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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DESUMANO E DEGRADANTE / Patricia Cornwell
DESUMANO E DEGRADANTE / Patricia Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Faltam duas semanas para o Natal. Faltam quatro dias para o nada. Deitado na cama de ferro, olho meus pés sujos e a privada branca sem tábua, e quando vejo as baratas se arrastando pelo chão já não pulo. Olho-as do mesmo jeito que me olham. Fecho os olhos, respiro lentamente. Lembro-me de colher feno debaixo do sol e de não receber pagamento nenhum, em comparação com o modo como os brancos vivem. Sonho com torrar amendoins numa lata e comer tomates como maçãs na época certa. Imagino-me dirigindo o caminhão, suor escorrendo pelo rosto, naquele lugar sem futuro que eu tinha jurado abandonar. Não posso usar a latrina, assoar o nariz ou fumar sem que os guardas tomem nota. Não há relógio. Nunca sei que horas são. Abro os olhos e vejo uma parede branca e infinita. O que deve pensar um homem a ponto de ser despachado? Como uma canção triste, triste. Não sei a letra. Não consigo lembrar. Dizem que foi em setembro, quando o céu parecia um ovo de pintarroxo e as folhas em fogo caíam pelo chão. Dizem que havia uma fera solta na cidade. Agora há um som a menos. Matando-me não matarão a fera. A escuridão é sua amiga, a carne e o sangue seu festim. Quando você acha que pode parar de procurar, é justamente quando você deve começar a procurar, meu irmão. Um pecado leva a outro.
                                  Ronnie Joe Waddell

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Na segunda-feira em que andei com a meditação de Ronnie Joe Waddell em minha caderneta, nem vi o sol. Ainda estava escuro quando fui para o trabalho de manhã. Estava escuro de novo quando voltei para casa. Gotinhas de chuva apareciam na luz dos faróis, a noite estava fechada de neblina e o frio, cortante. Acendi a lareira em minha sala de visitas e pensei numa fazenda da Virgínia com tomates amadurecendo ao sol. Imaginei um jovem negro na cabine quente de um caminhão e me perguntei se o homicídio já andaria em sua cabeça. A meditação de Waddell fora publicada no Richmond Times-Dispatch e eu guardara o recorte para juntá-lo a seu robusto prontuário. Mas o trabalho do dia tinha me distraído, e a meditação ficara na caderneta. Eu a lera várias vezes. Pensei que sempre me intrigaria com o fato de poesia e crueldade poderem habitar o mesmo coração. Nas horas seguintes paguei algumas contas e escrevi cartões de Natal com a televisão ligada sem som. Quando havia uma execução marcada eu, como o resto dos cidadãos da Virgínia, procurava saber, por intermédio dos meios de comunicação, se todos os recursos haviam sido esgotados e se o governador concedera ou não o indulto. Dependendo das notícias, ia dormir ou ia para o necrotério. Eram quase dez da noite quando o telefone tocou. Atendi, esperando que fosse o subchefe ou algum outro membro de minha equipe que, como eu, estivesse de plantão. Uma voz de homem, que não reconheci, falou: “Alô. Estou tentando falar com Kay Scarpetta. É… a legista chefe, doutora Scarpetta?”. “Isso mesmo”, respondi. “Ótimo. Aqui é o detetive Joe Trent, do condado de Henrico. Encontrei seu número no catálogo. Desculpe incomodá-la em casa.” Parecia ansioso. “Temos um caso aqui e realmente precisamos de sua ajuda.” Olhando tensa para a TV, perguntei: “Qual é o problema?”. Era um intervalo comercial. Esperei não ter de ir ao local de alguma ocorrência. “No começo da noite de hoje um menino de treze anos, branco, foi sequestrado ao sair de um mercado em Northside. Deram um tiro na cabeça dele e talvez haja crimes sexuais envolvidos.” Meu ânimo desabou enquanto eu procurava papel e caneta. “Onde está o corpo?”
“Foi encontrado atrás de uma mercearia na avenida Patterson, aqui no condado. Quer dizer, ele não está morto. Está desacordado, mas por enquanto não dá para saber se vai sobreviver. Como não está morto, sei que não é de sua competência. Mas ele está com ferimentos bem estranhos. Nunca vi coisa igual. Sei que a senhora vê muitos tipos diferentes de ferimentos. Tenho a esperança de que tenha alguma ideia de como os dele foram feitos, e por quê.” “Descreva para mim.” “São em duas regiões. Uma é do lado de dentro da coxa, sabe, lá em cima, perto da virilha. A outra é na região do ombro direito. Estão faltando pedaços de carne — que foram cortados fora. E há uns cortes e arranhões estranhos na borda dos ferimentos. Ele está no posto médico de Henrico.” “Vocês acharam o tecido extirpado?” Meu pensamento percorria outros casos, procurando algo parecido. “Até agora não. Temos homens procurando no local. Mas talvez a agressão tenha ocorrido dentro de um carro.” “Carro de quem?” “Do agressor. O estacionamento da mercearia onde o garoto foi encontrado fica a uns cinco ou seis quilômetros do mercado onde ele foi visto pela última vez. Estou achando que ele entrou no carro de alguém; talvez tenha sido forçado.” “O senhor tirou fotografias dos ferimentos antes que os médicos começassem a cuidar dele?” “Tirei. Mas não servem para grande coisa. Por causa da quantidade de pele que está faltando, vai ser preciso fazer enxertos — enxertos totais, dizem eles, não sei se a senhora entende.” Eu entendia que tinham limpado os ferimentos, que estavam dando antibiótico na veia e que iriam fazer um enxerto glúteo. Se, porém, não fosse esse o caso e tivessem destruído o tecido ao redor das feridas para suturá-las, então não sobraria muito que eu pudesse ver. “Costuraram os ferimentos?” “Não que eu saiba.” “O senhor quer que eu dê uma olhada?” “Seria ótimo”, disse ele, aliviado. “Quem sabe a senhora consegue entender aqueles ferimentos.” “Quando o senhor quer que eu faça isso?” “Pode ser amanhã?” “Está bem. A que horas? Quanto mais cedo, melhor.” “Oito horas? Encontro a senhora na porta da enfermaria.” “Combinado.” O locutor me olhava, sério. Levantei, peguei o controle remoto e aumentei o som.
“… Eugenia? Você pode nos dizer se há alguma novidade do governador?” A câmera focalizou a Penitenciária Estadual da Virgínia, onde os piores criminosos do estado eram estocados, havia vinte anos, ao longo de um trecho pedregoso do rio James, nos limites do centro da cidade. Manifestantes com cartazes e entusiastas da pena de morte juntavam-se no escuro, rostos grosseiros sob as luzes da televisão. Ver gente rindo me deu arrepios. Na tela apareceu uma repórter bonitinha, vestindo um casaco vermelho: “Como você sabe, Bill, ontem foi instalada uma linha telefônica entre o gabinete do governador Norring e a penitenciária. Nenhuma palavra ainda, o que é grave. Historicamente, quando o governador não quer intervir, fica silencioso.” “Como estão as coisas por aí? Tudo relativamente tranquilo até agora?” “Até agora sim, Bill. Eu diria que há centenas de pessoas em vigília aqui. Claro, a própria penitenciária está praticamente vazia. Quase todos os presidiários já foram transferidos para as novas instalações de Greensville.” Desliguei a televisão e minutos depois estava ao volante do meu carro, avançando para leste de portas trancadas e rádio ligado. O cansaço me tomava, como uma anestesia. Sentia-me zonza e pesada. Detestava execuções. Detestava esperar que alguém morresse para, em seguida, cortar com o bisturi carne quente como a minha. Era uma médica formada em direito. Tinha aprendido o que dava e o que tirava a vida, o que era certo e o que era errado. Depois, a experiência tinha se tornado meu guia, limpando os pés naquela minha parte inocente que era idealista e analítica. É desanimador quando uma pessoa que pensa é forçada a admitir que muitos clichês são verdadeiros. Não há justiça nesta Terra. Nada jamais apagaria o que Ronnie Joe Waddell havia feito. Ele tinha ficado nove anos no corredor da morte. Eu não examinara sua vítima, assassinada antes de eu ser nomeada médica-legista chefe da Virgínia e ir morar em Richmond. Mas tinha recebido os laudos. Estava a par de todos os pormenores brutais. Na manhã de 4 de setembro, doze anos atrás, Robyn Naismith faltara, por doença, ao trabalho no canal 8, onde era comentarista. Saíra para comprar remédios para gripe e voltara para casa. No dia seguinte, seu cadáver nu e com sinais de violência fora encontrado na sala de visitas de sua casa, sentado no chão, com as costas apoiadas na TV. Um polegar marcado a sangue no armarinho de remédios fora identificado mais tarde como sendo o de Ronnie Joe Waddell. Havia vários automóveis estacionados perto do necrotério quando cheguei. O subchefe, Fielding; já estava lá. Lá estavam também o administrador, Ben Stevens, e a superintendente do necrotério, Susan Story. A porta de entrada estava aberta, as luzes internas iluminavam ouxamente o asfalto do lado de fora; um policial fumava, sentado em seu carro, e se levantou quando
estacionei. Perguntei-lhe: “Não tem perigo deixar a porta aberta?”. Era um homem alto e magro, de cabelo branco e abundante. Embora tivesse falado com ele muitas vezes, eu não conseguia lembrar seu nome. “Por enquanto parece o.k., doutora Scarpetta”, disse ele, fechando o zíper da pesada jaqueta de náilon. “Não vi desordeiro nenhum por aqui. Mas assim que o rabecão chegar, fecho a porta e tomo providências para que fique fechada.” “Muito bem. Contanto que o senhor fique aqui o tempo todo.” “Sim, senhora. Pode ficar tranquila. E se houver algum problema, a gente pede um reforço. Parece que há muitos manifestantes. Imagino que a senhora leu no jornal sobre a petição que aquele pessoal todo assinou e entregou ao governador. E hoje ouvi dizer que tem até uns santinhos da Califórnia que começaram uma greve de fome.” Olhei o estacionamento vazio e o outro lado da rua. Um carro passou em alta velocidade, cantando os pneus no asfalto molhado. As luzes da rua eram manchas na neblina. “Eu não. Pelo Waddell não perdia nem um intervalo para o café.” O policial cobriu o isqueiro com a mão e começou a soltar baforadas. “Depois do que ele fez com aquela moça! Me lembro dela na TV. Olha, gosto de minhas mulheres do jeito que gosto do café — doce e claro. Mas tenho de admitir que ela era a negrinha mais linda que já vi.” Eu tinha parado de fumar havia pouco mais de dois meses, e ainda ficava alucinada quando via alguém fumando. “Meu Deus, deve fazer quase dez anos”, continuou ele. “Mas nunca vou esquecer a reação. Um dos piores casos que já tivemos por aqui. Parecia que um urso tinha agarrado…” Interrompi-o: “Qualquer coisa o senhor me avisa?”. “Sim, senhora. Vão me avisar pelo rádio e eu lhe digo.” Voltou para o automóvel. Dentro do necrotério a luz fluorescente dissolvia as cores do corredor, embebido do cheiro de desinfetante. Passei pela saleta onde as casas funerárias registravam os corpos, depois pela sala de raio X e, finalmente, pela geladeira, que na verdade era uma grande sala reigerada por aparelhos duplos e equipada com duas pesadas portas de aço. A sala de autópsia estava iluminada, com as mesas de aço inoxidável brilhantemente polidas. Susan estava afiando uma faca comprida e Fielding pondo rótulos em tubos com sangue. Ambos pareciam tão cansados e desanimados quanto eu. “O Ben está lá em cima na biblioteca assistindo TV”, falou Fielding. “Se houver alguma novidade, ele conta para a gente.” “Será que esse cara tinha Aids?” Susan se referia a Waddell como se ele já tivesse morrido. “Não sei”, eu disse. “Vamos trabalhar com luvas duplas, tomar as precauções de sempre.” “Se ele tinha alguma coisa, espero que nos digam”, insistiu ela. “Você sabe
que não confio neles quando nos mandam esses presos. Acho que eles não se preocupam com a questão de eles serem soropositivos porque não é problema deles. Não são eles que fazem a autópsia, que se preocupam com a picada das agulhas.” Susan tinha ficado cada vez mais paranoica com os riscos profissionais, como exposição a radiações, produtos químicos e doenças. Eu não podia culpá-la. Estava grávida de alguns meses, embora quase não parecesse. Enfiei um avental de plástico, voltei para o vestiário e pus o uniforme, cobri os sapatos e apanhei dois pares de luvas. Inspecionei o carrinho cirúrgico encostado à mesa 3. Por toda parte havia etiquetas com o nome Waddell, a data e um número de autópsia. Se no último minuto o governador Norring interviesse, os tubos e caixas rotulados iriam para o lixo. Ronnie Waddell seria excluído do registro do necrotério e seu número de autópsia atribuído a quem viesse em seguida. Às onze da noite Ben Stevens desceu e balançou a cabeça. Todos olhamos para o relógio. Ninguém falou. Os minutos passavam. O policial entrou com um rádio portátil na mão. Finalmente me lembrei do nome dele: Rankin. “Declarado morto às onze e cinco. Em mais ou menos quinze minutos eles estarão aqui”, disse. A ambulância soltou um sinal sonoro enquanto estacionava em marcha à ré na entrada e, quando suas portas traseiras se abriram, vários guardas do Departamento de Execuções Penais pularam para fora para controlar um pequeno tumulto. Quatro deles retiraram a maca com o corpo de Ronnie Waddell e a carregaram rampa acima para dentro do necrotério — metais tinindo, pés se arrastando e todos nós saindo do caminho. Baixando a maca até o chão de ladrilhos sem pensar em desdobrar as pernas, eles a empurraram como um trenó com rodas, com seu passageiro amarrado e coberto por um lençol sujo de sangue. “Sangue pelo nariz”, explicou um dos guardas antes que eu perguntasse. Verificando que as mãos enluvadas do guarda estavam sujas de sangue, perguntei: “Quem sangrou pelo nariz?”. “O senhor Waddell.” “Na ambulância?” Estranhei, pois quando fora embarcado na ambulância Waddell devia estar sem pressão sanguínea. Mas o guarda estava preocupado com outros assuntos e não obtive resposta. Teria de esperar. Transferimos o corpo para a bandeja colocada em cima da balança. Mãos apressadas soltaram as correias e abriram o lençol de qualquer jeito. A porta da sala de autópsia se fechou silenciosamente enquanto os guardas do Departamento de Execuções Penais partiam tão precipitadamente quanto tinham surgido.
Waddell estava morto havia exatamente vinte e dois minutos. Eu podia sentir o cheiro de seu suor e de seus pés sujos e descalços, bem como o odor de carne chamuscada. A perna direita da calça estava arregaçada até acima do joelho, e a barriga da perna envolta em gaze, aplicada às queimaduras já depois da morte. Um homem grande e forte. Os jornais o chamavam bom gigante, o poético Ronnie dos olhos generosos. E no entanto houvera um tempo em que ele usara aquelas mãos grandes e aqueles ombros e braços sólidos para arrancar a vida de outro ser humano. Abri o velcro de sua camisa jeans azul-clara e vasculhei os bolsos enquanto o despia. A busca de objetos pessoais é uma formalidade geralmente inútil. Os presos não podem levar nada para a cadeira elétrica e fiquei muito espantada quando descobri no bolso de trás da calça dele algo que parecia uma carta. O envelope não fora aberto. Em letras graúdas, de imprensa, estava escrito: MUITO CONFIDENCIAL. FAVOR ENTERRAR COMIGO!!! “Faça uma cópia do envelope e de tudo o que há dentro e entregue os originais com os objetos pessoais dele”, eu disse, passando o envelope a Fielding. Ele o prendeu numa tabuleta, embaixo da ficha da autópsia, enquanto murmurava: “Meu Deus. É maior do que eu”. “É difícil alguém ser maior do que você”, disse Susan ao subchefe, um halterofilista. “Ainda bem que não faz muito tempo que ele morreu. Senão íamos precisar de talhadeiras”, acrescentou. Horas depois de mortas, as pessoas musculosas ficam pouco cooperativas, como estátuas de mármore. A rigidez ainda não havia começado. Waddell estava tão flexível quanto em vida. Parecia dormir. Foi preciso juntarmo-nos todos para deitá-lo de barriga para baixo na mesa de autópsia. Pesava cento e dezessete quilos. Seus pés ultrapassavam a mesa. Eu estava medindo as queimaduras quando a campainha da porta tocou. Susan foi ver quem era e em seguida o tenente Pete Marino entrou, com sua capa impermeável aberta e o cinto arrastando pelo chão de ladrilhos. “A queimadura na barriga da perna mede dez e dezesseis por dois e cinquenta e quatro e zero e sessenta e três por seis e um. Está seca, contraída e empolada”, ditei para Fielding. Marino acendeu um cigarro. “Estão fazendo um carnaval por causa da hemorragia”, disse ele. Parecia agitado. “A temperatura retal é de quarenta às onze e quatro”, disse Susan enquanto retirava o termômetro químico. “Você sabe por que o rosto dele estava sangrando?”, perguntou Marino. “Um dos guardas disse que foi sangue pelo nariz”, respondi, acrescentando: “Temos de virá-lo”.
“Você viu isto, na parte interna do braço esquerdo?” Susan chamou minha atenção para uma esfoladura. Examinei com uma lente sob luz forte. “Não sei, talvez seja devido a uma das correias.” “No braço direito também tem.” Dei uma olhada enquanto Marino olhava para mim e fumava. Viramos o corpo, enfiando um calço por baixo dos ombros. A narina direita pingava sangue. O crânio e o queixo tinham sido raspados mal e mal. Fiz a incisão em Y. “Pode haver escoriações aqui”, disse Susan, olhando a língua. “Puxe para fora.” Enfiei o termômetro no fígado. “Meu Deus”, sussurrou Marino. Susan tinha ajustado o escalpelo. “Agora?” “Não. Primeiro fotografe as queimaduras em volta da cabeça. Vamos ter de medi-las. Depois retire a língua.” “Merda”, queixou-se ela. “Quem usou a câmera pela última vez?” “Desculpe”, disse Fielding. “Não tinha filme na bobina. Esqueci. Aliás, manter a bobina carregada é sua obrigação.” “Você já ajudaria se avisasse quando o filme termina.” “Dizem que as mulheres têm intuição. Achei que não precisava avisá-la.” “Tomei as medidas das queimaduras em volta da cabeça”, informou Susan, ignorando a observação. “Está bem.” Susan forneceu as medidas e começou a trabalhar na língua. Marino recuou. “Meu Deus”, disse de novo. “Isso sempre me deixa arrepiado.” “A temperatura do fígado é quarenta e meio”, relatei a Fielding. Dei uma olhada no relógio. Fazia uma hora que Waddell tinha morrido. Não tinha esiado muito. Era grande. A eletrocussão esquenta. A temperatura do cérebro de homens menores que autopsiei chegava a quarenta e três. A barriga da perna direita de Waddell tinha pelo menos aquela temperatura, quente ao toque e com o músculo totalmente rijo. “Pequena escoriação na borda, nada importante”, mostrou Susan. Marino perguntou: “Ele mordeu a língua com força suficiente para sangrar tanto?”. “Não”, eu disse. “É, já estão fazendo um carnaval com isso.” Elevou a voz: “Pensei que gostaria de saber”. Parei, pousando o escalpelo na beira da mesa, e uma ideia me ocorreu. “Você foi uma das testemunhas.” “Sim, eu disse pra você que seria.” Todos olharam para ele.
“A situação está ficando feia lá fora”, disse. “Não quero que ninguém saia daqui sozinho.” Susan perguntou: “Feia como?”. “Um bando de malucos religiosos está na rua Spring desde hoje de manhã. Acabaram sabendo da hemorragia e, quando a ambulância chegou, começaram a vir para cá como um bando de assombrações.” Fielding quis saber: “Você viu quando ele começou a sangrar?”. “Vi. Fritaram ele duas vezes. Da primeira, ouviu-se um apito alto, como vapor saindo de um radiador, e o sangue começou a vazar da máscara. Estão dizendo que talvez a cadeira tenha funcionado mal.” Susan ligou a serrinha elétrica e ninguém tentou dominar o zumbido alto enquanto ela cortava um osso do crânio. Continuei examinando os órgãos. O coração estava bom; as coronárias, magníficas. Quando a serrinha parou, recomecei a ditar para Fielding. “Peso?”, ele perguntou. “O coração pesa dois e quarenta e tem uma aderência no lóbulo superior esquerdo do arco aórtico. Encontrei até quatro paratireoides, não sei se você já viu.” “Vi.” Pus o estômago na tábua de cortar. “Está quase tubular.” Fielding chegou perto para examinar: “Você tem certeza? É estranho. Um cara desse tamanho precisa de quatro mil calorias por dia no mínimo”. “Que ele não estava recebendo, não ultimamente”, eu disse. “Nenhum resíduo gástrico. O estômago está absolutamente vazio e limpo.” Marino me perguntou: “Ele não comeu a última refeição?”. “Parece que não.” “É comum isso?” “É”, eu disse. “É comum.” À uma hora tínhamos terminado e seguimos os serventes da casa funerária até a entrada, onde o rabecão esperava. Quando saímos do edifício, vimos luzes vermelhas e azuis pulsando na escuridão. A estática dos rádios corria pelo ar io e úmido, motores roncavam, e atrás da cerca de arame que circundava o estacionamento havia um anel de fogo. Homens, mulheres e crianças estavam silenciosamente de pé, rostos bruxuleantes à luz das velas. Os serventes não perderam tempo. Enfiaram o corpo de Waddell pela parte de trás do rabecão e bateram a porta. Alguém disse algo que não entendi e subitamente velas choveram por cima da cerca e aterrissaram suavemente no calçamento. Marino exclamou: “Gracinhas!”. Pavios laranja brilharam e chamas pequenas salpicaram o asfalto. O rabecão começou a passar pelo portão, depressa e de ré. Foguetes foram disparados. Reparei no furgão de reportagem do canal 8 parado na rua Principal. Alguém
corria pela calçada. Homens uniformizados apagavam as velas, avançavam para a cerca e mandavam que todo mundo esvaziasse a área. Um policial disse: “Não queremos problemas. Só se algum de vocês quiser passar a noite em cana…”. “Açougueiros!”, berrou uma mulher. Outras vozes se juntaram à dela e várias mãos agarraram e sacudiram a cerca. Marino me empurrou para o automóvel. Um estribilho se elevou com intensidade tribal: “Açougueiros, açougueiros, açougueiros…”. Me atrapalhei com as chaves, deixei-as cair no asfalto, peguei-as do chão e consegui encontrar a certa. “Vou acompanhar você até em casa”, disse Marino. Liguei o aquecimento mas continuei com io. Examinei duas vezes as portas para ver se estavam trancadas. A noite ficou com um ar fantástico, com uma assimetria estranha de janelas acesas e apagadas, e nos cantos de meus olhos sombras moviam-se.
Como eu não tinha bourbon, bebemos uísque em minha cozinha. “Não sei como você aguenta esse troço”, disse Marino num tom grosseiro. “Escolha alguma outra coisa aí no bar”, falei. “Eu aguento.” Eu não sabia como entrar no assunto e era óbvio que Marino não facilitaria a tarefa. Estava nervoso, de rosto congestionado. Na cabeça suada, onde a calvície ia avançando, os fios grisalhos estavam desgrenhados, e ele fumava sem parar. Perguntei: “Você já assistiu a uma execução?”. “Nunca tive vontade.” “Mas dessa vez você se apresentou. Quer dizer que a vontade deve ter sido forte.” “Aposto que se você botar limão e soda isto aqui melhora.” “Se você quer que eu estrague um uísque bom, será um prazer ver o que posso fazer.” Ele me estendeu o copo e fui até a geladeira. Procurei nas prateleiras. “Tenho suco de lima em garrafa mas não tenho limão.” “Serve.” Pus o suco de lima no copo e acrescentei uma Schweppes. Sem pensar na estranha mistura que estava ingerindo, ele disse: “Talvez você tenha esquecido, mas o caso Robyn Naismith era meu. Meu e do Sonny Jones”. “Eu não morava aqui naquela época.” “Ah, é. Engraçado, parece que você sempre morou aqui. Mas você sabe o que aconteceu, não sabe?”
Quando Robyn Naismith foi assassinada, eu era legista subchefe do condado de Dade. Eu me lembrava de ter seguido o caso na imprensa e depois de ter visto uma apresentação de slides a respeito num encontro nacional. A exmiss Virgínia era de uma beleza estonteante com uma maravilhosa voz de contralto. Falava bem e prendia a atenção diante das câmeras. Tinha só vinte e sete anos. A defesa alegara que a intenção de Ronnie Waddell havia sido roubar e que o azar de Robyn fora ter voltado da farmácia de repente. Waddell não teria o hábito de assistir televisão e, enquanto revirava a casa e torturava Robyn, não sabia de quem se tratava nem o que podia acontecer com ela. Segundo a defesa, estava tão drogado que nem sabia o que fazia. Os jurados rejeitaram a alegação de privação de sentidos e o condenaram à morte. “Sei que foi feito um grande esforço para agarrar o assassino”, eu disse. “Inacreditável. Tínhamos aquela impressão digital. Tínhamos as marcas de dentes. Tínhamos três caras vasculhando os arquivos de manhã, de tarde e de noite. Não tenho ideia de quanto tempo perdi na porra desse caso. E aí agarramos o merda do cara porque ele estava na Carolina do Norte dirigindo um carro com licença vencida.” Fez uma pausa e acrescentou com dureza no olhar: “Claro que aí o Jones não estava mais. Foi uma pena ele não ver o Waddell receber o merecido”. “Você acha que o Waddell foi culpado pelo que aconteceu ao Sonny Jones?” “Que é que você acha?” “Você era amigo íntimo dele.” “Trabalhávamos juntos na seção de homicídios, pescávamos juntos, estávamos na mesma equipe de boliche.” “Sei que a morte dele foi dura para você.” “É, o caso o desgastou. Trabalhando o tempo todo, sem dormir, sem ir para casa, e é claro que isso não ajudou com a mulher. Vivia me dizendo que não aguentava mais, e chegou um momento em que já não me dizia mais nada. Uma noite ele decidiu dar um tiro nos cornos.” “Pena. Mas tenho certeza de que você não pode culpar o Waddell por isso.” “Eu tinha de acertar minhas contas com ele.” “E ajustou quando assistiu à execução?” Marino não respondeu. Ficou olhando carrancudo para as paredes da cozinha. Fiquei observando enquanto ele fumava e acabava com a bebida. “Pode me dar mais um pouco?” “Claro.” Levantei, servi-o de novo e pensei nas injustiças e perdas que o tinham deixado assim. Ele sobrevivera a uma infância pobre e sem amor na pior parte de New Jersey e criara uma desconfiança básica em relação a qualquer pessoa cuja sorte tivesse sido melhor que a sua. Fazia pouco tempo que sua mulher o deixara depois de trinta anos de casamento; tinha um filho a
respeito do qual ninguém parecia saber coisa nenhuma. A despeito de sua lealdade à lei e à ordem e de seu excelente prontuário profissional, não estava em seu código genético dar-se bem com os chefes. Aparentemente, sua trajetória de vida havia sido uma estrada árdua. Eu tinha a impressão de que o que ele queria era obter compensações na vida, e não sabedoria ou paz. Marino estava sempre irritado com alguma coisa. Quando voltei à mesa, ele disse: “Deixe-lhe perguntar uma coisa, doutora. Como você se sentiria se eles encontrassem os bostas que mataram o Mark?”. A pergunta me pegou desprevenida. Não queria pensar naqueles homens. Ele prosseguiu: “Não tem uma parte sua que gostaria de ver os merdas enforcados? Uma parte sua não gostaria de ir para o pelotão de fuzilamento só para puxar pessoalmente o gatilho?”. Mark morrera porque alguém pusera uma bomba numa lata de lixo na estação Vitória, em Londres, que explodiu quando ele estava passando. O choque e a dor me haviam deixado além do desejo de vingança. “Seria tolice imaginar que eu pudesse punir um grupo de terroristas.” Marino me olhou com intensidade. “Essa é uma de suas famosas desculpas ias. Se você pudesse, faria a autópsia grátis. De preferência com eles vivos, para cortar bem devagarinho. Já lhe contei o que aconteceu com a família de Robyn Naismith?” Agarrei o copo. “O pai dela era médico na Virgínia do Norte, um homem bom mesmo. Mais ou menos seis meses depois do julgamento, ficou com câncer e morreu em dois meses. Robyn era filha única. A mãe foi para o Texas, soeu um acidente de carro e agora está numa cadeira de rodas, vivendo de lembranças. Waddell matou a família toda. O cara envenenou a vida de todo mundo.” Pensei em Waddell crescendo na fazenda, as imagens de sua meditação me passaram pelo espírito. Imaginei-o sentado nos degraus da varanda comendo um tomate com gosto de sol. Cismei no que lhe teria passado pela cabeça no último segundo de vida. Perguntei-me se havia rezado. Marino puxou um cigarro. Estava pensando em ir embora. Perguntei: “Você conhece um detetive chamado Trent, de Henrico?”. “Joe Trent. Era da divisão K-9 e foi transferido para a divisão de investigação quando o promoveram a sargento, faz uns dois meses. É meio nervosinho, mas é boa gente.” “Ele me telefonou para falar de um garoto…” Marino me interrompeu: “Eddie Heath?”. “O nome eu não sei.” “Um garoto de mais ou menos treze anos, branco. Estamos trabalhando no caso. O Lucky’s é aqui na cidade.” “Que Lucky’s?” Marino anziu a testa. “O mercado onde ele foi visto pela última vez. Fica
na zona norte, perto da avenida Chamberlayne. O que o Trent queria? Sabendo que o garoto não ia conseguir se salvar, resolveu marcar antecipadamente uma autópsia com você?” “Ele quer que eu olhe uns ferimentos esquisitos, umas mutilações.” “Meu Deus. Detesto quando pegam crianças.” Marino empurrou a cadeira e esegou a testa. “Puta merda. Nem bem a gente termina com um cara desses e já aparece outro.”
Depois que Marino foi embora, me instalei perto da lareira da sala de visitas e fiquei olhando a dança dos carvões. Estava cansada, sentia uma tristeza sombria e implacável da qual não conseguia me livrar. A morte de Mark havia deixado minha alma partida. Eu tinha compreendido, incrivelmente, até que ponto minha identidade estava ligada a meu amor por ele. Eu o havia visto pela última vez no dia em que ele viajara para Londres. Tínhamos conseguido almoçar rapidamente antes de ele ir para o aeroporto Dulles. O que eu lembrava mais claramente de nossa última hora juntos era nós dois olhando para os relógios enquanto se formavam nuvens de tempestade e a chuva começava a bater na janela ao lado de nossa mesa. Ele estava com uma marquinha no queixo, no lugar onde tinha se cortado fazendo a barba; mais tarde, quando via seu rosto em pensamento, reparava na marca e aquilo acabava comigo. Mark morreu em fevereiro, quando a guerra no golfo Pérsico chegou ao fim. Decidida a vencer a dor, vendi minha casa e fui morar em outro bairro. Só consegui arrancar minhas raízes, sem verdadeiramente ir a lugar nenhum, e perdi as plantas e os vizinhos que me amparavam. Com a decoração da casa nova e o projeto do jardim, minha angústia só aumentara. Tudo o que eu fazia me levava a digressões para as quais não tinha tempo. Eu imaginava Mark balançando a cabeça, sorrindo e dizendo: “Mas uma pessoa tão lógica…”. Algumas noites, quando eu não conseguia dormir, perguntava a ele em pensamento: E você, o que faria? Porra, o que você faria se estivesse aqui em meu lugar? Voltei à cozinha, lavei o copo e fui até o escritório verificar os recados na secretária eletrônica. Vários repórteres tinham telefonado, além de minha mãe e minha sobrinha Lucy. Em outras três mensagens a pessoa desligava. Eu teria adorado não constar da lista telefônica, mas não era possível. A polícia, os procuradores da Justiça e mais ou menos quatrocentos médicoslegistas credenciados em todo o estado tinham razões legítimas para ter de me encontrar a qualquer momento. Para compensar a perda da privacidade, eu usava a secretária eletrônica para selecionar os telefonemas. Pessoas que deixassem mensagens ameaçadoras ou obscenas corriam o risco de serem identificadas graças ao aparelho. Apertei a tecla de identificação dos telefonemas e comecei a ler os
números que apareciam no visor. Quando encontrei as três ligações que estava procurando, fiquei abalada e perplexa. O número já se tornara familiar. Na última semana ele aparecera muitas vezes no visor, sempre com a pessoa que havia dado o telefonema pondo o fone de volta no gancho sem dizer nada. Uma vez eu tinha ligado para aquele número para ver quem atendia, mas só ouvira um som agudo de aparelho de fax ou modem. Não sei por que aquele ser ou coisa ligara para meu número três vezes entre as dez e meia e as onze da noite, enquanto eu estava no necrotério esperando pelo corpo de Waddell. Não fazia sentido. Vendas telefônicas por computador não ocorreriam com aquela equência e tão tarde da noite, e se algum modem tentando alcançar outro estivesse dando em meu telefone, alguém forçosamente teria entendido que seu computador estava discando um número errado. Nas poucas horas de madrugada que restavam, acordei muitas vezes. Todo estalo ou ruído na casa acelerava meu pulso. As luzes rubras do quadro de controle do alarme contra ladrões brilhavam ameaçadoras diante de minha cama, e sempre que eu me virava ou arrumava as cobertas os detectores de movimento, que eu não costumava ligar quando estava em casa, piscavam silenciosamente seus olhos vermelhos. Tive sonhos estranhos. Às cinco e meia, acendi a luz e me vesti. Quando fui para o trabalho, estava escuro e havia muito pouco tráfego. O estacionamento dos fundos estava deserto, coberto por dúzias de velinhas que me faziam pensar em diversos tipos de celebração religiosa. Aquelas velas, porém, tinham sido usadas para protestar. Horas antes elas tinham sido usadas como armas. Subi e preparei um café, depois comecei a dar uma olhada nos relatórios que Fielding deixara para mim, curiosa quanto ao conteúdo do envelope que havia encontrado no bolso traseiro de Waddell. Esperava um poema, talvez outra meditação ou uma carta de seu pastor. Engano. O que Waddell considerava “muito confidencial” e queria que fosse enterrado com ele eram recibos de uma caixa registradora. Inexplicavelmente, quatro eram de pedágios e três eram de refeições, inclusive um jantar de ango ito feito no restaurante Shoney duas semanas antes.
2
Não fossem a barba e o cabelo louro que começava a escassear e embranquecer, o detetive Joe Trent teria parecido bem jovem. Era magro e alto, vestia um casaco militar justo e cintado e calçava sapatos perfeitamente engraxados. Piscava nervosamente enquanto nos apertávamos as mãos e nos apresentávamos na ente do Centro Médico de Emergência de Henrico. Viase que estava perturbado pelo caso de Eddie Heath. Soltando uma baforada, disse: “A senhora não se incomoda de conversar aqui um minuto? Por razões de sigilo”. Trêmula, me encolhi quando um helicóptero Medflight fez um barulho terrível ao decolar de uma plataforma gramada ali perto. A luz era um naco de gelo derretendo no céu cinzento e os automóveis estacionados estavam sujos do sal espalhado nas ruas e das chuvas geladas do inverno. Era um amanhecer desolado e sem cor, o vento estava cortante como uma bofetada — o que observei com maior agudeza devido ao assunto que me trazia ao local. Ainda que a temperatura tivesse subido quatro graus de repente e o sol começado a brilhar, não creio que pudesse sentir algum calor. “O caso aqui é brabo, doutora Scarpetta. Acho que a senhora concorda que os pormenores não devem ser divulgados.” “O que o senhor pode me contar sobre esse garoto?” “Falei com a família e com várias outras pessoas que o conhecem. Até onde posso saber, Eddie é só um jovem comum — gosta de esportes, entrega jornais e nunca teve problemas com a polícia. O pai trabalha na companhia telefônica e a mãe costura na casa das eguesas. Parece que ontem a senhora Heath precisou de uma lata de sopa de cogumelos para um guisado que estava preparando para o jantar e pediu ao Eddie que corresse até o mercado para comprá-la.” “O mercado é longe da casa?” “Umas duas quadras, e o Eddie sempre vai lá. Os balconistas o conhecem pelo nome.” “Quando ele foi visto pela última vez?” “Lá pelas cinco e meia da tarde. Ficou no mercado uns minutos e foi embora.” “Já devia estar escuro.” Trent olhou para o helicóptero que à distância transfigurava numa libélula batendo as asas suavemente no meio das nuvens. “Já. Já estava. Mais ou menos às oito e meia um policial em ronda de rotina estava verificando os
fundos dos imóveis da Patterson e viu o garoto com as costas apoiadas no contêiner.” “O senhor trouxe fotografias?” “Não, senhora. Quando o policial viu que o menino estava vivo, sua primeira providência foi buscar socorro. Não temos fotografias. Mas temos uma descrição bem detalhada, baseada nas observações do policial. O menino estava nu, com o corpo escorado, pernas abertas, braços abertos para os lados e a cabeça caída para a ente. A roupa estava no chão, empilhada com um certo cuidado, perto de um saco com uma lata de sopa de cogumelos e uma caixinha de balas. Fazia dois graus abaixo de zero. Acreditamos que ele ficou ali entre alguns minutos e meia hora até ser encontrado.” Uma ambulância parou perto de nós. Um ruído de portas batendo e metais rangendo acompanhou a rápida manobra com que os serventes baixaram as pernas de uma maca, abriram as portas de vidro e empurraram um velho para dentro do edifício. Fomos atrás e avançamos em silêncio por um corredor brilhante e asséptico por onde circulavam o pessoal médico e os pacientes atordoados pelos infortúnios que os tinham conduzido até ali. Enquanto subíamos de elevador para o terceiro andar, eu tentava imaginar que elementos de prova teriam sido apagados e jogados no lixo. Quando as portas do elevador se abriram, perguntei: “E as roupas? Algum projétil?”. “Estou com as roupas no carro e esta tarde vou deixá-las no laboratório, junto com a informação toda. A bala ainda está na cabeça dele. Por enquanto não tiraram. Tomara que façam tudo direito.” A unidade pediátrica de tratamento intensivo ficava depois de um saguão polido e tinha as vidraças das portas duplas cobertas de figuras de dinossauros. Dentro, as paredes azul-celeste eram decoradas com arco-íris e silhuetas de animais recortadas pendiam sobre os leitos hidráulicos nos oito quartos dispostos em semicírculo em torno da sala das enfermeiras. Três moças trabalhavam atrás de monitores, uma delas ao teclado e outra falando ao telefone. Trent explicou quem éramos e por que estávamos ali, e uma moreninha de jardineira vermelha de veludo riscado e suéter se identificou como a enfermeira chefe, desculpando-se: “O médico responsável ainda não chegou”. Trent disse: “Só precisamos dar uma olhada nos ferimentos do Eddie. Não vai levar muito tempo. A família ainda está aí?”. “Ficaram com ele a noite toda.” Seguimos a moça naquela luz artificial suave, passando ao lado de carrinhos de remédios e tanques verdes de oxigênio que, fosse o mundo o que devia ser, não estariam parados à porta dos quartos de meninos e meninas pequenos. Quando chegamos ao quarto de Eddie, a enfermeira entrou na nossa ente e fechou a porta quase inteiramente. Ouvi-a dizer aos parentes: “Uns minutinhos só. Enquanto a gente examina”.
O pai perguntou, com voz alterada: “Que especialista é agora?”. A enfermeira se absteve diplomaticamente de dizer que eu era uma perita médica ou, pior ainda, uma médica-legista. “Uma médica entendida em lesões. Uma espécie de médica da polícia.” Depois de um silêncio, o pai disse baixinho: “Ah. É para a parte legal”. “Pois é. Alguém quer café? Alguma coisa para comer?” Os pais saíram do quarto, ambos bem gordos e de roupas amarrotadas por terem dormido com elas. Seu olhar desconcertado era o de pessoas inocentes e simples que tinham recebido a informação de que o mundo estava para acabar. Quando eles nos fitaram com seus olhos exaustos, desejei que houvesse algo que eu pudesse dizer para desmentir ou pelo menos atenuar aquilo. As palavras de consolo morreram em minha garganta, e o casal se afastou lentamente. Com a cabeça envolta em ataduras, um ventilador instilando ar em seus pulmões, e recebendo soro nas veias, Eddie Heath não se mexia. Sua pele era leitosa e lisa, e à luz mortiça a membrana fina de suas pálpebras parecia uma mancha azul. Imaginei a cor do cabelo pelas sobrancelhas ruivas como morango. Ele não tinha ainda emergido daquele estágio pré-pubescente durante o qual os meninos têm lábios grossos, são mais bonitos e cantam mais suavemente que suas irmãs. Seus braços eram finos, o corpo pequeno sob o lençol. Só as mãos imóveis, desproporcionalmente grandes e vincadas de veias, correspondiam a seu gênero ainda incipiente. Não parecia ter treze anos. “Ela precisa ver o ombro e a perna”, disse Trent em voz baixa à enfermeira. A enfermeira pegou dois pares de luvas, um para ela e outro para mim. Sob o lençol, o menino estava nu; as dobras da pele e as unhas, sujas. Pacientes em situação crítica não podem ser banhados. Enquanto a enfermeira removia os curativos, Trent se retesou. “Nossa!”, disse em voz baixa. “Está ainda pior que ontem à noite. Meu Deus!” Balançou a cabeça e recuou um passo. Se alguém tivesse me dito que o menino fora atacado por um tubarão, eu teria acreditado, salvo pelas bordas regulares dos ferimentos, que evidentemente haviam sido causados por um instrumento cortante reto, como uma faca ou uma navalha. Pedaços de carne do tamanho de reforços de cotovelo haviam sido extraídos do ombro direito e do lado de dentro da coxa direita. Abrindo a maleta médica, tirei uma régua e medi as feridas sem tocálas, e depois tirei fotografias. “A senhora está vendo os cortes e os arranhões nas bordas?”, Trent apontou. “Era disso que eu estava lhe falando. Parece que ele riscou uma forma na pele e aí arrancou tudo.” Perguntei à enfermeira: “Você encontrou algum ferimento anal?”. “Não notei nada quando tomei a temperatura retal, e ninguém notou nada
fora do comum na boca e na garganta quando ele foi entubado. Também procurei fraturas ou escoriações antigas.” “E tatuagens?” “Tatuagens?”, perguntou ela, como se nunca tivesse visto uma tatuagem. “Tatuagens, marcas de nascença, cicatrizes. Tudo o que alguém possa ter removido por alguma razão.” “Não tenho ideia”, disse a enfermeira, hesitante. “Vou perguntar aos pais.” Trent enxugou a testa. “Talvez tenham ido à cantina.” “Vou ver onde eles estão”, disse ele da porta. “O que os médicos dizem?” Sem emoção, a enfermeira declarou o óbvio: “Está em estado crítico e não reage”. “Posso ver onde a bala entrou?” Ela aouxou a beira da atadura e puxou-a para cima até eu poder ver o buraquinho negro, queimado na borda. O ferimento era na têmpora direita, um pouco para a frente. “Atravessou o lóbulo frontal?” “Sim.” “Fizeram uma angiografia?” “Não há circulação no cérebro, por causa do inchaço. Não há atividade eletroencefálica, e quando pusemos água ia nas orelhas não houve atividade calórica. A água não provocou reações cerebrais.” A enfermeira ficou do outro lado da cama, com as mãos enluvadas caídas ao lado do corpo e expressão indiferente enquanto continuava a relatar os vários exames feitos e as manobras tentadas para diminuir a pressão intracraniana. Eu tinha pago meu tributo às salas de emergência e às unidades de terapia intensiva e sabia muito bem que é mais fácil adotar uma atitude clínica quando se está falando de um paciente que não chegou a despertar. E Eddie Heath não despertaria nunca. Fora-se o córtex. Fora-se o que o fazia humano, o que o fazia pensar e sentir — e nunca mais voltaria. Ficaram as funções vitais, um ramo do cérebro. Era um corpo que respirava com um coração que, no momento, pulsava através de máquinas. Comecei a procurar sinais de luta. Atenta para não mexer nos tubos, só me dei conta de que segurava sua mão quando ele me assustou ao apertar a minha. Esses movimentos reflexos não são raros em pessoas com morte cortical. São o equivalente da atitude dos bebês que agarram seu dedo, um reflexo que não envolve nenhum processo de pensamento. Soltei sua mão delicadamente e respirei fundo, esperando que a dor em meu coração se acalmasse. A enfermeira perguntou: “Achou alguma coisa?”. “É difícil olhar com esses tubos todos.”
Ela repôs os curativos e puxou o lençol até o queixo dele. Tirei as luvas e as joguei no lixo, ao mesmo tempo que o detetive Trent voltava, de olhos meio espantados. “Nenhuma tatuagem. Nem marcas de nascença, ou cicatrizes”, disse sem fôlego, como se tivesse corrido até a cantina. Momentos mais tarde estávamos andando no estacionamento. O sol aparecia e se escondia, e pequenos flocos de neve esvoaçavam no ar. Fiquei tonta ao contemplar o tráfego pesado na avenida Forest. Alguns carros tinham guirlandas de Natal presas na frente. Eu disse: “Acho melhor o senhor se preparar para a possibilidade da morte dele”. “Se eu soubesse não teria incomodado a senhora. Poxa, que frio.” “O senhor fez exatamente o que devia. Se esperássemos mais, os ferimentos mudariam de aspecto.” “Dizem que dezembro inteiro vai ser assim. Frio como o diabo e muita neve.” Ele olhou para o chão. “A senhora tem filhos?” “Tenho uma sobrinha.” “Eu tenho dois meninos. Um tem treze anos.” Apanhei minhas chaves. “Meu carro é este.” Trent balançou a cabeça. Olhou em silêncio enquanto eu abria meu Mercedes cinza. Seus olhos observaram o interior de couro enquanto eu me sentava e apertava o cinto. Olhou o carro de cima a baixo como se avaliasse uma mulher fabulosa. “E a pele arrancada? A senhora já viu alguma coisa assim?” “Pode ser que a gente esteja tratando com alguém inclinado ao canibalismo”, respondi.
Voltei à minha sala, olhei o escaninho da correspondência, rubriquei uma pilha de relatórios, enchi uma caneca com a borra líquida que ficara no fundo do bule de café e não falei com ninguém. Eu estava sentada à escrivaninha quando Rose apareceu tão silenciosamente que eu não a teria visto se ela não tivesse colocado um recorte de jornal sobre muitos outros deixados em cima do forro de mata-borrão de minha mesa. “A senhora parece cansada. A que horas chegou hoje? Quando eu cheguei aqui o café já estava pronto e a senhora já tinha saído.” “Há um caso muito sério em Henrico. Um menino que com certeza vem para cá.” “Eddie Heath.” “É”, falei, perplexa. “Como você sabe?” “Está no jornal”, respondeu Rose. Reparei que ela estava com uns óculos novos que tornavam menos altivo seu rosto aristocrático. “Gostei dos seus óculos. São bem melhores que aqueles à la Benjamin
Franklin que você usava na ponta do nariz. O que o jornal dizia sobre o garoto?” “Não dizia muito, não. Só que ele fora encontrado perto da Patterson e que tinha levado um tiro. Se meu filho ainda fosse pequeno, eu não ia permitir de jeito nenhum que ele entregasse jornal.” “Eddie Heath não estava entregando jornal quando foi atacado.” “Não tem importância. Eu não deixaria, nos dias de hoje... Olhe.” Puxou a pálpebra inferior. “O Fielding está lá embaixo fazendo uma autópsia e a Susan saiu para entregar diversos cérebros para exame. Fora isso, não aconteceu nada enquanto a senhora esteve fora, só o sistema que saiu do ar.” “Ainda está fora do ar?” “Acho que Margaret está trabalhando nele e está quase acabando.” “Está bem. Quando ficar pronto, preciso de uma investigação. Peça a ela que procure os códigos corte, mutilação, canibalismo, marcas de dentada. Talvez uma busca geral das palavras extirpado, pele, carne — diversas combinações delas. Talvez você pudesse tentar também esquartejamento, mas acho que não é isso que estamos procurando.” Rose tomava nota. “Para que parte do estado, e em que período?” “Todo o estado, nos últimos cinco anos. Estou interessada particularmente nos casos que envolvam crianças, mas não vamos nos restringir a eles. E diga a ela para ver o que há no Registro de Traumatismos. Conversei com o diretor numa reunião, mês passado, e ele me pareceu mais que disposto a nos fornecer dados.” “Quer dizer que a senhora também quer verificar vítimas que sobreviveram?” “Se pudermos, Rose. Vamos verificar tudo para ver se conseguimos encontrar algum caso parecido com o de Eddie Heath.” Já de saída, minha secretária disse: “Vou falar agora com a Margaret e ver se ela pode começar logo”. Comecei a ler os artigos que ela havia recortado de uma série de matutinos. Naturalmente falava-se muito da suposta hemorragia de Ronnie Waddell, “pelos olhos, pelo nariz e pela boca”. O escritório local da Anistia Internacional alegava que aquela execução fora tão desumana quanto qualquer homicídio. Um porta-voz da União Americana pelas Liberdades Civis declarava que a cadeira elétrica “podia ter funcionado mal, fazendo Waddell soer terrivelmente”, e prosseguia comparando o incidente à execução levada a efeito na Flórida e na qual esponjas sintéticas usadas pela primeira vez tinham feito arder o cabelo do condenado. Enfiando as notícias na pasta de Waddell, procurei adivinhar que coelhos seu advogado, Nicholas Grueman, tiraria da cartola dessa vez. Nossos embates, embora raros, tinham se tornado previsíveis. Eu estava começando a crer que seu verdadeiro propósito era levantar dúvidas sobre minha
competência profissional e, de modo geral, fazer eu me sentir uma idiota. O que, contudo, mais me aborrecia era que Grueman não demonstrava lembrarse de que eu fora sua aluna na Universidade de Georgetown. Era verdade que eu tinha sido displicente em meu primeiro ano de direito, que só tirara sete e não conseguira entrar para a redação da Revista Jurídica. Enquanto vivesse, não esqueceria Nicholas Grueman e não me parecia justo que ele tivesse me esquecido. Ouvi falar dele na quinta-feira, pouco depois de ser informada de que Eddie Heath morrera. A voz de Grueman veio pelo telefone. “Kay Scarpetta?” “Sim.” Fechei os olhos e senti, pela pressão em volta deles, que minha raiva estava aumentando. “Aqui fala Nicholas Grueman. Estive examinando o laudo preliminar da autópsia do senhor Waddell e gostaria de lhe fazer umas perguntas.” Fiquei em silêncio. “Estou falando de Ronnie Joe Waddell.” “Em que posso ajudá-lo?” “Vamos começar com o suposto estômago quase tubular. Aliás, uma descrição interessante. Não sei se isso é sua linguagem ou um termo médico reconhecido. Entendi bem que o senhor Waddell não estava comendo?” “Não posso dizer que não estava comendo coisa nenhuma, mas o estômago dele tinha encolhido. Estava vazio e limpo.” “Será que informaram a senhora de que ele talvez estivesse fazendo uma greve de fome?” “Não me disseram nada disso.” Levantei o olhar para o relógio e a luz feriume os olhos. Estava sem aspirina e deixara em casa as gotas descongestionantes. Ouvi o ruído de páginas sendo viradas. “Diz aqui que a senhora encontrou escoriações nos braços, na face interna da parte superior de ambos os braços.” “É verdade.” “E o que é exatamente uma face interna?” “É o lado de dentro do braço, acima da fossa antecubital.” Pausa. “A fossa antecubital”, disse ele, surpreso. “Bem, deixe-me ver. Estou com a palma da mão para cima e estou olhando para o lado de dentro do meu cotovelo. Quer dizer, onde o braço dobra. Até aí está certo, não é? Quer dizer que a face interna é o lado onde o braço dobra e que a fossa antecubital, então, é o ponto onde o braço dobra?” “Isso mesmo.” “Muito bem, muito bem. E a que a senhora atribui essas lesões nas faces internas dos braços do senhor Waddell?” “Possivelmente às correias.”
“Correias?” “É, as correias de couro da cadeira elétrica.” “A senhora disse possivelmente. Possivelmente correias?” “Foi o que eu disse.” “Quer dizer que a senhora não pode dizer com certeza, doutora Scarpetta?” “Há muito pouco nesta vida que a gente pode dizer com certeza, doutor Grueman.” “Quer dizer que seria razoável imaginar a possibilidade de que as correias que causaram as escoriações pudessem ter sido de outro tipo? Uma lesão humana, por exemplo? Digamos, marcas deixadas por mãos humanas?” “As escoriações que encontrei não poderiam ter sido feitas por mãos humanas.” “E poderiam ter sido feitas pela cadeira elétrica, pelas correias da cadeira elétrica?” “Minha opinião é de que sim.” “Sua opinião, doutora Scarpetta?” “Não examinei a cadeira elétrica”, eu disse, seca. Seguiu-se uma pausa longa, das que tinham tornado Nicholas Grueman famoso na sala de aula quando queria que a insuficiência evidente de um aluno ficasse flutuando no ar. Bem que eu o via andando à minha volta de mãos cruzadas nas costas e rosto impassível ao som marcado do relógio de parede. Uma vez eu soera sua observação silenciosa durante mais de dois minutos, enquanto meus olhos percorriam cegamente as páginas do prontuário aberto à minha ente. Cerca de vinte anos mais tarde, sentada à minha mesa de nogueira maciça, legista chefe de meia-idade com diplomas e certificados suficientes para empapelar uma parede, senti meu rosto começar a pegar fogo. Senti a velha humilhação, a velha raiva. No exato momento em que Grueman encerrava subitamente a conversa com um “Bom dia” e desligava, Susan entrou na sala. “O corpo do Eddie Heath chegou.” Seu avental cirúrgico estava desamarrado atrás e limpo, a expressão de seu rosto era de distração. “Pode esperar até amanhã?” “Não. Não pode.”
Na ia mesa de aço o menino parecia ainda menor que nos lençóis claros de seu leito de hospital. Nessa sala não havia arco-íris nem paredes ou janelas decoradas com dinossauros para alegrar o coração das crianças. Eddie Heath tinha vindo nu, com agulhas intravenosas, cateteres e curativos ainda no lugar. Pareciam tristes testemunhos do que o tinha prendido a este mundo e logo o desligara dele, como a corda de um balão que flutua ao desamparo pelo ar aberto. Durante quase uma hora documentei as lesões e as marcas da terapia, enquanto Susan tirava fotografias e atendia ao telefone.
Tínhamos fechado as portas que davam para a sala de autópsia e eu podia ouvir, lá fora, as pessoas que saíam do elevador e iam para casa na escuridão que baixava rapidamente. A campainha soou por duas vezes na entrada; eram serventes de funerárias trazendo ou levando um corpo. Os ferimentos do ombro e da coxa de Eddie, de um rubro vivo e escuro, estavam secos. “Meu Deus”, disse Susan, ao vê-los. “Meu Deus, quem faria uma coisa dessas? Olhe todos esses cortezinhos nas bordas. É como se alguém tivesse feito cruzes e depois removido toda a pele.” “É exatamente isso o que eu acho que foi feito.” “Você acha que alguém fez uma espécie de desenho?” “Acho que alguém tentou arrancar alguma coisa. E, quando não conseguiu, tirou a pele.” “Arrancar o quê?” “Nada que já estivesse aí”, falei. “Ele não tinha tatuagens, marcas de nascença nem cicatrizes nesses lugares. Se era uma coisa que ainda não estava no corpo dele, então talvez alguma coisa tivesse sido posta e depois devesse ser removida por causa de seu valor probatório.” “Algo como marcas de dentes…” “Pois é.” Quando comecei a passar a mecha de algodão em todas as regiões que pudessem ter ficado sem limpeza, com o objetivo de colher material para análise, o corpo ainda não estava inteiramente rígido e continuava um pouco quente. Examinei as axilas, as dobras glúteas, atrás das orelhas, dentro delas e dentro do umbigo. Cortei as unhas, coloquei as aparas em envelopes brancos limpos e procurei fibras e outros ciscos no cabelo. Susan continuava a olhar para mim e senti sua tensão. Finalmente, perguntou: “Você está procurando alguma coisa específica?”. “Para começo de conversa, esperma seco”, disse eu. “Na axila?” “Em qualquer dobra da pele, em qualquer orifício, em qualquer lugar.” “Geralmente você não olha nesses lugares todos.” “Geralmente não estou procurando zebras.” “O quê?” “Na faculdade de medicina, a gente dizia um ditado: ‘Ouvindo um tropel, procuram-se cavalos’. Mas num caso como esse, sabemos que estamos procurando uma zebra.” Comecei a examinar cada centímetro do corpo com uma lente. Quando cheguei nos pulsos virei lentamente as mãos dele num e noutro sentido, estudando-as por tanto tempo que Susan interrompeu o que estava fazendo. Olhei os diagramas em minha prancha, correlacionando cada sinal deixado pelo atendimento médico com os que eu tinha desenhado. “Onde estão os gráficos médicos?” Olhei em torno.
“Aqui.” Susan apanhou uns papéis em cima de um balcão. Comecei a analisar os gráficos, concentrando-me principalmente nos registros da sala de emergência e no relatório do grupo de resgate. Em lugar nenhum constava que as mãos de Eddie Heath tinham sido amarradas. Tentei lembrar o que o detetive Trent me dissera ao descrever o local onde o corpo do menino fora encontrado. Trent não havia dito que Eddie estava com as mãos ao longo do corpo? “Achou alguma coisa?”, perguntou Susan finalmente. “Você tem de olhar com a lente para ver. Aí. O lado de dentro dos pulsos e aqui, no esquerdo, à esquerda do osso do pulso. Está vendo um resíduo pegajoso? Vestígios de uma substância adesiva? Algo como manchas de pó acinzentado.” “Quase não dá para ver. Parece que há umas fibras grudadas”, espantou-se Susan, e seu ombro pressionava o meu enquanto ela olhava pela lente. “A pele está macia”, continuei mostrando. “Menos pelos nessa região que aqui, e aqui.” “Porque quando a fita foi arrancada, deve ter puxado os pelos.” “Claro. Vamos pegar alguns fios do pulso para comparar. O adesivo e as fibras podem ser comparados com a fita adesiva, se algum dia ela for encontrada. E, se encontrarmos a fita com que ele foi atado, ela pode ser comparada com o rolo.” “Não estou entendendo.” Susan endireitou o corpo e olhou para mim. “No hospital, os tubos ficaram presos com fita adesiva. Você tem certeza de que a explicação não é essa?” “Nessas regiões dos pulsos não há marcas de agulhas que configurem sinais de ação médica”, respondi. “E você viu o que estava preso no corpo dele quando ele chegou. Nada que pudesse justificar um adesivo neste local.” “É verdade.” “Vamos bater umas fotografias e depois vou colher esse resíduo adesivo e dar ao Trace para ver o que eles conseguem encontrar.” “O corpo estava ao ar livre junto de um contêiner de lixo. Isso para o Trace vai ser um pesadelo.” “Não sei se esse resíduo do pulso esteve em contato com o chão.” Comecei a retirar suavemente o resíduo com um escalpelo. “Será que passaram um aspirador lá?” “Não, que nada. Mas acho que se a gente pedir com jeito é capaz de conseguir que passem. Podemos tentar.” Continuei a examinar os antebraços e os pulsos finos de Eddie Heath, procurando contusões ou escoriações que pudesse não ter visto. Mas não encontrei nenhuma. “Os tornozelos estão em ordem”, disse Susan, da extremidade da mesa. “Não vejo adesivo algum nem áreas sem pelos. Nem lesões. Não parece que
ele tenha sido atado pelos tornozelos. Só pelos pulsos.” Que eu me lembrasse, era raro uma vítima ser atada e não exibir marcas na pele. Era evidente que a fita tinha estado em contato direto com a pele de Eddie. Ele provavelmente movera as mãos, mexera-se à medida que o incômodo crescia e a circulação era prejudicada, mas não resistira. Não se estirara, não se contorcera, não tentara fugir. Pensei nas gotas de sangue no ombro de seu casaco e no encardido da gola. Verifiquei novamente a região em volta da boca, examinei a língua e dei uma olhada nos gráficos. Talvez ele tivesse sido amordaçado, mas agora não havia prova disso, escoriações, contusões ou restos de adesivos. Imaginei-o apoiado no contêiner, nu no io cortante, com as roupas empilhadas ao lado, nem cuidadosa nem desordenadamente, mas naturalmente, tal como me fora descrito. Quando tentei apreender a emoção do crime, não descobri nem cólera, nem pânico, nem medo. “Primeiro ele atirou, não foi?” Os olhos de Susan estavam vigilantes como os de um estranho preocupado com que cruzamos numa rua deserta e escura. “Quem fez isso prendeu os pulsos depois de atirar.” “Acho que sim.” “Mas é tão estranho”, disse ela. “Você não precisa atar quem já levou um tiro na cabeça.” “Não sabemos quais são as fantasias desse indivíduo.” A sinusite atacara de novo e eu me sentia como uma cidade sitiada. Meus olhos lacrimejavam; o crânio parecia apertado. Susan puxou o fio grosso do carretel e ligou a serra. Pôs lâminas novas nos escalpelos e verificou os bisturis no carrinho cirúrgico. Foi até a sala de raio X e voltou com as radiografias de Eddie, que fixou nos painéis luminosos. Corria eneticamente e fez uma coisa que nunca fizera antes. Chocou-se violentamente com o carrinho que havia arrumado e derrubou no chão dois vidros de formol. Corri para ela, que recuava esbaforida, abanando os vapores que subiam pelo ar perto de seu rosto e espalhando cacos de vidro pelo chão, ao tentar equilibrar-se. “Pegou no rosto?” Agarrei seu braço e corri com ela para o vestiário. “Acho que não. Não. Ai, meu Deus. Só nos pés e nas pernas. Acho que no braço também.” “Você tem certeza de que não pegou nos olhos nem na boca?” Ajudei-a a despir os aventais. “Tenho.” Enfiei o braço no chuveiro e abri a água enquanto ela praticamente arrancava o resto das roupas. Fiz com que ela ficasse um bom tempo debaixo de um jato de água morna enquanto eu punha máscara, óculos de segurança e luvas de borracha.
Enxuguei o produto perigoso com esponjas fornecidas pelo Estado para emergências bioquímicas como aquela. Varri os cacos e fechei tudo em sacos plásticos reforçados. Depois joguei água no piso, lavei-me e vesti outro uniforme. Susan finalmente saiu do chuveiro, corada e assustada. “Doutora Scarpetta, sinto muito.” “Só estou preocupada com você. Tudo bem?” “Estou me sentindo aca e um pouco tonta. Ainda estou sentindo o cheiro da exalação.” “Eu acabo isto aqui”, disse eu. “Por que você não vai para casa?” “Acho que primeiro vou descansar um pouco. Talvez seja melhor ir lá para cima.” Meu avental estava dobrado nas costas de uma cadeira. Apanhei minhas chaves num dos bolsos. “Tome”, falei, entregando-lhe as chaves. “Pode deitar no divã em meu escritório. Se a tontura não passar ou se começar a se sentir pior, me chame logo pelo interfone.” Uma hora mais tarde ela voltou, de casacão e abotoada até o queixo. “Como está se sentindo?”, perguntei enquanto suturava a incisão em Y. “Meio trêmula, mas bem.” Observou-me em silêncio por um momento, depois acrescentou: “Quando estava lá em cima pensei uma coisa. Acho que você não deve me citar como testemunha nesse caso”. Olhei-a com surpresa. Era de rotina que qualquer pessoa presente durante uma autópsia fosse mencionada como testemunha no relatório oficial. O pedido de Susan não era muito importante, era estranho. “Não participei da autópsia. Quer dizer, ajudei com o exame externo, mas não estava presente quando você abriu, e sei que esse vai ser um caso importante — se chegarem a agarrar alguém. Se chegar até a Justiça. E acho melhor não me arrolar, porque, como disse, na verdade eu não estava presente.” “Está bem. Não tem problema.” Ela pôs minhas chaves sobre um balcão e saiu.
Uma hora mais tarde, quando telefonei para Marino de meu carro detido num posto de pedágio, encontrei-o em casa. “Você conhece o diretor da rua Spring?” “Frank Donahue. Onde você está?” “No meu carro.” “Bem que achei. Com certeza metade dos caminhões de Virgínia está nos escutando na frequência do cidadão.” “Não há muito o que escutar.” “Fiquei sabendo do garoto. Você acabou a autópsia?” “Acabei. Eu lhe telefono de casa. Há uma coisa que você pode fazer por
mim por enquanto. Tenho de verificar umas coisas na penitenciária agora mesmo.” “O problema com a verificação de coisas na penitenciária é que eles também verificam a gente.” “É por isso que você vai comigo”, respondi.
Depois de dois semestres de soimento sob a tutela de meu antigo professor, pelo menos eu aprendera a ficar prevenida. Foi assim que, na tarde de sábado, Marino e eu fomos até a penitenciária do estado. O céu estava carregado, com o vento fustigando as árvores à margem das estradas e o universo num estado de agitação fria, como se refletisse meu ânimo. “Quer minha opinião pessoal? Acho que você está deixando o Grueman se meter muito”, declarou Marino enquanto eu dirigia. “De jeito nenhum.” “Então por que toda vez que há uma execução em que ele está envolvido você fica assim toda nervosa?” “E o que você faria?” Ele puxou o isqueiro. “O mesmo que você. Olharia bem o corredor da morte e a cadeira, documentaria tudo e diria a ele que ele era um merda. Ou melhor, diria à imprensa que ele era um merda.” O jornal daquela manhã tinha publicado que Grueman dissera que Waddell não fora alimentado convenientemente e que seu corpo exibia machucados que eu não soubera explicar bem. “Qual é a dele, afinal? Ele já defendia esses elementos quando você estava na faculdade de direito?”, prosseguiu Marino. “Não. Muitos anos atrás pediram a ele para dirigir a Assistência Jurídica Penal da universidade. Foi aí que ele começou a atender de graça os casos de pena de morte.” “O cara deve ser meio pirado.” “Ele é muito contra a pena de morte e tem conseguido transformar em causa célebre todos aqueles que representa. Principalmente o Waddell.” “Sei. São Nicolau, patrono dos fodidos. Uma gracinha. Por que você não manda para ele umas fotos coloridas do Eddie Heath e pergunta se ele não quer conversar com a família do menino? Ver como se sente com relação ao porco que cometeu esse crime.” “Nada vai mudar as opiniões do Grueman.” “Ele tem filhos? Mulher? Alguém de quem goste?” “Não faz diferença alguma, Marino. Acho que você não tem nada de novo sobre o Eddie.” “Não, nem eu nem o pessoal de Henrico. Temos as roupas e um projétil calibre 22. Pode ser que os laboratórios tenham sorte com o que você deu a eles.”
“E o Procacriv?”, perguntei, referindo-me ao Programa de Captura de Criminosos Violentos do FBI, no qual Marino e Benton Wesley, analista do FBI, eram companheiros de equipe regional. “O Trent está trabalhando nos formulários e dentro de mais uns dias vai distribuí-los. E ontem à noite alertei o Benton para o caso.” “Eddie era do tipo que entraria no carro de um desconhecido?” “Segundo os pais, não. Ou foi um ataque violento ou então foi alguém que conquistou a confiança do garoto para poder agarrá-lo.” “Ele tem irmãos e irmãs?” “Um irmão e uma irmã, ambos mais de dez anos mais velhos que ele. Acho que o Eddie foi um acidente”, disse Marino quando chegamos à penitenciária. Anos de abandono haviam desbotado o revestimento de estuque do prédio, que apresentava um tom sujo e diluído de rosa que parecia remédio para dispepsia. As janelas escuras estavam cobertas com um plástico grosso, enrolado e rasgado pelo vento. Saímos pela Belvedere e dobramos à esquerda na rua Spring, uma rua em péssimo estado, não asfaltada, que ligava dois bairros pertencentes a mapas diferentes, continuava por várias quadras depois da penitenciária e depois simplesmente sumia no morro Gambles, onde, numa elevação perfeitamente gramada, empoleirava-se, como uma grande garça-real à beira de um lago, a sede de tijolos brancos da Companhia Ethyl. O granizo se transformara em neve líquida quando estacionamos e saímos do automóvel. Segui Marino, passei por um contêiner de lixo e por uma rampa que conduzia a uma plataforma de carga ocupada por gatos que relampejavam sua indiferença com selvagem serenidade. A entrada principal era uma porta de vidro simples e, entrando no que passava por vestíbulo, encontramo-nos atrás de grades. Não havia cadeiras; o ar estava gélido e rançoso. À nossa direita, o acesso ao centro de comunicações se fazia por uma janelinha que uma mulher robusta com uniforme de guarda levou um bom tempo para abrir. “Posso ajudá-los?” Marino mostrou seu crachá e explicou laconicamente que tínhamos entrevista marcada com Frank Donahue, o diretor. Ela nos disse que esperássemos. A janela se fechou. “Essa é Helen, a Huna. Já estive aqui mil vezes e ela sempre age como se não me conhecesse. De todo modo, não sou o tipo dela. Num minuto você vai conhecê-la melhor.” Depois de portões gradeados havia um corredor encardido de ladrilho vermelho e tijolo cinza e escritórios tão pequenos que pareciam gaiolas. Ao fundo, dava para ver o primeiro bloco de celas, com seus andares pintados de um verde institucional e marcados pela ferrugem. As celas estavam vazias. “Quando os presos restantes vão ser transferidos?”, perguntei.
“No fim desta semana.” “Quem vai ficar?” “Autênticos cavalheiros da Virgínia, os de alta periculosidade. Estão todos bem trancafiados e acorrentados a suas camas no bloco C, que fica para aquele lado.” Apontou para o oeste. “Não vamos passar por lá, não precisa ficar agitada. Eu não faria isso com você. Tem uns caras aí que há anos não veem mulher — e Helen, a Huna, não conta.” Um rapaz robusto, vestindo um macacão do Departamento de Execuções Penais, apareceu no fundo do corredor e veio em nossa direção, depois nos espreitou pelas grades com seu rosto atraente mas duro, de queixo forte e olhos cinzentos ios. Um bigode vermelho-escuro tapava um lábio superior que suspeitei pudesse tornar-se cruel. Marino se apresentou, acrescentando: “Estamos aqui para ver a cadeira”. “O.k., meu nome é Roberts e estou aqui como guia de turistas.” As chaves tiniram no ferro quando ele abriu o portão pesado. “O Donahue está doente hoje.” O barulho das portas que se fechavam atrás de nós ecoou pelas paredes. “Acho que vou ter de revistar vocês. Aqui, madame, por favor.” Ele estava começando a passar um detector pelo corpo de Marino quando outra porta gradeada se abriu e Helen emergiu do centro de comunicações. Era uma mulher carrancuda, com a compleição de uma igreja batista. Seu cinto de verniz era a única indicação da existência de uma cintura. Seu cabelo curto de estilo masculino estava pintado de negro-graúna; os olhos que brevemente encontraram os meus eram ardentes. O crachá preso a um busto formidável dizia “Grimes”. “A maleta”, ordenou. Entreguei-lhe a maleta médica. Remexeu-a e depois revirou-me para um e outro lado enquanto me submetia a uma saraivada de pancadinhas com o detector e as mãos. No total, a revista não duraria mais de vinte segundos, mas ela travou conhecimento com cada centímetro de meu corpo, esmagando-me contra seu colo rigidamente blindado como uma aranha avantajada, enquanto os dedos grossos se detinham aqui e ali e ela respirava pesadamente pela boca. Depois fez bruscamente com a cabeça um sinal de que estava tudo bem e voltou a seu ninho de cimento cinza e ferro. Seguindo Roberts, passamos por grades e mais grades e por uma série de portas que ele destrancava e tornava a trancar, no ar io que tinia com o dobrar monótono de um metal hostil. Ele nada perguntou sobre nós e não fez referência alguma que, mesmo remotamente, pudesse ser considerada afável. Parecia preocupar-se apenas com seu papel, que naquela tarde eu não sabia se era o de guia de visitantes ou o de cão de guarda. Dobramos à direita e entramos no primeiro bloco de celas, um espaço amplo e desolado de tijolos verde-acinzentados, de janelas quebradas e quatro andares de celas encimados por um teto falso coberto por rolos de arame
farpado. Havia dúzias de colchões estreitos forrados de plástico empilhados de qualquer jeito no meio do assoalho de ladrilho marrom, e vassouras, esegões e cadeiras de barbeiro vermelhas e decadentes espalhados por ali. Nos parapeitos altos das janelas viam-se tênis de couro, jeans e outras peças de uso pessoal e, abandonados em muitas celas, televisores, livros e armarinhos. Parecia que, ao serem transferidos, os presos não haviam podido levar consigo tudo o que possuíam, o que talvez explicasse as obscenidades escritas nas paredes com hidrográficas coloridas. Mais portas foram destrancadas e fomos sair no pátio, um quadrado de grama castanha cercado por medonhos blocos de celas. Não havia árvores. Em cada ângulo do muro se erguia uma torre de vigilância ocupada por um homem de capote armado com um fuzil. Caminhamos rapidamente em silêncio, os respingos grudavam em nossos rostos. Vários degraus abaixo passamos por outra abertura, que levava a uma porta de ferro mais pesada que todas as outras. “Porão leste. É este o lugar para onde ninguém quer ir”, disse Roberts, enfiando a chave na fechadura. Entramos no corredor da morte. Havia cinco celas na parede leste, cada uma delas equipada com uma cama de ferro, uma pia e uma privada de louça. No centro do aposento havia uma mesa grande e várias cadeiras onde os guardas se sentavam dia e noite quando o corredor da morte estava ocupado. “Waddell estava na cela 2. O direito estadual determina que o preso seja transferido para cá quinze dias antes da execução. Waddell veio de Mecklemburg em 22 de novembro”, informou Roberts. “Quem tinha acesso a ele quando ele estava aqui?”, perguntou Marino. “O mesmo pessoal que sempre tem acesso ao corredor da morte. Representantes legais, o clero e os membros da equipe de execução.” “Equipe de execução?”, perguntei. “Ela é composta por agentes de correção e supervisores, cujas identidades são confidenciais. A equipe começa a funcionar quando o preso é mandado de Mecklemburg para cá. Guardam-no, preparam tudo do princípio ao fim.” “Não parece uma função muito agradável”, comentou Marino. “Não é uma missão, é uma escolha”, replicou Roberts com o machismo e a impassibilidade dos treinadores entrevistados depois de um grande jogo. “Não incomoda você?”, perguntou Marino. “Quer dizer, eu vi o Waddell ir para a cadeira. Deve perturbar você.” “Não me perturba nada. Depois vou para casa, tomo umas cervejas e vou dormir.” Apanhou um maço de cigarros no bolso da camisa. “Bom, segundo Donahue, vocês querem saber tudo o que aconteceu. Então vou mostrar.” Sentou-se na mesa, fumando. “No dia, que foi 13 de dezembro, foi autorizada uma visita de duas horas dos parentes próximos de Waddell, no
caso, a mãe dele. Pusemos correntes na cintura dele, ferros nas pernas e algemas nas mãos e o levamos para junto dos visitantes à uma da tarde. Às cinco ele fez sua última refeição. Pediu um filé, salada, batata assada e torta, que mandamos preparar na churrascaria Bonanza. Não foi ele que escolheu o restaurante. Os presos não têm esse direito. E, como de hábito, pedimos duas refeições. O preso come uma e um membro da equipe de execução, a outra. Isso é para garantir que nenhum cozinheiro entusiasmado decida acelerar a viagem do condenado para o outro mundo temperando a comida com algum condimento extra, como arsênico.” “Waddell comeu a refeição?”, perguntei, pensando no estômago vazio. “Não estava com muita fome, pediu-nos que a guardássemos, que ele comeria no dia seguinte.” “Deve ter pensado que o governador Norring ia indultá-lo”, disse Marino. “Não sei o que ele pensou. Só estou contando a vocês o que Waddell disse quando lhe serviram a refeição. Depois, às sete e meia, os funcionários responsáveis pelos bens pessoais foram à cela dele para fazer o inventário de seus bens e perguntar-lhe o que queria que fosse feito com eles. Ele tinha um relógio de pulso, um anel, várias peças de vestuário e cartas, livros, poesias. Às oito da noite, foi retirado da cela. A cabeça, o rosto e o tornozelo direito estavam raspados. Foi pesado, tomou uma ducha, e vestiram-no com a roupa que ia usar na cadeira. Aí foi devolvido à cela. Às dez e quarenta e cinco foilhe feita a leitura da sentença de morte, assistida pela equipe de execução.” Roberts levantou-se da mesa. “E aí ele foi levado, sem algemas, para a sala ao lado.” “A essa altura qual era o comportamento dele?”, perguntou Marino enquanto Roberts destrancava outra porta e a abria. “Digamos que sua condição racial não lhe permitia ficar branco como uma folha de papel. Senão, teria ficado.” A sala era menor do que eu tinha imaginado. A uns dois metros da parede do fundo e posta no centro do piso de cimento marrom brilhante estava a cadeira, um trono robusto e rígido de carvalho escuro polido. Em torno do encosto alto e inclinado, das duas pernas dianteiras e dos braços estavam enroladas grossas correias de couro. “Sentaram o Waddell e a primeira correia a ser apertada foi a do peito. Em seguida foram as duas correias dos braços, a correia da barriga e as correias das pernas”, continuou Roberts no mesmo tom indiferente. Enquanto falava, sacudia cada correia. “Levou um minuto para atá-lo. O rosto estava coberto pela máscara de couro — que eu vou lhes mostrar daqui a pouco. O capacete foi posto na cabeça e a peça da perna atada à perna direita.” Tirei a câmera, uma régua e fotocópias dos diagramas do corpo de Waddell. “Exatamente às onze horas e dois minutos ele recebeu a primeira descarga, quer dizer, dois mil e quinhentos volts e seis ampères e meio. Aliás, dois
ampères já matam.” As lesões assinaladas no corpo de Waddell se ajustavam bem à estrutura da cadeira e suas correias. “O capacete é ligado a isto aqui.” Roberts apontou um tubo que partia do teto e terminava numa porca de cobre diretamente sobre a cadeira. Comecei a tirar fotografias da cadeira de todos os ângulos. “E a peça da perna é atarraxada a esta porca aqui.” Quando a lâmpada foi apagada senti uma sensação esquisita. Eu estava ficando sobressaltada. “Esse homem era um grande curto-circuito.” “Quando foi que ele começou a sangrar?”, perguntei. “No momento em que levou a primeira descarga. E não parou até o fim; correram uma cortina que o ocultou das testemunhas. Três membros da equipe de execução desabotoaram a camisa dele e o médico escutou com o estetoscópio, tocou a carótida e declarou-o morto. Puseram Waddell numa maca e levaram para a sala de esfriamento, que é para onde vamos agora.” “E qual sua teoria sobre o suposto defeito da cadeira?” “Frescura. Waddell tinha um metro e noventa e cinco, pesava cento e dezessete quilos. Muito antes de sentar na cadeira já estava fervendo, com a pressão lá em cima. Depois que verificaram a morte, e por causa da hemorragia, o vice-diretor veio dar uma olhada. Os olhos não tinham saltado. Os tímpanos não tinham estourado. Tinha uma puta hemorragia nasal, o mesmo que acontece quando a gente faz muita força na privada.” Concordei em silêncio. A hemorragia nasal de Waddell fora provocada pela manobra de Valsalva, um aumento súbito da pressão torácica interna. Nicholas Grueman não ia gostar do relatório que eu ia lhe enviar. “Que experiências vocês fizeram para ter certeza de que a cadeira estava funcionando corretamente?”, perguntou Marino. “As que fazemos sempre. Primeiro, a Eletricidade da Virgínia olha e examina o equipamento.” Mostrou uma grande caixa de fusíveis atrás de portas de aço cinzento na parede atrás da cadeira. “Aqui atrás há vinte lâmpadas de duzentas velas presas numa tábua, para teste. Fazemos as experiências na semana anterior à execução, três vezes no mesmo dia e depois mais uma vez diante das testemunhas quando elas chegam.” “O.k., isso eu me lembro”, disse Marino, fitando a tribuna envidraçada das testemunhas a menos de cinco metros. Dentro havia doze cadeiras de plástico preto em três filas simétricas. “Tudo funcionou às mil maravilhas”, disse Roberts. “Funciona sempre?”, perguntei. “Que eu saiba, sim.” “E onde fica o interruptor?” Ele me mostrou uma caixa na parede, à direita da tribuna das testemunhas.
“Tem uma chave que corta a corrente. Mas o botão fica na sala de controle. O diretor ou um substituto liga a chave e aperta o botão. Quer ver?” “Acho melhor.” Não havia muito o que ver, só um cubículo pequeno atrás da parede dos fundos da sala onde ficava a cadeira. Dentro havia uma caixa grande da GE com vários mostradores para aumentar e diminuir a voltagem, que chegava a três mil volts. Fileiras de luzinhas afirmavam que tudo estava bem ou advertiam que não. “Em Greensville já vai ser por computador”, acrescentou Roberts. Dentro de um armário de madeira estavam o capacete, a peça da perna e dois fios grossos que, explicou ele enquanto os segurava, “foram presos às porcas de cima e a um lado da cadeira, e aí em cima do capacete e na peça da perna”. Fez um esforço, acrescentando: “É como fazer a ligação de um videocassete”. O capacete e a peça da perna eram de cobre, com buracos por onde passavam fios de algodão destinados a fixar a torração de esponja. O capacete era surpreendentemente leve, com manchas verdes nas beiradas dos pontos de contato. Eu não podia imaginar uma coisa daquelas em minha cabeça. A máscara de couro era apenas uma tira rústica que se atava atrás da cabeça do condenado, com um triângulo pequeno aberto para o nariz. Se estivesse em exibição na Torre de Londres ninguém contestaria sua autenticidade. Passamos por um transformador com cabos que subiam até o teto e Roberts destrancou outra porta. Entramos em outra sala. “Esta é a sala de esiamento. Empurramos Waddell para cá e o transferimos para esta mesa.” Era uma mesa de aço com sinais de ferrugem nas juntas. “Deixamos esiar por dez minutos e em seguida pusemos os sacos de areia nas pernas dele. Aqueles ali.” Os sacos de areia estavam empilhados no chão ao pé da mesa. “Quatro quilos cada um. Pode ser uma reação do joelho, mas a verdade é que a perna fica bem dobrada. Os sacos de areia são para estender as pernas. E se as queimaduras são sérias, como as do Waddell, a gente enrola em gaze. Depois de fazer tudo isso, pusemos Waddell de novo na maca e levamos para fora do mesmo jeito que entrou. Só que não fomos pela escada. Ninguém queria ficar com hérnia. Usamos o elevador da comida, saímos pela porta da ente e pusemos na ambulância. Aí entregamos para a senhora, como sempre fazemos depois que os bonecos sentam no trono.” Portas pesadas bateram. Houve um ruído de chaves. Fechaduras giraram. Roberts continuava falando animadamente enquanto nos levava de volta para o vestíbulo. Eu pouco ouvia e Marino não dizia uma palavra. Neve e chuva misturadas salpicavam de gelo a grama e as paredes. A calçada estava molhada, o io era penetrante. Eu estava com náuseas, louca
para tomar um demorado banho de chuveiro quente e mudar de roupa. “Marginais como o Roberts são pouco melhores que os presos”, disse Marino enquanto ligava o automóvel. “Na verdade, alguns são iguais aos caras que prendem.” Alguns momentos depois ele parou num sinal. As gotas de água que pareciam sangue no para-brisa iam se substituindo umas às outras aos milhares. O gelo vestia as árvores de vidro. “Você tem tempo para que eu lhe mostre uma coisa?” Com a manga do casaco, ele limpava o para-brisa embaçado. “Dependendo da importância, acho que tenho tempo.” Esperava que minha relutância evidente o inspirasse a me levar para casa. “Queria reconstituir para você os últimos passos de Eddie Heath.” Fez o sinal de dobrar. “Principalmente, acho que você precisa ver onde o corpo foi encontrado.”
Os Heath viviam na parte leste da avenida Chamberlayne, ou, nas palavras de Marino, na área menos elegante. A casinha de tijolos ficava a poucas quadras de um restaurante de ango assado, o Golden Skiller, e do mercado onde Eddie fora comprar uma lata de sopa para a mãe. Vários automóveis americanos grandes estavam estacionados na entrada da casa da família Heath, e a chaminé deitava uma fumaça que se perdia no céu cinzento. Ouviu-se um barulho de alumínio, a porta se abriu e apareceu uma velha enrolada num casaco preto que, em seguida, se deteve para falar com alguém dentro da casa. Agarrada ao corrimão como se a tarde ameaçasse arrastá-la, ela foi descendo os degraus, olhando confusamente para um Ford LTD que passava. Se tivéssemos avançado mais três quilômetros teríamos entrado na zona dos projetos federais de habitação. “Antigamente este bairro era só de brancos”, disse Marino. “Lembro-me que quando cheguei a Richmond esta era uma região boa para se morar: uma porção de gente decente e trabalhadora que mantinha o quintal bem cuidado e ia à igreja no domingo. Os tempos mudam. Hoje eu não deixaria um filho meu andar por aqui à noite. Mas, quando se mora num lugar, a gente se acostuma. Eddie estava acostumado a andar por aqui, entregando jornais e fazendo pequenas tarefas para a mãe. Na noite do crime, ele saiu pela porta da ente, atalhou até a Azalea e dobrou à direita como estamos fazendo agora. Lucky’s é ali à esquerda, perto do posto de gasolina.” Mostrou um mercado com uma ferradura verde no luminoso. “Aquela esquina é um ponto de drogas. Vendem crack e desaparecem. Quando chegamos, só encontramos baratas e dois dias mais tarde estão em outra esquina fazendo a mesma coisa.” “Será que o Eddie estava envolvido com drogas?” No início de minha carreira a pergunta teria sido estranha, mas agora não. Agora
aproximadamente dez por cento das prisões por tráfico de narcóticos na Virgínia eram de menores. “Por enquanto não há indício. Minha intuição me diz que não”, disse Marino. Entramos no estacionamento do mercado e ficamos contemplando um anúncio colado no vidro e umas luzes que brilhavam com extravagância na neblina. Havia uma longa fila de egueses e o caixa trabalhava na máquina registradora sem levantar os olhos. Um rapaz negro, de topete, vestindo casaco de couro, com uma cerveja na mão, olhava com insolência para nosso carro enquanto punha uma moeda no telefone público junto à porta da ente. Trotando para seu caminhão, um homem vestido de vermelho, com as calças manchadas de tinta, abria um maço de cigarros. “Aposto que foi aqui que ele encontrou o agressor”, disse Marino. “Como?”, disse eu. “Acho que foi muito simples. Acho que ele saiu da loja e o animal veio para ele e falou qualquer coisa para conquistar sua confiança. Disse uma coisa qualquer e Eddie foi com ele para o carro.” “Os vestígios físicos combinam com isso. Não encontrei lesão de defesa, nada que indicasse luta. Ninguém dentro do mercado o viu com alguém?” “Ninguém com quem eu já tenha falado. Mas você vê como esse lugar é movimentado, e fora estava escuro. Se alguém viu alguma coisa, terá sido provavelmente algum eguês entrando ou voltando para o automóvel. Estou pensando em pôr um anúncio nos jornais: assim a gente atinge todo mundo que tenha estado aqui entre as cinco e as seis naquela tarde. E os Inimigos do Crime também vão publicar um anúncio.” “Eddie era esperto?” “Um cara vivo engana qualquer um, até os garotos espertos. Tive um caso em Nova York em que uma menina de dez anos foi ao armazém da esquina comprar meio quilo de açúcar. Quando ia saindo, um pedófilo se aproximou e disse que o pai dela tinha mandado ele para buscá-la. Disse que a mãe tinha ido para o hospital e que era para levar ela lá. A menina entrou no carro dele e virou uma estatística.” Olhou para mim com o canto do olho. “Então, branco ou preto?” “Em que caso?” “No de Eddie Heath.” “Baseada no que você disse, o agressor é branco.” Marino reclinou-se, esperando uma folga no tráfego. “Claro, imagina-se que seja branco. O pai do Eddie não gosta de pretos e Eddie também não tinha confiança neles, de modo que não é provável que um preto tivesse conquistado a confiança de Eddie. E se o pessoal vê um menino branco andando com um homem branco — mesmo que o garoto pareça infeliz — pensam em irmão mais velho e irmão mais novo ou em pai e filho.” Dobrou à
direita, indo para oeste. “E aí, doutora. Que mais?” Marino adorava aquele jogo. Os casos em que eu me identificava com seu pensamento lhe davam o mesmo prazer que aqueles em que pensava que eu estava totalmente errada. “Se o agressor é branco, então minha conclusão seguinte é que ele não mora nos projetos de habitação popular, embora o lugar seja bem perto.” “Deixando de lado a raça, por que você acha que o cara não mora lá?” “Questão de lógica. Atirar na cabeça de uma pessoa — mesmo de um menino de treze anos — não é novidade num assassinato de rua, mas o resto da história não faz sentido. Eddie levou um tiro de 22, não de um nove ou dez milímetros ou de um revólver de grosso calibre. Estava nu e mutilado, sugerindo que a violência teve motivo sexual. Até onde sabemos, não estava com nada que valesse a pena ser roubado e não parecia ter um tipo de vida arriscado”, eu disse simplesmente. Tinha começado a chover forte e as ruas estavam perigosas, os carros movimentando-se numa velocidade imprudente, de faróis acesos. Pensei que muita gente estaria indo para o shopping center e me lembrei de que não tinha feito quase nada em matéria de preparativos para o Natal. A mercearia da rua Patterson era logo adiante, à nossa esquerda. Eu não me lembrava de seu nome anterior, e as placas haviam sido retiradas, restando só a fachada de tijolos e as janelas tapadas com tábuas. O espaço que ocupava estava mal iluminado e calculei que a polícia não teria tido a ideia de olhar atrás do edifício, não fosse o fato de haver alguns estabelecimentos à esquerda. Contei cinco: farmácia, sapateiro, tinturaria, loja de ferragens e restaurante italiano, todos fechados e desertos na noite em que Eddie fora levado para ali e abandonado como morto. “Você se lembra de quando essa mercearia fechou?”, perguntei. “Na mesma época em que uma porção de outros lugares foram fechados. Quando começou a guerra no golfo Pérsico”, disse Marino. Entrou por uma travessa com o farol alto varrendo as paredes de tijolos e trepidando quando a rua não asfaltada ficava pior. Atrás da loja uma cerca de arame separava um trecho de asfalto rachado de uma área arborizada que se movia obscuramente ao vento. Por entre os troncos das árvores dava para ver as luzes de ruas distantes e o sinal luminoso de um Burger King. Marino estacionou com os faróis voltados para um contêiner de lixo canceroso de ferrugem e de pintura empolada, com fios de água escorrendo pelos lados. Gotas de chuva batiam nos vidros e tamborilavam no teto; pelo rádio ouvíamos os operadores despachando viaturas para os locais de acidentes. Marino segurou com força o volante e moveu os ombros. Fez uma massagem atrás do pescoço. “Meu Deus, estou ficando velho”, queixou-se.
“Tenho uma capa de chuva no porta-malas.” “Você precisa mais dela do que eu. Não vou derreter”, eu disse, abrindo minha porta. Marino vestiu sua capa azul-marinho da polícia e eu levantei minha gola até as orelhas. A chuva molhou meu rosto e bateu ia sobre minha cabeça. Quase imediatamente minhas orelhas começaram a ficar dormentes. O contêiner estava perto da cerca, no final da parte calçada, talvez a uns vinte metros dos fundos da mercearia. Reparei que ele se abria por cima e não pelo lado. “Quando a polícia chegou, a tampa do contêiner estava aberta ou fechada?”, perguntei a Marino. “Fechada.” O capuz da capa fazia com que tivesse dificuldade de olhar para mim sem girar o tronco. “Repare que não há nada em que se possa subir.” Deu uma volta no contêiner com uma lanterna na mão. “Além disso, estava vazio. Nada dentro, só ferrugem e a carcaça de um rato tão grande que dava para pôr uma sela nele e montar.” “Você pode levantar a tampa?” “Só uns centímetros. A maioria dos contêineres desse tipo tem um ferro dentado de cada lado. Se a pessoa é alta, pode levantar a tampa uns centímetros e passar a mão pelo lado, e continuar levantando a tampa fixando os dentes um a um. Aí dá para abrir o suficiente para jogar um saco de lixo lá dentro. O problema é que neste os dentes não funcionam. A tampa tem de ser totalmente aberta até cair para o outro lado, e só se consegue fazer isso subindo em alguma coisa.” “Qual sua altura? Um metro e oitenta e cinco, um metro e noventa?” “É. Se não consigo abrir o contêiner, ele também não conseguiria. A teoria favorita no momento é que ele tenha carregado o corpo para fora do carro e escorado no contêiner enquanto tentava abrir a tampa — como se põe um saco de lixo no chão um minuto para ficar com as mãos livres. Quando não pôde abrir a tampa ficou apavorado e deixou o garoto e tudo o mais ali no chão.” “Podia tê-lo arrastado para o bosque.” “Tem a cerca.” “Não é muito alta, talvez um metro e meio”, mostrei. “Pelo menos podia ter deixado o corpo atrás do contêiner. Do jeito que foi, se você se afastasse para cá, veria o corpo inteiro.” Marino olhou silenciosamente em torno, iluminando a cerca de arame com a lanterna. No estreito facho de luz, gotículas dançavam como um milhão de preguinhos caídos do céu. Eu quase não conseguia dobrar os dedos. Meu cabelo estava encharcado e uma água gelada me escorria pelo pescoço abaixo. Voltamos para o automóvel e ele ligou a calefação ao máximo. “O Trent e a turma dele estão todos enrolados com o negócio do contêiner,
da posição da tampa, essas coisas… Minha opinião é de que nesse caso o único papel do contêiner foi o de servir de lugar para o elemento despejar o trabalhinho dele”, disse. Olhei para fora, através da chuva. “A questão é que ele não trouxe o garoto aqui para esconder o corpo, mas para ter certeza de que ia ser encontrado. Os caras de Henrico não veem isso. Eu não só vejo, como sinto o negócio assim no ar”, continuou com voz dura. Fiquei contemplando o contêiner, com a imagem do corpinho de Eddie Heath apoiado contra ele tão viva como se eu tivesse estado presente quando foi encontrado. De repente a ideia me veio com toda a clareza. “Quando você examinou pela última vez o caso de Robyn Naismith?”, perguntei. “Não importa. Lembro de tudo a respeito dele. Estava esperando para ver se você pensava nisso. Eu pensei na primeira vez em que cheguei aqui”, disse Marino olhando reto para a frente.
3
Naquela noite acendi a lareira, instalei-me diante dela e tomei uma sopa de legumes enquanto a chuva gelada se misturava com a neve. Tinha apagado as luzes e puxado as cortinas das portas de vidro. A grama estava branca de gelo e as folhas dos rododendros encolhidas. O clarão do céu iluminava por trás as árvores desfolhadas pelo inverno. O dia me exaurira, como se uma força voraz e escura houvesse sugado toda a luz de meu ser. Sentira as mãos indiscretas de uma guarda de prisão chamada Helen e aspirara o fedor rançoso dos cubículos que haviam abrigado homens cheios de ódio e desprovidos de remorso. Lembrei-me de ter, na reunião anual da Academia Americana de Medicina Legal, olhado umas transparências à luz da lâmpada, num bar em New Orleans. Naquela época o homicídio de Robyn Naismith ainda não fora esclarecido, e parecera medonho discutir o que lhe fora feito enquanto os foliões do Carnaval passavam aos gritos. Acreditava-se que ela tivesse sido espancada, torturada e morta a facadas na sala de visitas de sua própria casa. O mais chocante, contudo, fora o ritual estranho e macabro seguido por Waddell depois da morte da vítima. Depois da morte de Robyn, ele a despira. Não havia prova de que a tivesse violado. Sua preferência, aparentemente, era morder e penetrar muitas vezes com uma faca as partes mais carnudas do corpo. Quando uma colega de trabalho passou para fazer uma visita, encontrou o corpo estropiado de Robyn apoiado contra a televisão, cabeça caída para a ente, braços pendentes ao lado, pernas abertas e a roupa empilhada ao lado. Parecia uma boneca ensanguentada em tamanho natural posta de volta em seu lugar depois de uma sessão de faz de conta e brincadeira que tivesse resultado num horror. O parecer de um psiquiatra ouvido pelo tribunal era que, depois de assassiná-la, Waddell fora tomado de remorso e sentara-se a falar com o corpo talvez por horas. Um psicólogo judicial do estado opinara, em sentido oposto, que Waddell sabia que Robyn era uma personalidade da televisão e que seu ato de apoiá-la contra o aparelho era simbólico. Que quisera vê-la de novo na TV, fazendo fantasias. Que a devolvera ao meio que os apresentara um ao outro, o que implicava claramente premeditação. As nuances e contorções das análises infinitas ficavam cada vez mais complicadas. A exibição grotesca do corpo daquela apresentadora de vinte e sete anos era a assinatura especial de Waddell. Agora, dez anos depois, um rapazinho estava morto e alguém assinara o próprio trabalho — na véspera da execução
de Waddell — do mesmo modo. Fiz café, enchi uma garrafa térmica e levei para o escritório. Sentada à mesa, liguei o computador e conectei-o com o do trabalho. Queria ver o texto da busca que Margaret me dera, embora suspeitasse que ele estivesse no meio do papelório desalentador que desde sexta-feira ocupava minha caixa de entrada. O original, contudo, devia estar ainda no disco rígido. Digitei meu nome de usuário e minha senha no programa Unix e fui recebida com a palavra correio. Margaret, minha analista de programas, me mandara uma mensagem. “Verifique o arquivo Carne”, li. “Isso é realmente medonho”, murmurei, como se Margaret pudesse ouvir. Mudando para o diretório chamado Principal, onde Margaret em geral colocava o que devia sair e copiava os arquivos que eu pedira, abri o arquivo que ela denominara Carne. Era bem grande, porque Margaret o selecionara a partir de todos os tipos de morte e depois fundira os dados com os que obtivera no Registro de Traumatismos. Naturalmente, a maioria dos casos que o computador selecionara era de acidentes em que houve perda de membros e tecidos em choques de veículos e desastres com máquinas. Quatro casos eram de homicídios em que os corpos mostravam marcas de dentadas. Duas das vítimas haviam sido esfaqueadas, as outras duas estranguladas. Uma das vítimas era um homem adulto, duas eram mulheres adultas e uma era uma menina de seis anos apenas. Anotei os números dos casos e os códigos ICD-9. Em seguida, comecei a examinar uma por uma as anotações do Registro de Traumatismos referentes às vítimas que tinham sobrevivido até serem internadas em hospitais. Esperava que a informação fosse um problema, e foi. Os hospitais só liberavam os dados de pacientes depois de esterilizá-los e despersonalizá-los como faziam com as salas de operação. A fim de manter o sigilo, nomes, números de Seguridade Social e outros elementos de identificação eram suprimidos. Não havia pontos de ligação para quem trafegasse pela papelada labiríntica das equipes de resgate, das salas de emergência, dos vários departamentos de polícia e de outras repartições. A triste conclusão da história era que os dados sobre uma vítima podiam estar no banco de dados de seis repartições diferentes e que era impossível compará-los, principalmente se tivesse havido algum erro de classificação. Portanto, se eu descobrisse um caso que despertasse minha atenção, talvez não houvesse muita esperança de saber quem era o paciente ou se ele ou ela havia ou não morrido. Depois de enumerar as anotações do Registro de Traumatismos que podiam ser interessantes, saí do arquivo. Finalmente, consultei a lista para ver quais relatórios de dados antigos, memorandos e notas de meu diretório seria possível remover para liberar espaço no disco rígido. Foi quando percebi um
arquivo que não entendi. Seu nome era tty07. Só ocupava vinte e dois bytes e a data e hora eram 16 de dezembro — a quinta-feira anterior —, às 4h26 da tarde. O conteúdo do arquivo era uma sentença assustadora: Não consigo encontrar. Peguei o telefone, comecei a discar o número de Margaret, depois parei. O diretório Principal e seus arquivos estavam protegidos. Embora qualquer pessoa pudesse entrar em meu diretório, só poderia obter a lista dos arquivos do Principal ou lê-los se introduzisse meu nome de usuário e minha senha. Margaret devia ser a única pessoa que, além de mim, conhecia minha senha. Se ela tivesse entrado em meu diretório, o que seria que não conseguia encontrar e a quem teria comunicado esse fato? Margaret não, pensei, fixando intensamente aquela sentença breve na tela. Mas continuei na dúvida, e pensei em minha sobrinha. Talvez Lucy conhecesse o Unix. Olhei o relógio. Passava das oito numa noite de sábado e de certo modo eu ficaria morrendo de pena se encontrasse Lucy em casa. Ela devia estar na rua com um namorado ou com amigos. Não estava. “Alô, tia Kay.” Parecia espantada, o que me fez lembrar que havia algum tempo não lhe telefonava. “Como vai minha sobrinha favorita?” “Sou sua única sobrinha. Vou bem.” “O que você está fazendo em casa num sábado à noite?”, perguntei. “Terminando um trabalho. E o que você está fazendo em casa num sábado à noite?” Por um momento eu não soube o que dizer. Minha sobrinha de dezessete anos me punha em meu lugar melhor do que ninguém. “Estou às voltas com um problema de computador”, respondi, afinal. “Então, você acaba de telefonar para o departamento certo”, disse Lucy, que não era dada a ataques de modéstia. “Espere aí. Deixe eu afastar esses livros e outros troços para poder usar meu teclado.” “Não é problema de PC. Não sei se você conhece alguma coisa do sistema operacional Unix, conhece?” “Unix não é um sistema operacional, tia Kay. Seria como falar em condições climáticas querendo dizer meio ambiente, que inclui as condições climáticas e todos os elementos e edifícios. Você está usando a companhia telefônica?” “Puxa, Lucy. Não sei.” “Bom, onde você está trabalhando?” “Num mini NCR.” “Então é a companhia telefônica.” “Acho que alguém violou meu código de segurança”, eu disse.
“Acontece. Mas por que você está pensando isso?” “Encontrei um arquivo esquisito em meu diretório, Lucy. Meu diretório e meus arquivos são protegidos — ninguém pode ler nada se não tiver minha senha.” “Não é não. Quem tiver acesso privilegiado será um superusuário e poderá fazer o que quiser e ler o que quiser.” “A única superusuária é minha analista de programas.” “Pode ser. Mas pode haver certos usuários com acesso privilegiado, usuários que você nem conhece e que vêm junto com o programa. Podemos verificar isso facilmente, mas primeiro me diga qual é esse arquivo esquisito. Qual o nome dele e o que ele contém?” “Chama-se tty07 e contém a seguinte frase: ‘Não consigo encontrar’.” Ouvi um barulho de teclas. “O que você está fazendo?”, perguntei. “Estou tomando umas notas enquanto a gente fala. Pronto. Vamos começar com o óbvio. Uma boa pista é o nome do arquivo, tty07. É um aparelho. Em outras palavras, tty07 é com certeza o terminal de alguém em seu trabalho. Pode ser uma impressora, mas para mim a pessoa que estava em seu diretório decidiu mandar uma mensagem para o aparelho chamado tty07. Só que se atrapalhou e em vez de mandar uma mensagem criou um arquivo.” “Quando você manda uma mensagem, não cria um arquivo?”, perguntei, intrigada. “Se estiver só digitando, não.” “Como?” “É fácil. Você está no Unix agora?” “Estou.” “Escreva ‘cat redirect t-t-y-q’.” “Espere um minuto.” “E não se preocupe com o barra-dev.” “Devagar, Lucy.” “De propósito estamos deixando de lado o catálogo dev, que é o que eu aposto que essa pessoa fez.” “O que vem depois de ‘cat’?” “Está bem. ‘Cat redirect’ e o aparelho…” “Devagar, por favor.” “Você devia ter um chip 486 nessa coisa, tia Kay. Por que tão devagar?” “Não é a droga do chip que é devagar.” “Opa, desculpe. Esqueci”, disse Lucy sinceramente. Esqueci o quê? “Vamos voltar ao problema”, continuou ela. “Quer dizer, imagino que você não tenha nenhum aparelho chamado t-t-y-q. Onde você está?” “Ainda estou no ‘cat’”, disse eu, ustrada. “Aí é ‘redirect’… Droga. Isso
piscando é a transmissão de mensagens, não é?” “É. Agora aperte return e seu cursor vai para a linha seguinte, que está em branco. Aí você digita a mensagem que quer que vá para a tela do t-t-y-q.” “‘Vovó viu a uva’”, digitei. “Aperte return e depois control C. Agora pode fazer um ls menos um e mandá-lo para p-g e aí ver seu arquivo.” Marquei “ls” e vi o brilho súbito de alguma coisa que passava. “O que eu acho que aconteceu foi o seguinte”, recomeçou Lucy. “Alguém estava em seu diretório — e já vamos tratar disso. Estavam com certeza procurando alguma coisa em seus arquivos e não conseguiram encontrar. Então essa pessoa mandou uma mensagem, ou tentou mandar, para o aparelho chamado tty07. Mas estava com pressa, e em vez de digitar ‘cat redirect’ barra dev- barra tty07, deixou fora o diretório dev e digitou ‘cat redirect tty07’. Assim as letras não apareceram na tela do tty07. Em outras palavras, em vez de enviar uma mensagem para o tty07, essa pessoa sem querer criou um arquivo chamado tty07.” “E se a pessoa tivesse digitado certo e transmitido o texto, a mensagem ficaria guardada?”, perguntei. “Não. O texto teria aparecido na tela do tty07 e teria ficado lá até o usuário limpar a tela. Mas você não veria prova nenhuma disso em seu diretório ou em nenhum outro lugar. Não haveria arquivo.” “Quer dizer que não podemos saber quantas vezes alguém pode ter mandado uma mensagem de meu diretório, se isso tiver sido feito corretamente.” “Isso mesmo.” “Como alguém pode ter lido alguma coisa em meu diretório?” Voltei à questão básica. “Você tem certeza de que ninguém mais tem sua senha?” “Só Margaret.” “Ela é sua analista de programas?” “É.” “Será que ela não deu a senha a alguém?” “Não posso imaginar que tenha dado”, respondi. “Está bem. Quem tem acesso privilegiado pode entrar sem senha. É o que a gente vai verificar em seguida. Mude para o diretório etc., abra o arquivo Grupo e procure ‘grupo básico’ — é g-r-p-b-s-c. Veja quais são os usuários relacionados depois disso.” Comecei a digitar. “O que está vendo?” “Não cheguei lá ainda”, falei, sem conseguir disfarçar a impaciência em minha voz. Ela repetiu vagarosamente as instruções.
“Vejo três nomes no grupo básico”, disse eu. “Bom. Escreva os nomes. Depois digite vírgula, ‘q’, bang, e você sai do Grupo.” “Bang?” “É o ponto de exclamação. Agora abra o arquivo de senhas — é s-e-n-h-a-s — e veja se algum desses nomes com acesso privilegiado está sem senha.” “Lucy.” Tirei as mãos do teclado. “É fácil, porque no segundo campo você vê letras x em lugar da senha, se o usuário tem senha. Se no segundo campo só houver duas vírgulas, ele não tem senha.” “Lucy.” “Desculpe, tia Kay. Estou indo muito depressa?” “Não sou programadora de Unix. Para mim você está falando grego.” “Você pode aprender. Unix é ótimo.” “Obrigada, mas meu problema é que agora não tenho tempo para aprender. Alguém invadiu meu diretório. Guardo aqui documentos e relatórios de dados muito confidenciais. Isso para não mencionar que, se alguém está lendo meus arquivos privados, o que mais eles estão vendo, quem está fazendo isso e por quê?” “ O quem é fácil, a não ser que o invasor esteja discando de fora, por modem.” “Mas o bilhete foi mandado para alguém em meu escritório — para um aparelho em meu escritório.” “Isso não quer dizer, tia Kay, que alguém de dentro não tenha conseguido alguém de fora para invadir. Pode ser que a pessoa interessada não soubesse nada sobre o Unix e precisasse de ajuda para entrar em seu diretório, e aí conseguiu um programa de fora.” “Isso é grave”, eu disse. “Pode ser que seja. Pelo menos estou com a impressão de que seu sistema não é muito seguro.” “Quando você tem de entregar seu trabalho?”, perguntei. “Depois dos feriados.” “Já terminou?” “Quase.” “Quando começam as férias de Natal?” “Segunda-feira.” “Você gostaria de vir para cá por uns dias para me ajudar com esse negócio?” “Está brincando.” “Estou falando sério. Mas não pense que vai ser grande coisa. Geralmente não me preocupo muito com a decoração. Umas guirlandinhas e umas velas na janela. Agora, eu cozinho.”
“Não tem árvore?” “Qual o problema?” “Está bem. Está nevando aí?” “Na verdade está.” “Nunca vi neve. Quer dizer, em pessoa.” “É melhor você me deixar falar com sua mãe”, disse.
Dorothy, minha única irmã, estava muito atenciosa quando veio ao telefone muitos minutos depois. “Ainda trabalhando muito? Kay, você trabalha mais do que qualquer pessoa que eu conheço. As pessoas ficam admiradas quando conto que somos irmãs. Como está o tempo aí em Richmond?” “Provavelmente o Natal vai ser com neve.” “Ótimo. Lucy devia ver um Natal com neve pelo menos uma vez na vida. Eu nunca vi. Minto. Teve o Natal em que fui esquiar com o Bradley.” Eu não conseguia lembrar quem era Bradley. Os namorados e maridos de minha irmã mais moça formavam um verdadeiro desfile, havia anos que eu deixara de contemplá-lo. “Gostaria muito que Lucy passasse o Natal comigo. É possível?” “Você não pode vir para Miami?” “Não, Dorothy. Este ano não. Estou no meio de vários casos muito difíceis e tenho audiências marcadas quase até a véspera de Natal.” “Não posso imaginar um Natal sem Lucy”, disse ela com muita relutância. “Você já teve muitos Natais sem ela. Quando foi esquiar com o Bradley, por exemplo.” “É verdade. Mas foi difícil. Todas as vezes que passamos o Natal separadas, juramos não fazer isso nunca mais”, disse, olímpica. “Está bem. Fica para outra vez”, falei, farta dos joguinhos de minha irmã. Sabia que ela estava louca para ver Lucy pelas costas. “Na verdade, já estou no fim do prazo para entregar esse livro novo e afinal de contas vou passar a maior parte do feriado diante do computador”, reconsiderou ela rapidamente. “Talvez Lucy fique melhor com você. Não vou ter muita graça. Contei que agora tenho um agente para Hollywood? É fantástico e conhece todo mundo que é importante lá. Está negociando um contrato com a Disney.” “Que bom. Tenho certeza de que seus livros vão dar uns filmes ótimos.” Dorothy escrevia excelentes livros para crianças e ganhara vários prêmios importantes. Como ser humano, era um fracasso. “Mamãe está aqui. Ela quer te dar uma palavrinha. Olhe, foi muito bom falar com você. Devíamos fazer isso mais vezes. Não deixe Lucy comer só saladas, e fique sabendo que ela faz ginástica até deixar você maluca. Estou preocupada porque ela vai acabar ficando com a aparência masculinizada.”
Antes que eu pudesse abrir a boca minha mãe estava na linha. “Por que você não vem para cá, Katie? Tem feito dias lindos e você precisa ver as grapefruits.” “Não posso, mamãe. É uma pena.” “Então quer dizer que Lucy é que vai para aí? É verdade? E o que eu vou fazer, comer o peru sozinha?” “Dorothy vai estar aí.” “O quê? Você está brincando? Ela vai passar com o Fred. Não suporto o Fred.” Dorothy tinha se divorciado de novo no último verão. Nem perguntei quem era Fred. “Acho que ele é iraniano ou coisa assim. É pão-duro como o diabo e tem cabelo na orelha. Sei que não é católico, e agora Dorothy não leva a Lucy à igreja. Na minha opinião essa menina vai de mal a pior.” “Mamãe, elas podem te ouvir.” “Não podem, não. Estou na cozinha olhando para uma pia cheia de pratos sujos que eu sei que Dorothy espera que eu lave enquanto estou aqui. É como quando ela vai lá em casa porque não tomou nenhuma providência para o jantar e fica esperando eu cozinhar. Alguma vez ela se ofereceu para me trazer alguma coisa? Fica preocupada com o fato de eu ser uma velha e praticamente inválida? Talvez você possa abrir um pouco a cabeça de Lucy.” “Qual é o problema com a cabeça de Lucy?”, perguntei. “Ela não tem amigos, só uma menina meio problemática. Você precisa ver o quarto de Lucy. Parece um cenário de ficção científica, com todos aqueles computadores e impressoras e peças e componentes. Não é normal uma menina passar o tempo todo estudando e não sair com rapazes da idade dela. Eu me preocupo com ela como me preocupava com você.” “Eu dei certo”, falei. “Bem, você passava muito tempo com livros de ciências, Katie. E viu no que deu seu casamento.” “Mamãe, se fosse possível, eu gostaria que a Lucy viesse para cá amanhã. Eu faço as reservas daqui e resolvo o problema das passagens. Veja se ela traz as roupas mais quentes que tiver. O que ela não tiver, como um casacão, eu encontro aqui.” “Com certeza ela vai pedir suas roupas emprestadas. Há quanto tempo você não a vê? Desde o Natal passado?” “Acho que sim.” “Deixe eu lhe contar. Ela está com uns peitos assim. E o jeito de vestir? E pediu a opinião da avó antes de cortar aquele cabelo lindo? Não. Por que iria incomodar-se em contar-me isso…” “Preciso telefonar para a companhia de aviação.” “Eu queria que você viesse para cá. Podíamos ficar todos juntos.” A voz dela
estava ficando engraçada. Minha mãe estava quase chorando. “Eu também gostaria”, respondi.
No fim da manhã de domingo dirigi até o aeroporto por ruas escuras e molhadas que atravessavam um mundo faiscante de vidro. O gelo solto pelo sol escorria pelos postes telefônicos, pelos telhados e pelas árvores, despedaçando-se no chão como projéteis de cristal caídos do céu. A previsão do tempo anunciava outra tempestade e eu estava profundamente contente, apesar dos pesares. Queria momentos sossegados diante da lareira com minha sobrinha. Lucy estava crescendo. Não parecia fazer tanto tempo que ela nascera. Eu nunca esqueceria seus olhos arregalados que não piscavam, seguindo todos os movimentos na casa de sua mãe, ou seus curiosos ataques de impaciência e mágoa quando eu a decepcionava mesmo com algo pequeno. A adoração de Lucy tocava meu coração tão profundamente quanto me apavorava. Ela me levava a uma profundidade de sentimentos que eu nunca havia experimentado. Passei a conversa no pessoal da segurança, e esperei no portão de desembarque, examinando ansiosa os passageiros que surgiam no corredor de acesso. Procurava uma adolescente gordinha, de cabelo comprido vermelhoescuro e aparelho nos dentes quando uma jovem atraente encontrou meus olhos e sorriu. “Lucy! Meu Deus, quase não te reconheci”, exclamei, abraçando-a. Seu cabelo estava curto e despenteado de propósito, acentuando os olhos verde-claros e a ossatura que eu não sabia que ela tinha. Não havia traço algum de metal em sua boca, e os óculos grossos tinham sido substituídos por uma armação leve de tartaruga que lhe dava o ar de uma acadêmica de Harvard sisudamente bonita. O que, porém, mais me espantou foi a mudança em seu corpo, pois desde que a vira pela última vez ela se transformara de adolescente socada em atleta esbelta e de pernas longas, vestindo calças desbotadas e bem justas, blusa branca, cinto de couro vermelho trançado e sapatos baixos sem meias. Trazia uma sacola com livros e vislumbrei o brilho de uma pulseirinha de ouro no tornozelo. Achei que ela estava sem maquiagem e sem sutiã. “Onde está seu casaco?”, perguntei, enquanto nos dirigíamos à sala de bagagem. “Fazia vinte e sete graus quando saí de Miami esta manhã.” “Você vai congelar quando formos pegar o carro.” “É fisicamente impossível eu congelar quando formos pegar seu carro, a não ser que você tenha estacionado em Chicago.” “Tem um suéter na sua mala?” “Você já reparou que fala comigo como a vovó fala com você? Aliás, ela acha que eu pareço ‘rock paulada’. É a mancada do mês. Ela quer dizer ‘rock
pauleira’.” “Tenho uns casacos de esqui, outros de veludo, chapéus, luvas. Pode pegar emprestado o que quiser.” Ela enfiou o braço no meu e farejou meu cabelo. “Você continua sem fumar.” “Continuo sem fumar e detesto que me digam que continuo sem fumar porque aí fico com vontade de fumar.” “Você está mais bonita e não fede a cigarro. E não engordou. Pô, esse aeroporto é um troço. Por que o nome dele é Aeroporto Internacional de Richmond?”, disse Lucy, cujo computador cerebral tinha erros de formatação nos setores de diplomacia. “Porque tem voos para Miami.” “Por que a vovó nunca vem te ver?” “Ela não gosta de viajar e se recusa a viajar de avião.” “É mais seguro que andar de carro. Tia Kay, o quadril dela está realmente piorando.” “Eu sei. Vou deixar você apanhando as malas enquanto vou buscar o carro para estacionar aqui na ente. Mas vamos primeiro ver qual é a esteira”, eu disse quando chegamos à sala de bagagem. “Só há três esteiras. Aposto que consigo acertar.” Troquei-a pelo ar brilhante e io, grata por um momento de solidão para pensar. As mudanças de minha sobrinha tinham me pegado de surpresa e de repente eu estava mais insegura do que nunca quanto ao modo de tratá-la. Lucy nunca fora fácil. Desde o primeiro dia fora um cérebro adulto e prodigioso governado por emoções infantis, inconstância que acidentalmente tomara forma quando sua mãe se casara com Armando. Antes, eu só ganhava dela por causa do tamanho e da idade. Agora, Lucy estava tão alta quanto eu e falava com a voz baixa e calma de uma igual. Não iria correr para o quarto e bater a porta. Nunca mais terminaria uma discussão gritando que me odiava e que ainda bem que não era minha filha. Imaginei estados de espírito que eu não poderia prever e debates que não poderia vencer. Tive visões em que ela deixava tranquilamente a casa e partia em meu carro. Falamos pouco no caminho, pois Lucy parecia fascinada com o inverno. O mundo se derretia como uma escultura de gelo enquanto outra ente ia aparecia no horizonte sob a forma de uma faixa cinzenta ameaçadora. Quando dobramos em direção ao bairro para o qual eu me mudara depois de sua última visita, ela contemplou as casas e os gramados caros, as decorações coloniais de Natal e as calçadas de tijolo. Um homem vestido de esquimó passeava com seu cão velho e obeso, e um Jaguar negro, acinzentado pelo sal das ruas, espirrou água enquanto passava lentamente. “Hoje é domingo. Onde estão as crianças — ou não há nenhuma?”, disse Lucy, como se a observação de algum modo me incriminasse.
“Há algumas, sim.” Dobrei a esquina em minha rua. “Não há bicicletas nos quintais, nem ancinhos, nem cabanas. Ninguém nunca sai de dentro de casa?” “Esse é um bairro muito sossegado.” “Foi por isso que você o escolheu?” “Em parte. Além disso é seguro, e espero que ter comprado uma casa aqui acabe sendo um bom investimento.” “Segurança privada?” “É”, disse eu cada vez mais sem graça. Ela continuou contemplando as casas grandes por que passávamos. “Aposto que você pode entrar, fechar a porta e nunca mais ouvir falar de ninguém — e também nunca mais ver ninguém do lado de fora, só os que estiverem levando o cachorro para passear. Mas você não tem cachorro. Quantas visitas recebeu no Dia das Bruxas?” “O Dia das Bruxas foi sossegado”, respondi evasivamente. Na verdade, a campainha da porta soara uma vez só, quando eu estava trabalhando no escritório. Podia ver na tela as quatro crianças à minha porta; agarrando o interfone, eu ia dizer a elas que já estava indo quando ouvi o que estavam dizendo: “Não, não tem ninguém”, sussurrou uma chefe de torcida de corpo mirrado. “Tem sim”, disse o Homem Aranha. “Ela aparece sempre na televisão porque corta pessoas em pedaços e bota nuns vidros. Papai me disse.” Estacionei na garagem e disse a Lucy: “Vamos instalar você em seu quarto, depois a primeira tarefa vai ser acender um fogo e preparar um bule de chocolate. Aí vamos conversar sobre o almoço”. “Eu não tomo chocolate. Você tem máquina de café expresso?” “Tenho.” “Seria ótimo, principalmente se você tiver café ancês sem cafeína. Você conhece seus vizinhos?” “Sei quem são. Segure aqui a mala enquanto seguro a outra, destranco a porta e desarmo o alarme. Puxa, isso está pesado.” “Vovó queria que eu trouxesse grapeuits para você. São boas, mas cheias de sementes.” Quando entrou em minha casa, Lucy olhou em torno. “Puxa. Claraboias. Que estilo de arquitetura é esse, além de ser o estilo rico?” Talvez ela melhorasse se eu fingisse não reparar. “O quarto de hóspedes é aqui atrás. Posso instalar você em cima, se você quiser, mas achei que você ia preferir ficar aqui perto de mim.” “Aqui embaixo está ótimo. Contanto que eu fique perto do computador.” “É no meu escritório, na porta ao lado de seu quarto.” “Trouxe minhas notas sobre o Unix, livros e uns outros troços.”
Parou diante das portas envidraçadas de correr da sala de visitas. “O jardim não é tão bonito quanto o que você tinha antes. Não tem nenhuma rosa.” Disse isso como se eu tivesse abandonado algum conhecido. “Tenho anos para trabalhar no jardim. Isso me faz ter um projeto para o futuro.” Lucy examinou lentamente os arredores e seus olhos finalmente se detiveram em mim. “Você tem câmeras nas portas, detectores de movimento, cerca, grades de segurança, que mais? Cabines armadas?” “Cabines armadas não.” “Este é seu Forte Apache, não é, tia Kay? Você se mudou para cá porque o Mark morreu e agora só tem gente ruim no mundo.” O comentário me atingiu com um impacto fortíssimo, e imediatamente as lágrimas me encheram os olhos. Fui para o quarto de hóspedes, onde deixei a mala, e verifiquei toalhas, sabonete e pasta de dentes no banheiro. Voltando ao quarto, abri as cortinas, verifiquei as gavetas da cômoda, arrumei o armário e ajustei a calefação enquanto minha sobrinha, sentada na beira da cama, seguia todos os meus movimentos. Passados vários minutos pude olhá-la de novo nos olhos. “Quando você desmanchar as malas eu lhe mostro um armário onde você pode procurar roupa de inverno”, eu disse. “Você nunca o viu como todo mundo.” “Lucy, precisamos conversar sobre outra coisa.” Acendi uma lâmpada e verifiquei se o telefone estava na tomada. “Você está melhor sem ele”, acrescentou sem convicção. “Lucy…” “Ele não ligava para você como devia. Nunca ligaria, não era o jeito dele. E sempre que as coisas não iam bem você ficava diferente.” Fui para a janela e fiquei olhando as clematites adormecidas e as rosas congeladas em suas estacas. “Lucy, você precisa aprender a ter um pouco de delicadeza e tato. Não pode dizer tudo o que pensa.” “É engraçado ouvir você dizer isso. Você sempre me disse que detestava hipocrisia e joguinhos.” “As pessoas têm sentimentos.” “Está certo. Eu também”, disse ela. “Feri seus sentimentos?” “Como você acha que estou me sentindo?” “Acho que não estou entendendo.” “Porque em nenhum momento você pensou em mim. Por isso não entende.” “Eu penso em você o tempo todo.”
“Isso é o mesmo que dizer que você é rica, e mesmo assim nunca me dá um tostão. Que importância têm para mim as coisas que você esconde?” Eu não sabia o que dizer. “Você já não me telefona. Nunca mais foi me visitar depois que ele morreu.” Contida por muito tempo, a mágoa em sua voz apareceu afinal. “Escrevi para você e você não respondeu. Agora, ontem, você telefona e me convida para vir visitá-la porque precisava de um negócio.” “Não foi essa a intenção.” “É o mesmo que mamãe faz.” Fechei os olhos e encostei a cabeça no vidro io. “Você espera demais de mim, Lucy. Não sou perfeita.” “Não espero que você seja perfeita. Mas pensei que fosse diferente.” “Não sei como me defender quando você faz uma observação dessas.” “Você não pode se defender.” Vi um esquilo cinza correr por cima da cerca do quintal. Pássaros catavam sementes na grama. “Tia Kay?” Voltei-me para ela. Nunca vira seus olhos tão sem esperança. “Por que os homens são sempre mais importantes que eu?” “Não são, Lucy. Juro!”, murmurei. Minha sobrinha queria salada de atum e café com leite para o almoço e, enquanto eu revia um artigo para uma revista, sentada diante da lareira, ela fuçava meu armário e as gavetas da cômoda. Tentei não pensar em outro ser humano tocando minha roupa, dobrando as coisas de um jeito diferente do meu ou pendurando um casaco no cabide errado. Lucy tinha o dom de fazer com que me sentisse como o Homem de Lata enferrujando na floresta. Será que eu estava me transformando no adulto rígido e sério de quem não gostaria quando tinha a idade dela? “O que você acha?”, perguntou ela quando, à uma e meia, saiu de meu quarto. Estava usando um de meus abrigos térmicos para tênis. “Acho que você levou muito tempo para acabar só com isso. Mas fica bem em você.” “Encontrei outras coisas bonitinhas, mas a maioria de seus troços é muito formal. Todas essas roupas de advogada, azul-marinho ou pretas, seda cinza com listrinhas delicadas, cáqui, cashmere e blusas brancas. Você deve ter pelo menos vinte blusas brancas e outras tantas echarpes. Aliás, você não devia usar marrom. E não vi quase nada vermelho, e você fica bem de vermelho, com seus olhos azuis e seu cabelo louro meio grisalho.” “Louro-cinza”, disse eu. “Cinza é grisalho ou branco. Olhe aí na lareira. Também não usamos o mesmo número de sapato — não que eu goste de seus sapatos caros e formais. Encontrei um casaco de couro preto que é realmente o máximo.
Você foi motoqueira em outra encarnação?” “É de couro de carneiro. Você pode usar se quiser.” “E o perfume Fendi e as pérolas? Você tem uns jeans?” “Apanhe o que você quiser.” Comecei a rir. “Claro que tenho uns jeans por aí. Talvez estejam na garagem.” “Quero levar você para fazer umas compras, tia Kay.” “Só se eu estiver louca.” “Por favor!” “Talvez”, eu disse. “Se não houver problema, gostaria de ir ao seu clube para fazer um pouco de exercício. Estou dura depois do avião.” “Se quiser jogar tênis enquanto estiver aqui, eu vejo se o Ted tem tempo para jogar com você. Minhas raquetes estão no armário da esquerda. Agora mesmo troquei para uma Wilson. Dá para bater na bola a cento e sessenta quilômetros por hora. Você vai adorar.” “Não, obrigada. Prefiro usar os aparelhos e os pesos ou correr. Por que você não toma umas aulas com o Ted enquanto eu faço os exercícios? Podíamos ir juntas!” Obedientemente, fui até o telefone e disquei o número da Academia Westwood. Ted estava ocupado até as dez. Ensinei o caminho a Lucy, dei-lhe as chaves do carro e, depois que ela saiu, fiquei lendo na ente da lareira e adormeci. Quando abri os olhos ouvi as brasas se mexendo e o vento tocar delicadamente os sinos de estanho presos atrás das portas de correr. A neve caía em flocos grandes e lentos e o céu estava da cor de uma lousa empoeirada. As luzes em meu quintal tinham se acendido e a casa estava tão quieta que ouvi o tique-taque do relógio de parede. Passava pouco das quatro e Lucy não voltara do clube. Liguei para o telefone do carro e ninguém atendeu. Ela nunca dirigira na neve antes, pensei, preocupada. E eu tinha de ir ao mercado comprar peixe para o jantar. Poderia telefonar para o clube e pedir que a localizassem. Disse para mim mesma que era tudo bobagem. Fazia só duas horas que Lucy tinha saído. Ela não era mais criança. Às quatro e meia tentei novamente o telefone do carro. Às cinco telefonei para o clube e não conseguiram encontrá-la. Comecei a entrar em pânico. Perguntei de novo à moça da academia: “Tem certeza de que ela não está na sala de ginástica, ou tomando banho no vestiário feminino? Será que não foi até a lanchonete?” “Já chamamos o nome dela quatro vezes, doutora Scarpetta. E eu mesma dei uma olhada. Vou verificar de novo. Se a encontrar, mando ligar para a senhora imediatamente.” “Você sabe se ela esteve aí? Deve ter chegado por volta das duas.” “Só cheguei às quatro. Não sei.”
Continuei a ligar para o telefone do carro. “O assinante do celular de Richmond que está sendo chamado não responde…” Tentei Marino, mas ele não estava em casa nem no trabalho. Às seis horas mandei recado pelo bip e fiquei na cozinha olhando pela janela. A neve caía no brilho esbranquiçado da iluminação da rua. Meu coração batia forte enquanto eu andava pelos quartos e continuava ligando para o telefone do carro. Às seis e meia tinha decidido dar parte do desaparecimento à polícia quando o telefone tocou. Corri para o escritório e ia agarrar o telefone quando reparei no número conhecido formando-se agourentamente na telinha de identificação da pessoa que estava telefonando. Os telefonemas haviam cessado na noite da execução de Waddell. Desde então eu não pensara mais neles. Confusa, fiquei parada, esperando que, como sempre, desligassem depois de minha mensagem gravada. Fiquei chocada quando reconheci a voz que começou a falar. “Detesto fazer isso com você, doutora…” Peguei o fone, limpei a garganta e disse, sem acreditar: “Marino?”. “É”, disse ele. “Más notícias.”
4
“Onde você está?”, perguntei, com os olhos fixos na tela. “Na zona leste, e o negócio está preto. Temos um cadáver. Uma mulher branca. À primeira vista parece um suicídio típico com gás carbônico, com o carro dentro da garagem e uma mangueira enfiada no cano do escapamento. Mas as circunstâncias são meio estranhas. É melhor você vir até aqui.” “De onde você está telefonando?”, perguntei, tão imperiosamente que ele hesitou. Percebi seu espanto. “Da casa da morta. Cheguei agora. Essa é outra coisa. Não estava trancada. A porta de trás estava aberta.” Ouvi a porta da garagem. “Graças a Deus! Marino, espere aí”, eu disse, aliviada. O barulho dos sacos de papel acompanhou o da porta da cozinha que se fechava. Pondo a mão no fone, gritei: “Lucy, é você?”. “Não, é o Congelado, Homem das Neves. Você precisava ver como está lá fora. Um negócio!” Procurando caneta e papel, eu disse a Marino: “Qual o nome e o endereço da morta?”. “Jennifer Deighton. Avenida Ewing, 217.” Não reconheci o nome. Ewing dava na estrada Williamsburg, perto do aeroporto, um bairro que eu não conhecia. Eu estava desligando o telefone quando Lucy entrou no escritório. Seu rosto estava corado de frio, e os olhos brilhavam. “Pelo amor de Deus, onde você estava?”, disparei. Foi-se o sorriso. “Fazendo compras.” “Está bem, depois a gente conversa. Tenho de fazer uma perícia.” Ela deu de ombros e devolveu minha irritação: “Grande novidade”. “Sinto muito. Não posso controlar a morte das pessoas.” Agarrando o casaco e as luvas, corri para a garagem. Liguei o motor, afivelei o cinto, ajustei a calefação e estudei o caminho antes de lembrar-me do dispositivo automático para abrir a porta preso ao painel. É curioso como um espaço fechado se enche rapidamente de fumaça. “Meu Deus”, disse com severidade para mim mesma enquanto abria rapidamente a porta da garagem. Envenenamento pela descarga de um automóvel é uma maneira fácil de morrer. Casais jovens agarrando-se no banco de trás, com o motor
funcionando e a calefação ligada, jogam-se nos braços um do outro e não despertam mais. Indivíduos suicidas transformam automóveis em pequenas câmaras de gás e deixam seus problemas para os outros. Eu tinha esquecido de perguntar a Marino se Jennifer Deighton vivia só. A neve já atingia muitos centímetros e iluminava a noite. Não havia tráfego em meu bairro e muito pouco quando cheguei à rodovia expressa do centro. O rádio tocava músicas de Natal sem parar, enquanto meus pensamentos passavam numa revolução confusa até chegarem, um por um, ao medo. Jennifer Deighton, ou alguém que usava seu telefone, tinha o hábito de telefonar para meu número e desligar. Agora ela estava morta. O viaduto fazia uma curva no extremo leste da região central, onde os trilhos da estrada de ferro cruzavam a terra como cortes suturados e os estacionamentos elevados eram mais altos que muitos dos edifícios. A estação na rua Principal destacava-se do céu leitoso com seu telhado coberto de branco e o relógio da torre semelhante ao olho turvo de um ciclope. Na estrada Williamsburg passei bem devagar por um shopping center deserto e pouco antes do começo do condado de Henrico localizei a avenida Ewing. As casas eram pequenas, com caminhonetes e carros americanos de modelos antigos parados deonte. No número 217 havia automóveis da polícia na entrada e nos dois lados da rua. Estacionei atrás do Ford de Marino, desci com minha maleta médica e andei até o fim da entrada de terra, onde a garagem para um carro só estava iluminada como um presépio. Encontrei Marino agachado perto da porta de trás do lado do motorista, examinando um pedaço de mangueira de jardim verde que vinha do cano de escapamento e entrava por uma janela parcialmente aberta. O interior do carro estava imundo de fuligem e o cheiro de fumaça pairava no ar frio e úmido. “A ignição ainda está ligada. A gasolina acabou”, disse-me Marino. A morta parecia estar na casa dos cinquenta, talvez sessenta e poucos anos. Estava atrás do volante, caída para o lado direito e com a pele do pescoço e das mãos exposta e rosada. Um fluido seco sanguinolento manchava a forração atrás de sua cabeça. De onde eu estava não dava para ver o rosto. Abri a maleta, tirei um termômetro químico para tomar a temperatura do interior da garagem e calcei luvas cirúrgicas. Perguntei a um jovem policial se ele podia abrir as portas da frente do carro. “Agora estamos tirando as impressões digitais”, disse ele. “Eu espero.” “Johnson, comece pelas maçanetas, que é para a doutora poder entrar no carro.” Fixou em mim os escuros olhos latinos. “Meu nome é Tom Lucero. Esse negócio aqui não faz muito sentido. Para começo de conversa, é esquisito esse sangue no banco da frente.” “Há muitas explicações possíveis para isso”, respondi. “Uma é hemorragia
post mortem.” Ele apertou os olhos. “Quando a pressão dos pulmões faz o sangue sair pelo nariz e pela boca”, expliquei. “Bom. Mas isso geralmente só acontece quando a pessoa começa a se decompor, não é?” “Geralmente.” “Com base no que a gente sabe, essa senhora está morta há umas vinte e quatro horas e aqui está frio como num congelador de necrotério.” “É verdade. Mas se ela estivesse com a calefação funcionando, mais a descarga quente entrando no carro, o ambiente teria esquentado e teria ficado quente até a gasolina acabar.” Marino olhou pela janela opaca de fuligem e disse: “Parece que o aquecimento estava no máximo”. “Outra possibilidade é que, ao ficar inconsciente, ela tenha caído para a ente e batido com o rosto no volante, na quina do painel, no banco. O nariz pode ter sangrado. Ela pode ter mordido a língua ou cortado o lábio. Só vou saber depois de examinar.” “Está bem, e o jeito como ela está vestida? Não é esquisito ela sair para o io, entrar numa garagem ia, enfiar a mangueira e entrar no carro io só de camisola?”, disse Lucero. A camisola azul-claro era curta, tinha mangas compridas e o tecido parecia um produto sintético fino. Não há etiqueta quanto ao traje dos suicidas. Teria sido lógico Jennifer Deighton vestir um casaco e sapatos antes de sair de casa numa noite gelada de inverno. Se, porém, tivesse planejado se matar, sabia que não sentiria frio por muito tempo. O datiloscopista tinha terminado de colher as impressões digitais. Recuperei o termômetro químico. Fazia dois graus negativos dentro da garagem. “Quando você chegou aqui?”, perguntei a Lucero. “Há mais ou menos uma hora e meia. É claro que aqui estava mais quente antes de a gente abrir a porta, mas não muito. A garagem não é aquecida. O capô estava io. Calculo que a gasolina acabou e a bateria descarregou algumas horas antes de sermos chamados.” As portas do automóvel foram abertas e fiz uma série de fotografias antes de ir para o lado do assento do passageiro para examinar a cabeça dela. Preparei-me para alguma centelha de familiaridade, um pormenor que pudesse acender alguma lembrança por muito tempo sepultada. Não havia nada, contudo. Eu não conhecia Jennifer Deighton. Nunca a vira antes em minha vida. Seu cabelo descolorido estava escuro na raiz e cuidadosamente preso a rolinhos cor-de-rosa, vários dos quais haviam sido deslocados. Era bem gorda,
embora seus traços finos revelassem que devia ter sido muito bonita numa juventude mais esbelta. Apoiei o dorso da mão em seu rosto e tentei virá-lo. Estava io e duro, e o lado que estivera encostado no banco estava pálido e inchado pelo calor. Não parecia que o corpo tinha sido movido depois da morte e a pele não ficava branca quando pressionada. Ela estava morta havia pelo menos doze horas. Só quando eu ia começar a ensacar suas mãos reparei que havia algo sob a unha de seu indicador direito. Usei uma lanterna para ver melhor, depois apanhei um saquinho de plástico e uma pinça. O pedacinho de metal verde estava enfiado na pele debaixo da unha. Pensei logo em enfeites de Natal. Encontrei também fibras de tinta dourada, e estudando os dedos um a um encontrei mais. Enfiei as mãos dela em sacos de papel pardo, que fixei em seus pulsos com elásticos, e passei para o outro lado do carro. Queria olhar seus pés. As pernas estavam totalmente rígidas e não ajudaram quando as soltei do volante para colocá-las sobre o banco. Examinei as solas das meias grossas e escuras e encontrei, presas na lã, fibras parecidas com as que tinha visto debaixo das unhas. Não havia poeira, lama nem grama. Um alarme soava no fundo de minha cabeça. “Encontrou alguma coisa interessante?”, perguntou Marino. “Você não encontrou por aí chinelos ou sapatos?”, perguntei. “Não”, respondeu Lucero. “Como disse à senhora, achei estranho ela sair de casa numa noite fria só de…” Interrompi. “Temos um problema aqui. As meias estão limpas demais.” “Puta merda”, disse Marino. “Vamos ter de levá-la para a cidade.” Afastei-me do carro. “Vou falar com a patrulha”, propôs Lucero. “Quero ver a casa por dentro”, eu disse a Marino. “Está bem.” Ele descalçara as luvas e estava soprando as mãos. “Também quero que você veja.” Enquanto esperava pela patrulha andei pela garagem, sem atrapalhar e com cuidado quanto aos lugares onde pisava. Não havia muito o que ver, só o amontoado comum dos objetos de jardim e da tralha que não tinha outro lugar onde ser guardada. Examinei pilhas de jornais velhos, cestas de palha, latas de tinta empoeiradas e uma churrasqueira enferrujada que duvido que tivesse sido usada em anos. Mal enrolada num canto, como uma cobra verde de jardim acéfala, estava a mangueira de onde parecia ter sido cortado o segmento ligado ao cano de escapamento. Agachei-me junto ao ponto cortado, sem tocá-lo. O tubo de plástico parecia não ter sido serrado, mas decepado obliquamente de um só golpe. Reparei num corte reto no piso de cimento ali perto. Levantei-me e passei em revista as ferramentas que pendiam de um quadro. Havia um machado e uma marreta, ambos enferrujados e ornados de teias de aranha.
A equipe de resgate estava vindo com a maca e o saco para o corpo. “Dentro da casa você encontrou alguma coisa com a qual ela pudesse ter cortado a mangueira?”, perguntei a Lucero. “Não.” Jennifer Deighton não queria sair do carro; era a morte resistindo às mãos da vida. Passei para o lado do passageiro para ajudar. Três de nós seguramos o corpo por baixo dos braços e pela cintura enquanto um ajudante puxava as pernas. Depois de aberto o zíper do saco e ajustadas as correias da maca, carregaram-na pela noite nevada e fui andando pela ente da casa com Lucero, lamentando não ter tido tempo de calçar minhas botas. Entramos na casa de tijolos em estilo rústico por uma porta nos fundos que dava para a cozinha. A casa parecia ter soido uma reforma recente, com eletrodomésticos pretos, balcões e armários brancos e papel de parede com motivo oriental, de flores pastel contra fundo azul. Avançando numa direção de onde vinham vozes, Lucero e eu atravessamos um corredor estreito e detivemo-nos na entrada de um quarto onde Marino e um datiloscopista estavam examinando as gavetas da cômoda. Durante um certo tempo olhei em volta as manifestações peculiares à personalidade de Jennifer Deighton. Era como se seu quarto fosse uma célula solar onde ela capturasse energia radiante e a transformasse em mágica. Pensei de novo nos telefonemas interrompidos que andara recebendo: minha paranoia crescia aos trancos e barrancos. As paredes, o carpete, a roupa de cama e a mobília de vime eram brancos. Estranhamente, na cama desfeita, perto do ponto onde ambos os travesseiros estavam encostados na cabeceira, uma única folha de papel, em branco, estava embaixo de uma pirâmide de cristal. Na cômoda e em cima das mesinhas havia mais cristais, e outros menores pendiam das janelas. Eu podia imaginar os arco-íris dançando no quarto e a luz atravessando os prismas quando o sol entrava. “Estranho, hein?”, perguntou Lucero. “Ela era ocultista?”, perguntei. “Tinha seu próprio negócio, quase sempre aqui mesmo.” Lucero aproximouse de uma secretária eletrônica que estava sobre uma mesa junto à cama. A luz de mensagem recebida estava piscando e o número 38 aparecia em vermelho. “Trinta e oito mensagens desde ontem às oito da noite! Ouvi algumas. A mulher fazia horóscopos. Parece que o pessoal ligava para saber se ia ter um bom dia, se ia ganhar no jogo ou se ia poder pagar os cartões de crédito depois do Natal”, acrescentou Lucero. Marino abriu a tampa da secretária eletrônica e, com o canivete de bolso, arrancou as fitas, que lacrou dentro de um saquinho. Eu estava interessada em vários outros objetos que se achavam na mesinha de cabeceira e me
aproximei para dar uma olhada. Junto a um bloquinho e a uma caneta, havia um copo com um centímetro de líquido claro. Abaixei-me, mas não senti cheiro algum. Achei que era água. Perto havia duas brochuras, Paris Trout, de Pete Dexter, e Seth fala, de Jane Roberts. Não vi outros livros no quarto. “Gostaria de dar uma olhada nesses”, disse a Marino. “Paris Trout. É sobre o quê, pesca na França?”, resmungou ele. Infelizmente estava falando sério. “Podem me dizer alguma coisa sobre o espírito dela antes de morrer”, acrescentei. “Não tem problema. Vou fazer o setor de documentos verificar se há impressões digitais neles e depois os entrego a você. E acho que é melhor o setor também dar uma olhada no papel”, acrescentou, referindo-se à folha de papel em branco que estava na cama. “É, pode ser que ela tenha escrito um bilhete de suicídio com tinta invisível”, brincou Lucero. “Venha cá. Queria lhe mostrar umas coisas”, disse Marino. Fui com ele até a sala de visitas, onde uma árvore de Natal artificial se escondia num canto, encurvada sob o peso de um mundo de enfeites berrantes e estrangulada por fios prateados, luzes e algodão. Junto à base estavam amontoadas caixas de doces e queijos, sais de banho, um vidro do que parecia ser chá aromatizado e um unicórnio de cerâmica com olhos azuis flamejantes e um chie dourado. Achei que o carpete felpudo e dourado era a origem das fibras que encontrara na sola das meias de Jennifer Deighton e debaixo de suas unhas. Marino tirou uma lanterninha do bolso e se agachou. “Olhe aqui”, disse. Abaixei-me a seu lado enquanto o facho de luz iluminava um brilho metálico e um pouco de fio dourado fino enfiado no tapete junto à base da árvore. “Quando entrei aqui, a primeira coisa que fiz foi verificar se havia presentes na árvore”, disse Marino, apagando a lanterna. “Evidentemente ela os abriu cedo e o papel de embrulho e os cartões foram jogados na lareira, que está cheia de cinza de papel. Vi, ainda, uns pedaços de papel metálico que não queimaram. A senhora que mora deonte disse que reparou na fumaça que saía da chaminé pouco antes de escurecer, ontem à noite.” “Foi essa vizinha que chamou a polícia?”, perguntei. “Foi.” “Por quê?” “Não sei bem. Tenho de conversar com ela.” “Quando conversar, veja se descobre alguma coisa sobre o histórico médico dessa mulher, se tinha problemas psiquiátricos etc. Eu gostaria de saber quem era o médico dela.” “Daqui a pouco vou até lá. Você pode vir comigo e perguntar pessoalmente.”
Pensei em Lucy esperando por mim em casa enquanto eu continuava procurando informações sobre pormenores. No centro do quarto meus olhos deram com quatro marquinhas quadradas no carpete. “Também reparei nisso. É como se alguém tivesse trazido uma cadeira para cá, com certeza da sala de jantar. Há quatro cadeiras em torno da mesa da sala de jantar. Todas têm pernas quadradas”, disse Marino. “Outra coisa que você podia fazer é verificar o vídeo dela. Veja se ela tinha programado gravar alguma coisa. Isso também pode nos dizer alguma coisa sobre Jennifer”, pensei alto. “Boa ideia.” Saímos da sala de visitas, passando pela salinha de jantar com uma mesa de carvalho e quatro cadeiras de costas retas. No assoalho de madeira, o tapete trançado parecia novo ou pouco usado. “Parece que onde ela vivia mais era aqui”, disse Marino quando atravessamos um corredor e entramos no que evidentemente era o escritório. A sala estava entupida com a parafernália necessária para administrar um pequeno negócio, inclusive um aparelho de fax, que imediatamente investiguei. Estava desligado e com o fio na tomada. Olhei um pouco em torno, cada vez mais intrigada. Um microcomputador, uma máquina de selar, vários formulários e envelopes atulhavam a mesa e uma escrivaninha. Nas estantes viam-se enciclopédias e livros sobre parapsicologia, astrologia, signos do zodíaco e religiões orientais e ocidentais. Junto à máquina de selar estava uma pilha do que pareciam ser formulários de assinatura; apanhei um. Por trezentos dólares por ano você podia telefonar até uma vez por dia e Jennifer Deighton dedicaria até três minutos para dizer-lhe seu horóscopo “baseado em pormenores pessoais, inclusive o alinhamento dos planetas no momento de seu nascimento”. Por mais duzentos dólares por ano ela faria “uma leitura semanal”. Contra recepção do pagamento o assinante receberia um cartão com um código de identificação que só seria válido enquanto a taxa anual continuasse a ser paga. “Quanta besteira”, disse Marino. “Imagino que ela vivesse só.” “Até agora é o que parece. Uma mulher sozinha dirigindo um negócio como esse é um bom caminho para atrair a pessoa errada.” “Marino, você sabe quantas linhas telefônicas ela tem?” “Não. Por quê?” Enquanto ele me olhava atentamente, contei-lhe dos telefonemas que recebia. Os músculos de seu queixo começaram a se tensionar. “Preciso saber se o aparelho de fax e o telefone estão na mesma linha”, concluí. “Meu Deus.” “Se estão e se ela estava com o fax ligado na noite em que liguei para o
número que apareceu na tela de identificação do meu telefone, fica explicado o ruído que escutei”, prossegui. “Meu Deus do céu. Por que não me disse isso antes?”, falou ele, tirando o rádio do bolso do casaco. “Não quis contar na presença de outras pessoas.” Ele aproximou o rádio dos lábios. “Sete-dez.” Depois para mim: “Se você estava preocupada com os telefonemas, por que não disse nada semanas atrás?”. “Não estava tão preocupada assim.” “Sete-dez”, respondeu a voz metálica da operadora. “Dez-cinco, oito-vinte e um.” A operadora expediu uma chamada para o 821, o código do delegado. “Tenho um número que eu gostaria que você discasse. Você está com o telefone celular?”, disse Marino enquanto entrava em contato com o delegado. “Dez-quatro.” Marino deu-lhe o número de Jennifer Deighton e em seguida ligou o aparelho de fax. Temporariamente ele começou a tilintar, apitar e emitir outras queixas. “Isso responde a sua questão?”, perguntou Marino. “Responde a uma delas, mas não à mais importante”, respondi.
O nome da vizinha da ente, a que avisara a polícia, era Myra Clary. Acompanhei Marino à casinha dela, de paredes de alumínio, Papai Noel de plástico iluminado no gramado dianteiro e luzes nos arbustos. Mal Marino tocou a campainha, abriu-se a porta da ente e a sra. Clary nos convidou a entrar sem saber quem éramos. Calculei que provavelmente vira da janela nossa chegada. Ela nos conduziu até uma sala de visitas sombria onde o marido se enroscava junto da lareira elétrica, com um robe de chambre sobre as pernas finas e o olhar vazio fixo num homem que, na televisão, ensaboava-se com um sabonete desodorante. A ação penosa dos anos manifestava-se por toda parte. A forração dos móveis estava gasta e suja nos lugares onde houvera o contato constante de carne humana. A madeira estava embaçada pelas camadas de cera e as gravuras nas paredes amareleciam atrás de vidros poeirentos. O cheiro oleoso de milhões de refeições preparadas na cozinha e comidas em bandejas em frente à TV impregnava o ar. Marino explicou por que estávamos ali, enquanto a sra. Clary andava de um lado para o outro nervosamente, tirando jornais do sofá, desligando a televisão e levando para a cozinha os pratos sujos do jantar. O marido não abandonou seu mundo interior, a cabeça tremendo sobre o pescoço magro. No mal de Parkinson a máquina trepida violentamente pouco antes de parar,
como se soubesse o que está por vir e protestasse como pudesse. “Não, não se incomode”, disse Marino quando a sra. Clary nos ofereceu algo para comer e beber. “Sente-se e procure relaxar. Eu sei que este tem sido um dia duro para a senhora.” “Eles disseram que ela estava no carro respirando aquela fumaça. Ai, meu Deus. Vi como a janela estava enfumaçada, parecia que a garagem estava pegando fogo. Compreendi logo que tinha acontecido o pior.” “Eles quem?”, perguntou Marino. “A polícia. Depois que eu telefonei, fiquei esperando por eles. Quando estacionaram, atravessei logo para ver se Jenny estava bem.” A sra. Clary não conseguia se sentar ereta na cadeira de braços deonte do sofá em que Marino e eu nos acomodáramos. O cabelo grisalho escapara do toucado, o rosto estava enrugado como uma maçã seca, os olhos famintos por informação e brilhantes de medo. “Sei que a senhora já falou com a polícia. Mas gostaria que repetisse tudo bem devagarinho para nós, começando pela última vez em que viu Jennifer Deighton”, disse Marino, puxando o cinzeiro. “Eu a vi no outro dia…” Marino interrompeu. “Que dia?” “Sexta-feira. Lembro que o telefone tocou e fui à cozinha atender e a vi pela janela. Estava chegando.” “Ela sempre parava o carro na garagem?”, perguntei. “Parava.” “E ontem? A senhora a viu, ou ao menos o carro?”, indagou Marino. “Não, não vi. Mas saí para apanhar a correspondência. Já era tarde, nessa época do ano costuma ser assim. Três, quatro horas, e o correio ainda não tinha passado. Acho que eram umas cinco e meia, talvez um pouco mais tarde, quando me lembrei de olhar a caixa de novo. Já estava ficando escuro e reparei na fumaça saindo da chaminé da Jenny.” “Tem certeza?”, perguntou Marino. Ela acenou com a cabeça. “Claro. Lembro que pensei logo que estava uma noite boa para acender a lareira. Mas a lareira sempre foi tarefa do Jimmy. Ele nunca me ensinou, entende? Quando ele servia para alguma coisa, ele é que fazia. Aí desisti das lareiras e mandei instalar essa, elétrica.” Jimmy Clary estava olhando para ela. Eu gostaria de saber se ele entendia o que ela estava dizendo. “Gosto de cozinhar. Nessa época do ano uso muito o forno. Faço bolos e dou para os vizinhos. Ontem queria levar um para a Jenny, mas gosto de telefonar primeiro. É difícil a gente saber se a pessoa está em casa, principalmente quando o carro costuma ficar na garagem. E você deixa um bolo na porta e os cachorros comem. Então tentei falar com ela, mas caí na secretária eletrônica. Tentei o dia inteiro e ela não respondeu e, para dizer a
verdade, eu estava um pouco preocupada”, prosseguiu ela. “Por quê? Jenny tinha problemas de saúde, algum tipo de problema de que a senhora soubesse?”, perguntei. “Colesterol. Mais de duzentos; foi o que ela me disse uma vez. Além da pressão alta, que ela disse ser de família.” Eu não vira nenhuma receita médica na casa de Jennifer Deighton. “A senhora sabe quem era o médico dela?”, perguntei. “Não me lembro. Mas a Jenny acreditava nas curas naturais. Disse para mim que, quando se sentia mal, meditava.” “Parece que vocês eram bem chegadas”, disse Marino. A sra. Clary estava dando puxões na blusa, as mãos como as de uma criança hiperativa. “Passo o dia inteiro aqui, só saio quando vou ao mercado.” Espiou o marido, que voltara a contemplar a televisão. “Às vezes eu ia visitá-la, entende, só como vizinha, por exemplo para levar alguma coisa que eu tivesse cozinhado.” “Ela era simpática? Recebia muitas visitas?”, perguntou Marino. “Ela trabalhava em casa, entende? Acho que a maior parte do negócio dela era pelo telefone. Mas às vezes eu via gente entrando lá.” “Pessoas que a senhora conhecia?” “Não que me lembre.” “A senhora reparou em alguém entrando na casa dela ontem à noite?”, perguntou Marino. “Não reparei.” “E quando a senhora foi apanhar a correspondência e viu a fumaça saindo da chaminé? A senhora teve a impressão de que havia gente lá?” “Não vi nenhum carro. Nada que me fizesse pensar que havia alguém lá.” Jimmy Clary caíra no sono. Estava babando. “A senhora disse que ela trabalhava em casa. A senhora tem alguma ideia do que fazia?”, perguntei. A sra. Clary fixou em mim um par de olhos arregalados. Inclinou-se e baixou a voz: “Sei o que o pessoal dizia”. “E o que era?”, perguntei. Ela apertou os lábios e balançou a cabeça. “Senhora Clary, tudo o que a senhora puder nos dizer pode ajudar. Sei que a senhora quer ajudar”, disse Marino. “Há uma igreja metodista a duas quadras daqui. O senhor pode ver. O campanário fica aceso de noite, sempre ficou, desde que construíram a igreja, três ou quatro anos atrás.” “Vi a igreja quando vinha dirigindo para cá. O que isso tem a ver…” “Bom”, interrompeu ela, “Jenny se mudou para cá, acho que foi no começo de setembro. E eu nunca entendi. A luz do campanário. A gente vê quando vem para casa. Claro…” Parou, com uma expressão desapontada. “Talvez não
faça mais.” “O quê?”, perguntou Marino. “Apagar e acender de novo. A coisa mais esquisita que eu já vi. Fica acesa um minuto e aí você olha pela janela e está tudo escuro como se a igreja não estivesse lá. Aí olha outra vez e o campanário está aceso como sempre. Eu cronometrei. Um minuto aceso, dois apagado, três minutos aceso de novo. Às vezes fica aceso uma hora. Não tem regra.” “O que isso tem a ver com Jennifer Deighton?”, perguntei. “Lembro que não fazia muito tempo que ela se mudara, foi umas poucas semanas antes do derrame do Jimmy. Era uma noite ia e ele estava acendendo a lareira. Eu estava na cozinha lavando os pratos e pela janela via o campanário, iluminado como sempre. Ele veio apanhar uma bebida e eu disse: ‘Sabe o que a Bíblia diz sobre se embriagar com o Espírito e não com vinho?’. E ele disse: ‘Não estou bebendo vinho. Estou bebendo bourbon. A Bíblia nunca disse nada sobre bourbon’. E aí, enquanto ele estava ali, o campanário apagou. Foi como se a igreja sumisse no ar. Eu disse: ‘Está vendo? A palavra do Senhor. Essa é a opinião dele sobre você e seu bourbon’. Ele riu como se eu fosse doida, mas nunca mais bebeu uma gota. Toda noite ele ficava em frente à janela da pia, olhando. Num minuto o campanário acendia e no outro apagava. Deixei o Jimmy acreditar que era Deus — qualquer coisa para fazer ele deixar a bebida. A igreja nunca fizera aquilo antes de Jennifer Deighton se mudar para o outro lado da rua.” “Ultimamente a luz tem acendido e apagado?”, perguntei. “Ontem de noite ainda piscou. Agora não sei. Para dizer a verdade, não olhei.” “O que a senhora está dizendo é que de algum jeito Jenny tinha um efeito sobre as luzes do campanário da igreja”, disse Marino com delicadeza. “O que estou dizendo é que mais de uma pessoa nesta rua já formou uma opinião a respeito dela faz tempo.” “Que opinião?” “De que ela era bruxa”, disse a sra. Clary. O marido começara a roncar, fazendo medonhos ruídos estrangulados que sua mulher parecia não perceber. “Parece que seu marido começou a ficar doente mais ou menos na época em que a senhorita Deighton se mudou para cá e as luzes começaram a ficar estranhas”, disse Marino. Ela pareceu perturbada. “É verdade. Ele teve o primeiro derrame no fim de setembro.” “A senhora alguma vez pensou que podia haver uma ligação? Que talvez Jennifer Deighton tivesse alguma coisa a ver com isso, como a senhora pensa que tinha a ver com as luzes da igreja?” “Jimmy não gostava dela.” A sra. Clary falava cada vez mais rápido.
“A senhora está dizendo que os dois não se davam bem”, disse Marino. “Logo que ela se mudou, veio aqui umas duas vezes pedir a ele que a ajudasse com umas coisas da casa, serviço de homem. Lembro de uma vez que a campainha da porta da casa dela estava fazendo um zumbido terrível dentro de casa e ela apareceu na entrada com medo de haver um curto-circuito e a casa pegar fogo. Aí o Jimmy foi até lá. Acho também que uma vez a máquina de lavar louça transbordou, isso naquele tempo. O Jimmy foi sempre muito jeitoso.” Olhou furtivamente para o marido, que roncava. “A senhora ainda não disse por que ele não se dava bem com ela”, insistiu Marino. “Ele disse que não gostava de ir lá. Não gostava do interior da casa, com todos aqueles cristais por todo lado. E o telefone tocava o tempo todo. Mas ele ficou realmente danado foi quando ela disse a ele que lia a sorte das pessoas e que faria isso de graça para ele se ele continuasse consertando as coisas na casa dela. Ele disse — lembro como se fosse hoje — ‘Não, muito obrigado, senhorita Deighton. A Myra se ocupa de meu futuro e planeja cada minuto dele’.” “Será que a senhora sabe de alguém que tenha tido um grande problema com Jennifer Deighton, a ponto de desejar que acontecesse alguma coisa ruim com ela, desejar de certo modo atingi-la?”, perguntou Marino. “O senhor acha que alguém a matou?” “No momento há muita coisa que a gente não sabe. Temos de examinar todas as possibilidades.” Ela cruzou os braços sob os seios caídos, pensativa. “E o estado emocional dela? A senhora alguma vez achou que ela estava deprimida? Sabe se ela tinha problemas que não pudesse enentar, especialmente nos últimos tempos?”, perguntei. “Eu não a conhecia assim tão bem.” Evitou meus olhos. “A senhora sabe se ela ia a algum médico?” “Não sei.” “E parentes? Tinha família?” “Não faço ideia.” “E o telefone? Atendia quando estava em casa ou deixava sempre a secretária eletrônica atender?”, perguntei afinal. “Pelo que sei, quando estava em casa, ela atendia.” “Por isso é que a senhora ficou preocupada hoje cedo quando a senhora ligava e ela não atendia”, disse Marino. “Exatamente.” Tarde demais, Myra Clary deu-se conta do que dissera. “Interessante”, comentou Marino. O rubor subiu-lhe pelo pescoço, e as mãos dela se detiveram.
Marino perguntou: “Como a senhora sabia que ela estava em casa hoje?”. Ela não respondeu. A respiração do marido foi interrompida por um estertor em seu peito e ele tossiu, pestanejou e abriu os olhos. “Acho que deduzi. Porque não a vi sair. No carro…” A voz da sra. Clary se arrastava. “Quem sabe a senhora não foi lá de manhã cedo?”, sugeriu Marino, como se buscasse ajudar. “Para entregar o bolo ou dizer bom-dia, e pensou que o carro estava na garagem.” Ela enxugou umas lágrimas dos olhos. “Estive toda a manhã na cozinha fazendo um bolo e não a vi apanhar o jornal nem sair de carro. Então, no meio da manhã, fui até lá e toquei a campainha. Ela não respondeu. Aí olhei para dentro da garagem.” “Quer dizer que a senhora viu as janelas cheias de fumaça e não pensou que tinha acontecido alguma coisa errada?”, perguntou Marino. “Eu não sabia o que era, o que eu tinha de fazer.” Sua voz subiu várias oitavas. “Senhor, Senhor. Eu devia ter chamado alguém. Talvez ela estivesse…” Marino interveio: “Eu acho que ela já não estava viva, que já não podia estar viva”. Olhou firmemente para mim. “Quando olhou para dentro da garagem, a senhora ouviu o motor funcionando?”, perguntei à sra. Clary. Ela sacudiu a cabeça e assoou o nariz. Marino levantou-se e pôs o bloquinho de volta no bolso. Parecia abatido, como se a covardia e a hipocrisia da sra. Clary o tivessem desapontado profundamente. Àquela altura eu já conhecia bem todos os papéis que ela representava. Com voz trêmula, Myra Clary me disse: “Eu devia ter telefonado antes”. Não respondi. Marino olhava fixamente o carpete. “Não estou me sentindo bem. Tenho de ir me deitar.” Marino pegou um cartão seu e deu a ela. “Se a senhora se lembrar de alguma coisa que pense que eu deva saber, me telefone.” “Sim, senhor. Prometo que telefono”, balbuciou ela. “Você vai fazer a autópsia esta noite?”, quis saber Marino depois de fechar a porta da frente. A neve já chegava à altura dos tornozelos e continuava a cair. “Amanhã de manhã”, respondi, catando as chaves no bolso do casaco. “O que você acha?” “Acho que sua ocupação incomum a expunha ao risco de que aparecessem pessoas erradas. Acho também que aquela existência aparentemente isolada, como a sra. Clary descreveu, e o fato de que ao que parece ela abriu cedo os presentes de Natal, fazem do suicídio uma presunção fácil, mas as meias limpas são um problema importante.”
“Está certo”, disse ele. A casa de Jennifer Deighton estava iluminada e um caminhão-plataforma com correntes nos pneus tinha entrado em marcha à ré pelo caminho da garagem. A neve abafava as vozes dos homens que trabalhavam, e todos os carros da rua estavam inteiramente brancos e com os perfis atenuados. Segui o olhar de Marino para cima do telhado da casa da srta. Deighton. Muitas quadras adiante, a igreja se delineava contra o céu de um cinzento pérola, com o campanário fantasticamente conformado como um chapéu de bruxa. Os arcos da galeria encaravam-nos com olhos enlutados e abertos quando, subitamente, a luz se acendeu. Encheu os espaços e as superfícies pintadas de um ocre luminoso, e a galeria se transformou num rosto sério mas gentil que flutuava na noite. Olhei para a casa dos Clary e vi o movimento das cortinas na janela da cozinha. “Meu Deus, já vou indo.” Marino começou a atravessar a rua. Chamei-o. “Quer que avise o Neils sobre o carro dela?” “Está bem, boa ideia”, gritou ele de volta.
Quando cheguei, minha casa estava iluminada e da cozinha vinha um cheiro bom. A lareira estava acesa e, diante dela, dois pratos tinham sido arrumados na mesinha. Deixando minha maleta médica cair no sofá, olhei em torno e escutei. Um toque aco e rápido de teclas vinha de meu escritório, no outro lado do vestíbulo. “Lucy?”, chamei, descalçando as luvas e desabotoando o casaco. “Estou aqui.” As teclas continuavam a bater. “O que você andou cozinhando?” “O jantar.” Fui até o escritório, onde encontrei minha sobrinha sentada à mesa e contemplando fixamente a tela do computador. Fiquei assombrada quando reparei no sinal de libra. Ela estava no Unix. Fosse como fosse, tinha ligado para o computador do trabalho. “Como você fez isso?”, perguntei. “Eu não lhe disse qual é a ordem de discagem, o nome de usuário, a senha, nada.” “Não precisava. Encontrei o arquivo, que me disse qual era o comando bat. Depois, você tem aqui uns programas com seu nome de usuário e sua senha já codificados para que o computador não os peça. É um bom atalho, mas é perigoso. Seu nome de usuário é Marley e sua senha é ‘miolo’.” “Você é perigosa.” Puxei uma cadeira. “Quem é Marley?” Ela continuou a digitar. “Nós tínhamos lugares marcados na faculdade de medicina. Marley Scates sentou-se a meu lado nos laboratórios durante dois anos. Agora é neurocirurgião por aí.”
“Você era apaixonada por ele?” “Nunca saímos juntos.” “Ele era apaixonado por você?” “Você é muito perguntadeira, Lucy. Não pode sair perguntando qualquer coisa.” “Posso sim. Quem não quiser não responde.” “É desagradável.” “Acho que descobri como entraram em seu diretório, tia Kay. Lembra que eu lhe falei dos usuários que vêm com o programa?” “Lembro.” “Tem um, chamado demo, que tem acesso privilegiado mas não tem senha. Desconfio que isso foi usado e vou mostrar a você o que com certeza aconteceu.” Seus dedos voavam sem pausa sobre o teclado enquanto ela falava. “O que estou fazendo agora é ir até o menu do administrador do sistema para verificar a lista dos usuários. Vamos procurar um determinado usuário. Neste caso um usuário básico. Agora vamos apertar G para ir e BUM! Olhe aí.” Lucy correu o dedo por uma linha na tela. “No dia 16 de dezembro, às cinco e seis da tarde, alguém entrou, a partir de um aparelho chamado tty14. Essa pessoa tinha acesso privilegiado e imagino que tenha sido ela quem entrou em seu diretório. Não sei o que procurou. Mas vinte minutos mais tarde, às cinco e vinte e seis, tentou mandar a mensagem ‘Não consigo encontrar’ para o tty07 e sem querer criou um arquivo. Saiu às cinco e trinta e dois, e a sessão teve, no total, vinte e seis minutos. Aliás, parece que nada foi impresso. Dei uma olhada no rol da impressora, que mostra os arquivos impressos. Não vi nada que me chamasse a atenção.” “Deixe ver se entendi. Alguém quis enviar uma mensagem do tty14 para o tty07”, disse. “Claro. E eu verifiquei. Esses aparelhos são terminais, os dois.” “Como a gente pode saber em que sala estão esses terminais?”, perguntei. “Acho estranho não haver uma lista por aqui. Mas ainda não encontrei. Se tudo o mais falhar, você pode verificar os fios dos terminais. Geralmente têm etiquetas. E se você quer saber minha opinião, não acho que sua analista de programas seja a espiã. Em primeiro lugar, ela sabe seu nome de usuário e sua senha e não precisaria entrar com o demo. Depois, como eu imagino que o computador esteja na sala dela, também imagino que ela use o terminal do sistema.” “Usa sim.” “O nome do terminal do sistema é ttyb.” “Bom.” “Uma outra maneira de descobrir quem fez isso seria entrar na sala de alguém quando o cara não estiver lá mas o terminal estiver funcionando.
Basta você entrar no Unix e digitar ‘Quem sou eu’ que o sistema te responde.” Empurrou a cadeira e se levantou. “Espero que você esteja com fome. Temos peito de galinha e salada de arroz integral com castanha de caju, pimentão e óleo de gergelim. E pão. A churrasqueira está funcionando?” “Já são mais de onze horas e está nevando.” “Não estou dizendo para a gente comer do lado de fora. Só queria grelhar a galinha na churrasqueira.” “Onde você aprendeu a cozinhar?” Estávamos indo para a cozinha. “Não foi com mamãe. Por que você acha que eu era uma baleia? De comer as porcarias que ela comprava. Salgadinhos, reigerantes e pizza com gosto de papelão. Tenho células gordas que vão gritar o resto da minha vida por causa da mamãe. Não vou perdoá-la nunca.” “Nós precisamos conversar sobre o que aconteceu esta tarde, Lucy. Se você não tivesse chegado em casa naquele momento, a polícia ia te procurar.” “Fiz exercícios durante uma hora e meia, depois tomei um banho de chuveiro.” “Você ficou fora quatro horas e meia.” “Tinha de comprar a comida e outras coisas.” “Por que você não respondeu ao telefone do carro?” “Imaginei que fosse alguém querendo falar com você. Além do mais, nunca usei um telefone de carro. Tia Kay, não tenho mais doze anos.” “Eu sei. Mas você não vive aqui e nunca dirigiu aqui antes. Eu estava preocupada.” “Desculpe”, disse ela. Comemos à luz do fogo, ambas sentadas no chão em volta da mesinha. Eu tinha apagado as luzes. Como se celebrassem um momento mágico na vida de minha sobrinha e na minha, as chamas pulavam e as sombras dançavam. “O que você quer de Natal?”, perguntei, pegando meu vinho. “Aulas de tiro”, disse ela.
5
Lucy ficou acordada até tarde trabalhando com o computador, e não a ouvi se mexer quando o despertador me acordou bem cedo, na manhã de segundafeira. Abrindo as cortinas da janela do quarto, olhei para os flocos de neve que giravam em torno das lâmpadas acesas no pátio. A neve estava alta e nada se movia na vizinhança. Depois do café e de uma olhada rápida no jornal, me vesti e já estava quase na porta quando voltei. Embora Lucy já não tivesse doze anos, eu não podia sair sem vê-la. Entrando sorrateiramente no quarto, encontrei-a dormindo de lado num emaranhado de lençóis, com metade do cobertor no chão. Fiquei emocionada ao vê-la usando uma camiseta que tinha pego em uma de minhas gavetas. Nunca outro ser humano havia tido vontade de dormir com uma roupa minha, e arrumei as cobertas com cuidado para não despertá-la. A viagem para o centro foi horrível, e tive inveja dos trabalhadores cujos escritórios tinham sido fechados por causa do mau tempo. Nós, que não tínhamos ganhado aquele feriado inesperado, nos arrastávamos lentamente pela estrada interestadual, derrapando a cada pisada de eio, enquanto espreitávamos pelos para-brisas riscados de neve que os limpadores não conseguiam tirar. Eu me perguntava como ia explicar à Margaret que minha sobrinha adolescente achava que nosso sistema de computador não era seguro. Quem entrara em meu escritório, e por que Jennifer Deighton telefonara várias vezes para meu número e depois desligara? Só cheguei ao trabalho às oito e meia e, quando entrei no necrotério, parei no meio do corredor, intrigada. Uma maca com um corpo coberto por um lençol estava displicentemente encostada perto da porta da geladeira de aço inoxidável. Verificando a etiqueta do artelho, li o nome de Jennifer Deighton e olhei em torno. Não havia ninguém na sala de raio X. Abri a porta da sala de autópsia e encontrei Susan vestida com um macacão e discando um número no telefone. Ela desligou depressa e me cumprimentou com um bom-dia nervoso. “Que bom que você conseguiu chegar”, disse, olhando-a com curiosidade, enquanto desabotoava o casaco. “O Ben me deu uma carona”, disse ela, referindo-se ao administrador, que possuía um jipe com tração nas quatro rodas. “Até agora só chegamos nós três.” “E o Fielding?” “Telefonou há alguns minutos avisando que não estava conseguindo sair da
garagem. Eu disse a ele que até agora só tínhamos um caso mas que, se aparecessem outros, o Ben poderia ir apanhá-lo.” “Você sabia que o corpo está parado aí no corredor?” Ela hesitou, corando. “Eu estava levando-o para a sala de raio X quando o telefone tocou. Desculpe.” “Você já a mediu e pesou?” “Não.” “Vamos fazer isso primeiro.” Antes que eu pudesse fazer outros comentários, ela correu para fora da sala de autópsia. Como o necrotério ficava perto do estacionamento, era equente que secretárias e cientistas que trabalhavam nos laboratórios de cima entrassem no edifício e o deixassem passando pelo necrotério. Os encarregados da manutenção também passavam por ali. Deixar um corpo no meio do corredor era um péssimo procedimento, que podia até prejudicar o processo se a cadeia de acontecimentos fosse questionada em juízo. Susan voltou empurrando a maca e fomos trabalhar, enjoadas devido ao mau cheiro da carne em decomposição. Apanhei luvas e um avental de plástico numa prateleira e prendi vários formulários num quadro. Susan estava silenciosa e tensa. Quando se dirigiu para o painel de operações para ajustar a balança computadorizada, notei que suas mãos tremiam. Talvez ela estivesse sofrendo de alguma náusea matinal. “Tudo bem?”, perguntei. “Estou só um pouco cansada.” “Tem certeza?” “Positivo. Pesa exatamente oitenta e um quilos.” Vesti o uniforme e Susan e eu levamos o corpo para a sala de raio X, do outro lado do corredor, transferindo-o da maca para a mesa. Abri o lençol e coloquei um bloco sob o pescoço para evitar que a cabeça tombasse. O tecido da garganta estava limpo, sem muco ou queimaduras, pois o queixo tinha ficado enfiado no peito enquanto ela estivera dentro do automóvel com o motor funcionando. Não vi nenhuma lesão, escoriação ou unha quebrada que fosse evidente. O nariz não estava aturado. Não havia cortes do lado de dentro dos lábios e ela não havia mordido a língua. Susan tirou os raios X e os enfiou no processador enquanto eu ia para diante do corpo com uma lente. Coletei uma série de fibras esbranquiçadas quase invisíveis que muito provavelmente provinham do lençol ou da colcha, e encontrei outras semelhantes às que havia nas solas das meias. Ela não usava joias e estava nua sob a camisola. Lembrei-me da roupa de cama amarfanhada, dos travesseiros encostados na guarda do leito e do copo de água na mesa. Na noite de sua morte, ela havia posto rolos no cabelo, tinha se despido e a certa altura talvez tivesse lido na cama.
Susan saiu da sala de revelação e encostou-se na parede com as mãos atrás da cintura. “Qual é a história dessa senhora? Era casada?”, perguntou. “Parece que vivia sozinha.” “Trabalhava?” “Tinha um negócio em casa.” Algo chamou minha atenção. “Que negócio?” “Parece que era uma espécie de cartomante.” Havia uma pluma muito pequena e suja, presa ao vestido de Jennifer Deighton na região do quadril esquerdo. Enquanto apanhava um saquinho plástico, tentei recordar se tinha visto plumas pela casa. Talvez o travesseiro fosse recheado com plumas. “Você encontrou alguma prova de que ela lidava com ocultismo?” “Parece que uns vizinhos pensavam que ela era bruxa”, eu disse. “Baseados em quê?” “Tem uma igreja perto da casa. Dizem que as luzes do campanário começaram a acender e a apagar depois que ela se mudou para lá, faz uns meses.” “Você está brincando.” “Eu mesma vi o negócio quando estava saindo do local. O campanário estava escuro. Aí, de repente, se acendeu.” “Estranho.” “Estranho à beça.” “Pode ser que tenha um sistema automático.” “Não é provável. Acender e apagar a luz durante a noite toda não ia economizar eletricidade. Isto é, se é verdade que o negócio continua a noite toda. Eu só vi uma vez.” Susan não disse nada. “Talvez seja um curto-circuito na fiação.” Enquanto continuava a trabalhar, pensava que devia telefonar para a igreja. Eles podiam estar ignorando o problema. “Tinha coisas estranhas dentro da casa dela?” “Cristais. E uns livros esquisitos.” Silêncio. Depois Susan disse: “Gostaria que você tivesse me dito antes”. “Como?” Levantei o olhar. Ela estava contemplando o corpo, perturbada e pálida. “Você tem certeza de que está se sentindo bem?”, perguntei. “Não gosto desses negócios.” “Que negócios?” “É como o negócio da Aids. Deviam me avisar de saída. Principalmente agora.”
“Esta mulher não deve ter Aids nem…” “Devia ter me dito. Antes que eu tocasse nela.” “Susan…” “Na minha escola tinha uma menina que era bruxa.” Interrompi o que estava fazendo. Susan estava rígida, encostada na parede, apertando a barriga com as mãos. “O nome dela era Doreen. Fazia parte de um grupo secreto e no último ano fez um trabalho contra minha irmã gêmea, Judy. A Judy morreu num desastre de automóvel duas semanas antes da formatura.” Eu a contemplava, confusa. “Você sabe como esse negócio de ocultismo me arrepia. Como aquela língua de vaca cheia de agulhas que os tiras trouxeram faz uns meses. Aquela embrulhada numa lista de nomes de gente morta. Foi deixada numa sepultura.” “Foi uma brincadeira. A língua era do mercado, e os nomes não significavam nada, foram copiados dos túmulos do cemitério”, recordei-lhe calmamente. “A gente não deve mexer com coisas satânicas, de brincadeira ou não.” Sua voz tremeu. “Levo o mal tão a sério quanto Deus.” Susan era filha de um pastor e havia muito que abandonara a religião. Nunca a ouvira aludir a Satã ou mencionar Deus, salvo em exclamações. Nunca soubera que fosse minimamente supersticiosa ou suscetível de ser perturbada pelo que quer que fosse. Estava quase chorando. “Vou lhe dizer o que nós vamos fazer”, disse eu, delicadamente. “Como parece que hoje vem pouca gente, se você atender ao telefone lá em cima eu me encarrego de tudo aqui embaixo.” Seus olhos se encheram de lágrimas, e na mesma hora fui para perto dela. “Está tudo bem.” Passei o braço em volta dos seus ombros e saí com ela da sala. “O que há? Você quer que o Ben leve você para casa?”, disse eu gentilmente enquanto ela se encostava em mim, soluçando. Fez que sim, murmurando: “Desculpe, desculpe”. “Você precisa descansar um pouco.” Sentei-a numa cadeira dentro do necrotério e peguei o telefone.
Jennifer Deighton não tinha respirado nenhum monóxido de carbono ou fuligem, porque quando fora posta dentro do carro já não estava respirando. Sua morte com certeza fora um homicídio, e passei a tarde toda deixando recados impacientes para que Marino me telefonasse. Várias vezes tentei ter notícias de Susan, mas seu telefone tocava e ninguém atendia. “Estou preocupada”, disse a Ben Stevens. “Susan não está atendendo ao telefone. Quando você a levou para casa ela mencionou que estava planejando ir a algum lugar?”
“Ela me disse que ia se deitar.” Estava sentado à mesa examinando uma pilha de documentos. Numa estante, o rádio em volume baixo tocava um rock, e Stevens bebia água mineral aromatizada com tangerina. Ele era jovem e vivo e tinha uma aparência bonita de garoto. Trabalhava muito e, segundo me haviam contado, era equentador assíduo de bares típicos de solteiros. Eu tinha certeza de que seu emprego como administrador seria apenas uma fase transitória de sua vida. “Pode ser que ela tenha desligado o telefone para dormir melhor”, disse ele, ligando a calculadora. “Pode ser.” Stevens lançou-se então à atualização de nossas inquietações orçamentárias. No fim da tarde, quando já começava a escurecer, ele ligou para o meu ramal. “Susan telefonou. Disse que não vem amanhã. E estou com John Deighton na outra linha. Irmão de Jennifer Deighton.” Stevens passou a ligação. “Alô. Estão dizendo que a senhora fez a autópsia em minha irmã”, um homem murmurou. “Jennifer Deighton, minha irmã.” “Seu nome, por favor?” “John Deighton. Moro em Colúmbia, na Carolina do Sul.” Levantei os olhos quando Marino apareceu na porta do escritório e fiz sinal para que se sentasse. “Estão dizendo que ela ligou uma mangueira no carro e se matou.” “Quem disse isso?”, perguntei. “E o senhor podia por favor falar mais alto?” Ele hesitou. “Não me lembro do nome, devia ter anotado mas fiquei chocado demais.” O homem não parecia chocado. Sua voz estava tão abafada que quase não dava para ouvir o que ele dizia. “Senhor Deighton, sinto muito, mas o senhor vai ter de solicitar as informações por escrito. Também vou precisar, junto com seu requerimento escrito, de alguma prova de que o senhor é parente.” O homem não respondeu. “Alô? Alô?” A resposta foi o ruído de uma ligação interrompida. “Estranho. Você sabia da existência de um John Deighton, que diz ser irmão de Jennifer Deighton?”, perguntei a Marino. “Era ele? Porra. Estávamos tentando entrar em contato com ele.” “Disse que alguém tinha avisado da morte.” “Você sabe de onde ele estava ligando?” “Devia ser de Colúmbia, na Carolina do Sul. Bateu o telefone.” Marino não parecia interessado.
“Estou vindo do escritório do Vander”, disse ele, referindo-se a Neils Vander, o datiloscopista chefe. “Ele examinou o carro de Jennifer Deighton, os livros que estavam ao lado da cama e um poema que havia dentro de um deles. Mas ainda não recebeu a página em branco que estava em cima da cama dela.” “Já descobriu alguma coisa?” “Conseguiu umas impressões. Se for preciso, vai passar pelo computador. Com certeza, a maioria é mesmo dela. Olhe.” Pôs um pacote de papel em minha escrivaninha. “Divirta-se.” “Acho que você vai querer que essas impressões sejam examinadas com urgência”, respondi, carrancuda. Uma sombra passou pelos olhos de Marino, que massageou as têmporas. “É óbvio que Jennifer Deighton não se suicidou. O nível de monóxido de carbono estava em menos de sete por cento. Ela não tinha fuligem nas vias respiratórias. O tom rosa brilhante da pele foi causado pela exposição ao io, e não por monóxido de carbono”, informei. “Meu Deus”, disse ele. Procurando na papelada à minha ente, entreguei-lhe um diagrama do corpo e depois abri um envelope de onde tirei fotografias Polaroid do pescoço de Jennifer Deighton. “Como você pode ver, não há lesões externamente”, continuei. “E o sangue no banco do carro?” “Acho que foi uma hemorragia post mortem. Ela estava começando a se decompor. Não encontrei escoriações nem contusões, nem ferimentos nas pontas dos dedos. Mas aqui” — mostrei-lhe uma fotografia do pescoço, tirada durante a autópsia — “vemos hemorragias irregulares bilaterais no músculo esternoclidomastóideo. Também tem uma atura no lado direito do hioide. A morte foi causada por asfixia, por pressão no pescoço…” Falando alto, Marino me interrompeu: “Você acha que ela foi estrangulada?”. Mostrei outra fotografia. “Tem também petéquias faciais, pequenas manchas que indicam hemorragia. Isso pode aparecer nos estrangulamentos. O caso é de homicídio, e minha ideia é que mantenhamos o fato longe da imprensa pelo maior tempo possível.” Ele me fitou com olhos injetados. “Não me faltava mais nada. Neste momento tenho oito homicídios sem solução em minha mesa. Henrico não descobre merda nenhuma no caso do Eddie Heath e o pai do garoto me telefona quase todo dia. Isso para não mencionar uma puta batalha sobre entorpecentes na vara de Mosby. Isto é que é Natal. Não me faltava mais nada.” “Também não faltava mais nada para Jennifer Deighton, Marino.” “Vamos embora. O que mais você descobriu?”
“Ela sofria de pressão alta, como sugeriu a senhora Clary, a vizinha.” “Tá”, disse ele, afastando os olhos de mim. “Como você sabe?” “Tinha hipertrofia no ventrículo esquerdo, ou seja, um engrossamento do lado esquerdo do coração.” “Pressão alta faz isso?” “Faz. Com certeza vou encontrar alterações fibrinosas no sistema microvascular renal ou nefrosclerose precoce. Acho que o cérebro também vai mostrar mudanças hipertensivas nas arteríolas cerebrais, mas só posso ter certeza depois de olhar no microscópio.” “Quer dizer que células do cérebro e dos rins morrem quando a gente tem pressão alta?” “É um modo de dizer.” “Mais alguma coisa?” “Nada de importante.” “E o conteúdo gástrico?”, perguntou Marino. “Carne, vegetais, tudo parcialmente digerido.” “Álcool, drogas?” “Álcool, não. O exame de drogas está sendo feito.” “Há sinais de estupro?” “Não há lesões nem outros sinais de agressão sexual. Colhi material para ver se havia esperma mas esses relatórios ainda vão demorar um pouco. Mesmo assim, nunca se pode ter certeza.” O rosto de Marino estava inescrutável. “No que você está pensando?”, perguntei afinal. “Bom, estou pensando como é que esse negócio foi planejado. Alguém teve um trabalho danado para nos fazer acreditar que ela havia se suicidado com a fumaça do escapamento. Mas daí ela morreu antes mesmo que ele a colocasse dentro do carro. Ele aplicou uma gravata, usou força demais e ela morreu. Vai ver ele não sabia que ela não tinha boa saúde e foi assim que a coisa aconteceu.” Comecei a balançar a cabeça. “A pressão alta não tem nada a ver com isso.” “Então explique como ela morreu.” “Vamos dizer que o agressor passou o braço esquerdo pela ente do pescoço dela e usou a mão direita para puxar o pulso esquerdo para a direita.” Fiz a demonstração. “Isso pôs pressão num lado do pescoço e causou a atura da porção coniforme direita, a maior, do osso hioídeo. A pressão interrompeu a parte superior das vias respiratórias e oprimiu as artérias carótidas. Ela ficou hipóxica, sem ar. Às vezes a pressão no pescoço causa bradicardia, que é uma queda no ritmo do coração, e a vítima tem uma arritmia.” “Com a autópsia dá para dizer se o agressor começou dando uma gravata que acabou num estrangulamento? Em outras palavras, se ele estava só tentando dominá-la e usou força demais?”
“Com as conclusões médicas não posso chegar a isso.” “Mas é possível.” “Está no domínio do possível.” “Espere aí, doutora. Vamos sair um minutinho do banco das testemunhas, sim? Tem mais alguém aqui na repartição?”, disse Marino, exasperado. Não havia ninguém, mas eu estava cansada. A maioria do pessoal não viera trabalhar e Susan se comportara de modo estranho. Parecia que Jennifer Deighton, uma estranha, tinha tentado falar comigo pelo telefone, fora assassinada e havia pouco um homem que dizia ser seu irmão batera o telefone na minha cara. Isso para não mencionar o mau humor terrível de Marino. Quando percebi que estava perdendo a serenidade me esforcei para ser mais profissional. “Olhe, ele bem que pode ter dado uma gravata nela para dominá-la e afinal ter aplicado força demais, estrangulando-a por engano. Na verdade, posso até sugerir que tenha simplesmente pensado que ela estava desmaiada e não sabia que estava morta quando a botou no carro”, disse eu. “Então o cara é uma besta.” “Eu não chegaria a essa conclusão se fosse você. Mas, se amanhã de manhã ele acordar e ler no jornal que Jennifer Deighton foi assassinada, vai ter a maior surpresa da vida dele. Vai ficar imaginando o que fez de errado. Daí eu recomendar que mantenhamos isso longe da imprensa.” “Para mim não tem problema. Por sinal, só porque você não conhecia Jennifer Deighton não quer dizer que ela não conhecesse você.” Esperei que ele explicasse. “Estive pensando naqueles telefonemas. Você aparece na televisão, nos jornais. Talvez ela soubesse que havia alguém atrás dela, não soubesse a quem recorrer e tivesse procurado sua ajuda, mas, quando caía na secretária eletrônica, estava paranoica demais para deixar uma mensagem.” “Isso é muito deprimente.” “Quase tudo o que a gente pensa aqui é deprimente.” Levantou-se da cadeira. “Faça-me um favor. Verifique a casa dela. Diga se encontrar algum travesseiro de plumas, casacos acolchoados, espanadores, tudo o que se relacione com plumas.” “Por quê?” “Encontrei uma peninha na camisola dela.” “Está bem. Qualquer coisa eu digo. Você está de saída?” Olhei para um ponto atrás dele, pois ouvira as portas do elevador se abrirem e se fecharem. “Era o Stevens?”, perguntei. “Era.” “Ainda tenho de fazer umas coisas antes de ir para casa”, disse.
Depois que Marino tomou o elevador, fui até uma janela no fundo do corredor que dava para o estacionamento dos fundos. Queria certificar-me de que o jipe de Stevens já não estava ali. Não estava, e vi quando Marino saiu do edifício, caminhando com cuidado sobre a neve pisada que as luzes da rua iluminavam. Com dificuldade, chegou a seu carro e, antes de entrar, sacudiu violentamente a neve dos sapatos, como um gato que tivesse pisado na água. Que nada violasse o ar puro e a couraça sagrada de seu santuário. Pergunteime se ele teria planos para o Natal e lamentei não tê-lo convidado para jantar. Este era o primeiro Natal desde que ele e Doris tinham se divorciado. Ao voltar pelo corredor vazio, entrei em todas as salas por que ia passando, para verificar os terminais de computador. Infelizmente, nenhum estava ligado e o único fio etiquetado com um número era o de Fielding. Não era nem tty07 nem tty14. Frustrada, abri a sala de Margaret e acendi a luz. Como sempre, parecia que por ali passara uma ventania, espalhando os papéis na mesa, derrubando livros na estante e jogando outros no chão. Presos às paredes e aos monitores dos terminais havia montes de impressos em formulários contínuos abertos como acordeões, anotações indeciáveis e números de telefone. O microcomputador zumbia como um inseto eletrônico e na bancada onde estavam os modems, sobre uma prateleira, havia uma dança de luzes. Sentei-me diante do terminal do sistema, abri uma gaveta à direita e comecei a correr os dedos pelas etiquetas dos arquivos. Encontrei vários com títulos promissores, tais como Usuários e Rede, mas nada do que examinei me deu nenhuma informação a respeito do que eu precisava saber. Olhando em volta enquanto pensava, reparei num feixe grosso de fios que subia pela parede e sumia no teto. Cada fio tinha uma etiqueta. Tanto o tty07 como o tty14 estavam diretamente ligados ao computador. Desconectei primeiro o tty07, depois percorri terminal por terminal para ver qual deles tinha sido desligado. O terminal do escritório de Ben Stevens caíra e voltou quando tornei a ligar o fio. Passei então a procurar o tty14 e fiquei perplexa quando me pareceu que o desligamento daquele fio não tivera consequências. Os terminais instalados nas mesas continuavam todos funcionando. Foi quando me lembrei de Susan. Sua sala era no necrotério, embaixo. Abri a porta e, assim que entrei em sua sala, observei duas coisas. Não se via nada de pessoal, como fotografias ou enfeites, e numa estante acima da mesa havia várias obras de referência sobre Unix, SQL e Wordperfect. Eu me lembrava de que, na primavera anterior, Susan se matriculara em vários cursos de computação. Levantei o interruptor para ligar o monitor e fiquei desconcertada quando o sistema respondeu. O terminal ainda estava conectado; não podia ser o tty14. E aí me dei conta de algo tão óbvio que teria rido se não tivesse ficado horrorizada. Subi e parei diante da porta de minha sala, olhando para dentro como se ali
trabalhasse alguém que eu nunca tivesse encontrado. Espalhados em torno do aparelho sobre minha mesa havia relatórios de laboratório, folhas de anotações, atestados de óbito e as provas de um manual de patologia legal que eu estava organizando; o suporte onde o microscópio estava apoiado se encontrava numa situação parecida. Havia três arquivos altos encostados na parede e, do outro lado, um sofá afastado das estantes o suficiente para que se pudesse passar por trás dele para apanhar livros nas prateleiras mais baixas. Atrás de minha cadeira havia uma credência de carvalho que anos antes eu encontrara num depósito de objetos pertencentes ao Estado e que estavam sem uso naquele momento. As gavetas tinham chaves, o que as tornava o lugar ideal para guardar minha agenda e os casos especialmente delicados. Eu guardava as chaves debaixo do telefone e tornei a pensar na quinta-feira anterior, quando Susan quebrara os vidros de formol enquanto eu autopsiava Eddie Heath. Eu não sabia o número de meu terminal, nunca antes isso fora importante. Sentei-me à mesa, puxei a plataforma do teclado e tentei entrar no sistema, mas meus esforços foram em vão. Ao desligar o tty14 eu me desligara. “Droga. Droga!”, murmurei, sentindo o sangue gelar em minhas veias. Eu não mandara nenhuma mensagem ao terminal de minha administradora. Não fora eu que digitara: “Não consigo encontrar”. Com efeito, eu estava no necrotério quando, por acidente, o arquivo fora criado na última quinta-feira. Susan, porém, não estava. Eu lhe dera as chaves e lhe dissera que se deitasse no sofá de minha sala até recuperar-se do derramamento de formol. Seria possível que ela tivesse não só entrado em meu diretório como também revistado pastas e papéis em minha mesa? Que tivesse mandado uma mensagem para Ben Stevens dizendo que não conseguira encontrar o dado em que estavam interessados? De repente, um dos analistas de provas do andar de cima apareceu na porta, assustando-me. “Oi”, murmurou ele, examinando uma papelada e com o guarda-pó abotoado até o queixo. Entrou e me entregou um relatório de várias páginas. “Eu ia deixar isso no seu escaninho, mas como você ainda está aqui vou dar pessoalmente. Já examinei o resíduo adesivo dos pulsos de Eddie Heath.” “Era material de construção?”, perguntei, correndo os olhos pela primeira página do relatório. “Isso mesmo. Tinta, gesso, madeira, cimento, asbesto, vidro. Geralmente encontramos esse tipo de resíduo em casos de arrombamento, muitas vezes na roupa do suspeito, nos punhos, bolsos, sapatos, e assim por diante.” “E a roupa de Eddie Heath?” “Havia desses resíduos na roupa também.” “E as tintas? Como eram?” “Encontrei restos de tinta de cinco origens diferentes. Três têm mais de
uma camada, mostrando que alguma coisa foi pintada e repintada mais de uma vez.” “São de carro ou de casa?”, perguntei. “Só uma é de carro, uma laca acrílica usada no teto dos automóveis fabricados pela General Motors.” Pensei que aquilo podia provir do veículo usado para sequestrar Eddie Heath. E de qualquer outro lugar. “E a cor?”, perguntei. “Azul.” “Mais de uma camada?” “Não.” “E os resíduos da região pavimentada onde o corpo foi encontrado? Pedi ao Marino que lhe desse amostras e ele me disse que ia fazer isso.” “Areia, poeira, pedacinhos de material de calçamento e mais os resíduos normais em torno de uma lixeira. Vidro, papel, cinza, pólen, ferrugem, material vegetal.” “Isso é diferente do que você encontrou nos pulsos.” “É. Para mim, parece que a fita foi posta e retirada dos pulsos num lugar onde havia restos de material de construção e pássaros.” “Pássaros?” “Na terceira página do relatório. Encontrei um monte de agmentos de penas.”
Quando cheguei em casa, Lucy estava inquieta e meio de mau humor. Era óbvio que ela não tivera muito com que se ocupar durante o dia, porque assumira a tarefa de reorganizar meu escritório. A impressora a laser, o modem e todas as obras de referência de informática tinham sido mudados de lugar. “Por que você fez isso?”, perguntei. Ela estava sentada em minha cadeira, de costas para mim, e respondeu sem se virar ou esmorecer a ação dos dedos no teclado. “Assim fica mais lógico.” “Lucy, você não pode entrar no escritório de outra pessoa e mudar tudo de lugar. Como se sentiria se eu fizesse isso com você?” “Não ia haver motivo para mudar minhas coisas de lugar. Tudo está arrumado de maneira muito racional.” Parou de digitar e voltou-se. “Está vendo, agora você pode alcançar a impressora sem se levantar da cadeira. Os livros estão fáceis de alcançar e o modem não fica no seu caminho. Você não deve pôr livros, xícaras de café e outros troços em cima de um modem.” “Você passou o dia inteiro aqui?”, perguntei. “Onde mais eu poderia estar? Você levou o carro. Fui correr pelo bairro. Você já tentou correr na neve?” Puxei uma cadeira, abri minha pasta e tirei o pacote de papel que Marino
tinha me dado. “Quer dizer que você acha que precisa de um carro?” “Me sinto presa.” “Aonde você gostaria de ir?” “Ao seu clube. Não sei a que outro lugar. Simplesmente gostaria de ter a opção. O que é que tem nesse pacote?” “Livros e um poema que o Marino me deu.” “Desde quando ele é intelectual?” Levantou-se e espreguiçou-se. “Vou fazer um chá. Você quer?” “Café, por favor.” “Café faz mal”, disse ela, saindo da sala. “Ah, droga”, murmurei com irritação enquanto tirava os livros e o poema do pacote. Um pó vermelho fluorescente se espalhou por minhas mãos e por minha roupa. Como sempre, Neils Vander fizera seu exame exaustivo e eu esquecera sua paixão por seu brinquedo novo. Muitos meses antes ele comprara uma nova fonte luminosa e jogara fora o laser. A Luma-Lite, com sua “lâmpada-de-arcometálico-de-vapor-azul-de-alta-intensidade-de-trezentos-e-cinquenta-wattsaperfeiçoada-por-tecnologia-de-ponta”, como Vander apaixonadamente a descrevia sempre que o assunto vinha à baila, coloria de um laranja flamejante cabelos e fibras praticamente invisíveis. Manchas de esperma e resíduos de drogas colhidos na rua saltavam como labaredas solares, e o melhor de tudo era que a luz podia localizar impressões digitais que no passado nunca seriam vistas. Vander percorrera integralmente os romances de Jennifer Deighton. Eles haviam sido postos no tanque de vidro e expostos aos vapores de Super Glue, o éster de cianoacrilato que reage aos componentes da transpiração emanada da pele humana. Depois Vander polvilhara as capas gastas dos livros com o pó fluorescente que agora me cobria. Finalmente, submetera os livros ao escrutínio io e azul da Luma-Lite e arroxeara as páginas com Ninhydrin. Eu esperava que seus esforços fossem recompensados. Minha recompensa foi ir ao banheiro e limpar-me com um pano úmido. O exame de Paris Trout fora inutífero. O romance contava a história do assassinato cruel de uma moça negra e, se isso era relevante para o caso de Jennifer Deighton, eu não podia imaginar por quê. Seth fala era uma narrativa fantasmagórica supostamente transmitida ao autor por alguém do outro mundo. Na verdade não me espantou que a srta. Deighton, com suas inclinações para o além, pudesse ler aquilo. O que mais me interessou foi o poema. Estava datilografado numa folha de papel branco borrifada de roxo pelo Ninhydrin e protegida por um invólucro de plástico: JENNY Os beijos de Jenny, muitos,
esquentaram a moeda de cobre unida a seu pescoço pelo cordel de algodão. Fora na primavera que ele o encontrara no caminho empoeirado atrás daquele prado e o dera a ela. Palavras de paixão não foram ditas. Amava-a com um penhor. Está queimado agora o prado e as sarças o vão cobrindo. Ele partiu. Dorme a moeda fria lá no fundo da fonte do bosque. Não havia data, nem nome do autor. Por ter sido dobrado em quatro, o papel estava marcado. Levantei-me e fui até a sala de visitas, onde Lucy pusera o café e o chá sobre a mesa e atiçava o fogo. “Você não está com fome?”, perguntou. “Para falar a verdade, estou sim”, respondi, lendo de novo o poema e perguntando-me o que ele significava. Jenny era Jennifer Deighton? “O que você gostaria de comer?” “Você não vai acreditar, eu queria um bife. Mas só se for bom e se as vacas não tiverem sido alimentadas com um monte de produtos químicos. Será que esta semana você pode trazer um carro do trabalho para eu usar?” “Quando não estou em serviço costumo não trazer o carro oficial para casa.” “Ontem à noite você foi fazer uma diligência e não estava em serviço? Você está sempre em serviço, tia Kay.” “Está bem. Por que não fazemos o seguinte: vamos comer o melhor bife da cidade. Aí, passamos no meu trabalho, eu venho com a caminhonete para casa e você pode ficar com o meu carro. Ainda tem um pouco de gelo nas ruas. Você tem de prometer que vai ser supercuidadosa.” “Nunca estive em seu trabalho.” “Se quiser eu lhe mostro.” “De jeito nenhum. De noite não.” “Os mortos são inofensivos.” “Nada disso. Papai me prejudicou quando morreu. Deixou-me para mamãe
me criar.” “Vamos pegar os casacos.” “Por que toda vez que falo de um assunto ligado a nossa família problemática você muda de assunto?” Caminhei em direção a meu quarto para apanhar o casaco. “Quer minha jaqueta de couro preto?” “Está vendo, você sempre faz isso”, gritou ela. Discutimos durante todo o trajeto até a churrascaria, e quando estacionei o carro estava com dor de cabeça e completamente desapontada comigo mesma. Lucy me fizera alterar a voz, e minha mãe era a única pessoa que normalmente conseguia isso. “Por que você é tão complicada?”, disse no ouvido dela enquanto éramos conduzidas até uma mesa. “Quero falar com você e você não deixa”, disse ela. Imediatamente apareceu um garçom para anotar o pedido das bebidas. “Uísque e soda”, disse eu. “Água mineral com limão”, pediu Lucy. “Você não devia beber e dirigir.” “Só vou tomar um drinque. Mas você tem razão. Seria melhor eu não tomar nenhum. E lá vem você com as críticas outra vez. Como quer ter amigos se fala assim com os outros?” “Não quero ter amigos.” Desviou o olhar. “Os outros é que querem que eu tenha amigos. Talvez eu não queira amigo nenhum porque acho quase todo mundo chato.” O desespero oprimiu meu coração. “Lucy, acho que você é a pessoa que eu conheço que mais quer ter amigos.” “Sei que você acha isso. E com certeza acha que daqui a uns dois anos eu devia me casar.” “Não acho, não. Na verdade, espero sinceramente que não.” “Hoje quando eu estava passeando por seu computador vi o arquivo chamado Carne. Por que você tem um arquivo com esse nome?”, perguntou minha sobrinha. “Por que estou trabalhando num caso muito difícil.” “O garoto chamado Eddie Heath? Vi os dados dele no arquivo de casos. Foi encontrado sem roupa, perto de um contêiner. Alguém tinha cortado pedaços da pele dele.” “Lucy, você não devia ler os relatórios dos casos”, eu ia dizendo, quando meu bip tocou. Soltei-o do cós da saia e verifiquei o número. “Com licença um minuto”, falei, levantando-me da mesa no momento em que as bebidas chegavam. Encontrei um telefone público. Eram quase oito horas da noite. “Preciso falar com você. Talvez queira vir até aqui e trazer os cartões com as dez impressões digitais do Ronnie Waddell”, disse Neils Vander, que ainda
estava no trabalho. “Por quê?” “Tem aqui um problema sem precedentes. Também vou chamar o Marino.” “Está bem. Diga para ele me encontrar no necrotério em meia hora.” Quando voltei à mesa, Lucy intuiu pela expressão em meu rosto que eu ia estragar outra noite. “Desculpe”, disse. “Aonde vamos?” “Até meu trabalho e depois ao edifício Seaboard.” Puxei a carteira. “O que há no edifício Seaboard?” “É para onde se mudaram, não muito tempo atrás, os laboratórios de serologia, DNA e datiloscopia. Marino vai se encontrar com a gente lá. Faz muito tempo que você não o vê.” “Babacas como ele não mudam nem melhoram com o tempo.” “Lucy, você está sendo indelicada. O Marino não é babaca.” “Da última vez que estive aqui, era.” “Você também não foi simpática com ele.” “Eu não o chamei de pirralho metido a besta.” “Mas, se bem me lembro, chamou de uma porção de outras coisas e ficou o tempo todo corrigindo as palavras dele.” Meia hora mais tarde deixei Lucy no escritório do necrotério e corri escada acima. Abri a credência, encontrei a pasta de Waddell e, assim que tomei o elevador, a campainha da porta tocou. Marino estava de jeans e jaqueta azulescura, e um boné de beisebol dos Richmond Braves esquentava sua calvície incipiente. “Vocês se lembram um do outro, não lembram? Lucy está passando o Natal comigo e me ajudando com um problema no computador”, expliquei enquanto saíamos para o frio ar noturno. O edifício Seaboard ficava em ente ao estacionamento situado atrás do necrotério, na esquina do outro lado da delegacia da rua Principal, onde os escritórios administrativos do Departamento de Saúde tinham sido instalados enquanto sua sede anterior passava por uma reforma. O relógio da delegacia flutuava bem alto sobre nós como a lua no campo, e as luzes vermelhas no alto dos edifícios piscavam lentamente para advertir os aviões em voo baixo. No meio da escuridão um trem se arrastava nos trilhos, fazendo a terra roncar e estalar como um navio no oceano. Marino andava à nossa ente e a ponta de seu cigarro de vez em quando brilhava. Ele não queria que Lucy estivesse ali, e eu sabia que ela percebia isso. Quando chegamos ao edifício Seaboard, onde no tempo da Guerra Civil carregavam-se as carroças com suprimentos, toquei a campainha. Vander apareceu quase imediatamente para nos receber. Ele não cumprimentou Marino nem perguntou quem era Lucy. Se uma
criatura do espaço sideral acompanhasse alguém em quem ele confiasse, Vander nada perguntaria, nem esperaria ser apresentado. Fomos atrás dele escada acima até o segundo andar, onde os velhos corredores e salas haviam sido pintados em tons de cinza militar e mobiliados com mesas e estantes revestidas de cerejeira e cadeiras forradas em tecido azul-esverdeado. “Em que você está trabalhando tão tarde?”, perguntei enquanto entrávamos na sala onde ficava o Sistema de Identificação Datiloscópica Automática, conhecido como Sida. “No caso de Jennifer Deighton”, disse ele. “Então para que servem os cartões com as dez impressões digitais do Waddell?”, perguntei, perplexa. “Quero ter certeza de que foi Waddell que você autopsiou na semana passada”, disse Vander, seco. “Que negócio é esse?”, Marino olhou atônito. “Já vou mostrar.” Vander sentou-se diante do terminal de alimentação remota que parecia um PC comum. O terminal estava ligado por modem ao computador da polícia estadual, onde havia uma central de dados com mais de seis milhões de impressões digitais. Vander apertou diversas teclas e ligou a impressora a laser. “Registros perfeitos são poucos e raros, mas este aqui é.” Começou a digitar e uma impressão digital branca e brilhante apareceu no monitor. “Indicador direito, curva simples.” Mostrou o redemoinho de linhas na superfície de vidro. “Uma impressão parcial para lá de boa, recolhida na casa de Jennifer Deighton.” “Em que lugar da casa?”, perguntei. “Em uma cadeira da sala de jantar. Primeiro achei que devia haver algum engano. Mas pelo jeito não.” Vander continuava contemplando a tela e tornou a digitar enquanto falava. “A impressão digital é de Ronnie Joe Waddell.” “Impossível”, eu disse, chocada. “Você acha?”, falou Vander, distraído. “Na casa de Jennifer Deighton você encontrou alguma coisa que pudesse indicar que ela e Waddell se conheciam?”, perguntei a Marino enquanto abria a pasta do caso Waddell. “Não.” “Se você tem as impressões do Waddell tiradas no necrotério, vamos compará-las com os dados do Sida”, disse Vander. Apanhei dois invólucros de papel pardo e imediatamente estranhei que ambos fossem pesados e espessos. Senti meu rosto corar quando os abri e dentro só encontrei as fotografias que estava esperando e nada mais. Não havia envelope com as impressões digitais de Waddell. Quando levantei os olhos, todo mundo estava olhando para mim.
“Não estou entendendo”, disse, consciente do olhar sem graça de Lucy. “Você não tem as impressões?”, perguntou Marino, incrédulo. Procurei de novo na pasta. “Não estão aqui.” “Geralmente é Susan que colhe, não é?” “É. Sempre. Ela teria que fazer dois jogos, um para o Departamento de Execuções Penais, outro para nós. Pode ser que ela tenha entregado ao Fielding e ele tenha se esquecido de dar para mim.” Apanhei meu livro de endereços e peguei o telefone. Fielding estava em casa e nada sabia sobre as fichas de impressões digitais. “Não, não reparei se ela tirou as impressões dele, mas não reparo em metade das coisas que outras pessoas fazem lá. Imaginei que ela tivesse lhe dado as fichas.” Enquanto ligava para Susan, eu procurava lembrar se a vira apanhar as fichas datiloscópicas e apertar os dedos de Waddell na almofada de tinta. “Você se lembra da Susan tirando as impressões do Waddell?”, perguntei a Marino enquanto o telefone de Susan continuava chamando. “Enquanto estive lá ela não tirou. Se tivesse tirado, eu teria me oferecido para ajudar.” “Não responde.” Desliguei. “Waddell foi cremado”, disse Vander. “Foi”, confirmei. Ficamos um momento em silêncio. Depois, com rudeza desnecessária, Marino disse a Lucy: “Você dá licença? Precisamos conversar um minuto a sós”. “Espere em minha sala. No corredor, é a última à direita”, ofereceu Vander. Depois que ela saiu, Marino disse: “Supostamente, Waddell passou dez anos preso, e a impressão digital recolhida na cadeira de Jennifer Deighton não pode ter sido deixada lá há dez anos, de jeito nenhum. Aliás, ela só se mudou para a casa de Southside há poucos meses, e a mobília da sala de jantar parece novíssima. Ainda por cima há marcas no carpete da sala de visitas mostrando que uma das cadeiras da sala de jantar foi levada para lá, provavelmente na noite em que ela morreu. Foi por isso que, para começo de conversa, eu quis colher impressões nas cadeiras”. “Uma possibilidade sinistra. Assim sendo, não podemos provar que o homem executado na semana passada era Ronnie Joe Waddell”, disse Vander. “Talvez haja outra explicação para o fato de a impressão digital do Waddell aparecer numa cadeira da casa de Jennifer Deighton. Por exemplo, talvez a penitenciária tivesse uma oficina de marcenaria que fabricasse móveis”, cogitei. “Muito pouco provável. Em primeiro lugar, não fazem trabalho com madeira nem placas de automóveis no corredor da morte. E, mesmo que fizessem, a maioria dos civis não costuma mobiliar sua casa com peças feitas
na prisão”, disse Marino. “Assim mesmo, seria interessante se você pudesse averiguar de quem, e quando, ela comprou a mobília da sala de jantar”, disse Vander a Marino. “Não se preocupe. Primeira prioridade.” “O arquivo do FBI deve ter toda a ficha corrida do Waddell, inclusive as digitais. Vou conseguir uma cópia da ficha com as digitais e a fotografia da impressão digital do polegar nos registros do caso Robyn Naismith. Onde mais o Waddell esteve preso?” “Em nenhum outro lugar. A única jurisdição que deve ter o prontuário dele é Richmond”, disse Marino. “E essa digital encontrada numa cadeira da sala de jantar é a única que você identificou?”, perguntei a Vander. “Claro, muitas das digitais que colhemos são de Jennifer Deighton. Principalmente a dos livros perto da cama e da folha dobrada — a do poema. Tenho ainda algumas impressões parciais desconhecidas, deixadas no carro dela, como seria de se esperar, por qualquer pessoa que tenha posto suas compras no porta-malas ou enchido o tanque de gasolina. Por enquanto é só.” “E com Eddie Heath, você teve mais sorte?”, indaguei. “Não havia muita coisa que examinar. O saco de papel, a lata de sopa, o chocolate. Usei a Luma-Lite nos sapatos e na roupa dele. Não descobri nada.” Algum tempo depois ele nos conduziu até a porta, passando por um aposento com congeladores trancados em que amostras do sangue de uma quantidade de condenados suficiente para povoar uma cidade pequena esperavam admissão no banco estadual de dados de DNA. O automóvel de Jennifer Deighton estava estacionado diante da porta e parecia mais patético do que a lembrança que eu tinha dele, como se tivesse soido um declínio acentuado desde o assassinato de sua dona. Por ter sido repetidas vezes atingido pelas portas de outros carros, o metal das partes laterais estava riscado e amassado. A pintura estava enferrujando em alguns pontos e empolada ou arranhada em outros, e o teto de plástico estava descascando. Lucy parou para espiar por uma janela preta de fuligem. “Ei, não mexa em nada”, disse-lhe Marino. Ela olhou para ele sem dizer nada e saímos todos.
Dirigindo meu carro, sem esperar por Marino ou por mim, Lucy foi diretamente para casa. Quando entramos, ela já estava em meu escritório, de porta fechada. “Estou vendo que ela ainda é miss Cordialidade”, disse Marino. “Você também não ganhou muitos prêmios esta noite.” Abri o para-fogo da lareira e acrescentei várias toras de lenha. “Será que ela vai ser discreta a respeito de nossa conversa?” “Vai. Claro”, respondi, desanimada.
“Tá bom, sei que você confia nela porque é tia dela. Mas, doutora, não acho que tenha sido boa ideia deixá-la ouvir aquilo tudo.” “Confio em Lucy. Ela é muito importante para mim. Você também é muito importante para mim. Espero que vocês dois acabem amigos. O bar está aberto, e também teria muito prazer em preparar um café.” “Café é uma boa ideia.” Sentou-se na borda da lareira e sacou seu canivete suíço. Enquanto eu preparava o café, cortou as unhas e jogou as aparas no fogo. Disquei novamente o número de Susan, mas ninguém atendeu. Quando pousei na mesinha a bandeja com o café, Marino disse: “Não acho que Susan tenha colhido as digitais. Fiquei pensando, enquanto você estava na cozinha. Sei que enquanto eu estava no necrotério, naquela noite, ela não tirou, e fiquei lá quase o tempo todo. Quer dizer, ou ela tirou assim que o corpo chegou, ou não tirou mesmo”. Cada vez mais irritada, eu disse: “Então não tirou. O pessoal do Departamento de Execuções Penais saiu correndo. Estava a maior confusão. Era tarde e todo mundo estava cansado. Susan esqueceu e eu, muito ocupada com o que estava fazendo, não reparei”. “Você espera que ela tenha esquecido.” Peguei meu café. “Pelo que você tem me contado, está acontecendo alguma coisa com ela. Eu não confiaria nem um pouco nela”, disse ele. Naquele momento, eu também não confiava. “Precisamos falar com o Benton”, lembrou. “Você viu o Waddell na mesa, Marino. Viu quando ele foi executado. Não consigo acreditar que não possamos ter certeza de que era ele.” “Não podemos, não. Poderíamos comparar fotos três por quatro dele com as fotografias do necrotério e ainda assim não poderíamos ter certeza. Eu não o via desde que ele foi em cana, há mais de dez anos. O cara que eles levaram para a cadeira elétrica era mais ou menos trinta e cinco quilos mais gordo. A barba, o bigode e a cabeça tinham sido raspados. Claro, havia uma certa semelhança, de modo que eu imaginei que fosse ele. Mas não posso jurar.” Lembrei de Lucy desembarcando do avião, na outra noite. Ela era minha sobrinha. Fazia só um ano que eu não a via e mesmo assim quase não a reconheci. Eu sabia muito bem a que ponto as identificações visuais são pouco confiáveis. “Se alguém trocou os presos e se o Waddell está livre e outra pessoa foi morta, me diga por quê”, eu disse. Marino pôs mais açúcar no café. “Pelo amor de Deus, Marino, um motivo, qual?” Ele ergueu os olhos. “Não sei.” Nesse momento a porta do escritório se abriu e nós dois nos viramos para
ver Lucy sair. Ela entrou na sala de visitas e sentou-se perto da lareira, ao lado de Marino, que estava sentado de costas para o fogo e apoiava os cotovelos nos joelhos. “O que você pode me dizer sobre o Sida?”, ela me perguntou, como se Marino não estivesse na sala. “O que você quer saber?” “A linguagem. E se está num computador central.” “Não conheço os pormenores técnicos. Por quê?” “Posso descobrir se algum arquivo foi alterado.” Senti os olhos de Marino fixos em mim. “Lucy, você não pode entrar no computador da polícia estadual.” “Provavelmente poderia, mas não estou propondo isso, necessariamente. É possível que haja outros meios.” Marino olhou para ela. “Você está dizendo que poderia verificar se a folha corrida do Waddell foi alterada no Sida?” “É. Estou dizendo que poderia verificar se a folha corrida foi alterada.” Os músculos do queixo de Marino se crisparam. “Acho que se alguém foi esperto o bastante para fazer isso também terá sido esperto o bastante para garantir que nenhum micreiro maníaco descobrisse.” “Não sou uma micreira maníaca. Não sou nenhuma maníaca.” Calaram-se, um de cada lado da lareira, como dois suportes de livro desemparelhados. “Você não pode entrar no Sida”, eu disse a Lucy. Ela me olhou e não se mexeu. Acrescentei: “Sozinha não. Só se houver um meio seguro de garantir seu acesso. E, mesmo assim, acho que preferia que você ficasse fora disso”. “Na verdade acho que você não prefere, não. Se tiverem mexido em alguma coisa, você sabe que eu descubro, tia Kay.” Marino se levantou da lareira. “A garota tem complexo de Deus.” “Você conseguiria acertar no número 12 do relógio ali na parede? Se puxasse sua arma agora e mirasse?”, perguntou Lucy. “Não estou interessado em dar tiros na casa de sua tia só para provar alguma coisa a você.” “Você conseguiria acertar o 12 do lugar onde você está?” “Claro.” “Garante?” “Garanto, garanto.” Lucy se virou para mim. “O tenente tem complexo de Deus.” Marino voltou-se para o fogo, mas não sem que eu antes percebesse a sombra de um sorriso. Lucy continuou: “Neils Vander só tem um terminal e uma impressora. Está
conectado ao computador da polícia estadual por modem. Foi sempre assim?”. “Não. Antes da mudança para o edifício novo havia muito mais equipamento na jogada”, respondi. “Qual?” “Bom, havia muitos componentes diferentes. Mas o computador mesmo era bem parecido com o que Margaret tem na sala dela.” Lembrando que Lucy não conhecia a sala de Margaret, acrescentei: “Um micro”. A luz das chamas punha sombras móveis em seu rosto. “Aposto que o Sida é um computador central que não é computador central. Aposto que é uma série de micros, ligados entre si por Unix ou algum outro ambiente multiuso e multiusuário. Se você me desse o acesso ao sistema, talvez eu pudesse chegar até lá do seu terminal aqui de casa, tia Kay.” “Não quero que ninguém me rastreie até aqui”, eu disse com ênfase. “Ninguém vai poder rastrear você. Eu disco para o computador do seu trabalho, passo por uma série de cancelas e monto uma rede bem complicada. Quando tudo estiver pronto, vai ser muito difícil seguir minha pista.” Marino foi ao banheiro. “Até parece que ele mora aqui”, disse Lucy. “Não chega a tanto”, respondi. Minutos mais tarde, acompanhei Marino até a porta. A neve endurecida no gramado parecia irradiar luz e o ar açoitava meus pulmões como a primeira baforada de um cigarro mentolado. “Seria ótimo se você viesse passar o Natal comigo e Lucy”, eu disse da porta. Ele vacilou, olhando seu automóvel estacionado na rua. “É muita gentileza sua, mas não vai ser possível, doutora.” “Seria tão bom se você não detestasse tanto a Lucy”, disse, magoada. “Estou cansado de ela me tratar sempre como um caipira de merda.” “Você às vezes se comporta como um caipira de merda. E não tem procurado conquistar o respeito dela.” “Ela é uma fedelha mimada de Miami.” “Quando tinha dez anos, ela era uma fedelha de Miami, mas nunca foi mimada. Na verdade, é o oposto. Quero que vocês dois se deem bem. Como presente de Natal.” “Quem disse que eu ia lhe dar um presente de Natal?” “Claro que vai. Vai me dar o que estou pedindo. E sei muito bem o que vou fazer.” “O quê?”, perguntou ele, desconfiado. “Lucy quer aprender a atirar e você acabou de dizer a ela que consegue acertar no número 12 do relógio. Você podia dar umas aulas a ela.”
“De jeito nenhum.”
6
Os três dias que se seguiram foram típicos do período que antecede o Natal. Ninguém estava em casa, ninguém respondia aos telefonemas que recebia. Havia espaço de sobra nos estacionamentos, os intervalos para almoço se prolongavam e as saídas a serviço incluíam paradas clandestinas em lojas, no banco e no correio. Na prática, o Estado estava fechado desde antes dos feriados oficiais. Neils Vander, porém, não era típico em nada. Ele não estava preocupado com o tempo ou lugar quando me telefonou na véspera do Natal pela manhã. “Estou aqui trabalhando uma imagem na qual acho que você pode se interessar. É o caso de Jennifer Deighton.” “Já estou indo.” Descendo o corredor, quase esbarrei em Ben Stevens, que saía do banheiro masculino. “Tenho uma reunião com o Vander. Não vai demorar muito e meu relatório está quase pronto”, eu disse a ele. “Eu ia justamente falar com você.” Sem muita vontade, parei para saber o que ele queria. Perguntei-me se ele reparava que era difícil para mim comportar-me serenamente perto dele. Do meu terminal de casa, Lucy continuava varrendo nosso computador para ver se alguém estava tentando entrar novamente em meu diretório. Até aquele momento, ninguém tentara. “Falei com Susan esta manhã”, disse Stevens. “Como é que ela vai?” “Doutora Scarpetta, ela não vai voltar a trabalhar.” Não fiquei espantada, mas estranhei que ela não me informasse pessoalmente. Naquela altura eu já tentara falar com ela pelo menos meia dúzia de vezes e ou ninguém atendia ou seu marido dava uma desculpa para ela não vir ao telefone. “Só isso? Não vem mais e acabou-se? Deu alguma razão?” “Parece que a gravidez está sendo mais complicada do que ela esperava. Acho que neste momento ela está sem condições de trabalhar.” “Ela vai ter de mandar uma carta de demissão. E você fica encarregado de acertar os detalhes com o departamento pessoal. Vamos ter de começar a procurar um substituto imediatamente”, eu disse, sem conseguir esconder a raiva. “As contratações estão suspensas”, ele me lembrou enquanto eu me
retirava. Fora, a neve recolhida nas sarjetas se congelara formando montes de gelo sujo que impediam que os carros estacionassem ou transitassem, e o sol ardia pálido através de nuvens formidáveis. Um bonde passou transportando uma bandinha de música e, ao som de “Noite feliz”, subi alguns degraus de granito cobertos de sal grosso. Um guarda de necrotério me abriu a porta do edifício Seaboard, em cujo andar superior encontrei Vander numa sala iluminada por monitores coloridos e luzes ultravioleta. Sentado diante do amplificador de imagens, ele observava intensamente alguma coisa na tela enquanto manipulava um mouse. “Não estava em branco”, proclamou sem mesmo dizer “como vai”. “Alguém escreveu alguma coisa num pedaço de papel que estava em cima desse, ou pouco acima. Se você olhar bem, vai ver as marcas.” Eu estava começando a entender. No centro da mesa de luz à direita de Vander, havia uma folha de papel em branco. Curvei-me para examiná-la. As marcas eram tão fracas que achei que talvez fossem minha imaginação. “Esta é a folha de papel que estava embaixo do cristal da cama de Jennifer Deighton?”, perguntei, animando-me. Ele fez que sim com a cabeça, movendo um pouco mais o mouse e ajustando os tons de cinza. “Isso é ao vivo?” “Não. A câmera de vídeo já captou as marcas, que estão gravadas no disco rígido. Mas não toque no papel. Ainda não o submeti ao processo de busca de impressões digitais. Estou só começando, bata na madeira. Vamos, vamos!” Agora ele falava com o amplificador. “A câmera pegou muito bem. Você tem de ajudar a gente.” Os métodos de melhoramento de imagens mediante computador são uma aula sobre contrastes e charadas. Uma câmera pode distinguir mais de duzentos tons de cinza, e o olho humano menos de quarenta. Só porque algo não aparece não quer dizer que não exista. Enquanto trabalhava, Vander prosseguia. “Graças a Deus, com papel a gente não tem de se preocupar com outras interferências. Quando a gente não tem de se preocupar com elas as coisas vão mais depressa. Outro dia tive uma amostrinha disso analisando uma impressão digital marcada com sangue no lençol. Você sabe, a trama do tecido. Algum tempo atrás a impressão digital não ia servir para nada. Pronto.” Um novo tom de cinza invadiu a área em que ele estava trabalhando. “Agora estamos chegando a alguma coisa. Está vendo?” Apontou para umas formas vagas e esmaecidas na parte superior da tela. “Um pouquinho.” “O que estou tentando melhorar aqui é a sombra, não um escrito apagado, porque aqui nada foi escrito nem apagado. A sombra foi produzida quando a
luz oblíqua bateu na superfície plana do papel e nas marcas que ele apresenta — pelo menos a câmera de vídeo percebeu a sombra bem claramente. Nós não podemos ver a olho nu. Vamos tentar melhorar as verticais.” Moveu o mouse. “Escurecer só um tiquinho as horizontais. Pronto. Está aparecendo. 20-2, tracinho. É um pedaço de número de telefone.” Puxei uma cadeira para perto dele e me sentei. “É o código de acesso do distrito de Colúmbia.” “Tem um 4 e um 3. Ou é um 8?” Apertei os olhos. “Acho que é um 3.” “Melhorou agora. Você tem razão. É um 3 sim.” Continuou a trabalhar por algum tempo e novos números e palavras tornaram-se visíveis na tela. Depois suspirou e disse: “Puxa. Não consigo ver o último algarismo. Simplesmente não está lá, mas olhe isso aqui, antes do código de acesso do distrito de Colúmbia. ‘Para’ seguido de dois-pontos. E embaixo tem ‘de’ seguido de outros dois-pontos e outro número. 8-0-4. É local. Esse número está muito apagado. Um 5 e talvez um 7. Ou é um 9?” “Acho que é o número de Jennifer Deighton. O fax e o telefone estão na mesma linha — ela tinha um aparelho de fax no escritório, que usava papel comum. Com certeza escreveu um fax em cima dessa folha de papel. O que foi? Uma outra folha? Aqui não tem mensagem nenhuma.” “Ainda não acabamos. Está aparecendo um negócio que parece a data. É um 11? Não, aqui é 7. Dezessete de dezembro. Vou descer um pouco.” Moveu o mouse e as setas deslizaram tela abaixo. Apertando uma tecla, ele ampliou o campo onde queria trabalhar e começou a cobri-lo com tons de cinza. Sentada imóvel, eu via as formas que começavam lentamente a se materializar num limbo literário, curvas aqui, pontos ali, e letras t atrevidamente cortadas. Vander trabalhava em silêncio. Mal piscávamos, mal respirávamos. Assim ficamos por uma hora, as palavras pouco a pouco ficando mais nítidas e os tons de cinza contrastando uns com os outros, molécula por molécula, pedacinho por pedacinho. Ele os invocava, chamava-os à existência. Era incrível. Estava tudo ali. Exatamente uma semana antes, apenas dois dias antes de seu assassinato, Jennifer Deighton transmitira o seguinte fax para um número de Washington, no distrito de Colúmbia: “Está bem, vou cooperar, mas agora é tarde demais, tarde demais, tarde demais. É melhor você vir até aqui. Tudo isso está muito errado!”. Quando finalmente tirei os olhos da tela e Vander apertou o botão que acionava a impressora, eu estava eufórica. O aumento da adrenalina me turvava temporariamente a visão. “Marino precisava ver isso imediatamente. Com certeza a gente consegue descobrir de quem é esse número de fax, esse número em Washington. Só falta o último algarismo. Quantos números de
fax podem existir em Washington que sejam exatamente como esse, tirando o último algarismo?” Vander levantou a voz acima do barulho da impressora. “Do dígito 0 ao 9. No máximo dez. Dez números, de fax ou não, exatamente como esse, com exceção do último algarismo.” Ele me entregou uma folha impressa. “Vou limpar um pouco mais e depois dou a você uma cópia melhor. E ainda tem outra coisa. Não estou conseguindo pôr as mãos na impressão digital do Ronnie Waddell, a fotografia da impressão digital de um polegar marcada a sangue que foi colhida na casa de Robyn Naismith. Sempre que telefono para o arquivo, me dizem que ainda estão procurando o prontuário.” “Nesta época do ano aposto que não tem quase ninguém lá”, eu disse, sem conseguir afastar um mau pressentimento. De volta a minha sala chamei Marino e expliquei o que o ampliador de imagens havia descoberto. “Porra, a companhia telefônica você pode esquecer”, ele disse. “Meu contato lá já saiu para as férias de fim de ano e ninguém mais vai fazer merda nenhuma na véspera de Natal.” “Talvez possamos descobrir sozinhos para quem ela mandou o fax.” “Não sei, só se mandarmos um fax perguntando: ‘Quem é você?’, e esperarmos um fax dizendo: ‘Oi. Sou o assassino de Jennifer Deighton’.” “Isso depende de a pessoa ter gravado uma identificação em seu aparelho de fax”, eu disse. “Uma identificação?” “Os aparelhos mais aperfeiçoados de fax permitem que você grave seu nome ou o de sua empresa. Essa rubrica vai impressa em tudo o que você transmitir. Mas o mais importante é que a identificação da pessoa que receber o fax também vai aparecer no mostrador da máquina que enviou. Em outras palavras, se eu mandar um fax para você, no mostrador do meu aparelho vai aparecer ‘Departamento de Polícia de Richmond’ logo embaixo do número que eu tiver discado.” “Você tem um bom aparelho de fax? O da delegacia é uma droga.” “Tenho um aqui no trabalho.” “Está bem, então me diga se encontrar algo. Preciso ir.” Rapidamente fiz uma lista de dez números de telefone que começavam pelos seis algarismos que eu e Vander tínhamos conseguido identificar na folha de papel achada na cama de Jennifer Deighton. Completei os números sucessivamente com 0, 1, 2, 3 e assim por diante, depois comecei a experimentá-los. Só em um deles a resposta foi um som inumano e agudo. O aparelho de fax estava instalado na sala de minha analista de programas e Margaret felizmente também havia antecipado os feriados. Fechei a porta e sentei-me à mesa dela, pensando enquanto o microcomputador zumbia e as
luzes do modem piscavam. A identificação se dava em ambos os sentidos. Se eu desse início a uma transmissão, o nome de minha repartição apareceria no mostrador do aparelho de fax que eu houvesse chamado. Eu teria de interromper o processo rapidamente, antes que a transmissão fosse completada. Eu esperava que quando alguém fosse verificar o aparelho para ver o que estava acontecendo, as palavras “ESCRITÓRIO DO MÉDICO-LEGISTA CHEFE” e nosso número já tivessem desaparecido do mostrador. Introduzi uma folha de papel em branco na bandeja, disquei o número em Washington e esperei enquanto a transmissão tinha início. Nada apareceu no mostrador. Droga! O aparelho de fax para onde eu telefonara não tinha identificação. Paciência. Interrompi o processo e, derrotada, voltei para minha sala. Assim que me sentei à mesa, o telefone tocou. “Doutora Scarpetta”, respondi. “Aqui fala Nicholas Grueman. O fax que a senhora quis mandar não chegou.” “Perdão?”, disse eu, atordoada. “Só recebi uma folha em branco com o nome de sua repartição. Aí, código de erro 001, ‘remeta novamente por favor’, diz lá.” “Sei”, eu disse enquanto os pelinhos de meus braços se arrepiavam. “A senhora estava querendo mandar uma emenda para seu relatório? Sei que a senhora deu uma olhada na cadeira elétrica.” Não respondi. “Fico-lhe muito grato, doutora. Talvez a senhora tenha descoberto alguma novidade sobre aquelas lesões que discutimos, as escoriações nas faces internas dos braços do senhor Waddell? As fossas antecubitais?” “Dê-me outra vez seu número de fax, por favor”, eu disse sem alterar a voz. Ele deu. Era o número que eu tinha na lista. “O aparelho de fax fica na sua sala ou o senhor o divide com outros advogados, doutor Grueman?” “Fica aqui ao lado de minha mesa. Não precisa nenhuma especificação. Basta mandar — e, por favor, rápido, doutora. Estava pensando em ir cedo para casa.”
Sentindo a ustração, saí da repartição pouco depois. Não consegui falar com Marino. Eu não podia fazer mais nada. Senti-me presa numa rede de conexões estranhas, sem pistas sobre o ponto comum entre elas. Sem saber por quê, entrei num terreno de Cary Oeste onde um senhor vendia enfeites e árvores de Natal. Sentado num tamborete no meio de sua pequena floresta, o ar io perfumado pelas sempre-vivas, ele parecia um lenhador de alguma fábula. Quem sabe minha indiferença pelo espírito do Natal estivesse finalmente por ser vencida. Ou talvez eu quisesse
simplesmente achar uma distração. Tão perto do Natal, já não havia muita escolha; suspeitei que, fora a que levei, aquelas árvores desdenhadas, tortas ou moribundas, teriam o destino de sobra das festas. Seria encantador, se não fosse perverso. Decorar minha árvore foi antes um desafio ortopédico que um ritual festivo, mas com os enfeites e guirlandas de lâmpadas estrategicamente pendurados e com arame fixando os pontos problemáticos, ela se ergueu orgulhosamente em minha sala de visitas. “Pronto. O que você acha?”, perguntei a Lucy, recuando para apreciar meu trabalho. “Acho esquisitíssimo você de repente decidir comprar uma árvore de Natal. Há quanto tempo você não compra uma árvore?” “Acho que desde o tempo em que era casada.” “Os enfeites são daquele tempo?” “Naquele tempo eu fazia uma porção de coisas para o Natal.” “Por isso não faz mais.” “Agora estou muito mais ocupada do que naquele tempo.” Lucy abriu o para-fogo da lareira e, com o atiçador, ajeitou as toras de lenha. “Você e o Mark alguma vez passaram o Natal juntos?” “Não se lembra? Fomos ver vocês no Natal passado.” “Não. Depois do Natal vocês passaram três dias e foram embora no dia de Ano-Novo.” “No Natal ele estava com a família.” “Você não foi convidada?” “Não.” “Por que não?” “O Mark era de uma família tradicional de Boston. Tinham lá o jeito deles de fazer as coisas. E sobre esta noite, o que você decidiu? Minha jaqueta com a gola de veludo preto ficou bem?” “Não experimentei nada. Por que a gente tem de ir a esses lugares todos? Não vou conhecer ninguém.” “Não é tão ruim assim. Só tenho de levar um presente para uma moça que está grávida e que com certeza não vai mais trabalhar. E tenho de dar uma passada numa festa aqui perto. Aceitei o convite antes de saber que você vinha. Claro que você não é obrigada a ir comigo.” “Prefiro ficar aqui. Queria começar logo com o Sida.” “Paciência”, respondi, embora não me sentisse nada paciente. No fim da tarde, depois de ter deixado várias mensagens com o operador, concluí que ou o bip de Marino não estava funcionando ou ele estava ocupado demais para procurar um telefone público. Nas janelas de meus vizinhos, velas ardiam e uma lua ovalada brilhava bem acima das árvores. Toquei aquela música de Natal de Pavarotti com a Filarmônica de Nova York, fazendo o possível para entrar no estado de espírito adequado enquanto tomava um
banho de chuveiro e me vestia. A festa a que eu ia só começava às sete. Isso me dava tempo bastante para entregar o presente de Susan e conversar um pouco com ela. Ela atendeu ao telefone, o que me surpreendeu, e pareceu relutante e nervosa quando perguntei se podia passar em sua casa. “Jason saiu. Foi ao shopping center”, ela disse, como se fizesse alguma diferença. “Bom, tenho umas coisas para você”, expliquei. “Que coisas?” “Coisas de Natal. Tenho de ir a uma festa, de modo que não vou ficar muito tempo. Está bem?” “Acho que sim. Quer dizer, está ótimo.” Eu tinha esquecido que ela morava em Southside, aonde eu raramente ia e onde tinha uma propensão a me perder. O tráfego estava pior do que eu temera, com a Midlothian Turnpike engarrafada, cheia de compradores de última hora dispostos a tirar você do caminho a fim de cumprir seu roteiro de boas-festas. Os estacionamentos transbordavam de automóveis e as lojas e galerias estavam tão berrantemente iluminadas que cegavam a gente. O bairro de Susan era mal iluminado e duas vezes tive de parar e acender a luz interna para ler suas instruções sobre como chegar até sua casa. Depois de muitas voltas finalmente encontrei uma casinha rústica apertada entre duas outras que pareciam exatamente iguais a ela. “Oi”, eu disse, olhando para ela através das folhas das asas-de-papagaio corde-rosa que lhe levava. Nervosa, ela trancou a porta e me conduziu para a sala de visitas. Empurrando para os lados livros e revistas, ela pôs o vaso na mesinha. “Como você está se sentindo?”, perguntei. “Melhor. Você quer beber alguma coisa? Espere, deixe eu pegar seu casaco.” “Obrigada. Não quero beber nada, não. Só posso ficar um minuto.” Entreguei-lhe um embrulho. “Isso é uma coisinha que eu comprei quando estive em São Francisco, no verão.” Sentei-me no sofá. Ela evitou meus olhos enquanto se enroscava numa bergère. “Puxa. Você faz as compras com bastante antecedência. Quer que eu abra agora?” “Como quiser.” Cuidadosamente, ela partiu a fita adesiva com a unha do polegar e retirou, intacta, a fita de cetim. Dobrou o papel num retângulo caprichado, como se pretendesse tornar a usá-lo, colocou-o no colo e abriu a caixa preta. “Oh”, disse, contendo a respiração e desdobrando o lenço vermelho de seda. “Achei que cairia bem com seu casaco preto. Não sei quanto a você, mas não gosto de sentir a lã na pele”, falei. “É lindo. É muita bondade sua, doutora Scarpetta. Nunca ninguém trouxe
nada para mim de São Francisco.” A expressão de seu rosto apertou meu coração e de repente enxerguei melhor o ambiente em que me achava. Susan estava com um roupão de belbutina amarela puído nos punhos e um par de meias pretas que achei que eram do marido. A mobília barata era velha e as forrações estavam gastas. A árvore de Natal artificial ao lado da pequena televisão tinha poucos enfeites e perdera vários galhos. Embaixo dela, poucos presentes. Encostado numa parede havia um berço dobrado, evidentemente de segunda mão. Susan percebeu meu olhar e pareceu pouco à vontade. “Tudo tão limpo”, eu disse. “Você sabe como eu sou. Obsessiva e compulsiva.” “Ainda bem. Se há um necrotério magnífico, é o nosso.” Ela dobrou o lenço com cuidado e tornou a pô-lo na caixa. Apertando o roupão, fitou as flores em silêncio. “Susan, você quer conversar sobre o que está acontecendo?”, disse-lhe com delicadeza. Ela não olhou para mim. “Não é seu estilo ficar perturbada como ficou no outro dia. Não é seu estilo faltar ao trabalho e depois não trabalhar mais e nem sequer me telefonar.” Ela respirou fundo. “Sinto muito. Não estou conseguindo fazer as coisas direito ultimamente. Fico alterada. Como quando me lembrei da Judy.” “Sei que a morte de sua irmã deve ter sido terrível para você.” “Éramos gêmeas. Não idênticas. Judy era muito mais bonita que eu. Isso era parte do problema. Doreen tinha ciúme dela.” “Doreen era a moça que dizia que era bruxa?” “É. Desculpe. Eu só não quero me envolver com esse tipo de coisa. Principalmente agora.” “Talvez você se sinta melhor se eu lhe disser que telefonei para a igreja perto da casa de Jennifer Deighton e me disseram que o campanário é iluminado por lâmpadas de vapor de sódio que começaram a falhar uns meses atrás. Parece que ninguém reparou que as lâmpadas não tinham sido consertadas. Deve ser por isso que elas acendem e apagam.” “Quando eu era pequena, na igreja que eu equentava havia uns pentecostalistas que acreditavam falar línguas estranhas e exorcizar demônios. Lembro-me de um homem que foi jantar em nossa casa e falou que tinha encontrado demônios e que de noite ficava deitado na cama ouvindo uma coisa respirando no escuro e que os livros voavam da estante e ficavam batendo nas paredes do quarto. Eu ficava apavorada com esse tipo de coisa. Não consegui nem ver O exorcista.” “Susan, no trabalho temos que ser objetivas e realistas. Não podemos deixar nossas histórias, crenças e fobias interferirem.” “Você não é filha de pastor.”
“Sou católica.” “Você não imagina o que é ser filha de pastor fundamentalista”, disse ela, retendo as lágrimas. Não discuti. Prosseguiu com dificuldade. “Quando eu acho que me livrei das coisas antigas elas me agarram pelo pescoço. Parece que há uma outra pessoa dentro de mim me perturbando.” “Perturbando como?” “Estragando muita coisa.” Esperei que ela me explicasse, mas ela ficou calada. Fitava as mãos com olhos desamparados e então murmurou: “É pressão demais”. “O que é pressão demais, Susan?” “O trabalho.” “Em que ele está diferente do que sempre foi?” Eu achava que ela ia dizer que esperar um filho mudava tudo. “Jason acha que não é saudável para mim. Sempre achou isso.” “Sei.” “Chego em casa, digo a ele como foi meu dia e ele não gosta nem um pouco. Diz: ‘Você não vê que esse negócio é horrível? Não pode ser bom para você de jeito nenhum’. Ele tem razão. Nem sempre consigo esquecer, atualmente. Estou farta de ver corpos apodrecendo, gente estuprada, cortada e baleada. Estou farta de ver bebês mortos e gente morta em acidentes de carro. Não quero mais violência.” Olhou para mim, com o lábio inferior tremendo. “Não quero mais mortes.” Pensei na dificuldade de substituí-la. Com uma pessoa nova os dias seriam demorados, e o aprendizado seria longo. Pior ainda eram os riscos ao entrevistar candidatos e eliminar os maníacos. Nem todos os candidatos a trabalhar num necrotério são modelos de equilíbrio. Eu gostava de Susan. Estava magoada e profundamente perturbada. Ela não estava sendo sincera comigo. “Há mais alguma coisa sobre a qual você gostaria de falar?”, perguntei, fitando-a atentamente. Ela me olhou depressa, e em seu olhar havia medo. “Não me lembro de nada.” Ouvi bater a porta de um automóvel. “Jason chegou”, murmurou ela. Nossa conversa tinha terminado e, ao levantar-me, eu lhe disse suavemente: “Por favor, Susan, se precisar de alguma coisa entre em contato comigo. Algo com que eu possa ajudar, ou só para conversar. Você sabe onde me achar”. Na saída, conversei brevemente com o marido. Era alto e bonito, tinha cabelo castanho crespo e olhos distantes. Embora tenha sido cortês, percebi
que não gostara de encontrar-me em sua casa. Ao cruzar o rio em meu carro, eu pensava, abalada, na imagem que aquele casal jovem e lutador devia ter de mim. Eu era a chefe com roupa de grife que chegava numa Mercedes para entregar um presentinho qualquer na véspera de Natal. A perda da lealdade de Susan atingia minhas inseguranças mais profundas. Eu já não estava segura quanto a meus relacionamentos, e tampouco quanto à forma como era vista pelos outros. Temia ter falhado em algum teste depois do assassinato de Mark, como se minha reação àquela perda pudesse responder a uma questão formulada pelos que me cercavam. Afinal, eu supostamente lidava com a morte melhor do que ninguém. Dra. Kay Scarpetta, a perita. Em vez disso, havia me recolhido e sabia que, a despeito de meus esforços para ser cordial e generosa, os outros sentiram a ieza de que me cercara. Meus funcionários já não confiavam em mim. E agora pelo jeito a segurança de minha sala fora violada e Susan deixava o trabalho. Segui pela rua Cary, dobrei à direita em meu bairro e rumei para a casa de Bruce Carter, um juiz de direito. Ele morava em Sulgrave, a várias quadras de minha casa, e subitamente voltei aos meus tempos de criança em Miami, contemplando o que então me pareciam mansões. Lembrei-me de como batia de porta em porta com um carrinho cheio de utas cítricas, sabendo que as mãos elegantes que me davam uns trocados pertenciam a pessoas inatingíveis, que sentiam pena de mim. Lembrei-me de como voltava para casa com um punhado de moedas e do cheiro de doença que vinha do quarto onde meu pai agonizava. Windsor Farms era um bairro rico e tranquilo, com casas em estilo Tudor ou georgiano harmonicamente enfileiradas ao longo de ruas com nomes ingleses e solares arborizados em torno dos quais serpenteavam muros de tijolos. Guardas particulares protegiam zelosamente os privilegiados, para quem os alarmes contra roubo eram tão comuns quanto os irrigadores. Os pactos tácitos eram mais temíveis que os expressos. Não se ofendia os vizinhos com cordas de secar roupa ou visitas inesperadas. Não era preciso andar num Jaguar, mas se seu meio de transporte fosse uma caminhonete enferrujada ou um furgão de necrotério você devia mantê-lo escondido oculto na garagem. Às sete e quinze estacionei atrás de uma fileira comprida de automóveis, diante de uma casa de tijolos pintados de branco com telhado de ardósia. Como estrelinhas, luzes brancas prendiam-se aos arbustos e aos abetos, e uma guirlanda esca e perfumada pendia da porta principal, pintada de vermelho. Nancy Carter saudou minha chegada com um sorriso esplêndido, os braços estendidos para tomar-me o casaco. Falava sem parar, num plano acima da linguagem indeciável das multidões enquanto os vidrilhos de seu vestido comprido encarnado despendiam chispas. A mulher do juiz tinha cerca de cinquenta anos e o dinheiro a transformara em obra de arte bem-educada e
refinada. Na juventude, imaginei, não devia ter sido bonita. “Bruce está por aí…” Olhou em torno. “O bar é ali.” Ela me conduziu até a sala de visitas, onde os vistosos trajes de festa dos convidados mesclavam-se maravilhosamente a um grande e esplendoroso tapete persa que, suspeitei, custara mais do que a casa que eu visitara havia pouco, do outro lado do rio. Vislumbrei o juiz conversando com um homem que eu não conhecia. Escrutei os rostos, reconhecendo vários médicos e advogados, um lobista e o chefe de gabinete do governador. Não sei como, acabei com um uísque com soda, e um homem que eu nunca vira antes tocava meu braço. “Doutora Scarpetta? Frank Donahue”, apresentou-se em voz alta. “Feliz Natal.” “Para o senhor também.” O diretor, supostamente enfermo no dia em que Marino e eu visitáramos a penitenciária, era pequeno e tinha uma fisionomia rude e abundante cabelo grisalho. Como uma paródia de mestre de cerimônias inglês, exibia casaca vermelha brilhante, camisa branca com jabot e gravata-borboleta também vermelha onde piscavam luzinhas elétricas. Enquanto me estendia uma das mãos, um copo de bourbon puro pendia perigosamente da outra. Inclinando-se, disse em meu ouvido: “Sinto muito não ter podido recebê-la quando de sua visita à penitenciária”. “Um de seus policiais cuidou de nós. Muito obrigada.” “Deve ter sido o Roberts.” “Acho que foi.” “Bom, é uma pena a senhora ter tido essa maçada.” Seus olhos vasculharam a sala e ele piscou para alguém atrás de mim. “Foi tudo sacanagem. A senhora sabe, o Waddell já havia tido umas duas hemorragias nasais e soia de pressão alta. Estava sempre se queixando de alguma coisa. Dor de cabeça. Insônia.” Aproximei a cabeça, fazendo força para ouvir. “Esses caras do corredor da morte são artistas consumados. E, para falar a verdade, Waddell era um dos piores.” “Não sabia”, disse, levantando os olhos até ele. “Esse é o problema, ninguém sabe. Digam o que quiserem, ninguém sabe, só a gente, que está com os caras todos os dias.” “Claro.” “A tal recuperação do Waddell, virando bonzinho. Um dia vou lhe contar, doutora Scarpetta, o jeito como ele costumava se gabar para os outros presos sobre o que fez com a coitada da garota, a tal Naismith. Se achava o máximo porque tinha despachado uma celebridade.” A sala estava abafada e quente demais. Eu sentia os olhos dele percorrendo meu corpo.
“Acho que a senhora também não fica muito surpresa”, disse ele. “Não fico não, senhor Donahue. Poucas coisas me surpreendem.” “Para ser anco, não sei como a senhora vê sua atividade no dia a dia. Principalmente nessa época do ano, com esse pessoal matando os outros e a si mesmos, como aquela senhora, coitada, que se matou na garagem outro dia, depois de abrir mais cedo os presentes de Natal.” Sua observação me atingiu como uma cotovelada nas costelas. O jornal da manhã publicara uma reportagem curta sobre a morte de Jennifer Deighton, onde uma fonte policial era mencionada como tendo dito que aparentemente ela abrira antecipadamente os presentes de Natal. O que poderia significar que ela cometera suicídio, mas isso não havia sido dito diretamente. “O senhor está falando de que senhora?”, perguntei. “Não me lembro do nome.” Com o rosto corado e os olhos brilhantes em constante movimento, Donahue tomou um gole de sua bebida. “Triste, muito triste. Bom, a senhora vai ter de nos visitar um dia desses na nossa casa nova, em Greensville.” Abriu um sorriso, depois me trocou por uma matrona de busto grande, vestida de preto. Beijou-a na boca e os dois caíram na gargalhada. Assim que pude fui para casa, onde encontrei o fogo aceso e minha sobrinha estendida no sofá, lendo. Reparei que havia diversos presentes novos ao pé da árvore. “Como foi?”, perguntou ela com um bocejo. “Você fez bem em ficar em casa. Marino telefonou?” “Não.” Tentei falar com ele de novo e depois de quatro chamadas ele atendeu, irritado. “Espero não estar ligando muito tarde”, desculpei-me. “Também espero. Qual o problema agora?” “Muita coisa. Encontrei seu amigo, o senhor Donahue, numa festa hoje.” “Emocionante.” “Não fiquei impressionada e pode ser que eu seja só paranoica, mas achei estranho ele ter vindo com o negócio da morte de Jennifer Deighton.” Silêncio. “A outra novidade”, continuei, “é que parece que menos de dois dias antes de ser assassinada Jennifer Deighton mandou um bilhete via fax para Nicholas Grueman. No tal bilhete parecia transtornada, e fiquei com a impressão de que ela queria se encontrar com ele. Ela sugeriu que ele viesse a Richmond.” Marino continuava sem dizer nada. “Você está me ouvindo?”, perguntei. “Estou pensando.”
“Ainda bem. Mas talvez seja melhor a gente pensar junto. Tem certeza de que não posso fazê-lo mudar de opinião sobre o jantar amanhã?” Ele suspirou fundo. “Gostaria, doutora. Mas…” Uma voz de mulher, ao fundo, disse: “Está em que gaveta?”. Ficou evidente que Marino havia tapado o fone com a mão e resmungado algo. Quando voltou a falar comigo, pigarreou. “Desculpe. Não sabia que você estava acompanhado”, eu disse. “É.” Calou-se. “Eu ficaria encantada se você e sua amiga viessem jantar aqui amanhã”, convidei. “Tem um bufê no Sheraton. A gente ia lá.” “Tem um presente para você na árvore. Se mudar de ideia, telefone de manhã.” “Acho que não vou mudar. Você afinal entregou os pontos e comprou uma árvore? Aposto que é uma merdinha.” “Nada disso, é a inveja da vizinhança. Dê um ‘Feliz-Natal’ à sua amiga por mim.”
7
Na manhã seguinte acordei com o som dos sinos da igreja e as cortinas cintilantes de sol. Embora tivesse bebido muito pouco na noite anterior, estava de ressaca. Deixando-me ficar na cama, tornei a dormir e em sonhos vi Mark. Quando finalmente me levantei, a cozinha recendia a baunilha e laranja. Lucy estava moendo café. “Você está me estragando. Como vou fazer depois? Feliz Natal.” Beijei o alto de sua cabeça, reparando num pacote pouco comum de cereal em cima do balcão. “O que é isso?” “Müsli de Cheshire. Uma maravilha. Trouxe meu suprimento. É melhor com iogurte natural, mas você não tem. Então vamos ter de nos virar com leite desnatado e banana. Tem ainda suco de laranja fresco e café francês descafeinado aromatizado com baunilha. Acho que devíamos telefonar para mamãe e vovó.” Enquanto, na cozinha, eu discava o número de minha mãe, Lucy foi para o escritório a fim de usar a extensão. Minha irmã já estava na casa de minha mãe e pouco depois estávamos as quatro na linha, minha mãe queixando-se longamente do clima. Disse que estava caindo uma tempestade feroz em Miami. Tarde da noite, na véspera de Natal, começara a chover torrencialmente e a ventar como se fosse um castigo, e uma saraivada de relâmpagos festejara a manhã. “Não convém falar ao telefone com uma tempestade dessas. Mais tarde a gente se fala”, eu disse. “Você é tão paranoica, Kay. Tudo o que você vê pode matar alguém”, implicou Dorothy. “Lucy, o que você ganhou?”, interrompeu minha mãe. “Ainda não abrimos os presentes, vovó.” “Nossa! Esse caiu aqui perto. As luzes até piscaram”, exclamou Dorothy por cima dos estalidos da estática. “Mamãe, espero que você não esteja com nenhum arquivo aberto no computador. Porque, se está, com certeza acaba de perder todo o seu trabalho”, disse Lucy. “Dorothy, você se lembrou de trazer manteiga?”, perguntou minha mãe. “Porra. Eu sabia que tinha uma coisa faltando…” “Acho que falei umas três vezes ontem de noite.”
“Mamãe, já falei que não me lembro das coisas que você me diz quando estou escrevendo.” “Tem cabimento? Véspera de Natal. Você vai à missa comigo? Não. Fica em casa trabalhando no tal livro e esquece de trazer a manteiga.” “Eu saio e compro.” “E você acha que tem alguma coisa aberta na manhã de Natal?” “Alguma coisa há de ter.” Ergui os olhos quando Lucy entrou na cozinha. “Não acredito”, sussurrou para mim enquanto minha mãe e minha irmã continuavam a discutir. Depois de desligar, passei com Lucy para a sala de visitas, onde voltamos a uma sossegada manhã de inverno da Virgínia, com árvores peladas imóveis e extensões de neve imaculada à sombra. Não pensava poder um dia voltar a viver em Miami. A mudança das estações era como as fases da lua, uma força que me puxava e deslocava meu ponto de vista. Eu tinha necessidade de lua cheia, lua nova e nuances intermediárias e, para apreciar as manhãs de primavera, precisava de dias curtos e frios. O presente que Lucy ganhara da avó era um cheque de cinquenta dólares. Dorothy também dera dinheiro, e fiquei meio envergonhada quando Lucy abriu meu envelope e juntou meu cheque aos outros. “Dinheiro é tão impessoal”, desculpei-me. “Para mim não é impessoal, porque é o que eu quero. Com isto você comprou outro megabyte de memória para meu computador.” Entregou-me um presente pequeno e pesado, envolto em papel vermelho e prateado, e não pôde esconder a alegria quando abri a caixa e afastei as folhas de papel de seda. “Achei que você podia usar para anotar as audiências. Combina com sua jaqueta de motociclista.” “É uma beleza, Lucy.” Toquei a encadernação da agenda, de couro negro de carneiro, e alisei suas páginas sedosas. Pensei no domingo em que ela fora à cidade e em como havia demorado quando eu deixara que usasse meu carro para ir ao clube. Aposto que a danada tinha ido fazer compras. “E este outro presente aqui são mais folhas para a parte de endereços e o calendário para o ano que vem.” Depositou um presente menor em meu colo e o telefone tocou.
Marino me desejou feliz Natal e disse que queria passar para levar meu “presente”. “Diga à Lucy que é melhor ela vestir uma roupa quente e não usar nada apertado”, disse com irritação. “Que negócio é esse?”, espantei-me. “Nada de jeans apertados, senão ela não consegue botar e tirar os cartuchos do bolso. Você disse que ela queria aprender a atirar. A primeira aula é hoje antes do almoço. Se perder a hora é problema dela. A que horas a gente vai comer?” “Entre uma e meia e duas horas. Pensei que você tinha um compromisso.” “É, bom, eu desmarquei. Estou aí em vinte minutos. Diga à pirralha que está frio pacas. Você quer ir com a gente?” “Desta vez não. Vou ficar para fazer a comida.” O humor de Marino não havia melhorado quando ele chegou à minha porta e fez um carnaval examinando meu revólver extra, um Ruger 38 com borracha na coronha. Apertou o fecho, soltou o cilindro e girou-o vagarosamente, espiando para dentro de cada orifício. Puxou o cão para trás, olhou pelo cano abaixo e por fim testou o gatilho. Enquanto Lucy o observava num silêncio curioso, ele pontificava sobre o acúmulo de resíduos deixado pelo solvente que eu usava e me informava que meu Ruger provavelmente tinha “sulcos” que precisavam de remendos. Depois levou Lucy em seu Ford. Quando voltaram, muitas horas mais tarde, estavam com os rostos rosados de frio e Lucy exibia orgulhosamente uma bolha de sangue no dedo do gatilho. “Como ela se saiu?”, perguntei, enxugando as mãos no avental. “Nada mal. Sinto cheiro de frango frito”, disse Marino, olhando para além de mim. Peguei os casacos deles. “Não é não. É cheiro de costoletta di tacchino alla bolognese.” “Fui melhor que ‘nada mal’. Só não acertei o alvo duas vezes”, disse Lucy. “Você precisa treinar até parar de bater com o gatilho. E lembre-se de puxar o cão.” “Estou mais cheia de fuligem que Papai Noel depois de descer pela chaminé. Vou tomar uma ducha”, disse Lucy, alegre. Na cozinha servi um café enquanto Marino inspecionava um balcão coberto de vinho Marsala, parmesão recém-ralado, presunto cru, trufas brancas, filés de peru sautés e vários outros ingredientes de nossa refeição. Passamos para a sala de visitas, onde o fogo crepitava.
“Foi muito simpático o que você fez. Não imagina como eu gostei”, falei. “Uma aula não basta. Talvez eu ainda possa trabalhar com ela umas duas vezes antes de ela voltar para a Flórida.” “Obrigada, Marino. Espero que não tenha sido muito chato para você mudar seus planos.” “Nada de mais”, disse ele secamente. “Pelo jeito você desistiu do jantar no Sheraton. Sua amiga podia ter vindo com você”, arrisquei. “Mudei os meus planos.” “Como é o nome dela?” “Tanda.” “Nome interessante.” Marino estava ficando vermelho. “Como é a Tanda?”, perguntei. “Se você quer saber a verdade, não vale a pena falar nela.” Ele se levantou abruptamente e seguiu pelo corredor na direção do banheiro. Eu sempre tivera o cuidado de não fazer perguntas a Marino sobre sua vida pessoal se ele não me convidasse a fazê-lo, mas daquela vez não pude resistir. Quando ele voltou, perguntei: “Como você e Tanda se conheceram?”. “No baile da polícia.” “Que bom você estar saindo e encontrando gente.” “Se quer saber, é um saco. Faz mais de trinta anos que não saio com ninguém. É como Rip van Winkle, que acordou num outro século. As mulheres agora são diferentes das de antigamente.” “Como assim?” Tentei não rir. Era claro que Marino não achava nada daquilo divertido. “Já não são mais simples.” “Simples?” “É, como a Doris. Nossa vida não era complicada. Agora, depois de trinta anos, ela tinha de se separar e começar de novo. Fui a essa droga desse baile da polícia porque uns caras me
convenceram. Estou cuidando da minha vida quando essa Tanda vem até minha mesa. Você acredita que depois de duas cervejas ela pediu meu telefone?” “E você deu?” “Eu disse: ‘Espere aí, se você quer que a gente se encontre, você me dá seu número. Eu telefono’. Aí ela perguntou se eu tinha fugido do jardim zoológico e me convidou para jogar boliche. Foi assim que começou. Agora, ela acabou me dizendo que tinha batido seu carro quando dava marcha à ré duas semanas atrás e que havia sido multada. Queria que eu desse um jeito.” “Que pena.” Apanhei o presente dele e entreguei-o. “Não sei se isso vai ajudar em sua vida social.” Ele desembrulhou um par de suspensórios vermelhos e uma gravata de seda combinando. “Puxa, doutora, não precisava.” Levantando-se, resmungou contrariado: “Raio de comprimido”, e foi de novo para o banheiro. Minutos depois, voltou para junto da lareira. “Quando você fez seu último check-up?”, perguntei. “Umas semanas atrás.” “E aí?” “O que você está pensando?” “Você está com pressão alta, o que estou pensando é isso.” “Sem essa.” “O que exatamente o médico disse?” “Está quinze por dez e o raio da próstata está dilatado. Então estou tomando esses comprimidos. Para baixo e para cima o tempo todo, tenho a sensação de que estou com vontade de mijar e metade das vezes não consigo. Se não melhorar, ele disse que vai me fazer um turp.” Um turp era um corte transuretral da próstata. Não era sério, embora não fosse agradável. A pressão sanguínea de Marino me preocupava. Ele era candidato natural a um derrame ou um ataque do coração. Ele continuou: “Depois meus tornozelos incham. Meus pés doem e tenho essas dores de cabeça terríveis. Tenho de parar de fumar, parar de tomar café, perder dezoito quilos, diminuir as chateações”. “É, você tem de fazer tudo isso e não me parece que esteja fazendo”, eu disse com firmeza.
“É simples mudar minha vida toda. E quem é você para falar?” “Eu não tenho pressão alta e parei de fumar há exatamente dois meses e cinco dias. E se perdesse dezoito quilos não estaria aqui.” Ele contemplou o fogo. “Olhe, por que a gente não combina uma coisa? Vamos nós dois suspender o café e começar a fazer exercícios”, eu disse. “Não consigo imaginar você fazendo ginástica aeróbica”, disse ele, em tom de tédio. “Vou jogar tênis. Você é que pode fazer aeróbica.” “Mato o primeiro que começar a levantar as coxas perto de mim.” “Assim não dá, Marino.” Ele mudou de assunto, começando a perder a paciência. “Você tem uma cópia do fax de que me falou?” Fui ao escritório e voltei com minha pasta. Abri-a e entreguei a ele o print da mensagem que Vander decifrara com o amplificador de imagens. “Isto estava no papel em branco que encontramos na cama de Jennifer Deighton, não é?”, perguntou. “É.” “Até agora ainda não entendi por que havia na cama uma folha de papel em branco com um cristal em cima. O que aquilo estava fazendo lá?” “Não sei. E sobre as mensagens na secretária eletrônica dela? Alguma novidade?” “Ainda estamos ouvindo. Tem gente à beça para depor.” Tirou um maço de Marlboro do bolso da camisa, suspirou com força e bateu com o maço em cima da mesinha. “Porra. Agora você vai me encher toda vez que eu acender um cigarro, não é?” “Não, estou só olhando, mas não vou dizer uma palavra.” “Você se lembra daquela sua entrevista na televisão educativa uns meses atrás?” “Vagamente.” “Jennifer Deighton gravou a entrevista. A fita estava no vídeo, aí começamos a passar e você estava lá.”
“O quê?”, indaguei assombrada. “Claro, naquele programa não tinha só você. Também tinha alguma coisa sobre uma escavação arqueológica e sobre um filme de Hollywood que rodaram aqui perto.” “E por que ela me gravaria?” “Isso é uma outra coisa que também não se encaixa. E tem os telefonemas feitos do telefone dela — quando desligavam. Parece que a Deighton estava pensando em você antes de darem um jeito nela.” “O que mais você descobriu sobre ela?” “Preciso fumar. Você quer sair?” “Claro que não.” “Está ficando cada vez mais estranho. Examinando o escritório dela encontramos uma sentença de divórcio. Parece que ela se casou em 1961, divorciou-se dois anos depois e voltou a usar o nome Deighton. Depois se mudou da Flórida para Richmond. O nome do ex-marido era Willie Travers, um desses naturebas — sabe, desses que falam de saúde total. Porra, não me lembro do nome.” “Medicina holística?” “Isso. Ele ainda mora na Flórida, na praia de Fort Myers. Falei com ele por telefone. Foi uma lenha arrancar informação dele, mas acabei conseguindo alguma coisa. Disse que ele e a senhorita Deighton continuaram amigos depois de separados, e que continuavam se vendo.” “Ele veio até aqui?” “Disse que ela o visitava na Flórida. Que se encontravam, como ele disse, para relembrar os velhos tempos. A última vez foi em novembro, lá pelo Dia de Ação de Graças. Consegui também umas informaçõezinhas sobre o irmão e a irmã da Deighton. A irmã é bem mais moça, é casada e mora no Oeste. O irmão é o mais velho deles, anda pelos cinquenta e poucos e é gerente de uma mercearia. Teve câncer na garganta há uns dois anos e ficou sem as cordas vocais.” “Espere aí.” “É. Você sabe como é que fica. A gente reconhece quando ouve. Não tem como o cara que telefonou para você na repartição ser John Deighton. Era alguém que tinha seus próprios motivos para estar interessado nas conclusões da autópsia de Jennifer Deighton. Sabia o bastante para dizer o nome correto. Sabia o bastante para localizar o cara em Colúmbia, na Carolina do Sul. Mas não estava a par dos verdadeiros problemas de saúde de John Deighton, não sabia que tinha que falar como se estivesse usando um sintetizador de voz.”
“Travers sabe que a morte da ex-mulher foi um homicídio?” “Eu disse que o médico-legista ainda estava fazendo os exames.” “E ele estava na Flórida quando ela morreu?” “Diz que sim. O que eu queria mesmo saber é onde estava seu amigo Nicholas Grueman quando ela morreu.” “Ele nunca foi meu amigo. Como você vai fazer para abordá-lo?” “Por ora não vou fazer nada. Com caras como o Grueman tem de ser de uma vez só. Que idade ele tem?” “Sessenta e tantos.” “É um cara grande?” Levantei-me para atiçar o fogo. “Não o vejo desde que estava na faculdade de direito. Naquele tempo era de normal para magro. A altura eu diria que era média.” Marino não disse nada. “Jennifer Deighton pesava oitenta e um quilos. Parece que o assassino a estrangulou e depois carregou o corpo para o carro”, refresquei sua memória. “Está bem. Quer dizer que talvez alguém tenha ajudado Grueman. Você quer uma história bem maluca? Imagine o seguinte. Grueman era advogado de Ronnie Waddell, que não era nenhum raquítico. Talvez fosse até o caso de dizermos que ele não é nenhum raquítico. A impressão digital do Waddell foi encontrada na casa de Jennifer Deighton. Talvez Grueman tenha ido visitá-la e não tenha ido sozinho.” Contemplei o fogo. “Aliás, não vi nada na casa de Jennifer Deighton de onde pudesse ter vindo a pluma que você encontrou. Você me pediu para procurar”, acrescentou. Nesse momento, o pager de Marino soou. Ele o tirou do cinto e apertou os olhos para ver o mostrador. “Porra”, queixou-se, dirigindo-se à cozinha para usar o telefone. “O que está acontecendo… O quê? Meu Deus. Você tem certeza?”, ouvi-o dizer. Ficou um momento calado e parecia muito nervoso quando disse: “Não se preocupe. Estou a cinco metros dela”.
Marino passou um sinal vermelho na esquina de West Cary e Windsor Way e tomou o caminho que ia para leste. Os faróis estavam acesos e as luzes dos faróis de milha dançavam dentro do Ford LTD branco. O rádio estalava com os códigos dos usuários enquanto eu imaginava Susan enroscada na bergère com o roupão de belbutina enrolado no corpo para vencer um frio que não tinha relação com a temperatura da sala. Lembrei-me da expressão de seu rosto, alterando-se constantemente como nuvens, e de seus olhos que para mim não tinham segredos. Eu estava tremendo e parecia não poder acalmar a respiração. Meu coração batia tão forte que parecia entalado na garganta. A polícia havia encontrado o carro de Susan numa travessa que dava na rua Strawberry. Ela estava no assento do motorista, morta. Ignorava-se o que estava fazendo naquela parte da cidade ou o que poderia ter motivado seu agressor. “O que mais ela disse quando você falou com ela ontem à noite?”, perguntou Marino. Nada significativo me vinha ao pensamento. “Estava nervosa. Alguma coisa a preocupava.” “O quê? Você tem algum palpite?” “Não sei o que podia ser.” Minhas mãos tremiam, me atrapalhei com a maleta médica, cujo conteúdo mais uma vez verificava. Câmera, luvas e todo o resto estavam ali. Lembrei que Susan dissera uma vez que, se alguém tentasse sequestrá-la ou estuprá-la, teria de matá-la antes. Houvera alguns fins de tarde nos quais ficávamos só nós duas, limpando o laboratório e arrumando os arquivos. Tínhamos tido muitas conversas pessoais sobre ser mulher e amar homens e sobre como seria ser mãe. Uma vez faláramos da morte e Susan confessara temê-la. “Também não estou falando do inferno, do fogo e do enxofre de que meu pai fala nos sermões dele — disso não tenho medo. Só tenho medo de que isso aqui seja tudo”, dissera terminantemente. “Isto aqui não é tudo.” “Como você sabe?” “Alguma coisa vai embora. Você olha a cara deles e pode ver. A energia saiu. O espírito não morreu. Só o corpo.” “Mas como você sabe?” Tirando um pouco o pé do acelerador, Marino entrou na rua Strawberry. Espiei o espelho lateral. Outro carro de polícia vinha atrás de nós, com a luminária disparando feixes
vermelhos e azuis. Passamos por restaurantes e por uma pequena mercearia. Nada estava aberto e os raros automóveis se afastavam para que passássemos. Perto do café da rua Strawberry, carros-patrulha e viaturas sem placa alinhavam-se ao longo da rua estreita; uma ambulância tapava a entrada de uma travessa. Dois caminhões da televisão haviam estacionado um pouco mais abaixo. Em torno do perímetro isolado por fitas amarelas moviam-se incansavelmente os repórteres. Marino estacionou e nossas portas se abriram simultaneamente. As câmeras se voltaram imediatamente para nós. Fiquei atrás de Marino e deixei que ele me conduzisse no meio da multidão. Flashes batiam, os filmes rodavam e os microfones se erguiam. Os passos largos de Marino não se detiveram e ele não respondeu a nenhuma pergunta. Desviei o rosto. Tendo contornado a ambulância, passamos por baixo da fita. O velho Toyota bordô estava estacionado de frente no meio de um trecho estreito de paralelepípedos cobertos de neve escorregadia e suja. De um lado e de outro, feios muros de tijolos oprimiam a cena e tapavam os raios oblíquos do sol baixo. Os policiais estavam tirando fotografias, discutindo e olhando ao redor. Dos telhados e escadas de incêndio enferrujadas a água pingava lentamente. No ar úmido e agitado pairava um cheiro de lixo. Quase não reparei que o jovem oficial de aparência latina que falava num rádio portátil era alguém que eu encontrara recentemente. Tom Lucero olhava para nós enquanto resmungava alguma coisa e desligava. Do lugar onde eu estava, tudo o que via pela porta aberta do Toyota eram um quadril e um braço esquerdo. Um calafrio percorreu meu corpo quando reconheci o casaco preto de lã, a aliança de ouro escovado e o relógio preto de plástico. O crachá vermelho de perita legista estava enfiado entre o para-brisa e o painel. “As placas são de Jason Story. Imagino que é do marido. Na bolsa tem a identidade dela. O nome na carteira de motorista é Susan Dawson Story, vinte e oito anos, branca, sexo feminino”, disse Lucero a Marino. “Dinheiro?” “Onze dólares na carteira e uns cartões de crédito. Até agora nada que sugira roubo. Você pode reconhecê-la?” Marino se inclinou para ver melhor. Os músculos de seu queixo incharam. “É. Reconheço. O carro foi encontrado assim?” “Abrimos a porta do motorista. Só isso”, disse Lucero, enfiando o rádio portátil no bolso. “O motor estava desligado e as portas destrancadas?” “Estavam. Como eu disse a você pelo telefone, Fritz reparou no carro quando estava numa patrulha de rotina. Por volta das três horas da tarde, mais ou menos, e reparou no crachá de perita no para-brisa.” Olhou para mim. “Se você for até o lado do passageiro e der uma olhada, vai ver sangue na região do ouvido direito. O cara fez um trabalho bem-feito.”
Marino recuou e explorou a neve remexida. “Não parece que a gente vai ter muita sorte com as pegadas.” “Tem razão. Está derretendo que nem sorvete. Já estava quando a gente chegou.” “Cápsulas de bala?” “Não.” “A família já sabe?” “Ainda não. Pensei que você podia cuidar disso”, disse Lucero. “Descubra quem são os pais dela e onde moram, e não vaze para a imprensa antes de a família saber. Pelo amor de Deus.” Marino voltou sua atenção para mim. “O que você quer fazer aqui?” “Não quero tocar em nada dentro do carro”, murmurei, vigiando os arredores enquanto apanhava a câmera: Estava alerta e pensava com clareza, mas minhas mãos não paravam de tremer. “Me dê um minuto para olhar e aí a gente a põe na maca.” “Vocês estão prontos para a remoção?”, perguntou Marino a Lucero. “Estamos.” Susan vestia jeans desbotado, calçava botinas cambaias de amarrar e seu casaco preto de lã estava abotoado até o queixo. Quando reparei na ponta do lenço vermelho de seda que aparecia em cima da gola, meu coração se apertou. Ela estava de óculos escuros recostada no banco do motorista como se, bem instalada, tivesse cochilado. Havia uma marca avermelhada na forração cinza-claro atrás de sua cabeça. Dei a volta para o outro lado do automóvel e vi o sangue que Lucero mencionara. Comecei a tirar fotografias, detive-me e me inclinei até o rosto dela, sentindo a fragrância desmaiada de uma água-de-colônia claramente masculina. Reparei que o cinto de segurança estava aberto. Só depois da chegada dos patrulheiros e quando o corpo de Susan já estava na maca dentro da ambulância foi que toquei sua cabeça. Passei longos minutos procurando ferimentos de bala. Encontrei um na fronte direita e outro na parte de trás do pescoço, onde o cabelo acabava. Corri meus dedos enluvados por seu cabelo castanho, procurando mais sangue, mas não encontrei. Marino subiu para a parte de trás da ambulância e me perguntou: “Quantas vezes ela foi atingida?”. “Encontrei duas entradas. Não encontrei saídas, mas pude sentir uma bala debaixo da pele que cobre o osso temporal esquerdo.”
Ele olhou o relógio nervosamente. “Os Dawson moram aqui perto. Em Glenburnie.” “Que Dawson?” Tirei as luvas. “Os pais dela. Tenho de avisá-los. Agora. Antes que algum boi-corneta vaze alguma coisa e o pessoal acabe sabendo do negócio pela porra do rádio ou da TV. Vou arranjar uma viatura para levar você para casa.” “Não. Vou com você. Acho que devo ir.” Quando partimos, as luzes da rua estavam acendendo. Marino tinha o olhar fixo e seu rosto estava perigosamente rubro. “Droga! Puta merda! Atiraram na cabeça dela. Atiraram numa mulher grávida”, explodiu, socando o volante. Olhei para fora da janela lateral e meus pensamentos estavam confusos, cheios de distorções e imagens fragmentadas. Pigarreei. “Já encontraram o marido?” “Em casa não respondem. Pode ser que ele esteja com os pais dela. Meu Deus. Detesto esse trabalho. Ah, Senhor. Não quero fazer isso. Puta feliz Natal. Bato na porta e você está fodido porque vou lhe contar um troço que vai arruinar sua vida.” “Você não arruinou a vida de ninguém.” “É, então se prepare, que vai começar.” Virou a esquina na Albermala. Na beira da calçada, sacos estufados com o lixo do Natal amontoavam-se junto às latas enormes. As janelas resplandeciam, algumas com as luzes policromas das árvores. Pelo passeio, um jovem puxava seu filho pequeno num trenó. Os dois sorriram e acenaram para nós. Glenburnie era o bairro das famílias de classe média, dos jovens profissionais liberais, solteiros, casados e gays. Nos meses quentes as pessoas se sentavam à porta e cozinhavam ao ar livre. Davam festas e cumprimentavam-se nas ruas. A modesta casa dos Dawson era em estilo Tudor, confortável e arejada, e tinha na frente sempre-vivas caprichosamente aparadas. As luzes estavam acessas nas janelas de cima e de baixo, e no meio-fio havia uma caminhonete velha. A campainha foi respondida por uma voz de mulher do outro lado da porta: “Quem é?”. “Senhora Dawson?” “Sou eu.”
“É o detetive Marino, do departamento de polícia de Richmond. Preciso falar com a senhora”, disse ele em voz alta, mostrando a insígnia pelo olho mágico. A fechadura rangeu e meu pulso disparou. Durante minhas várias residências médicas eu tinha visto pacientes gritarem de dor, pedindo que não os deixasse morrer. Eu os acalmava com mentiras, “Você vai ficar bom”, e eles morriam segurando minha mão. Eu dissera “Meus sentimentos” a pessoas desesperadas em quartos sem ar onde até os capelães se sentiam perdidos. Nunca, porém, eu entregara a morte na porta de alguém no dia de Natal. A única semelhança que encontrei entre a sra. Dawson e a filha foi a curva forte do queixo. A sra. Dawson tinha feições retas e cabelo branco curto. Não podia pesar mais de quarenta e cinco quilos e parecia um pássaro assustado. Quando Marino me apresentou, o pânico encheu seus olhos. “O que aconteceu?”, conseguiu dizer depois de algum tempo. “Tenho notícias bens ruins para a senhora. É sua filha Susan. Parece que foi assassinada”, disse Marino. De uma sala ao lado veio o ruído de pés pequenos e uma menininha apareceu na porta à nossa direita. Parou e nos fitou com grandes olhos azuis. “Hailey, cadê o vovô?”, tremeu a voz da sra. Dawson, cujo rosto havia ficado lívido. “Lá em cima.” Hailey era uma garota miúda e esperta, de jeans e alpargatas de couro que pareciam novíssimas. Seu cabelo claro brilhava como ouro e ela usava óculos para corrigir um olho esquerdo preguiçoso. Calculei que teria no máximo oito anos. “Diga a ele para descer, e você e Charlie ficam lá em cima até eu ir buscar vocês”, disse a sra. Dawson. A criança hesitou e permaneceu junto à porta, enfiando dois dedos na boca. Desconfiada, olhava para mim e Marino. “Hailey, já.” Hailey partiu numa brusca explosão de energia. Sentamo-nos na cozinha com a mãe de Susan. Suas costas não tocavam a cadeira. Ela não chorou enquanto o marido não chegou, minutos depois. “Oh, Mack”, disse com voz fraca. “Oh, Mack.” Começou a soluçar. Ele pôs o braço em torno dela, puxando-a para si. Quando Marino explicou o que acontecera, o rosto dele empalideceu e ele apertou os lábios.
“É, eu sei onde é a rua Strawberry. Não sei por que ela iria lá. Que eu saiba, não é uma região aonde ela normalmente fosse. Hoje não ia ter nada aberto. Não sei”, disse o pai de Susan. “O senhor sabe onde está o marido dela, Jason Story?”, perguntou Marino. “Está aqui.” “Aqui?” Marino olhou em torno. “Está lá em cima, dormindo. Jason não está se sentindo bem.” “De quem são essas crianças?” “São do Tom e da Marie. Tom é nosso filho. Estão de visita para as festas e saíram no começo da tarde. Foram até o litoral visitar uns amigos. Devem estar de volta a qualquer momento.” Agarrou a mão da mulher. “Millie, esse pessoal tem muita coisa que perguntar. É melhor você chamar o Jason.” “Vamos fazer o seguinte. Prefiro falar com ele sozinho um minuto. Quem sabe a senhora não me leva até onde ele está?”, disse Marino. A sra. Dawson balançou a cabeça, escondendo o rosto nas mãos. “É melhor você ver o Charlie e a Hailey. Veja se consegue telefonar para sua irmã. Pode ser que ela venha até aqui”, disse-lhe o marido. Os olhos, de um azul pálido, seguiram a mulher e Marino enquanto saíam da cozinha. O pai de Susan era alto e de boa ossatura, e seu cabelo castanho-escuro era abundante e com poucos fios brancos. Seus gestos eram comedidos, suas emoções, contidas. Susan puxara a ele na aparência e quiçá no temperamento. “O carro dela é velho. Ela não tinha nada de valor para ser roubado e sei que nunca ia se envolver… com drogas e essas coisas.” Estudou meu rosto. “Não sabemos por que aconteceu, reverendo Dawson.” “Ela estava grávida. Como alguém pôde?”, disse ele, com as palavras presas na garganta. “Não sei. Não sei como”, respondi. Tossiu. “Ela não possuía arma.” Por um instante não entendi o que ele queria dizer. Depois compreendi e tranquilizei-o. “Não. A polícia não encontrou nenhuma arma. Não há indícios de que ela tenha feito isso a si
mesma.” “A polícia? A polícia não são vocês?” “Não. Eu sou a médica-legista chefe, Kay Scarpetta.” Ele me contemplou com estupor. “Eu era a chefe de sua filha.” “Oh. Claro. Desculpe.” “Não sei como consolá-lo. Eu mesma ainda não comecei a pensar no assunto. Mas vou fazer o possível para descobrir o que aconteceu. Quero que o senhor saiba disso”, disse, com dificuldade. “Susan falava na senhora. Ela sempre quis ser médica.” Desviou o olhar, retendo as lágrimas. “Estive com ela ontem à noite. Rapidamente, na casa dela”, hesitei, relutando em tocar em pontos delicados da vida deles. “Susan parecia preocupada. E ultimamente estava diferente no trabalho.” Ele engoliu em seco, com os dedos entrelaçados com força em cima da mesa. Os nós estavam brancos. “Temos de orar. A senhora quer orar comigo, doutora Scarpetta?” Estendeu a mão. “Por favor.” Quando seus dedos envolveram firmemente os meus não pude deixar de pensar na evidente desatenção de Susan para com o pai e em sua desconfiança quanto a tudo o que ele representava. Eu também sentia temor dos fundamentalistas. Senti-me angustiada fechando os olhos e dando a mão ao reverendo Mack Dawson enquanto ele agradecia a Deus uma misericórdia cuja prova eu não conseguia enxergar e invocava promessas que Deus já não tinha como cumprir. Abrindo os olhos, recolhi a mão. Seguiu-se um certo mal-estar, e temi que o pai de Susan tivesse adivinhado meu ceticismo e que ele fosse questionar minhas crenças. Contudo, o estado de minha alma não era o objeto de seus pensamentos. Uma voz alta, um protesto abafado que não consegui entender, veio do andar de cima. Uma cadeira raspou o chão. O telefone tocou e tocou e a voz subiu novamente num grito primal de raiva e dor. Dawson fechou os olhos. Resmungou algo que me pareceu meio estranho. Achei que havia dito: “Fique em seu quarto”. “Jason esteve aqui o tempo todo”, disse ele. Pude ver as artérias pulsando em sua fronte. “Sei que ele pode falar por si mesmo. Mas só queria que a senhora soubesse disso por mim.” “O senhor falou que ele não estava se sentindo bem.”
“Acordou com um resfriado, um princípio de resfriado. Susan tomou sua temperatura depois do almoço e disse para ele ficar na cama. Ele nunca seria capaz de agredir… Bom.” Tossiu novamente. “Sei que a polícia tem de perguntar, tem de considerar situações domésticas. Mas o caso aqui não é esse.” “Reverendo Dawson, a que horas Susan saiu de casa hoje e aonde ela disse que ia?” “Saiu depois do almoço, depois que Jason foi para a cama. Acho que entre uma e meia e duas. Disse que ia à casa de uma amiga.” “Que amiga?” Fitou-me atentamente. “Uma amiga do colégio. Dianne Lee.” “E onde Dianne mora?” “Em Northside, perto do seminário.” “O carro de Susan foi encontrado na rua Strawberry, não em Northside.” “Acho que se alguém… Ela podia ter ido parar em qualquer lugar.” “Seria bom saber se ela chegou a ir à casa de Dianne, e de quem foi a ideia da visita.” Levantou-se e começou a abrir as gavetas da cozinha. Tentou três vezes até encontrar o catálogo telefônico. Suas mãos tremiam enquanto virava as páginas e discava o número. Pigarreando várias vezes, pediu para falar com Dianne. “Sei. O quê?” Escutou um momento. “Não, não.” Sua voz tremeu. “As coisas não vão bem.” Sentei em silêncio enquanto ele explicava e imaginei-o muitos anos antes orando e falando ao telefone quando enfrentara a morte da outra filha, Judy. Ao voltar à mesa confirmou meus temores. Susan não visitara a amiga naquela tarde nem houvera plano algum de visita. A amiga estava fora. “Está com a família do marido na Carolina do Norte. Há vários dias que está lá. Por que Susan mentiria? Não tinha razão para fazê-lo. Eu sempre disse a ela que não mentisse em hipótese alguma”, disse o pai. “Com certeza ela não queria que soubessem aonde ia ou quem ia ver. Sei que isso faz com que surjam especulações desagradáveis, mas vamos ter de enfrentá-las.” Ele contemplou as mãos. “Ela e Jason estavam bem?”
“Não sei.” Lutou para recuperar a compostura. “Santo Deus, outra vez, não.” De novo sussurrou curiosamente: “Vá para o quarto. Por favor”. Fitou-me em seguida com olhos injetados. “Susan tinha uma irmã gêmea. Judy morreu quando elas estavam no colégio.” “Eu sei, num desastre de automóvel. Susan me contou. Lamento muito.” “Ela nunca se recuperou. Pôs a culpa em Deus. Pôs a culpa em mim.” “Não tive essa impressão. Se ela culpava alguém, parece que era uma menina chamada Doreen.” Dawson puxou um lenço e silenciosamente assoou o nariz. “Quem?”, perguntou. “A menina da escola que diziam que era bruxa.” Ele balançou a cabeça. “Ela teria posto um feitiço na Judy.” Era inútil, todavia, explicar mais. Vi que Dawson não sabia do que eu estava falando. Nos viramos quando Hailey entrou na cozinha. Segurava uma luva de beisebol, e seus olhos mostravam que estava atemorizada. “O que você tem aí, querida?”, indaguei, tentando sorrir. Ela se aproximou de mim. Senti cheiro de couro novo. A luva estava amarrada com cordão e tinha na palma uma bola, como uma pérola grande dentro de uma ostra. “Tia Susan me deu. Precisa amaciar. Tenho de botar debaixo do colchão. Tia Susan falou que tem de ficar uma semana”, disse com uma voz débil. O avô pegou-a no colo. Mergulhou o nariz em seu cabelo, segurando-a bem. “Preciso que você vá um pouquinho para o quarto, meu bem. Você faz isso para mim para eu poder cuidar de umas coisas aqui? Um pouquinho só?” Ela balançou a cabeça, sem tirar os olhos de mim. “Que é que vovó e Charlie estão fazendo?” “Não sei.” Escorregou do colo avô e, relutantemente, nos deixou. “O senhor já disse isso antes”, eu disse. Ele pareceu perdido. “O senhor disse a ela para ir para o quarto. Eu ouvi o senhor dizer isso agora há pouco, murmurar um negócio sobre ir para o quarto. Com quem o senhor estava falando?”

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Dawson.” Seus olhos se encheram de lágrimas. Ouvi os passos de Marino na escada. Ele logo entrou na cozinha e Dawson, angustiado, murmurou a frase de novo. Marino olhou-o desconcertado. “Acho que seu filho chegou.” O pai de Susan começou a chorar descontroladamente enquanto as portas de um automóvel batiam na escuridão do inverno e ouviram-se risadas na entrada da casa. O jantar de Natal foi para o lixo e passei a noite andando pela casa e falando ao telefone enquanto Lucy permanecia no escritório com a porta fechada. Providências tinham de ser tomadas. O homicídio de Susan provoEle baixou os olhos. “Criança é egoísmo. O egoísmo sente intensamente, chora, não consegue controlar as emoções. Às vezes é melhor mandar o egoísmo para o quarto, como eu fiz com a Hailey agora há pouco. Para ele sossegar. Um truque que aprendi. Aprendi quando era menino, tinha de aprender; meu pai não reagia bem quando eu chorava.” “Chorar não tem nada de mais, reverendo cara uma crise na repartição. O caso dela tinha de ser sigiloso, e os fotógrafos mantidos longe de quem a houvesse conhecido.

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A polícia tinha de examinar sua sala e seu armário. Queria interrogar membros da minha equipe. “Não posso ir até lá”, explicou-me ao telefone Fielding, meu subchefe. “Compreendo”, eu disse, com um nó na garganta. “Não espero nem quero que ninguém vá até lá.” “E você?” “Eu tenho de ir.” “Meu Deus. Não acredito que isso tenha acontecido. Não acredito.” O dr. Wright, meu subchefe em Norfolk, gentilmente concordou em vir a Richmond na manhã seguinte. Como era domingo, ninguém mais estava no edifício, salvo Vander, que viera ajudar com a Luma-Lite. Se eu estivesse emocionalmente capaz de fazer a autópsia de Susan, teria recusado. A pior coisa que eu podia lhe fazer era correr o risco de que a defesa contestasse a objetividade e a opinião de um perito que também fosse seu chefe. Assim, sentei-me a uma escrivaninha no necrotério enquanto Wright trabalhava. De vez em quando, enquanto olhava a parede de cimento, eu ouvia um comentário qualquer queincompleto. Poucos pontinhos e alguma pólvora, mas a maior parte deve ter se perdido no cabelo. Tem um pouco de pólvora no músculo temporal. Muito pouco em ossos ou cartilagens.” “E a trajetória?”, perguntei. “A bala entrou pela face posterior do lóbulo frontal direito, atravessou a anterior, passou pelos gânglios basais, atingiu o osso temporal esquerdo e ficou presa no músculo debaixo da pele. É uma bala simples de chumbo, humm, revestida de cobre mas não encapsulada.” “E se fragmentou?”, indaguei. “Não. Agora temos esse segundo ferimento na nuca. Preto, margem queimada, com a marca do cano. Uma pequena laceração com mais ou menos dois décimosmedular. Subiu até a articulação entre o frontal e o parietal.” “Que ângulo foi?”, perguntei. “Bem inclinado para cima. Eu diria que ela estava sentada no carro quando recebeu esse ferimento, devia estar caída para a frente ou  ele havia me dirigido, junto com o tilintar dos instrumentos de metal e da água que corria. Não toquei em nenhum documento nem etiquetei um tubo que fosse. Não me virei para olhar. Uma vez perguntei: “Você sentiu algum cheiro nela ou na roupa? De água-de-colônia?” Ele parou o que estava fazendo e ouvi que dava vários passos. “Sim. Exatamente em torno da gola do casaco e  de centímetro nas bordas. Muita pólvora nos músculos occipitais.” “Contato direto?” “É. Parece que ele apertou forte o cano no pescoço. A bala entrou na junção do orifício magno com o C-1 e pegou a junção cervical-no lenço.”
“Você acha que parece colônia de homem?” “Humm. Acho que sim. É, eu diria que é uma fragrância masculina. Quem sabe o marido usa água-de-colônia?” Wright estava quase em idade de se aposentar; era um homem barrigudinho e calvo e tinha sotaque da Virgínia Ocidental. Era um patologista legal muito competente e sabia exatamente o que estava vendo. “Boa pergunta”, eu disse. “Vou pedir ao Marino para verificar. Mas o marido ontem estava doente e foi para a cama depois do almoço. Isso não quer dizer que ele não tivesse posto a colônia. Não quer dizer que o pai ou o irmão não estivessem usando a água-de-colônia, que passou para a gola dela quando a beijaram.” “Parece calibre pequeno. Não há orifícios de saída.” Fechei os olhos e escutei. “O ferimento da fronte direita tem quatro décimos de centímetro com um centímetro de fumaça — um padrão estava com a cabeça abaixada.”
“Ela não foi encontrada assim. Estava encostada no banco.” “Então acho que ele a arrumou desse jeito”, comentou Wright. “Depois que atirou. E eu diria que esse tiro que atravessou a articulação foi o último. Para mim ela já estava sem reação, com certeza caída, quando levou o segundo tiro.” De vez em quando eu podia aguentar, como se não nos referíssemos a alguém que eu conhecera. Depois sentia um tremor e as lágrimas acabavam por arrebentar. Duas vezes tive de sair para o frio do estacionamento. Quando ele chegou ao feto de dez semanas, uma menina, fugi para minha sala. De acordo com a lei da Virgínia, o nascituro não era pessoa e assim não podia ser morto, porque é impossível matar o que não é pessoa. “Duas pelo preço de uma”, comentou amargamente Marino, mais tarde, ao telefone. “Eu sei”, respondi-lhe, tirando um vidro de aspirina do bolso. “No tribunal ninguém vai dizer à merda dos jurados que Susan estava grávida. Não entra no caso, não faz diferença ele ter matado uma mulher grávida.” “Eu sei”, repeti. “O Wright está quase terminando. No exame externo não apareceu nada importante. Não se pode falar em pista, nada que tenha chamado a atenção. E do seu lado, o que há?” “Está claro que a Susan estava com algum problema.” “Problemas com o marido?” “Segundo ele, o problema dela era com você. Disse que você estava sacaneando, telefonando muito para ela em casa, ameaçando-a. E que às vezes ela vinha do trabalho meio pirada, como se estivesse se borrando de medo de alguma coisa.” “Susan e eu não tínhamos problema nenhum.” Tomei três aspirinas com um gole de café frio. “Só estou falando para você o que o cara disse. Outra coisa — acho que você vai achar isso interessante: parece que estamos com outra pluma. Não estou dizendo que o caso da Deighton tenha alguma relação com este, doutora, ou que eu pense assim. Mas, porra. Pode ser que a gente esteja lidando com algum pinta-brava que use luvas acolchoadas com plumas, ou uma jaqueta. Não sei. Não é comum. A única outra vez que encontrei plumas foi quando o elemento entrou numa casa quebrando o vidro e cortou a jaqueta num caco.” Minha cabeça doeu tanto que senti náuseas. “A que achamos no carro da Susan é bem pequenininha — um pedacinho de pluma branca”, prosseguiu. “Estava presa na forração da porta do passageiro. Do lado de dentro, perto do chão, uns centímetros abaixo do...

 

 

                                                                  

 

 

                                                   

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