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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEUSA DA LENDA / P. C. Cast
DEUSA DA LENDA / P. C. Cast

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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— Vão achar que eu prendi você aqui. — Coventina, a grande Deusa das Águas, virou o rosto, incapaz de fitar Merlin.

— Não estou preso, meu amor. Estou simplesmente descansando das trevas deste mundo — contrapôs ele, tocando-lhe o rosto suave, de modo que ela teve de reencontrar seu olhar. — E desde quando nos importamos com o que os outros dizem, Viviane?

Usar o apelido com que ele a tratava em seus momentos mais íntimos não a fez nem mesmo sorrir.

— É uma maldição ter a capacidade de prever o futuro — murmurou ela.

— De muitas maneiras, meu amor.

— Sim. Mas sempre previu isso para você? Para mim? Para nós? Por que deixa que eu o ame sabendo o que sabe?

— Há um homem em um futuro distante, um curandeiro chamado Phil. Ele afirma que o amor é o que é. Não tem futuro ou passado, apenas o presente.

— Esse curandeiro não me impressiona em nada — declarou Viviane. — Nós temos um passado e também poderíamos ter um futuro. Prevê-lo. Acreditar nele.

— Não consigo prever o nosso futuro, meu amor. Dói muito quando não me é permitido alterar o que vejo. — Ele suspirou. — O futuro de Artur e Camelot me feriu tanto que mais sofrimento me parece insuportável.

Ela fitou o rosto familiar à sua frente e viu a bondade, a força e a gentileza que tanto a tinham atraído. Mas também viu outra coisa: o semblante de Merlin aparentava estar marcado por um cansaço que o fazia parecer uma década mais velho do que alguns meses antes.

Se ainda houvesse uma maneira de ela aliviá-lo um pouco daquele fardo! Sabia que amar um mortal seria difícil, e que ela acabaria por perdê-lo eventualmente, porém Merlin era um poderoso druida, e ela nutria esperanças de que seus poderes mágicos, tão ligados à Terra, lhe dessem forças para viver como seu consorte por muito mais tempo do que um mortal comum.

Era irônico que a ruína de Merlin não tivesse sido o fardo de amar uma deusa. Em vez disso, o fato de ele ter se deixado envolver pela escuridão que parecia impregnar seu protegido humano, Artur Pendragon — um homem que era como um filho para ele —, é que havia feito o sacerdote querer se esconder do mundo a ponto de lançar um feitiço sobre si próprio e se transformar em um nada na prisão voluntária naquela caverna de cristal enganosamente bela.

Maldito Artur!... Por que ele não tinha escutado Merlin e escolhido outra mulher que não a jovem, linda e insípida Guinevere?

— Meu amor, por favor, não culpe Artur — falou Merlin, como se estivesse lendo seus pensamentos. — Não é culpa dele, ao menos não de todo. Muito menos de Guinevere. Nenhum de nós escolhe a quem ama. — Merlin se deitou nas acomodações que havia arrumado em um canto tranquilo da caverna de cristal. — Sei que estou sendo covarde, mas já previ o que vai acontecer com ele. Com todos eles. E também vi que nada posso fazer para mudar isso. É... — Ele fez uma pausa, parecendo à beira das lágrimas. — É como se Artur estivesse abraçando a própria destruição. Eu fiz tudo o que podia para ajudá -lo.
Já discuti com ele, dei-lhe conselhos, supliquei, tentei persuadi-lo... Nada dá certo. Em todas as imagens que vejo do futuro, a luz e a bondade de Artur são totalmente engolidas pelas trevas da inveja e da ganância, da luxúria e do ódio.

Viviane sentiu uma pontada de pânico quando Merlin fechou os olhos. Como poderia continuar para sempre com ele ali — nem vivo nem morto —, dormindo naquele túmulo belo e frio, onde ela não podia falar com ele, tocá-lo ou abraçá-lo?

— Mas, Merlin, deve haver uma maneira de interferir nesses acontecimentos. Deve haver um modo de salvar essa criatura! — “E, ao fazê-lo”, acrescentou para si mesma, “salvá-lo também”.

O mago balançou a cabeça.

— Está além do meu poder. E também do seu.

— Não pode estar além do meu poder! — choramingou a deusa, frustrada.

— Viviane, meu único amor... Sabe muito bem que nem mesmo os deuses estão a utorizados a interferir no equilíbrio entre a luz e a escuridão. Escolher entre essas duas forças é morte certa, e as trevas imperam em Camelot.

— É claro que sei disso! Mas sou imortal, detenho a verdadeira essência da vida... Devo ser capaz de salvar o seu filho para você.

— Temo que o destino dele esteja selado. Artur vai morrer com o coração partido. Traído por seu amor, caminhará de bom grado para a morte. Agora, por favor, minha deusa, meu amor... Deixe-me dormir.

Viviane caiu de joelhos ao lado do leito e pressionou o rosto contra a coxa de Merlin. Ele acariciou-lhe os cabelos dourados num gesto fraco.

— Estou tão cansado... — sussurrou.

Conforme seus olhos se fecharam novamente, talvez pela última vez, Viviane sentou-se, o coração batendo com um despontar de esperança.

— Espere! Merlin, você disse que não há nada neste tempo ou realidade capaz de fazer com que Artur mude de ideia. Mas será que algo, ou talvez alguém , de outro tempo ou realidade não poderia provocar uma mudança? Já vislumbrou essa possibilidade e viu algum fracasso?

Os olhos azuis de Merlin se abriram e encontraram os dela.

— Nunca considerei nenhum futuro regido por outro tempo ou existência. Sabe que não posso manipular o curso dos acontecimentos nem a realidade. — A voz de Merlin soou suave, quase inaudível.

— Você não pode, mas eu posso! — Viviane o sacudiu pelos ombros. — Precisa considerar, então, meu amor, e dar a esse futuro uma chance!

— Não posso fazer isso — murmurou ele. — A magia está feita. Além disso, não se pode apenas lançar uma rede nas águas do tempo ou nas ondas da realidade. Há que se ter um plano, uma razão, uma alma única...

— Mas eu posso tentar! Vou olhar o futuro e ver se...

— Eles nem mesmo nos conhecem no futuro! — Por um instante, em meio ao acesso de raiva, Merlin pareceu ele mesmo novamente. — No futuro você não é mais do que uma lenda, e eu não passo de um mentor ausente, muitas vezes culpado por todo o desastre.

Viviane ficou horrorizada. Como as pessoas podiam se esquecer dela? Ela era a deusa das águas do mundo antigo! Elas iriam esquecê-la? Não , pensou. Se ela armasse um plano... um plano bom — tão eficiente quanto ela própria —, não apenas salvar ia seu amado, como iria garantir que seu nome e legado vivessem para sempre.

E bom seria se salvasse aquele imbecil do Artur também.

Como o futuro podia culpar Merlin pelas más escolhas de um rei? Aquilo também precisava ser corrigido.

E, maldição , ela seria a deusa a fazê-lo!

— Vou encontrar uma maneira, meu amor. Vou, sim.

Merlin soltou uma risada fraca.

— Ah, Viviane, é isso o que eu amo em você... Essa sua paixão. Essa sua vontade de fazer a coisa certa. Essa sua devoção a mim. Como é possível que um simples mago tenha tido a sorte de ser amado por um ser tão maravilhoso?

Ela acariciou-lhe o braço.

— Não há nada de simples em você, meu querido. Disso eu sei. Há bondade, isso sim. A generosidade emana dessa sua alma como se o Sol a tivesse beijado e deixado nela seu brilho. Talvez seja justamente por essa generosidade que nos encontramos nesta situação... Mas vou encontrar uma saída. Prometo.

Merlin deu de ombros e deitou-se outra vez, exalando a energia que o tinha animado.

— Mesmo que encontre alguém para ajudá-la... Não pode apenas substituir uma vida. Sabe disso. Almas não podem ser arrancadas sem qualquer cuidado em prol de vidas perdidas e futuros despedaçados. O equilíbrio e a razão precisam prevalecer.

Viviane se inclinou para a frente e tomou Merlin nos braços.

— Mas se, por alguma maravilhosa guinada do destino, eu conseguir... Jura que vai voltar para mim?

Ele a fitou demoradamente nos olhos, e Viviane viu a compaixão e o amor duelarem com a dor e o cansaço. Por fim, Merlin ergueu a mão e começou a girá-la.

Atada a ti, Artur,

deixo uma parte de mim...

Meu futuro ao teu se une,

teu destino ao meu se entretece.

Sobrevive e dá-me, assim,

uma razão para viver, nesta prece.

A energia que brotou em torno da mão de Merlin foi visível — uma cintilação no ar. Com um gesto de resignação, mais do que de esperança, ele arremessou a força reluzente além das paredes de sua tumba de cristal, e ambos estremeceram ao absorver o feitiço.

— Pronto. Está feito. Salve Artur e estará me salvando. — Merlin curvou-se e beijou a deusa, partilhando seu último suspiro de vida com ela.

Chorando, Viviane se afastou de seu amado, que silenciara, envolvido pela magia do sono eterno. E esta o protegia completamente do sofrimento daquela vida, a ponto de ele conseguir escapar até mesmo do Submundo, onde as lembranças atormentariam sua alma.

Devagar, ela se levantou e o cobriu com uma peliça espessa. Beijou-o uma vez na testa fria e, em seguida, virou-se e marchou, resoluta, para fora da caverna de cristal. “Iriam se esquecer de mim? Culpar Merlin? Claro que não. Artur que se preparasse.”

Viviane se envolveu em bruma quando deixou a caverna que dava para seu lago místico. Em uma onda de magia, seu poder a carregou sobre a água até a ilha verde e luxuriante que a cortina de névoa revelou ao se dissipar. Caminhou, apressada, para a graciosa torre de pedra, única estrutura na ilha, que os moradores, havia muito, tinham batizado de Shalott. Cercada por sorveiras bravas, e envolta na própria magia, ela não precisaria da ocultação da névoa; contudo, a invocou inconscientemente. Não desejava nenhuma testemunha inconveniente para o que estava prestes a realizar.

Não entrou na torre de marfim como costumava fazer. Em vez disso, caminhou de um lado para o outro ao longo da ribanceira, arrastando a túnica branca de samito em meio às flores do campo que forravam aquela ilha tão especial. O poder girava em torno dela, fazendo com que as aves, recém-despertadas pelo amanhecer, grasnassem, alarmadas, e deixassem seus poleiros no bosque de sorveiras. Ela aspirou o perfume almiscarado de musgo e o odor pungente do tomilho selvagem que a cercavam, conforme violava sua suavidade com os pés.

Como podia ter permitido que aquilo acontecesse? Soubera que Merlin fora ferido pelo mundo no momento em que o conhecera. Ele era um druida poderoso, contudo possuía uma delicadeza incomum e um coração tão terno que até mesmo as criaturas selvagens da floresta vinham comer em sua mão.

Viviane sorriu em meio às lágrimas. Merlin a atraíra da mesma forma, arrancando-a de sua ilha solitária no meio do seu místico lago. Ela se tornara sua amante voluntariamente. E, como uma deusa, não podia conceber não ser capaz de curar o que o mundo partira dentro dele.

— Eu podia tê-lo curado se não fosse por esse maldito Artur! — gritou. As palavras carregadas de ressentimento fizeram as águas plácidas do lago se agitarem, e suas frias profundezas azuis escureceram, amea­ çadoras, ao mesmo tempo que a luz da manhã esvaecia. Ela franziu a testa, ergueu a mão e, controlando a raiva, moveu os dedos na direção do lago, ordenando: — Vá embora, escuridão! Não é bem-vinda ao meu reino nem mesmo quando provocam a minha ira!

As águas obedeceram de pronto. Acalmaram-se, e as trevas que tinham começado a manchá-las se dissiparam como o orvalho ao sol do meio-dia.

Viviane fitou o lago que lhe era tão familiar, mais perturbada do que gostaria de admitir diante da rapidez com que tais profundezas haviam reagido às suas emoções. A escuridão realmente tocara o lago, o que era alarmante.

— Equilíbrio entre luz e escuridão? Bah! — Ela lançou a palavra na névoa, porém, dessa vez, manteve a reação à sua explosão sob controle. O ar carregado de umidade em torno dela se agitou e cintilou, refletindo o poder da deusa. — Não existe equilíbrio quando um único mortal pode atrair tanta escuridão a ponto de meu reino ser afetado.

Eu deveria ser honesta comigo mesma , pensou, conforme se punha a andar de um lado para o outro ao longo da margem forrada de musgo. Não é tão simples como concentrar minha raiva no rei dos bretões. Guinevere também é responsável por essa tragédia. Assim como Lancelot, o cavaleiro ‘perfeitinho ’ , concluiu a deusa com uma careta.

Merlin não compartilhara muitos dos segredos de Camelot com ela. Havia dito que ela era uma fuga, um bálsamo para sua dor, e que, por esse motivo, preferia não lhe falar de coisas tristes.

Mas a Dama do Lago tinha olhos e ouvidos em todos os lugares onde existia água, e ela vira e ouvira o suficiente para saber que as previsões terríveis de Merlin iriam se tornar realidade.

— E essa realidade foi o que partiu seu coração, meu amor — sussurrou Viviane para a bruma.

Não. Não permitiria aquilo. Era uma deusa! Possuía poderes que os mortais não podiam sequer compreender. Nem mesmo um mortal tão espetacular quanto o seu Merlin.

Parou de andar e olhou para as águas familiares de seu lar. — Preciso de alguém que não seja deste tempo, nem deste lugar. Alguém que tenha uma maneira única de ver as pessoas e as situações, que abrace a luz em vez da escuridão. Que não fique muito impressionado com a beleza de Camelot, nem muito deslumbrado para pensar em...

Pensar em quê? O que essa pessoa precisava fazer para mudar o futuro, a ponto de salvar Artur de seu trágico destino e, ao mesmo tempo, libertar seu amado Merlin?

Seu amado... Viviane sentiu os ombros cederem e pressionou o rosto nas mãos, chorando com amargura. Já sentia falta dele e teve de lutar com as próprias emoções para não correr de volta para a caverna de cristal e sentar-se ao lado do corpo imóvel.

Sentiu a respiração ficar presa em um soluço. Ela era uma deusa, mas também era uma mulher. Uma mulher com um coração partido diante da perda de seu amado. Até mesmo seu reino, que lhe dera um profundo prazer por eras, parecia sem graça agora. Nada tinha sentido sem...

Viviane ergueu a cabeça.

— É isso! Artur pode perder tudo, mas, se ainda tiver seu amor, sua Guinevere, então não terá o coração partido, e seu destino vai mudar!

Entusiasmada, ela recomeçou a andar.

— É o que devo fazer. Preciso encontrar uma mulher... Uma mulher espetacular, de outro tempo, outro lugar, e trazê-la até aqui para seduzir Lancelot, de modo que Guinevere volte para Artur e seja um bálsamo para sua alma ferida!

Tudo ficaria bem. Merlin despertaria e — Viviane decidiu — iria fazer amor com ela como nunca fizera antes. Ah, como ela sentia falta daquilo! Merlin era um mago em mais maneiras do que qualquer um daqueles tolos de Camelot podia imaginar.

Resoluta, caminhou até a beira d’água, permitindo que os pés descalços fossem acariciados pelo beijo das marolas que vinham de encontro à margem. Levantou os braços, e a névoa tornou-se mais densa no mesmo instante, girando magicamente à sua volta, como se já aguardando pelo feitiço.

Das profundezas, meu poder eu invoco.

Ouçam-me todos, neste momento —

lago, chuva, neblina, orvalho e mar.

Uma estrangeira é do que necessito.

Uma alma única é meu desejo encontrar!

A deusa fez uma pausa, lembrando-se do aviso de Merlin de que uma vida não poderia ser desviada de seu destino. Pensou em ignorar as palavras do amante e lidar com as consequências mais tarde, mas não... O feitiço precisava ser perfeito. Ela teria apenas uma chance. As coisas já começavam a sair do controle em Camelot; logo seria tarde demais para intervir no futuro, se já não o fosse.

Não! Não pensaria dessa forma. Ela era uma deusa e, por meio da magia de seu reino aquático, iria mudar o destino de Artur e salvar seu amado.

Tornou a se concentrar, invocando o poder das profundezas do lago, que se espalhou tal qual vidro ondulado a seus pés.

Tragam até mim uma mortal através desse divino portal.

Seja essa libertada de seu porvir.

Que se rompa o fio de seu destino, para que a mim ela possa vir.

Viviane fechou os olhos, concentrando-se com tanta força que gotículas de suor lhe irromperam pela tez delicada.

Que seus olhos possam ver seu maior desejo, o amor deve ser.

Que aberta e brilhante seja sua mente, que um novo mundo se descortine à sua frente.

Que a vida e o amor sejam seu fascínio, invadindo a escuridão que haverá de curar.

É essa alma que busco agora e que com água e sabedoria irei vincular.

Lago, mar, chuva, neblina e orvalho — busquem e encontrem a mortal por meio da qual Artur irá se salvar!

Arremessando a esfera de luz que vinha crescendo entre suas mãos conforme ela elaborava o feitiço, Viviane abriu os braços, emanando seu desejo, seu poder, sua magia divina para dentro do lago.

Imediatamente, as águas mudaram de um azul-safira profundo para um prata tão ofuscante que se um mortal houvesse tido o azar de vislumbrar tal transformação, teria sido cegado para sempre.

Bela e iluminada ela deve ser; as circunstâncias precisa de pronto compreender.

Proveitosas lhe são a felicidade e a sabedoria e um pouco de malícia bom seria...

Ide agora! Atendei ao meu desejo!

Minha ordem tende que obedecer!

A superfície brilhante do lago girou em torno de Viviane e, em seguida, fachos cintilantes começaram a se levantar. Luzes serpentearam sobre a água, buscando, inquietas.

— Vão! — bradou a deusa, impaciente, e os fios iluminados foram se erguendo, se erguendo... até dispararem pelo céu da manhã e desaparecerem daquela dimensão em direção a tempos invisíveis e lugares desconhecidos.

Viviane ainda continuou a olhar o firmamento por muito tempo após sua magia ter se dispersado. Então, com um suspiro, avançou devagar, permitindo que a água a envolvesse e a reconfortasse enquanto flutuava até o palácio feito de pérola, que repousava nas profundezas. Agora devia esperar e torcer para que o feitiço atraísse a mortal ideal até a sua rede divina.

“Ah, se eu pudesse descobrir a mulher certa!”, refletiu a deusa enquanto adentrava seu palácio, afastando, impaciente, as servas náiades que a rodearam, ansiosas por atender a todas as suas necessidades. “Pois não era sempre assim? A mulher certa era a única coisa capaz de transformar qualquer maldito destino...”

 

 

 


 

 

 


Capítulo Um


Isabel concluiu que a manhã não poderia estar mais perfeita. Bem, talvez melhor se ela estivesse se recuperando de uma deliciosa noite de sexo...

Mas não era esse o caso. Não naquele dia, e decerto nem no seguinte. Na verdade, dificilmente tal coisa aconteceria naquela década.

Mesmo assim, o dia estava lindo.

Terminou de ajustar o tripé que sustentava a sua câmera favorita e então endireitou o corpo, aspirando o ar adocicado de Oklahoma. Não olhou através da lente da câmera, como faria a maior parte dos fotógrafos. Claro que iria fazer aquilo em algum momento, mas confiava mais no olho nu do que em qualquer lente, não importando a clareza, a amplitude ou a qualidade do telefoto.

Estudou a paisagem diante dela enquanto tomava um gole do café vienense torrado, e teve um vislumbre de si mesma na superfície prateada da garrafa térmica. Mesmo na imagem distorcida pôde ver que estava sorrindo. Seus lábios, sobre os quais todos os seus namorados costumavam comentar, pareciam agora enormes lábios de palhaço.

Os homens os adoravam, porém ela vivia tentando disfarçá-los. Não acreditava nem por um segundo que os de Angelina fossem de verdade, porém, infelizmente, sabia muito bem que os dela eram.

— “ Logo que a Aurora, de dedos de rosa , surgiu matutina ” — murmurou, surpreendendo-se com a citação de Homero. — Muito apropriado...

Isabel suspirou, satisfeita. A luz ali era perfeita! A pradaria Tallgrass de Oklahoma fora a escolha certa para começar seu novo ensaio que envolvia paisagens idílicas. Era início da primavera, contudo o rebordo diante dela já estava forrado de gramíneas que lhe batiam nos joelhos e que ondulavam tal qual um mar à brisa da manhã. O ar tinha um perfume de chuva iminente, mas tantos outros aromas a inundavam! A pradaria, o lago, o odor ocasional de um gambá. Natureza. Que máximo!

O céu era uma explosão de tons pastel contra um pano de fundo formado por nuvens densas que preenchiam a estratosfera lá no alto — testemunhas silenciosas da tempestade que desabaria ao meio-dia. Isabel mal deu atenção a tal previsão, contudo. Já terá ido embora antes que a primeira gota de chuva caia. Mas, mesmo que o mau tempo a espantasse dali, ela não se importava. A cumeeira à sua frente, sob aquele céu de algodão-doce, era a paisagem perfeita para a foto de capa de seu ensaio. E o cenário estava pontilhado com bisões. Os olhos de Isabel cintilaram quando ela os avistou. Começou a enquadrar as fotos, criando arte com o olhar da mente. Os enormes animais pareciam atemporais à luz inconstante do amanhecer, ainda mais porque estavam em pontos onde não havia postes de telefonia nem casas modernas. Tampouco se viam estradas ao redor deles. Eram apenas os bichos, a terra e aquele céu inacreditável.

Isabel tomou outro gole do café antes de pousar a caneca e se concentrar na câmera para focar as primeiras fotos. Conforme trabalhava, uma sensação de paz a invadia, e sua pele se arrepiou com prazer.

— E você pensando que tinha perdido o dom — falou em voz alta para si mesma, permitindo que o som preenchesse o espaço vazio ao redor. — Pois não perdeu — murmurou enquanto focava a teleobjetiva, centralizando um bisão enorme, com o céu em tons de rosa ao fundo. — Só perdeu o sossego que vinha com ele.

Que ironia a coletânea de fotos do USA Today batizada de Paz? tê-la feito perder a perspectiva sobre o assunto.

— O Afeganistão vai fazer isso. — Isabel bateu várias fotografias do bisão.

Pensando bem, devia ter imaginado que o trabalho seria difícil. Mas ela fora arrogante.

Droga. Era repórter fotográfica — uma repórter fotográfica bem-sucedida e premiada — havia vinte anos. Não era mais nenhuma mocinha ingênua, e sim uma mulher segura de 42 anos — o que era parte do problema. O excesso de confiança na própria capacidade a cegara para a realidade de enxergar as coisas como elas eram.

Não que ela não houvesse estado em zonas de guerra antes. A Bósnia, as Malvinas e a África do Sul já tinham desfilado diante de sua lente. Mas algo diferente acontecera no Afeganistão. “Não estava sendo eu mesma. De alguma forma, perdi a perspectiva e me deixei invadir por aquele caos e escuridão”, admitiu Isabel para si mesma enquanto mudava o ângulo do tripé e disparava vários quadros, capturando um bezerro que brincava em volta da mãe que pastava.

Tudo começara com o soldado Curtis Johnson, o rapaz de olhos castanhos e doces, cujo rosto jovem era mais bonitinho do que belo. Não podia ter mais do que vinte e cinco anos e flertara escandalosamente com ela enquanto a acompanhara até o jipe em que ela iria viajar: bem no meio do comboio de suprimentos que partiria da base aérea americana até um dos pequenos povoados nativos que ficavam a poucos quilômetros, na estrada esburacada.

Na verdade, Curtis era tão bonito e inteligente que ela cogitara até abrandar sua regra de não ter nenhum caso enquanto estivesse trabalhando. Havia calculado a diferença de idade entre eles e decidido que, diabos, se o jovem e sexy Curtis não dava a mínima para o fato de ela ser quase vinte anos mais velha, então por que ela deveria se importar?

Foi quando a bomba explodira na lateral da estrada. Ela havia posicionado a câmera no automático e, em meio à fumaça, ao fogo, à escuridão e ao horror, capturara algumas das imagens mais impactantes de sua carreira — imagens que incluíam Curtis Johnson, cuja perna direita e cujo musculoso braço direito tinham sido arrancados na explosão.

Ela jamais tivera a intenção de capturá-lo nas fotos. Não percebera nem mesmo que Curtis fizera parte da detonação... Quisera apenas seguir seu instinto de fotografar a realidade. A verdade, entretanto, explodira literalmente na sua cara, e ela quase sucumbira.

Os olhos de Curtis continuaram gentis, mesmo quando se nublaram com o choque. Antes de perder a consciência, ele ainda se preocupara com ela, gritando para que ela se abaixasse... para que se abrigasse... Depois tinha sangrado na areia seca do deserto e morrido em seus braços. O inferno parecia ter desabado ao seu redor, então, e tudo do que ela se lembrava era de gritar e proteger a câmera. Precisava manter as fotos de Curtis ainda vivo. Pela família dele... Por ela.

Isabel estremeceu. Percebeu que havia parado de fotografar e estava parada ao lado do tripé. Levantou a mão e tocou o rosto frio. Estava molhado.

— Preste atenção ao que está fazendo! — disse a si mesma. — Esta é a chance de recuperar seu equilíbrio, sua normalidade. — “E de superar a dor.”

Tratou de se recompor, como o pai sempre lhe ensinara; livrou-se das lágrimas, das lembranças, e se concentrou no trabalho.

Balançando a cabeça, voltou para o enquadramento da câmera com um sorriso sarcástico. Suas melhores amigas sem dúvida diriam que o “normal” de Isabel Cantelli não chegava nem perto do normal da maioria das pessoas. Ela quase podia ouvir as gozações da turma. Meredith daria de ombros e afirmaria que o normal dela sempre lhe fizera bem — com certeza lhe trouxera muito sucesso. Robin sacudiria a cabeça e diria que ela precisava mais era ter um homem em tempo integral, e não apenas uma sequência de amantes bonitos. Kim iria dissecar sua psique e, eventualmente, concordar com Robin, afirmando que um relacionamento mais consistente a ajudaria a se firmar. E Teresa iria declarar que ela precisava mais era correr atrás de qualquer coisa que a fizesse feliz.

Até um mês antes, e a viagem ao Afeganistão, ela teria rido, revirado os olhos, se servido de mais champanhe e dito que sua vida nômade, livre das amarras de qualquer homem, era o que a fazia feliz.

Então Curtis Johnson cruzara seu caminho, mudando sua visão de mundo. Daquela nova e nebulosa perspectiva, ela percebera que vinha enganando a si mesma havia um bom tempo. Ou talvez fosse mais preciso dizer que andava à procura de si mesma por um bom tempo. Em algum ponto, em meio àquela carreira de sucesso e ao grupo de amigas inteligentes e articuladas, em meio àquela vida ao mesmo tempo excitante e confortável, ela se perdera.

Por isso estava ali, na pradaria de Tallgrass, em Oklahoma, fazendo a única coisa que sabia para se equilibrar: vendo a vida através da câmera e buscando seu verdadeiro rumo mais uma vez, de modo a encontrar uma maneira de navegar através da paisagem acidentada de sua vida. Seu plano parecia estar dando certo até que deixara a mente vaguear e os olhos reverem o passado. O passado continha lembranças boas e ruins, momentos de alegria e de um medo ridículo. Se havia uma emoção que nunca experimentara, não sabia dizer ao certo o que era. Precisava de algo que lhe desse novamente um choque de prazer. Se ainda pudesse adivinhar o quê. O importante era que a beleza natural de Oklahoma parecia estar surtindo algum efeito no momento.

— Então, concentre-se! — lembrou a si própria, e ficou satisfeita ao retornar com facilidade à tarefa de enquadrar a linda paisagem à sua frente.

Na vez seguinte em que mudou o tripé, Isabel vislumbrou a luz da manhã emanando de uma superfície que ela percebeu ser água serpenteando por uma espécie de canal à sua direita. Intrigada, como sempre, pelas nuances na paisagem, seguiu naquela direção, adorando a surpreendente visão de um banco de areia e de um córrego claro e borbulhante, escondido em meio à chamada Cross Timbers , a floresta típica da região.

Ao chegar mais perto da água, notou que um único raio de sol penetrara as sombras verdes das árvores, de modo que uma pequena parte do riacho estava iluminada como se por um facho de prata. E esse facho a atraiu como um ímã.

Isabel guiou-se pelos próprios instintos. Desceu rápida e silenciosamente a margem, deixando o tripé para trás. Conforme estacou no solo arenoso, ajoelhou-se de maneira a permanecer pouco acima da água, focou a lente e começou a bater foto após foto, mudando o ângulo e a distância da água conforme trabalhava. Hipnotizada pela qualidade única da luz, permitiu que a magia da lente varresse a tristeza que pensar no Afeganistão e no soldado morto lhe causara. Havia mudado de posição e estava deitada de bruços — com os cotovelos plantados na areia — quando a moita no lado oposto da margem se agitou e, acompanhado por um forte estalar de galhos, um bisão se fez ver.

Mal ousando respirar, Isabel continuou clicando enquanto o enorme animal se aproximava da água. Ele bufou uma vez, decerto sentindo o cheiro de um intruso, mas então a ignorou por completo, baixou o focinho preto e bebeu ruidosamente.

Isabel se perguntou que cheiro devia ter para ele. O bicho virara a cabeça de um lado para o outro até avistá-la. Ela não chegara a sentir muito medo, portanto, não acreditava que isso lhe houvesse chamado a atenção. Teria ela apenas o cheiro de um humano? Não estava usando nenhum perfume e permanecia deitada, imóvel. Não era possível que o animal a tivesse ouvido. O que o fizera olhar na sua direção? E por que seu olhar parecia tão antigo e sábio? Quando o bisão se afastou do córrego, balançou a cabeça para cima e para baixo, lançou-lhe mais um olhar insondável e, em seguida, virou-se e galopou para longe com uma agilidade que ela jamais creditaria a um animal de porte tão surpreendente.

Isabel sentiu um tremor atravessá-la e mexeu na câmera para olhar as fotos que tinha tirado do bicho. O bisão havia ficado bem debaixo do facho de luz. Orvalho matutino revestia a pelagem do gigantesco touro, de modo que, por meio da lente, ele parecia envolto em diamantes e névoa. Ele acenara para ela! Como se estivesse aprovando a sessão de fotos. E, quando o bicho se virara e partira, seu único pensamento fora o de que qualquer macho humano daria tudo para ter o equipamento que aquela criatura carregava.

Isabel sentou-se e riu alto, satisfeita ao pensar que a beleza e a paz daquela terra antiga começavam a fazer exatamente o que ela esperava quando discutira a ideia do livro com seu agente: começara a aliviar sua alma e ajudá-la a moldar sua criatividade em torno de algo mais tolerável do que apenas morte e destruição.

Num impulso, chutou para longe as botas para caminhada e arrancou as meias. Enrolou as barras das calças e, ainda segurando a câmera, avançou cuidadosamente um passo para dentro da água cristalina. Prendeu a respiração e soltou o ar com força diante do frio inicial. Após mais alguns passos, porém, seus pés se acostumaram com a temperatura do córrego, e ela seguiu até o facho de luz solar que, poucos minutos antes, enquadrara o bisão. Ao chegar ao ponto iluminado, ergueu o rosto, banhando-se com o esplendor da manhã, enquanto a água fria lhe acariciava os pés e tornozelos.

Havia algo naquele lugar que mexia com ela. Talvez fosse o drástico contraste entre a liberdade serena da pradaria limpa, verde e exuberante e o Oriente Médio devastado pela guerra, onde tudo em que pousava os olhos estava queimado e esturricado, ou então mergulhado em um verdadeiro pesadelo de conflitos. Respirou fundo, inalando e exalando o ar; imaginando, a cada respiração, que se livrava de toda a negatividade que trazia dentro de si mesma, e permitindo que a água lavasse os vestígios de morte e de guerra que pareciam impregnados nela naquele último mês. Sem parar para se perguntar o motivo, ou concluir que fazia papel de boba, Isabel expôs seus pensamentos mais íntimos em voz alta, em meio ao riacho atento, emoldurada pelo facho de luz.

— É disso que eu preciso: uma nova perspectiva, uma nova visão... Para me purificar. Aquele bisão estava me dizendo alguma coisa. Estava me dizendo para ir atrás do que eu quero. Eu só gostaria de saber o quê. Diga-me, Dama do Lago — falou ela, sorrindo. — A sra. Tiger nos ensinou tudo sobre você no nono ano... Qual é o meu destino?

Isabel sabia que era apenas sua imaginação, mas foi como se a luz prateada se intensificasse em resposta às suas palavras, e ela poderia jurar que sentira um arrepio. Rindo com prazer, abriu os braços e chutou a água, fazendo as gotas que a luz do sol transformava em cristal chover em torno dela e batizá-la com seu brilho.

Viviane não conseguia ficar longe do oráculo. Sabia que era muito cedo para que os tentáculos de sua magia tivessem encontrado alguém, porém estava frustrada. Enquanto as náiades se agitavam ao seu redor, continuou sentada diante do oráculo — uma bacia de cristal repleta com centenas de pérolas —, cheia de preocupação.

Quando uma pérola começou a brilhar, a deusa se lançou sobre ela. Arrancou-a do meio das outras que havia dentro da pia escura e silenciosa, ergueu-a e mirou seu cerne leitoso. A imagem clareou, exibindo uma velha senhora sentada às margens do Grand Lake e cuspindo na água o que pareciam ser sementes de girassol.

— Mais moça! — ordenou Viviane com desgosto, cingindo o fio de modo a afastá-lo da anciã. Jogou a pérola de volta na bacia e começou a andar.

A pérola que se iluminou em seguida mostrava uma criança brincando à beira de um oceano.

Ela quase gritou de desespero.

— Não tão moça! — advertiu ao oráculo, exasperada.

As duas imagens seguintes eram totalmente inadequadas. As mulheres não pareciam nem muito moças nem muito velhas, contudo eram muito comuns.

Ao final de sua já escassa paciência, Viviane arrancou um dos longos fios prateados e sedosos que lhe caíam como um espesso véu em torno do corpo. Segurando-o sobre a bacia cheia de pérolas, girou-o em um lento círculo.

Não muito jovem, nem velha ou simples

com esses tipos, nenhum ganho existe.

A mulher perfeita é o que preciso.

Graça, beleza e espírito é o que exijo!

Soltou o comprido fio de cabelo e, conforme este flutuou para dentro da pia de pérolas, completou o feitiço:

Do meu próprio corpo empresto ao oráculo o poder.

Que a alma certa agora eu possa ver!

Um raio prateado cintilou, e o fio de cabelo da deusa explodiu, fazendo chover faíscas de luz que se dissolveram nas pérolas. Revigorados, outros fios de prata dispararam do reino da deusa e, seguindo lagos, rios e córregos, procuraram através do tempo e das dimensões.

De repente, um pequeno e brilhante apêndice infiltrou-se por um minúsculo canal, em um lugar distante chamado Oklahoma, no longínquo mundo moderno mortal onde, em um facho de luz da manhã, capturou o som do riso alegre de uma mulher conforme ela renovava sua fé nas infinitas possibilidades da vida.

Viviane escutou o som sedutor e tirou do oráculo a pérola brilhante. Prendendo a respiração, olhou através da profundeza leitosa que clareou, revelando uma loira voluptuosa, estranhamente vestida, dançando em meio a uma cascata de respingos em um córrego. Seus batimentos cardíacos aumentaram com a ansiedade que a invadiu.

— Mostre-me o rosto! — ordenou de pronto.

O oráculo se concentrou na face da estranha. Sem dúvida, ela era muito atraente. Viviane estreitou os olhos. A mulher não era nem muito jovem, nem muito madura... Ou ao menos não parecia ser. E o fato de esta ter alguma experiência seria muito interessante. A moça riu outra vez e, surpresa, Viviane sentiu os próprios lábios balbuciando em resposta. Era uma risada melodiosa e, de atraente, a estranha passou a lhe parecer também sedutora.

— Sim — murmurou, satisfeita. — Acredito que esta vá servir.

Levantou os braços, fazendo o poder girar em torno do corpo.

Esta linda mortal eu reivindico

quando a morte seu destino decretar.

A mim sua alma irá se unir

tão logo a vida nela findar.

Do meu amor, sigo o desejo adormecido

para que do desespero, que de forma tão cruel o escraviza,

este ainda venha a se livrar.

Nada tomo que já não esteja perdido.

Claro é o meu propósito, o custo pouco importa.

De Artur não deve ser amargo o destino

para que a mim o meu amor possa retornar!

Em seguida, a grande Deusa da Água, conhecida como Coventina — a Viviane de Merlin —, arremessou uma esfera flamejante de poder divino através do oráculo, e esta viajou para longe... para outro tempo, outro lugar... alterando para sempre o destino de Isabel Cantelli.


Capítulo Dois


“Tarde demais”, concluiu Isabel, mortificada. “Tarde demais.” Após dar uma guinada na direção para se desviar de um esquilo — e perder o controle do SUV —, foi essa a conclusão a que ela chegou.

Se não tivesse se abaixado para apanhar o celular enquanto cantarolava Camelot , toda feliz, ao mesmo tempo que dirigia a 100 km/h por uma estrada empoeirada. Se tivesse deixado o bichinho se defender por conta própria em vez de tentar bancar a heroína. Pensando bem, no jogo da vida aquilo não era um empate. Era uma lavada de cem a zero.

De qualquer modo, nenhum “se” iria ajudá-la agora. No momento, ela e seu Nissan voavam em direção ao Grand Lake a uma velocidade alarmante.

Isabel se preparou para o mergulho que estava prestes a dar e que duvidava que seria suave. O lago, que considerara mágico poucos minutos antes, iria acabar com ela.

Tanta coisa estava lhe passando pela cabeça. E nada do que ela imaginara que fosse passar quando se visse prestes a morrer. A vida que havia tido não estava desfilando em flashes diante de seus olhos. A que ela não vivera, sim.

Pavor, medo da dor da morte, isso tudo lhe passava pela mente. Mas a tristeza pelo que ela ainda não conseguira realizar era o que mais lhe ocupava os pensamentos.

O carro atingiu o lago tal qual uma explosão nuclear, e o air bag estourou à sua frente, colando-a ao assento. Quando este se esvaziou, por fim, ela tentou desatar o cinto de segurança, mas, por alguma razão, não conseguiu. Com a janela abaixada, o carro se encheu de água e começou a afundar.

A menos que um milagre acontecesse, não tinha como escapar dali viva. Estava a caminho da morte, e aquilo era aterrorizante. Seu coração batia, tresloucado, porém ela sabia que não por muito tempo. Pediu desculpas ao próprio coração pelo que iria acontecer. Pediu desculpas ao próprio fígado por não tê-lo maltratado tanto quanto podia ao longo dos anos. Que desperdício! Mesmo pensando nos amigos e na família, sua própria vida não chegou a lhe passar diante dos olhos, como muitos asseguram acontecer quando as pessoas morrem.

Seu foco, enquanto sentia o peito se comprimir dolorosamente, era, mesmo, em todas as coisas que ainda não realizara. Como podia ter se esquecido de tudo o que ainda queria da vida? A principal delas era que nunca havia encontrado o amor. Luxúria, sem dúvida. Atração, com certeza. Mas não aquela coisa indescritível, conhecida como “amor verdadeiro”. Olhar para um homem e saber, com segurança, que eles tinham sido feitos um para o outro.

Havia muitos outros itens em sua lista, mas, de fato, ela teria gostado de experimentar a sensação de estar apaixonada.

“Se... Se... Se...”

De repente, Isabel sentiu-se viva de novo. E soube, apenas soube, que, de alguma forma, de alguma maneira, ela teria outra chance.


Capítulo Três


— É melhor acordar, Isabel.

— Só mais uma hora — murmurou ela.

— Entendo essa sua necessidade de tirar um cochilo, afinal fez uma longa viagem — ponderou Viviane, sacudindo-a de leve. Você é a minha última esperança. — Receio que precise dar início a esta missão agora mesmo. Eu preciso do meu Merlin!

Quando “sua esperança” apenas gemeu, virou-se e resmungou “café”, Viviane sentiu a irritação espiralar dentro dela.

— Acorde, sua lamentável... pessoa! Levante-se agora mesmo! Se não fosse por mim, não estaria aqui se espreguiçando e fazendo exigências . Um cappuccino de chocolate com bastante creme, certo?

“Sua esperança” despertou instantaneamente, afastando os cabelos loiros e viçoso s do rosto.

— Ah, sim, por favor. Onde estou? Você me salvou? Obrigada! Fiquei tão atordoada! Se eu...

— Se... Se... Se... Eu sei. — Viviane estalou os dedos, e uma imensa caneca de prata contendo café surgiu em meio à bruma. — Beba primeiro. Depois vamos conversar.

A linda moça a fitou, em seguida tomou a caneca de sua mão e bebeu um gole.

— Não sei como lhe agradecer — falou e, em seguida, olhou para dentro do copo. — É o melhor café que já tomei! Como foi que...

— Aprendi depressa a preparar um bom café enquanto visitava o seu tempo.

— Meu tempo?

— Como eu disse, temos muito que conversar.

Isabel sabia que estava no Céu — pois o café parecia divino — ou estava no inferno, porque a mulher à sua frente era tão bela e etérea que tinha de ser o demônio disfarçado.

Ou, então, não estava nem no Céu, nem no inferno, ainda que continuasse reconhecendo uma boa caneca de café ao provar uma. E este a estava despertando, o que era um bom sinal: não era descafeinado.

Olhou em volta. Encontrava-se sentada junto a um lago, mas que não era o Grand Lake. A flora e a fauna pareciam completamente fora de sintonia. A névoa que pairava sobre a água era cintilante, diferente de tudo o que ela já tinha visto. Sem falar que não havia nenhum poste de eletricidade ou sinal de civilização à vista.

Foi quando reparou no próprio traje. Não era o mesmo com o qual ela quase morrera. Estava com um vestido verde-jade, de mangas compridas que se ajustavam nos ombros para depois se alargar até os punhos. O decote era quadrado e proporcionava uma visão do colo que ela não costumava exibir. Era um lindo vestido, sem dúvida. Na verdade, faria bonito em qualquer tapete vermelho. Mas não era seu.

— O que está acontecendo? Onde estou, como vim parar aqui e quem diabos é você?

A mulher sorriu, estalou os dedos outra vez e, enquanto Isabel olhava, a caneca de prata se encheu outra vez, exalando um delicioso cheiro de café.

— Posso assegurar que nós, ou melhor, você não está no inferno.

— Então onde estou? Onde estamos? E por que eu não a fotografei ainda? É a mulher mais linda que eu já vi. E olhe que eu já vi muitas. — Bebeu mais um gole da deliciosa bebida da caneca de prata. — Qual é o problema, afinal?

— Eu a escolhi, Isabel, para uma missão muito especial, muito importante.

— Eu ficaria lisonjeada se não estivesse tão assustada. Na verdade, teria saído correndo e gritando se você não tivesse feito surgir este café incrível.

— Não está com fome também? As parcas me disseram que adora bolinhos. Em especial uns tais beignets .

A mulher fez menção de estalar os dedos novamente, contudo Isabel a impediu.

— Por mais que eu ache isso interessante, antes que faça as coisas surgirem do nada de novo, posso fazer algumas perguntas?

— Merece ter todas as suas perguntas respondidas.

Isabel tomou a resposta como um “sim”.

— Foi você quem me salvou?

— Sim.

— Como? Assim que eu atingi a água e não consegui me soltar, soube que estava encrencada. — Ela levantou a mão e mexeu os dedos, depois moveu as unhas dos pés, agora envoltos em chinelos prateados. — Deu tudo certo, assim, do nada! E eu tinha me ferrado , sem sombra de dúvida! De repente, tive essa sensação de, não sei , uma segunda chance.

— Tinha “se ferrado”? Tinha morrido, quer dizer. E sim, esta é mais uma chance de realizar alguns dos seus desejos.

— Bem, ao menos isso esclarece um pouco as coisas. — Isabel olhou o verde exuberante e a densa floresta além da enseada rochosa. — Não estamos mais em Oklahoma, estamos, gostosona?

— Gostosona?

— Desculpe, eu não quis ser indelicada. Mas parece saber o meu nome e até os meus podres. Posso perguntar ao menos como se chama?

— Sou conhecida como Coventina. Mas pode me chamar de...

— Coventina, a Dama do Lago? A Deusa da Água na Mitologia?

A mulher abriu um sorriso triunfante.

— Então já ouviu falar de mim no seu tempo! Merlin me assegurou que eu não passava de uma lenda há muito esquecida.

Isabel continuou sentada, completamente atordoada. O brilho que cercava a estranha, aqueles cabelos longos e platinados, os olhos azuis que pareciam refletir a pureza do lago atrás delas...

— Está brincando, certo? É alguma pegadinha? — Olhou ao redor. — Onde estão as câmeras? Fez um trabalho e tanto ao escondê-las, porque posso farejar e detectar uma a quilômetros.

— Eu lhe asseguro, sou mesmo Coventina. E não há nenhuma dessas tais câmeras por aqui. Não que eu saiba.

— Quer saber? Eu adoraria comer um beignet agora. Será que pode regá-lo com um pouco de...

— Chocolate amargo? Claro.

Mais um estalar de dedos e Isabel se viu diante de um verdadeiro banquete. Havia beignets , do jeitinho que ela gostava, mas também presunto frito, ovos fritos com gema mole, batatas com cebola, pimentão e pedaços de bacon, exatamente como ela mesma costumava preparar. Aquilo era bom demais. Perfeito. E muito louco.

De qualquer modo, estava faminta demais para ser rude e recusar.

— Importa-se se eu for indo agora? — indagou Isabel após lamber os dedos ao fim da refeição e se pôr em pé.

Foi então que percebeu: com um só movimento de mão, a mulher fez seus chinelos se colarem à terra. Ela bem que tentou se libertar, mas eles pareciam grudados também à sua pele.

— Por favor, escute... — falou a mulher — se a lenda dizia a verdade, não precisaria pedir favores a ninguém.

Isabel se sentou.

— Desculpe se estou meio confusa.

— Eu compreendo.

— Você me salvou do Grand Lake.

— Sim.

— Por quê?

— Porque preciso de você. E porque tenho esperanças de que tudo isso aconteça de um modo que também um de seus... (como disse mesmo?) ...“ses” acabem se tornando realidade.

— Eu estou viva. Não estou apenas em outro mundo?

— Ah, receio que esteja, mesmo, em outro mundo. Mas neste mundo, Isabel. Não no seu.

— Onde estou?

— Se aprendeu algo sobre mim, também deve ter aprendido sobre Camelot.

Isabel tornou a fitá-la, incrédula.

— Só pode estar brincando.

Coventina riu, emitindo um som tão melodioso que até mesmo o lago pareceu reagir a ele. As águas borbulharam aqui e ali, como se algo lá embaixo não conseguisse evitar rir com ela.

— Gosto de uma boa brincadeira, assim como muitos dos homens e mulheres do castelo. Mas garanto que, além desta floresta, fica o castelo de Camelot.

— Quer dizer o do rei Artur, de Lancelot, Guinevere, Merl... Ah. É esse o seu Merlin.

— Era — corrigiu Coventina, e seus olhos imediatamente mudaram do impressionante azul para um cinza tempestuoso. — Ele abandonou este mundo, devastado pelo destino que vislumbra para Artur. — A deusa segurou a mão de Isabel. — Preciso trazê-lo de volta. Preciso. Receio que a eternidade vá ser um eterno sofrimento sem ele.

— Por que eu? — indagou Isabel, tentando disfarçar as lágrimas nos olhos. Não costumava ser chorona, a menos que se visse diante de uma situação como a de um homem doce e heroico morrendo no Afeganistão ou a do nascimento de um gatinho.

Coventina apertou a mão dela ainda mais, porém, estranhamente, o gesto não foi dolorido. Foi mais como se elas estivessem trocando energia.

— Porque era a pessoa que eu estava procurando. Pedi aos deuses uma que fosse bonita, inteligente e, sinto dizer, que estivesse prestes a morrer. Determinante para mim foi o fato de ser uma mulher — como você mesma disse — com vários “ses”; e alguém que lamentou, em seus últimos momentos, não ter encontrado o amor verdadeiro.

— E o que a faz pensar que vou encontrá-lo aqui, Cov...

— Pode me chamar de Viviane. Merlin foi o único a conseguir isso, mas eu gostaria muito que conseguisse também. Porque acredito que seja a única capaz de trazê-lo de volta para mim.

— Está bem, mas o que a faz pensar que vou encontrar o amor aqui, Viviane? E como posso trazer Merlin de volta?

— Não tenho certeza de nada, mas, se eu não tentar, não terei feito o bastante para reconquistar o homem que amo. E meu coração, assim como as minhas águas, não aceita tal coisa. Temo o que vá acontecer se a minha infelicidade tumultuar as águas que me alimentam.

Isabel olhou para o lago e viu marolas onde, momentos antes, tudo estivera calmo, claro e azul como os olhos da deusa. As águas pareciam inquietas, cinzentas e infelizes agora. Lembravam as do Grand Lake, que lhe parecera quase zangado pouco antes de ela e o carro darem um mergulho nada belo em suas agitadas profundezas.

Ela tornou a olhar a linda mulher à sua frente, perguntando-se quando iria acordar daquele sonho. Mas, até lá, ao menos tentaria ajudar.

— E quanto aos meus equipamentos de fotografia?

Viviane balançou a cabeça.

— Não há nada do tipo neste tempo ou lugar.

— Está bem — resignou-se Isabel, ainda que lamentando não poder capturar a beleza ao seu redor, a beleza daquela estranha... que sem dúvida a deixaria rica caso se deixasse fotografar para a revista People : “A surpreendente verdade de Camelot”... — Por quem, pelo amor de Deus, estou destinada a me apaixonar? Ou quem você espera que possa se apaixonar por mim? E se eu acidentalmente me encantar com, digamos, o bobo da corte?

Uma vez mais a risada melodiosa da deusa encheu o ar, e os pássaros nas árvores próximas pareceram se juntar a ela.

— Hester, o bobo da corte? Tomara que tenha um gosto mais apurado.

Isabel sorriu.

— Então quem, senhora?

— Lancelot, claro.

— Está brincando, não é? Se bem me lembro, Gwen quase foi queimada numa fogueira por se envolver com ele. Eu não quase morri afogada para no futuro ser jogada no fogo!

— Isso não vai acontecer. Agora será Lady Isabel, que veio a Camelot como condessa de Dumont para discutir a partilha de terras em benefício de todos os bretões.

— Então vou cair de paraquedas nessa história? Sem ser convidada?

Viviane hesitou por um momento, em seguida puxou um colar de uma espécie de bolso em seu vestido. Era uma peça impressionante que, a princípio, parecia feita de safiras. Conforme Isabel a tocou, contudo, percebeu que era um pingente em forma de coração, feito de algum tipo de vidro, e com um líquido azulado no interior. Era lindo e, na certa, custaria uma nota na Sotheby’s.

— Nossa, Vivi!... Posso chamá-la de Vivi?

A deusa bufou.

— Não, não pode.

Isabel deu de ombros.

— “Viviane” é meio complicado de pronunciar, mas, está bem. Isto é incrível! O que é?

A deusa colocou o pingente em volta de seu pescoço, e a peça se aninhou na altura do coração, bem em meio a seus mal confinados seios.

— É um colar mágico, Isabel. Ao vê-lo, aqueles que poderiam suspeitar de sua chegada e de seus motivos não o farão. Dentro dele estão as lágrimas que derramei quando não tive escolha a não ser permitir que Merlin me deixasse. O colar tem poderes, mas não deixarei que saiba quais são, pois há um preço a pagar por seu uso. Trate-o com sabedoria, e ele será seu aliado. Use os poderes com imprudência, e pagará caro.

— Tem isso por escrito? Algum folheto ou coisa do tipo, no qual eu possa me informar como fazê-lo produzir banheiros e encanamento de verdade?

Viviane riu, assim como pareceu fazer o lago.

— Poderia fazer tudo isso, claro. Mas depois não poderia utilizar nada.

— Verdade?

— Sim. Por favor, tente compreender. Há um preço para todas as vezes que invocar o poder das minhas lágrimas. Se precisar usá-las, lembre-se de que existe um custo. E mais uma coisa, Isabel. Nunca permita que tomem o colar de você. — Viviane pareceu perdida em pensamentos por um instante, depois recitou:

O coração e as lágrimas, Isabel não devem deixar

sem que um terrível feitiço o ladrão destes venha a sofrer.

Apenas Isabel poderá o colar retirar,

e com estas palavras me fazer saber:

“Para o bem de todos, ó Deusa do Lago,

Em nome do amor e da vida, isso tem que acontecer!”

Viviane ergueu os braços, e nuvens que vinham se formando no céu se desmancharam sobre todo o lago e sobre elas.

Isabel não gostava muito de se molhar, a menos que estivesse numa ducha, mas, por alguma razão, a chuva lhe pareceu morna e reconfortante em um momento em que se sentia um tanto assustada e completamente fora de seu elemento.

Aquilo era um sonho de morte? Era assim que acontecia? Ela estava cantando a música-tema de Camelot quando havia mergulhado com o carro. Pensara na Dama do Lago enquanto lutava para sair da água.

Pelo visto, tivera aulas de Mitologia em excesso na faculdade.

De qualquer modo, se era mesmo um sonho de morte, era muito, muito legal. Onde mais poderia querer aterrissar além de Camelot?

O ruim era a falta de encanamento.

Mas e daí? Ela já conseguira se virar. Pois então não tinha dado um jeitinho no Afeganistão? Podia muito bem encontrar uma maneira de viver sem a sua ducha Kohler de luxo.

O problema era...

— Por quanto tempo, Viviane?

— Até que nós duas alcancemos os nossos objetivos.

— Só para esclarecer: estarei morta ao final desta aventura? Não que eu esteja reclamando, imagine. Afinal me salvou e tudo o mais, mas posso morrer quando esta Missão Impossível chegar ao fim?

— Garanto que, assim que conseguir cumprir esta Missão Impossível, como você a chama — embora eu não pense assim —, seu destino estará em suas mãos.

— Então, se eu decidir que não quero mesmo morrer?

— Você mesma vai decidir o seu futuro.

— E se eu resolver voltar para a canalização e a eletricidade? E para a minha fotografia?

— Seu destino estará em suas mãos, Isabel.

— Está bem — concordou ela de pronto, tocando o colar e certificando-se de que ele continuava no lugar. — Tem algum post-it em que eu possa escrever as tais palavras que preciso falar?

— Vai se lembrar delas, se for necessário.

— Outra pergunta: se eu precisar de ajuda ou conselhos, posso procurá-la?

— Sempre.

— E como poderei encontrá-la ?

— Basta pedir em pensamento, Isabel, e eu lhe atenderei.

— Ótimo, assim posso ter certeza da minha missão: tentar seduzir Lance e fazê-lo se esquecer de Gwen, de modo que Artur e Gwen sejam felizes para sempre. Isso vai ajudar o rei a salvar Camelot?

Viviane riu, e as nuvens e a chuva desapareceram como por encanto.

Isabel invejou tal poder, imaginando como seria conseguir fazer aquilo com um ou dois namorados.

— Sim, é esse o plano, Isabel. Mas os planos às vezes dão errado.

— Ah, que bom.

— Você tem o colar. Use-o com sabedoria e irá... Como se diz mesmo, no seu tempo? “Tirar de letra”?

— Pode ser. Pelo visto, gosta de arriscar.

— Estou apostando em você, Isabel. E estou apostando que vai encontrar o amor que devia ter encontrado no seu tempo.

Àquela altura, Isabel até lamentava seus últimos pensamentos. Talvez devesse ter se concentrado no que não devia ter feito.

— Como vou encontrar o castelo de novo?

A deusa mergulhou a mão na água e jogou um punhado dela para o ar. Tal como gotas de mercúrio prateadas, estas descreveram um arco, depois foram caindo de volta, uma a uma, sobre o lago.

Viviane apontou atrás de Isabel.

— Sua montaria a aguarda.

Ela fez meia-volta e lá estava o cavalo árabe mais bonito que já vira, todo branco e bufando, impaciente.

Isabel inclinou a cabeça e o espiou na parte de baixo. Era uma fêmea, já que não tinha nada dependurado.

— Escute, Viviane, vamos esclarecer uma coisa — começou. — Em primeiro lugar, sou boa amazona. Na verdade, adoro montar em pelo. Mas reconheço uma sela lateral, e não há a menor chance de eu controlar essa égua numa sela dessas!

A deusa tornou a rir, em seguida mergulhou os dedos no lago e lhe jogou gotas na cara. Fez o mesmo com a égua, que recebeu o gesto muito melhor do que Isabel.

— Agora já sabe, Izzy, como montar de lado. Você e Samara serão amigas. Tratem de galopar até Camelot, pois estão precisando de ajuda lá. E eu estou ansiosa por voltar para o meu Merlin.

— Por que pode me chamar de “Izzy”, e eu não estou autorizada a chamá-la de “Vivi”?

A deusa se insurgiu.

— Quem é a divindade aqui, Izzy?

— Está bem. Ponto para você.


Capítulo Quatro


Izzy? Apenas seus melhores amigos e seu pai a chamavam Izzy, pensou Isabel. Mas imaginava que discutir com uma deusa que tinha acabado de lhe salvar a vida não era muito aconselhável. Conforme ela e Samara abriam caminho em meio à floresta que as levaria até Camelot, ponderou sobre como era profundo aquele sonho. Afinal, assim como Viviane havia previsto, ela e Samara logo se tornaram amigas; tanto que montava a égua de lado, como se tivesse feito aquilo a vida toda.

Como era possível? Ou aquele era mesmo outro mundo, que ninguém ainda vivo poderia imaginar? Era daquela forma que o Universo funcionava? Ele apenas a largava em outro tempo e lugar?

Isabel suspirou. Já fora obrigada a parar Samara duas vezes para dar conta de suas necessidades no meio da floresta, mesmo se perguntando se ficar com o traseiro de fora era ilegal em Camelot. Estranhamente, a cada vez que fora forçada a parar, encontrara algo semelhante a papel higiênico esperando por ela.

— Obrigada, Viviane — falou num sussurro.

E pôde jurar que as árvores sussurravam de volta: — De nada.

Samara era incrível. Na primeira vez em que ela precisara parar, havia amarrado as rédeas em torno de uma árvore, e a égua bufara, parecendo aborrecida. Quando tinha voltado, Samara quase a arremessara a vários metros de distância. Ela havia captado a mensagem, portanto, e, na segunda parada, deixara Sam solta. O melhor era não mexer com a confiança da égua ou com a sua liberdade, constatou, sendo recompensada pelo gesto quando Samara inclinou-se para ajudá-la a subir na sela com mais facilidade. Muito diferente da primeira vez, quando ela precisara procurar um tronco em que subir, e Sam não parara de se mover.

As torres do castelo pareciam cada vez mais próximas, e Isabel se viu apertando o colar tantas vezes que era como se ele já estivesse ficando impaciente com ela.

Viviane parecia estar a seu lado, porém não ficava à vista, o que a teria deixado bem mais feliz.

— Parece que somos apenas você e eu, Sam.

A despeito de seu primeiro entrevero, era inacreditável o vínculo que ela e a égua tinham formado quase instantaneamente, raciocinou Isabel. Ela não precisava chutar o flanco da égua, não precisava bater as rédeas. Bastava uma só palavra e Samara a compreendia.

— E então, o que acha, Sam? Vamos dar conta da nossa tarefa?

Samara bufou e balançou a cabeça. Depois parou e aguçou os ouvidos.

Um estalar nas folhas à sua esquerda fez o coração de Isabel disparar. Seria um leão, um tigre, um urso? Santo Deus!

Isabel se agarrou ao colar.

— Quem está aí? — gritou para a mata fechada. O que era no mínimo a coisa mais idiota a fazer, ainda mais se estava lidando com algum bicho comedor de gente. Mas a pergunta apenas saiu.

Um homem surgiu ao lado de um enorme carvalho. Curvou-se, educado, depois endireitou o corpo.

— Sossegue, minha cara condessa. Sou apenas eu, que vim para escoltá-la até o castelo.

Os batimentos de Isabel desceram para a região do púbis e ali continuaram a latejar. Que homem era aquele ?! Os cabelos eram negros, cortados bem curtos. Os lábios pediam por sexo. O sorriso gritava por sexo. Os olhos eram de um verde-musgo tão intenso quanto o da exuberante floresta ao seu redor. E ele usava um cavanhaque, que ela normalmente teria odiado, mas que nele caía mais do que bem.

O estranho usava uma cota de malha elástica quase até os joelhos, carregava um arco de caçador na mão esquerda e uma aljava cruzada no peito, com as flechas se insinuando por trás dos ombros largos. Sob a armadura, usava um par de leggings pretas bem justas.

O homem se aproximou. Seu olhar desceu para o colar, depois se ergueu de volta para o rosto dela.

— Não é nada adequado para uma mulher viajar por esta floresta sozinha. Onde estão seus acompanhantes? Onde estão seus baús de viagem?

Boa pergunta — para a qual ela não tinha uma boa resposta. Até tocar o colar.

— Ah, estão alguns quilômetros atrás de mim. Eu estava me sentindo meio inquieta com o ritmo lento da carruagem e decidi ter um pouco mais de privacidade. Mas eles já devem estar chegando. Não é mesmo? — perguntou na direção das árvores, e estas chacoalharam de leve, fazendo-a tomar o gesto por um “sim”. Afinal de contas, Viviane não a teria mandado para aquele lugar com nada além de um vestido, teria?

Sem dizer que era mesmo inimaginável uma mulher viajar completamente sozinha por ali.

— Fico honrado por se sentir segura nas florestas de Camelot, condessa, mas mesmo aqui existe perigo.

O único perigo que ela pressentia no momento era a atração que estava sentindo por aquele homem!

— Receio estar em desvantagem, senhor — falou, tratando de mudar de assunto. — Parece saber quem sou e ter sido avisado com antecedência da minha iminente chegada, mas nada sei sobre a sua pessoa. — Isabel sentiu um riso borbulhar no peito e teve a certeza de que este vinha de Viviane. De repente, ocorreu-lhe que estava falando e compreendendo o inglês arcaico mais do que bem.

Que sonho excepcional era aquele!

— Tendo sido alertado sobre sua iminente chegada, pedi para que meus homens cuidassem de sua comitiva, de modo que pudesse ser escoltada adequadamente até Camelot. Imagine a minha preocupação quando me foi dada a notícia de que parecia estar sozinha, e que nenhum de seus homens galopara à sua frente para anunciá-la. Temi que algum sério contratempo houvesse ocorrido.

“Então, imagine a minha!”, contrapôs Isabel em pensamento.

E se perguntou o quanto estivera só enquanto fora obrigada a parar a fim de esvaziar a bexiga.

Sentiu o rosto arder com a possibilidade.

— Meus sinceros agradecimentos por sua preocupação e cuidado.

— Minha mais sincera gratidão por ter aceitado nos visitar em Camelot.

— Suponho, então, que estejamos todos em segurança! Mais uma vez, senhor, ainda não sei a quem falo. Por um acaso é — vamos torcer — sir Lancelot?

Mesmo enquanto perguntava, Isabel tinha certeza de que não podia ter tido tanta sorte. Aquele estranho era pelo menos uns dez anos mais velho do que o jovem cavaleiro sobre o qual ela havia lido. Estava no ponto, com algumas linhas de sorriso ao redor dos olhos e outras em torno da boca, as quais evocavam muito mais experiência. Via sabedoria e até mesmo uma ponta de cansaço em seus olhos.

E sua risada era profunda e fatal.

— Todas as mulheres bonitas querem Lancelot. Peço desculpas por não ser ele.

— Não são necessárias desculpas. Mas, então, quem é você?

O homem curvou-se novamente.

— Meu nome é Artur.

— Está brincando.

— Não, não estou.

“Ele é mesmo o rei, Izzy!”

“E isso significa o quê?”

“Significa que precisa tirar o traseiro dessa égua e fazer uma reverência!”

“Pelo visto, ainda tem muito que aprender, moça!”

Isabel desmontou sem a menor graciosidade, em seguida tomou a mão de Artur e fez o máximo para se curvar em uma mesura. Uma vez que não se curvava desde uma peça do primeiro ano do Ensino Médio — Camelot , aliás —, viu o quanto estava enferrujada.

— Mil perdões por não tê-lo reconhecido antes, rei Artur. — Ela fez menção de levar a mão do soberano à boca, pois tinha certeza de que deveria beijar seu anel ou algo assim, mas começou a oscilar. Definitivamente, não estava acostumada a se curvar para homem nenhum sem desejar acertá-lo nas bolas depois.

Artur a segurou pela cintura e a endireitou, o sorriso tão cheio de prazer que ela desejou beijar cada parte dele, menos o anel.

— Condessa, a jornada foi, sem dúvida, muito longa e suas pernas estão fraquejando. E, cá entre nós, essa coisa de beijo no anel sempre me incomodou.

As mãos dele não deixaram sua cintura, seus olhos não pararam de sorrir para os dela. O homem só faltava começar a cantar.

— Richard Harris não é nada perto de você — deixou escapar Isabel.

Foi um erro. Ela soube disso tão logo o colar pareceu bater com força em seu peito.

Artur deu um passo para trás, os olhos se anuviando.

— Está comprometida com sir Richard?

Isabel sentiu falta das mãos quentes em sua cintura.

— Sir Richard? De Fremont? Claro que não. Eu estava me lembrando do meu próprio Richard, um dos meus homens. Richard de Fremont não passa de um suíno. — Ela franziu o cenho de leve. Não fazia ideia de onde tinha vindo aquela informação, mas ficou aliviada ao ver a suspeita deixar os olhos do rei. — Rei Artur — falou, curvando-se outra vez. — Eu ficaria imensamente honrada se me escoltasse até Camelot.

— É o que farei, condessa. E, ora, ora, veja quem a alcançou.

Isabel voltou-se, deparando-se com dois rapazes montados em baios, os quais cavalgavam a cada lado de uma carruagem dirigida por outro homem e puxada por outros dois cavalos malhados e idênticos, que, aliás, não pareciam nada contentes. O que não era de admirar, dada a pilha de baús que estavam carregando.

Isabel arregalou os olhos. Os três homens eram quase iguais a três de seus amigos de Oklahoma, tanto que precisou se esforçar para não correr para eles e abraçá-los.

Mas espere um pouco. “Você matou meus amigos, deusa?”, indagou, furiosa, ainda que mentalmente.

A resposta foi instantânea:

“A condessa de amigos necessita. Nem que apenas de visões que a ti o lago empreste. Sabes bem o que cada um representa e deles hás de precisar... Não os despreze!”

Isabel parou para pensar e balançou a cabeça. “Aquilo nem rimava direito!”

“Então me processe.”

Tornou a se concentrar no rei.

— Rei Artur, estes são os meus homens: Tom, Dick e Harry. Mas não o Tom, Dick e Harry de sempre. Eles são os meus Tom, Dick e Harry .

Isabel franziu a testa. Não lhe ocorrera o quanto aquilo soava engraçado até aquele momento. Voltou-se para os amigos antes que caísse na risada.

— Por favor, rapazes, este é o rei Artur. Prestem-lhe suas reverências.

Tom e Dick desceram de suas montarias e Harry tratou de brecar a carruagem, saltando desta com um largo sorriso no rosto. Os três se apoiaram em um joelho e inclinaram as cabeças.

— A seu serviço, senhor — disseram em uníssono.

— Por favor, levantem-se — pediu Artur. — Sem formalidades aqui.

— Ora essa — Isabel falou a Tom. — Eu não consegui fazê-lo se curvar assim nem quando lhe dei uma surra naquele jogo de quarters na faculdade.

— Porque havia me embebedado com Budwei... cerveja naquela noite, milady.

Era verdade. Ela o deixara de fogo de propósito! Afinal, estavam em pleno campeonato da associação.

— Desculpe, mas esse é o último recurso dos fracos — respondeu Isabel com pouco caso.

— Faculdade? Quarters ?

Isabel levou outra pancada do colar. Àquela altura já devia estar com um hematoma do tamanho de uma bola de beisebol no peito!

— Mil perdões, rei Artur. Falo de um jogo que costumávamos realizar em Dumont. Afinal, amigos felizes são amigos ativos.

O rei a presenteou com outro sorriso arrasador.

— Aparentemente temos muito em comum. Também gosto de praticar esportes com meus homens.

Isabel franziu a testa.

— E deixa as mulheres lavando roupa, cozinhando e limpando? Que lazer costuma proporcionar a suas criadas, senhor? Quando é que elas têm algum descanso?

Isabel se preparou para outro baque do colar, porém este não veio. Pelo visto, Viviane estava a seu lado naquele ponto. Uma deusa feminista. Quem diria?

Artur pareceu desconcertado com as palavras.

— Eu nunca havia pensado nisso. Talvez a rainha possa responder a essa pergunta. As mulheres não me parecem infelizes, porém vou me inteirar do assunto, condessa, e, caso haja algum problema, tentarei resolvê-lo o mais breve possível. Quem sabe com as suas sugestões? Instituindo esse tal campeonato de quarters , por exemplo.

— Calma lá, Artur. É preciso saber jogar quarters . Se me permitir, entretanto, talvez eu possa pensar em alguma coisa, eventualmente.

— Estarei aberto a todas as suas sugestões. Agora, podemos seguir para Camelot?

— Vamos nessa! — rebateu Isabel. Em seguida voltou-se para sua equipe e piscou.

Tom, Dick e Harry se adiantaram para ajudá-la a montar Samara, e o rei fez um sinal para que todos o seguissem.

— Será um prazer, condessa. Podemos conversar sobre essa tal faculdade durante a nossa jornada?

Quando os homens de Artur se materializaram, trazendo seu cavalo — um lindo corcel cinza malhado —, o rei lhes deu ordens para que ficassem à frente e atrás da comitiva de Isabel. Ela pôde, então, passar o restante do tempo a seu lado, conversando e rindo.

Havia gostado de Artur. Muito .

“Não é culpa minha, deusa!”.

“Conte outra, Isabel!”


Capítulo Cinco


Camelot era magnífico, concluiu Isabel. Ela daria qualquer coisa para ter seu equipamento de fotografia ali com ela. Era tão injusto não poder capturar a beleza de tudo aquilo!

Precisaram atravessar um fosso de verdade através de uma ponte de madeira. Em seguida, adentraram uma fortaleza tão agitada que ela quase ficou com medo. Havia tantos homens ali, andando de um lado para o outro, como se num jogo de futebol! Tantas mulheres correndo atrás de seus filhos!

O castelo em si era de tirar o fôlego. Tinha imaginado que fosse feito de pedra, mas, estranhamente, Camelot parecia ter sido todo construído com madeira. Ainda assim, dezenas de chaminés fumegavam ao redor, e ela desconfiava de que não existia um único alarme anti-incêndio no local.

O que a chocou, contudo, foi a maneira como todas as pessoas saudavam seu rei. Verdade que elas se curvaram quando ele adentrou a torre de menagem, mas também sorriram. Aquela gente gostava mesmo de seu líder. Nisso ela poderia apostar. Infelizmente.

O salão principal também estava a todo vapor, contudo parou quando o rei a escoltou para dentro dele e anunciou sua chegada em voz alta. Até mesmo os animais que corriam por ali — e devia haver pelo menos uns trinta cães de várias raças — pareceram estacar. Em seguida, teve início um verdadeiro mar de reverências e mesuras.

— Por favor, diga a eles para se erguerem, senhor — sussurrou ela para Artur. — Estão agindo como se eu fosse alguém da realeza!

Artur arregalou os olhos por um instante.

— Mas é da realeza, condessa.

Opa!

— Talvez, mas não sou tão nobre para tantas reverências. Não fico à vontade com isso. Prefiro a igualdade de direitos.

O rei tornou a sorrir, o que não era justo, pois o sorriso do homem era letal.

— Temos muito em comum, milady.

— Isabel.

— Isabel, então. E pode me chamar de Artur. Aliás, por favor, eu imploro para que esqueça essa coisa de rei.

— Fechado — concordou ela de pronto.

— Levantem-se todos! A condessa prefere que não...

— ... se rebaixem? — sugeriu Isabel.

— A condessa não vê necessidade em se curvarem com sua entrada — elaborou Artur.

Isabel decidiu fazer, ela mesma, uma reverência. Então se levantou.

— Muito bem, agora estamos quites. Já chega dessas mesuras, certo? Elas são maçantes para todos nós. A propósito... Olá! É bom estar aqui — falou, acenando para todos de um modo que, esperava, não fosse como o da rainha Elizabeth.

Todos — até mesmo os cães — a fitaram como se ela fosse um pouco — ou talvez muito — estranha.

Mas depois sorriram. E vários acenaram de volta.

Havia no chão o que ela imaginava se tratar de juncos, e o lugar tinha um cheiro esquisito: um misto de suor, urina, lenha e um pouco de algo que não conseguia descrever. No entanto, conforme ela e Artur avançavam pelo enorme salão, um odor mais agradável chegou até eles.

— Tomilho a esta hora? — indagou.

O rei a fitou, confuso.

— Meu palpite, Isabel, é que estejamos entre o meio-dia e a hora do jantar.

— Eu estava falando de... esqueça. Posso me retirar para os meus aposentos e me preparar para o jantar?

— Sem dúvida, condessa. Seus baús lhe serão entregues assim que um de seus Toms, Dicks ou Harrys conseguirem levá-los até lá.

O humor estava de volta aos olhos do rei e, mais uma vez, Isabel se viu atordoada.

Tratou de se recompor, então, para fazer mais uma pergunta.

— E quanto às acomodações dos meus homens, senhor? Eles são muito importantes para mim.

— Eles terão o melhor que Camelot tem a oferecer, Isabel.

Uma vez mais, ela se derreteu toda. A maneira como seu nome saía daqueles lábios realmente mexia com seus hormônios.

— Isso significa que eles vão ficar no térreo?

— Quer que eles permaneçam próximos?

— É possível? Não quero incomodar ninguém, mas gostaria de tê-los por perto.

— Não é muito comum, mas pode ser feito. — O rei lançou-lhe um longo olhar, depois se curvou. — Meu desejo é vê-la feliz.

Felicidade seria beijá-lo até desfalecer.

O colar tornou a cutucá-la. “Atenha-se ao plano, Izzy.”

“Então pare de colocar reis lindos e sensuais na minha frente, Viviane!”

O quarto de Isabel era a epítome das acomodações de luxo medievais. As paredes eram feitas com uma madeira rústica que cheirava a cedro, embora ela não tivesse certeza de que fosse. Os lençóis eram rosa e também num tom de verde típico da floresta. Ela contava inclusive com um aposento especial — se é que se podia chamá-lo assim — com uma espécie de urinol em cada canto. E, bem em frente à lareira, havia uma enorme banheira.

O fogo crepitava alegremente na lareira, banhando o quarto com um brilho rosado. No fim, em se tratando da época em que estava, aquilo podia ser considerado uma verdadeira suíte presidencial.

Os baús já haviam sido levados para o quarto, e Viviane pensara em tudo. Exceto no fio dental. E na escova de dentes. E no Listerine.

“Não estou gostando da ideia de ficar sem fio dental aqui, Viviane!”

“Paciência nunca foi uma virtude sua, não é mesmo, querida?”

“Não em se tratando dos meus dentes!”

“Vai obter ajuda em breve. Use o vestido vermelho-pálido que chamam de rosa no seu tempo... Parece que Lancelot adora essa cor.”

Rosa. A cor que ela menos gostava! Rosa não apenas apagava qualquer cor de seu rosto, como também a fazia se lembrar do tempo em que fora obrigada a bancar o algodão-doce em uma peça do quinto ano: “Um Dia na Quermesse”. Na verdade, queria ter sido o corn dog, uma daquelas salsichas envolvidas em massa crocante de milho .

Isabel deu um pulo ao ouvir uma batida na porta.

— Sim?

— É Mary, milady. Serei sua ama durante a sua visita.

— Entre, Mary, por favor.

— Estou com as mãos ocupadas, milady!

Isabel deu as costas para os baús e rumou para a porta.

— Ocupadas com o qu...?

Parou ao ver a bandeja carregada nas mãos da menina. Havia vários galhos aparentemente raspados de um lado, uma tigela pequena com o que parecia sal, um jarro de água e outra pequena tigela de verduras que cheiravam a hortelã.

“Tenho mesmo que usar isso nos meus dentes, Viviane?”

“Verá que é mais do que o suficiente para cuidar deles.”

— Não trouxe nenhum vinho? — perguntou Isabel, fazendo um sinal para que Mary entrasse.

A menina ensaiou uma reverência, o que fez tudo na bandeja oscilar.

— Já vou trazer, mil...

— Meu nome é Isabel, Mary. Se posso chamá-la de Mary, por favor, trate-me por Isabel.

— Oh, não, senhora! Eu não poderia.

— Poderia, sim, Mary. Na verdade, eu insisto.

— Por favor, condessa, não posso!

Isabel sorriu para a garota, que não podia ter mais de treze anos. Mary tinha também um cabelo vermelho e brilhante que teria feito Ronald McDonald morrer de inveja, além de sardas no nariz e nas faces. Foi difícil descobrir a cor de seus olhos, contudo, pois a garota não tirava os olhos do chão.

— Está bem. Não vou pedir por algo que a deixa constrangida. “Condessa” está bom para mim, se assim preferir.

— Sim, senhora. “Condessa”, senhora.

— Estamos combinadas, então. Por favor, traga as guloseimas.

Mary atravessou o quarto aos tropeços até a área de vestir, tirou tudo da bandeja, depois se virou com esta já vazia.

— Devo pedir a água para o seu banho, senhora?

— Isso seria uma bênção dos Céus!

Por fim, Mary levantou os olhos para encontrar os de Isabel, e esta pôde ver que eles eram da mesma cor de safira do colar com as lágrimas.

Isabel sorriu. Aquilo era um presságio.

— Creio que você e eu nos daremos muito bem, Mary.

— Também acredito nisso, milad... condessa.

— Eu adoraria um banho. Mas, antes disso, poderia me ajudar a encontrar o vestido rosa nesta bagunça?

— Rosa?

— Vermelho-pálido? — arriscou Isabel.

Mary mordeu o lábio, obviamente sem compreender.

— Sabe a cor que as suas bochechas ficam quando é cortejada por um rapaz? Ou quando está com vergonha por algo que acha que fez?

— Ah, sim! Embora no meu caso, senhora, esta seja vermelho-escuro. — Ela olhou para baixo e, em seguida, tornou a erguer a cabeça com um brilho no olhar. — Devo admitir que ela não combina com o meu cabelo.

— Duvido, Mary. Aposto que quando enrubesce faz muitos homens perder a cabeça.

Mary corou.

Caramba, Mary estava certa. Suas faces tinham ficado da cor de um caminhão de bombeiros!

— É muita gentileza sua, condessa. — Mary seguiu para o terceiro baú e tirou dele um lindo vestido.

— Ele é mais rosa-choque do que rosa, Mary.

— Não é este o seu rosa?

“Qual é a sua ideia de rosa, Viviane?”

“É quase isso. Pare de se preocupar com bobagens.”

— Acho que esta cor vai combinar muito bem com a sua pele, senhora. Se fosse um tom mais claro, não faria justiça à sua beleza.

Isabel sorriu, satisfeita. Uma camareira com excelente gosto, enfim.

— Você e eu vamos mesmo nos dar muito bem, Mary.

— Estou certa de que sim, milady.

Isabel não precisou nem mesmo perguntar quem, ou o que, dera a Mary essa certeza.

Tocou o colar mais uma vez.

— Traga o vinho e a água para o meu banho, por favor.

— Agora mesmo.

— Como é em se tratando de cabelos, Mary?

— Precisa de mim para ajudá-la com os seus, condessa?

— Muito.

— Então sou muito boa com cabelos, senhora!

Por mais primitivo que aquilo tudo fosse, Isabel sentia-se incrivelmente mimada. Os galões de água para o banho que haviam sido carregados até o quarto estavam muito quentes a princípio, porém Mary jogou lavanda e alecrim na banheira, o que foi muito relaxante. Em seguida, a menina cumpriu sua promessa, trançando-lhe o cabelo e enrolando-o em uma espécie de coque retorcido, com um longo e elaborado rabo de cavalo.

Para completar, Mary prendeu um broche de bronze no lado esquerdo de sua cintura. Quando Tom e Dick a escoltaram até o refeitório, Isabel sentia-se quase como uma soberana. E estava na hora de conhecer a verdadeira rainha, o que era o máximo.

No jantar daquela noite, Isabel acabou conhecendo tanto Lancelot quanto Guinevere. E Gwen, como o rei Artur a chamava, era tão incrível quanto podia ser. Era uma mulher linda e jovem, e “jovem” era o adjetivo mais perfeito para descrevê-la. Tinha os cabelos vermelhos, puxados para trás em um coque elaborado, e um colar de pequenas pedras preciosas enfeitando a testa absurdamente desprovida de marcas.

Isabel quis perguntar que creme aquela criatura usava no rosto, até que lhe ocorreu que Gwen não passava de uma criança. E ela, Isabel, não podia perguntar sua idade, muito menos traí-la, roubando-lhe o marido. Se Gwen não fosse tão doce, ela teria adorado odiá-la. A rainha emanava um perfume de pétalas de rosa, muito bem-vindo em comparação ao suor e ao odor de animais que invadia até mesmo aquele refeitório.

Claro que havia homens suados e cães perambulando por ali também, o que não era nenhuma grande surpresa. Isabel desejou ter prestado mais atenção aos ingredientes dos odorizantes de ambiente, de modo a tentar reproduzir algum ali.

O vestido de Gwen era de um prata cintilante, com um cinto de corrente elaborado envolvendo sua cintura minúscula. Aquele cinto não caberia no braço de metade dos homens musculosos que estavam em pé ao redor da gigantesca mesa retangular do refeitório.

— É uma honra tê-la enfeitando o nosso salão, condessa — falou Guinevere. — Estávamos ansiosos pela sua chegada. Meu marido me contou que sua visita tem como objetivo um tratado que irá beneficiar socialmente os nossos reinos.

Aquela era muito boa. Gwen não era nenhuma idiota. Também tinha as rédeas da política local. Haveria nada na moça de que ela pudesse não gostar? Algo além do fato de que Gwen contava com o luxo de dormir todas as noites ao lado de um homem que a estava tirando do sério?

Sentiu outro baque no peito.

“Será que pode parar de fazer isso?”

“Recomponha-se, querida. Curve-se à rainha e deixe o desejo para mais tarde!”

Isabel fez outra reverência profunda, que teria falhado se Tom e Dick não a tivessem segurado. Ela precisava praticar aquela coisa de se curvar.

— Fico honrada por ter sido convidada a vir até Camelot, Vossa Alteza. Agradeço muito por sua hospitalidade.

Gwen riu baixinho, o que também foi absolutamente perfeito.

— Por favor, Artur e eu não nos importamos com formalidades. A menos que queira que eu também me curve quando nos encontrarmos.

Horror dos horrores. Isabel teve um flashback do que era estar no Extremo Oriente, em meio àquela história de “você se curva, eu me curvo, você se curva”, até ver quem se curvava por último.

— Por mim está fechado — concordou de pronto, depois quase gemeu com os olhares confusos ao redor. — O que eu quero dizer, Alteza, é que devemos mesmo dar um descanso aos nossos joelhos.

Desta vez, Gwen realmente sorriu.

— Parece-me uma excelente sugestão. Quem sabe esse hábito de se curvar não seja o motivo de tantos males nas costas de nossos homens?

— Pode estar certa disso — concordou Isabel. — Talvez uma boa sessão de quiropra...

Tum!

Isabel precisou se esforçar para não reagir à batida em seu peito.

— O que eu quis dizer é que um dos meus homens, Dick, aqui, é uma maravilha com problemas nas costas. — O que não era mentira. Dick era seu massagista no mundo normal e fazia verdadeiros milagres, considerando o quanto ela precisava se contorcer para conseguir as imagens certas nas fotos. — Talvez ele possa operar alguma magia naqueles que estão com problemas.

Muitos dos homens em pé, ao lado da mesa, esfregaram as costas e abriram seus sorrisos sem dentes para Dick. Até mesmo algumas das criadas se arriscaram a fazer o mesmo.

Dick chutou Isabel na perna enquanto sorria abertamente. Em seguida curvou-se mais uma vez.

— Estou a seu dispor, Vossa Alteza. E, se me permite acrescentar, Tom, aqui, é especialista em dentes. Se tiver alguém no castelo que necessite de seus serviços, ele estará mais do que disposto a atender.

Tom empalideceu diante de todos os sorrisos desdentados que se voltaram em sua direção.

— Sempre ao seu serviço, Majestade — murmurou, esticando a perna para acertar Dick. Consternado, lançou a Isabel um olhar do tipo “Onde foi que você me meteu?”, e ela deu de ombros. Afinal, não fora ela quem havia mencionado aquele detalhe.

Nesse momento, Harry veio mancando do salão principal, o cabelo ainda molhado por ter tido que se mostrar apresentável, o andar demostrando que ele ainda sentia o coice que levara nas bolas. Sem dúvida, devia ter doído bastante.

— Este é Harry — anunciou Isabel. — Mais um dos meus homens. Ele é incrível com os bichos. Harry é meu veter... Ai! — Isabel deixou escapar com o novo baque no peito, e todos olharam para ela. — Digo, meu mestre em animais e amigo dedicado h á muitas luas. Assim como Tom e Dick. Em Dumont, somos todos amigos, trabalhando em conjunto.

Fez-se silêncio enquanto Harry tentava se curvar diante de Artur e Gwen, o que dava a impressão de ser doloroso para todos. Cada homem no salão pareceu se encolher.

Mas, em seguida, todos seguiram o exemplo do rei, erguendo as canecas.

— Imagino que tenha tomado um bom coice de Trapaceiro, mestre Harry — comentou Artur. — Ele sempre foi um tanto preciso com aquelas patas.

— Espere um minuto — interveio Isabel. — Tem um cavalo chamado Trapaceiro?

Foi Gwen quem falou primeiro:

— Receio que Trapaceiro seja meu. Aceite as minhas desculpas, senhor, pelos... excessos do meu cavalo. Sir Ronald, de Reagan, me presenteou com Trapaceiro em minhas núpcias. É um belíssimo garanhão, porém ele pode ser um tanto quanto temperamental, ainda que não tão caprichoso como a maioria.

Harry se curvou outra vez. Em seguida, voltou-se para Isabel.

— Ele não há de se exceder novamente tão cedo. O filho da puta quase arrancou as minhas bolas — completou num cochicho.

— Não me diga que...

— Nenhum Trapaceiro vai se meter mais comigo. Nunca mais. E foi ótimo.

Na mesa de jantar, Artur passou mais alguns minutos apresentando seus próprios homens.

James era o primeiro deles, qual fosse o significado disso. Era maior do que muitos lutadores profissionais, portanto, Isabel deduziu que se tratava de uma espécie de guarda-costas.

Tristan, o segundo homem — que era apenas um pouco menor do que James e que ela reconheceu do encontro na floresta —, inclinou a cabeça. Ela acenou para o rapaz, torcendo para que ele não tivesse visto seu traseiro nu enquanto ela havia parado para fazer xixi. Mas, infelizmente, Tristan sorriu para ela de um modo que lhe deu a certeza de que, sim, ele a vira!

E assim prosseguiram as apresentações de vários outros sujeitos importantes para Artur ou Gwen. Era uma confusão aquela mesa.

Por fim, ela foi apresentada a Lancelot, que se levantou e curvou-se mais do que todos os outros. Era aquele o alvo dela, contudo nenhum de seus hormônios pareceu ganhar vida.

Lancelot, corando, parecia tão tímido quanto um tímido poderia ser. Era um belo rapaz, sem dúvida, com cabelos castanho-claros entremeados com mechas finas, douradas pelo sol, que ela adoraria desafiar seu cabeleireiro, Pelo, a fazer. Quando Lancelot conseguiu encontrar seu olhar, Isabel percebeu que ele tinha olhos castanhos, os quais pareciam mais verdes do que marrons no momento por conta da túnica verde-floresta que trajava. O rapaz também se atrapalhou em sua saudação, o que ela achou adorável, mas nem um pouco sexy. Bem diferente da risada calorosa com que o rei Artur a havia recebido! Droga. Mil vezes droga! Nem uma única célula de seu corpo se acendera na presença de Lancelot!

O restante dos homens do rei se comportou com certo mau humor durante a ceia, e Isabel desconfiou de que aquilo se devia ao fato de ela ter solicitado a presença de seus próprios homens.

Sentiu-se inquieta. Sua atração por Lancelot se igualava a zero. Bem menos do que a que sentira pela enguia conservada em salmoura à sua frente, durante o jantar. E infinitamente menor do que pelas piadas de Hester, o bobo da corte, as quais eram mais do que sem graça.

Assim como ele próprio, de certa forma. Hester devia estar com seus 70 anos, e as vestes azuis e roxas imitando seda não faziam muito por sua pele opaca. O pobre se esforçava muito para entreter a multidão, e Isabel acabou concluindo que ele devia ser boa gente.

Artur piscou para ela, e Hester fez o mesmo antes de se curvar e de se despedir.

— Que divertido, não? — comentou Isabel. Ninguém concordou com ela. Exceto Artur, que não conseguia parar de sorrir.

Uma tonelada de alimentos foi trazida para a mesa. Carne em sua grande maioria. E, mesmo não sendo nenhuma vegetariana — não completamente, mas na maior parte do tempo —, Isabel se viu contrariada. Principalmente com a carne. Javali, coelho, esquilo e, Santo Deus! , mais enguias em conserva. Os melhores pratos, em sua opinião, eram o repolho e a beterraba... Que estavam longe de ser seus vegetais favoritos.

Nunca fora de beber, mas naquela noite estava bebendo feito um marinheiro, na esperança de que o álcool a ajudasse em sua missão. E também na tentativa de comer a enguia sem vomitar, assim como para tentar seduzir o jovem cavaleiro que lhe parecia tão intragável quanto o resto.

“Está brincando comigo, não é, deusa? É mesmo uma missão impossível!”

“Precisa tentar, Izzy. Pense em Merlin.”

Até o momento, não estava dando certo. Lancelot até era bonitinho, se você gostasse de garotos. O que ela adorava quando menina. Mas, por mais interessante que fosse, era jovem demais. Menino demais.

O pior era que não parecia nem um pouco interessado nela, também. Lancelot só tinha olhos para Gwen. O que era evidente para todos no salão, exceto para o rei Artur, tão concentrado, conversando sobre aquela importante reunião com outros cavaleiros do reino, que parecia alheio aos olhares trocados entre Gwen e o belo rapaz. Todos na mesa percebiam e torciam os lábios, porém nada podiam fazer, uma vez que o rei não se manifestava. Ou Artur os proibira até mesmo de pensar na possibilidade, ou cuidara para que ninguém fizesse qualquer comentário a respeito.

Isabel se viu mais do que constrangida com a situação, contudo possuía outras coisas a lamentar.

Como a enguia.

Como seu total desinteresse por Lancelot.

Como o total desinteresse de Lancelot por ela.

Ou como o total interesse de Guinevere por Lancelot.

Ela estava no meio de um verdadeiro caos divino.

Não podia controlar tudo, mas havia algumas coisas sobre as quais ainda possuía algum domínio. Educadamente, pediu que uma criada retirasse a enguia, o javali, o coelho e o esquilo; em seguida, pediu licença e foi vomitar.


Capítulo Seis


Verdade que ela estava um pouco tonta. Mas não tanto a ponto de não notar Gwen e Lancelot pedindo licença quase ao mesmo tempo. Eles nem mesmo tentaram disfarçar!

Isabel sentiu o coração se apertar por Artur. Ele precisava saber! No entanto, o rei não parecia nem desconfiar. Ou então não se importava.

— Gostaria de fazer um passeio pelo castelo, condessa? — indagou Artur, assim que a ceia teve fim.

Abençoada Mary. A criada havia ido a seu encontro no quarto, carregando uma tigela de hortelã. Caso contrário, seu hálito estaria derrubando árvores!

— Eu adoraria, senhor. — O que ela queria mesmo era um passeio por aquele corpo. Mas o castelo teria que servir, por ora.

— Os jardins... — comentou Artur. — Gwen gosta muito deles. Por alguma razão que desconheço, ela cuida dos jardins quase todos os dias, embora tenhamos um verdadeiro exército de jardineiros.

— Todos temos nossos passatempos favoritos.

— E qual seria o seu, condessa?

Fotografia foi o que veio à mente de Isabel, entretanto ela duvidou que pudesse explicá-la a ele. Sexo também estava no topo de sua lista. Ou tinha estado no começo do dia. Quem sabe estivesse, ainda, no final daquela noite. Ela adoraria fazer amor por ali, mas não com Lance, e sim com o rei.

— Gosto de me exercitar. De praticar esportes, por assim dizer.

A surpresa no rosto de Artur foi tão adorável que ela quis beijar aquelas sobrancelhas erguidas.

— Esportes? Como quando se faz os cavalos se exercitar?

— Bem, sim, mas muito mais do que isso. Por exemplo: eu adoro praticar jogging .

— Jogging? O que é isso?

— Corrida de longa distância.

Artur riu.

— E faz jogging trajando vestidos?

Ali estava a chance pela qual ela estava esperando.

— Na verdade, em Dumont, as mulheres que gostam de praticar tal exercício usam versões menores das leggings dos homens.

— Como assim?

— Acreditamos que as mulheres têm tanto direito a fazer o que gostam quanto os homens. Consegue imaginar as que gostam de correr fazendo isso com vestidos? Absurdo. Assim, em Dumont, quando as mulheres sentem a necessidade ou a vontade de se alongar e fortalecer os músculos, elas usam o que chamamos de “roupa esportiva”.

Artur coçou a barba, e Isabel teve a nítida impressão de que ele tentava disfarçar uma risada.

— E o que, por todos os deuses, você, digo, elas , usam na parte de cima?

Isabel imaginou que falar em “top” era, provavelmente, ir longe demais.

— Usamos uma veste chamada “camiseta”. É uma espécie de túnica larga e curta, feita com tecido macio para dar conforto.

Artur balançou a cabeça.

— Pelo visto meus homens falharam muito em seus relatórios acerca de Dumont.

— Deixando de lado o fato de ter enviado seus homens para me espionar, deixe-me perguntar uma coisa: que tipo de passatempo ou prazer proporciona às suas criadas?

— Passatempo? Prazer?

— Você permite que Gwen tenha seus passatempos?

— Claro. Ela é minha rainha e minha esposa.

— E suas empregadas não estão autorizadas a fazer coisas que as tornam felizes? Acha mesmo que, por conta de seu sexo, elas não podem realizar atividades que apreciam?

— Meu povo não é infeliz, é? Ouviu alguma queixa?

— Não, senhor. Nenhuma. Mas será que elas se queixariam na minha frente?

A expressão preocupada do rei a enterneceu.

— Elas lhe pareceram infelizes?

— Mais uma vez, não. Na verdade, elas me parecem muito leais ao seu rei. Mas considere a possibilidade de permitir que elas, por exemplo, usem uma pequena parte de seu dia para seguir seus próprios sonhos; para praticar seus hobbies favoritos. Pense no quanto elas ficariam mais felizes ao dar conta das tarefas do dia a dia sabendo que têm uma pequena parte do tempo para relaxar. É possível que descubra benefícios em seus hobbies que você e Camelot jamais imaginaram.

Artur sentou-se pesadamente, parecendo imerso em pensamentos.

— Está me dando muito que pensar.

Isabel segurou a mão dele.

— Então, pense. Uma equipe feliz significa um castelo mais feliz. Você, Gwen e seus principais homens é que vão colher os frutos do trabalho dos empregados. Que tal permitir que eles mesmos desfrutem dessas benesses? Por que você, Gwen e eu podemos seguir nossos corações, e aqueles que trabalham para nós, não?

Ele bufou tal qual um baiacu.

— Não impeço minha equipe de ir atrás dos seus próprios desejos! Não reparou na quantidade de crianças?

Isabel quis rir, mas se controlou.

— Amor e crianças serão sempre uma realidade; não importa o que aconteça. Estou me referindo a outros prazeres.

— E que outros prazeres existem?

— Ora, por favor. Fazer amor é, sem dúvida, um deles. Mas existem outros. Gwen gosta de jardinagem. Minha camareira adora arrumar cabelos. Eu gosto de correr e amo desenhar. As possibilidades são infinitas! Poderíamos fazer uma pesquisa e descobrir o que deixa as pessoas felizes. E, em seguida, permitir que corram atrás de seus sonhos.

— Uma pesquisa?

— É uma oportunidade para que elas falem sobre o que gostam. E, possivelmente, para que também revelem do que não gostam.

Artur parou de coçar a barba, pôs-se de pé e passou a esfregar as têmporas.

Aquilo era comum na vida de Isabel, e ela não ficou surpresa. Logo ele estaria pedindo uma bebida, pensou. Poderia quase apostar.

— Você é uma mulher um tanto quanto incomum, Isabel — falou Artur, por fim. Em seguida deu um passo para a esquerda e bateu um sino. Em segundos, Tim apareceu. — Vinho, Timóteo, por favor. E duas taças.

Ela suspirou. Precisava tanto de mais vinho como precisava de enguias. Mas que se danasse.

— Não é o primeiro a me dizer isso. Sobre eu ser incomum, quero dizer.

— É incomum, e de uma forma muito intrigante.

— Sei. De uma forma que leva os homens a beber.

— De uma forma que leva os homens a refletir enquanto aproveitam um bom trago.

Isabel tentou resistir à indireta por causa de Viviane.

— Não deveria compartilhar esse tipo de coisa com a rainha?

— Gwen gosta de aproveitar a noite para fazer essas... — ele fez um gesto vago com as mãos — ... coisas que as mulheres gostam de fazer.

“Aposto que sim.” Já ela preferia as manhãs para aquele tipo de atividade. Mas não mencionaria tal coisa.

— Ela é adorável — comentou, brincando com o colar. Você deve amá-la muito.

A hesitação de Artur foi palpável enquanto seus olhos se fixavam no colo dela.

— Como se espera que eu ame. Ela é minha esposa. — Sentou-se, depois se levantou de novo e começou a andar. De repente, parou e voltou-se para Isabel, os olhos verdes atentos. — Já amou, condessa?

— Por que me pergunta?

— Nunca se casou.

— Não? Quero dizer, claro que não. Mas, Artur, parece saber tanto a meu respeito! — Muito mais do que ela mesma sabia sobre a condessa, na verdade. Até o momento, não tinha a menor ideia se fora casada ou não.

Pelo visto, não.

“Meu Deus, Viviane, eu não sou nenhuma virgem! ”

“ É verdade, Isabel. Não considera isso uma vantagem? ”

“Mas Artur acha que eu sou!”

“Então se considere uma atrevida e pare de se preocupar com a idade!”

— Como obteve todas essas informações sobre mim?

Ele pareceu adoravelmente confuso.

— Não tenho muita certeza. Na certa foram detalhes que meus homens reuniram enquanto inspecionavam Dumont.

— Por que mandou seus homens me investigar?

Mesmo sem graça, Artur continuava lindo.

— Mil desculpas, condessa, mas seria errado eu não me informar ao máximo antes de sua chegada.

Eles foram interrompidos por Tim, que chegou trazendo uma bandeja contendo duas taças. O rapaz a ofereceu primeiro a ela, depois a Artur, curvou-se quando eles o agradeceram e se retirou, discreto, sem nenhum traço de desconfiança no rosto quanto ao que devia ser uma situação incomum. Isabel não era nenhuma entendida no assunto, porém tinha certeza de que o líquido em sua taça era brandy , conhaque ou alguma bebida medieval equivalente. Com certeza não parecia nem cheirava a vinho.

Artur rodou a bebida antes de tomar um gole.

— Como é possível que um homem não consiga assumir o controle de seu coração?

— Eu não disse que o meu coração nunca teve dono, senhor. — Na verdade, ele parecia completamente arrebatado no momento, e ela conhecia o homem havia menos de vinte e quatro horas. — Apenas não conheci ninguém que me fizesse fazer os votos — explicou, sorrindo. — Eu os levo a sério demais para dizê-los a esmo. — Assim que as palavras saíram, Isabel quis dar um tapa na testa. A dor na expressão de Artur quase cortou seu coração. — Mas — acrescentou depressa — tenho certeza de que vou conhecê-lo, e também a essa coisa indescritível chamada amor, assim que eu o vir.

Ele baixou os olhos.

— Faz sentido para mim. Você é... Como dizem, mesmo? Única.

— Talvez. Por que está me perguntando esse tipo de coisa, Artur?

Ele fitou o colar, depois tornou a erguer o olhar. E seus lindos olhos pareceram lhe invadir a alma.

— Porque sinto vontade de beijá-la desde o momento em que nos conhecemos, senhora. Sei que é errado. Os lábios de minha esposa deviam ser os únicos a tocar os meus. No entanto, sua boca me fascina. — Artur deu-lhe as costas. — Isso não foi nada correto. Por favor, esqueça que falei tal absurdo. Não sei por que não consigo controlar minha língua a seu lado.

Isabel tinha a sensação de que sabia por quê. Havia um preço a pagar pelo poder do colar e, aparentemente, ela não seria a única a fazê-lo.

“E agora, deusa? Eu também quero a mesma coisa!”

“Droga. As coisas não estão acontecendo como eu previ.”

“Vou fazer o que puder para resistir.”

Viviane ponderou por algum tempo, mas foi por menos de um segundo, porque Artur não se moveu — como se ela o tivesse congelado no tempo enquanto concatenava as ideias.

“Uma encruzilhada nesta estrada parece haver, onde um pesado fardo hás de carregar. De um jeito ou de outro, o que vai ser? A felicidade de Merlin é o que me vai importar.”

“Mas...”

“Espera, ainda não terminei: tua alegria e a de Artur importam também. Em meu egoísmo, não pensei nisso antes... Na encruzilhada de que há pouco falei, deves seguir o caminho mais importante. Acredito agora que fazes o necessário. A felicidade de Artur, do meu homem, é o norte... Escolhe teu caminho, pois, e faz a tua sorte.”

Bem, aquilo ajudava um pouco, concluiu Isabel.

Ou não. A deusa estaria deixando tudo por sua conta? E se ela estragasse as coisas e todos saíssem perdendo? Iria se sentir péssima!

Ou, então, se realmente pusesse tudo a perder, não sentiria nada, porque estaria morta no fundo do Grand Lake.

Ela respirou fundo. Nunca fugira de suas responsabilidades antes. Mas aquele era um fardo para o qual não tinha certeza de estar preparada.

Endireitou os ombros e se pôs atrás de Artur, tocando-lhe o ombro. Ele se moveu, por fim, e se virou para ela com os olhos claros cheios de arrependimento.

Isabel sorriu de leve.

— Por favor, não se desculpe, Artur. Eu estaria mentindo se dissesse que não achei sua confissão lisonjeira e emocionante. Senti o mesmo quando se materializou por trás daquela árvore.

— Está sendo gentil.

Ela riu.

— Esta aí uma palavra que não costuma aparecer em uma frase a meu respeito. Mas não, senhor, gentileza nada tem a ver com isso. Foi honesto comigo, e eu lhe devo no mínimo o mesmo.

— Então eu posso? Somente desta vez? — indagou ele.

— Mas e quanto à sua esposa, Artur? Isto não seria uma traição?

Ele bufou.

— Traição. Eis uma palavra que eu conheço bem.

— Como assim?

— Posso parecer um tolo, Isabel, mas eu lhe asseguro: não sou. Não sou cego para o que acontece à minha volta. Talvez esteja até consciente demais.

Uma vez que ela havia acabado de chegar, ponderou Isabel, não haveria como saber sobre Gwen e Lancelot, a menos que houvesse escutado algum mexerico das criadas. E não iria colocar Mary em apuros por algo que a pobre não tinha feito.

Fingiu ignorância.

— Não sei o que o aborrece, Artur, portanto, não tenho palavras para consolá-lo.

A risada do rei saiu cheia de amargura.

— Já revelei mais a você, que é quase uma estranha para mim, do que aos homens de minha maior confiança.

Isabel recuou um passo até o banco e sentou-se. Em seguida, bateu no lugar ao lado.

— Por favor, junte-se a mim. Posso ter uma teoria sobre esse assunto. — Tomou um bom gole da bebida e, para sua surpresa, ela lhe caiu muito bem.

— Então, por favor — pediu ele, sentando-se a seu lado. — Deixe-me ouvir sobre essa sua teoria.

Isabel brincou com o colar, certificando-se de que a atenção de Artur se voltasse para ele por alguns instantes e torcendo para que o poder das lágrimas surtisse algum efeito.

— Acredito, senhor, que às vezes é bem mais fácil desabafar nos ouvidos de quem não está tão intimamente envolvido na situação. Uma visão não partidária, digamos assim.

— Não partidária?

— Daquele que tem pouco ou nenhum interesse no assunto. De quem não pende para nenhum lado.

O que não deixava de ser uma mentira porque, se ela iria escolher qual caminho tomar naquela encruzilhada, tinha muita coisa em jogo. Sem dizer que, por mais agradável que Gwen fosse, ela, Isabel, estava sem sombra de dúvida do lado de Artur.

A prematura noite de verão veio quente e mesclada com a fragrância dos lilases e do óleo das duas lanternas altas, posicionadas em ambos os lados da trilha coberta de musgo que dava para os jardins. A Lua seguia linda no céu escuro, contudo não ajudava muito, estando apenas em seu quarto crescente. Grilos enchiam o ar com seus silvos e cricris, os quais soavam, de certa forma, reconfortantes.

Artur não pareceu se conscientizar da atmosfera ao seu redor conforme olhava do rosto dela para o colar, depois novamente para ela.

— Por acaso seria essa pessoa apartidária?

— Se quiser que eu seja...

Ah, que maravilha! Ela havia acabado de se candidatar a ouvinte do rei. A ser sua psicóloga. Freud devia estar se revirando no túmulo àquela altura! Por outro lado, o que ele estava prestes a revelar poderia deixá-la tão revoltada que talvez ela parasse de olhar para aquelas mãos grandes e morenas. Para aqueles lábios. Para aqueles olhos.

— Por onde posso começar? — perguntou-se Artur, parecendo perdido.

— Por onde quiser. Como quiser.

Ele se levantou e começou a andar outra vez.

Nossa. Que traseiro! Que coxas e ombros! Seus homens, sem dúvida, não eram os únicos a pegar no pesado enquanto Artur ficava no trono.

Ele parou e a fitou, por fim.

— Fui eu quem teve a ideia. Imaginei que ela fosse beneficiar a todos: os moradores de Camelot e também os das terras vizinhas. Que fosse unir os cavaleiros de todos os reinos para que pudéssemos nos encontrar e discutir uma maneira de criar tratados que beneficiassem a todos, e que nos permitissem conviver em paz, com alegria e prosperidade.

— Parece-me um bom plano. — Provavelmente impossível, mas um dia, talvez...

Artur abriu os braços.

— Para mim também! Eu esperava que... Talvez, na minha arrogância... Que isso pudesse definir o meu legado como rei.

— Não há nada de arrogante em querer deixar uma marca no mundo, senhor. Não é o que todos esperamos conseguir durante o nosso tempo na Terra? Deixá-la melhor por conta de nossas atitudes?

Ele levou as mãos aos quadris.

— Eu quero mesmo beijá-la, condessa!

“Ah, eu também! Vamos, diga alguma coisa que me dê algum desgosto!”

— Sua história está apenas no começo. Por favor, continue — falou, em vez disso. — Vamos discutir essa outra parte assim que me revelar por que traz essa tristeza nos olhos.

Ele voltou para o banco e sentou-se, tomando um longo gole do cálice antes de pousá-lo. Então segurou a mão dela e passou o seu polegar sobre a palma.

Ela devia ter objetado, pensou Isabel. Devia ter se afastado. Mas foi um gesto tão suave que ela teve a mesma força de vontade das mariposas para evitar as lanternas.

Artur meio que balançou a cabeça.

— A reação dos cavaleiros foi positiva. Devemos nos encontrar aqui na próxima semana. Pedi que viesse à frente deles porque nossas terras fazem fronteira, e eu desejava conversar sobre o cultivo antes que os demais chegassem. E também — acrescentou ele, fitando-a nos olhos — porque talvez os cavaleiros não...

— ... aceitem uma mulher na mesa de negociação?

Artur concordou com um gesto de cabeça.

— Eu sinto muito.

— Isso não é problema. Podemos lidar com esse tipo de coisa mais tarde. E então... O que há de tão preocupante nessa reação à sua proposta? Não compreendo.

— É aí onde entra Lancelot.


Capítulo Sete


Isabel terminou o conhaque e também pousou o copo.

— Lancelot? Ele se sentou à nossa mesa esta noite, certo? Ele me pareceu um rapaz bastante agradável.

— Ha! — exclamou Artur. — Sim, de fato, é um rapaz bastante agradável. E também um dos lutadores mais habilidosos que já conheci. Tudo o que Lancelot precisava era de orientação, ou ao menos eu acreditava nisso. Em nossa convivência, senti que ele era o filho que eu sempre quis, o filho que eu nunca... fui capaz de fazer. Tanto que pedi que Lance viesse para Camelot com o intuito de integrá-lo à nossa guarda de segurança.

— E ele aceitou, claro.

— Sim. — Artur fechou os olhos. Em seguida, tornou a abri-los, fitando-a aberta e profundamente. — Lancelot também conquistou a admiração da minha esposa. Ele jurou que nos ajudaria a defender e a proteger Camelot. Jurou sua lealdade. No entanto, tornou-se óbvio que suas prioridades mudaram.

— Foi então que ele o traiu? Lancelot é agora uma ameaça para Camelot? — Fingir ignorância estava ficando cada vez mais difícil para Isabel. — E, se é assim, por que ainda o convida para sua mesa?

— Ele não representa uma ameaça para Camelot. Não tenho nenhuma dúvida de que Lancelot seria o primeiro a lutar em uma batalha caso... que os Céus nos livre... chegássemos a tal coisa. E também estou certo de que ele nunca teve a intenção de me trair.

— Mas traiu.

Artur olhou para o chão, quase como se não pudesse encará-la.

— Sinto, no fundo da alma, que Lancelot deseja ser fiel a mim. Mas também tenho absoluta certeza de que ele se apaixonou por Gwen.

— Não me diga. E quanto a Gwen?

— Creio que ela esteja correspondendo a seu amor.

— Ela disse isso?

— Não, não... Claro que não.

— Já perguntou isso a ela?

— Ainda não fui capaz de confrontá-la. Se a verdade for descoberta, as consequências serão gravíssimas. A infidelidade da rainha a seu esposo e rei é considerada traição punível com morte.

— Nossa... E ela por acaso está ciente dessa lei?

Artur abriu a boca para responder, porém um ruído no jardim atrás deles o fez silenciar. Ele levou um dedo aos lábios. Em seguida, cochichou:

— Fique aqui. — Ergueu-se e, em silêncio, se deslocou pela trilha sinuosa do jardim.

Isabel o observou se afastar, o coração disparado conforme Artur desaparecia nas sombras. Se alguém os estivesse espionando e escutado aquela conversa, as consequências seriam desastrosas. A coisa era séria demais para que ela ficasse ali, parada. Tensa, Isabel segurou o colar de lágrimas, perguntando-se se aquele era um daqueles momentos em que deveria colocar os poderes que ele detinha em jogo.

Então se lembrou do alerta de Viviane. Haveria repercussões para seu uso, e ela não queria nem pensar em quais elas poderiam ser. Se ela banisse o intruso, o que ela, ou eles dois, teriam como punição?

“Não temas, Isabel, este é meu encargo. Contigo Artur tem de aliviar seu fardo.”

“Ah, obrigada, Viviane! Você é um amor!”

Escutou uma risada suave na cabeça. Foi nesse momento que lhe ocorreu um detalhe.

“Ei, espere um minuto. Esteve nos observando e ouvindo o tempo todo? Isto é, ainda não escolhi o meu caminho, mas será que um deles pode me levar... para um pouco ou muito perto de Artur e...”

“Isabel, uma deusa eu sou. E tudo posso ver e ouvir; prometo, no entanto, nada observar se as vestes começarem a cair.”

— Que alívio! — falou ela, desta vez em voz alta.

— O que é um alívio, milady? — inquiriu Artur.

— Ah! — Isabel deu um pulo. Ele havia voltado tão silenciosamente quanto tinha ido.

Artur sorriu para ela.

— Mil desculpas. Eu não pretendia assustá-la.

— Eu... Eu estava apenas preocupada com a sua segurança. Está desarmado.

— Era somente um coelho. Não precisa se preocupar mais.

Em pensamento, ela se perguntou o que teria acontecido antes que Viviane interferisse.

Artur sentou-se de novo, depois a fitou e a acariciou no rosto com os nós dos dedos. Isabel mal conteve um gemido de prazer.

— Lamento ter falado dos meus problemas com você, Isabel.

— Acredite, suas dores e preocupações estão seguras comigo. Sinto-me honrada por tê-las confiado a mim, embora eu precise admitir: aborrece-me saber que alguém tão nobre tenha de lidar com tudo isso.

— E que não esteja lidando muito bem, receio.

— Converse com Gwen, Artur. Diga a ela como se sente. Permita que ela ao menos lhe dê uma explicação. Talvez suas suspeitas sejam infundadas. Ou talvez isso leve Gwen a perceber a gravidade de suas atitudes, e ela prometa parar antes que alguma coisa terrível aconteça com algum de vocês.

Ele assentiu.

— É muito sábia, condessa Isabel. Agradeço por ter me ouvido, e também por seus conselhos.

— Não há por qu ê , Artur. Espero que as coisas deem certo para todos nós... Quero dizer, para você.

— Teve um dia longo e cansativo, e eu a mantive acordada até tarde da noite. Talvez queira ir para o seu quarto.

— Estou longe de estar cansada, Artur, mas, se quiser se jogar na palha , vou entender.

Ele balançou a cabeça, rindo.

— Às vezes parece que falamos idiomas diferentes. Eu lhe asseguro que as camas dos quartos superiores são feitas de penas e muito confortáveis. Ao menos eu espero que as considere confortáveis.

Imagens deles testando o conforto da cama juntos afloraram na mente de Isabel. E, pelo brilho nos olhos de Artur, estavam tendo a mesma fantasia.

Ela limpou a garganta.

— Está pronto para se recolher, majestade?

— Sinto que poderia conversar com você a noite inteira, Isabel. Por que será?

E aquela agora? Como ela iria responder a tal pergunta? Porque quisemos pular um sobre o outro no momento em que nossos olhos se encontraram? Isabel optou por uma resposta mais recatada.

— Creio, senhor, que temos muito em comum. Muitos invejariam nossas posições, mas a verdade é que, às vezes, a nobreza é um tanto quanto solitária. — Ah, Deus, ela havia acabado de dizer aquilo mesmo? — O que quero dizer é que entendemos um ao outro.

— É uma boa mulher, condessa.

— Além do mais — completou Isabel, tentando trazer de volta um pouco de leveza —, na cavalgada até Camelot você riu de todas as minhas piadas de pontinhos.

Ele abriu o mais apaixonante dos sorrisos.

— Eu nunca tinha ouvido esse tipo de coisa. Devo dizer que adoraria viajar para Dumont um dia. Deve ser um lugar feliz.

Como, diabos, ela poderia saber?

— Rir é o melhor remédio — afirmou. Então quase gemeu. Chavões vinham saindo de sua boca a um ritmo alarmante. Estava precisando de uma terapia. — Você e a rainha serão bem-vindos ao meu castelo, a qualquer hora.

Uma sombra toldou os olhos de Artur, fazendo-a se lembrar do que eles haviam acabado de conversar.

Isabel segurou a mão dele.

— Desculpe-me, Artur. Você e seus homens também serão bem-vindos a qualquer hora. Podíamos fazer alguma coisa no estilo do The Bachelorette , aquele progr...

— Bachel... o quê?

— Esqueça. O que eu quero dizer é que as minhas portas estarão sempre abertas para você.

E ela lá tinha portas para abrir?

Isabel engoliu outro gemido. Deveria mais era cair dura e seca antes que se engasgasse com as próprias bobagens!

— Agradeço por tão hospitaleiro convite — respondeu Artur. — Um dia eu o atenderei.

Entreolharam-se por vários segundos. E, nesse meio-tempo silencioso, Isabel soube exatamente que caminho deveria tomar na encruzilhada.

Que os Céus a ajudassem!

Soltou a mão de Artur, ainda que relutante.

— Agora, antes de nos recolhermos, ainda tem que responder à minha pergunta, Artur.


Capítulo Oito


— Mil perdões, Isabel, mas eu me esqueci qual é.

Ela também tinha se esquecido!

“Eu ajudo: ‘Nossa... E ela por acaso está ciente dessa lei?’”

“Obrigada, Viviane!”

— Creio que perguntei se Gwen está ciente das consequências de seus atos, se é mesmo culpada dessa indiscrição.

— O que mais me entristece é que a resposta é “sim”. E está disposta a arriscar. Assim como Lancelot.

— Isso não é amor verdadeiro para mim. Não se Lancelot se dispõe a colocar Gwen em risco.

— Acredito que eles não possam evitar como se sentem. Quanto mais fico em sua companhia, mais compreendo. Há uma frase que minha mãe costumava dizer para mim quando eu era criança: “O coração só faz o que quer”. Não posso controlar os desejos do coração de Gwen, assim como não posso explicar como consegui extrair Excalibur. E assim como não posso explicar este sentimento que tenho por você.

Isabel não ficou apenas lisonjeada. Sentiu o corpo inteiro pegar fogo. Ou, pelo menos, os próprios hormônios. Contudo, mesmo que já houvesse escolhido o caminho, precisava bancar a advogada do diabo, uma vez que adultério ia contra todos os seus princípios.

— Artur, é possível que isso seja alguma retaliação? Está praticando o “toma-lá-dá-cá”? Está querendo magoar Gwen, assim como ela o vem magoando?

— Não sei o que é “toma-lá-dá-cá”, mas compreendo o termo “retaliação”. Se fosse esse o caso, eu teria escolhido assumir um sem-número de mulheres há muito tempo. Mas não é da minha natureza fazer esse tipo de coisa.

Isabel tinha certeza disso. Não sabia como, mas tinha. Artur não saltaria para os lençóis — ou, naquele caso, para as peles — da cama com outra mulher apenas para se vingar da esposa que o traía. E podia ter ido até mais longe, fosse ele um idiota vingativo. Podia ter exposto Gwen a qualquer momento, tê-la julgado, considerado culpada e mandado matá-la. Em vez disso, continuara a protegê-la — não importando o quanto aquilo o ferisse — dia e noite.

— Você ainda a ama muito — concluiu Isabel baixinho.

— Amo. Mas não como antes. Não da mesma maneira. Não é fácil olhar para a sua esposa e bancar o marido dedicado e carinhoso quando se sabe que ela anseia por outro.

De repente, Isabel se deu conta de que estava sóbria, mesmo após o delicioso conhaque. O torpor se fora, e sua mente estava limpa, o que deveria fazer com que seu juízo retornasse e retratasse a realidade. Mesmo assim, ela ainda queria aquele beijo. Mesmo sem estar sofrendo nenhuma “paixonite-relâmpago” causada pela embriaguez.

Aquele desejo permanente era um sinal.

Estava se apaixonando, porém com total compreensão do que aquilo significava. Merda. Precisara regredir vários séculos para encontrar um amor? O destino não era necessariamente cruel, mas tinha um senso de humor um tanto quanto distorcido!

— Não existe divórcio em Camelot?

— Divórcio?

— A dissolução do casamento? Anulação? Um “tchau” oficial?

— Entre um rei e sua rainha?

— Claro! Quero dizer... Em Dumont permitimos que os maus casamentos sejam anulados, de modo que os cônjuges fiquem livres para se casar outra vez.

— Sem motivo? Um deles não tem que admitir ter cometido alguma ilegalidade?

Isabel não tinha certeza de como explicar, portanto, resolveu falar de uma vez:

— Chamamos isso de “diferenças irreconciliáveis”. Ninguém é culpado. Apenas aconteceu. O casamento não é mais palatável para nenhum dos dois.

Artur ponderou por um bom tempo.

— Nunca ouvi falar disso. Quando há queixas em uma união, é minha função atribuir culpas. O homem ofendido será...

— Espere um pouco. Não me diga que é sempre o homem quem se declara ultrajado?

— Se a mulher se deita com outro, então...

— E se foi o homem quem traiu?

A risada do rei quase ecoou pelas paredes do castelo.

— Isabel, eu não conheço as leis em Dumont, mas, em todas as outras terras da Bretanha, os homens são...

— Considerados de uma forma diferenciada. Claro.

Ele franziu a testa.

— Estou confuso com essa sua reação negativa.

— Sinto muito, Artur, mas acabei de perceber que existem dois pesos e duas medidas aqui. Eu não devia estar surpresa. Não devia estar descontando em você a minha irritação... As coisas são como são.

— No entanto, peço desculpas se a ofendi.

“Para com isso, Isabel, e dê-lhe um desconto. Apenas tu podes ensiná-lo a ver de outro ponto!”

— De modo algum — contrapôs ela depressa. — Tem sido muito gentil. É culpa minha reagir tão negativamente a respeito de algo que você não pode compreender.

Artur balançou a cabeça, rindo.

— Pois eu gostaria de voltar a esse assunto em outra ocasião. Você me intriga, Isabel. Estou ansioso para termos muitas outras conversas.

— Eu também.

Ela jamais saberia o que a levou a dizer aquilo, mas acrescentou:

— Artur, antes que faça algo de que possa se arrepender, é hora de ter uma conversa com Gwen. Revele seus sentimentos.

— Gwen não faz ideia de que sei de tudo.

— Então, conte a ela. — Isabel deu de ombros. — Peça-lhe que faça uma escolha. Afinal de contas, o coração é que manda.

— Neste exato momento, não sei qual resposta eu preferiria, Isabel.

Ela fez uma reverência, desta vez um pouco melhor do que antes.

— Estou ansiosa por nossas futuras conversas, Artur.

E, Deus, também estava ansiosa por um beijo. Por muito mais. Porém não naquela noite. Sua atração por Artur era inebriante, contudo ela não estava disposta a beijar um homem casado se ele se propunha a fazer o mesmo apenas para mostrar à esposa que também era capaz de trair dentro do casamento.

Artur se inclinou, depois endireitou o corpo e a fitou nos olhos.

— Eu a queria esta noite. Mas compreendo sua relutância. E aceito sua decisão.

— Agradeço muito, senhor. Quer um conselho? Do fundo do coração? Converse com Gwen.

— Confesso que temo ouvir as explicações dela.

— Seja homem, rei Artur.


Capítulo Nove


Artur entrou em seu dormitório, e Gwen já estava lá, esperando por ele.

Tinha o roupão aberto e os cabelos castanhos caindo sobre os ombros. Pouco tempo antes, a simples visão dela o deixaria excitado e pronto para pegá-la nos braços e levá-la direto para as peles da cama. A verdade era que, até depois do que ficara sabendo, decerto ainda faria tal coisa. Por isso mesmo, ficou surpreso que, pela primeira vez, a visão do corpo belo e jovem não deixou seu membro rijo como um pilar de dossel. Na verdade, seu membro não levantaria uma pulga de um cão no momento.

Quando deixara de desejar a esposa? Quando havia parado de amá-la? Não antes que suas suspeitas tivessem sido confirmadas.

Ele bem que tentara reconquistá-la com sexo e romantismo, contudo a reação de Gwen a seus gestos de amor ficaram óbvias. Ela já não o desejava como antes. O que mais o chocava, no entanto, era que, naquele momento, ele próprio já não a desejava. Os olhos azuis e os cabelos dourados de uma mulher de palavras e ideias inteligentes continuavam povoando sua mente. Não conseguia tirar Isabel da cabeça.

Gwen caminhou até ele. Cheirava a sexo, e ele teve ímpetos de recuar e pedir-lhe que se banhasse.

— Onde esteve, Artur? — perguntou com estranheza.

— Estive conversando com a condessa — respondeu ele, sem dizer nenhuma mentira. — Tínhamos muito a discutir sobre as nossas terras.

Aquilo também era verdade, de certa forma. E ele ficara tão intrigado com as opiniões de Isabel acerca das leis e dos reinados! Estava ansioso para viajar a Dumont na primeira oportunidade a fim de ver na prática as outras tantas maneiras que ela mencionara de governar um reino.

A inverdade, ali, era que havia desejado estar com a condessa de muitas outras formas... E de todas as que ele costumava adotar com a esposa após um longo dia. Não era uma espécie de mentira não expressar tal pensamento? Ali estava outra pergunta que se encontrava ansioso por fazer à condessa quando tivessem a chance de discutir assuntos tão intrigantes de novo. Mal podia esperar para mergulhar ainda mais em suas ideias. E, verdade fosse dita, para mergulhar nela de outras maneiras, também.

Artur começou a se despir, e Gwen se aproximou por trás dele.

— Vamos pedir água para um banho?

O toque dela costumava lhe provocar muito prazer, mas, no momento, ele teria apreciado arrancar aquelas mãos de seu corpo.

Pensou nas palavras de Isabel, e a decisão lhe veio num flash . Já era hora de acabar com aquela farsa.

— Eu sei de tudo, Gwen.

— Não compreendo... Sabe o quê?

Artur virou-se para encará-la.

— Sobre você e Lance.

Gwen deixou cair o queixo.

— O que está dizendo, Artur?

Ele olhou para a mulher que um dia tinha amado com todas as forças.

— Negar é triste e inútil. Está cheirando a sexo... E ainda me convida para tomar banho com você? Onde está sua fidelidade, Gwen? Aonde foi parar o seu amor? Por favor, se ainda lhe resta algum sentimento por mim, não minta, mulher!

Os olhos azul-acinzentados se encheram de lágrimas.

— Ah, Artur, eu sinto tanto!

— Por eu ter descoberto?

— Eu juro... Eu nunca quis que isso acontecesse.

No fundo da alma e do coração, ele acreditava nela. Gwen era uma das mulheres mais atenciosas e carinhosas que ele já conhecera. Ela jamais iria ferir uma pessoa, uma flor ou um animal de propósito. Ele ainda a amava.

Só não estava mais apaixonado por ela. A paixão havia lentamente arrefecido, primeiro com as suspeitas, depois quando a certeza criara raízes suficientes para sufocá-la. Era a parte mais triste daquele descalabro.

— Vou acabar com tudo. Eu prometo.

Ele balançou a cabeça.

— Não se pode controlar o coração. Não vai conseguir pôr fim nisso, assim como não conseguiria pisotear suas adoradas peônias.

— Eu te amo, Artur! — afirmou ela, torcendo a camisola.

— E eu também te amo, Gwen. Mas, por favor, não finja me querer quando deseja outro. Eu a protegerei com a minha vida; contudo, não vou fingir em nossa cama. E também não suportarei que continue fingindo. Não é justo comigo nem com Lance. — Ele suspirou. — Na verdade, só quero um banho agora... Sozinho. Antes de eu vir para cá, tomei algumas providências. Meu banho está sendo preparado no quarto ao lado, onde também irei dormir.

— Artur!

— Você, minha querida esposa, foi quem fez a cama onde vai se deitar agora. Meu único pedido, ou melhor, exigência, é absoluta discrição. Não poderei protegê-la se você mesma não se proteger.

— E... E quanto a Lancelot?

Até mesmo ouvir o nome de seu confiável cavaleiro saindo dos lábios de Gwen era uma punhalada em seu coração, concluiu Artur. Sua infidelidade fora insuportável, mas saber com quem ela dividia a cama quase o matara.

— Eu trouxe Lance para cá, Gwen. Eu o tive sob as minhas asas, fiz dele um dos meus soldados mais valiosos... Lance era como um filho para mim. Sua traição também é difícil de lidar.

— Vai bani-lo, então? — Não havia nem uma ponta de súplica nos olhos de Gwen. Apenas a triste consciência de que aquela seria a solução mais óbvia, a conclusão mais óbvia.

— Não.

Ela jogou a cabeça para trás, surpresa.

— Como? Ouvi bem?

— Ouviu. Preciso de Lancelot para a prosperidade e a segurança de Camelot. Ainda não consegui perdoá-lo, mas consigo compreendê-lo. Não se esqueça de que eu também já estive na mesma posição em que Lance está. Eu teria feito qualquer coisa por você.

— É muito doloroso ouvi-lo falar no passado, embora eu saiba que foi o meu próprio erro que provocou tudo isso.

— Exigirei discrição tanto dele quanto de você, Guinevere. Total discrição, para o bem de ambos. Porque, se forem pegos, eu não poderei proteger mais nenhum dos dois. Isso está claro?

Ela colocou a mão em seu peito.

— Prometo que o farei, Artur, do fundo do meu coração. Vamos parar com essa... coisa entre nós. Lancelot o ama tanto quanto eu. Nenhum de nós jamais iria querer lhe trazer vergonha ou desonra.

A gargalhada de Artur a assustou.

— Receio, minha doce Gwen, que o portão já esteja aberto, que os cavalos já tenham passado por ele e deixado o castelo há muito tempo.

— C-Como?

— É tarde demais.


Capítulo Dez


Isabel não conseguia dormir. A cama era mais do que confortável, embora ela desconfiasse de que a Sociedade Protetora dos Animais não fosse aprovar a pele que a cobria. Tinha virado de um lado para o outro, de costas e de barriga para cima, mas nenhuma posição permitia que sua mente parasse de funcionar e ela caísse no sono, fosse ele tranquilo ou não.

E dormir um pouco cairia tão bem no momento!

A porta se abriu em silêncio, e apenas a luz das lanternas do corredor que incidiu através do quarto foi um alerta. Isabel sentou-se, alarmada, mas em seguida reconheceu Mary, que trazia ambos os braços ocupados com duas toras de lenha para a lareira.

— Ah, você me assustou!

Mary congelou no lugar.

— Mil perdões, condessa — desculpou-se a moça com uma pequena reverência. — Imaginei que devia estar adormecida a uma hora destas.

— A pergunta é, por que você não está dormi ndo? — volveu Isabel. — É moça demais para trabalhar por tantas horas.

Mary colocou a lenha cuidadosamente sobre as brasas e abanou as mãos para atiçar o fogo.

— É um prazer servi-la, condessa — disse, depois se levantou e se virou com um sorriso travesso no rosto. — E verdade seja dita: quando não precisa de mim, dou um cochilo ou dois durante o dia. Durmo mais do que o suficiente.

— Fico feliz em ouvir isso, mas me responda uma coisa, Mary... O que faz por prazer?

— Como assim, milady? Não tenho certeza se compreendi a pergunta.

— Você e suas amigas... O que fazem para se divertir? Jogam? Praticam esportes?

— Não temos muito tempo para esse tipo de coisa.

— Porque têm muitas tarefas, não é?

— Mais ou menos, senhora.

— Vou cuidar disso — murmurou Isabel.

— Como?

— Nada... Nada, Mary. — Isabel jogou as cobertas para o lado e se pôs de pé. — Escute, eu não consigo dormir. Talvez uma pequena caminhada me fizesse bem. Existe alguma maneira de se chegar aos jardins, ao sul do castelo, sem passar lá por baixo, pelo salão nobre?

— Há, sim, condessa, mas a escadaria dos fundos é para uso dos criados, não para os gostos da realeza.

— Esta noite serei uma serva, então. Por favor, ajude-me a encontrar meu manto e mostre-me por onde ir.

Mary conduziu Isabel até os jardins que ela compartilhara com Artur algumas horas antes. Por sorte, não encontraram ninguém pelo caminho. O castelo parecia estar inteiro adormecido.

Isabel agradeceu a Mary profusamente e tentou presenteá-la com uma das centenas de moedas que descobrira em uma bolsa, dentro de um de seus baús. Mary a fitou, horrorizada, e recuou.

— Não, condessa, não posso! Se alguém vir esta moeda, posso ser acusada de roubo.

— Como, se posso afirmar a todos que foi um presente por seus excelentes serviços?

— Não estou autorizada a aceitar tais regalos.

Nossa. Bom seria se as equipes de empregados dos navios de cruzeiro ouvissem aquilo! Aquela gente não tinha escrúpulo nenhum em estender a mão a cada oportunidade.

Isabel prometeu a si mesma que encontraria uma maneira de recompensar Mary pela ajuda e gentileza, de um modo que não colocasse a garota em apuros.

— Pelo visto acabei de cometer outra gafe. Peço desculpas se a ofendi, Mary.

— Gafe?

— Esqueça. É apenas mais um termo aparentemente exclusivo da minha terra. Por favor, vá para a cama agora, e obrigada por me ajudar.

Mary fez nova mesura, o que já estava começando a dar nos nervos de Isabel.

Contudo, ela mordeu o lábio e desejou uma boa noite à criada.

— Posso voltar sozinha, Mary. E não vou precisar de ajuda até o banho da manhã.

— Muito grata, senhora. Espero que encontre aqui a paz que está procurando.

Isabel desejava a mesma coisa, no entanto desconfiava de que paz era algo que não iria encontrar tão cedo.

— Pelo visto, nenhum de nós está conseguindo sossego esta noite.

Ela praticamente saltou em direção às torres. Girou o corpo e se deparou com o motivo de seu tormento inclinado contra um damasqueiro.

— Artur! Pelos deuses, quase me matou de susto!

Ele se curvou.

— Minhas desculpas, Isabel. Não foi a intenção.

Ela estreitou os olhos.

— Está me seguindo?

Artur se afastou da árvore com o ombro, depois avançou um passo, o silêncio felino de seus movimentos quase assustador.

— Creio que você tenha me seguido, uma vez que já estou vagando pelos jardins há algum tempo.

— Eu não fazia ideia — afirmou Isabel, sentindo-se afrontada. — Não estava conseguindo dormir. — De repente, ela atinou com um detalhe. — Não é culpa de Mary! Eu exigi que ela me ajudasse a encontrar o caminho de volta para cá de uma forma que não nos fizesse atravessar o salão principal.

— Garanto que Mary será recompensada, e não punida, por seus atos. Na verdade, ela tem demonstrado mais lealdade a seu rei do que testemunho de muitos outros criados há um bom tempo.

Artur contornou o banco mágico em que tinham conversado e segurou a mão dela.

— Por favor, junte-se a mim e me diga por que não consegue dormir, condessa.

— Receio não saber o motivo.

— As acomodações não estão do seu gosto? Farei qualquer coisa para torná-las mais confortáveis.

Para isso, ele teria que compartilhar sua cama, concluiu Isabel. Seu calor, seu corpo rijo, seu cheiro... Que, pensando bem, parecia diferente agora. Artur obviamente tomara um banho e lavara o cabelo. Ela não conseguia identificar seu perfume, mas era delicioso.

Sentou-se no banco, ciente de que trajava apenas uma camisola e uma capa. Como queria ter encontrado jeans e camisetas naqueles baús!

Artur ficou diante dela, sem sentar-se a seu lado, apenas balançando a cabeça.

— Eu disse tudo a ela, Isabel.

Ela fitou os olhos verdes do homem dos seus sonhos com o coração dolorido.

— A Guinevere?

— Sim.

— E o que disse a ela? Sua pontuação no boliche? Quanto tem de crédito? Como fazer um interruptor movido a palmas funcionar?

Artur sorriu e sentou-se.

— Tem o dom de me fazer sorrir, condessa, mesmo num momento triste.

— Isso é ótimo, mas do que está falando?

— Eu disse a Gwen que sabia de tudo o que estava acontecendo entre ela e sir Lancelot.

— Ah, Senhor! Por quê?

— Por quê? Mas foi você quem me aconselhou a falar com ela!

Caramba.

— Eu quis dizer uma conversa para tentarem resgatar alguma coisa, sei lá! Ou pelo menos imaginei que tinha falado isso.

“Não falei, deusa?”

“Falaste mesmo, Isabel?”

“Agora, só o tempo dirá...”

“Mas não foi minha intenção com o casamento deles acabar! Vou me sentir muito mal se para isso vim para cá!”

“Eu te trouxe até aqui para Artur e Merlin agradar. Fazer a felicidade de alguém não é nada para se lamentar.”

Mais uma vez, Artur se pôs a andar à sua frente, algo que Isabel já havia notado ser um hábito quando ele estava pensativo ou, possivelmente, analisando o que lhe ia na alma.

— Desde o momento em que pus os olhos em Gwen, nunca mais senti desejo por outra. Nunca. Nem mesmo depois que eu soube da verdade. — Ele parou de andar e a fitou nos olhos. — Até o nosso encontro na floresta... Quando, de repente, me vi desejando uma mulher que não era a minha esposa.

— Sinto muito.

Artur riu mais uma vez.

— Está pedindo desculpas por ser bela? Por ser você?

— Não pretendo ser a razão do fracasso do casamento de ninguém.

— Mas será que ele já não tinha fracassado?

— Diga-me você, Artur.

Ele abriu aquele sorriso “pode-vir-quente-que-eu-estou-fervendo” mais uma vez. Isabel estava certa de que Artur não percebia o que estava transmitindo, mas era como se carregasse uma placa em que se lia: “Sou todo seu”.

— Você me abriu os olhos esta noite, condessa. É tão linda e direta! Essa sua boca verte objetividade e, no entanto, demonstra tanta compaixão!

Diabos, aquilo ficara tão claro como Física Q uântica.

— Obrigada... Acho. Como foi a sua conversa com Guinevere?

Ele fez um gesto vago.

— Ela não negou. Não implorou por misericórdia para si mesma, mas, sim, para Lancelot. Imaginava que o castigo dele fosse ser apenas o banimento.

— Sinto muito.

Uma vez mais, os olhos verdes de Artur se fixaram nela.

— E quanto aos seus pensamentos?

Terapia, Isabel decidiu, não era mesmo o seu forte. Principalmente quando queria tanto aquele homem. Estava louca para tomar um rumo que a levaria direto à realização de seus desejos mais egoístas.

— Por favor, diga-me que não vai pôr os dois para correr.

— Pôr para correr?

— É... Gwen e Lancelot. Não vai machucá-los nem puni-los, não é?

— Nunca. No entanto, nem tudo está em minhas mãos. Posso protegê-los até certo ponto.

— Então, vamos protegê-los.

— Como, Isabel?

— Ama os dois, não ama?

— Com toda a certeza. Não como antes, mas, ainda assim, eles significam muito para mim.

— Decidiu, no fundo da alma, que não quer castigá-los, certo?

— Sim.

— Precisamos elaborar um plano. Um plano de batalha, se for o caso.

Artur soltou uma risada gostosa e, mais uma vez, ele a fitou dos pés à cabeça.

— Você é mesmo uma constante surpresa, condessa.

— Que diabos... Podemos dar um jeito nessa história. Tem que haver uma maneira de conseguirmos o que queremos.

— O que eu quero agora é sentir os seus lábios.

— Mantenha o foco, Artur.

— Já disse isso antes, em nossa jornada até Camelot. No entanto, o foco, como você mesma diz, pode ter mudado.

— Quer manter Camelot e todo o seu povo em segurança, não quer? Isso nunca mudou.

— Não posso negar. No entanto, o que eu mais desejo na vida pode ter mudado.

— Um plano. Temos que elaborar um plano — ponderou Isabel, enquanto Artur traçava outro, bem diferente.

Embora os criados já houvessem apagado as lanternas do jardim para a noite, ele as tinha acendido outra vez ao vir até ali para pensar no futuro. Tudo o que sempre imaginara, esperara e desejara parecia confuso agora. Tudo parecia ter ido por água abaixo. Quando havia perdido o controle sobre as coisas? Por algum tempo, mantivera tudo em ordem, funcionando perfeitamente. E, de repente, os deuses pareciam zombar de seus sonhos e desejos.

Sentada no banco, Isabel o fitava com intensidade, os cabelos loiros cintilando à luz das lanternas, os olhos imensos e curiosos.

— Eu a amo. Eu sei que amo. Mas o que dizer do fato de eu não conseguir deter o que acontece e dessa atração que estou sentindo por outra mulher? Como é possível que eu a tenha desejado desde o primeiro momento em que a vi?

Nossa. A honestidade que aquele colar da deusa evocava era muito mais poderosa do que ela imaginara!

— Talvez — apenas talvez — porque tenha se apaixonado por uma bela mulher que é jovem demais para você?

Ele tornou a balançar a cabeça.

— O que me torna um velho idiota, decerto.

— Artur, não é velho nem idiota. Gwen é uma menina linda. E eu acredito que ela o ame também. Vejo isso quando ela olha para você. Ela o respeita e o admira, e sente orgulho em ser sua rainha.

— Vê amor ou desejo quando Gwen olha para mim?

— Não estou aqui há tempo suficiente para analisar esse tipo de coisa.

Aquela era a maior besteira que ela já havia soltado na vida. Quando a rainha lançava seus olhares furtivos para Lancelot, tudo o que ela via era luxúria e desejo.

— Balela — contrapôs Artur. — Desculpe-me a palavra e por usá-la na sua presença. Falei isso ao sentir que estava sendo enganado. Não está sendo sincera comigo.

Isabel o fitou por um instante, em seguida se pôs a rir.

— É mesmo sincero demais, senhor!

— E você, senhora, está se esquivando do problema que prometeu me ajudar a resolver.

Isabel desejou ter podido voltar trás e se formado em Psicologia. Contudo não tinha nada, a não ser a lógica, em que se fiar.

Além da deusa, que ela esperava lhe cutucar o peito se fizesse alguma coisa errada.

— Posso ser direta?

— Direta?

— Verdadeira a ponto de lhe causar dor.

— Pode, condessa.

— Creio que ama Gwen o suficiente para permitir a sua felicidade. Acho que a protege dos mexericos porque quer que ela tenha esses encontros e seja feliz. E aposto que não bane Lancelot daqui porque sabe que os dois são felizes juntos. Quer que eu continue para poder me expulsar depois?

— Eu lutaria contra meus próprios homens para mantê-la aqui, condessa.

— Pergunte a si mesmo, então: por que permite tal coisa?

— A felicidade é algo efêmero, não acha? Sou árbitro da felicidade? A Coroa não me concede o direito de determinar quem deve e quem não deve encontrá-la, seja onde for. — Artur inclinou a cabeça para o lado mais uma vez. — A verdade é que, honestamente, eu não sei. Por mais estranho que pareça, quero que Gwen seja feliz.

— É um homem de bom coração, Artur.

— Mas com muitos defeitos, ao que parece.

— Tais como?

— Falta-me bom-senso, talvez.

Isabel se levantou.

— Está dizendo que querer me beijar é uma falta de bom-senso?

— De maneira alguma, senhora! Essa seria, sem dúvida, uma das minhas decisões mais acertadas.

— Sem querer ofender, considera-se bom nisso?

Os olhos de Artur cintilaram, e ele deu de ombros.

— Está aí um mistério. Talvez eu esteja equivocado e sendo prepotente em se tratando dessa habilidade. Como posso saber?

— Sou bastante hábil em determinadas artes, senhor. Talvez eu possa determinar se esse é um defeito muito grave seu.

Isabel esperou pelo baque no peito, porém este não veio.

Artur ficou imóvel.

— Eu certamente aceitaria qualquer sugestão vinda da senhora.

Olharam um para o outro por muito tempo antes que ele abaixasse a cabeça, por fim. As bocas se encontraram tímidas a princípio, porém o fogo logo se alastrou. Antes que Isabel pudesse pensar, Artur mergulhou uma das mãos em seus cabelos enquanto a outra descia por suas costas, puxando-a para mais perto. Ele interrompeu o beijo, apenas por tempo suficiente para fitá-la nos olhos.

— Posso fazer melhor...

Se ele fizesse, pensou Isabel, iria derreter!

A boca de Artur desceu sobre a dela novamente, e fez tantas pequenas coisas com seus lábios que ela precisou se segurar nele. Artur tinha gosto de sexo, brincava com sua boca como se estivesse fazendo sexo, mordiscava seus lábios de leve como no mais erótico dos encontros.

No momento em que parou de beijá-la, ela estava em chamas.

Artur a segurou pelo rosto, o que a deixou prestes a desabar no chão. Seus joelhos não estavam em condições de sustentá-la. Ela começou a desabar, contudo ele a agarrou pela cintura e a puxou de volta.

— Foi tão ruim assim? — indagou, rouco.

Isabel sabia que tinha os olhos parados e o cérebro embotado. Suas cordas vocais também se recusavam a trabalhar, e ela limpou a garganta.

— De onde eu venho, sir — sussurrou, ofegante —, nós classificamos os nossos alunos de A a F, sendo o A para quem é admirável e o F para quem é um fracasso. O B, o C e o D ficam no meio-termo.

— E onde eu me encaixo, Isabel? — indagou Artur, ainda devorando-a com os olhos verde-musgo.

— Não só seria o orgulho do reitor, como provavelmente acabaria como o orador da turma.

Ele inclinou a cabeça.

— Como? Às vezes nossos idiomas parecem não corresponder...

— Minhas desculpas, senhor. O que estou dizendo é que ganhou um A+.

Ele sorriu.

— Isso é bom?

— Um orador de turma em potencial, Artur.

— O que é maior do que esse orador oficial? Eu gostaria muito de chegar lá...

— Eu adoraria se tentasse...

— Você é bonita demais, Isabel. Seus cabelos são tão suaves como a sua pele, e o seu perfume, doce e inebriante.

— Está falando demais. Prefiro que cale a boca e me beije.

Em vez de cobrir os lábios dela com os seus, Artur ergueu a cabeça e tapou-lhe a boca com a mão.

— Shh, condessa. Algo está errado.

Não era possível que fosse o tal coelho de novo...

Na verdade , ela pensou, melhor seria se fosse!

Antes que Isabel soubesse o que estava acontecendo, Artur a tinha empurrado para trás das costas enquanto encarava a escuridão dos arbustos ao longo do jardim.

— Quem vem lá?! — exigiu. — É amigo ou inimigo?

— Sou eu, meu rei... James! — respondeu uma voz além da luz das lanternas.

James, lembrou Isabel, era o sujeito grande e forte, primeiro homem do rei. Ela não sabia se corria, se se escondia ou fingia ser um poste, porém Artur não lhe deu nenhuma escolha: segurou-a com tanta força que ela não poderia ter se movido, se quisesse.

— Apresente-se, James. E diga-me por que veio até aqui me procurar.

James se aproximou, espalhafatoso, ainda que, estranhamente, caminhasse com tanta suavidade como uma bailarina. Pelo visto, aprendera a carregar com graça seu imenso volume. Quando ela espiou por trás de Artur, a expressão do homem passou de preocupada a gentil, fazendo-a se lembrar do Shrek .

— Senhora condessa! — saudou, inclinando-se.

— Como vai, James? — tornou ela, por algum motivo já gostando dele enquanto pensava que Artur havia se cercado de gente muito confiável.

— Receio ser obrigado a ter uma conversa com o rei, condessa Isabel. Em particular.

— Pode falar qualquer coisa diante da condessa, James. Eu confio nela, assim como confio em você.

Ah, aquilo era mesmo muito fofo. Mas insensato. Ela mesma não tinha certeza se poderia confiar tanto em Artur após tão pouco tempo... e de tanta luxúria.

Desvencilhou-se de Artur, por fim, e se pôs a seu lado.

— Estou certa de que o que James tem a dizer não é da minha conta. Por favor, permita que eu os deixe à vontade.

Artur a agarrou pela mão com firmeza, mas não a ponto de machucá-la.

— Não, milady, sejam quais forem as notícias, sei que elas estarão a salvo com você.

James tinha enormes olhos castanhos e cabelos que pareciam nunca ter sido penteados desde que ele era criança. Para quem não o conhecesse bem — o que era o caso dela —, parecia um tanto quanto ameaçador.

Quando ele olhou de um para o outro, contudo, Isabel teve a certeza de que James não era má pessoa. Apenas muito atento, o que provavelmente fazia com que ele passasse aquela impressão.

— Vou embora — decidiu ela e, mais uma vez, tentou se desvencilhar.

— Não, por favor — pediu Artur, segurando sua mão com firmeza. — Que notícias me traz, James?

O homem hesitou, depois encolheu os ombros enormes.

— Mordred está aqui, senhor.

Artur não soube se comemorava ou se ficava preocupado.

— No meio da noite?

— É o que ele costuma fazer, como o senhor bem sabe.

— Mordred? — perguntou Isabel.

Artur apertou a mão dela ainda mais, torcendo para que não a estivesse machucando. A necessidade que sentia de tê-la a seu lado, entretanto, parecia mais forte do que nunca.

— Providenciou-lhe acomodações? — perguntou a James.

— Eu não sabia onde colocá-lo. Não tinha certeza se era bem-vindo.

— Sabe que eu não posso mandá-lo embora. Claro que devemos lhe dar as boas-vindas.

— Mordred está exigindo ajuda para o cavalo, que ele garante ter ficado coxo na viagem pela floresta.

— Acorde Harry — sugeriu Isabel. — Ele pode cuidar do animal... Mas, pelo amor de Deus, será que alguém pode me dizer quem é Mordred?

James silenciou e desviou o olhar.

Por alguma razão com a qual Artur não conseguiu atinar, ele não conseguiu mentir.

— Mordred é meu filho.

Isabel o fitou, depois olhou para James, que manteve a cabeça baixa, ainda que concordasse em silêncio.

— Eu devia ter prestado mais atenção às aulas de Mitologia.

— Como disse, milady? — indagou o homem.

— Como nenhum de vocês me pareceu feliz com a notícia, imagino que a chegada de Mordred não seja motivo de celebração. Diga a verdade, Artur.

— Mordred não me ama — afirmou ele. — Acha que cometi uma injustiça com ele.

— Você!?

— Ele não cometeu injustiça nenhuma! — inflamou-se James. — Milorde tem feito de tudo para aquele ingrato e...

— James!

— Perdão, senhor.

— Termine o que estava dizendo, James, por favor — pediu Isabel.

— Não — contrapôs Artur.

James apertou os lábios. Obviamente o rei estava acima da condessa. E, como ele era um dos homens de Artur, ela não poderia esperar dele outra reação.

“O que estou perdendo aqui, deusa?”

“Artur e Mordred o mesmo sangue carregam, mas os desígnios do rapaz a todos apavora... Fruto da luxúria e de um amor adolescente, a inocência do pai, Mordred ignora. Ainda que a mãe morta haja o rei poupado, o ódio do menino tem a Artur escravizado.”

Isabel sentiu gosto de sangue nos lábio s. “Esse bastardinho!”

“Bastardo, de fato, mas uma coisa te direi: Mordred não irá descansar até que um dia seja rei.”

Isabel digeriu as informações por um momento, incapaz até mesmo de fitar Artur nos olhos.

— Bem... — falou, por fim, a Artur e James. — Que tal eu ir acordar Harry para que ele possa cuidar do cavalo de Mordred?

— Não! — falaram eles em uníssono. Artur tentou detê-la, contudo ela já escapulira de volta para o castelo.

Ele devia tê-la segurado pela mão com mais força!

— E agora, senhor?

— Ela vai confrontar Mordred. Está na natureza da condessa, James. Ela é do tipo que quer saber de absolutamente tudo. Isabel é o que se pode chamar de... — A palavra não lhe vinha.

“Enxerida? Superprotetora?”

Artur não sabia de onde vinham aqueles pensamentos, porém todos eles pareciam precisos. Ainda que não fizesse ideia do significado da palavra “enxerida”.

“Artur, se não proteger Isabel, Merlin não poderá viver!”

“Merlin? O que sabe sobre Merlin? E quem é você, falando na minha cabeça?!”

“Tenta descobrir, se fores capaz. Agora vai e protege Isabel! Caso ainda não tenhas notado, ela pode pôr fim à tua paz...”

— E eu não sei disso? — resmungou o rei.

— Como disse? — desculpou-se James.

Artur balançou a cabeça. Ou estava ficando louco ou...

Não, não havia alternativa. Estava louco.

— Confrontar Mordred colocará a condessa em perigo — afirmou James.

— Com certeza. E temos que impedir isso. Isabel conhece a escada dos fundos, James — lembrou Artur. — Vou tentar alcançá-la lá enquanto segue para os estábulos.

James na verdade sorriu.

— Vamos alcançá-la, milorde. Mas devo confessar que gosto da ideia de a condessa enfrentar aquele menino.

— Eu não. Ela não sabe com quem está se metendo.

— Pois me parece que a condessa tem coragem de sobra para tanto.

— Talvez até mais do que devia. O desprezo de Mordred pelas mulheres é notório, você sabe.

— E ela o admira, milorde, o que é mais do que devo dizer.

— Nem termine tal pensamento, James! Por favor, apenas me ajude a encontrá-la.

— Sim, milorde.

— Vá para os estábulos. Vou tentar interceptar Isabel na parte de trás do castelo antes que ela consiga escapulir.

Artur correu, mesmo tendo testemunhado outro sorriso no rosto de seu soldado.

O que mais o intrigou, porém, foi sentir um sorriso se formando em seu próprio rosto, mesmo enquanto estava tentando evitar um desastre. Isabel contra Mordred. Ele não conseguia nem imaginar qual dos dois poderia ganhar tal batalha. Ou melhor, podia. Se se tratasse de uma batalha de palavras e sagacidade, colocaria todas as moedas na condessa. No entanto, Mordred não se fiava em nenhuma das duas coisas, preferindo usar armas bem mais desagradáveis.

Pensar que o filho poderia fazer algum mal a Isabel o fez apertar o passo. Se Mordred levantasse um dedo contra Isabel, ele mesmo daria uma lição no rapaz, fosse esta regada a sangue ou não!

James alcançou Isabel e Harry quando eles estavam a meio caminho para os estábulos. Estendeu os braços e se orgulhou de ser capaz de se posicionar lado a lado com eles para efetivamente lhes bloquear os passos.

Harry ajustou o capuz verde e branco na cabeça.

— Tenho um paciente que precisa de atendimento — rosnou.

— Compreendo — disse James. Em seguida, deteve a condessa pela cintura quando ela tentou escapulir, contornando-o pelo lado direito. Segurou-a na lateral do corpo, divertindo-se em se esquivar dos golpes que Isabel tentava desferir nele. Precisava admitir que compreendia a atração que seu mestre sentia pelo temperamento apaixonado da moça.

— Solte-a! — exigiu Harry conforme ela se contorcia nos braços de James. — Ela é uma condessa!

— Peço desculpas, condessa — murmurou ele, sabendo que poderia estar em apuros apenas por tê-la tocado. Mas, se tinha lealdade em relação a alguém ali, era ao seu rei. — Por favor, permita-me explicar algumas coisas antes que siga adiante com a cabeça quente.

A condessa parou de se debater. Mesmo assim, ele a manteve junto de si com delicadeza.

— Só prometo não correr à sua frente, James, se o que tem a dizer for importante e relevante!

James sentiu uma profunda vontade de rodá-la no ar uma vez antes de tornar a colocá-la de pé no chão, mas concluiu que o rei não veria a brincadeira com bons olhos.

Devolveu-a ao solo firme, em seguida fez uma reverência.

— Minhas desculpas. Mas há mesmo coisas das quais deve estar ciente antes de correr até lá, milady.

Isabel teve o desejo infantil de que James a houvesse girado no ar uma vez ou duas antes de colocá-la no chão. Podia ter sido como um brinquedo de Camelot do parque Six Flags . Mas ela precisava entender. Então ela superou aquilo.

— Conte-me, James.

Harry pigarreou a seu lado, e ela completou:

— Conte-nos , James.

— Essa... como diz mesmo? Essa coisa entre Mordred e o rei já vem acontecendo há muito tempo. Por razões que não posso citar, eles vivem numa eterna contenda, o que é fonte constante de dor para o mestre.

Isabel sentiu um calor subir pelo ventre. Muito em breve ele estaria brotando por suas ventas ou por seus lábios. Ou por ambos.

— E por que diabos está me impedindo de ir até lá chutar o traseiro desse merdi...

— O que a senhora quer dizer... — interveio Harry, tapando-lhe a boca com a mão — ... é que não compreendemos por que temos de poupar o rapaz.

O homenzarrão sacudiu a cabeça cheia de cabelos.

— Talvez porque o rei o ame, não importando o que este lhe traga de sofrimento; não importando o prazer que Mordred sinta em fazer meu rei pagar pelos pecados que cometeu na juventude.

Isabel arrancou a mão de Harry dos lábios e o encarou.

— Percebeu agora por que eu nunca quis ter filhos?

— Estou começando a compreender — respondeu o rapaz, num resmungo. — Mas ainda acho que teria dado uma mãe e tanto.

— Está me pedindo para agir com diligência? — perguntou ela a James.

— Sim, condessa. Por favor, permita que o rei lide com a situação. É melhor se recolher aos seus aposentos para a noite.

Isabel assentiu.

— Talvez fosse. Mas não farei isso nem a pau, como se diz em Dumont. Insisto para que o meu homem, Harry, e você, James, me acompanhem até os estábulos.

— Sinto que teremos problemas... — cochichou James para Harry.

— Não faz ideia ! — volveu o rapaz, antes de prender o braço de Isabel com força junto à barriga. — Mas vamos.

— Vamos.

Isabel, ainda se recuperando da notícia de que Artur possuía um filho — e que esse filho era um total idiota —, sentiu-se impaciente. Ergueu as saias, então, e gritou:

— Peguem-me, se puderem! — E saiu correndo.

Ambos os homens correram atrás dela; no entanto, nenhum deles foi tão rápido.

James e Harry não alcançaram a condessa até vê-la frente a frente com Mordred nos estábulos... E já soltando o verbo.

Isabel estendeu os braços para impedi-los de se aproximar.

— O que o traz aqui, senhor? — perguntou a Mordred. — Que negócios possui em Camelot?

— Quem é você para ousar questionar minhas intenções?

Isabel o estudou. Era, sem dúvida, o filho de Artur. Eles se pareciam em muitos aspectos, ainda mais nos profundos olhos verdes.

A diferença era que os olhos do rei emanavam bondade e alegria, enquanto os de Mordred pareciam impregnados de veneno.

— Sou Isabel, condessa de Dumont e amiga do rei, o que, aparentemente, você não é. Por esse motivo, pergunto outra vez: O que o traz aqui?

— Encantado. — Mordred elaborou uma reverência com cinismo. — No entanto, condessa, meus negócios aqui não são da sua conta. Será possível que meu pai decaiu tanto a ponto de precisar que uma simples mulher saia em sua defesa?

— Uma simples mulher? Escute aqui, seu merdinha...

— Não, condessa, escute você — volveu ele, ríspido. — Sou herdeiro deste reino, e tenho todo o direito de vir a Camelot para supervisionar meus futuros bens.

— O rei está bastante saudável, e eu acredito que ele vá permanecer assim por muitos anos ainda. Portanto, pode tirar o seu cavalinho da chuva!

Aff!, aquilo tinha sido um horror. Mas era o melhor que ela havia podido elaborar por impulso, nas circunstâncias.

Mordred estreitou os olhos por um momento, então soltou uma risada desagradável.

— Se ainda não foi informada, senhora , meu pai já possui uma esposa. E uma bem mais moça do que você. Percebo seu interesse. No entanto, nunca vai tomar o lugar dela como rainha. A menos que arme um complô para assassiná-la.

James e Harry agarraram cada um dos braços de Isabel, decerto esperando impedir que ela saltasse para a frente e arrancasse à unha os olhos do bastardo.

Mas não houve necessidade. Isabel não tinha a menor intenção de se lançar sobre o rapaz. Sabia que seu peito arfava com fúria, principalmente quando os olhos de Mordred desceram sobre seu colo e não fizeram menção de deixá-lo.

De repente, ela se deu conta de que o olhar dele se fixara no colar e respirou fundo, tentando se acalmar.

— Por favor, diga-me de novo por que veio a Camelot.

— Eu soube que em breve haverá um encontro muito importante entre os cavaleiros do reino e preciso estar sentado a essa mesa. — Mordred piscou várias vezes, sem saber por que motivo revelara aquilo.

— Foi convidado para esse encontro? — perguntou Isabel. — Foi nomeado cavaleiro?

— É claro que não — volveu o rapaz, desviando o olhar do colar. — Meu papai não me considera digno o suficiente do título. É um imbecil.

Desta vez, James e Harry precisaram segurá-la. Isabel queria mais era arranhar aquele rostinho bonito, por mais que isso fosse estragar suas unhas.

— Como se atreve?! Seu pai ama você! Por que sente tanto prazer em feri-lo?

Mordred chegou bem perto dela, batendo o chicote de leve na coxa.

— Não sabe de nada, milady. Nem mesmo como se vestir adequadamente. Será a amante dele esta noite? Vai tentar gerar seu próximo bastardo?

— O que vai fazer, Mordred? — exigiu Isabel. — Bater com o chicote em uma mulher desarmada?

James tentou se colocar entre eles.

— Ela é uma condessa, Mordred! Afaste-se agora mesmo!

Mordred riu com zombaria.

— É uma prostituta, assim como a mulher do meu pai.

— Para trás, James! — falou Isabel.

— Não posso, condessa... O rei ordenou que eu a protegesse.

— Para trás! Esta criatura desprezível acabou de manchar o nome da rainha!

— Mas, milady!

— Para trás! Eu exijo!

James recuou, embora Isabel imaginasse o quanto ele devia estar preocupado com seu futuro. Aquilo não seria problema, porém. Ela estava certa de que ele seria recompensado por seus atos.

Mordred sorriu e chegou ainda mais perto.

E ela deu graças aos deuses pelo seu tae kwon do . Em questão de segundos, tinha chutado o maldito chicote para longe da mão dele, feito meia-volta e saltado, atingindo-o na barriga e arremessando-o para o chão, onde lhe atou as mãos com as rédeas.

— Desculpe, filho, mas já é hora de atender ao seu pai — sussurrou ela em seu ouvido. — Artur nunca teria me deixado passar por cima dele. Você, por outro lado, é muito lento e estúpido.

— Vai pagar por isso! — gritou Mordred.

— Tenho certeza de que sim. Seu pai o ama tanto que vai ficar com muita raiva de mim. Mas que se dane... Foi bom demais, seu vermezinho.

— Puta! — disparou ele.

Isabel cravou o joelho nas costas do rapaz.

— Como disse? Acredito que tenha querido dizer: “Minhas desculpas, condessa”. Foi isso?

— Peça desculpas à condessa, Mordred!

Ela ergueu a cabeça e deparou-se com Artur, que parecia chocado e divertido ao mesmo tempo. Tentou se levantar com graça, mas não conseguiu.

Harry a segurou pela mão, então, e lhe deu auxílio.

— Sinto muito, Artur, mas ele me tirou do sério.

Artur se aproximou e a ajudou a tirar o feno da roupa.

— É a especialidade dele. — Ajudou o filho a se pôr de pé. — Bem-vindo ao lar, Mordred.

— Se você se importasse comigo, papai , levaria essa mulher perante a corte do rei!

Artur sentou-se em seu trono, a cabeça sustentada por um dedo.

— Por ela tê-lo imobilizado quando fez menção de chicoteá-la? Não creio.

— Discorda de que ela mereça uma surra?!

Artur olhou para o filho, perguntando-se como podia ter errado tanto como pai.

— Nenhuma mulher merece ser surrada, Mordred. Jamais. Mulheres são feitas para ser acarinhadas.

Mordred riu, amargo.

— Como acarinhou minha mãe?

— Sua mãe nunca me contou a seu respeito, filho. Não importa o que sua tia tenha lhe dito, eu nada sabia de sua existência até perguntar a respeito da saúde dela. Sei que demorou muito, Mordred, porém ela nunca me disse nada. Nunca me ocorreu uma coisa dessas, o que é minha culpa, admito. Mas, desde que eu soube da morte de sua mãe e do seu nascimento, tenho tentado me redimir, filho, de verdade.

— Isso é o que você diz. — Mordred levantou-se, caminhou, e Artur quase riu ao ver como o gesto se assemelhava ao seu.

A raiva do rapaz, contudo, ainda pairava sobre ele como esterco ao redor de um touro. E cheirava mal.

— Então vai escolher aquela cadela ao seu próprio filho?

Artur se levantou de um salto, tentando aplacar a revolta do rapaz.

— Em primeiro lugar, Mordred, não há nenhuma escolha. A condessa Isabel o derrotou nesta noite, e esse é um problema seu. No entanto, caso tente se vingar, partirei, sem dúvida nenhuma, em defesa dela, pois Isabel nunca lhe fez nada. Na verdade, um dos homens dela até cuidou do seu cavalo. E isso depois de você ter planejado atacar sua senhora. Se estiver cogitando se vingar, eu vou agir.

— Mais uma vez, está preferindo uma mulher ao seu filho.

— Prefiro o cuidado ao despeito. Espero que um dia possa compreender.

— Quando meu pai escolheu seu filho bastardo em vez do seu reino?

“Quando, meu filho, sua mãe optou por não me informar que estava grávida?”

Mais uma vez, Artur não teve ideia de onde o pensamento tinha vindo, mas precisava admitir que era bom:

— Sua mãe não quis me contar que estava carregando um filho. Não me foi dada nenhuma escolha.

— Está mentindo.

Artur abaixou a cabeça e esfregou as têmporas.

— Pelo visto, nunca vai acreditar em mim. Entretanto, a verdade é que, quando eu soube de você, quando fui informado de que sua mãe havia morrido durante o seu nascimento, tentei reivindicar sua paternidade e trazê-lo para Camelot. Sua tia não permitiu, pois me culpava pela morte da irmã.

Mordred parou de andar.

— Não acredito nisso.

— Como eu disse que não acreditaria.

Artur se levantou e também começou a andar enquanto Mordred continuava com as próprias passadas. Cruzaram-se várias vezes, judiando dos juncos sob seus pés.

— Estamos num impasse, meu pai — falou Mordred, finalmente.

— É o que parece, meu filho. Pode se juntar aos meus homens, ou ficar junto daqueles que desejam a minha derrocada. A escolha é sua.

— Estou falando a verdade quando digo que sou leal a Richard de Fremont.

As palavras aguilhoaram o coração de Artur, porém ele balançou a cabeça.

— Então, meu filho, é um convidado em minha casa. O problema é que deseja prejudicar Camelot, portanto, posso considerá-lo um inimigo. Já deixou bem claras as suas intenções, e não posso expressar o quanto elas me ferem.

— Mais do que me senti ferido quando me renegou?

— Eu nunca lhe reneguei! Foi sua tia quem...

— Basta!

— Muito bem. Acredite no que quiser. Mas saiba de uma coisa, filho: se ferir algum homem, criança, mulher ou animal enquanto eu o estiver abrigando em meu reino, não lhe reservarei nenhuma clemência. Terá o mesmo castigo que qualquer outro.

— Percebi que enviou uma mulher para dar conta do seu trabalho esta noite.

Artur sorriu sem vontade.

— Eu bem que tentei impedir Isabel. Mas ela estava com raiva, e eu não cheguei a tempo. De qualquer modo, filho, esse hematoma em seu olho me diz que a condessa venceu essa pequena batalha.

— Pela qual ela vai pagar.

Artur quis pegar o filho e sacudi-lo. Em vez disso, respirou fundo várias vezes.

— Toque nela, e certamente irá sofrer.

A risada de Mordred foi quase tristonha.

— E, mais uma vez, vai preferir outra pessoa ao seu próprio filho.

— Não, Mordred. Eu prefiro a fidelidade à traição. E a felicidade ao ódio. O caminho que você mesmo escolheu em ambos os casos é que é lamentável.

Artur virou-se para deixar o salão, sentindo um desgosto e uma tristeza que nunca havia experimentado antes.

— Você me deve, seu velho! — ouviu o filho gritar enquanto fechava a porta.

Nesse momento ainda sentiu tristeza; porém o desgosto a superou em muito... Além de certo receio.

A segurança de seu povo era fundamental. Alarmava-o que Mordred fosse capaz de atacá-los primeiro. E a primeira a sofrer, sem dúvida, seria a mulher que o tinha humilhado naquela noite.

Mesmo que ele, Artur, houvesse vislumbrado um sorriso em seu rosto, sabia que precisava reunir Tom, Dick e Harry, a fim de elaborarem um plano de segurança. Pois a segurança da condessa era prioridade agora.

O plano teria de ser secreto, no entanto, porque, se Isabel ficasse sabendo, ele próprio acabaria com mais de um olho roxo.

A verdade era que, se algum dia pretendesse fazer outro filho, com Isabel isso provavelmente seria impossível. Ela era, mesmo, meio esquisita.


Capítulo Onze


Na manhã seguinte, Isabel se deleitava em seu banho com lilases recém-colhidas e especiarias quando ouviu uma batida suave na porta.

— Eu já disse que não precisa bater, Mary! — falou em voz alta.

— Não é Mary, condessa. Sou eu, Guinevere .

Isabel espalhou água para todos os cantos ao agarrar uma toalha e o robe.

— Um momento, Alteza! — pediu, batendo todos os recordes de velocidade enquanto saltava da banheira, secava-se e vestia o manto. — Entre, por favor!

Gwen entrou, parecendo tão etérea e doce que ela sentiu-se como o próprio James em um dia não muito feliz em termos de beleza. Se é que James tivesse dias em que se sentisse belo, o que ela duvidava. A rainha usava um vestido azul-turquesa, de um modelo simples, mas que lhe caía como se houvesse sido feito sob medida.

Claro que tinha sido feito sob medida, concluiu Isabel. Bom seria se tivesse uma costureira daquela!

Entretanto, ou a cor não combinava com Gwen, ou a cor de Gwen não estava normal. Seu sorriso continuava amável, contudo ela parecia um pouco pálida, e seus impressionantes olhos já não brilhavam tanto como na noite anterior.

O-ou! Artur não revelara todos os detalhes da conversa que tivera com a esposa, porém ela desconfiava de que seu nome fizera parte da discussão. E aquilo não era nada bom.

Fez a coisa da reverência que, mais uma vez, lhe pareceu muito estranha.

— A que devo esta visita? — perguntou, o medo vertendo por todos os poros. Afinal, havia trocado beijos de derreter com o marido de Gwen, poucas horas antes. A rainha estaria ali para mandar executá-la como uma piranha? Aquilo era crime?

Os nervos de Isabel se agitaram mais do que num mambo. Estava simplesmente em pânico.

Gwen flutuou pelo quarto e sentou-se em uma das duas cadeiras.

— Peço desculpas por ter interrompido o seu banho, condessa.

— Não tem problema. A água já estava ficando fria — garantiu Isabel, secando os cabelos com a toalha e torcendo para não estar com o rosto todo arranhado por conta da barba de Artur. — O que aconteceu?

— Além dos vergões de barba por todo o seu rosto, condessa?

Céus! Então seu pânico tinha razão de ser. Não era nenhuma mentirosa, portanto, estava mesmo encrencada.

“Por favor, deusa, ajude!”

“Se te escolhi, Isabel, foi por tua honestidade. Mas, no momento, esta nem importa para mim... Tampouco importa qual amigo venhas a escolher: podes dizer que um dos três deixou teu rosto assim!”

Ela estaria tão assustadora assim? Poderia conviver com a ideia de estar com o rosto um pouco arranhado, mas as palavras a fizeram se sentir como uma personagem de Halloween. Por outro lado, tudo ali era surreal.

— Não vou mentir. Beijei alguém na noite passada... No entanto, quem eu beijei é problema meu. E só meu. Perdoe-me se não me sinto à vontade para compartilhar minhas intimidades.

— Assim deve ser.

— Desculpe-me por minha impertinência, rainha Guinevere, porém suas faces e queixo mostram os mesmos sinais.

Gwen levou as mãos ao rosto.

— Parece que estamos ambas nos declarando culpadas.

— Não direi nada a seu respeito se não disser nada sobre mim.

— É justo. Obrigada.

— De nada. — Isabel pousou a toalha. — Agora, a que devo a honra da sua visita matutina?

— A muitas coisas, condessa.

Passou de tudo pela mente de Isabel. Gwen ficara sabendo que ela beijara seu marido? Talvez tivesse sido informada de que ela dera uma surra em seu enteado? Mary teria colhido flores do jardim de Gwen para seu banho?

— Então me diga, por favor.

— Eu preciso dos seus conselhos — revelou a rainha.

Certo, aquilo não estava na sua lista. Mas soava bem menos doloroso do que tortura e morte.

— Dos meus conselhos?

— Sim. Meu marido me contou que está incomodada com o fato de as mulheres daqui não terem nenhuma folga de suas tarefas diárias. E que você acredita que elas devam ter, como ele mesmo disse, “um pouco de lazer”.

Isabel podia ter caído com um sopro, tal era seu estado de tensão.

— Eu provavelmente estava fora do meu juízo normal, Alteza. Eu não devia ter dito tal coisa. Estava apenas jogando conversa fora.

— Pois, verdade seja dita, fiquei bastante entusiasmada com a ideia.

Até o momento, nenhuma tortura seguida de morte à vista. Ao menos ela esperava que não. Tentou se conectar com a Dama do Lago, mas a deusa silenciara. Pelo visto, ela estava mesmo sozinha.

Que maravilha.

— Como posso ajudá-la, rainha Guinevere?

— Por favor, pode me chamar de Gwen — pediu a moça. — E permita-me chamá-la de Isabel. Odeio formalidades.

Isabel assentiu.

— Eu também. Mas, como eu dizia, receio ter me precipitado. Não tenho o direito de lhe dizer como lidar com sua equipe de criadas.

Para sua surpresa, Gwen pareceu desapontada.

— Está dizendo que não foi bem isso o que sugeriu?

Isabel arrastou uma cadeira para mais perto da rainha.

— Não. Foi exatamente o que eu quis dizer. Pense bem, rainha Guinev... — Ela balançou a cabeça. — ... Gwen. As mulheres que trabalham em Camelot só fazem uma coisa: trabalhar. Os homens também trabalham, sem dúvida, mas jogam e praticam esportes. Deveriam permitir que as mulheres usufruíssem igualmente de algum tempo para si mesmas.

Gwen acedeu, embora seu semblante denotasse alguma confusão.

— Compreendo o que está propondo, mas nunca ouvi nenhuma queixa.

— Ora, por favor, acha mesmo que as criadas de Camelot iriam se queixar com você?

Nesse exato momento, Mary entrou no quarto.

— Pronta para me deixar fazer seu cab...? — Ela estacou. — Mil desculpas! Voltarei mais tarde.

— Não, Mary — respondeu Isabel. — Eu gostaria muito se cuidasse dos meus cabelos agora.

— Mas a rainha...

— A rainha não vai se importar — garantiu ela. — Não é mesmo, Gwen?

— Claro que não. Entre e faça o seu trabalho, Mary.

— Sim, minha rainha.

— Ela vai exercer um dom, não apenas fazer um trabalho — ressaltou Isabel.

— Como disse?

— Arrumar cabelos não é apenas um trabalho para Mary, Gwen. Ela gosta do que faz. E é muito boa nisso.

— Obrigada, senhora — agradeceu Mary, os olhos ainda cravados no chão.

— Sei que estou sendo intrometida, Gwen, mas a verdade é que não estão aproveitando as verdadeiras habilidades de seus homens e mulheres. Mary, por exemplo, deveria estar trabalhando com cabelos. Ela é ótima nisso. Podia estar arrumando até mesmo os cabelos dos homens. Não percebeu como muitos estão precisando dar uma geral ?

— Como?

— Estão precisando cortar os cabelos.

— É mesmo?

— Não percebeu?

— Para ser sincera, não. Outra falha minha, pelo visto.

— Não é falha nenhuma. O problema é que você só tem olhos para... — Isabel se conteve a tempo — ... para as coisas que lhe são importantes. Aposto que sempre imaginou que os homens de Artur são problema apenas dele, e não seu.

— E o que acha que devo fazer?

— Eles precisam mudar um pouco. Por exemplo, o primeiro homem de Artur, James... Ele é até bonitão. No entanto, aquele cabelo dele é um desastre!

Mary deixou escapar uma exclamação, e Gwen estreitou o olhar em sua direção, enquanto balançava a cabeça.

— Ah... Você é aquela Mary. A que deixa James todo derretido quando fala de você.

Sem dúvida, Isabel havia perdido alguma coisa ali.

— Mil perdões, Mary. Eu não imaginava que fosse precisar assumir uma missão quase impossível com os cabelos de alguém. Honestamente, eu só queria vê-la feliz.

Gwen tentou esconder um sorriso, porém fez um péssimo trabalho.

— O que mais eu não estou sabendo? — indagou Isabel.

— Obrigada, senhora! — exclamou Mary, agitando as mãos. — Muito obrigada! Adoro mexer com cabelos, mas prometo que farei tudo o mais que meu rei e minha rainha me pedirem! E com prazer, é claro. Podemos começar com o seu, condessa?

Isabel olhou da rainha para a criada.

— Muito bem, o que está acontecendo aqui?

Gwen foi quem falou primeiro, os olhos ainda cheios de diversão.

— Perdoe-me, mas acredito que esta seja a Mary que conquistou o coração de James. Estou certa, Mary?

A pobre menina parecia prestes a desmaiar.

— Esperem um minuto — pediu Isabel, tentando dar a Mary um momento para se recompor. — Estão falando de James, o mais doce dos brutos? O primeiro homem de Artur?

— Eu sabia que ele estava apaixonado por uma Mary — contou Gwen. — Tenho ouvido Artur brincar a respeito disso. Mas confesso que não sabia de que Mary eles falavam.

— Quantas Marys há aqui? — quis saber Isabel.

— Sinceramente, não faço ideia. Temos tantas Marys e Liliths... E tantos outros nomes! Mas parece que só temos uma Prudence no castelo. Não sei o que a mãe dela estava pensando quando a pobre nasceu!

O rosto de Mary continuava em chamas, notou Isabel.

— Você é a Mary que conquistou o coração de James?

A menina mudou de posição, parecendo querer sumir dali.

— Sim, senhora.

Gwen deixou escapar uma risadinha.

— James apaixonado!

— O que há de tão engraçado nisso? — perguntou Isabel. — James seria um homem de sorte se tivesse Mary.

— Não, não é o casal em si que me diverte. É apenas a ideia de ver James apaixonado que...

— ... que a deixa feliz por eles?

— Sim, claro. Muito feliz por eles.

Mary ensaiou uma nova reverência.

— Obrigada, senhora.

— Isabel.

— Sim, senhora. Estou bem ciente do seu nome.

— Mesmo assim, ainda se recusa a pronunciá-lo.

— Sim, senhora.

— Não percebe que eu a trato pelo primeiro nome?

— Sim, senhora.

— Você só tem treze anos, criatura!

— Estamos esperando até que ela complete catorze anos, Isabel — explicou Gwen. — Esse é o tempo que decidimos esperar.

— Vocês decidiram por eles? Como se eles não tivessem o direito de opinar quanto ao assunto? Verdade que aos catorze eu ainda estava brincando no trepa-trepa dos parques infantis e achava que todos os meninos tinham piolhos.

Ambas as mulheres olharam para Isabel como se ela fosse maluca. E ela chegou a ouvir Viviane suspirando em sua cabeça.

Tudo bem, estava viajando outra vez. Mesmo que aquele tipo de coisa lhe soasse repugnante, ela compreendia que, na época em que estava, a questão da idade era tratada de um modo muito diferente.

Concentrou-se em outro problema.

— Por que não tentou dar um jeito nos cabelos de James, Mary?

A rainha continuou a rir, embora uma profunda tristeza lhe oprimisse o coração. Era óbvio por que Artur a pressionara a visitar a condessa e a ouvir suas opiniões. Ele estava encantado com Isabel.

E ela, Gwen, não podia culpá-lo. Isabel era uma mulher adorável, que expressava suas opiniões abertamente. E Artur apreciava escutar as opiniões das outras pessoas: era uma de suas maiores qualidades. E uma que ela sempre admirara.

Na verdade, ela amava Artur. Ela o amara desde o primeiro momento em que o tinha visto. Entretanto, Lancelot a fizera perceber que amor e admiração não eram o mesmo que amor e desejo.

O desejo e o amor que sentia por Lancelot eram fortes demais. Por mais que ela amasse e admirasse o marido, a necessidade que sentia de ter Lancelot superava tudo o mais, a ponto de lhe sabotar o bom-senso e também sua tremenda responsabilidade.

Sem mencionar os votos que ela havia feito. Votos sagrados.

— Gwen?

Ela piscou, obrigando-se a voltar à realidade.

— Ah... mil perdões. Creio que me distraí.

Os olhos de Isabel perscrutaram seu rosto.

— Parece estar com problemas. — Ela tocou o belo colar que tinha em volta do pescoço.

Gwen, imediatamente, se pôs a falar:

— Tem razão, condessa. Mas este nada tem a ver com o motivo de eu ter vindo em busca do seu conselho.

— Ainda assim, estou aqui para ouvi-la, caso queira me contar o que a está perturbando.

— Temos muito que discutir sobre os assuntos de Camelot — resistiu Gwen, os olhos ainda fixos no colar.

Mary fez menção de se retirar com uma mesura, contudo Isabel a impediu de sair.

— Por favor, escove os meus cabelos, Mary, e faça uma trança como a que fez antes. Eu gostaria que também opinasse sobre o que acontece por aqui.

Mary lançou um olhar nervoso na direção de Gwen, decerto temendo uma punição pela simples ideia de seus próprios pensamentos serem expressos ou requisitados. Na verdade, a própria Gwen ficou chocada com a proposta. Uma criada sendo consultada acerca de problemas do castelo? Que conceito mais estranho! No entanto, não conseguiu encontrar nenhuma razão para exigir o contrário, e assentiu.

Conforme Mary passou a usar a estranha escova de Isabel, Gwen tratou de se concentrar nas próprias crenças. O fato de a condessa permitir que uma serva permanecesse no quarto enquanto elas confabulavam sobre intimidades não era assim tão incomum. De qualquer modo, criados fiéis eram mais como uma mobília confortável. Podiam ser apreciados, mas deveriam permanecer em silêncio. E surdos.

— Não é de admirar que Artur esteja tão encantado com você — falou num impulso.

Tanto Isabel quanto Mary congelaram no lugar.

— Eu compreendo de verdade, Isabel.

— Pois eu não entendo o que você acha que compreende — retrucou Isabel, embora o sangue tingindo seu rosto tudo revelasse.

— Entendeu muito bem. Foi você quem convenceu Artur a... — Gwen lançou um olhar na direção de Mary, não mais a vendo como uma silenciosa peça de mobília, mas como uma menina que absorvia conhecimento conforme se transformava em mulher. — ... a discutir comigo assuntos que há muito ele vem evitando.

Isabel apertou o roupão com mais força ao redor do corpo.

— A verdade é sempre o melhor caminho.

— Mas a verdade dói, não concorda?

— Sempre — anuiu Isabel. — Segredos, no entanto, costumam ferir ainda mais.

Gwen sentiu-se corar, mesmo assim não ousou desviar os olhos do rosto de Isabel, cujo olhar parecia ainda simpatizar com ela de alguma forma.

— Compreendi isso, esta manhã. Na manhã de ontem, eu teria tido uma resposta muito diferente.

Isabel estendeu o braço e colocou a mão sobre a dela.

— Eu sinto muito se virei Camelot de cabeça para baixo. Não foi minha intenção. Minha única sugestão foi a de que Artur fosse tão honesto com você como ele gostaria que você fosse com ele.

Mary limpou a garganta.

— Perdoem-me a interrupção, mas seus cabelos estão prontos, senhora. A menos que necessite de mais ajuda, eu gostaria de me retirar.

Isabel endireitou o corpo com uma risada.

— É uma boa moça, Mary. Acredito que muitas das suas colegas de trabalho iriam querer ficar e ouvir o máximo possível.

As sardas de Mary tingiram-se de vermelho.

— Eu não saberia dizer, senhora.

Isabel se levantou.

— Bem, eu queria que me ajudasse a entrar em um daqueles vestidos complicados, mas acho que consigo encontrar um com o qual eu possa lidar sozinha.

O rosto de Mary se iluminou.

— Eu sei de um, senhora! É um dos meus favoritos. — Ela quase correu até o guarda-roupa e, após revirá-lo, trouxe um vestido azul-petróleo que estendeu sobre a cama.

Embora Isabel desconfiasse de que a palavra “petróleo” nem tivesse sido inventada ainda, assim como “rosa-choque”.

Mary sorria ainda mais quando se virou, triunfante.

— Não sei de onde vem essa cor, mas, com esses seus cabelos e pele claros, imagino que ele vá ficar lindo na senhora. E ele também é fácil de amarrar.

Gwen disfarçou um sorriso.

— Está ansiosa por deixar os aposentos de Isabel, não é mesmo, Mary?

— Ah, sim, minha rainha. Muito.

Isabel franziu a testa.

— Eu a aborreci, Mary?

— Não, condessa, de maneira alguma! — apressou-se em dizer a menina, torcendo as mãos. — Tem sido muito boa comigo. Quisera todos os hóspedes fossem como a senhora.

— Mas não quer ficar e nos ajudar a discutir como tornar o trabalho das mulheres mais prazeroso?

Mary apertou os lábios.

— Creio que a conversa já migrou para segredos dos quais eu não gostaria de tomar conhecimento. Não tenho esse direito.

Gwen levantou-se e fitou Isabel.

— Verdade, Mary. É melhor esse tipo de conversa ficar para outra oportunidade. No momento, tudo o que quero ouvir são as opiniões da condessa acerca do lazer para as mulheres de Camelot. E a condessa, ao que parece, gostaria muito de que você opinasse sobre o assunto.

— Condessa? — indagou Mary num sussurro.

— Eu gostaria muito que ficasse, Mary. Na verdade, temo que não possamos fazer nada sem a sua opinião e ajuda.

Mary olhou de uma para a outra, preocupada, depois sorriu.

— Fico muito honrada. Mas uma conversa séria exige um traje sério, condessa. Por favor, permita que eu a ajude com o vestido.

A ideia de se vestir, ou, pior, de se despir diante de uma rainha, era um pouco desconfortável. Isabel olhou ao redor do quarto, mas não havia um único espaço privado à vista.

Seu colar se aqueceu.

“Nestes dias, é comum a nudez na presença das outras mulheres. Não precisas te esconder, como fez!”

“Posso, então, a roupa tirar e diante das outras à vontade ficar?”

“Sim!”

“Sinto muito, minha deusa, mas não é do meu agrado. Não pretendo ficar nua diante de uma rainha cujo corpo é quase sagrado!”

“Veste-te, então, Isabel, e para de choramingar. Tens coisas bem mais importantes com que te preocupar.”

Isabel respirou fundo e tirou o manto, jogando-o sobre a cama. Pôs o vestido por cima da cabeça o mais rápido que pôde, cobrindo depressa as nádegas, os seios e o resto. Mas não tanto quanto gostaria. Era a situação mais embaraçosa pela qual ela já passara na vida.

Bem, naquela vida. Tivera momentos mais críticos em sua existência mais antiga. Ou mais nova. Aquele incidente em 1985, por exemplo. E na primeira vez em que permitira que Jimmy Zwersky a despisse parcialmente, no sexto ano, para que pudessem comparar seus corpos.

Gwen riu.

— É uma mulher muito tímida, Isabel.

Isabel voltou-se, ainda lutando para passar o vestido pela cabeça, de modo que sua voz soou abafada.

— Prefiro me vestir sozinha.

— Prefere que eu saia?

— Não, estou bem agora — afirmou ela enquanto ajeitava o maldito vestido no corpo.

Maldição, não estava com a mínima vontade de conversar com a perfeita Gwen sobre questões do corpo! Era óbvio que a rainha não tinha nada com que se preocupar.

— Será que podemos continuar a discutir outros assuntos? — inquiriu, enquanto Mary começava a lidar com a infernal amarração de costume.

— Com toda a certeza, condessa — respondeu Gwen. — Você não me parece muito à vontade nesses vestidos.

Isabel apertou os lábios.

— Na minha terra, as mulheres podem usar roupas bem mais confortáveis.

— Verdade? Por quê?

— Porque costumamos jogar e, portanto, é permitido às mulheres vestir calças, tal como os homens. Não somos obrigadas a usar vestidos o tempo todo.

— Usa calças de homem?!

— Sim e não. São calças feitas especialmente para as mulheres. Para o conforto e para a prática desportiva feminina. Elas não são muito justas e proporcionam a liberdade ideal para participarmos de eventos nos quais seria impossível fazer o mesmo trajando vestidos.

Gwen sorriu e bateu palmas.

— Que interessante! Preciso aprender mais sobre esses esportes para mulheres. E também sobre essas... “calças”? Foi o que disse?

— Mostre-me quais as mulheres daqui que costuram, e eu terei muito prazer em orientá-las na confecção de algumas peças. Sei que muitas não vão se sentir à vontade nem mesmo para experimentá-las, mas poderão ir se acostumando com a ideia, uma vez que terão a chance de prová-las.

— Sim, sim! E vai nos orientar nos desportos?

— É o que costumamos fazer, Gwen. Permitimos que todas as mulheres tenham ao menos uma hora para praticar qualquer esporte pelo qual optarem, em qualquer dia da semana. E elas usam calças ou bermudas nessas ocasiões. Todas têm um tempinho fora do trabalho árduo no qual passam o restante do dia engajadas. Se forem tímidas, como eu, vestem coletes, aventais ou o que quiserem sobre suas camisetas e leggings .

Os olhos de Gwen se iluminaram como estrelas.

— E os homens não fazem nenhuma objeção?

— Em primeiro lugar, Vossa Alteza, os homens não apenas não se opõem, como também são orientados a permanecer distantes desses playgrounds femininos, uma vez que tendem a ficar nos espiando. Em segundo, quando as mulheres estão mais felizes ao final do dia, os homens também ficam felizes... se é que me entende.

Gwen riu.

— Claro que sim. E reconheço a genialidade do plano. Precisamos instituí-lo em Camelot. Com urgência!

— Fico feliz em vê-la vislumbrar os benefícios que tal prática proporcionaria para sua equipe de criadas. Podemos prosseguir com esta conversa mais tarde? Preciso participar de uma reunião no café da manhã.

— Com Artur? — quis saber Gwen.

Isabel assentiu.

— E muitos outros homens. Não é nada íntimo, Gwen. É apenas uma reunião para planejamento estratégico.

— Houve um tempo em que eu era bem recebida em tais reuniões — comentou a rainha.

— Então vamos juntas, ora. Ninguém a proibiu de participar delas, proibiu?

Gwen hesitou.

— Mas eu não fui convidada para essa reunião.

— Pois eu acredito que suas reflexões acerca das questões que todos enfrentamos são muito relevantes. Eu mesma a estou convidando.

A rainha sorriu.

— Compreendo cada vez mais por que motivo Artur a aprecia tanto, condessa.

Mary terminou de fazer a amarração do vestido de Isabel. Em seguida, virou-se para elas.

— Minha rainha, condessa... Posso pedir que guardem um segredo?

— Claro! — responderam ambas em uníssono.

— Eu gostaria muito que a notícia a respeito de James e eu não se espalhasse pelo castelo. Não ainda.

— Seu segredo está seguro conosco, não é mesmo, Gwen?

— Sim, mas... Por quê , Mary? — inquiriu Gwen.

A moça corou novamente.

— Deve haver muitas outras meninas interessadas nele, e eu prefiro não aborrecê-las até que possamos dar a notícia a todos.

A ideia de que o equivalente humano do Pé Grande podia ser um conquistador deixou Isabel perplexa. Ela aquiesceu, contudo.

— É por isso que o mantém tão desarrumado, Mary?

A menina riu.

— Quando o virem com os cabelos cortados e bem-vestido, irão entender.

Nem em um milhão de anos. Bem, talvez, debaixo de todos aqueles pelos e cabelos ele fosse um gigante bonito. Sem dizer que James era um sujeito até delicado para alguém que fora treinado para lutar e matar.

— Quanto tempo falta para que faça catorze anos, Mary? — quis saber ela.

— Duas semanas, senhora. Pretendemos nos casar logo em seguida.

— Não têm que enviar convites, ou algo assim?

— Convites?

Isabel suspirou. Decerto elas se encontravam em um tempo bem anterior ao dos proclamas. Decididamente, o curso da história estava se misturando em sua cabeça.

A ideia de uma menina de apenas catorze anos se casar lhe dava arrepios! Compreendia, entretanto. Mais ou menos. Olhou para Gwen.

— Isso é motivo de comemoração, certo? Quero dizer, James é o homem mais confiável de Artur?

Gwen hesitou, mas depois pareceu alegre.

— Sim, de fato deve ser um dia de celebração. O que podemos fazer?

— Que tal colocarmos os outros criados para participar? Parte de seu lazer poderia ser ajudar a fazer os enfeites! Vai ser divertido.

— Não... Não posso lhes pedir uma coisa dessas — contrapôs Mary, aflita.

— E quem disse que precisaria pedir, Mary? — falou Isabel. — É o que as pessoas fazem para os amigos.

Mary, que vinha ajeitando o vestido e os cabelos de Isabel, endireitou o corpo, atingindo todo o seu metro e meio de altura, o que ainda a deixava cerca de quarenta e cinco centímetros mais baixa que seu futuro marido. Seus olhos azuis se encheram de lágrimas.

— Amigos? — perguntou, com voz trêmula.

— Sim, amigos — reafirmou Isabel, antes de erguer as sobrancelhas para Gwen.

— Sim, Mary. Amigos — concordou a rainha.

Isabel e Gwen desceram os degraus juntas, contudo Isabel deteve a rainha na metade do caminho.

— Precisamos fazer um chá de cozinha para Mary.

— Chá de cozinha? O que seria isso?

— Você sabe, quando se comemora a proximidade do casamento da noiva...

— Eu nunca ouvi falar disso!

— Confie em mim, vai ser divertido. É uma espécie de “festa do pijama” para que as meninas compartilhem sua alegria pelo casamento de uma amiga.

— Festa do pijama?

Aquela barreira entre os idiomas estava dando nos nervos de Isabel.

— Fique tranquila, vai ser muito bom.

Gwen apertou o braço de Isabel.

— Então vamos fazer. Precisamos de algum planejamento?

— Claro. Porém, temos que mantê-lo em segredo. Nem os homens, nem Mary podem saber de nada. Será uma surpresa, mas vamos precisar da ajuda de alguns dos criados.

— Sei exatamente a quem pedir ajuda para esse tipo de aventura! Estou ansiosa.

Isabel engoliu em seco, depois acrescentou:

— Importa-se se eu ficar responsável pelo cardápio, Gwen? Isto é, não quero fazer pouco dos seus cozinheiros, mas, se eu vir mais alguma enguia em conserva à minha frente, vou pôr os bofes para fora!

— Pôr os bof...?

— Vou precisar correr para esvaziar o conteúdo do meu estômago.

— Ah, compreendo. — Gwen riu. — Enguias não lhe caem bem.

— Sinceramente, acredito que enguias não caiam bem para ninguém!

— Para dizer a verdade, eu também não sou apaixonada por elas, mas é o prato favorito de muitos dos homens. Artur não é um deles. Ele prefere as verduras e os queijos de leite de cabra.

Era claro que preferia. Mais uma razão para ela se apaixonar por ele. Se fosse encontrar um motivo para rejeitá-lo, precisava ser algo que a fizesse ficar com nojo dele.

Assim como se fosse para deixar de gostar de Gwen, precisava encontrar uma imperfeição nela. Além do fato de considerá-la uma tonta por preferir Lancelot a Artur, não conseguia pensar em mais nada. Verdade que apenas isso já deveria ser um bom motivo.

O problema era que estava gostando muito de Gwen. A rainha se mostrava aberta às suas novas ideias; estava até mesmo entusiasmada com elas. Guinevere era mesmo uma mulher bem à frente de seu tempo e, sem dúvida, ficaria feliz vivendo sua vida.

O fato de ela ser uma adúltera era um ponto negativo. Ao passo que o fato de o rei Artur ter aceitado tudo aquilo, mais uma vez, era positivo.

Nada a ver com os planos da Senhora do Lago, contudo.

“Planos mudam como as águas de um rio. Siga os teus, minha cara Isabel, pois em ti eu confio.”

Isabel não soube como expressar a alegria diante da fé de Viviane, por mais equivocada que a deusa estivesse. Ela mesma tinha dificuldades em acreditar nos próprios planos.

Mas se Vivi confiava nela...

“Viviane, sua tola!”

Se Viviane confiava nela... Talvez ela desse, mesmo, conta do recado.

— Podemos conversar sobre algumas coisas? — perguntou ela a Gwen.

— Podemos conversar sobre qualquer coisa.

— Em primeiro lugar, o que acha de Mordred?

— Ele é desprezível. Só trouxe sofrimento a Artur. Eu tento não odiá-lo, mas meus sentimentos por Mordred chegam muito perto disso.

— Então estamos quites nesse ponto. Como é possível que um homem tão gentil como Artur tenha tido um filho como ele?

— Artur não soube nada sobre Mordred até que ficou tarde demais para que o ódio do rapaz fosse aplacado.

— Por que Artur simplesmente não o bane do reino?

Gwen a deteve e a fitou nos olhos.

— O rapaz é filho dele. Não conhece Artur há muito tempo, mas já devia saber a resposta.

— Compreendo. Mas esse menino precisa... Não sei... Precisa levar um pé na bunda!

Gwen riu.

— De fato. Aliás, ouvi dizer que fez um excelente trabalho ontem à noite.

— As notícias correm depressa por aqui — murmurou Isabel.

— Tenho minhas fontes, Isabel. Posso dar a minha opinião quanto a isso?

— Claro.

— Percebe que meu marido está apaixonado por você?

Isabel sentiu-se gelar.

— Percebo que seu marido a ama muito.

Gwen sorriu e assentiu:

— Verdade. Artur tem um coração enorme. Mas foi muito claro ao falar da nossa situação... Ele já não se importa comigo como antes.

— E quanto a você?

— Eu o amo muito.

— Resposta errada.

— Eu ainda tenho muito carinho por ele.

— Mas está apaixonada por outro.

Gwen decidiu olhar para o teto.

— Eu sinto carinho por outro.

— Resposta errada.

— Eu compartilho sentimentos profundos com outro!

— Agora, sim. Resposta certa. Verdade, Gwen. Faz muito mais sentido.

— Então me diga a verdade, Isabel. Quer meu marido?

A verdade às vezes era uma merda!

— Não à custa de acabar com o seu casamento.

— Não foi essa a minha pergunta.

— Está bem. Se Artur não fosse casado... sim. Eu tentaria conquistá-lo. Mas ele é casado.

— Com uma mulher que deseja outro.

— O que, para ser sincera, eu acho inacreditável. Mas também não a culpo por se sentir atraída por Lancelot. “Uma estupidez, mas quem era ela para julgar?”

Gwen a pegou pelo braço e a guiou escadaria abaixo.

— Como diz, mesmo, condessa? Acho que estamos...

— ... Fritas?

Gwen riu.

— Falamos o mesmo idioma, e nem parece. Mas, sim, acho que estamos fritas — repetiu Gwen, de cenho franzido.

— Por falar nisso, devo dizer que aprecio qualquer vegetal em conserva, mas, por favor, chega de...

— ... Enguias! — disseram ambas ao mesmo tempo.

— Vou ver o que posso conseguir com os criados da cozinha — decidiu Gwen.

— Eu tenho uma sugestão.

— Então, dê!

— Trevor deveria ser promovido a chef . Quando não consegui digerir o jantar, ontem à noite, ele me serviu iguarias que me impediram de morrer de fome.

— Se é assim, está com sorte, pois Trevor é o responsável pela refeição da manhã.

— Por favor, nada de omelete de enguia!

Gwen riu.

— Aprenda a dizer “não”, ora. E, a propósito, Trevor também não suporta enguias.

— Graças aos Céus!

Elas alcançaram o pé da escadaria e rumaram para o refeitório, onde a reunião iria acontecer. — Muito bem, Gwen, aqui vamos nós.

— Sim, Isabel, aqui vamos nós. Deveríamos tomar um gole de vinho antes.

— Não é meio cedo para isso? Tudo bem, vamos nessa! — decidiu Isabel, e ambas se desviaram do refeitório para a cozinha.


Capítulo Doze


Isabel soube, de pronto, que ter convidado Gwen para a reunião havia sido uma má ideia. A expressão de Artur já dizia tudo.

Contudo, ficou bastante intrigada porque tivera a impressão de que ele sempre mantivera sua rainha envolvida na política do reino. Guinevere parecia tão sintonizada com as complexidades de Camelot! Ela, Isabel, ficara bastante admirada na noite anterior, quando Gwen se mostrara tão atualizada.

Sem dúvida, Gwen também reparara que o marido não esperava que ela se juntasse àquele encontro. Após ter saudado a todos na mesa com graça, incluindo Lancelot, ela se despediu. Todos os homens tinham se levantado e se curvado, mas, caramba!

Ela estava se sentindo um peixe fora d’água. Era a única mulher no meio de uma dúzia de homens corpulentos e aparentemente mal-humorados. Teria adorado a companhia de Gwen, além de não se sentir tão deslocada. Tão só.

Como era estranho que houvesse se ligado tão depressa à mulher que fora convidada a trair de uma maneira, e que acabara traindo de outra! Que diabo havia de errado com ela? De repente, estava se sentindo uma merda , e só queria sair correndo dali.

Apenas os olhos de Artur, fixos nela, a impediram de bater em retirada.

“Lembra-te de que não estás sozinha, Isabel. Também estou aqui a te ajudar. Basta que mantenhas junto a ti o teu colar... Percebo bem o teu medo, tua agonia eu compreendo. Pela tua aflição, eu te peço perdão. Se ao nosso pacto desejas pôr um fim, eu o farei. Podes confiar em mim.”

Isabel tocou o colar e sorriu para os homens.

— Por favor, senhores, tomem seus lugares. Parece-me que temos muito a discutir. Não sei quanto a vocês, mas estou morrendo de fome! Portanto, vamos tomar nosso café e nos empanturrar com comida e novas ideias.

O colar se aqueceu confortavelmente contra o seu peito.

— Ela não fala como nós — comentou um dos gigantes.

— Porque vem de uma região muito diferente — explicou Artur, aproximando-se para ajudá-la a se sentar. — Por isso mesmo precisamos da condessa. Suas opiniões são um verdadeiro bálsamo. — Conforme ele a ajudou a se acomodar, sussurrou: — Podemos ter uma conversa em particular após esta reunião?

— Por que não? — respondeu ela, uma vez que nenhum dos homens parecia estar ouvindo.

A risada rouca de Artur vibrou através dela. Ele endireitou o corpo e voltou para o próprio assento, acenando com as mãos.

— Sentem-se, sentem-se... — orientou ele aos presentes, em seguida bateu palmas. — Trevor! Estamos famintos.

— Ah, graças aos deuses! — Isabel murmurou. Trevor jamais iria lhe trazer enguia em conserva. Quando ela e Gwen tinham ido visitar a cozinha, os três haviam feito um acordo: nada de enguias!

— Acha que a reunião foi produtiva? — perguntou Isabel a Artur conforme eles passeavam pelo pátio. Mesmo naquele momento, os guerreiros estavam mergulhados no trabalho, treinando, uns com os outros, suas habilidades com a espada. O tinir do aço se chocando contra aço ecoava pelo ar. Pelo menos ela imaginava que fosse esse o metal. Mas que diabos sabia sobre aquele tipo de coisa?

— Conquistou cada um dos meus homens com seus pensamentos e ideias únicos, condessa. Gostei da sua sugestão de eventualmente realizarmos uma feira em nossas fronteiras, para que possamos desfrutar a harmonia entre os nossos povos.

— Festa é sempre festa. Ainda mais na época da colheita.

— E gostaria de chamá-la de Ação de Graças?

— Podemos chamá-la do que quiser, Artur.

— Gosto do nome “Ação de Graças”.

— Diga-me, Artur... Por que Mordred não estava sentado à mesa esta manhã?

— Porque, enquanto ele não jurar total fidelidade ao reino de Camelot e renegar sua fidelidade a Richard de Fremont, não poderá estar presente às nossas reuniões.

Ela estacou.

— Ele está em conluio com aquele idiota?

— Segundo as minhas fontes, sim.

Isabel sentiu a indignação espiralar dentro dela.

— Como Mordred se atreve a vir aqui, então, agindo como se estivesse apenas aguardando que você lhe passasse o trono?!

— Mordred tem falado e feito muita coisa contra mim e contra Camelot que não fazem o menor sentido.

— E, ainda assim, continua permissivo, abriga-o no castelo.

— Ele é meu filho, Isabel. O que quer que eu faça?

— Dar-lhe umas boas palmadas estaria provavelmente no topo da minha lista.

— Palmadas?

— Isso mesmo. Umas dez, pelo menos.

— Quer dizer chicotadas?

— Não! Nada a ver com chicotes. Palmadas. Quando se coloca a pessoa sobre os joelhos e se bate em seu traseiro com a mão.

Artur soltou uma risada.

— Creio que Mordred esteja velho demais para que eu o ponha no colo e faça tal coisa. Mas a ideia não deixa de ser divertida.

— As atitudes dele me tiram do sério, sabia?

— Podemos falar de coisas mais agradáveis? Não quero gastar o tempo que temos juntos com os problemas que me cercam.

Isabel fez menção de lembrá -lo de que não fora ele quem levantara aquela questão desagradável, porém se conteve.

— Sim, claro. O dia está lindo demais para ser desperdiçado.

Artur a conduziu até os estábulos.

— Gostaria de cavalgar, Isabel?

— Ah, eu adoraria! — Ela apontou com o polegar por cima do ombro. — Eles vão nos fazer companhia?

Artur olhou para os homens logo atrás deles.

— Estão dispensados, senhores. Irei ao seu encontro em breve.

Quando eles adentraram o estábulo, ficou evidente, no mesmo momento, que Harry não estava muito feliz.

— Se veio para dar um passeio, receio que Samara não possa ser montada, Izzy. Ela está ferida.

— Ferida como? — perguntou Isabel.

— Está coxa de uma perna.

— Como é possível?!

— Confesso que isso está me parecendo sabotagem. Não imagino como ela pode ter se machucado sozinha.

— Aquele bastardinho de uma figa! — concluiu Isabel, virando-se para Artur.

— Esse seu filho adorado não passa de um sujeitinho sujo e desagradável!

Artur a segurou pelos ombros.

— Calma, Isabel. Ainda não sabemos se isso foi obra de Mordred.

Ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas, contudo não fez nada para enxugá-las.

— Quem mais poderia querer machucar Samara? Você sabe a resposta, Artur. Só não quer enxergar a verdade.

— Como ele poderia saber qual era o seu cavalo, Isabel?

Harry limpou a garganta e trocou os pés de posição.

— Harry... — incitou Isabel, encarando-o.

— Bem, quando Mordred veio pedir auxílio para seu próprio cavalo, ouvi uma conversa entre ele e um dos cavalariços. Mordred comentou a respeito da beleza e da aparente linhagem especial de Samara, e perguntou ao menino se o rei estava considerando colocá-la para reproduzir. Foi quando o rapaz lhe contou que Samara pertencia à condessa, e não ao rei. Mordred disse, então, que talvez fosse discutir a possibilidade de um cruzamento entre o cavalo dele e sua égua, Isabel.

Antes que ela pudesse retrucar, Artur interveio:

— Vou pedir aos meus homens que investiguem o caso, Isabel, prometo. E não importa aonde essa investigação vai nos levar: o responsável será punido, seja ele algum cavalariço ou meu filho.

Ela se desvencilhou dos braços dele e correu para a baia de Samara.

— Ah, minha pobre criança! — exclamou, abrindo a porteira para abraçar o pescoço da égua. — Eu sinto muito!

Samara relinchou suavemente contra seu pescoço.

— Quem lhe fez isso, você sabe? — indagou Isabel, dando um passo para trás a fim de acariciar o focinho úmido.

A égua pareceu assentir, balançando a cabeça.

Isabel olhou a perna dianteira do animal, agora envolta no que parecia um pano de algodão; sem dúvida, a única atadura disponível naqueles tempos.

— Dick virá fazer uma massagem na perna de Samara — informou Harry, aproximando-se por trás dela.

Isabel fez meia-volta, vendo Harry e Artur em pé, do lado de fora da baia.

— Ela sabe quem a feriu — contou, seca. — Podemos trazer Mordred aqui e ver como Sam reage.

— Isabel, não está pensando com clareza — contrapôs Harry. — Samara é geniosa com a maioria dos cavalariços. Levei pelo menos quinze minutos para acalmá-la até que eu pudesse fazer um exame. E você bem sabe que os animais me adoram.

Ela se voltou para Samara, afagando-lhe o pescoço.

— Vamos descobrir quem fez isso com você, eu prometo!

A égua balançou a cabeça mais uma vez, então apertou o focinho contra o peito de Isabel, o que esta interpretou como um “Ai de mim!”.

— Isabel, se ainda quiser cavalgar, pode escolher qualquer um dos meus cavalos — ofereceu Artur, constrangido.

Ela suspirou. Não tinha certeza de que poderia montar qualquer outro cavalo de lado, como na sela de Samara. Odiaria passar vergonha, caso a magia da deusa não se estendesse além de seu próprio cavalo.

Balançou a cabeça, conforme deixava a baia e a fechava.

— Temo ter perdido a vontade de cavalgar.

— Um passeio, talvez?

Por mais que ela ansiasse ficar com Artur, sentia-se deprimida com o que havia acontecido com Samara.

— Sinto muito, mas não sei se eu seria boa companhia agora, Artur.

— Imagino que, mesmo quando não está no seu melhor dia, ainda seja a melhor companhia que eu poderia arranjar por aqui.

Ela sorriu.

— Está bem. Talvez um pequeno passeio.

— Ótimo. — Ele virou-se para Harry. — Eu gostaria que o senhor comunicasse aos rapazes do estábulo que Samara deve ser protegida em todos os momentos. Se for necessário, armem uma barraca diante da baia para que ela não seja perturbada outra vez.

— Mil perdões, senhor, mas não me sinto à vontade dando ordens a seus empregados. Não tenho nenhuma autoridade aqui.

— Detém autoridade em nome do rei, Harry. Eu a confiro a você.

Harry inclinou-se ligeiramente.

— Como desejar, majestade.

Artur estendeu o braço e Isabel o tomou, amando a sensação do musculoso bíceps sob os dedos.

— Eu não consigo entender como podem abusar de animais inocentes!

— Nem eu, condessa, nem eu. Como já deve ter notado, adoro cachorros.

— É mesmo? Não me diga!... — zombou ela, recuperando parte do humor. — Como eu posso não ter notado se vivo ocupada tentando não tropeçar neles?

Artur riu e lhe apertou a mão.

— Agora está bem melhor. Diga-me uma coisa: que história é essa de Izzy?

Os dois acabaram nos jardins do leste, que eram tão bonitos quanto os outros, mas de uma forma muito diferente. Havia um enorme lago ali, repleto de lindos peixes cintilantes. E, até onde Isabel podia perceber, aquele jardim era composto principalmente de ervas aromáticas, o que fazia sentido, uma vez que a cozinha ficava ali perto. Pouco além, ela avistou fileiras e mais fileiras de árvores e plantas, com as quais, desconfiava ela, seriam produzidas frutas e legumes muito em breve. Além delas, via-se um pomar em plena floração, com a promessa de maçãs, damascos e talvez cerejas e pêssegos.

Isabel respirou fundo. Não tinha muita certeza dos tipos de árvores frutíferas que existiam naquele tempo, mas todas as fragrâncias eram inebriantes.

— Camelot é adorável, Artur. De verdade.

— Obrigado, condessa. Ainda que eu não possa levar o crédito por tudo isso. É tudo trabalho do meu povo e também de... — Ele parou e engoliu em seco.

— E também de Guinevere, claro — terminou Isabel por ele. — Não devia se mostrar relutante em falar de sua esposa, Artur. Gwen e eu passamos algum tempo juntas, e eu gostei muito dela. Gwen é uma mulher linda, e compreendo muito bem por que se apaixonou por ela.

Ele a conduziu até um banco de concreto, e eles se sentaram.

— Então compreende por que não consigo condená-la de todo?

— Claro. Como já conversamos antes, o coração só faz o que quer... E, às vezes, é um tanto quanto volúvel.

— Parece que o meu é ainda mais caprichoso...

— Como o de qualquer ser humano. Gostaria de ouvir a história sobre o primeiro rapaz por quem fiquei loucamente apaixonada?

Os olhos tristes de Artur se iluminaram, cheios de humor.

— Claro que sim. Eu gostaria muito.

— Bem — começou Isabel, ajeitando as saias em torno do corpo. — O nome dele era Billy Thornton, e nós estávamos no terceiro ano.

— Terceiro ano?

— Nós frequentávamos a escola juntos.

— Pode-se fazer tal coisa em Dumont? Ensinar meninos e meninas no mesmo espaço?

— Claro! Como eu estava dizendo, Billy e eu sentávamos lado a lado, no fundo da sala de aula, porque nós dois éramos bons alunos.

— Vocês se sentam de acordo com o próprio rendimento no aprendizado?

— Sim. As crianças com mais problemas sentam-se mais à frente, de modo que os professores possam vigiá-las melhor.

— Dois costumes tão diferentes para duas terras tão próximas!

— Verdade. Mas, então... Era óbvio que Billy tinha uma queda por mim. Ele vivia puxando meu rabo de cavalo e...

— Isso era sinal de afeição?

— Sem dúvida. Nessa época, a única maneira de um garoto expressar o que sentia por uma menina era provocando e desdenhando. Se ele a ignorasse, era certeza de que não estava interessado. Mas, se a provocasse, podia apostar que ele gostava de você. Ou pelo menos queria chamar a sua atenção.

— Ha! É verdade. Isso, pelo menos, nós temos em comum.

— Continuando, no Dia dos Namorados... — Isabel ergueu a mão para impedir mais uma pergunta. — Trata-se de um feriado que celebramos uma vez por ano, no qual enamorados expressam seus sentimentos um para com o outro. — Ela concluiu que explicar o que era “um momento Hallmark” seria difícil demais, portanto, disse apenas: — É também quando escrevem bilhetinhos com todo o tipo de mimo, desenhos de corações e coisas assim.

Artur aquiesceu.

— Isso também acontece em Camelot. No entanto, ainda não temos um dia específico para esse tipo de coisa.

— Imagino. Na verdade, é bem possível que em Dumont se exagere nessas tradições...

Ele estava sorrindo de verdade agora, o que deixou Isabel toda feliz. Ela amava aquele sorriso, principalmente no momento em que era ela a responsável por colocá-lo naquele rosto moreno quando Artur parecia estar com o coração tão pesado.

— Pois, então... No Dia dos Namorados, Billy colocou um bilhete na minha mesa que dizia: “Quer ser minha namorada?”. Fiquei feliz da vida, porque eu também estava apaixonada.

— Tenho certeza de que era linda também quando menina. Eu gostaria de tê-la conhecido nessa época. Decerto eu teria disputado sua atenção com esse tal de Billy.

— Não sei se ele faria isso por mim.

— Por que diz tal coisa?

— Porque, na hora do recreio — quando fazíamos uma pausa para um lanche —, as meninas decidiram comparar os bilhetes que haviam recebido naquele dia. Imagine nossa surpresa quando vimos que Billy tinha dado o mesmo bilhete de Dia dos Namorados para seis de nós!

Artur riu.

— E ainda diz que ele era um dos meninos mais inteligentes da sala?

— Bem, talvez ele fosse meio imbecil em se tratando de romance. Pelo visto, estava apostando tudo na empreitada.

— E qual foi a sua reação?

— Fiquei com o coração partido. Ele foi a minha primeira paixão.

— E vocês, meninas, não se vingaram?

— Ah, claro que sim! Nós seis o cercamos na hora do almoço.

— E?

Mais uma vez, Isabel concluiu que não saberia explicar o que é “cuecão”, então improvisou:

— Nós nos revezamos derramando leite na cabeça do Billy e também dentro de suas calças.

Artur deu um tapa no joelho, rindo.

— Não se pode mesmo ignorar a ira de uma mulher desprezada!

A risada dele foi tão gostosa e contagiante que Isabel não pôde evitar rir junto.

— De fato. Podemos ser muito criativas em termos de vingança.

— Lembre-me de nunca provocar a sua ira, condessa.

Ela se inclinou e o cutucou no ombro.

— Se fizer isso, senhor, certamente a conhecerá.

— Ainda não respondeu à minha pergunta. Por que seus homens a chamam de Izzy?

Isabel balançou a cabeça.

— Em primeiro lugar, eles não são meus homens , são meus amigos. Somos iguais em todos os sentidos. Eles concordaram em me acompanhar nesta viagem porque queriam garantir a minha segurança.

— Está bem, eu sei que eles são seus amigos. Mas por que a chamam de Izzy?

— É um apelido que me deram desde que eu era menina. Poucos têm permissão para me chamar assim.

— Já percebi. É um privilégio a ser conquistado.

— Mais ou menos.

— Estou ansioso pelo dia em que terei esse privilégio, Isabel.

— Com a incerteza que se avizinha, Artur, quem sabe se esse dia vai chegar?

Ele segurou a mão dela.

— Espero estar vivo para ver esse dia.

Nossa, aquilo tinha soado sombrio demais! Ela não queria pensar naquele tipo de coisa, muito menos naquele momento.

Apertou a mão dele de volta.

— Que tal se você me contasse sobre o seu primeiro amor, agora?

Artur abriu a boca para falar, porém um ruído acima deles o interrompeu, e ambos ergueram os olhares. Gwen descia os degraus de pedra do castelo com uma cesta pendurada no braço. Ela estacou.

Isabel tirou a mão da de Artur, e todos permaneceram em silêncio por um momento antes que a outra reencontrasse a voz.

— Desculpem-me por interromper. Eu pretendia colher algumas ervas, mas posso voltar em outro momento.

Isabel se pôs de pé.

— Não, Gwen, por favor, não queremos incomodá-la. Eu só estava divertindo Artur com uma história da minha juventude. Eu preciso mesmo... fazer outra coisa.

Céus, ela poderia parecer mais patética?

— Vou acompanhá-la até... a sua outra coisa, condessa — decidiu Artur.

— Não, obrigada. Agora que me lembrei do que preciso fazer, sei que posso encontrar o caminho sozinha. Com sua licença. — Ela levantou a saia em um esforço consciente para bater em retirada o mais rápido que aqueles malditos chinelos lhe permitissem.

Artur e Gwen se entreolharam antes que esta se manifestasse em primeiro lugar, descendo os degraus.

— Peço desculpas pela interrupção, Artur.

— Não era nada de grande importância, Gwen. Apenas uma conversa agradável.

— Algo que parece não estar acontecendo entre nós dois nos últimos tempos.

— Sim. Parece que já não temos muito a compartilhar nestes últimos dias.

Ela avançou mais um passo com uma expressão sofrida.

— Estou tentando parar de...

Ele ergueu a mão.

— Por favor, não faça mais promessas que não consegue manter. Elas só empobrecem o que já foi bom e precioso um dia.

— O que quer de mim?

Artur a fitou. Gwen era ao mesmo tempo bela e frágil: o tipo de mulher que parecia implorar para que os braços fortes de um homem a protegessem. Aquilo já o seduzira uma vez, a ponto de ele desejar ser seu abrigo, seu protetor, seu marido e amante.

Seus pontos de vista, porém, haviam mudado muito depois que ele conhecera a condessa. Isabel daria o sangue por qualquer um que prejudicasse aqueles que ela amava. Não iria pedir ajuda. Simplesmente enfrentaria seus inimigos, insistindo que era capaz de lutar suas próprias batalhas.

Noite e dia, dia e noite. Não que fosse uma falha de Gwen, afinal, assim ela fora criada. O problema era que ele admirava muito mais a força de Isabel.

— O que eu quero, Gwen, é a sua felicidade. Estou sendo sincero quando afirmo tal coisa. Sua felicidade é muito importante para mim, mas não mais à custa da minha.

— Quer dizer que não existe nenhuma chance?

— Receio que não. Nem deveria existir. Tentar recuperar o passado quando tanta coisa aconteceu é como tentar impedir um floco de neve de derreter na boca. Eu não sou — e me recuso a ser — outro Billy Thornton.

— Billy Thornton? Não me lembro desse nome. Eu o conheço? Já o recebemos aqui?

— Não, mas ele me deu muito o que pensar.

Gwen franziu a testa, confusa, depois ignorou o comentário.

— Então, o que vamos fazer daqui em diante, Artur? Não suporto a ideia de desonrá-lo.

— Como eu disse, Gwen, sejamos discretos. Sempre discretos. Iremos manter as aparências tanto quanto nos for possível, pois é essencial para o bem do nosso reino. Depois vou estudar essa dissolução de casamentos que praticam em Dumont. Talvez possamos adotar a tal lei para diferenças irreconciliáveis em Camelot. Estou certo de que ela iria diminuir em muito as lesões causadas por panelas que vários dos meus homens sofrem a cada ano.

— Diferenças irrecon... o quê?

Ele fez um gesto vago com a mão.

— Uma lei que eles têm no reino de Isabel, por meio da qual nem o homem nem a mulher são responsáveis por... danos irreparáveis ao casamento. É uma maneira de impedir que tanto o marido quanto a esposa saiam prejudicados. Ambos concordam que não são mais compatíveis.

Gwen sorria ao se juntar a ele no banco.

— Por favor, sente-se aqui comigo um pouco. Também conversei a respeito de várias coisas com a condessa Isabel, as quais, acredito, são muito relevantes.

Artur assentiu em silêncio enquanto a tomava pelo cotovelo e a ajudava a se acomodar.

— Aí está um ponto no qual, sem dúvida, encontraremos coisas em comum.

“Preciso de ti, Viviane! E da tua orientação também... Gosto de Gwen e de Artur, e não posso culpar a ninguém!”

“Isabel, do que tens medo? De esses dois teres conhecido e deles teres gostado muito cedo?”

“Temo prejudicar uma união que ainda pode ser reparada. Meus sentimentos estão confusos. Sinto-me tão angustiada!”

“Muitos danos já tinham sido feitos bem antes da tua vinda. Agora, com clareza eu vejo... De Artur podes ser a salvação ainda!”

Isabel não estava tão certa disso, contudo sentiu-se reconfortada com a lembrança de que o casamento de Artur e Gwen já apresentava problemas antes de sua chegada Mesmo assim, não fazia ideia de como ela poderia ser a salvação de Artur.

“Viviane, só mais uma dúvida... E olhe que não vou nem rimar! Como anda o seu amado Merlin? E você mesma, como está?”

Por todos os deuses, ela não conseguia mais parar de fazer versinhos!

Ouviu o som suave e cadenciado do riso de Viviane.

“Ah, Isabel, verdade seja dita. Merlin sorri quando te vê junto de Artur. Vê-los unidos o faz ter esperança. E melhor fico eu, se Merlin acredita!”

Isabel não se sentia muito segura de que ela e Artur estivessem “juntos”. Era apenas uma atração o que eles sentiam um pelo outro.

“Foi o único sinal positivo que tive de Merlin nos últimos dias. Por favor, Isabel, ele precisa da sua ajuda!”

Nossa, nenhuma rima daquela vez. Nem parecia Viviane.

“Você não faz ideia.”

Houve uma batida na porta, e Mary entrou, agitada, carregando uma bandeja cheia de queijos e pães, além de uma caneca que provavelmente tinha hidromel.

— Olá, condessa! — A moça saudou, alegre. — Lindo dia, não?

Isabel sorriu.

— Verdade. E você também parece radiante. Qual o motivo dessa alegria toda?

Mary pousou a bandeja, depois bateu palmas e quase pulou.

— James concordou, senhora!

— Concordou? — repetiu Isabel, pegando um pedaço do queijo de cabra. — Eu pensei que já estivesse tudo acertado; que iriam se casar tão logo você atingisse a madura idade de catorze anos.

— Não, não. James concordou que eu cortasse o cabelo dele.

Isabel deixou cair o queijo e se levantou de um salto, agarrando Mary pelas mãos.

— Que maravilha , Mary! Incrível! Ah, ele vai estar lindo na cerimônia!

— E não é só isso. Parece que o rei sugeriu que todos os homens seguissem o exemplo de James, para que todos ficassem... Qual é mesmo a palavra? Receptáculos!

Isabel quase riu. Que diabos? Com aqueles cabelos, a maioria deles já se parecia com um “receptáculo”.

— Eu acho que quis dizer “respeitáveis”.

— Exatamente!

— Ah, Mary, que notícia boa! — Ela ergueu a caneca para um brinde, ainda que a outra moça não tivesse nada com que brindar. — A um lindo casamento! — Tomou um gole, porém pequeno. Não estava habituada com a bebida forte, e duvidava de que fosse se acostumar com ela tão cedo.

Sentiu-se aquecida por dentro. Ou por causa do hidromel ou do sentimento de orgulho que a invadiu por Artur tê-la ouvido e pedido que os homens se apresentassem melhor. Na certa por conta deste último.

Estendeu a caneca para Mary.

— Pode beber esta coi... este hidromel, Mary? Se puder, beba comigo.

Mary enrugou o nariz sardento.

— Posso sim, senhora, mas não aprecio muito essa bebida.

— Então não quer comer um pouco destes pães e queijos?

A menina balançou a cabeça.

— Obrigada outra vez, mas não. Não quero engordar antes do dia do meu casamento.

Isabel riu. Era o mesmo pesadelo para qualquer noiva! Ali estava algo que não havia mudado ao longo do tempo.

Vasculhou o cérebro, buscando uma forma de comemorar com Mary e, de repente, ela veio:

— Mary! Já tem o vestido que irá usar no seu grande dia?

— Não, senhora, mas espero contar com a ajuda das nossas costureiras nos próximos dois dias. A rainha exigiu que os homens me pagassem uma pequena quantia para que eu lhes cortasse o cabelo. Espero poder me dar o luxo de comprar um vestido muito especial para a ocasião com o que consegui amealhar.

Isabel caminhou até o guarda-roupa.

— Pode escolher — disse, apontando para os próprios vestidos. — Qualquer um deles. O que quiser é seu.

— Ah, eu não poderia!

— Poderia sim! Eu insisto. É o meu presente de casamento. E não pode recusar um presente de casamento, pode? Seria muito rude da sua parte.

Mary olhou para os vestidos, ansiosa, depois se voltou para ela novamente.

— Mas, senhora... É muito mais alta do que eu. E muito mais bem-dotada aqui — explicou ela, tocando os próprios seios.

— Que costureira não pode fazer um ajuste aqui, uma pence acolá, e transformar um destes em um vestido de noiva? Dessa forma, poderá economizar o que recebeu com os cortes de cabelo e ajudar a comprar uma casa para você e James aqui no reino. Que tal?

Os olhos de Mary se encheram de lágrimas, e ela piscou com força para afastá-las.

— Não sei, senhora, eu...

— Mas eu sei. Trate de escolher, e amanhã mesmo nós iremos procurar o ateliê de costura — ou seja lá como vocês o chamam — para fazer as alterações.

— E se eu escolher um de que gosta muito?

— Vou adorar vê-lo em você no melhor dia da sua vida.

Mary ficou muda por um instante, então se jogou nos braços de Isabel.

— Ah, senhora, essa é a coisa mais bonita que alguém já fez por mim!

Isabel a abraçou de volta, as lágrimas ameaçando transbordar de seus próprios olhos.

— Estou tão feliz apenas por fazer isso, Mary! Agora vamos escolher um vestido.

Quando ergueu a cabeça, ficou imóvel. Artur estava encostado no batente, de braços cruzados, olhando para ela. Ela se perguntou se estaria em apuros, se havia ultrapassado algum limite, até que os lábios benfeitos se curvaram num lento sorriso. Artur assentiu com um gesto de cabeça.

Ela abriu um sorriso trêmulo; em seguida, levou o dedo à boca, pedindo silêncio, de modo que Mary não se assustasse. Ele concordou e recuou, mas não sem antes mover a boca, dizendo: “Volto depois”.

Se para lhe dar uma bronca ou beijá-la, Isabel não fazia ideia.

Mas não importava. Tê-lo de volta em breve já era mais do que o suficiente para ela.


Capítulo Treze


Fiel à própria palavra, Artur voltou menos de uma hora depois.

— Posso entrar, condessa?

Ela terminou de escovar — ou melhor, de cutucar — os dentes, enfiou um punhado de hortelã na boca e se virou.

— Sim, claro que pode.

— Decidiram a respeito do vestido do grande dia?

— Após uma pequena discussão sobre a cor, sim.

— Discussão? — indagou ele enquanto entrava com um frasco de vinho e dois cálices nas mãos.

— Mary adorou o vermelho, mas eu a convenci a optar pelo verde. O vermelho entrava em conflito com o cabelo dela, ao passo que o verde realçava muito mais seu tom de pele.

Ele pousou as taças e serviu a bebida.

— Creio que tenha muito mais gosto para esse tipo de coisa do que a maioria — falou, entregando-lhe um dos cálices.

— Havia quanto tempo estava parado na porta? — quis saber Isabel, aceitando o vinho.

— O suficiente para reconhecer por que me sinto tão atraído por você, Izzy.

Ela abaixou a cabeça para esconder o sorriso.

— Sabe que eu só deixo quem é muito próximo a mim me chamar de Izzy.

— Sei.

— Então está supondo que eu o aceitei em meu círculo mais próximo de amigos?

— Tenho esperança de que sim, por isso mesmo estou me arriscando. Nunca precisei ser convidado para nada nesta vida, tenho essa tendência a me impor. Defeito terrível esse meu.

— Verdade. Você é, mesmo, muito atrevido.

— Algo me diz, bela senhora, que sabe lidar muito bem com um atrevido.

O olhar de Artur dizia claramente que suas intenções não eram das mais probas.

O que era sexy demais.

Isabel recuou, entretanto.

— Mary pode voltar a qualquer momento.

— Pode — confirmou ele enquanto recuava e empurrava a porta com o pé, para em seguida trancá-la por dentro. — Mas seria terrível para Mary se ela entrasse.

— Por acaso você colocou uma placa “Não perturbe” lá fora?

— Ninguém vai nos perturbar correndo o risco de ser decapitado.

Isabel engoliu em seco.

— Está brincando, não está?

— Diga-me você, Isabel. Estou brincando?

— Nunca faria um mal desses a ninguém. Então, só pode estar brincando.

Ele ergueu a taça.

— À mulher mais extraordinária que eu já conheci. E de coração mais generoso e apaixonado. Fico feliz por tê-la conhecido, Isabel.

Eles tilintaram os cálices e beberam.

— Ao homem mais afetuoso e amoroso que já conheci. Esta jornada foi longa e estranha, mas, se eu não a tivesse feito, não o teria conhecido, Artur. E teria sido uma perda e tanto. Encontrar você foi como descobrir um tesouro.

Beberam outra vez, os olhos verdes fixos nos azuis.

Depois ambos se sentaram em suas respectivas cadeiras, o que provavelmente foi uma ideia bem melhor do que jogarem as taças de lado e pularem na cama. Ainda que ela não estivesse muito certa, no momento, por que motivo aquela era uma ideia melhor.

— Você me encanta, sabia? — murmurou Artur. — Tudo em você me fascina. Não vou negar, nem me desculpar por isso. Esse sentimento está além do meu controle. Aconteceu de eu estar perto da porta no momento em que quis fazer algo especial por Mary. E foi muito especial... Assim como você.

Ela tomou outro gole do vinho.

— Mary havia acabado de me contar: você ordenou aos homens que se arrumem para o casamento dela e de James. Foi maravilhoso da sua parte.

— Em primeiro lugar, eu não ordenei nada a ninguém, Isabel. Apenas sugeri. Só dou ordens nas batalhas; em Camelot, eu sugiro.

Ela assentiu:

— Eu também soube que Gwen sugeriu aos homens que pagassem pelos serviços de Mary.

— Nós sempre incentivamos nossos súditos a pagar por serviços prestados. — Ele fez um gesto vago com a mão. — Se uma pessoa presta um serviço especial, por que não deve receber por ele? Parece justo. Deveria haver um nome para essa prática, mas não sei qual seria.

— No meu reino isso se chama “capitalismo”.

— Nunca ouvi falar, mas qualquer nomenclatura serve.

— Também acho. E agradeço a você e a Gwen por promoverem o capitalismo. Ele faz com que seus homens e suas mulheres trabalhem com mais afinco e sejam recompensados.

— Eu gostaria de ouvir suas sugestões de como inserir melhor esse capitalismo no funcionamento do castelo.

— Agora?

— Não, não agora. Neste momento, eu gostaria muito de ouvir outras histórias a seu respeito.

Isabel balançou a cabeça.

— Eu já tagarelei muito sobre mim. Chegou a sua vez de retribuir. Conte-me algo sobre você. — Ela sorriu. — Algo que não tenha contado a nenhuma outra pessoa.

Artur riu e, em seguida, tomou outro gole de vinho.

— Devo confessar que não compreendo o que quer dizer, às vezes. Você usa palavras que nunca escutei antes. No entanto, gosto de interpretá-las por meio das outras que as acompanham.

Isabel sentiu uma espécie de vibração correr pelo corpo, e soube que ela nada tinha a ver com o vinho.

— E eu tento falar como você, mas nem sempre consigo.

— Por favor, não tente. Estou verdadeiramente apaixonado por quem você é, pelo modo como fala, pelas suas ideias, sua beleza...

— Pare, Artur, por favor! Agradeço pelos elogios, mas eles me deixam sem graça.

— ... E também pela sua generosidade — completou Artur, sorrindo. — Eu poderia continuar, mas vou parar agora. — Ele tornou a encher os cálices, embora ela mal tivesse tocado no dela.

Isabel não protestou, contudo. Sentia-se feliz demais em apenas estar na companhia dele.

“Artur e Isabel, Merlin está contente! Saibam que ele sorri o tempo todo, ainda que dormindo profundamente.”

Artur franziu a testa.

— Ouviu isso?

Isabel não sabia se dizia “sim” ou “não”.

— O quê? — indagou, optando por ser evasiva.

— Sobre Merlin?

— Merlin?

Artur balançou a cabeça.

— Minha mente anda me pregando peças.

Ela tentou responder da melhor maneira. Não queria que Artur pensasse que estava perdendo o juízo.

— Creio que, quando os pensamentos surgem para nós, isso acontece por alguma razão. Para que nós reflitamos de verdade. Pelo menos, é assim que interpreto essas vozes na minha cabeça.

“Viviane, pare com isso!”

“Perdão!”

Artur acomodou-se melhor na cadeira.

— Diga-me, Izzy, o que gostaria de saber sobre mim? Sobre o meu primeiro amor?

O que ela adoraria saber era como ele era totalmente nu. E também se ele era tão bom amante quanto seus olhos e sorriso prometiam. Mas, apesar de ser um tanto quanto atrevida, não se sentia preparada para soltar aquelas perguntas. Não ainda.

— Eu adoraria saber sobre seu primeiro amor, mas não é o que eu gostaria de ouvir antes de tudo. O problema é que tenho medo de ir longe demais.

— Arrisque-se — incitou ele.

Ela hesitou.

— Eu gostaria de saber qual é a sua maior paixão. O que mais importa para você, Artur?

Ele levou alguns minutos para responder, esfregando a barba.

Nesse meio-tempo, Isabel tomou vários goles de vinho, torcendo para que Artur revelasse qualquer coisa, mas não algo em que ela não estivesse interessada. Como reconquistar Gwen, por exemplo. Também não queria que ele saísse correndo do quarto.

— Muitas coisas são importantes para mim — respondeu ele, por fim. — Posso escolher mais de uma?

— Claro — anuiu ela, engolindo o medo. Do quê , não tinha certeza. Mas algo a estava deixando apavorada. Uma pergunta menos comprometedora teria sido mais adequada.

— Quero garantir a segurança e a felicidade de todos em Camelot, mas receio que isso não seja possível.

— Por quê?

— Há muitos inimigos querendo nos derrubar. Por esse motivo estamos promovendo essas reuniões entre cavaleiros de outros reinos. Para que possamos nos unir contra essas forças malignas.

— Dumont não é uma delas, Artur. Eu juro.

O sorriso dele foi sombrio.

— Eu sei que não, Isabel. E agradeço muito pelo apoio que nos têm ofertado.

— Tenho homens a caminho, prontos para defendê-los.

Aquilo era uma mentira sem tamanho. Ela nem sabia se tinha um exército. Mas contava com a deusa para ajudá-la na questão.

— Seus homens já chegaram, Isabel. Na verdade, estão se acomodando neste exato momento.

— É mesmo?

— Não sabia?

“Segue com o plano, Isabel. Achas, mesmo, que eu não traria reforço?”

“Um aviso teria sido bem útil, Viviane!”

“Irás reconhecer os homens num piscar. São antigos conhecidos teus da universidade. De Oklahoma, eles vieram para ficar. São o time de futebol da cidade!”

“Caramba, não tirou o time de futebol inteiro da...?”

“Relaxa, Isabel, são apenas imagens, assim como Tom, Dick e Harry.”

Isabel não sabia se ria ou chorava. Só faltava parte deles ter sido trazida na carroça Sooner Schooner! *

“Claro que foram, por que não? Agora, por favor, concentre-se em Artur.”

Isabel engoliu em seco.

— Eles... eles acabaram chegando antes do que eu havia previsto. Peço desculpas se isso lhe trouxe algum incômodo.

Artur riu.

— Incômodo nenhum. Na verdade, foi um prazer, de acordo com James. Parece, inclusive, que trouxeram algo que chamam de mascotes.

— Santo Deus! Aposto que eles vão ensinar seus homens a dirigir colados na carroça da frente!

Isabel viu a confusão nos olhos de Artur e rapidamente sacudiu a cabeça.

— Vou ter que recebê-los e agradecê-los por terem vindo tão rápido. Mas não antes de ouvir o que mais você tem a dizer.

— A dizer?

— Não tem? Entendi que tinha mais de uma prioridade.

— Ah, sim. Minhas prioridades.

Uma vez mais, a forma como Artur sorriu a fez derreter e pegar fogo ao mesmo tempo. Algo que ela nunca sentira antes.

Tente descobrir por quê, dr. Phil!

— Minhas prioridades — repetiu ele, distraído. — Preciso me concentrar na conversa. Bem, também quero poder conviver em paz com Gwen.

Isabel sentiu o coração afundar dentro do peito.

— Compreendo, Artur. E acredito que deva, mesmo, fazer tal coisa. Salvar seu casamento precisa, mesmo, ser uma prioridade — afirmou, e sentiu o colar bater contra o peito.

— Você não entendeu, Isabel. Eu quero que Gwen seja feliz, mas não comigo. Ela é apaixonada por Lancelot. Não posso evitar tal coisa nem quero prejudicá-los. Na verdade, estou preocupado em não conseguir protegê-los como eu deveria, pois gosto demais dos dois.

— Mesmo que eles tenham...

Artur inclinou o corpo e pôs a mão nos lábios dela.

— Eles foram atrás de seus desejos. Eu deveria exigir outra coisa? Talvez. Mas está feito, e pronto. Tudo o que posso fazer agora é garantir a segurança de ambos. E, para dizer a verdade, creio que tudo acabará bem.

Isabel passou a mão pelos cabelos.

— Sinceramente, não compreendo.

— Se eles forem apanhados, terão que pagar caro. Assim, tentarei evitar isso ao máximo.

— É um bom homem, Artur. Tem um coração enorme, sabia? Na minha terra, temos um ditado: “O que acontece em Dumont fica em Dumont”. A menos que alguém seja imbecil o suficiente para falar sobre o caso com cada pessoa que vir pela frente, fora do reino.

— Gosto muito do modo de pensar das pessoas de Dumont.

— Eu também — afirmou ela, ainda que essa fosse a maior das mentiras, considerando que não conhecia um único cidadão daquela terra. Tomou um último gole de vinho e se levantou. — É melhor eu ir receber os meus homens.

Artur a segurou pela mão.

— Ainda não lhe contei qual é a minha terceira prioridade.

— Talvez mais tarde, Artur.

— Por favor. Eu serei breve.

Ela assentiu em silêncio e sentou-se quando, na verdade, estava pronta para se deitar. Decididamente, beber logo pela manhã não tinha sido muito bom para seu equilíbrio!

— E então? Qual é a sua terceira prioridade?

Artur continuou a segurar a mão dela, correndo o polegar pela palma macia. Por um momento, pareceu hesitar, depois a fitou direto nos olhos.

— Deitar-me sem nenhuma roupa com você. Fazer amor com você. Beijá-la com paixão até deixá-la tonta... Essa é mais uma prioridade minha e, das que eu mencionei antes, não necessariamente na ordem certa. Eu só a coloquei nessa ordem porque levei algum tempo para reunir coragem suficiente para expressá-la.

Graças aos Céus estava sentada, pensou Isabel, pois com certeza seus joelhos teriam cedido. Pela primeira vez na vida, ficou sem palavras.

Ficaram olhando um para o outro por tanto tempo que o Sol poderia ter se posto, e ela nem teria notado.

Por fim, Artur desviou o olhar e se levantou.

— Eu não devia ter dito uma coisa dessas. Não foi nada adequado. — Curvou-se, solene. — Minhas mais profundas desculpas.

Isabel o agarrou pelo braço e se pôs de pé, puxando-o para mais perto conforme o fazia, de modo que ficaram face a face, corpo a corpo.

— Aposto um dos nossos cavalos que não consegue tirar de mim essa geringonça que chamam de vestido mais rápido do que a Mary.

Artur sorriu e, em seguida, a segurou pelo rosto.

— Está me subestimando, condessa.


Capítulo Catorze


Ah, como Isabel o tinha subestimado! Em todos os sentidos.

Artur lhe tirou o vestido em tempo recorde, beijando-a em todos os lugares até deixá-la entorpecida.

— Você é bom nisso — sussurrou ela conforme o traje caía no chão.

— Espero que continue pensando da mesma forma por muito tempo, senhora...

Tão logo o vestido se amontoou em torno de seus tornozelos, Isabel percebeu-se nua. De repente, sentiu vergonha e cobriu os seios com os braços.

— Não, Isabel, por favor. Você é tão linda!

Ela não fazia ideia de como funcionavam as túnicas, calças e outras coisas dos homens daquele tempo. Tanto que o máximo que foi capaz de fazer foi livrar Artur da veste que ele usava por cima do restante antes de ficar perdida.

— Receio não saber mais o que fazer.

Artur, que continuava fissurado em seu corpo, ficou imóvel e estreitou o olhar.

— Está me dizendo que nunca foi tocada?

Isabel não soube como responder. Simplesmente não encontrou palavras.

“Viviane?”

Nada. De repente, ocorreu-lhe que a deusa havia lhe prometido privacidade em momentos como aquele. Que maravilha. Era só o que faltava.

— Isso importa? — indagou, tímida. — Não faço ideia de como lidar com essas roupas de homem.

— Importa muito para mim — afirmou Artur, parecendo e soando irritado.

Ele puxou o vestido dela por cima de seu corpo. A respiração ofegante dele já não soava cheia de luxúria e desejo, e sim como uma tentativa desesperada de retomar o próprio controle.

— O que aconteceu, Artur? — perguntou ela, segurando o vestido desamarrado ao redor do corpo. — O que foi que eu fiz?

Ele apanhou a túnica, a única peça da qual Isabel conseguira fazê-lo se despir.

— Não vou lhe tirar algo que é uma atribuição a seu futuro companheiro. — Ele se dirigiu para a porta, ajeitando o colete no corpo a cada passada.

— Espere um minuto, rapaz! Trate de voltar aqui e falar comigo!

Artur fez meia-volta quando já estava prestes a abrir a trava da porta.

— O que mais posso dizer? Não estou aborrecido com você, condessa, estou aborrecido comigo mesmo. Minhas profundas desculpas pelo que estive prestes a fazer.

— Se não notou, eu estava mais do que disposta a fazer a mesma coisa.

— O que me pareceu maravilhoso. Isso, para mim, foi o mais inebriante.

— Então por que está fugindo de mim? Por que agora sou “condessa” em vez de Isabel, ou mesmo de Izzy? Pode estar punindo a si mesmo, mas, acredite, está punindo mais a mim. Por quê?

Artur pareceu ceder apenas em parte, o que feriu o coração de Isabel. Afastando-se da porta, ele se aproximou dela.

— Deixe-me ajudá-la com a amarração do vestido.

— Ótimo. Mas, enquanto trabalha, por que não me ajuda a entender o que acabou de acontecer aqui?

— Não será muito bom de ouvir — assegurou ele, à medida que começava a atar os laços do traje com surpreendente habilidade.

— Como se todos não fô ssemos obrigados a esse tipo de coisa às vezes... Fale de uma vez, Artur, por favor!

— Houve um tempo em que eu era a arrogância em pessoa. Muito cheio de mim graças ao meu poder e fama. Era apenas um rapaz, mas queria desesperadamente ser um homem.

— Compreendo. Mas o que isso tem a ver conosco? Com isto? — exigiu Isabel. — Creio que a verdade seja o melhor caminho neste momento.

Ele suspirou.

— Sim, você merece a verdade.

E um bom orgasmo também. Por enquanto, contudo, ela iria se contentar com a verdade.

— Também acho — concordou, tentando desesperadamente não começar a chorar.

Artur assentiu.

— É a verdade o que vai ter. — Tirou as mãos do vestido, relutante, parecendo precisar de algo mais para fazer.

— Conte-me tudo, Artur.

— Por onde posso começar?

— Que tal do momento em que conseguiu soltar Excalibur em diante?

Ele anuiu mais uma vez.

— Logo depois de eu ter conseguido liberar a espada da pedra, conheci uma moça que gostava de mim. Ela se chamava Elizabeth e era muito linda e doce. Estava me sentindo ousado e poderoso... Sentia como se o mundo fosse meu.

— Imagino. Tinha feito algo que ninguém mais havia conseguido.

Artur terminou de atar os laços, por fim. Em seguida, virou-se e sentou-se em uma cadeira.

Isabel se acomodou na outra.

— Continue.

— Essa moça, Elizabeth... ela permitiu que eu fizesse amor com ela. Mas foi uma experiência dolorosa, uma vez que eu ainda não era muito experiente. Também foi a minha primeira vez.

— Quer dizer, então, que sabia como tirar uma espada, mas não como colocá-la? — Isabel viu a expressão surpresa de Artur e riu. — Perdão. Foi uma piada de péssimo gosto.

Ele inclinou a cabeça.

— Mas que, para meu azar, é verdadeira. Tive pesadelos terríveis sobre o que acontecera, porque saí sem nem pedir desculpas a ela. Afinal, tinha coisas mais importantes para fazer. Alguns anos se passaram, porém o que aconteceu naquele dia ainda pesava na minha mente. Tentei entrar em contato com Elizabeth, a fim de perguntar se ela estava bem. Mas me disseram que ela havia morrido em um parto.

— Merda! Foi quando Mordred nasceu.

— Eu já desconfiava de que o menino fosse meu. Juro. A irmã de Elizabeth tomou conta da criança e levou Mordred a acreditar que ela era sua verdadeira mãe. Sentia ódio de mim, embora eu tenha tentado fazer as pazes com ela. Estava quase certo de que Mordred era meu filho. Foi uma época terrível para todos nós. Mas eu tentei fazer tudo certo, Isabel. Juro que tentei.

— Acredito em você, Artur.

— Contei essa história para que entendesse por que tenho tanto medo de prejudicar outra mulher do mesmo modo. Principalmente você.

— Imagino que Gwen também era virgem quando se casou com ela.

— Verdade, mas fui muito cuidadoso por ter consciência disso. Tomei muito cuidado para não machucá-la.

— Então por que surtou comigo?

— Surtei?

— Por que parou?

Ele balançou a cabeça.

— Não compreende? Meu corpo estava fora de controle. Eu queria tomá-la... Queria violar você.

— E daí? Eu queria ser violada.

Artur a fitou, confuso.

— Eu poderia tê-la machucado. Já aconteceu com outra. Eu não poderia conviver com outro erro desses.

— Eu lhe pareci assustada?

— Não, Isabel, mas isso porque não conhece a dor que uma mulher pode sentir da primeira vez.

Claro que conhecia. Brian Gordon fora tão desajeitado e descuidado quanto Artur.

E, droga, tinha doído demais.

Mas ela havia superado o trauma. Na verdade, bem depressa.

— Poderia ter sido tão delicado comigo como foi com Gwen.

— Não.

— Por que não?

— Porque, com Gwen, eu estava em pleno controle. Aprendi a lição com Elizabeth, e Gwen sempre foi como uma boneca de porcelana. Foi fácil tratá-la como tal.

— Eu sei que não sou nenhuma bonequinha de porcelana, embora muita gente ainda não faça ideia do que eu seja. Mas o que há de tão diferente em mim?

— Eu já disse, Isabel, perdi todo o controle. A verdade é que nunca desejei uma mulher como a desejo. Mesmo quando eu era novo e só pensava nesse tipo de coisa, nunca foi como agora.

Isabel quis gritar. Artur não estava falando coisa com coisa e, ao mesmo tempo, fazia sentido demais. Era um cavalheiro e um homem gentil, claro, porém seu corpo estava sofrendo com tanto desejo reprimido.

Por outro lado, era muito bom ouvir que ele a desejava com tanta intensidade. Por que ela não contava de uma vez que não era mais virgem? Que já havia tido vários amantes? Deus do Céu, com aquela idade, sua vagina teria se fechado permanentemente caso nunca houvesse sido penetrada.

A hora certa tinha vindo e ido embora, no entanto, e sua hesitação a penalizara. Que maravilha. Revelar naquele momento que, na verdade, ela era muito experiente no que Artur chamaria de “prática sexual” pareceria falso. Decerto ele ficaria furioso por ela não ter dito a verdade logo de início.

Isabel se levantou, sentindo-se mais derrotada do que nunca.

— Obrigada por sua integridade, Artur. Eu só queria ter agido da mesma forma.

Ele também se pôs de pé.

— Como assim?

Ela não conseguiu fitá-lo nos olhos.

— Não importa agora.

Artur estendeu a mão e a segurou pelo queixo, obrigando-a a encontrar seu olhar.

— Pois, para mim, tem grande importância. No final, Isabel, a verdade é tudo o que temos.

Ah, Deus, como ela poderia se sentir pior? Sua vida inteira naquele reino era uma mentira!

— Podemos conversar sobre esse assunto outra hora? Estou exausta e, devo dizer, não pelo motivo que eu esperava. Além do mais, tenho muito a fazer antes do jantar.

Ele a observou pelo que pareceu uma eternidade, depois assentiu brevemente.

— Outra hora, então. Eu também tenho meus afazeres. Ainda não realizei meus treinos de arco, flecha e espada hoje, e tenho obrigação de fazê-lo para não me tornar um rei gordo e lento. Esta noite, talvez?

Isabel riu sem vontade. Artur precisaria de um ano ou mais, sem fazer nada, para ganhar meio quilo ou perder um grama de músculo. Seu corpo era tonificado dos ombros até a ponta dos pés. Ao menos parecia ser. Como ela queria poder constatar aquilo!

— Talvez. Vamos ver.

— Vou vê-la no jantar ?

— Sim. Se depender de mim, eu jamais irei perder uma refeição.

Artur riu. Depois, antes que ela se desse conta, segurou-a pelo rosto e a beijou com volúpia. Seus hormônios, que tinham voltado a ficar inativos, saltaram novamente à vida como se atingidos por uma descarga elétrica. Artur a beijava como nenhum outro homem. Seus lábios eram firmes, diretos, moldando os dela a seu bel-prazer. Sua língua tocava a dela apenas ocasionalmente, contudo, como se apenas para prová-la. Ele não tentou lhe invadir a boca como muitos faziam; não usou o beijo como uma violação oral. Apenas acariciou e brincou com seus lábios, levando-a quase à loucura.

Vários minutos depois, interrompeu o beijo e uniu a testa à dela.

— Ah, Isabel — falou, rouco. — Seu gosto, seu cheiro e sua pele são quase demais para suportar!

— Pois trate de voltar aqui.

— Esta noite?

— Sim.

Artur recuou, ainda que relutante em fazê-lo. Seus olhos a percorreram, então, desde o rosto até os pés.

— Confie em mim, Isabel. Não precisa sentir vergonha. É linda demais.

Ele tentou passar por ela, mas Isabel o segurou pelo braço, fazendo-o se voltar.

— Você também.

Artur sorriu.

— Como pode saber? Pode se arrepender do que está dizendo algum dia desses. Tenho muitas cicatrizes de batalha neste meu corpo.

Ainda que a simples ideia de imaginá-lo ferido a fizesse estremecer, Isabel compreendia: era dessa forma que funcionava aquele mundo. Pensou em Curtis e no Afeganistão, e se deu conta de que a violência em si não havia mudado; apenas sua natureza. Ainda assim, mal podia esperar para explorar cada uma das cicatrizes de Artur, se tivesse a chance.

Caminhou com ele até a porta, mas, antes que Artur a abrisse, ela o deteve novamente.

— Artur... Na próxima vez em que tivermos a oportunidade de conversar, prometo dizer a verdade. Você está certo. No final, é tudo o que temos.

Ele sorriu.

— Estou ansioso por esse momento. Tem uma vida fascinante, Isabel.

Se ele soubesse!

— Até a noite — despediu-se Artur com uma ligeira mesura.

— Sim. E tome cuidado lá fora. Luta de espadas não é para maricas.

Ele riu.

— Não sei o que significa “maricas”, mas posso imaginar.

Ambos sorriam quando Artur tirou a trava e abriu a porta.

Seus sorrisos, porém, cessaram.

— Mordred! — exclamou Artur.

O bastardo arrogante se desencostou da parede e cruzou a porta de Isabel.

— Meu pai... Condessa... Pensei que fossem ficar aí dentro o dia todo.

Artur sabia que a vontade de Isabel era pular em cima de seu filho e lhe arrancar os olhos. Assim, ele rapidamente lhe bloqueou o caminho, a fim de impedir um desastre.

— Tem algum assunto para discutir conosco, Mordred? — perguntou, seco. — Se tinha, bastava bater.

— Ah, muitos assuntos — ironizou o rapaz. — E agora tenho outro para adicionar à minha lista.

— Então vamos fazê-lo em outro...

— Seu animalzinho intrometido, abusado e ingrato! — sibilou Isabel, tentando romper a barreira de Artur sem sucesso, graças aos deuses.

— Por favor, Isabel — pediu o rei. — Permita-me lidar com esta situação.

— Como acha que ele iria saber onde você estava se não o houvesse seguido?

O sorriso de Mordred se alargou.

— A condessa é muito astuta. E adorável. Escolheu bem a sua amante, meu pai. Se não se importar em compartilhar os serviços dela com seu filho, não farei nenhuma objeção.

Artur sentiu a raiva espiralar dentro dele como nunca havia acontecido. Saltou para a frente e agarrou Mordred pela túnica com ambas as mãos, erguendo-o contra a parede.

— Vai pedir desculpas para a condessa, Mordred. Agora!

O sorriso de Mordred desapareceu, contudo a malícia em seus olhos ainda cintilava.

Foi uma visão triste para Artur, que sacudiu o filho, desgostoso.

— Peça desculpas antes que eu mande escoltá-lo para fora de Camelot e proíba a sua presença aqui pelo resto da vida!

— Se o que eu disse não é verdade...

— Claro que não é. Isabel e eu não somos amantes. Vou repetir, Mordred. Peça desculpas à condessa!

— Esqueça, Artur — interveio Isabel, aproximando-se deles. — Esse moleque é incapaz de se desculpar com sinceridade. — Em seguida, fez algo notável e chocante ao mesmo tempo: girou o corpo uma vez e, levantando uma perna, arremessou-a contra o joelho de Mordred.

O rapaz deu um grito de dor, e poderia ter caído se Artur não o estivesse segurando.

— Isso foi por Samara. Como se sente agora? — exigiu Isabel, ofegante. — Se eu o vir perto da minha égua de novo, vai levar uma pior! Entendeu, seu merdinha?

Artur testemunhou algo nos olhos do filho — dirigido a Isabel — que nunca tinha visto: uma fagulha de respeito.

Mordred fez uma careta enquanto tentava se recuperar.

— Minhas desculpas se falei o que não devia, condessa.

— Eu não dou a mínima para as suas palavras sem sentido, seu verme! — contrapôs ela. — Seus atos já dizem quem você é, Mordred, e mostram que a criação venceu a natureza nessa batalha genética.

Embora Artur tivesse Mordred pelo menos a uns doze centímetros acima do solo, o rapaz se debateu até conseguir tocar o chão.

— Vai permitir que essa mera prostituta repreenda seu único filho e herdeiro da Coroa?!

— Vai ver quem é a mera prostituta... — respondeu Isabel, preparando-se mais uma vez para atacar.

— Isabel, não! — pediu Artur. — Eu cuido disso. — E largou o filho de uma vez.

Mordred gritou ao desabar no solo.

Ver a dor do rapaz foi angustiante para Artur, porém as palavras contra Isabel o tinham ferido ainda mais.

— Daqui em diante, vai tratar a condessa com o respeito e a educação que ela merece. Ela nunca lhe fez mal. Foi você quem a ofendeu com palavras e ações. Comece a se comportar como deve, Mordred, ou vou derrubá-lo sobre essa perna mais vezes... Isso se eu não permitir que a condessa use seus próprios métodos.

— Eu vou.

— Vai o quê?

— Vou tentar acertar as coisas.

— Não é o bastante — retorquiu Isabel com ódio nos olhos suficiente para pulverizar o castelo inteiro.

Artur quase gemeu.

— Mordred pediu desculpas, Isabel.

— A mim, não a você. — Ela fulminou o rapaz com o olhar. — Seu pai o ama. Ele tem feito o que pode para compensar os anos em que nem mesmo sabia da sua existência. E você não tem retribuído com nada além de ódio, sentimento de vingança e atitudes vis e mesquinhas!

— Isabel... — recomeçou Artur, mas não conseguiu terminar, pois ela estava...

“Prestes a fazer uma loucura.”

Uma vez mais, ele não soube de onde vinha aquela voz em sua cabeça. A conclusão, entretanto, era apropriada, já que Isabel parecia capaz de arrancar membro por membro de Mordred quando avançou mais um passo, pondo-se frente a frente com o rapaz.

— Seu pai o ama , seu imbecil. Ele teria tido o maior prazer em trazê-lo para cá e cuidar de você se soubesse de tudo desde o princípio, mas não sabia ! Artur está pagando por algo que não foi culpa dele, e você continua a pressioná-lo e a puni-lo com um fardo que ele não merece carregar! Portanto, ou toma juízo e trata seu pai com o respeito que ele merece, ou pode ter certeza de que farei da sua vida um inferno, assim como está fazendo com a dele. O próprio Artur tem todos os recursos para fazer isso acontecer, mas você conta com o amor dele para mantê-lo em segurança e numa zona de conforto, não é mesmo? O problema é que eu também tenho os meus recursos, Mordred, e não dou a mínima para o que acontece com você. No meu mundo, não vai poder se esconder por trás do amor do seu pai; portanto, não me subestime. Capisce?

— Capisce? — repetiram Mordred e Artur ao mesmo tempo.

— Entendeu? — traduziu ela.

O menino acenou com a cabeça.

— Eu... capisce .

— Então peça desculpas ao seu pai.

— Mordred não precisa...

— Claro que precisa! — cortou Isabel, irritada.

O rapaz engoliu em seco e, pela primeira vez em muito tempo, Artur não viu nenhuma ameaça nos olhos do filho.

— Peço desculpas, meu pai.

— Por? — incitou Isabel.

— Por acreditar que você havia me abandonado, e que não se importava com o que tinha acontecido comigo.

— Isso nunca foi verdade, meu filho. Se eu soubesse...

Artur não conseguiu continuar, pois se viu sufocado por lágrimas não derramadas.

Isabel se afastou da parede.

— É melhor levar Mordred até um médico. Ele provavelmente vai precisar de uma atadura nesse joelho.

Artur puxou o filho pela cintura, depois o ergueu no colo.

— Pai! Não posso ser visto sendo carregado desta maneira.

— Acha mesmo que vai conseguir caminhar sozinho? Prometo que o coloco no chão se perceber alguém se aproximando. Para manter as aparências, é claro. Podemos fingir que estamos dando um passeio para conversar coisas que um pai e um filho conversam. — Artur virou-se com o filho junto ao peito, como ele sempre desejara fazer desde que Mordred era um bebê. — Isabel?

— Sim? — Ela se voltou quando já estava prestes a readentrar seus aposentos.

— Por acaso sabe o paradeiro de Dick? O meu médico não está no castelo. Está longe daqui, visitando as choupanas dos nossos lavradores.

— Pelo que ouvi, Dick continua estalando o pescoço e as costas dos seus homens. Acredito que ele esteja naquilo que chamam de “salas de cura”.

— Obrigado — murmurou ele, tentando agradecê-la por muito mais do que apenas tê-los encaminhado ao seu próprio médico. Tomara ela entendesse.

— De nada. E, sim, eu entendi, Artur. — Isabel observou Mordred nos braços do pai. — Desculpe-me pelo que eu fiz, ainda que tenha merecido. Espero que pare para pensar em quem está cuidando de você agora, seu bostinha. Artur o ama mais do que você imagina. E saiba que, se não pudesse contar com o amor do seu pai, haveria um monte de homens e mulheres leais ao rei dispostos a acabar com você , aqui em Camelot. Inclusive eu.

***

Conforme pai e filho desciam os degraus que os levariam até as salas de cura, Mordred olhou para Artur.

— Ela é mesmo uma guerreira, essa condessa Isabel.

Artur concordou, tentando não demonstrar tensão. Afinal, Mordred já não era mais nenhuma criança.

— Verdade. Principalmente quando ameaçam ou machucam aqueles que lhe são caros. Foi você quem feriu a égua dela, Mordred?

— Eu não quis causar nenhuma lesão permanente.

— Que coisa mais desagradável e terrível de se fazer.

— Sim. Eu compreendo agora. — Mordred recostou a cabeça no pescoço de Artur; algo que este jamais experimentara com o filho antes.

— Vai bani-la da corte por ela ter atacado seu filho?

Artur parou por um instante, depois retomou os passos.

— Sim. No mesmo dia em que eu fizer o mesmo com você por ter machucado a montaria dela.

— Então escolheria a égua da condessa a mim?

— Não, Mordred, eu sempre escolho o bem em vez do mal.

— Está dizendo que as minhas atitudes são perniciosas?

— Estou. Você atacou um animal inocente. Com que finalidade, Mordred? A troco de quê? — Artur ajeitou melhor o filho nos braços. — Ajude-me a entender o seu objetivo, meu filho!

— A condessa nos ameaçou.

— Como? Ela é gentil demais para isso.

— Está me levando para o médico, meu pai!

— Você provocou essa reação ao ferir o animal dela.

Mordred não disse nada por alguns momentos.

— Eu sinto que ela é uma ameaça para a nossa dinastia.

Artur nunca teve tanta vontade de arremessar alguém escada abaixo. E era seu próprio filho!

Manteve-se controlado e em movimento, contudo.

— Por que cismou com a condessa agora? Ela veio em paz. Veio para fazer acordos que beneficiarão a todos nós. Por que Isabel seria uma ameaça, Mordred?

— Porque está cego com os sentimentos que nutre por ela.

Artur parou novamente, desta vez considerando espancar o próprio filho.

— Como pode afirmar tal coisa?

— Pela maneira como reagiu quando eu a assediei.

— Mordred... — Ele riu sem vontade. — Se é assim que imagina estar assediando uma mulher, tenho muito a lhe ensinar.

— Ela significa mais para você do que Gwen.

Artur vacilou, mas não chegou a parar desta vez.

— Eu a conheço há pouco tempo, portanto ainda não sei o que sinto. É perigoso julgar as emoções tão precipitadamente, sem que uma boa avaliação seja feita. Na verdade, isso seria um erro fatal em qualquer batalha.

Mais uma vez se fez silêncio enquanto eles desciam. Artur sentiu os braços fraquejar com o esforço, mas se obrigou a manter o filho em segurança.

— O que ela disse é verdade? — quis saber Mordred, rompendo a quietude.

— Quem? A condessa Isabel?

— Sim. O que ela disse é mesmo verdade?

— É.

— Por que nunca me contou?

— Eu lhe disse a mesma coisa muitas vezes ao longo de todos esses anos, filho! No entanto, você se recusou a acreditar em mim. Por que ouvir o mesmo da condessa o afetou?

— Talvez porque ela tenha sido contundente, enquanto você sempre se expressou com calma em demasia.

— Ah, preciso ter isso em mente daqui em diante: é preciso gritar para atingi-lo.

O barulho de passos vindo da parte de baixo fez Artur colocar Mordred de pé, de modo que o rapaz não se envergonhasse da situação. Era a jovem Mary, correndo escada acima.

Ela estacou ao encontrá-los.

— Mil perdões, majestade e...

— Este é meu filho, Mordred.

— Senhor... — Ela fez uma reverência.

— Está indo para o quarto de Isabel, Mary?

— Sim, meu rei. Com ervas e flores para o banho da condessa. Algum problema?

— Nenhum — afirmou Artur. — Aliás, se tiver chance, por favor, escolha apenas flores das quais ela goste.

— Sim, majestade. Posso seguir adiante?

— Claro.

Mary sorriu e os contornou pelo lado direito.

Assim que ela chegou ao topo da escada e virou a esquina, Artur tomou o filho nos braços novamente.

— Já se transformou mesmo num homem, Mordred. Está bem mais pesado do que eu imaginava.

Eles já tinham descido vários outros degraus, quando Mordred murmurou:

— A condessa o estava protegendo. Deve gostar de você de verdade.

Artur não precisou perguntar de onde o filho havia tirado aquela ideia.

— Assim como eu gosto dela, Mordred. Isabel é uma mulher fascinante.

— Quando foi que você e a rainha deixaram de se gostar? Quando a condessa chegou?

Artur quase tropeçou.

— Como já afirmei, Isabel e eu não nos tornamos amantes. Acabamos de nos conhecer.

— Eu acredito. Mas não foi essa a minha pergunta.

— Mordred, você é meu filho, mas, acredite ou não — e neste momento deveria acreditar que meus braços podem não sobreviver a esta jornada —, há coisas na vida que são privadas, não importando se o indivíduo é um rei ou um servo. Esse é um problema meu, que eu gostaria de manter particular.

E, graças aos deuses, eles estavam quase chegando.

— Eu só lhe digo uma coisa, meu pai: essa condessa fala demais.

— Toque na égua dela outra vez, Mordred, e Isabel vai reagir a facadas, se não de modo pior — exagerou ele. — E não acredito, sinceramente, que vá querer enfrentar coisa pior .


Capítulo Quinze


Mary entrou no quarto de Isabel toda saltitante, menos de cinco minutos após Artur e Mordred terem seguido seu caminho. A única coisa que impedia a menina de fazer uma verdadeira acrobacia era a bandeja em suas mãos contendo vários mimos: ervas aromáticas, flores e aqueles malditos gravetos com os quais ela, Isabel, era obrigada a limpar os dentes.

— Olá, Mary — saudou ela, sorrindo diante da exuberância da moça.

— Boa tarde, condessa!

Mary olhou ao redor, procurando um lugar para pousar a bandeja, já que a mesa estava repleta de restos de outras salvas.

— Que tal deixar sobre a cama, Mary? — sugeriu Isabel.

A moça virou-se, porém parou.

— Ora essa, eu tinha certeza de que havia deixado a sua cama arrumada esta manhã.

Céus! Ela e Artur não tinham ido muito longe, mas o suficiente para bagunçar a colcha.

— A culpa foi minha, Mary. Eu me deitei e estava muito... inquieta.

— Não se preocupe, condessa, vou arrumá-la outra vez.

Isabel acomodou-se ao lado da bandeja e, em seguida, deu um tapinha na cama.

— Se puder se sentar um pouco, por favor, conte-me o que a deixou tão animada.

— Gilda disse que pode reformar o vestido para mim sem problemas! Não é maravilhoso?

— Que bom, Mary! Mas eu não tinha dúvida disso. — Ela segurou a mão da moça. — Será uma noiva linda.

— Graças à senhora, condessa.

— Ei, meu vestido não tem nada a ver com isso, e sim você mesma. É uma moça adorável, Mary. Iria brilhar até mesmo em um saco de juta!

Mary ficou confusa. Antes que Isabel pudesse se explicar, no entanto, a menina — graças aos Céus — ignorou o que não havia compreendido, aparentemente imaginando que ela lhe houvesse feito um elogio.

— Também tenho um recado para a senhora. Da rainha!

— Da rainha? Não me diga... E o que a rainha tem a dizer a mim?

— Ela deseja que a senhora vá encontrá-la no sótão, onde as costureiras trabalham.

— Para quê?

Mary riu.

— Ela está tentando ensiná-las a fazer calças de homem para as mulheres. O problema é que Sua Alteza não tem nenhuma habilidade com costura, senhora. Nenhuma mesmo.

— Não há diferença alguma entre os modelos, a não ser os tamanhos, Mary. De qualquer modo, ficarei feliz em ir ao encontro de Gwen, pois desconfio de que este será um dia ótimo para todas nós. Vamos. — Ela tomou a mão da moça e a levou até a porta. — Mostre-me o caminho.

Mary a conduziu através de um labirinto de escadas e corredores.

— Posso perguntar que tipo de jogo vamos praticar para termos de usar essas roupas, senhora?

— O que nos der na telha.

Mary riu enquanto subiam mais alguns degraus.

— Às vezes não compreendo o que quer dizer, condessa, mas não a questiono porque acho a senhora muito divertida.

Isabel parou.

— Você, Mary, é a irmã mais nova que eu sempre quis ter, sabia?

— Ah, senhora, não imagina o quanto isso significa para mim!

— Que bom. E agora? Vai finalmente me chamar de Isabel ou não?

— Não, senhora.

Isabel sorriu.

— Como eu ia dizendo, você é a irmã teimosa que eu sempre quis ter. — Ela ergueu a cabeça. — Aposto que chego lá em cima primeiro!

— Quando nevar no inferno de Hades! — desafiou Mary, e ambas dispararam escadaria acima.

Mary e Isabel estavam ambas sem fôlego quando chegaram ao imenso salão de costura.

E este era incrível. Havia pelo menos umas cinquenta mulheres ali, costurando a um ritmo que deixaria a Singer orgulhosa. Algumas pareciam trabalhar em túnicas novas para os homens. Outras costuravam calças. Parte delas confeccionava vestidos simples em musselina e outra, aventais básicos.

Mary segurou a mão de Isabel e a arrastou até uma mulher que era praticamente uma sósia da Betty White. Devia ser Gilda, a costureira que estava reformando o vestido de casamento.

Isabel sorriu e estendeu a mão.

— Você deve ser Gilda.

— Eu mesma, senhora — confirmou ela, seca, olhando para a mão estendida de Isabel como se esta fosse uma jiboia. Colocou tudo de lado, porém, e tentou ficar de pé.

— Não, não! Por favor, sente-se — pediu Isabel. — Eu não quero atrapalhar.

— Ela fala diferente de nós, Mary — comentou a mulher com estranheza.

A moça bufou de leve.

— Porque veio de outro reino, ora. É assim que eles falam lá. De qualquer modo, ela é uma condessa e merece respeito.

Gilda resmungou e voltou a se concentrar na costura.

Mary bateu o pé.

— Foi a condessa que me deu esse vestido, Gilda!

— Vamos cair fora daqui, Mary — sussurrou Isabel, tentando se afastar o mais rápido que podia.

Mary manteve-se firme, contudo, e a agarrou pelo braço.

— Será que James iria gostar de saber que agiu dessa forma com a mulher que presenteou a futura esposa de seu filho com algo tão bonito?

A mulher parou de costurar e ergueu o olhar lentamente.

— Foi muita gentileza sua, condessa. Agradeço-lhe em nome de James e Mary.

— E? — incitou Mary, ainda segurando o braço de Isabel com força.

— E a minha futura nora ficaria muito orgulhosa em tê-la como madrinha em sua cerimônia de casamento. Apesar de eu ter dito a ela que isso era uma ilusão.

— Pois eu ficaria muito orgulhosa em ser madrinha de Mary.

Gilda tornou a erguer a cabeça, os enormes olhos castanhos cheios de surpresa.

— Verdade?

— Claro! Mary é minha amiga. — Ela virou-se para a moça, que agora saltitava no lugar. — Mas não tem nenhuma amiga mais próxima que possa preferir, Mary?

Mary parou de pular.

— Tenho sim, senhora. Ou tinha... Mas escolho a senhora. Se não for nenhum incômodo.

— Agora que eu aceitei o seu convite, não vai me chamar de Isabel?

— Não, senhora.

Isabel riu.

— Eu sabia... Mas claro que serei sua madrinha. Será uma honra que nunca tive antes.

No momento em que as duas deixavam a estação de trabalho de Gilda, Isabel olhou para trás e vislumbrou um leve sorriso no rosto da velha costureira.

— Vai ter uma sogra e tanto — sussurrou tão logo se afastaram.

Mary sorriu para ela.

— Creio que Gilda é que vai ter uma nora e tanto!

— Pois eu aposto todas as minhas fichas em você.

— Aqui está a rainha Guinevere, senhora... o propósito da sua visita ao salão.

— Vossa Alteza — saudou Isabel. Em seguida, sussurrou para Mary: — Também aposto que faço uma reverência melhor do que a sua.

— Ha!

Ambas desceram quase até o chão na mesura. Mary ganhou mais uma vez, e Isabel acabou desabando sobre ela, o que fez as duas cair na risada.

— Quando essas nossas apostas terminarem, Mary, vai ser dona de tudo o que é meu!

— Pois eu adoraria ficar com esse seu colar, condessa!

— Imagino. O problema é que esta é a única coisa da qual eu nunca vou poder me desfazer. Tente outra.

— Querem fazer o favor de se levantar? — exigiu Gwen.

Isabel se pôs sentada, contudo não se levantou.

— Se usar um tom mais agradável, Gwen, posso considerar se concordarei ou não com uma ordem tão rude. Estávamos nos divertindo à beça até agora.

Mary, obviamente, já não estava se divertindo tanto. Tentou se levantar, porém Isabel a segurou no chão.

Gwen parecia chocada.

— Não foi uma ordem, condessa, e sim um pedido.

— Pois soou como uma ordem, Alteza. E não costumo me dar bem com acessos de arrogância.

O salão inteiro ficou completamente em silêncio, como se todos os sons tivessem sido sugados do ambiente.

— Eu não quis parecer arrogante — defendeu-se Gwen.

— Então peça o que deseja num tom mais delicado — sugeriu Isabel, encarando a mulher que havia conquistado o coração de Artur para depois parti-lo.

Gostava de Gwen e, ao mesmo tempo, não gostava. E não tinha certeza de quais peças daquele inexplicável quebra-cabeça se encaixavam nas respectivas categorias.

— Eu não preciso ser delicada — rebateu Gwen, os olhos se estreitando.

— Como assim? Isso não faz parte das suas atribuições? Só precisa ser agradável com os que ocupam a mesma classe que a sua, e malcriada e insolente com todo o resto?

Isabel ignorou as exclamações abafadas que se seguiram.

Pôs-se de pé, puxando Mary consigo, contudo manteve a criada atrás dela. — Enquanto não aprender a conviver bem com as pessoas que trabalham muito para tornar a sua vida de rainha confortável, nunca será realmente respeitada. Essa gente dá o próprio sangue para que a sua vida seja gloriosa. Trate essas pessoas como merda, e não terá o amor nem a admiração de ninguém, pois não fez por merecer.

Cortem-lhe a cabeça!, foi o que Isabel esperou ouvir saindo da boca de Gwen.

A rainha, entretanto, ficou sem palavras. O que garantia a segurança de seu pescoço.

— Você é uma dama, Gwen, que diabos! O que está acontecendo, afinal? Pensei que tivesse me chamado aqui para me mostrar uma novidade. O que era?

Gwen esfregou as têmporas.

— Sim, viemos aqui para... O que era mesmo, Jenny?

Uma menina, cerca de um ou dois anos mais velha do que Mary, avançou um passo.

— Viemos aqui para cuidar das leggings das mulheres, como a condessa pediu.

— Eu não pedi nada, apenas sugeri — corrigiu Isabel. — Mas acho maravilhoso que tenham tomado essa iniciativa.

— Está tentando assumir o controle de Camelot, não é mesmo, condessa? — explodiu a rainha.

— Como disse? — indagou Isabel, confusa. — Eu não estou tentando fazer nada disso. Tivemos uma boa conversa, e você mesma admitiu que essa era uma ideia interessante.

— Mentirosa! O casamento de James e Mary foi ideia minha. Isto — Gwen fez um gesto abrangente — foi ideia minha, e você a roubou de mim. Aliás, roubou tudo de mim.

— Se está dizendo... Tudo ideia sua. Sem problemas. Não vou brigar por nenhuma patente.

Isabel olhou ao redor, vendo as expressões chocadas que as cercavam. Mas a dela não devia estar diferente.

— Sabe se a rainha tomou vinho demais esta manhã, Mary? — indagou com casualidade.

Mary e a menina chamada Jenny se entreolharam, preocupadas, até que Jenny deu de ombros e balançou a cabeça negativamente.

— Herege! — gritou Gwen.

— Não estou com o meu dicionário à mão, Mary, mas isso não quer dizer “bruxa” ou algo assim? — indagou Isabel, tensa.

— Não tenho certeza se significa “bruxa” — sussurrou Mary. — Mas acredito que signifique que você é do Submundo. Que vem das trevas.

— Imagino, então, que não seja um elogio?

Mary pareceu assustada demais para responder.

— Que tal você e eu darmos um passeio e conversarmos a respeito, Gwen? — perguntou Isabel, imaginando levar a rainha até a primeira lagoa que visse pela frente e enfiar aquela linda cabeça na água até que Gwen caísse em si.

— Quer mais é me acompanhar até o inferno! — retorquiu a rainha. — Vejo tudo muito claramente agora: quer o meu marido, a minha coroa e o meu trono!

Isabel voltou-se para a costureira mais próxima.

— Vá buscar o rei, por favor. E também Tom, um dos meus homens, se possível. Mas o mais importante é que traga o rei Artur... Ele saberá quem mais precisa estar aqui neste momento.

A moça hesitou.

— O rei não vai atender ao meu pedido.

— Por favor... Diga a ele que foi Isabel quem pediu e que se trata de uma emergência. Artur vai lhe agradecer por isso. Agora corra o mais rápido que puder.

A jovem costureira olhou dela para Mary. E esta última deve ter lhe feito algum sinal, pois a moça logo concordou com um “sim, senhora” e disparou feito um raio.

Isabel suspirou, aliviada. A menina era rápida. Precisava lhe dar esse crédito.

Gwen, entretanto, percebeu o que se passava, e em tempo recorde.

— Foi tudo muito interessante, mas agora todas estão autorizadas a sair também. Ninguém aqui tem culpa de nada e nunca me fez nenhum mal... ao contrário de você.

— Então permita que elas saiam, realmente, de modo que possamos ter uma conversa em particular.

— Não! Elas têm trabalho a fazer — volveu a rainha num contrassenso.

— Creio que esse seja um assunto particular nosso, Gwen. Meu e seu. Não há razão para envolvermos mais ninguém.

— Você roubou James!

— James? Quer dizer o James de Mary? Eu mal conheço o homem! Sei apenas que ele é o futuro marido da minha amiga e o soldado mais confiável do seu marido.

— Iria roubá-lo de Mary, assim como roubou Artur de mim. — Gwen estremeceu, parecendo atordoada. Respirou fundo várias vezes, depois baixou o dedo com que a acusava. — Eu... sinto muito. Não sei o que está acontecendo comigo. — Balançou a cabeça. — Isabel, eu queria lhe mostrar o progresso que fizemos com as calças para as mulheres.

Muito bem. Aquilo não era loucura nem embriaguez. Mesmo assim, continuava longe do entendimento e da zona de conforto de Isabel.

— Eu andei olhando, Gwen, e fiquei muito impressionada. Obrigada por ter aceitado a minha sugestão e tomado essa iniciativa.

— Sua sugestão? — guinchou a rainha. — A ideia foi minha. Minha!

Isabel começou a rezar para que médicos medievais adentrassem o salão e levassem Gwen para um hospício. Mas não teve essa sorte.

— E de modo algum fará parte da cerimônia de James e Mary — prosseguiu a moça. — Foi tudo ideia minha, e as coisas vão acontecer do meu jeito. Caso contrário, eles não terão nada.

Isabel sentiu-se como se tivesse levado um tapa. Percebeu Mary tremendo e segurou a mão da menina.

— Se prejudicar Mary de alguma maneira por conta das minhas palavras ou ações, eu não hesitarei em levá-la com James para Dumont. Mary não fez nada, a não ser me servir como dama de companhia, ou seja lá como for que denominam sua função. E, espero, também como amiga. Não vou permitir que a castigue por ela estar se divertindo enquanto faz seu trabalho. E bem. Agora me diga, rainha Guinevere, como prefere conduzir as coisas.

Mais uma vez, Gwen ficou em silêncio por algum tempo.

Então teve o mais inesperado dos gestos: curvou-se com uma gargalhada, o que chocou Isabel, assim como todas as outras mulheres no salão.

Gwen controlou o riso, por fim, ainda que houvesse levado algum tempo para tanto. Tinha sido enviada para o inferno de Hades por uma mulher que acabara de entrar em seu castelo e que, em menos de duas noites, havia conquistado os corações de seus súditos, mais do que ela própria conseguira desde que fora coroada rainha.

A condessa rolara no chão com uma serva, ambas felizes da vida, enquanto ela própria jamais se permitira tal intimidade com uma criada.

Verdade fosse dita: aquilo jamais lhe passara pela cabeça. E, naquele exato momento, sua mente não parecia nada bem. Não estava conseguindo controlar as próprias emoções.

— Pode parar de proteger Mary, condessa. Não pretendo prejudicá-la de nenhuma forma, eu juro. Teremos uma linda cerimônia no salão principal para ela e James.

Isabel, que parecia uma sentinela em guarda, relaxou um pouco.

— Aceitamos a promessa, Vossa Alteza. — Virou-se para Mary. — Quer apostar como faço a melhor reverência, Mary?

— Não, senhora. — Os cachos vermelhos da menina sacudiram quando ela balançou a cabeça. — Creio que já testamos demais a paciência da rainha.

— Para ser sincera, não fizeram nada disso — afirmou Gwen. — Peço desculpas se pareci intolerante. Eu estava apenas ansiosa por lhe mostrar, condessa, o que nós... o que essas costureiras talentosas realizaram.

Isabel olhou em volta.

— A maioria parece estar fazendo grandes progressos.

Gwen sorriu.

— Sim, e para as mulheres. As calças devem ficar prontas no mais tardar até amanhã.

Foi muito gratificante para Gwen ver a expressão de Isabel.

Mas isso mudou em poucos segundos.

— Está tentando tomar Artur de mim.

— Está falando sério? — indagou Isabel, perplexa. — Eu estava tentando unir vocês dois!

— É verdade, minha rainha! James escutou a mesma coisa — afirmou Mary.

— Mentira!

Isabel e Mary se entreolharam.

— Está chamando Mary de mentirosa, chamou a mim de mentirosa... — começou Isabel.

Gwen a ignorou.

— Vamos começar com a minha ideia de lazer para todas as mulheres uma hora após o desjejum, amanhã. — Ela olhou ao redor no salão, e as costureiras que haviam parado de trabalhar imediatamente recomeçaram sua tarefa.

— Ah, obrigada, Gwen! — exclamou Isabel, avançando um passo para abraçá-la. — Sinto muito se fui rude com você.

Gwen viu-se pega de surpresa. Nunca fora alvo de tanta alegria vinda de outra mulher.

A verdade, entretanto, é que se sentiu bem até demais.

— E então? Qual será a nossa primeira brincadeira?

— Nossa, você me pegou de surpresa, Gwen. Nunca imaginei que fosse adotar esse tipo de coisa tão rápido. — Isabel olhou ao redor. Em seguida, bateu palmas. — Desculpem interrompê-las, senhoras, mas eu gostaria de fazer uma votação.

— Votação? — perguntou Mary às suas costas, sem dúvida ainda temendo vir para a frente e encarar a rainha.

Era uma pena que Gwen não houvesse tratado melhor suas criadas, concluiu Isabel. Elas teriam acatado todos os seus desejos e necessidades. Mas ela não sabia nem sequer o nome de muitas delas! Nem mesmo o da moça que saíra correndo do salão. Aquilo era triste e humilhante demais. Gwen era um fracasso como rainha. E de muitas maneiras.

— Quantas de vocês querem participar das brincadeiras amanhã? — perguntou Isabel. — Por favor, não levantem a mão se não quiserem participar. Só façam isso se estiverem realmente interessadas. E não haverá nenhum castigo para quem não quiser tomar parte, não é mesmo, rainha Guinevere? Nada será exigido de vocês.

— Elas são livres para escolher, Isabel.

— Vocês ouviram a rainha. Podem escolher participar ou não, sem nenhuma consequência. Se optarem por não participar, terão esse período livre para fazer o que quiserem, contanto que aproveitem para relaxar. Podem até tirar a roupa para os seus homens, que tal?

Muitas delas riram.

— Como vai ser essa brincadeira? — indagou uma senhora, que nem mesmo ergueu os olhos da costura.

Gwen voltou-se para Isabel, uma vez que nem imaginava o que poderiam fazer.

— Estou certa de que a condessa pode responder a essa pergunta.

Isabel olhou em volta.

— Vai depender de como estiver o tempo.

Nesse exato momento, nuvens se chocaram, e o estrondo de um trovão se fez ouvir.

— Se for para ficar dentro do castelo, então que assim seja. Alguma de vocês já ouviu falar em “Corre, Cotia” ou “Pato, Pato, Ganso”?

— O que é isso, um cardápio? — inquiriu uma das mulheres.

— Não... Uma brincadeira.

Isabel e Gwen desceram a escadaria.

— Pato, Pato, Ganso? — indagou Guinevere, sorrindo.

— Precisamos ir com calma com mulheres que nunca vivenciaram uma brincadeira ou um jogo de verdade.

Gwen deu alguns passos antes de se virar para ela.

— Minhas mais profundas desculpas pelo meu péssimo humor agora há pouco.

Isabel aquiesceu.

— O que foi aquilo, Gwen? Eu não a conheço há muito tempo, mas o suficiente para sentir que não parecia você.

— Vocês duas... Você e...

— Mary. O nome dela é Mary. E ela está prestes a se casar com o primeiro soldado de Artur.

Gwen corou.

— Sim, sim... Mary. Vocês duas estavam zombando da reverência à rainha.

Isabel tombou a cabeça para trás, de modo que teve uma excelente vista do teto.

— Ah, por favor, pare com isso. Só estávamos brincando! Não tivemos a intenção de desrespeitá-la. Estávamos apenas fazendo uma aposta.

— Pois pareceu um menosprezo à minha posição.

— Dê um tempo, Gwen! Desde quando dá importância a esse tipo de coisa? Até hoje eu a vi tratando todo mundo normalmente, e de repente decide mostrar as garras sem nenhuma razão?

Gwen abaixou a cabeça e, de súbito, seus joelhos pareceram ceder. Sentou-se nos degraus, e Isabel se acomodou a seu lado.

— O que está acontecendo, Gwen?

— Estou com ciúmes, Isabel.

— Do quê? Se está se referindo a esta manhã, nada aconteceu entre mim e Artur.

Não era exatamente a verdade, mas quase nada havia acontecido... Para sua decepção.

— Esta manhã?

Isabel quis dar um tapa na testa.

— O que eu quis dizer é que nós dois estávamos apenas conversamos. Como sempre fazemos.

Pronto. Aquilo, pelo menos, era verdade. Eles tinham conversado. Tinham se beijado. Artur a despira e eles quase haviam partido para um sexo quente e suado. Mas ninguém ali precisava daqueles detalhes.

— Não é o que existe entre você e Artur que me aborrece.

Ah, que bom! Aquilo era um sinal verde?

— Então, o que é?

— Eu vi as brincadeiras entre você e...

— Mary. O nome dela é Mary, Gwen!

— Sim, desculpe. Mary. Eu fui testemunha do quanto ela parecia feliz em sua companhia, e senti a inveja tomar conta de mim.

— Por quê?

— Porque nunca tive esse tipo de experiência amigável com nenhuma das minhas criadas.

— Ei, elas são muito leais a você!

— Não é a mesma coisa. Espera-se lealdade de qualquer servo do castelo.

— Pois acredito que a verdadeira lealdade deva ser conquistada, e não apenas esperada ou exigida.

— O que eu fiz de errado?

— Nada muito diferente do que a realeza fez a vida toda. A princesa Diana foi um excele... — O colar bateu em seu peito, e Isabel suspirou. — Você vê os criados como ferramentas, não como pessoas. Se aprendesse seus nomes e qualquer coisa sobre seus amores e vidas, poderia se tornar amiga deles assim! — Ela estalou os dedos.

— Está aqui há apenas duas noites e já conseguiu fazer isso.

Isabel tomou a mão de Gwen.

— Os homens e as mulheres que a servem são leais, Gwen. E, acredite, poderia ser muito pior. Você poderia ser Hitler, por exemplo.

Tum.

— ... Mas não é. Pelo que ouvi, todos os que trabalham no castelo têm muito respeito pela sua pessoa. Se não fosse por esse respeito, você e Lance teriam sido banidos há muito tempo.

Gwen voltou a cabeça, alarmada.

— C-como disse?

— Ah, por favor, Gwen, os únicos que não sabem disso neste castelo são os cães e as galinhas! Mesmo assim, não ponho a minha mão no fogo por metade dos cachorros.

— O que está dizendo é absurdo. Eu sempre levei o juramento que fiz a Camelot a sério.

— Mas não o que fez a Artur. Quebrou seu juramento quando traiu seu marido. E é muita benevolência da parte dele estar proibindo os que sabem — e que, acredite, são quase todos — a comentar sobre a sua traição.

Gwen se pôs de pé.

— Não é verdade.

Isabel a encarou.

— O que não é verdade? O fato de ter quebrado seu juramento ou o de todo mundo saber?

A moça a fulminou com o olhar.

— Extrapolou os limites e abusou da minha hospitalidade, condessa. Peço que você e sua comitiva se preparem para deixar Camelot agora mesmo.

Isabel estudou as unhas, que realmente precisavam de uma manicure, pensando se Mary seria boa nisso também. Ou se Mary tinha alguma amiga com tal habilidade.

— Está menstruada, Gwen? Ou perto de ficar? Porque tem agido como se estivesse na TPM: cheia de altos e baixos. Mal consegue manter as próprias emoções sob controle!

— Vá embora!

— Faça Artur me dizer isso, e atenderei ao seu desejo no mesmo momento. — Isabel se levantou, ficando pelo menos seis centímetros mais alta do que a etérea rainha, a qual, por sua vez, parecia prestes a se transformar em um dragão. Aquilo era TPM, sem dúvida. — Enquanto ele também não concordar que devo deixar o seu reino, não vou a lugar nenhum — completou, decidida. — Além do mais, Mary me pediu que eu fosse sua madrinha no casamento, e pretendo estar lá, ao lado dela. Se você e Artur fizerem alguma objeção, entretanto, eu lhe pedirei desculpas e não o farei.

Gwen tornou a desabar sobre os degraus, desta vez irrompendo em soluços.

— O que há de errado comigo?!

Isabel sentiu o coração se apertar. Sentou-se ao lado da moça e a abraçou.

— Não pode ser a época do mês?

— Que época do mês?

— Eu não sei como a chamam aqui. No meu tempo...

Tum.

— ... Quero dizer, no meu reino , isso significa que vai ficar menstruada. É aquela época do mês em que você sangra lá embaixo.

— Estou nessa época, mesmo.

— Viu? Os hormônios são uma merda.

— Quem são os hormônios? Pessoas que eu deveria conhecer?

— Nada de que precise realmente saber.

Gwen soluçou em seu peito.

— Como sabe de todas essas coisas?

— Acredite, Gwen, eu sei. Sou famosa por dar paneladas nas cabeças dos homens nessa época do mês.

Gwen riu.

— Verdade?

— Verdade. Agora vamos para o meu quarto pedir a Mary que nos traga um chá. Se possível com um pouco de salsa, sálvia, alecrim e tomilho.

Gwen a fitou, confusa.

— Está falando a sério?

Isabel deu de ombros.

— Deu certo para Simon e Garfunkel... Tem que dar para nós também.

— Depois, poderíamos pedir um pouco de vinho.

— Perfeito. Garanto que isso também funciona.

Isabel se viu praticamente arrastando Gwen para os próprios aposentos. No momento em que chegaram ao quarto, Mary já estava no local, polvilhando coisas na banheira. Assim que elas entraram, a moça endireitou o corpo, olhando, assustada, da rainha para Isabel.

— Perdão, senhora! Eu estava apenas preparando o seu banho. Voltarei quando estiver pronta.

— Precisamos de chá, Mary — pediu Isabel.

— Eu sinto muito por ter arruinado um dia que prometia ser divertido, Mary — desculpou-se Gwen. — E nós não queremos chá, queremos vinho.

Isabel imaginou que a última coisa de que Gwen precisava no momento era vinho, mas como discutir com uma mulher em plena TPM?

Concordou com a cabeça, articulando um “desculpe” com a boca na direção da menina.

— Tinto ou branco? — quis saber a moça.

— Ambos — decidiu Isabel. — E, por favor, traga queijo, carnes e bastante pão para molharmos nas sobras.

Mary fez uma reverência, Isabel fez outra. Em seguida, a moça saiu correndo do quarto antes que ambas partissem para nova aposta e caíssem na risada.

— Não estou com vontade de me deitar, Isabel.

— Que tal nos sentarmos no chão, Gwen? Podemos bater papo como duas adolescentes numa festa do pijama.

Gwen sentou-se no solo sem discussão.

— O que está acontecendo comigo?

— Acredite, vai se sentir muito melhor amanhã cedo. — Ou talvez em dois dias, já que não havia nenhum farmacêutico por perto para ajudar, corrigiu-se Isabel. — Em breve, Gwen. Em breve.

Mary estava tão concentrada, carregando a bandeja cheia nas mãos, que quase trombou com o rei Artur. Parou tão rápido quanto foi capaz, o que fez a bandeja oscilar perigosamente.

Balbuciou um pedido de desculpas, então, tentando fazer uma reverência.

O rei a ajudou a firmar a bandeja com aquele sorriso que poderia derrubar um touro. Em seguida, tomou-a de suas mãos.

— Está tudo bem, Mary. Minhas mais profundas desculpas por tê-la assustado.

Mary levou alguns momentos para normalizar a respiração.

— A rainha não está mais no salão de costura, rei Artur, se era para onde estava indo.

— Eu não estava indo para lá. Deveria estar?

Pelo visto, Lily não o encontrara!

— Não mais. Senhor, digo, Vossa Alteza, perdoe-me a minha falta de jeito.

Ele riu baixinho.

— Não foi a sua falta de jeito, Mary. Foi a minha. — Ele olhou a bandeja com duas taças, dois frascos de vinho e uma variedade de carnes, queijos e pães. — Está indo para os aposentos da condessa Isabel?

— Sim, senhor.

— Ela está com alguém?

— Sim, senhor.

Mary não costumava interagir muito com o rei, porém já reconhecia um homem magoado quando via um. Sua Alteza apertou a mandíbula e baixou o olhar, do mesmo modo como James havia reagido nas vezes em que ela recusara suas propostas.

Analisou a situação e chegou à conclusão de que não estava traindo a condessa Isabel.

— Ela está com a rainha, senhor.

Artur ergueu a cabeça, e a luz que tinha se extinguido em seus olhos, momentos antes, retornou.

— Ela está com Gwen?

— Sim, senhor. — Mary teve vontade de pular de alegria. Era a segunda vez naquele dia que deixava alguém da realeza feliz!

O dia estava perfeito, na verdade. Mal podia esperar para ter uma folga e contar aquilo a James.

— Então, por favor, permita-me levar esta bandeja.

— Mas, senhor!

— Shh! Precisamos tomar cuidado. Vou embora antes de você entrar. Elas não podem saber que eu estava por perto.

— Mas não posso permitir que carregue esta bandeja, meu rei. É o meu trabalho!

— Vamos fazer disso um segredo de Estado — resolveu ele com outro sorriso arrasador. — Até porque James jamais iria me perdoar por eu não ter tratado sua mulher como a dama que ela é.

— Eu não sou nenhuma dama, senhor. Estou a seu serviço.

Enquanto eles subiam a escada e cruzavam os corredores, Artur prosseguiu:

— Todos os que trabalham em Camelot são seres humanos.

Mary sorriu.

— Você e a minha condessa Isabel iriam se dar muito bem. Ela disse o mesmo uma hora atrás, no salão de costura: que todos no castelo merecem ser tratados com respeito.

— Verdade?

— A condessa é incrível, senhor. Sempre me tratou com bondade e generosidade, e, para ser sincera, ela me faz rir muito.

Artur acenou com a cabeça.

— Eu sei. Por isso ela é perfeita. Encontre uma só falha em Isabel, Mary.

A moça hesitou, e o rei sorriu.

— Vá em frente... Uma só.

— Bem, ela não gostou muito das coisas que eu lhe levei para limpar os dentes e o hálito. Vive resmungando sobre a falta que faz um tal Listerine. E também uma coisa que chama de fio dental. Ah, já falei demais! — Mary parou a poucos passos da porta da patroa. — Quero muito que a condessa confie em mim.

O rei concordou com um gesto de cabeça.

— Se o problema com os dentes é a única coisa que tem a comentar sobre a condessa, não percebe o quanto é fiel a ela?

— Não há mais nada a relatar, senhor. Embora eu deva admitir que, se houvesse, acredito que não o faria. Eu não devia pedir desculpas, mas peço mesmo assim. Acontece que não há nenhuma outra coisa. Se houvesse...

Artur sorriu.

— Compreendo, Mary.

— Ela vai ser a madrinha no meu casamento, senhor.

— E eu, o padrinho de James.

Mary sentiu o coração dar um pulo.

— Verdade?!

— James me convidou, e eu aceitei. Vê algum problema nisso?

— Não, senhor! De maneira alguma! Apesar de que, talvez, tenhamos de realizar a cerimônia em Dumont, agora que a rainha exigiu que a condessa Isabel vá embora. James não sabe de nada, ainda, mas acredito que seu amor por mim seja suficiente para que possamos trocar nossos votos em qualquer lugar da nossa escolha.

O rei pousou a bandeja.

— Quando a rainha pediu a Isabel que ela deixasse Camelot?

Mary sentiu o rosto pegar fogo em questão de segundos. Não devia ter escutado a conversa entre a rainha e sua condessa na escadaria. Ela só as havia seguido para se certificar de que Isabel — ah, Céus, agora estava pensando nela como Isabel! — não estava precisando de nada.

Agora não conseguia encarar o rei.

— Não posso dizer, senhor.

Artur a segurou pelos ombros.

— Quando foi isso, Mary?

A moça só conseguia olhar para os próprios chinelos.

— Eu não quis ouvir a conversa delas, mas...

— Por favor.

— A condessa e eu fizemos uma brincadeira no salão de costura. Não sei o que aborreceu a rainha, mas ela ficou muito zangada. Só sei que começou a rir, depois a chorar, e a condessa quis ajudá-la. Eu não pretendia ouvir a conversa das duas, só queria saber se a condessa precisava de algo. Mas a rainha... Bem, ela não parecia normal. A condessa não estava precisando de mim, mas Sua Alteza estava precisando muito dela! As duas ficaram sentadas nos degraus, conversando. Logo depois, Isabel, quero dizer, a condessa , a abraçou e a levou para o quarto. A rainha não me parecia nada bem, senhor. A minha condessa só estava tentando ajudar e...

Artur assentiu, impaciente.

— Prossiga, Mary!

— A condessa Isabel pediu chá, mas a rainha exigiu vinho. Então Isabel pediu também queijos, carnes e pães para poder molhar nas sobras, como ela mesma disse. Eu não sei o que está acontecendo lá, majestade, mas, quando as deixei, elas pareciam bastante felizes juntas. Não temo pela vida da condessa, ou eu seria a primeira a intervir e...

— Já temeu pela vida da condessa?

— Sim, senhor.

— Por causa de Gwen? De sua rainha?

— Não posso responder a essa pergunta. Até mesmo a condessa Isabel pediria que eu não respondesse.

Artur assentiu.

— Sua falta de resposta fala mais alto do que qualquer coisa. Mas também demonstra a sua lealdade, Mary, o que é muito importante. James é um homem de sorte. — Ele apanhou a bandeja e a entregou à moça, segurando-a até que esta a tivesse firme nas mãos. O que demorou um pouco, uma vez que era o rei quem a ajudava. — Mary... — prosseguiu Artur, fitando-a profundamente nos olhos. — Não quero que espione nada, apenas que me informe o mais rápido possível caso sinta que há qualquer coisa errada.

— Por exemplo...? — indagou ela, sentindo os joelhos fracos mais uma vez.

— Uma ameaça partindo de uma pessoa para a outra.

— A condessa jamais iria ameaç... — parou Mary. — Não consigo imaginar uma ameaçando a outra.

— Vou ficar aqui no corredor. Depois quero um relatório do que vir e sentir lá dentro. Não preciso de detalhes, pois não imagino que esteja acontecendo qualquer coisa séria por lá, mas preciso saber antes que eu mesmo me encarregue do assunto.

— O senhor o faria?

— Se Gwen está planejando prejudicar Isabel... Sim, eu o faria.

Conforme Mary rumou para a porta, ocorreu-lhe que o rei não se preocupara se a condessa Isabel poderia prejudicar a rainha. E isso também nunca lhe ocorrera. E era estranho que ambos estivessem muito mais preocupados com o bem-estar da condessa do que com o da rainha.

 

 

 

 

C O N T I N U A