarefa.


— Isso é tudo, Delalieu. Se precisar de mais alguma coisa eu lhe informo.

Ele está me seguindo por todos os lugares, mais do que habitualmente. Aparentemente ele veio me procurar quando não compareci à reunião que eu mesmo havia agendado há dois dias, e teve o prazer de me encontrar delirante e enlouquecido. Não sei como, mas ele conseguiu se culpar por tudo isso.

Se fosse outra pessoa, eu o teria rebaixado.

— Sim, senhor. Desculpe, senhor. E por favor, me perdoe — nunca pretendi causar nenhum problema adicional...

— Está tudo bem, tenente.

— Sinto muito, senhor — ele murmura. Seus ombros caem. Sua cabeça se curva.

Suas desculpas estão me deixando incomodado.

— Faça as tropas se reagruparem às 13 horas. Devido a esses novos acontecimentos, preciso me dirigir a eles.

— Sim, senhor — ele diz. Acena com a cabeça sem levantar o olhar.

— Está dispensado.

— Senhor. — Ele faz continência e desaparece.

Estou sozinho em frente à porta do quarto dela.


Engraçado como fiquei acostumado a visitá-la aqui; como sentia uma sensação estranha de aconchego ao saber que ela e eu estávamos vivendo no mesmo prédio. Sua presença aqui na base mudou tudo para mim; as semanas que ela passou aqui foram as primeiras em que eu realmente tive prazer em morar nesses alojamentos. Eu aguardava ansiosamente por suas explosões. Seus ataques de raiva. Seus argumentos ridículos. Gostava quando ela gritava comigo; eu a teria parabenizado se ela tivesse chegado a me dar um tapa na cara. Estava sempre a provocando, brincando com suas emoções. Queria que ela entrasse em contato com a garota que havia dentro dela, aprisionada pelo medo. Queria que ela se libertasse das suas próprias amarras.

Porque apesar de ela aparentar timidez dentro dos limites do seu isolamento, aqui fora — no meio do caos, destruição — eu sabia que ela se tornaria algo completamente diferente. Estava apenas à espera. Cada dia esperando pacientemente que ela entendesse a dimensão do seu novo potencial; sem nunca ter percebido que a havia deixado aos cuidados do único soldado que poderia roubá-la de mim.

Eu deveria me matar por isso.

Ao invés disso, abro a porta.

Quando atravesso o umbral, o painel desliza e se fecha às minhas costas. Me vejo sozinho, parado aqui, no último lugar que ela tocou. A cama está desfeita e bagunçada, as portas do armário escancaradas, a janela quebrada, temporariamente fechada com fita crepe. Sinto uma dor profunda e nervosa no meu estômago que prefiro ignorar.

Concentração.

Entro no banheiro e examino seus artigos de higiene, os armários, até mesmo dentro do chuveiro.

Nada.

Volto para a cama e passo a mão sobre o edredom amarrotado, os travesseiros empelotados. Demoro um pouco para avaliar a evidência de que ela esteve presente nesse quarto, e arranco as roupas da cama. Lençóis, fronhas, edredom e colcha; tudo jogado ao chão. Examino minuciosamente cada centímetro dos travesseiros, do colchão, e da estrutura da cama, e novamente não encontro nada.

A mesinha de cabeceira. Nada.

Debaixo da cama. Nada.

As luminárias, o papel de parede, cada peça de roupa no seu armário. Nada.

Somente quando estou me dirigindo à porta é que toco algo com meus pés. Olho para baixo. Ali, preso debaixo da minha bota está um retângulo grosso, desbotado. Um caderninho simples e despretensioso que cabia na palma da minha mão.

E fico tão surpreso que por um momento não consigo nem me mexer.


Capítulo 9

Como posso ter esquecido?

Este caderninho estava no seu bolso no dia que ela estava preparando a fuga. Eu o tinha encontrado um pouco antes de Kent colocar uma arma na minha cabeça, e em algum momento durante aquele caos, devo tê-lo deixado cair. E chego à conclusão que era isso o que estava procurando aquele tempo todo.

Me curvo para pegá-lo, retirando cuidadosamente as lascas e os cacos de vidro das suas páginas. Minha mão não está firme, meu coração está martelando nos meus ouvidos. Não tenho ideia do que ele pode conter. Fotos. Mensagens. Pensamentos embaralhados e ideias ainda malformadas.

Podia ser qualquer coisa.

Viro o caderninho na minha mão, meus dedos se lembrando da superfície áspera e gasta. A capa tem um tom de marrom apagado, mas não posso afirmar se foi manchado pelo uso ou pelo tempo, ou se sempre foi dessa cor. Imagino há quanto tempo ela o possui. Onde será que ela o adquiriu.

Dou um passo em falso para trás, minhas pernas batem na cama. Meus joelhos cedem, e me seguro na ponta do colchão. Respiro fracamente e fecho meus olhos.

Eu tinha visto uma filmagem do período que ela passou no hospício, mas foi completamente inútil. A iluminação era muito fraca; a pequena janela mal conseguia clarear os cantos escuros do quarto dela. Ela era frequentemente apenas uma forma indistinta; uma sombra escura que poderia passar sem ser notada. Nossas câmeras só serviam para detectar seus movimentos — e talvez num momento de sorte, quando o sol a iluminava pelo ângulo certo —, mas ela raramente se movia. Na maior parte do tempo ela ficava sentada parada, muito quieta, na sua cama ou num canto escuro. Ela quase nunca falava. E quando o fazia, nunca era com palavras. Ela falava somente em números.

Contando.

Havia algo de surreal nela, sentada ali. Não conseguia nem ver seu rosto; não era capaz de discernir o contorno do seu corpo. Mesmo assim ela me fascinava. Que ela pudesse ser tão calma, tão quieta. Ela se sentava num lugar durante horas de uma vez, imóvel, e sempre imaginei o que se passava em sua mente, o que ela poderia estar pensando, como ela podia existir num mundo assim solitário. Mais do que qualquer outra coisa, eu queria que ela falasse.

Estava desesperado para ouvir sua voz.

Sempre desejei que ela falasse uma língua que eu pudesse entender. Pensei que poderíamos começar com algo simples. Talvez algo ininteligível. Mas a primeira vez que a peguei falando frente à câmera, não consegui afastar meu olhar dela. Fiquei sentado ali, parado, com os nervos tensionados, quando ela tocou a parede com a mão e contou.

4.572.

Observei enquanto ela contava. Até 4.572.

Demorou cinco horas.

Só mais tarde percebi que ela estava contando suas próprias respirações.

Não consegui deixar de pensar nela depois disso. Eu estava disperso bem antes de ela chegar à base, constantemente pensando no que ela estava fazendo e se ela iria falar novamente. Se estava contando em voz alta, ou estava contando na sua cabeça. Será que ela já havia pensado em letras? Sentenças completas? Estava com raiva? Triste? Por que ela parecia tão calma para uma garota que havia sido considerada um animal perturbado e temperamental. Era um truque?

Eu tinha visto todos os relatórios documentando os momentos críticos de sua vida. Tinha lido todos os detalhes dos seus históricos médicos e policiais; tinha colocado em ordem as reclamações da escola, as anotações dos médicos, sua sentença oficial emitida pelo Restabelecimento, e até mesmo o questionário do hospício respondido por seus pais. Sabia que ela tinha sido retirada da escola aos 14 anos, que havia passado por uma série de testes e sido forçada a tomar várias — e perigosas — drogas experimentais, além de se submeter a sessões de eletrochoque. Em dois anos ela havia entrado e saído de nove diferentes centros de detenção juvenil e foi examinada por mais de cinquenta médicos diferentes. Todos eles a descreveram como um monstro. Chamaram-na de um perigo para a sociedade e uma ameaça à humanidade. Uma garota que iria destruir nosso mundo e já tinha começado assassinando uma criança pequena. Aos 16 anos, seus pais sugeriram que ela fosse internada. E foi o que aconteceu.

Nada disso fazia sentido para mim.

Uma garota rejeitada pela sociedade, pela sua própria família — ela devia ter muitos sentimentos reprimidos. Raiva. Depressão. Ressentimento. Onde estava tudo isso?

Ela não era nada parecida com os outros pacientes do hospício — aqueles que eram realmente perturbados. Alguns passavam horas se lançando contra a parede, quebrando osso e fraturando crânios. Outros eram tão perturbados que rasgavam a própria pele até tirar sangue, literalmente se rasgando em pedaços. Alguns conversavam consigo mesmos em voz alta, dando risadas, cantando e discutindo. A maioria rasgava as próprias roupas, satisfeitos em dormir e ficar despidos na sua própria sujeira. Ela era a única que tomava banho com regularidade ou lavava as próprias roupas. Fazia suas refeições calmamente, sempre comendo tudo que lhe ofereciam. E passava a maior parte do tempo olhando pela janela.

Ela ficou trancafiada por 264 dias e não perdeu seu senso de humanidade. Queria saber como ela conseguiu reprimir tanta coisa; como ela adquiriu tanta calma exterior. Pedi uma análise do seu comportamento em relação aos outros pacientes, porque queria fazer uma comparação. Queria saber se seu comportamento era normal.

Não era.

Observei o perfil modesto dessa garota que eu não podia ver nem conhecer, e senti um respeito enorme por ela. Passei a admirá-la e invejar sua calma — sua tranquilidade perante tudo a que foi forçada a enfrentar. Não sei se entendi exatamente o que era que estava sentindo naquela época, mas sabia que a queria toda para mim.

Queria conhecer seus segredos.

E então um dia, ela se levantou na sua cela e caminhou até a janela. Era de manhã bem cedo, o sol havia acabado de nascer; pela primeira vez pude vislumbrar seu rosto. Ela pressionou a palma da mão na janela e sussurrou duas palavras, só uma vez.

Me perdoa.

Aperto o botão para retroceder a fita várias vezes.

Nunca poderia contar a ninguém que estava incrivelmente fascinado por ela. Tinha que inventar falsos motivos, uma indiferença aparente — uma arrogância — em relação a ela. Ela seria nossa arma e nada mais, apenas um instrumento de tortura inovador.

Um detalhe que não me importava nem um pouco.

Minha pesquisa me havia levado de encontro aos seus arquivos por puro acaso. Coincidência. Não fui atrás dela à procura de uma arma; nunca fui. Bem antes de eu ter visto seu filme, e bem, bem antes de ter trocado uma só palavra com ela, estava pesquisando outra coisa. Para outro fim.

Meus motivos eram só meus.

Usá-la como arma foi uma história que criei para o meu pai; precisava de uma desculpa para ter acesso a ela, para ter a permissão necessária para estudar seus arquivos. Foi uma charada que tive que inventar para me justificar perante meus soldados e para a centena de câmeras que monitoram minha existência. Não a trouxe para a base para explorar suas habilidades. E certamente não esperava me apaixonar por ela no meio disso tudo.

Mas essas verdades e minha verdadeira motivação vão para o túmulo comigo.

Caio na cama com força. Bato a mão na testa, e a esfrego pelo meu rosto. Nunca teria mandado Kent ficar com ela se eu mesmo tivesse podido fazer isso. Cada jogada minha foi um erro. Vi cada esforço calculado falhar. Eu apenas queria ver como ela interagia com outra pessoa. Imaginava se ela seria diferente; se as expectativas que eu havia criado em relação a ela se acabariam ao vê-la conversando naturalmente com alguém. Porém, vê-la conversar com outra pessoa me deixou maluco. Estava com ciúmes. Ridículo. Queria que ela soubesse quem eu era; queria que ela conversasse comigo. E foi então que percebi: essa sensação estranha e inexplicável de que talvez ela fosse a única pessoa do mundo pela qual eu poderia realmente me importar.

Me forço a me sentar. Arrisco um olhar para o caderno ainda preso em minha mão.

Eu a perdi.

Ela me odeia.

Ela me odeia e eu a rejeito, e talvez nunca mais a verei, e a culpa é toda minha. Esse caderninho talvez seja a única coisa que me restou dela. Minha mão ainda está pairando sobre a capa, tentando abri-lo, para poder encontrá-la novamente, mesmo que seja só por um instante, mesmo que seja apenas no papel. Mas parte de mim está com medo. Talvez isso não acabe bem. Talvez não seja o que eu gostaria de ver. E me acudam se isso for algum tipo de diário contendo seus pensamentos e sentimentos pelo Kent, posso até me jogar pela janela.

Coloco o punho cerrado de encontro à minha testa. Respiro fundo e demoradamente.

Finalmente o abro. Meus olhos descem para a primeira página.

E só então começo a perceber a importância do que encontrei.


Continuo a pensar que devo permanecer calma, que tudo isso é fruto da minha imaginação, que tudo vai ficar bem e alguém vai abrir a porta e me deixar sair. Continuo a pensar que isso vai acontecer porque esse tipo de coisa não acontece pura e simplesmente. Isso não acontece. As pessoas não são esquecidas desse modo. Não são abandonadas assim.

Isso simplesmente não acontece.

Meu rosto está coberto de sangue de quando eles me jogaram no chão, e minhas mãos estão tremendo, mesmo quando escrevo isso. Essa caneta é minha válvula de escape, minha única voz, porque não tenho ninguém com quem conversar, nenhuma mente além da minha para mergulhar e todos os botes salva-vidas estão ocupados e todas as boias estão quebradas e não sei nadar, não consigo nadar não consigo nadar e está cada vez mais difícil. É como se houvesse um milhão de gritos presos dentro do meu peito, mas tenho que mantê-los presos lá dentro porque para que gritar se não tem ninguém para escutar seus gritos e ninguém vai me escutar aqui. Ninguém jamais me ouvirá novamente.

Aprendi a ficar olhando para as coisas.

As paredes. Minhas mãos. As rachaduras na parede. As linhas nos meus dedos. Os tons de cinza no concreto. O formato de minhas unhas. Escolho uma coisa e fico olhando horas para ela. Conto as horas na minha cabeça contando os segundos à medida que eles passam. Conto os dias que passam enumerando-os. Hoje é o dia dois. Hoje é o segundo dia. Hoje é um dia.

Hoje.

Está muito frio. Está tão frio está tão frio.

Por favor por favor por favor


Fecho o caderno com força.

Minha mão está trêmula novamente, e dessa vez não consigo evitar. Dessa vez o tremor está vindo do fundo do meu ser, de uma percepção profunda do tenho nas mãos. Esse diário não é do tempo que ela passou aqui. Não tem nada a ver comigo, ou Kent, ou ninguém. Esse diário é um documento dos seus dias passados no manicômio.

E, de repente, esse pequeno e desgastado caderno é mais importante para mim do que qualquer outra coisa que eu já tenha possuído.


Capítulo 10

Nem eu mesmo sei como consigo voltar tão depressa para meu quarto. Tudo que sei é que tranquei a porta do quarto, destranquei a porta do escritório só para me trancar lá dentro, e agora estou sentado aqui na minha mesa, pilhas de papel e material sigiloso são colocadas de lado, e fico olhando para aquela capa esfarrapada de algo que tenho muito medo de ler. Existe algo pessoal nesse diário; parece que contém sentimentos de solidão, os momentos mais vulneráveis da vida de alguém. Ela escreveu o que está nessas páginas no momento mais lúgubre de sua vida de 17 anos, e estou prestes a conseguir exatamente o que sempre quis.

Um olhar na sua mente.

E embora essa espera esteja acabando comigo, também estou terrivelmente ciente de como isso pode ter um resultado negativo. De repente não tenho mais certeza se realmente quero saber. No entanto, sei que quero. Definitivamente sim.

Então, abro o livro, e viro para a página seguinte. Dia três.


Hoje começo o dia gritando.


E aquelas quatro palavras me atingem mais fundo do que qualquer dor física.

Meu peito está subindo e descendo, minha respiração resfolegante. Tenho que me forçar a continuar a ler.

Logo percebo que as páginas estão fora de ordem. Parece que ela voltou para o começo depois que chegou ao final do diário, e percebeu que não tinha mais espaço. Ela escreveu nas margens, sobre os parágrafos, com letras minúsculas e quase ilegíveis. Existem números rabiscados por cima de tudo, às vezes o mesmo número se repete várias e várias vezes. Algumas vezes a mesma palavra é escrita e reescrita, circulada e sublinhada. E quase todas as páginas têm sentenças e parágrafos quase que inteiramente riscados.

É um completo caos.

Meu coração se contrai ao perceber isso, com essa prova do que ela deve ter passado. Havia imaginado como ela deve ter sofrido durante todo esse tempo, trancada em condições sombrias e pavorosas. Mas ver isso pessoalmente — queria não estar certo.

E agora, mesmo quando tento ler em ordem cronológica, descubro que sou incapaz de acompanhar o método que ela usou para numerar tudo; o sistema que ela criou nessas páginas é algo que só ela seria capaz de decifrar. Posso apenas folhear o material e procurar trechos que estão escritos com mais coerência.

Meus olhos ficam presos a uma passagem em particular.


É uma coisa estranha, não conhecer a paz. Saber que não importa onde você for, não existe um santuário. Que a ameaça da dor estará sempre ali bem perto. Não estou protegida dentro dessas quatro paredes, nunca me senti protegida ao sair de minha casa, e nunca consegui estar segura nos catorze anos que vivi dentro de casa. O hospício mata pessoas todos os dias, o mundo já aprendeu a me temer, e meu lar é o mesmo lugar onde meu pai me prendia no quarto todas as noites e minha mãe gritava comigo por ser a aberração que ela foi forçada a criar.

Ele sempre disse que era meu rosto.

Havia alguma coisa no meu rosto, minha mãe dizia, que ela não conseguia suportar. Algo nos meus olhos, no modo como eu olhava para ela, o simples fato de eu existir. Ela sempre dizia para eu parar de olhar para ela. Ela costumava gritar isso para mim. Como se eu fosse atacá-la. Pare de me olhar, ela gritava. Você pare de olhar para mim, ela gritava.

Uma vez ela colocou minha mão no fogo.

Só para ver se iria queimar, ela disse. Só para verificar se era uma mão comum, ela dizia.

Eu tinha 6 anos então.

Me lembro disso, pois era meu aniversário.


Joguei o caderno no chão.

Me levanto num instante, tentando acalmar meu coração. Passo a mão pelos cabelos, meus dedos seguram as raízes. Essas palavras me tocam, me são tão familiares. A história de uma criança maltratada pelos pais. Trancada e jogada fora. É algo que eu entendo bem.

Nunca li nada parecido antes. Nunca havia lido nada que tocasse direto no meu coração. E eu sei que não deveria. Sei que de algum modo isso não vai ajudar, não vai me ensinar nada, não vai me dar nenhuma pista sobre onde ela pode ter ido. Já sei que ler tudo isso vai me enlouquecer.

Mas não consigo deixar de pegar o diário dela mais uma vez.

Abro-o novamente.


Será que já estou louca?

Será que isso já aconteceu?

Como saberei um dia?


Meu interfone toca tão repentinamente que quase caio da cadeira, e tenho que me segurar na parede por trás da minha mesa. Minhas mãos não param de tremer; minha testa está coberta de suor. Meu braço ferido começa a queimar, e minhas pernas de repente estão fracas demais para me aguentar de pé. Tenho que focar toda a minha energia em parecer normal quando receber a mensagem.

— O quê? — pergunto.

— Senhor, estava pensando, se o senhor ainda estava... bem, a reunião, senhor, a menos é claro que eu entendi o horário errado. Desculpe, não deveria tê-lo incomodado...

— Oh, pelo amor de Deus, Delalieu. — Tento afastar o tremor da minha voz. — Pare de se desculpar. Estou a caminho.

— Sim, senhor — ele diz. — Obrigado, senhor.

Desligo o aparelho.

E então seguro o caderno, o enfio no meu bolso e vou em direção à porta.


Capítulo 11

Estou parado na borda do pátio sobre o Quadrante, olhando para milhares de rostos me encarando. Esses são meus soldados. Parados em fila em seus uniformes de reunião. Camisas pretas, calças pretas, botas pretas.

Sem armas.

Punhos esquerdos pressionados aos peitos.

Faço um esforço para me concentrar — e me importar — com a tarefa à minha frente; mas de um jeito ou de outro não consigo evitar sentir a presença daquele caderno guardado no meu bolso, seu volume pressionando minha perna e me torturando com seus segredos.

Não sou eu mesmo.

Meus pensamentos estão emaranhados em palavras que não são minhas. Respiro fundo para clarear minha cabeça; flexiono os dedos da mão.

— Setor 45 — proclamo, falando diretamente no microfone.

Eles se movem imediatamente, abaixando a mão esquerda e colocando o punho direito de encontro ao peito.

— Temos uma série de coisas importantes para discutir hoje — digo a eles. — A primeira de todas é bem aparente. — Faço um gesto com meu braço. Estudo seus rostos cuidadosamente desprovidos de emoção.

Seus pensamentos traiçoeiros são óbvios.

Eles pensam que sou uma criança maluca. Não me respeitam; não são leais a mim. Eles estão desapontados que estou ali frente a eles; zangado; revoltado até, mas não fui morto por causa desse ferimento.

Mas eles temem a mim.

E isso é tudo de que preciso.

— Fui ferido — digo — enquanto perseguia dois de nossos soldados desertores. Soldado Adam Kent e Soldado Kenji Kishimoto planejaram sua fuga num esforço para sequestrar Juliette Ferrars, nosso mais novo e importante ativo para o Setor 45. Eles foram acusados do crime de capturar e deter a Srta. Ferrars contra a sua vontade. Porém, e mais importante, eles foram devidamente condenados por traição contra o Restabelecimento. Quando forem encontrados serão executados sumariamente.

O terror, eu percebo, é um dos sentimentos mais fáceis de se identificar. Até mesmo no rosto estoico de um soldado.

— Em segundo lugar — digo, dessa vez mais lentamente —, num esforço para apressar o processo de estabilizar o Setor 45, acalmar seus cidadãos, e o subsequente caos resultante desses recentes acontecimentos, o comandante supremo do Restabelecimento se juntou a nós na base. Ele chegou — informo a eles — a menos de trinta e seis horas.

Alguns homens abaixaram os punhos. Esqueceram por um momento de si mesmos. Seus olhos estão arregalados.

Petrificados.

— Vocês irão recepcioná-lo — digo.

Eles caem de joelhos.

É estranho deter esse tipo de poder. Gostaria de saber se meu pai está orgulhoso do que criou. Ser capaz de fazer milhares de homens caírem de joelhos com apenas algumas palavras; apenas ao me ouvirem dizer o seu título. É o tipo de coisa horrorosa e viciante.

Conto cinco compassos na minha cabeça.

— Levantar.

Eles levantam. E então marcham.

Cinco passos para trás, para frente, parados no lugar. Levantam seus braços esquerdos, curvam os dedos e formam punhos, e se ajoelham num joelho só. Dessa vez não permito que se levantem.

— Preparem-se, cavalheiros — digo a eles. — Não descansaremos até que Kent e Kishimoto sejam encontrados e que a Srta. Ferrars seja trazida de volta à base. Vou me reunir com o comandante supremo nas próximas vinte e quatro horas; nossa mais nova missão será claramente definida. Nesse ínterim vocês têm que entender duas coisas: primeiro, iremos neutralizar a tensão que se criou entre os cidadãos e nos esforçar para lembrarmos a eles de suas promessas para nosso novo mundo. E em segundo lugar, garantiremos encontrar os soldados Kent e Kishimoto. — Paro. Olho em volta, me concentrando em seus rostos. — Deixe que o destino deles sirva como exemplo para vocês. Não aceitamos traidores no Restabelecimento. E nós não perdoamos.

 


                                        CONTINUA