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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEUSA DA LUZ / P. C. Cast
DEUSA DA LUZ / P. C. Cast

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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— Tomei uma decisão, Baco. O portal permanecerá aberto — falou Zeus, dando as costas para o deus corpulento e descansando as mãos no parapeito de mármore liso que emoldurava a varanda. Olhou para o Salão Nobre de Banquetes do Olimpo. A magnífica sala se encontrava repleta de jovens deuses e deusas.

Sorriu, satisfeito. Os imortais eram incomparáveis em sua beleza e, quando se reuniam, como naquela noite, seu fascínio era mais resplandecente do que todas as estrelas dos Céus.

Ficou sério, então. Não importava o quanto o exterior dos deuses fosse perfeito; ele fora forçado aos poucos a admitir para si mesmo que havia algo faltando naquele grupo.

Faltava-lhes o sublime toque mortal da humanidade.

O Governante Supremo dos Deuses se entregou, por um momento, a uma lembrança um tanto encantadora: Egina. Ela fora a mais linda das donzelas, e sua pele, de uma maciez mortal e sedutora. Ainda podia sentir sua suavidade quando ela se agarrara voluntariamente às suas costas emplumadas, no instante em que ele se transformara em uma poderosa águia e a carregara para longe, a fim de fazer amor com ela.

Não, seu corpo não tinha a perfeição dourada de uma deusa. Egina, porém, correspondera ao seu toque com uma ingenuidade e, ao mesmo tempo, com uma exuberância a que jamais nenhuma deusa poderia se igualar. — “Exuberância”! — Zeus deu um tapa no parapeito da sacada e, em resposta, um trovão ribombou no céu. — É isso o que falta aos nossos jovens imortais.

Ele não se virou para Baco. Em vez disso, seu olhar vagou sem descanso pela fascinante multidão.

Estreitou os olhos escuros, pensativo. O que Hera havia dito mesmo?...

Eles tomam por certos os dons de seu poder imortal. Precisam passar algum tempo longe do Mundo Antigo. Em algum lugar em que não sejam idolatrados e adorados.

Tinha que admitir: Hera podia estar certa, embora, muitas vezes, ele houvesse tido motivos para desejar que os poderes de observação de sua esposa fossem menos precisos.

Fez uma careta, querendo esquecer o olhar sábio e penetrante que sempre parecia lhe enxergar a alma.

— Eles já se entediaram o bastante aqui no Olimpo. Já passou da hora de eles se misturarem aos mortais modernos — decidiu de repente.

Baco tentou ocultar a irritação na voz.

— Mas eu sou o único imortal que sempre mostrou interesse pelo Mundo Moderno. Por que insiste que eles se juntem ao meu reino?

Zeus olhou para Baco por cima do ombro.

— Deméter e Perséfone visitaram o Mundo Moderno dos mortais recentemente e, como me disse a Deusa da Colheita, Perséfone se tornou tão ligada a um reino conhecido como Tulsa que fez um trato com uma mortal, de modo a poder retornar sempre para lá.

Baco respirou fundo e tentou não se encolher sob o olhar do Deus do Trovão.

— Então por que não abrir o portal do Reino de Tulsa?

Zeus balançou a cabeça, voltando a contemplar o salão abarrotado. Sua conversa com Deméter o havia convencido de que Tulsa não era um lugar onde jovens deuses e deusas pudessem ir e vir sem ser notados.

— Não, Baco. Pensei muito a respeito. Tenho pesquisado o Mundo Mortal Moderno. Las Vegas é o lugar perfeito para eles; ainda mais com a recreação oferecida pelo Caesars Palace e o Fórum. — Zeus riu ao se lembrar das futilidades que vislumbrara por meio do portal.

— Mas Las Vegas é o meu reino! Sabe muito bem quanto tempo levei para deixar o Caesars Palace e o Fórum ao meu gosto. Eles estarão circulando por uma parte do mundo que escolhi para mim.

Zeus virou a cabeça, os olhos chispando.

— Não acha que é presunção demais? Esqueceu-se de que sou o governante supremo entre os deuses? — Um trovão ecoou ameaçadoramente.

Baco inclinou a cabeça, aflito.

— Perdoe-me, senhor.

— Cuidado, Baco. Não se esqueça de que posso tirar tudo o que lhe dei. — Ele fulminou o outro deus com o olhar antes de voltar a se concentrar na multidão. — Olhe para eles. O portal lhes foi aberto apenas por algum tempo, mas já sinto uma mudança. Até mesmo as ninfas ficaram mais alegres. — Fez uma pausa, franzindo a testa ao se lembrar de que muitas das encantadoras semideidades haviam decidido se transformar em estrelas, flores e árvores porque tinham ficado entediadas com suas vidas.

— Exuberância. É isso o que falta ao Olimpo. E é isso o que Las Vegas avivou em nós mais uma vez.

— Mas, senhor... — Baco disfarçou sua crescente raiva e imprimiu à voz um tom preocupado e paternal. — O senhor sabe o que acontece quando deuses e deusas se envolvem demais na vida dos mortais. Pense em Helena de Troia. Lembre-se de Medeia e Jasão. Considere o que aconteceu com Héracles e Aquiles. Está disposto a condenar o mundo dos mortais modernos ao caos e ao sofrimento?

— Não preciso de sermões vindos de tipos como você, Baco. — Zeus manteve a voz controlada, contudo o aviso foi claro. Em seguida, mudando de humor como uma tempestade de primavera clareando as montanhas, sorriu: — Mas eu já pensei nisso também. Impus certas... restrições ao lugar — pronunciou a palavra com cuidado, os olhos brilhando —, as quais eu pretendo anunciar esta noite. Meus filhos serão apenas agradáveis visitantes, desfrutando uma merecida temporada no Reino de Las Vegas. — Moveu a cabeça, de modo que Baco pudesse ver seu majestoso perfil. — Esta discussão está terminada. Minha vontade prevalecerá.

Baco não teve escolha senão se curvar e retirar-se respeitosamente da varanda.

Sua cabeça fervilhava, entretanto. Mais uma vez suas necessidades haviam sido ignoradas, enquanto Zeus beneficiava seus protegidos.

Las Vegas era sua! Todos o adoravam lá. No Fórum, ele comandava a atenção de uma multidão de mortais todos os dias, que o saudavam e adoravam.

E agora tinha que compartilhar seu reino com os queridinhos e queridinhas do Olimpo?

— Veremos — resmungou por entre os dentes, enquanto a voz de Zeus trovejava na sacada, pedindo silêncio no Salão Nobre de Banquetes.

— Bem amados filhos! — Zeus sorriu para o grupo. — Agrada-me muito que tenham apreciado meu último presente. — Esticou os braços, as palmas abertas em direção aos dois pilares que se erigiam no centro do salão, entre os quais um disco opaco de luz tremeluzia e rodopiava. — Esta noite tenho outras novidades para anunciar. Decidi que o portal poderá ser aberto para as nossas adoráveis legiões de ninfas, bem como para os jovens Olímpicos!

As exclamações de alegria de divindades e semidivindades do sexo feminino soaram como música para Zeus.

— Mas lembrem-se, meus amores, estarão entrando em um mundo que não está habituado a ter deuses como nós entre eles. Não irão se intrometer nos assuntos mortais; apenas observar e se deliciar com um lugar único. Para que não fiquem tentados a se esquecer de que estão lá apenas de passagem, decidi que o portal será aberto por períodos limitados.

Os fascinantes rostos lá embaixo permaneceram com os olhos fixos nele, atentos.

Zeus procurou na multidão até encontrar Deméter regiamente postada ao lado da filha, e inclinou a cabeça em reconhecimento à deusa antes de continuar.

— A Deusa da Colheita me informou que os mortais modernos costumam desfrutar mais durante os dias que eles chamam de “fim de semana”. Portanto, será durante o fim de semana mortal que o nosso portal irá se abrir. Terão desde o anoitecer de sexta-feira ao amanhecer de segunda-feira para se divertir com os mortais modernos.

Com um pequeno gesto, Zeus silenciou o entusiasmado burburinho provocado por suas palavras.

— E agora, eu lhes dou o Reino de Las Vegas! — O Deus do Trovão bateu palmas, e a multidão festejou quando o céu rugiu em resposta.

Lá embaixo, no Salão de Banquetes, Ártemis riu e balançou a cabeça para Zeus com carinho antes de voltar a atenção para o irmão.

— Papai, sem dúvida, está bastante satisfeito.

Apolo encolheu os ombros.

— Não entendo por que tanta excitação. Trata-se apenas do Mundo moderno dos mortais, não de um novo Olimpo.

Ártemis ergueu a sobrancelha dourada e perfeita.

— Isso dito pelo deus que passou meses espionando uma mortal moderna no Reino de Tulsa...?

— Eu só estava fazendo um favor a Deméter — ele respondeu com demasiada indiferença.

Ártemis nada mais disse, porém estudou o irmão gêmeo enquanto ele flertava, sem muito entusiasmo, com uma ninfa de cabelos trançados com violetas, a qual parou de falar, animada, sobre visitar o Reino de Las Vegas.

Não havia dúvida: Apolo vinha se comportando de modo muito estranho desde seu fracasso com Perséfone.

Tomou um gole do vinho vermelho, lembrando-se de como o irmão ficara surpreso com a súbita rejeição da deusa e com a estranha paixão de Perséfone por Hades. E a surpresa se transformara em choque quando Apolo descobrira que a alma que habitara por algum tempo o corpo da diva era a de uma mortal, e que a própria Perséfone se fizera passar por mortal no mundo moderno. Portanto, uma mortal o rejeitara e caíra de amores pelo Deus do Submundo.

Os adoráveis lábios de Ártemis se curvaram em um sorriso de escárnio. Mortais... Pelo que conhecia deles, ou estes viviam choramingando, patéticos, necessitando de cuidados constantes, ou eram tão arrogantes que se autodestruíam. No fim, só serviam para diversão ou flerte.

Não que ela jamais fosse querer se divertir com algum deles. Contudo seu irmão pensava diferente. Muitas vezes Apolo tinha rido e partilhado com ela histórias sobre seus casos com alguma jovem donzela.

Ártemis tomou outro gole da taça. Era bom para um mortal ser agraciado com o amor de um deus. Mulheres mortais deviam agradecer por ser notadas por uma divindade como seu irmão gêmeo.

A ninfa tagarela havia ido embora, e Apolo contemplava em silêncio o portal que girava. Talvez fosse isso!, concluiu Ártemis. Seu irmão precisava de diversão. Ele já passara tempo demais sem fazer nada no Olimpo, meditando sobre a rejeição daquela mortal imbecil. Precisava se lembrar de que mortais eram seres fracos, que viviam suas vidas frenéticas em um piscar de olhos. E que podiam ser facilmente manipulados, assim como postos de lado mais tarde.

Um sorriso lento se espalhou por seu rosto perfeito. Que melhor lugar haveria, para que ele se conscientizasse da insignificância dos mortais, do que aquele Mundo Moderno repleto de criaturas?

— Venha, meu irmão — instigou com um sorriso jovial. — Vamos visitar o Reino de Las Vegas.

 

 

 


 

 

 


Capítulo 1


Deus , ela adorava aeroportos!... Eles a faziam se lembrar de amor, de emoção e da promessa de novos começos. Não pela primeira vez, Pamela pensou que aquela profunda paixão por aeroportos era que havia alimentado seu relacionamento com Duane.

Um só vislumbre dele em seu uniforme de piloto da United Airlines, e toda a razão a abandonara, junto com aquele seu ridículo suspiro de prazer feminino.

Que idiota ela fora!...

Mas aquele fiasco de relacionamento tinha acabado. Até que enfim.

Pamela fechou os olhos e passou os dedos por seu novo corte de cabelo curto e chique, desejando ter encontrado com Duane em algum lugar do aeroporto de Colorado Springs antes de embarcar no jato da Southwest Airlines. Teria gostado de ver sua expressão horrorizada quando ele percebesse que ela cortara o cabelo pesado e escuro, o qual costumava lhe bater na cintura. O cabelo que ele tivera tanto prazer em tocar, acariciar e...

Estremeceu com a lembrança. Só de pensar naquilo sentia-se sufocada. Livrar-se da enorme cabeleira fora seu último passo para se libertar dos grilhões do amor de Duane. Fazia seis felizes meses desde que falara com ele pela última vez. Após muito tempo recusando seus presentes, enviando de volta suas flores e lembrando-o de que aquele casamento só fizera mal a ambos, o fim do relacionamento havia chegado por fim, para grande desgosto de sua família, que acreditava que Duane era perfeito para ela, e que ela fora uma tola em tê-lo deixado. Ainda podia ouvir o irmão, a cunhada e os pais dizendo: Ele não é tão ruim assim. Duane lhe dá qualquer coisa que queira! Ele ganha muito dinheiro e adora você...

Duane não apenas a adorara. Ele quisera consumi-la. Aparentemente, Duane Edwards era um homem bem-sucedido, bonito, um pouco machista e muito carismático. Mas, sob a superfície, onde o verdadeiro Duane existia, ocultava-se um menino-homem carente, controlador, indiferente e agressivo.

Pamela girou os ombros, tentando aliviar a tensão que pensar em Duane lhe causava. Pensando bem, estava feliz por não tê-lo encontrado no aeroporto. Não cortara o cabelo apenas a fim de exibi-lo para ele! Cortara-o porque era isso o que ela queria. O corte combinava com a nova mulher em que estava se tornando, e gostava dela. Uma mulher satisfeita , concluiu Pamela. Descansou a cabeça no encosto do banco, e seus lábios se curvaram.

Não se sentia tão satisfeita consigo havia anos. Não se importava nem mesmo em estar encolhida no assento da janela do jato da Southwest Airlines, sendo cutucada pelo cotovelo duro de uma mulher que lutava para dar conta de uma página de palavras cruzadas do New York Times cheirando a cigarro.

Por que diabo alguém precisava resolver palavras cruzadas de modo tão obsessivo? Aquela criatura não tinha nada melhor para fazer?

A sra. Cotovelo Ossudo riu e preencheu outra lacuna. Pelo visto, não, decidiu Pamela.

Não! Nada de pensamentos negativos. Profecias autorrealizáveis são muito perigosas. Pensamentos negativos geram energia negativa.

Agora estava parecendo sua mãe, que Deus a ajudasse!

Suspirou e apoiou a testa na janela do avião.

Ok, iria começar de novo. Não permitiria que a senhora sentada ao lado a incomodasse porque era um desperdício de tempo, assim como lidar com o negativo.

Inferno , quem era ela para julgar?

Olhou para o livro em seu colo. Ele permanecera aberto na mesma página durante o voo inteiro. O que vinha fazendo com a própria mente? Em vez de ler o delicioso The Stone Prince, de Gena Showalter, havia perdido tempo pensando em seu horrível “ex”.

Ela era melhor do que aquilo. E tinha trabalhado muito para se transformar no que era.

Pamela desviou a atenção para a vista do lado de fora da janela, decidida. O deserto era uma mistura bizarra de rudeza e beleza, e ela se viu admirada ao perceber que o considerava atraente. Ao menos voando a vários milhares de pés acima deste. Era tão diferente do verde exuberante de sua casa no Colorado!... Mas, ainda assim, fascinante.

Em uma manobra, o avião abaixou uma asa, e Pamela prendeu a respiração diante de seu primeiro vislumbre de Las Vegas. Lá, bem no meio do deserto e da areia, da extensão de terra vermelha e desfiladeiros, avistou uma cidade feita de vidro, luz e estradas que serpenteavam e que, poderia apostar até mesmo dali de cima, se encontravam entupidas de carros apressados.

— Parece um sonho — murmurou para si mesma.

— Parece mesmo! Não é maravilhosa? — A sra. Cotovelo Ossudo disse com a voz rouca de quem tragara Virginia Slim Menthol Extra Long em excesso.

Pamela reprimiu a irritação.

— É mesmo incomum. Claro que eu sabia que Vegas tinha sido construída no meio do deserto, mas...

— É a sua primeira vez na Cidade do Pecado?

— Sim.

— Ah, menina! Então está prestes a ter a melhor experiência da sua vida! — A mulher se inclinou em sua direção e baixou a voz. — E lembre-se: o que acontece em Vegas, fica em Vegas.

— Ah, bem, eu não estou aqui por lazer. Vim a negócios.

— Ora, uma mocinha linda como você pode muito bem misturar ambas as coisas. — Ela balançou as sobrancelhas feitas a lápis significativamente.

Pamela apertou o maxilar. Detestava quando as pessoas a tratavam com condescendência só porque ela era atraente. Trabalhava muito para ser bem-sucedida; e também não era nenhuma “mocinha”!

— Talvez eu pudesse se não possuísse o meu próprio negócio e não me importasse caso os meus clientes não recomendassem o meu trabalho a outros... mas me importo. Estou aqui por motivos profissionais, não para me divertir.

O olhar surpreso de sua companheira de assento pousou nos brincos de diamantes de Pamela — um quilate cada — e no corte impecável do tailleur Fendi off-white, cuja aparência clássica era quebrada por um lenço de seda nas cores melão e tangerina.

Pamela leu os pensamentos da mulher e teve vontade de gritar: Não, nenhum homem me comprou esta roupa, droga!

— Trabalha no quê, querida?

— Sou dona da Ruby Slipper, uma empresa de decoração de interiores.

O rosto enrugado da velha senhora suavizou com um sorriso e, de repente, Pamela percebeu que ela devia ter sido muito bonita.

— Ruby Slipper... Gostei. Parece interessante. E aposto que é boa no que faz. Só de olhar para você, posso afirmar que tem classe. Uma característica, aliás, que não tem muito a ver com Vegas. O que veio fazer aqui?

— Meu mais novo cliente é escritor, e está construindo uma casa de veraneio em Las Vegas. Fui contratada para decorá-la.

— Um autor. — A mulher moveu as longas unhas vermelhas diante de Pamela. — Parece coisa grande. Quem é? Talvez eu tenha ouvido falar dele.

— E. D. Faust. Escreve ficção.

Pamela só sabia disso porque o procurara às pressas no amazon.com durante o primeiro telefonema que haviam trocado. O homem se autoproclamara “E. D. Faust, autor de best-sellers ”. Ela não fazia ideia de quem ele era, mas, quando digitara o nome na caixa de pesquisa do amazon , a tela ficara repleta de páginas e páginas de títulos, como “Pilares da Espada”, “O Templo dos Guerreiros”, “Ventos Nus”, “A Fé dos Condenados”... e assim por diante. Naquele momento, ele ganhara sua real atenção, ainda que ela não fosse exatamente fã de homens autores de ficção. Lia um pouco de tudo, portanto até experimentara alguns dos gigantes do gênero, mas era como se todos eles fossem muito parecidos. Espadas, magia, naves espaciais, sangue, testosterona... blá... blá... (bocejo).

Mas não era nenhuma estúpida. Longe disso. E uma de suas primeiras regras era nunca, jamais dizer coisas negativas a respeito de um cliente.

Assim, colocou um sorriso brilhante no rosto e assentiu em resposta à expressão vazia de sua parceira de viagem, como se E. D. Faust fosse Nora Roberts.

— Seu lançamento mais recente é “Pilares da Espada”, mas Faust publicou mais de cinquenta livros, e a maior parte deles aparece nas principais listas de best-sellers .

— Nunca ouvi falar dele, até porque gosto mais de um jogo de palavras cruzadas do que qualquer coisa! — A mulher riu de novo. — A menos que seja um homem bem alto, de chapéu de caubói; ou uma cerveja gelada. — Deu uma cotovelada em Pamela enquanto soltava uma risada forçada.

Pamela se viu surpresa ao sorrir de volta. Havia algo honesto e verdadeiro na velha senhora que fez seu rosto enrugado e seus modos rudes até mesmo atraentes.

— Pamela Gray — disse, estendendo a mão.

— Billie Mae Johnson. — A mulher retribuiu o cumprimento com um aperto firme e um sorriso caloroso. — Prazer em conhecê-la. Se precisar de uma cara amiga ou de uma cerveja gelada, vá ao Flamingo. Normalmente estou trabalhando no bar do piso principal.

— Olhe que eu posso levar isso a sério...

A aeromoça anunciou que eles iriam aterrissar, e Pamela colocou o assento na posição vertical. Billie Mae balançou a cabeça e resmungou para as lacunas nas palavras cruzadas, cuja maioria continuava vazia.

— Esses metidos do New York Times enfiaram estas palavras cruzadas no nariz quando começaram a deixar esses advogados divorciados do Texas escrevê-las. — Suspirou e se concentrou em uma das questões antes de olhar de soslaio para Pamela. — Ei, a dica idiota aqui é “emancipação metafórica”, e a resposta tem dezessete letras. Tudo o que consigo imaginar é Budweiser , mas esta tem nove!

— Foi um advogado ou uma advogada que criou essas palavras cruzadas?

— Um advogado.

— Tente “pensão alimentícia” — arriscou Pamela, sorrindo, maliciosa.

Billie Mae preencheu as letras com um grunhido de satisfação, depois piscou para ela enquanto o avião pousava.

— Acabou de ganhar uma cerveja. Espero que seja tão boa em decoração como é em palavras cruzadas!


Pamela se aproximou do homem uniformizado que segurava uma placa onde se lia “Pamela Gray, Ruby Slipper” em alto-relevo dourado. Antes que pudesse falar, o homem fez uma breve mesura e perguntou com um sotaque britânico:

— Srta. Gray?

— Sim, sou Pamela Gray.

— Muito bem, senhora. Levarei sua bagagem. Por favor, queira me acompanhar.

Ela o fez, e teve que correr para seguir o ritmo acelerado do sujeito conforme este cruzava o aeroporto lotado com destreza até o lado de fora, onde uma limusine os aguardava. Pamela fez menção de parar e deixar cair o queixo quando ele abriu a porta do belo Rolls-Royce vintage , contudo deslizou para o assento de couro cor de creme com graça, agradecendo antes que ele fechasse a porta.

— Que satisfação em conhecê-la, srta. Gray — uma voz grave ribombou do outro lado da limusine.

Pamela deu um salto. Saindo das sombras, um homem se inclinou para a frente, estendendo-lhe a mão enorme. Conforme ela a aceitou instantaneamente, os lustres de cristal pendurados de ambos os lados do automóvel se acenderam.

— Sou E. D. Faust, claro, mas pode me chamar de Eddie.

Recuperando a compostura, ela sorriu, educada, e devolveu o cumprimento firme. Sua primeira impressão de E. D. Faust foi a de que ele era gigante.

Assim que ele a contratara, ela havia ido até a livraria mais próxima e comprado vários de seus romances, de modo a se familiarizar com o autor. Mas as fotos na parte de trás dos livros não capturavam o real tamanho do homem. Faust preenchia o espaço à sua frente, fazendo-a se lembrar de Orson Welles, ou de um envelhecido Marlon Brando.

E ele era... escuro. Na linha em forma de “V” na testa, o cabelo era grosso e negro, amarrado para trás em um rabo de cavalo baixo. A camisa de seda de manga longa também era preta, assim como as calças largas e as botas de couro brilhantes.

Embora disfarçadas por camadas de gordura, as linhas fortes de seu rosto eram ainda evidentes, e sua idade, indeterminada. O homem devia estar entre os trinta e os cinquenta, mas Pamela não tinha muita certeza.

Faust observou seu estudo, e seus olhos castanhos brilharam quase com travessura, como se ele estivesse acostumado a ser o centro das atenções e gostasse disso.

— É bom conhecê-lo enfim, Eddie. E, por favor, pode me chamar de Pamela.

— Pamela, então. — Ele bateu a cabeça de dragão da bengala preta no painel de vidro semifechado que dividia a área de passageiros da limusine do chofer. — Podemos ir, Robert.

— Muito bem, senhor.

A limusine elegante se afastou do meio-fio.

— Espero que a viagem não a tenha cansado muito, Pamela.

— Não, foi apenas um voo curto de Colorado Springs.

— Quer dizer que não se oporia a começar seu trabalho agora mesmo?

— Não, de maneira alguma. Já tomou uma decisão quanto ao estilo que gostaria de adotar na casa? — Pamela quis saber, ansiosa. Se aquele carro fosse uma amostra do bom gosto de Eddie e de seu orçamento...

Sentiu a cabeça girar com as possibilidades. Que vitrine não seria! Ela criaria um verdadeiro paraíso de veraneio para o Rei da Ficção.

— Com certeza. Sei exatamente o que desejo e o encontrei aqui, nesta cidade mágica. Tudo o que precisa fazer é copiá-lo. — Eddie bateu na janela outra vez. — Robert, leve-nos ao Caesars Palace.


Capítulo 2


— Caesars Palace? Mas isso não é um cassino?

As dobras no rosto de Eddie plissaram ainda mais conforme ele sorriu.

— Por isso mesmo é perfeita para este trabalho, Pamela. Nunca esteve em Las Vegas, assim verá tudo com novos olhos. Olhos que podem apreciar e captar a atmosfera única que eu desejo para a minha casa. E tem razão. O Caesars Palace é um cassino, assim como um hotel. Na verdade, a não ser por alguns dos detalhes da piscina, que desejo reproduzir, não é no Palace que eu quero que concentre sua atenção, e sim no shopping maravilhoso anexado a este. O Fórum tem a magia que eu desejo.

— É um centro comercial? — Ela teria ouvido bem? Por que Faust haveria de querer uma casa de veraneio — ou qualquer casa — em um lugar que se assemelhava a um shopping center?

— Você vai ver, minha querida, você vai ver... — Eddie apontou o dedo grosso para um balde de prata cheio de gelo, onde havia várias garrafas. — Gostaria de se refrescar com champanhe ou Pellegrino ?

— Pellegrino , por favor. — Pamela teve a impressão de que precisaria estar com as ideias bem claras para o que estava por vir.

Uma casa de veraneio parecida com um shopping! Aquilo, sim, era um pedido estranho.

Não que pedidos estranhos de clientes a desanimassem. Desde que montara a Ruby Slipper, três anos antes, uma das coisas que ela mais amava em sua própria empresa de decoração era a liberdade para cultivar clientes exclusivos e ajudá-los a transformar seus sonhos em casas confortáveis e de bom gosto.

Enquanto Eddie servia a água em um copo de cristal, Pamela pensou na primeira cliente da Ruby Slipper, Samantha Smith-Siddons. A srta. Smith-Siddons, antes sra. Smith-Siddons, queria redecorar por completo os setecentos e quarenta e três metros quadrados de sua casa após ter flagrado o sr. Smith-Siddons fazendo sexo com a assistente de vinte e um anos. Infelizmente, para o sr. Smith-Siddons, ele vestia lingerie feminina, scarpins de salto vermelhos e uma peruca loira, fato que seus muitos clientes (o sr. Smith-Siddons era proprietário da maior cadeia de funerárias do Colorado) teriam considerado um tanto perturbador se este houvesse se tornado público em meio a seu conturbado divórcio.

Mas o gosto único do sr. Smith-Siddons por lingerie feminina não fora divulgado, e a sra. Smith-Siddons recebera um prêmio considerável por seu diplomático silêncio. Ao contratar a Ruby Slipper, a mulher lhe explicara que não toleraria nenhuma cor, exceto algumas nuanças de branco, pois queria começar de novo e usar a pureza dessa cor para tentar neutralizar a mancha que se derramara sobre seu casamento.

Sem se incomodar com a bizarra restrição, ela, Pamela, se concentrara em texturas em vez de em cores. Tinha usado pisos de madeira de um branco envelhecido, objetos e adornos requintados, seguindo a mesma linha, bem como um pouco de tons rosé , perolados e estanho, mesclados a branco-neve, champanhe e cor de luar. O resultado final fora tão espetacular que a Ruby Slipper ganhara seu primeiro artigo completo na Architectural Digest.

E se ela conseguira transformar a residência sem-graça, quase estéril, da sra. Samantha Smith-Siddons em uma obra de arte, decerto poderia fazer o mesmo com a de Eddie.

— Devo lhe dizer mais uma vez, Pamela, como fiquei impressionado com o trabalho primoroso que fez no boudoir de Judith. — Ele riu, e seu corpanzil vibrou como uma massa gelatinosa. — O Nascimento de Vênus , sem dúvida. Eu jamais acreditaria que a ideia de decoração extravagante de Judith ficaria tão encantadora. Charles diz que nem está se importando em dormir em uma cama que parece uma concha gigante, rodeada por tons pastéis e femininos. Toda vez que Judith sai daquela banheira espetacular, ele não consegue evitar... acredita que está dormindo com uma deusa.

— Foi uma loucura, mas deu muito certo. — Pamela tomou um gole da água gaseificada, pensando que seu maior desafio fora amenizar um estilo de decoração que Judith imaginava ter o glamour de Hollywood quando, na realidade, era típico de um bordel e um tanto brega . Judith queria algo chamativo, e ela, Pamela, conseguira criar um ambiente opulento, porém de bom gosto. Charles e Judith Lollman haviam ficado tão satisfeitos com seu trabalho que tinham organizado uma enorme festa para exibir sua nova suíte. Charles Lollman não apenas produzia alguns dos shows mais bem-sucedidos do horário nobre da TV, como também era um fanático por ficção — inclusive a científica. E um dos muitos que convidara para a soirée fora o autor de best-sellers , E. D. Faust.

Pamela sorriu. O telefonema de Eddie fora o primeiro de vários que haviam acontecido com as indicações, após seu bem-sucedido trabalho.

— Um desafio — Eddie pronunciou a frase sem pressa. — Gosta de desafios, Pamela?

Ela endireitou os ombros e devolveu o olhar firme.

— Os desafios tornam a vida bem mais interessante — observou, sorridente.

— Resposta correta. — O sorriso de Eddie de repente lembrou o do dr. Grinch Seuss.

— Perdão, senhor. — A voz erudita de Robert chegou até eles. — Devo levá-los para a frente do Palace ou prefere a entrada VIP para o Fórum?

— A do Fórum, Robert. E telefone para James. Diga a ele que nos encontre em frente à fonte.

— Muito bem, senhor.

Eddie checou seu Rolex dourado.

— Excelente. Vamos chegar bem na hora. Quero que obtenha pleno efeito.

Pamela pensou em perguntar o que ele queria dizer com “pleno efeito”, mas, conforme dobraram a esquina, Eddie apontou e prosseguiu:

— Parece simples demais quando nos aproximamos por este ângulo, mas reservei uma suíte para você no Palace até o próximo fim de semana, de modo a lhe dar tempo de sobra para absorver a atmosfera. Naturalmente vai querer explorar a entrada principal a seu bel-prazer, bem como o cassino e o shopping.

Pamela piscou, surpresa. Eddie queria que ela ficasse uma semana inteira ali, apenas para fazer pesquisas em um shopping center? Mas ela estava bem no meio de vários outros projetos! Sua assistente poderia lidar com eles sozinha?

Antes que pudesse expressar suas objeções, contudo, Eddie fez um gesto de desdém.

— Compreendo que seu tempo é valioso. — Ele enfiou a mão num bolso fundo e tirou um maço de notas. Contou várias e as entregou a ela. — Quinhentos dólares por dia é o bastante para compensá-la pelo tempo extra que este desafio de decoração vai exigir?

Pamela queria gritar Caramba, claro que é! , mas, em vez disso, enfiou o dinheiro no fundo da bolsa e abriu um sorriso calmo e profissional. Quando tivesse um minuto sozinha, a primeira coisa que iria fazer era telefonar para a assistente. Vernelle teria um ataque cardíaco quando soubesse que aquele trabalho estava superando todas as suas expectativas.

E, juntas, ela e a assistente tinham excelente imaginação.

— Obrigada, Eddie. Isso deve cobrir as despesas que terei por ficar longe do meu estúdio por uma semana.

A limusine parou suavemente, e Robert abriu a porta para ajudá-la a descer. Pamela estudou a frente do edifício enorme enquanto Eddie arrastava o corpanzil para fora do carro. A fachada do Fórum era simples: um enorme bloco de mármore branco, com colunas incrustadas formando a maior parte da decoração. Nada mal , pensou. E até mesmo de bom gosto. Se aquilo era uma indicação do interior do shopping, ela poderia esperar um estilo clean , amplo e elegante.

Desafio? Teve vontade de rir em voz alta. Como Vernelle diria, aquele trabalho seria tão simples como vender boás para os gays !

— O Fórum é por aqui. — Eddie abriu o caminho através de uma porta branca dupla, movendo-se com absurda agilidade para seu tamanho. — Adoro esta entrada — explicou, conforme caminhavam por um corredor totalmente branco, que parecia pertencer a um enorme depósito de móveis. — Eu sempre tenho essa impressão. Gosto de imaginar que estou deixando um mundo e entrando em outro. — Sua risada era profunda e contagiante. — Mas isso porque, talvez, eu mesmo crie outros mundos como meio de vida. Então me diga, Pamela... — Seus olhos brilhavam quando ele abriu uma porta corta-fogo comum e fez uma mesura, indicando que ela deveria precedê-lo. — Eis o Fórum!

Santa Mãe de Deus! , foi o primeiro pensamento de Pamela.

O segundo foi que ela precisava fechar a boca.

De repente, viu-se apanhada em um vórtice de som e imagens. Pessoas lotavam o que fora construído para se parecer com as ruas de Roma. “Parecer”, mesmo porque aquilo tudo era cafona demais. Ela e Eddie tinham emergido em meio às lojas Versace e Escada, cujos nomes reluziam em letras douradas, imitando a antiga Roma. Mas, em vez de evocar a elegância do Mundo Antigo, lembravam uma caricatura dos desenhos animados. Era como se alguém tivesse desenhado a história e a arquitetura com lápis de cera.

— Espetacular, não? — comentou Eddie com sua voz grave.

— O teto... tem nuvens pintadas — foi tudo o que ela conseguiu balbuciar.

Fascinado, ele assentiu com um gesto de cabeça.

— É esse o efeito que quero no forro da minha casa. Vê como eles o iluminaram? — Apontou para cima. As fachadas das lojas eram enormes, mas não alcançavam o teto abobadado. Era óbvio que, acima dos telhados falsos, havia holofotes iluminando as falsas nuvens. — Como vê, agora parece meio-dia. É o que eu desejo para a minha casa: quero que a luz do dia se perpetue nela, de modo que eu possa escrever à luz de um sol eterno.

— Oh, Deus... — As palavras escaparam dos lábios de Pamela antes que ela pensasse em manter a boca fechada.

A risada de Eddie ribombou entre eles.

— Você não fazia ideia de que seria assim.

— Não, não fazia — ela concordou, em choque.

— Venha! O melhor está mais adiante. — Ele tornou a olhar para o relógio. — Precisamos nos apressar. Temos apenas cinco minutos antes de o show começar.

— Show ? — Pamela se obrigou a parar de abrir a boca e correu para alcançá-lo.

— Sim! É o que desejo que crie como ponto central na casa: uma fonte espetacular.

— Quer uma fonte dentro de casa? — Pamela modulou a voz com cuidado, tentando denotar otimismo. Adorava água e acreditava que esta era essencial para se criar um chi positivo em uma residência.

Sentiu a mente alçar voo. Iria contratar um excelente artista e criar... (olhou para cima, tentando não fazer caretas)... uma versão de bom gosto daquele céu azul, cheio de nuvens brancas como algodão, acima deles. E compensaria aquela breguice toda com uma fonte fabulosa. Talvez uma importada da Itália. Eddie iria adorar, afinal, o Fórum pretendia ser uma cópia de Roma. Por isso mesmo seria natural que quisesse uma fonte vinda da...

Viraram para a esquerda, e Pamela estacou, horrorizada. Bem diante deles estava uma monstruosidade que expelia água por todos os lados, cercada por deuses e deusas nus.

Sentiu a cabeça indo para a frente e para trás como se esta não lhe pertencesse. Aquilo era um horror! Enormes cavalos de mármore se projetavam da piscina iluminada, com água brotando ao redor. Zeus, Poseidon, ou outro deus que fosse, posava nu em cima de uma plataforma, segurando um tridente apontado para a água que ele fitava, sério. Em uma das laterais da fonte, havia comensais sentados nas pequenas mesas de um restaurante popular italiano, e Pamela se perguntou como eles conseguiam ouvir um ao outro, tal era o rugido da água.

— Não, não... Não é esta a fonte — Eddie a tocou nas costas, guiando-a para além do monstrengo molhado. — Não preciso de nenhuma imitação de Trevi. Desejo algo verdadeiramente único.

Aliviada, Pamela deixou escapar uma risadinha fraca.

— Também não gosto desta coisa — afirmou o escritor, conforme passavam, apressados, pela Disney Store, a qual apresentava um Pégaso em tamanho natural saindo do topo. — Um cavalo alado me parece um pouco demais.

Pamela assentiu em silêncio. Um cavalo alado era “um pouco demais”, e um teto abobadado, pintado para parecer com um céu iluminado pela luz de um sol eterno, não era?...

Apertou o maxilar. Gostava de um desafio. De verdade. Era uma designer de interiores excelente e experiente, com muito bom gosto e estilo, e gostava de clientes excêntricos.

Não, lembrou-se com firmeza. Não apenas gostava deles, como também os preferia. Não existia projeto estranho, cafona ou bizarro que ela não pudesse levar adiante, recheando-o de bom gosto e refinamento.

Uma pequena multidão se agitava à sua frente, e o braço levantado de um homem alto chamou sua atenção.

— Ah, lá está James. Ele escolheu um excelente local.

Eddie a fez se juntar a ele e mergulhou na multidão, cortando-a como uma baleia em meio a um cardume de guppies , aqueles peixinhos de aquário.

Quando se aproximaram do homem alto, o escritor a impeliu para a frente. Meio sem ar, Pamela sorriu numa saudação, contudo sua expressão se desfez quando percebeu onde estavam.

Diante de outra fonte gigantesca. E aquela possuía a forma de uma enorme janela com arabescos. O centro era dominado por um imenso homem de pedra, sentado em um trono. Três estátuas em pé cercavam a figura entronada, porém Pamela não teve a chance de analisá-las, pois, naquele instante, a luz do “sol eterno” que brilhava no teto abobadado se desvaneceu, e uma espessa neblina começou a se derramar, saída de pequenas aberturas na base do trono.

Pamela espirrou ao sentir o cheiro picante do gelo seco.

— Saúde! — Eddie falou atrás dela. Então se inclinou para cochichar em seu ouvido. — Está começando. Preste atenção.

Um riso assustador irrompeu do meio da fonte. Pamela sentiu um estranho arrepio ao perceber que o centro da estátua havia ganhado vida, e a risada saía dos lábios do homem de pedra. Espantada, observou enquanto a figura sentada se movia sobre a plataforma, de modo a encará-los.

— Está na hora! Está na hora! — proclamou a estátua. — Sou Baco! Venham, venham todos! A festa no Fórum não demora! — O Baco “vivo” ergueu a taça, que de repente cintilou, dourada. Mas Pamela mal prestou atenção aos efeitos especiais, pois o rosto do deus lhe capturara a atenção. Ele era como uma reprodução grotesca de Curly, dos Três Patetas, vestida com uma toga, folhas de uva em torno da cabeça calva e várias papadas no pescoço. Mais risos escaparam de sua boca enquanto o homem fingia beber, em um brinde à multidão.

— César! Acolhe os visitantes que ao nosso Fórum vieram!

Ao comando de Baco, a estátua em pé mais distante deles começou a gesticular com os braços e disse algo sobre o Deus do Vinho fazer uma festa para a multidão. De onde estava, Pamela não conseguia entender muito bem as palavras.

Outro braço, recém-animado, a fez se lembrar de Fred Flintstone.

— Maldição dos infernos! — resmungou por entre os dentes, usando o xingamento favorito de sua assistente. — Que diabo é isso?

— Ártemis, diga-me a que veio! — bradou a estátua de Baco. — E que comece a festa!

A segunda estátua de pé ergueu o braço, e Pamela fez uma careta ao perceber que seus seios enormes balançavam com qualquer movimento.

— Vim para o Fórum, onde da alegria sopra a brisa. Apenas tu, Baco, consegues me afastar da caça e da floresta! Vim para onde se faz compras, se bebe e se é feliz. Principalmente quando se tem um Visa!... — A voz da mulher era fina e, enquanto ela falava, uma aljava repleta de flechas e um arco pendurado por cima de seu ombro brilhavam com um terrível néon vermelho.

— Muito bem dito, formosura! — Baco balançou a cabeça para cima e para baixo num movimento espasmódico e mecânico. — Mas agora é a vez do teu irmão... Apolo, fala à multidão!

A estátua bem diante deles começou a girar até ficar de frente para as pessoas. A harpa nas mãos de Apolo brilhou com uma luz verde enquanto ele a acariciava, e música brotou de um alto-falante semiescondido aos pés de Pamela.

— Sim, ó Baco, isso é certo. Assim como a inspiração e o encanto que trago com minha lira!

— Ah, Apolo e sua magia!... Ela toca meu coração, mira! — declarou a estátua gorda em uma voz estridente. — Mas, basta! Já é hora de convocar a luz do dia!

A estátua de Apolo se curvou, desajeitada, diante do Deus do Vinho, antes de erguer a mão. De repente, o teto abobadado ganhou vida com fachos de laser que cortavam as nuvens em cores brilhantes, enquanto o riso satisfeito de Baco enchia o ar seco e fresco. As luzes finalmente cessaram, culminando em uma explosão de brilho que deixou o falso céu iluminado como se fosse de manhã.

— Agora, meus amigos, comam, bebam, sejam felizes! — entoou Baco, enquanto as outras estátuas se curvavam e paralisavam, e a luz de um spot pintado de rosa tingia seu rosto já corado. — Mas não se esqueçam de retornar para o nosso show especial das oito da noite em ponto! Carpe diem!

Conforme sua risada insana se desvanecia, aplausos espontâneos eclodiram em meio à plateia.

Pamela ouviu uma mulher vestindo moletom vermelho dizer à amiga:

— Não foi melhor do que o da última vez?

— Foi, sim! — respondeu a outra.

— Oh, Deus... — ela gemeu, inconformada.


Capítulo 3


— Não, não precisa se preocupar. Sei exatamente o que a incomoda. — Eddie lhe afagou a mão. — Dinheiro não é problema! Não pouparei gastos para realizar o que imagino.

— Acredite, senhora. Eddie irá supri-la com qualquer quantia.

Pamela piscou, pouco à vontade, para o homem alto.

— Ah, mas que grosseria a minha!... — lamentou Eddie. — Pamela, deixe-me apresentá-la ao meu assistente, James Ridgewood. James, esta é a nossa muito estimada designer de interiores, Pamela Gray.

— É um prazer conhecê-la, senhora.

James a cumprimentou com brevidade e firmeza.

Eddie bateu as mãos nas coxas grossas.

— Mal posso conter a minha ansiedade! Agora que já viu essa fonte maravilhosa, diga-me, Pamela: o que acha?

— O que eu acho? — Pamela parou, repetindo a pergunta. Ela e Eddie se encontravam sentados lado a lado em um dos falsos bancos de mármore que cercavam a fonte agora silenciosa. Devido ao tamanho do autor, o assento que acomodaria três ou até quatro pessoas estava cheio, então James permanecia em pé ao lado deles.

Impotente, Pamela desviou o olhar dos olhos brilhantes de Eddie para os de James que, por sua vez, o devolveu com a expressão atenta de um aluno. Não iria obter nenhuma ajuda dele, ela percebeu. James também comprara a ideia daquela decoração desastrosa.

— Sim! O que acha de transformar uma fonte como essa no ponto central da minha casa?

Pamela estudou Eddie com cuidado. O homenzarrão estava falando sério. Infelizmente, aquilo não era piada. Ele queria mesmo aquela coisa horrorosa!

Ela limpou a garganta e respirou fundo antes de elaborar a resposta.

— É uma ideia um tanto incomum...

Eddie e James balançaram a cabeça em entusiasmada concordância.

— No entanto, existem alguns detalhes que me preocupam. Em primeiro lugar — Pamela apontou para a fonte enorme —, o tamanho. Se bem me lembro, você disse que sua casa não chegava a ter mil e duzentos metros quadrados. Claro que se trata de uma casa espaçosa, mas tenho medo de que mesmo uma propriedade desse tamanho não possa acomodar uma fonte tão... — fez uma pausa, evitando as palavras “monstruosa” e “grotesca” — ... de dimensões tão magníficas.

Eddie pendeu a cabeça para trás e gargalhou, fazendo que várias pessoas parassem para observá-lo.

— Agora compreendo a sua expressão de choque, minha querida. Não quero a fonte dentro da casa. Pelo contrário, quero que seja um ponto de referência no pátio. James, mostre a Pamela o que quero dizer.

Sorrindo, James ergueu uma linda valise de couro cor de vinho e extraiu desta uma pasta grossa de arquivo, que entregou a ela. Pamela a abriu, encontrando fotos coloridas e plantas detalhadas de uma requintada villa italiana. O lugar era construído como um enorme “U” em torno de um encantador pátio de mármore, o qual estava obviamente destinado a ser o ponto central da residência.

Pamela viu-se balançando a cabeça, impressionada com o patrimônio arquitetônico da casa. Então piscou e olhou uma das fotos mais de perto. Sobre a imagem do lindo pátio alguém tinha rabiscado com um lápis: “Retirar as árvores. Substituí-las por colunas romanas, douradas, talvez, como as do Fórum?”.

Colunas douradas?

Seus olhos se desviaram para um dos pilares próximos. Como uma mistura bizarra de bordel e casa funerária, este era coberto por uma pintura de gosto duvidoso, imitando mármore. E a parte superior da coluna era incrustada com vistosos arabescos em ouro.

Ficou feliz por estar sentada, pois sentiu os joelhos fracos.

Tornou a ler as anotações a lápis: “Em vez dos azulejos de cerâmica, fazer o piso como o das ruas do Fórum”.

Horrorizada, Pamela olhou para baixo. As “ruas” do Fórum não eram nada mais do que cimento texturizado, uma imitação barata de pedra, pintado de marrom cor de lama e envernizado. Decerto Eddie não iria queria trocar aquele travertino fabuloso por cimento...?

— Compreende agora? Quero implantar uma fonte como esta no pátio da minha casa.

Pamela sentiu a boca abrir e fechar como a de um peixe, enquanto lutava para dizer alguma coisa.

— Sei que, apesar de o meu pátio ser grande, não tem tamanho suficiente para abrigar uma réplica exata desta fonte. Por isso mesmo decidi que quero uma versão menor. Pode cortar César, Ártemis e Apolo. — O olhar de Eddie se fixou com carinho no centro da escultura. — Mas mantenha Baco, o Deus do Vinho e da Fertilidade. Em minha casa o vinho é sempre bem-vindo. Quanto à fertilidade... — Sua risada ecoou outra vez. — Bem, as regras do cavalheirismo me fazem lembrar que tais assuntos não são adequados para os ouvidos de uma dama, então, por enquanto, digo apenas que gostaria de incentivar a fertilidade da criatividade e da palavra escrita.

Pamela ignorou o brilho travesso nos olhos do homem. Ela certamente não pretendia entrar em qualquer tipo de discussão acerca de “fertilidade” com ele.

— Deixe-me ver se entendi bem. O que quer é a aura desta fonte, algo com sua forma básica e design , mas em menor escala.

— Isso mesmo. — Eddie sorriu. — E, claro, ela precisa ser animada.

Desta vez, quando Pamela deixou a boca abrir, não se preocupou em fechá-la.

— C-com licença... Ahn... Sr. Faust?

Ela se voltou para ver três adolescentes com os rostos cheios de espinha parados atrás deles, cada um segurando uma cópia de capa dura de Pilares da Espada, enquanto olhavam com entusiasmo para Eddie.

— É-É o senhor, não é? — gaguejou o mais alto dos três.

Eddie concordou com um gesto de cabeça.

— Eu mesmo, E. D. Faust.

— Legal!

— Eu disse que era ele! — O menino mais alto lançou um olhar vitorioso aos companheiros. — Acabamos de comprar nossas cópias de Pilares , sabia? Seria, tipo , maravilhoso se você as autografasse para nós, por favor!

Pamela não pôde deixar de sorrir para os meninos. Eles eram até engraçadinhos, de certa forma. Assim como pequenos potros.

Notou que o mais gordinho, perto dela, estava tentando olhar dentro de seu decote, então franziu o cenho e ajeitou a roupa.

Homens... Não importava se tinham quinze ou cinquenta anos. Algumas coisas nunca mudavam.

— Seria uma honra pôr minha assinatura nos livros, rapazes! Venham! Digam-me seus nomes. — Eddie fez um gesto magnânimo.

— Taylor! — O garoto mais rechonchudo se esqueceu de seu decote e saltou na frente dos outros dois.

— Jamie!

— Adam!

A risada de Eddie ressoou, bem-humorada, mas, quando os meninos dispararam para a frente, Pamela percebeu que o autor lançou ao assistente um olhar significativo.

— Srta. Gray — James pareceu aflito ao se inclinar para falar em sua orelha. — Receio que não tenhamos muito tempo. Tudo o que precisa está nesta valise — ele a entregou a ela —, inclusive a chave do seu quarto. Já fiz o check in para a senhorita, e Robert mandou suas malas para a suíte.

— É E. D. Faust mesmo!

— Bem que eu achei que conhecia o cara de algum lugar!

Pamela olhou ao redor, surpresa. Várias pessoas apontavam para Eddie agora.

— Eddie deseja que a senhorita passe este fim de semana simplesmente absorvendo a atmosfera do Fórum e do Caesars Palace. Na manhã de segunda-feira ele enviará um carro, e então será levada para a casa dele. Todos os detalhes estão na pasta. Até lá, pense nos próximos dois dias como um agradável fim de semana em meio à magia de Las Vegas.

— E. D. Faust! Uau! — disse um homem quase sem fôlego antes de correr até Eddie, afastar os adolescentes, que o encararam, irritados, e cumprimentá-lo com um vigoroso aperto de mão. — Eu tenho todos os seus livros!

— Aplaudo o seu gosto na literatura, senhor. — O tom de Eddie era jovial, porém não havia dúvida quanto ao olhar aflito que este lançou a James.

— Vai encontrar outras instruções na pasta, bem como números para contato, caso precise falar conosco antes de segunda-feira. Agora preciso ajudar meu patrão — James terminou depressa.

Pamela observou o rapaz se infiltrar na multidão crescente até se colocar ao lado de Eddie e anunciar que o sr. Faust precisava ir embora, pois tinha uma entrevista importante para a qual não poderia se atrasar. Eddie ergueu o corpanzil do banco, piscou para Pamela e começou a se afastar com falsa relutância em direção à saída. As pessoas continuaram a segui-lo, lutando por conseguir um autógrafo na camiseta ou até mesmo nas costas da mão.

Uma vez deixada para trás, Pamela balançou a cabeça lentamente. Olhou para a pequena multidão, conforme esta se afastava pela rua falsa, atrás do autor de ficção, sentindo-se um pouco como Alice após ter caído no buraco.

E a turba continuou a crescer. A maioria era de meninos e homens maduros — daqueles que usavam alguns fios do cabelo ralo atravessados sobre a careca e meias brancas, puxadas até os joelhos. Eles o assediavam enquanto a figura alta de James impelia a de seu chefe, e a risada característica do autor chegava até ela. Eddie era um verdadeiro superstar . Um superstar meio esquisito, verdade, mas ainda um superstar .

Inacreditável. E ela nem fazia ideia!

Seu olhar pousou mais uma vez na fonte medonha, que, no momento, felizmente se encontrava em silêncio.

Pamela suspirou. Um passo de cada vez , lembrou a si mesma. Iria para o quarto refrescar-se, falar com Vernelle, em seguida voltaria ali para jantar e — pensou no que a estátua havia dito — assistir ao espetáculo daquela noite. Não era possível que fosse pior do que aquele que ela já tinha visto.


— Fale de novo, Pammy, acho que não escutei direito.

— Você me ouviu direito, sim, Ve! Aquela coisa horrorosa fala . E, palavra de honra, tem um monte de luzes de néon coloridas. E ele quer uma igual no pátio!

Sentada na beirada da cama king size da luxuosa suíte, Pamela tirou um dos scarpins e esfregou o pé.

— No pátio da linda casa em forma de vila italiana?!

— Esse mesmo.

— Maldição dos infernos!

— Foi o que pensei — resmungou Pamela.

— Mas isso é pior do que O Nascimento de Vênus ! — Ve bufou. — Santo trípode!...

O termo fez Pamela rir, como sempre. “Trípode”, Vernelle explicara quando elas haviam começado a trabalhar juntas, três anos antes, era uma gíria de lésbicas para “homem”.

E Ve era lésbica. Não daquelas homossexuais impudentes, que odiavam os homens. Vernelle Wilson até os apreciava... Apenas não gostava de dormir com eles.

Ve tinha lhe explicado sua opção da seguinte forma:

— Os homens me aborrecem. Depois que fiquei com um por algum tempo, acho que preferiria explodir os miolos a acordar ao lado de um deles e ficar ouvindo aquela bobajada inútil sobre virilidade pelo resto da vida. Agora, as mulheres... — Seus olhos cor de avelã brilharam, e um sorriso travesso lhe iluminara o rosto. — As mulheres eu posso ouvir sempre.

E esse era um dos muitos pontos fortes de Vernelle: escutar as mulheres. Ela nunca se apressava para satisfazer o desejo de qualquer cliente do sexo feminino, e parecia entender exatamente o que alguma delas queria dizer quando mencionava “aquele tom azul-arroxeado, meio da cor do céu à noite, ou de um amor-perfeito...”.

Embora não fosse graduada em design de interiores, Vernelle era artista profissional e designer gráfica — assim como o incrível website e o logotipo original da Ruby Slipper podiam atestar. Tinha excelente gosto para cores e texturas, e era também uma astuta mulher de negócios.

Pamela sorriu. Contratar Ve como sua assistente fora a primeira das muitas decisões sábias que ela tomara ao dar início ao seu próprio negócio. Ve gostava de dizer que ela, Pamela, se mostrara um tanto evoluída ao escolhê-la em meio à porção de gays que se candidatara para aquele trabalho.

Pamela abafou o riso antes que este se tornasse histérico.

— Eu não sei, Ve, mas vai ser difícil eu conseguir dar um toque de bom gosto a esse trabalho. Pelo amor de Deus, ele quer algo no estilo Liberace, bem brega !

— Ei, é cedo demais para desistir. E, lembre-se, é noite de sexta-feira, e você está em Las Vegas.

— Eu sei, eu sei. Que seja. Agora, o mais importante... Como está o projeto de Katherine Graham? Obviamente ainda está respirando, então ela ainda não a levou ao suicídio.

— Ei, me dê um desconto! Eu até gosto da velha.

— Claro, como gosta de ir ao dentista — contrapôs Pamela.

Ve riu.

— Não, é sério! Estamos nos dando melhor. Ainda odeio seus zilhões de gatos, e não faço ideia de como uma mulher que fuma feito uma chaminé e bebe conhaque como se fosse água ainda pode estar vivinha aos oitenta e sete. Mas seu senso de humor é admirável.

— E quanto ao gosto dela por cores?

— Eu a convenci a abandonar os roxos e rosas. Já quase nos decidimos por amarelo, verde-sálvia e uma pitada de vermelho. Quando terminarmos a fachada, aquela casa vitoriana gimensa vai parecer ter dez anos em vez de cento e dez.

— E, depois, vamos começar a trabalhar na parte interna.

Juntas, Pamela e Vernelle suspiraram.

— Então, tudo está indo bem. Como anda o trabalho de restauro de Starnes?

— Está ótimo, Pamela. Assim como o piso para a sala de estar dos Bate e o acabamento das janelas dos Thackery. Quer fazer o favor de não se preocupar? Você deixou tudo ajeitado antes de viajar, e posso muito bem dar conta dos trabalhos em curso. Se eu me enroscar com qualquer coisa, posso telefonar.

— Promete?

— Claro que sim. E aqui vai uma sugestão... Que tal tirar uns dias de folga? Está em Las Vegas, pelo amor de Deus! Saia um pouco, divirta-se. Pode até fazer umas apostas!

— Quer que eu me arrisque no jogo?

— Pammy, é para isso que serve Las Vegas!

— Eu não sei se gostaria de jogar. Não faz muito sentido para mim. Quer que eu entregue o meu dinheiro sem ter garantia de que vou conseguir comida, vinho, roupas ou uma peça de mobiliário em troca?... Não consigo achar graça nisso.

— Pammy, não está se concentrando no mais importante.

— No quê?

— Seja irresponsável uma vez na vida! Liberte-se! De repente pode até ganhar um prêmio principal.

Pamela inclinou a cabeça para o lado, pensativa.

— Pode ser que tenha razão, Ve. Talvez eu esteja olhando para esse projeto do modo errado. Em vez de pensar em bom gosto, talvez eu devesse estar bancando a lunática.

— É isso! — concordou Ve. — O sujeito é cheio da grana . Mesmo que ele soe meio maluco, você disse que ele parece boa gente.

— E é — ela anuiu de pronto.

— Então, pense da seguinte forma: E. D. Faust vive de criar fantasias. Ele simplesmente está pedindo que crie uma em que ele possa viver dentro! Pare de querer transformar esse projeto em outro layout para a Architectural Digest . E, Pammy, quando eu disse que precisava tirar algum tempo para si mesma, estava falando sério. — Ve fez uma pausa, e seu tom se tornou mais grave. — Há quanto tempo não tira férias?

— Você e eu fomos...

— Não, eu não estou falando de viagens de compras! — Ve a interrompeu. — Estou falando de férias de verdade.

Pamela suspirou. Ve sabia a resposta para aquela pergunta tanto quanto ela: fazia anos. Suas últimas férias haviam sido na companhia de Duane; um verdadeiro pesadelo. Apenas os dois, sozinhos em um balneário mexicano chiquésimo que só recebia casais. O resort proporcionara a seu ex-marido todas as bebidas que ele pudera imaginar e muito tempo para que Duane exercesse sua obsessão por ela. Ele não a perdera de vista por seis dias seguidos.

Só de pensar naquilo, Pamela sentiu falta de ar. Desde que o tinha deixado, ela nem sequer pensara em tirar um descanso. Que tempo tivera para isso?

— Eu não tive a intenção de lhe trazer más lembranças, Pammy — Ve murmurou diante de seu pesado silêncio. — Só quero que pare para pensar há quanto tempo não relaxa e se diverte. — A moça fez uma pausa, respirou fundo, depois continuou no mesmo tom afetuoso: — Você não teve um só encontro desde que terminou com Duane.

— Claro que tive! Saí com... — Pamela lutou, sem sucesso, para lembrar o nome do representante têxtil que a levara para almoçar alguns meses antes.

— Não vale contar um gay ! Muito menos um do qual nem consegue se lembrar do nome — zombou Ve.

— Ele não era gay . Seja lá qual for seu nome.

— Se não sabe o nome do pobre coitado, não importa se ele é gay ou não. Quem mais além dele?

Pamela mordeu o lábio.

— Era o que eu pensava. Pammy, está em Las Vegas. É noite de sexta-feira e está cheia de dinheiro. Além do mais, está solteira e mais do que disponível!... Não! — Ve interrompeu antes que ela começasse a argumentar. — Não comece! Aquele maluco, nojento e pegajoso do seu ex-marido não a incomoda há seis meses. Estão oficialmente divorciados há um ano e meio! Não é nenhuma velha ou doente, e continua com todos os dentes na boca. Se eu entendo bem de mulher, e sabe que nisso eu sou excelente, está prontinha para outra.

— Acha mesmo que eu vou me sujeitar a ter um desses casos de fim de semana em Las Vegas?

— Claro que não! Não alimento esse tipo de esperança... — Ve não precisou ver Pamela para imaginar o modo como ela apertava os lábios. — Agora, falando sério, Pammy, tudo o que estou sugerindo é que se solte um pouco e permita que o sexo oposto ao menos tenha uma chance com você. Não tem porcaria nenhuma para fazer até segunda de manhã, então relaxe e dê uma azarada por aí.

— Azarada?

— Paquere um pouco, criatura! É só se engajar numa conversinha sedutora com algum trípode.

— E posso chamar o cara de trípode? — Pamela riu.

— Só se quiser se bandear para o lado de cá...

— Talvez seja mais fácil.

— Isso é outro mito heterossexual sobre relacionamentos homossexuais, mas não estamos falando sobre a minha vida amorosa patética, e sim sobre sua vida amorosa inexistente . Pammy, esta é a hora e está no lugar perfeito. Não precisa abrir as pernas se não quiser, basta abrir a mente. Veja se consegue pelo menos interagir com um homem sem ser na esfera profissional.

Pamela registrou o toque de preocupação na voz da amiga. Vinha, mesmo, tratando os homens apenas como parceiros de negócios desde o divórcio?

Nem precisou terminar de formular a pergunta na cabeça. Sabia a resposta muito bem. Enquanto pensava, Pamela sentiu uma centelha de raiva reacender dentro dela. Duane ficaria encantado em saber que a transformara em uma assexuada, maníaca por trabalho.

E isso significava que ele ainda podia controlá-la.

— Azarar — murmurou Pamela.

— Azarar — Ve repetiu com firmeza.

— Ok, deve estar certa. — Pamela imprimiu alegria à voz. — Tenho trabalhado muito, mesmo. Vou pensar neste fim de semana como uma pequena fuga do mundo real, e nesse trabalho como uma aventura pela fantasia.

— Quem sabe até mesmo não faça umas apostazinhas? — persuadiu Ve.

— Quem sabe?...


Capítulo 4


— Mortais modernos são estranhos — Ártemis disse ao irmão enquanto observava uma série de senhoras sem-graça puxando as alavancas das máquinas que brilhavam, estalavam e bradavam coisas ridículas como “Roda da Fortuna”. — É como se o brilho e as cores dessas caixas lançassem um feitiço sobre elas.

— São caça-níqueis — Apolo corrigiu.

Ártemis lançou-lhe um olhar zombeteiro.

— Não se lembra do que Baco disse? Elas são chamadas de caça-níqueis! — ele insistiu.

— Caça-níqueis ou caixas brilhantes, que diferença faz? Baco que lide com os mortais.

Uma mulher de meia-idade, vestida com calças fuseau e um moletom, fez uma pausa para franzir a testa para a deusa antes de alimentar a máquina com mais dinheiro.

Apolo tomou a irmã pelo cotovelo e a guiou para fora do corredor de caça-níqueis, onde não podiam ser ouvidos.

— Não devia deixá-las escutar esse tipo de coisa. E não seja tão dura com Baco. Sabe que Zeus ordenou que ele nos explicasse os costumes dos mortais modernos para que pudéssemos nos misturar mais facilmente a eles. — Apolo fez uma pausa para observar um homem com um traje branco e chamativo, incrustado com strass, fazer um grupo de mulheres gritar de prazer enquanto este movia os quadris e cantava qualquer coisa como all shook up , ou sobre estar “todo arrepiado”. — Eu, por exemplo, fico contente que Baco entenda deste mundo. Muito do que vejo aqui é um mistério para mim.

— Está bem!... Se isso melhorar esse seu mau humor, eu faço a matrona ganhar para compensá-la pela minha rudeza.

Com uma sacudidela dos dedos longos e afilados, Ártemis fez a máquina da senhora pausar em uma linha perfeita de cerejas. A mulher gritou e se pôs em pé, pulando enquanto as luzes piscavam e sirenes a proclamavam vencedora do jackpot .

Ártemis fez um muxoxo.

— Essas mortais modernas seriam muito mais interessantes se fossem bonitinhas e fizessem ruídos como filhotes de cachorro em vez de parecerem umas leitoas superalimentadas, prontas para o abate.

— Elas não são animais de estimação. E também não são animais — Apolo lembrou, severo. — E Zeus mandou que não interferíssemos na vida dos mortais.

— Eu não interferi, apenas dei uma compensação à mulher. É diferente. Se quisesse interferir, atearia fogo àquela roupa horrível que ela está usando!

A risada divertida de Ártemis soou como música, fazendo vários homens lançar olhares interessados em sua direção, os quais a deusa ignorou por completo.

Seu irmão resmungou uma resposta qualquer.

— Apolo, o que está acontecendo com você?

— Nada — ele afirmou, segurando-a pelo cotovelo outra vez e guiando-a por entre as agitadas mesas de blackjack e roleta, em direção a um dos muitos barzinhos convenientemente espalhados por todo o cassino.

Mesmo vestidos com quitões, os quais deixavam boa parte de seus corpos esguios à vista, os dois imortais combinavam bem com a colorida mistura de funcionários do cassino e farristas de Las Vegas. As pessoas notavam sua estonteante beleza, além da graça única com a qual se moviam. Como não poderiam?

No entanto, ninguém estranhava o casal vestido como se tivesse saído das ruas da Roma antiga. Afinal, estavam no Caesars Palace da Cidade do Pecado. Ali, tudo podia acontecer.

Apolo enfiou a mão em uma dobra da túnica e tirou o papel que, relutante, Baco havia distribuído entre os olímpicos. O Deus do Vinho explicara que aquilo era o que o mundo moderno utilizava como moeda.

Chamou a atenção da atendente e, embora aquela fosse sua terceira incursão ao Reino de Las Vegas, pediu a bebida de que os imortais gostavam mais:

— Dois Martinis de vodca bem gelados, com azeitonas extras. Batidos, não mexidos.

— Quem é você, querido? — A garçonete lançou-lhe um olhar sedutor por trás dos cílios artificialmente espessos. — César ou James Bond?

— Nenhum deles — ele respondeu com um sorriso de lado. — Sou Apolo.

— Bem que podia ser, bonitão ... — Ela riu, avaliando o corpo musculoso antes de ir rebolando de volta para o bar.

— Criaturas insignificantes. — Ártemis fez uma careta na direção da moça.

— Os mortais modernos não são insignificantes. Eles apenas mudaram.

Ártemis balançou a cabeça para o irmão.

— O que aconteceu com você?

Apolo pensou em dar à irmã sua resposta de sempre: “nada”. Mas quando encontrou seus olhos, leu neles uma verdadeira inquietação.

Deu de ombros, tentando aparentar indiferença.

— Talvez eu tenha mudado, também.

Ártemis sentiu a preocupação aumentar.

— Como assim?

Ele não respondeu até que a atendente tivesse terminado de servi-lo com as bebidas. Quando falou, sua voz profunda saiu melancólica.

— Alguma vez já se perguntou o que ama?... Se o corpo ou a alma?

— O que ama? Que tipo de pergunta é essa?

— O tipo de pergunta que me foi feita por uma mortal, mas a que eu não pude responder. Pelo visto, você também não pode, minha irmã.

Em meio a um gole da bebida, Ártemis engoliu cuidadosamente enquanto considerava as preocupantes palavras do irmão.

— Aposto que foi daquela mortal insana que habitou o corpo de Perséfone. Foi ela, não foi? — exigiu a deusa.

— Ela não era insana coisa nenhuma. Ela apenas preferiu Hades a mim. Assim como o deus do Submundo a escolheu dentre todas as outras mulheres, mortais ou imortais.

— Espero que aquela tonta esteja adorando Hades como deve. Ele pode reinar sobre os mortos, mas é um deus e, por mais estranho que sejam seus gostos, merece total veneração.

Apolo esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça.

— Não é bem assim entre eles. Precisa vê-los juntos, Ártemis. Irradiam uma alegria que está além das palavras. Talvez até além da compreensão... ou ao menos além da minha — acrescentou em seguida, pensativo.

— Andou espionando Hades e Perséfone? — Ártemis fitou o irmão, incrédula.

— Ela não é Perséfone. É a mortal, Carolina. Hades não desejou Perséfone. Ele amou a alma da mortal, não a deusa. E, não, não andei espionando ninguém. Pelo menos não no sentido que está insinuando. Apenas visitei o Submundo como convidado de Hades várias vezes — Apolo justificou depressa.

Por isso seu irmão andava sumido, concluiu Ártemis. E ela imaginando que ele fora visitar o Mundo Antigo para supervisionar seu oráculo ou para inventar algo interessante, como uma pequena guerra ou duas!...

Apolo fora convidado por Hades para ir ao Submundo? Que estranho!...

— Hades sempre foi diferente do restante de nós, Apolo. Por que se incomoda tanto com as excentricidades dele?

— Você não compreende.

Os olhos do deus continham uma ponta de tristeza e introspecção que continuaram a incomodar Ártemis.

— Então, explique-se!

— Hades não me incomoda. A mortal que ele ama não me incomoda. Eu mesmo me incomodo.

— Não faz sentido.

— Eu sei. Não faz sentido nem para mim. Tudo o que sei é que, pela primeira vez na minha existência, vislumbrei algo que desejo, e não tenho ideia de como consegui-lo.

O primeiro impulso de Ártemis foi zombar das palavras e lembrar o irmão de que ele poderia obter as mulheres que quisesse, mas algo em seu tom de voz impediu o comentário. Em vez disso, ela o observou atentamente enquanto bebia. Apolo parecia cansado, e ele nunca ficava desanimado. Seria possível que estivesse desejando uma mortal?

Lembrou-se da que havia recusado o amor de seu irmão. Chamava-se Cassandra. Mas Apolo não ficara deprimido, pelo contrário: ficara irado. Com tanta raiva que acabara negando o dom da profecia que dera a ela.

Mortais como Cassandra, entretanto, eram uma exceção. Apolo era um amante lendário. As ninfas desmaiavam quando ele sorria; até mesmo deusas brigavam por sua atenção. Seria possível que o desejo por uma mortal houvesse embotado seu cérebro a ponto de ele se esquecer dos próprios poderes de sedução?

Uma comoção chamou a atenção de Ártemis. Não muito longe deles, um pequeno grupo de ninfas da floresta, usando diáfanas vestes brancas, tagarelava. Estavam excitadas e completamente alheias ao fato de que todos os homens mortais as devoravam com seus olhares.

Apolo seguiu seu olhar e sorriu com carinho ao ver o lindo grupo de mulheres.

— Não sei se foi sensato deixar as ninfas terem acesso ao Mundo Moderno.

— Deixe-as se divertir. Elas são inofensivas.

— Depende. Não para um mortal aprisionado por seu fascínio — ele lembrou, irônico.

Como se o olhar do belo deus as houvesse atraído, várias das ninfas correram até Apolo.

— Meu senhor! Já sabia? Baco permitiu que nos divertíssemos com os mortais!

— Verdade! Vamos realizar um ritual de invocação!

— Venha assisti-lo, senhor!

— Sim, por favor, venha nos ver!

As ninfas riram, exibindo-se, sedutoras, para seu deus dourado favorito antes de sair correndo.

Ártemis também riu de sua exuberância infantil, mas, quando olhou para Apolo, percebeu que o irmão observava o pequeno grupo com a testa franzida.

— O que elas estão invocando? — Apolo murmurou mais para si mesmo do que para ela.

Ártemis mordiscou sua última azeitona antes de responder.

— Bênçãos, fertilidade, boa saúde... Você sabe, essas coisas que as ninfas gostam de invocar. Vai comer essa última azeitona?

Tão logo Apolo negou com um gesto de cabeça, sua irmã espetou a iguaria com um palito e a colocou na boca.

— Zeus deixou claro que não deveríamos usar nossos poderes para interferir no mundo moderno — ele lembrou.

— Pelas barbas de Zeus, está ficando tão aborrecido como o falecido Tirésias! — A raiva de Ártemis incandesceu ao redor deles, fazendo o palito que ela ainda mantinha entre os dedos explodir em chamas. Irritada, a deusa revirou os olhos e assoprou as cinzas. — As vidas dos mortais são como suas bugigangas: frágeis, consomem-se depressa demais e podem ser prontamente substituídas.

— Está comparando os mortais a uma lasca de madeira? — indagou Apolo, ainda olhando na direção das ninfas que haviam desaparecido.

— Por que não? — Ela suspirou e balançou a cabeça ao se dar conta da distração do irmão. — Está bem. Vamos cuidar para que as ninfas não façam nada para interferir na vida de seus preciosos mortais. — Quando ele hesitou, Ártemis o fez ficar de pé. — Nunca se sabe — sussurrou, fingindo preocupação. — Afinal, algum mortal desavisado pode errar na invocação e pedir nossa ajuda. Posso até ouvir um agora: “Grande Zeus, envie um raio que fulmine o cachorro do meu vizinho que late a noite inteira!...”

Apolo balançou a cabeça para a linda irmã enquanto caminhava com ela, relutante, através do cassino.

— Não devia fazer pouco de um ritual de invocação. Sabe tão bem como eu quantos estragos têm sido feitos por mortais que invocam os deuses.

— Mortais antigos, sim, como Paris ou Medeia. Mas este não é o Mundo Antigo. Esses mortais não sabem nada a nosso respeito. — Ártemis observou, desgostosa, quando um homem careca e gordo comprou um punhado de enormes charutos de uma moça seminua, a qual carregava uma bandeja. — Tudo o que lhes diz respeito agora é... — Parou outra vez quando o gordo apalpou o traseiro da menina de saia curta assim que esta se virou. Com um pequeno movimento dos dedos, a deusa o fez tropeçar e cair de cara no chão. Sorriu presunçosamente quando os charutos rolaram pelo carpete e o homem praguejou em voz alta. — ... é esse tipo de autogratificação barata — completou. E, à medida que passava, pisou de propósito em um dos charutos que tinham vindo parar perto deles, esmagando-o contra o tapete estampado.

— Então eles diferem pouco dos deuses — murmurou Apolo.

Ártemis minimizou o tom acusatório do comentário.

— Somos deuses. A autogratificação é um direito nosso.

— Mas, e se essa autogratificação não for suficiente? — ele indagou, mantendo a voz baixa.

Ártemis sentiu a raiva borbulhar dentro dela. Sem dúvida, havia algo errado com seu irmão, mas toda aquela melancolia e autopiedade já a estavam tirando do sério.

— O que sugere, Apolo? Que outra vida poderia desejar além da que temos? Olhe ao seu redor. — Ela apontou para os mortais que passavam por eles como formigas sem cérebro. — Agimos com superioridade porque somos superiores. A vida de um mortal é algo temporário. Eles são como borboletas sem a beleza das asas. Disse que os mortais modernos estão mudados? A única mudança verdadeira que vejo neles é que não nos reconhecem mais, o que me diz que eles perderam até mesmo a ínfima inteligência que costumavam ter. Veja os deuses que eles adoram agora... — Ártemis parou no final do cassino e olhou para a área de compras do Fórum. — ... Gucci, Prada, Versace, Escada, Visa e MasterCard. — Balançou a cabeça, irritada por o mal-estar do tolo de seu irmão lhe dar tanto nos nervos. — Estamos perdendo tempo. Não devíamos estar seguindo as ninfas? — Apontou com um gesto de cabeça o rastro dourado que as semideidades tinham deixado. Os mortais haviam percebido a trilha cintilante, era óbvio, e várias meninas riam e colocavam o glitter em seus corpos.

Ártemis franziu a testa outra vez. Aquelas roupas que usavam eram mesmo muito estranhas: coisas desbotadas e de cintura baixa, que Baco chamara de jeans, e blusas muito justas e coloridas. Será que elas não percebiam como era feio exibir tantas gordurinhas? Ser sensual era uma coisa, chamar a atenção para as falhas do corpo era outra completamente diferente.

A deusa suspirou. Elas pareciam umas salsichas ambulantes!

— Tem razão — Apolo concordou, enfim, considerando as palavras da irmã conforme abriam caminho através do barulho e da confusão do movimentado mercado. — Há algo faltando neles. Talvez a ausência de deuses e deusas em suas vidas. Mas não creio que todos os mortais modernos sejam tão cabeças-ocas como acredita. Na verdade, eles me lembram a mim mesmo. — Apolo riu da expressão chocada de Ártemis. — Eles parecem estar sempre à procura de algo muito longe de alcançar.

— Você é um deus. Um imortal olímpico. Nada está fora de seu alcance! — ela lembrou, severa. Então arregalou os olhos conforme passavam por uma fonte gigantesca que expelia água em torno de ninfas nuas. O ponto central da monstruosidade era uma estátua enorme de um Poseidon nu e carrancudo, segurando um tridente e olhando para baixo, na direção dos compradores. — Sorte deles Poseidon não ter nenhum interesse em visitar este reino. Esta versão dele nu não faz muito jus ao verdadeiro tamanho do deus... — Ártemis olhou para as partes mais íntimas da estátua.

Apolo sorriu.

— Na certa é por isso que ele parece tão zangado.

Ártemis devolveu o sorriso, satisfeita por Apolo ter soado mais como ele mesmo. Talvez suas palavras estivessem surtindo efeito, afinal.

— E ainda bem que Las Vegas não é perto do mar! Poseidon pode ser muito temperamental.

Passaram por uma grande loja que ostentava o logo da Disney, bem como uma reprodução em tamanho natural de Pégaso alçando voo. Ártemis espiou lá dentro.

— Aparentemente os mortais modernos são obcecados por Hércules, Atlântida e leões.

— Pelo menos essas reproduções são coloridas.

— Hércules não era tão bonito — afirmou a deusa, olhando para a estranha loja por cima do ombro.

— Você nunca gostou dele.

— Ele era careca. Não acho homens carecas atraentes, por mais trabalhos que tenham realizado.

Viraram em uma esquina e avistaram uma grande multidão reunida em torno do que parecia mais uma fonte portentosa. Ártemis se perguntou que deus carrancudo estaria representado sobre aquela. Ela e o irmão ainda não tinham se aventurado por aquela parte do Fórum em suas outras breves visitas, e a curiosidade a arrebatou conforme se aproximavam.

A fonte ficava no meio de uma grande área cercada por colunas esculpidas. As lojas que ladeavam aquela parte eram diferentes da outra extremidade. Ali pareciam estar mais voltadas para a comida e a bebida do que para a venda de roupas e joias.

Um café interessante chamou sua atenção. Ali não havia as letras douradas e baratas que anunciavam os nomes das lojas e butiques de todo o restante do Fórum. Em vez disso, letras de um belo mármore travertino se intercalavam com musgo e videiras vivas, escrevendo o nome do pequeno bar: “A Adega Perdida”.

Ártemis cutucou o irmão com o cotovelo e levantou o queixo na direção do café.

— Vamos até ali. Estou com vontade de tomar um Chianti.

— E quando não está com vontade de beber um bom vinho tinto? — Apolo sorriu para ela enquanto a pegava pelo braço e a conduzia em meio à multidão.

De repente, as luzes que iluminavam o teto pintado com nuvens esmaeceu, e as cores mudaram do amarelo para lilás e violeta. A multidão se agitou, ansiosa, e Ártemis e Apolo pararam do lado de fora da Adega Perdida. Embora ambos fossem mais altos do que a maioria das pessoas, não foi fácil para eles enxergar.

Ártemis deixou escapar um gemido de frustração. Antes que mexesse os dedos, porém, seu irmão sussurrou:

— Seja gentil com eles.

Ela piscou e moveu os dedos afilados maliciosamente. As pessoas que bloqueavam sua visão perderam o interesse no show e se afastaram num passe de mágica. Quaisquer outras que tentavam tomar o lugar vago diante das duas atraentes figuras do Olimpo viam-se com uma vontade incontrolável de soltar gases e, desculpando-se, corriam para o banheiro mais próximo.

— Não se preocupe, meu irmão. — Ártemis sorriu. — Mais tarde, todos eles vão descobrir que esta noite terão uma sorte incrível nos... como chamou aquelas caixas barulhentas, mesmo? Caça-níq... — Sua voz foi sumindo conforme ela registrou o choque no rosto de Apolo. Virou a cabeça, seguindo o olhar atônito do deus, e seus olhos também se arregalaram ao ver a estátua sentada no centro da fonte voltar-se devagar em sua direção e começar a falar:

— Venham, venham todos!...

— Aquela coisa horrível parece Baco! — cochichou Ártemis.

— Eu acho que é Baco! — disse Apolo, tomando o cuidado de manter a voz baixa.

A estátua abriu a boca e riu grotescamente.

— Esta noite, para vocês, uma surpresa sem igual. Ninfas dançando num delicioso ritual!

Obedecendo-o, ninfas em pares começaram a se destacar de onde aguardavam em pé, à margem da plateia, e, para o deleite dos mortais que a tudo assistiam, deram início a uma dança sedutora pela circunferência da fonte, ao som de uma música gravada que continha sinos, gaitas e trompetes. Glitter dourado aureolava as encantadoras divindades da floresta conforme estas giravam e saltavam, movendo-se com uma graça sobre-humana.

A estátua de Baco demonstrou sua satisfação com um gesto mecânico de cabeça, o queixo se movendo de modo estranho enquanto ele continuava a falar:

— Ah, doces ninfas, o quão pura e verdadeira é a vossa magia! O que pensas, Apolo, de tanta alegria?...

Ao ouvir o próprio nome chamado pela estátua animada, Apolo pulou, assustado, e avançou meio passo. Em seguida, congelou ao ver uma das estátuas menores rodar e ganhar vida em resposta.

— Ao encanto da floresta, a graça das ninfas faz jus. Por isso farei brilhar ainda mais sua beleza com a magia da minha luz!

O verdadeiro Apolo emudeceu ao reconhecer a própria caricatura. No instante seguinte, a música aumentou, em conjunto com um show de laser, e as ninfas intensificaram o ritmo de sua dança diante dos aplausos entusiasmados do público.

— Como ele se atreve!? — sibilou Ártemis. Contudo, seu irmão a segurou pelo braço antes que ela avançasse com os olhos faiscando.

— Espere! Não podemos fazer nada aqui, diante de todos esses mortais.

— Deixe-me pegar meu arco e uma única flecha, e Baco irá se arrepender pela eternidade por essa brincadeira de mau gosto!

Apolo balançou a cabeça diante da estátua que supostamente o representava.

— Ele podia tê-la feito ao menos um pouco mais parecida comigo.

— Isso é uma blasfêmia! — A voz de Ártemis soou baixa e ameaçadora.

— A “minha lira” irradia uma luz verde e brilhante? — Apolo tentou, sem sucesso, reprimir uma risada. — E, por favor, diga-me que a minha cabeça não é tão grande!

A resposta da deusa foi abafada pelos berros de Baco:

— Minha adorável Ártemis, o quão bela é a tua visão! É sob o teu sagrado comando que se dá a invocação!

Foi a vez de Ártemis olhar, estupefata, quando uma réplica ridícula dela mesma começou a se movimentar. A estátua se virou e levantou um braço gordo. Ártemis ofegou quando a boneca começou a falar com uma voz de mulher mecânica, que nada lembrava a sua.

— Por meio das belas ninfas, em cada um aqui presente, meu feitiço vou lançar. E neste sonho cintilante, a força da minha magia em vocês vai habitar.

No mesmo momento, as ninfas começaram a cantar com os lábios fechados, num zunido hipnótico, conforme a música de fundo se desvanecia, obliterada por suas vozes doces.

— Agora ele está indo longe demais! — Uma sombra escureceu os olhos de Apolo. Ninguém zombava de sua irmã, nem mesmo um dos imortais!

Ficou surpreso quando, desta vez, foi a mão de Ártemis que apertou seu braço, impedindo-o de avançar a passos largos.

— Ouça as ninfas! — Sua voz soou grave com a tensão.

Apolo deixou de lado a raiva que sentia por Baco e obedeceu. O zumbido melódico tinha um ritmo sedutor e familiar, e, antes mesmo que as semideidades começassem a entoar as palavras da invocação, ele sentiu os pelos dos antebraços se erguerem em resposta ao poder invisível que emanou no ar em torno deles.


Pensem na volta dos imortais,

adoradores dos antigos caminhos,

e em seus distantes ancestrais,

que há muito aos deuses dourados honraram.

Deuses que ao campo, à floresta, ao vento,

à terra, à água e ao ar abençoaram.

Esta noite invocamos os tempos passados...


As vozes das ninfas eram tão lindas que os mortais mal respiravam.

— O que elas estão fazendo? — indagou Apolo, sentindo um aperto no peito. — É um ritual de invocação de verdade! Pelas barbas de Zeus, posso sentir seu poder. Ele é quase visível!

Impotentes, os dois imortais assistiram às ninfas tecendo sua magia.

Do Olimpo, celebrai o despertar,

o retorno dos mistérios do passado,

o culto à beleza e à fecundidade.

Proclamai a volta dos antigos

com canto, música e felicidade.

Que o auxílio dos deuses seja invocado!


— Temos que detê-las! — Apolo começou a avançar, porém, mais uma vez, sua irmã o segurou com firmeza.

— Como?! — sussurrou, aflita. — Como podemos fazer isso sem chamar a atenção?

Apolo apertou o maxilar.

— Não podemos permitir que elas completem a invocação. Pense nas consequências de se unir a moral moderna ao auxílio de um deus!

— Não se preocupe, meu irmão. A invocação é inofensiva.

— Como pode afirmar isso? O poder parece ter sido ampliado dez vezes! A longa ausência de magia neste mundo deve ter intensificado o ritual. Não será possível quebrar o encanto — ele concluiu por entre os dentes.

— O ritual nunca vai ser terminado — Ártemis insistiu. — Quem, aqui, sabe como completá-lo?

O canto sensual das ninfas continuou a preencher o ar:


Ó vento, que de longe vem e sussurra,

alegres saudamos a ti...


— O vinho de uma terra antiga precisa ser derramado e, em seguida, deve-se misturar sangue ao vinho — Ártemis lembrou, torcendo os lábios com presunção. — Quantas eras se passaram desde que esses mortais fizeram um sacrifício de sangue e libação? Sem dizer que nem mesmo isso completa o ritual.

Em nome de Baco, Apolo e Ártemis,

soprai aqui o poder dos deuses...


— Um desejo vindo do fundo do coração precisa ser dito em voz alta enquanto a invocação é concluída — lembrou Apolo, e seus ombros começaram a relaxar. — É mais sábia do que eu, minha irmã. Nenhum mortal moderno saberia como completar a cerimônia.

Ele sorriu para a deusa, então voltou a atenção para as sensuais ninfas. Agora que seus temores pelos mortais que os cercavam tinham sido aliviados, poderia desfrutar a beleza do antigo ritual. Era um rito tão poderoso que ele não conseguia se lembrar da última vez em que as ninfas o haviam realizado no Mundo Antigo.

Elas são donas de uma beleza tão etérea! , pensou enquanto permitia que o feitiço o tocasse e envolvesse seu espírito. A invocação era pura e sincera. Como de costume, as deidades desejavam apenas agradar a humanidade, e Apolo sentiu a essência imortal dentro dele responder ao seu apelo. Teve vontade de caminhar a passos largos em meio às ninfas que dançavam e permitir que os mortais vislumbrassem seu poder. Queria lhes revelar a glória de ter um deus vivo por perto e, em seguida, conceder, àqueles que mereciam, seus mais profundos desejos, mesmo sabendo que aquilo era impossível. Zeus o proibira de interferir na vida dos seres humanos e, desta vez, ele precisava admitir que o pai estava com a razão. Os mortais modernos ficariam melhores sem a interferência dos antigos e esquecidos deuses. Mas, conforme o ritual das ninfas o envolveu com sua magia, pensar que os mortais já não se importavam com o Olimpo o deixou deprimido.

Sentiu-se invadido por um misto de poder e decepção quando a cerimônia chegou a seu clímax:


O auxílio imortal se dá com um desejo sincero

e ao som de um coração atormentado.

Então esquece as dúvidas, dá voz à tua alma

se existe algo que o teu coração almeja.

E possa esse desejo sincero vir a ti como é esperado...

Assim seja!


Conforme as últimas palavras da invocação foram ditas, Apolo e Ártemis sentiram uma força inexplicável, como se suas mentes houvessem sido amarradas, e quem segurava as rédeas tivesse acabado de lhes dar um puxão. Suas cabeças douradas se voltaram ao mesmo tempo para uma mesa pequena e redonda, em meio à área que lembrava um antigo pátio italiano, bem em frente a uma adega. Irmão e irmã assistiram, horrorizados, quando uma pequena mortal — que se encontrava sozinha — derrubou a própria taça, quebrando o cristal delicado e derramando o vinho tinto. A energia pairando no ar pareceu absorver a bebida derramada, envolvendo-a em um círculo escarlate perfeito. Aflita, a mortal tentou limpar o vinho com o guardanapo de linho e deixou escapar um gemido ao sentir um caco de vidro entrar na pele.

— Não! — Ártemis murmurou quando o sangue mortal se mesclou ao vinho italiano.

— Isso não pode acon... — Apolo começou, entretanto suas palavras morreram quando a mulher abriu a boca e pronunciou as palavras que mudariam para sempre seus destinos.


Capítulo 5


O vinho a havia afetado, pensou Pamela ao soluçar baixinho, e quase riu de si mesma.

— Mas, ei, estou na Cidade do Pecado... Por que não? — indagou, expondo seu pensamento em voz alta.

— Com certeza, querida — falou o homem sentado à mesa mais próxima, com um sorriso malicioso.

Pamela observou a brancura ofuscante de seus dentes, os cabelos cuidadosamente pintados de preto e o brilho da pesada corrente dourada que se aninhava em meio à floresta de pelos escuros na área logo abaixo de seu pescoço. Ele deu-lhe uma piscadela, e seus dois amigos riram, divertidos.

Ela fez uma careta e se moveu na cadeira de modo a lhes dar as costas. Abriu a capa lisa e lilás da Edição Anual Especial da California Home & Design , que acabara de comprar em um quiosque do shopping, e afundou o nariz em um artigo sobre a EuroStone e seus granitos, mármores, quartzitos e calcários franceses, dificílimos de encontrar.

Pelo amor de Deus, não podia estar tão embriagada! Na verdade, não achava que já tivesse ficado naquele estado.

Quando o garçom se aproximou com um copo de Chardonnay barato enviado por “seu amigo da mesa ao lado”, Pamela não ficou muito surpresa.

Soltou um longo e dolorido suspiro.

— Obrigada, mas, por favor, mande-o de volta — pediu, sentindo-se de repente muito mais sóbria. — Não aceito bebidas de homens que não conheço.

O garçom pareceu surpreso, o que ela considerou um tanto irritante. Claro que se mantivera longe daquele clima de paquera por... Seu cérebro processou a quantidade de anos, porém Pamela se recusou a admitir o quanto de sua vida ela desperdiçara com Duane. As regras do namoro tinham mudado tanto assim? Estava se sentindo uma velha!

— Com o que posso lhe servir, senhora? — perguntou o garçom.

Deus, ele a chamara de “senhora”!

Então não havia mais dúvida. Ela devia parecer tão velha quanto se sentia.

Voltou os olhos para o cardápio comprido e fino, repleto de uma excelente variedade de vinhos de um lado e aperitivos do outro. Embora houvesse comido uma salada enorme e bebido meia garrafa de vinho no restaurante italiano próximo à outra fonte, a caminhada longa e deprimente em torno do shopping e do cassino a deixara com vontade de mastigar alguma coisa, bem como de tomar outra bebida.

Principalmente de tomar outra bebida.

Seus olhos se iluminaram diante do aperitivo que era uma seleção de azeitonas, queijos e pão fresco. Por que não? , pensou. Estava ficando velha. Poderia ser também gorda e feliz.

— Por favor, traga-me uma porção de azeitonas, queijos, e uma garrafa do... — Estudou os vinhos tintos italianos, listados sob o Chianti Classico em três classificações, e seus olhos cintilaram quando reconheceu o Castello di Fonterutoli Riserva , safra 97. Lera um artigo fantástico sobre vinhos italianos na última edição da Wine Spectator´s Magazine , e se lembrava muito bem daquele nome. — ... do Chianti Classico Castello di Fonterutoli Riserva , safra 97.

— Excelente escolha, senhora. Esse vinho é da Toscana. Seu viticultor afirma que, nos tempos antigos, os próprios deuses caminhavam em meio a seus vinhedos.

— Essa é muito boa — Pamela disse baixinho, tão logo o garçom se afastou. — Presa em uma versão reduzida da antiga Roma, e prestes a passar de “alegre” a bêbada graças ao vinho de um viticultor iludido!

Suspirou outra vez. Tivera boas intenções no início da noite. Após a conversa com Ve ao telefone, tomara um longo banho e secara os cabelos curtos com a toalha até deixá-los sensualmente despenteados. Decidida a caprichar no visual, tinha escolhido o vestido preto que arrematara na liquidação de final de estação da Saks de Denver. Adorava o modo como este terminava em um leve e feminino plissado, alguns centímetros acima dos joelhos. Havia completado a produção com delicados brincos de pingente em ônix e uma bolsa brilhante e tão pequena como fora cara. Para terminar, como pièce de résistance, um par de sandálias de seda preta Jimmy Choo, com bordados de borboletas e corações em cores brilhantes, bem ao estilo retrô.

Antes de deixar a suíte, checara a própria imagem no espelho dourado, que ia do chão ao teto, e parecera bem. Muito bem. O vestido preto envolvia seu corpo esbelto, e as sandálias agregavam mais alguns centímetros ao seu metro e cinquenta e seis, fazendo que suas panturrilhas parecessem mais longas e bem-torneadas.

Sim, ela estivera pronta para flertar.

Isso até parar na entrada do cassino a fim de perguntar a um bonito rapaz, que usava um uniforme românico, onde poderia comprar a entrada.

Ele caíra na risada.

— Senhora... Cassinos não cobram entradas. Quanto mais gente entrar aqui, mais dinheiro eles ganham.

Em seguida, o rapaz se afastara, ainda rindo e balançando a cabeça.

E sua noite não tinha melhorado muito depois disso. Seu jantar fora agradável, porém o cenário rebuscado continuara a lhe dar nos nervos. Dissera a Ve que iria mudar a forma de olhar para aquele trabalho, centrar-se na fantasia em vez de no bom gosto.

Mas quanto mais via do Fórum, mais desesperada ficava. Era tudo tão feio, cafona, barato e de péssimo gosto!...

Barato uma ova, corrigiu-se, os olhos se voltando para a enorme fonte que retratava, de modo grotesco, as imagens de Baco, César, Apolo e Ártemis. Aquilo tudo devia ter custado uma fortuna, assim como custaria a ridícula reprodução que Eddie queria da coisa em sua própria casa.

O garçom reapareceu com a travessa de azeitonas e uma garrafa de cristal com um vinho da cor do sangue. Pamela inalou o aroma rico do Chianti, e este a fez se lembrar, no mesmo momento, da Marilyn´s Pizza House, sua pizzaria favorita, que ficava muito convenientemente a poucos metros de seu estúdio. A Marilyn´s sempre contava com uma boa seleção de vinhos tintos italianos, assim como enormes TVs que exibiam filmes de Marilyn Monroe o tempo todo.

E aquele Chianti era mesmo digno de Marilyn.

Saboreou o sabor macio e persistente da excelente bebida em pequenos goles e escolheu uma azeitona preta do tipo kalamata . Em seguida, deu uma mordida na mozzarella de búfala cortada em fatias grossas. Estava tudo delicioso.

A vida no Fórum tinha lá suas vantagens, decidiu com a boca cheia. A comida era excelente, e a seleção de vinhos, soberba, mesmo em um pequeno café como aquele.

Sem dizer que — admitiu, relutante, conforme o Chianti começou a espalhar sua magia por meio dela —, embora a fachada das lojas fossem cafonas e seu design, lamentável, estas constituíam um verdadeiro paraíso da alta costura.

Sem dúvida, sua incursão na paquera não fora tão bem-sucedida. Mas isso não fora culpa sua. A única perspectiva que se apresentara até então usava uma corrente dourada, portanto nem contava.

Verdade que se mantivera afastada do cassino por conta do pequeno incidente a respeito da compra de um ingresso... Por isso mesmo não fizera nenhuma aposta até o momento.

O fim de semana, porém, estava apenas começando, e ela não podia encarar tudo aquilo como uma perda. Não ainda.

Talvez devesse apenas se transformar em uma “shoppingtonista”. Ou ao menos em uma “sapatonista”.

A ideia de comprar mais sapatos melhorou o humor de Pamela... até ela imaginar Ve criticando-a por ela continuar presa a velhos hábitos em vez de abraçar novas experiências.

Mastigou mais uma azeitona enquanto o garçom fez uma pausa em sua mesa para tornar a encher sua taça. Ve podia estar certa. Talvez ela não estivesse se esforçando o bastante.

Resoluta, Pamela fechou a revista e tratou de se concentrar no ambiente. A multidão ao redor da fonte havia aumentado. Uma moça loira, cujos cabelos eram incrivelmente belos, chamou sua atenção. Ela conversava com outra menina de madeixas tão encantadoras quanto, as quais lhe caíam em uma onda platinada até a cintura. E ambas usavam trajes que pareciam saídos das ruas da Roma antiga: de um tecido diáfano, da cor das nuvens, que flutuava em drapeados em torno de seus corpos jovens e ágeis. Em um momento elas pareciam estar cobertas e vestidas com discrição; em seguida, uma delas ria e se movia com graça, quase como se fosse uma bailarina, e uma fenda se abria em seu traje, permitindo um vislumbre de sua pele perfeita. Também pareciam estar cobertas por uma espécie de glitter dourado porque, conforme caminhavam em meio aos turistas, em direção à fonte, deixavam um rastro brilhante.

Pamela se concentrou no restante da multidão. Nenhum dos homens presentes parecia capaz de desviar os olhos das sedutoras mulheres fantasiadas. Era uma bela jogada de publicidade, concluiu. Pelo menos do ponto de vista masculino.

Passou os olhos pelo grupo crescente de pessoas que se reunia em torno da fonte. Assim como ela pensara, a maioria era de mulheres. No entanto, as duplas de moças seminuas também aumentavam. E não era um rapaz lindo, ali, vestindo um traje tão revelador quanto o das beldades se juntando a elas?...

Claro que não.

— Duvido que as mulheres se vestissem assim na Roma antiga — Pamela resmungou para si mesma. — Seria fácil demais pegar uma pneumonia.


Venham, venham todos!


A voz mecânica da estátua central explodiu nos alto-falantes, pegando-a desprevenida. Pamela olhou para o relógio, surpresa por já serem oito horas.


Esta noite, para vocês, uma surpresa sem igual... Ninfas dançando num delicioso ritual!


Bem, aquilo fazia mais sentido. Eram atrizes contratadas para representar ninfas.

À medida que as moças vestidas com trajes parecidos iam saindo da multidão e começavam a dançar ao redor da fonte, Pamela teve de reconhecer que estas eram muito atraentes. Assistiu ao show bebericando o vinho e pensando que nunca tinha visto apliques tão compridos e caros. As “ninfas” riam e rodopiavam em um gracioso círculo, jogando as pesadas cabeleiras como se tivessem nascido com elas.

As horríveis estátuas de Apolo e Ártemis ganharam vida, uma após a outra, mas, pelo visto, o show da noite se concentraria na dança das ninfas, que eram, sem dúvida, muito mais divertidas do que aqueles bonecos animados e suas ridículas rimas.

Pamela percebeu o pé acompanhando o ritmo pulsante da dança. Até que o show era bom, ponderou, tornando a encher a taça.


Pensem na volta dos imortais, adoradores dos antigos caminhos, e em seus distantes ancestrais, que há muito aos deuses dourados honraram. Deuses que ao campo, à floresta, ao vento, à terra, à água e ao ar abençoaram. Esta noite invocamos os tempos passados...


Quando as dançarinas começaram a cantar, ela se viu agradavelmente surpresa. A letra da música era muito melhor do que as baboseiras que as estátuas mecanizadas articulavam.

E suas vozes!... Eram incríveis.

Fascinada, Pamela escutou a música que falava de tempos antigos, quando as pessoas acreditavam que deuses e deusas perambulavam no meio delas e lhes concediam seus desejos. A despeito de sua opinião cínica acerca do ambiente em que se encontrava, sentiu-se arrebatada pelo desempenho das dançarinas a ponto de ter vontade de se levantar da cadeira e se juntar a elas em sua hipnótica dança.

Mas aquilo seria ridículo , pensou com uma risadinha embriagada, que logo se transformou num soluço. Ainda mais envergando o salto dez de um Jimmy Choo.

Por alguma razão, aquele desejo inédito de se divertir com as pretensas ninfas não a chocou. Olhou para a garrafa semivazia à sua frente. Devia ser o vinho, claro.

Piscou quando o ritmo da dança cresceu, e o glitter que envolvia as ninfas pareceu toldar sua visão. Tanto que, quando foi pegar a taça, calculou mal a distância.

Como se em câmera lenta, Pamela observou a haste de cristal caindo, estilhaçando-se sobre a mesa de mármore, e espalhando a bebida em um arco vermelho no chão, ao seu redor. Sentindo-se culpada, apanhou o guardanapo de linho e tentou absorver a mancha que se alastrava rapidamente. Graças aos Céus a taça se espatifara longe dela. Seria um desastre arruinar seu maravilhoso vestido com Chianti.

Caramba , que sujeira ela havia feito!...

Estava pensando que teria de deixar uma gorjeta extra para o garçom quando limpou a mesa com mais entusiasmo do que devia, e um caco de vidro entrou em seu dedo indicador.

— Ai! — Agitou a mão ao sentir a dor aguda. — Maldição dos infernos! — gemeu, sem acreditar na quantidade de sangue que correu do pequeno corte.

Sentiu o estômago já sensibilizado pelo Chianti revirar. Apertou o guardanapo encharcado no dedo, mas nem mesmo a dor do corte a distraiu diante da fabulosa parte final do show das ninfas. Sua indizível graça e suas vozes celestiais pareciam ter despertado nela emoções pungentes por muito tempo reprimidas.

Um desejo se agitou dentro dela. Um desejo por algo que ela nem sabia — ou podia — denominar.


O auxílio imortal se dá com um desejo sincero e ao som de um coração atormentado. Então esquece as dúvidas, dá voz à tua alma se existe algo que o teu coração almeja. E possa esse desejo sincero vir a ti como é esperado... Assim seja!


Desejo sincero...

Pamela suspirou. A única coisa que desejava no momento era não ter derramado o vinho nem ter cortado o dedo.

No instante em que sua mente formulou o pensamento, contudo, ela percebeu o quanto este era equivocado. Desejar algo tão trivial após aquela dança mágica era quase uma blasfêmia.

Apanhou a bolsa e procurou por um lenço a fim de embrulhar o dedo, enchendo-se de tristeza ao se dar conta de que seu desejo mais sincero fora apenas desfazer um acidente insignificante.

Mas decerto ainda tinha um coração. Não era possível que Duane o houvesse aniquilado!


Então esquece as dúvidas, dá voz à tua alma...


As palavras ecoaram dentro dela, em uníssono com a pulsação que sentia no dedo. Duane não podia ter arruinado todas as suas chances de viver um novo romance. Ela não permitiria.


E possa esse desejo sincero vir a ti como é esperado... Assim seja!


Num impulso, Pamela ergueu o queixo e olhou para o grupo de ninfas que sorria e fazia graciosas reverências de bailarina conforme a multidão irrompia em aplausos. Em seguida, deixou escapar em voz alta o pensamento que a assombrava desde sua conversa com Ve:

— Meu desejo sincero é que o estúpido do meu ex-marido não tenha sugado toda a minha capacidade de amar, ainda que eu tenha medo de que isso já tenha acontecido. Se puder me ajudar... — Fez uma pausa, tentando se lembrar do nome da deusa. Pedir ajuda a uma divindade feminina para ter um pouco de romance de volta na vida fazia mais sentido. Sentindo-se um pouco tola apesar dos aplausos da multidão abafarem suas palavras, Pamela continuou: — Pois bem. Ártemis, você bem que poderia me contemplar com um pouco mais de romance. — Em seguida, lembrando-se do sujeito horrível, com cara de gigolô, que usava uma corrente dourada, acrescentou: — E, Ártemis, estou meio cansada de homens que pensam que são deuses... Se quiser conceder o meu desejo, por favor, traga-me alguém que seja mesmo divino, para variar.


Capítulo 6


— Como isso foi acontecer?! — Ártemis exclamou após puxar o irmão, que continuava a fitar a cena, para um canto mais calmo. — A mortal completou a invocação!

Apolo acenou com um gesto de cabeça, entorpecido.

— E ela ainda usou o seu nome.

Ártemis quis estrangulá-lo.

— E acha que eu não sei?! Eu senti o chamado! — Estreitou os olhos, mirando ao redor. — Onde foi parar Baco, aquele rotundo infeliz? A culpa é toda dele! Sua estupidez causou isto; agora ele vai ter que ajudar a resolver essa confusão.

— Resolver como? — Apolo desviou o olhar para longe da mortal que acabara de obrigar uma antiga deusa a cumprir seu mais sincero desejo. — Não pretende fazer a concessão?

Ártemis abriu a boca para retorquir, mas a fechou em seguida. Seu irmão estava certo. Não havia como fugir daquilo. O vínculo fora forjado e cuidadosamente soldado no lugar. Podia sentir seu peso como uma algema de ferro.

— Está bem. Já aconteceu. Não há nada a fazer senão atender ao capricho da mortal e acabar logo com isso.

Apolo nada disse, os olhos se desviando da carranca da irmã de volta para a moça. Não conseguia parar de olhar para ela. A mortal envolvera o dedo ferido com um tecido leve, e ainda estava tentando, sem sucesso, limpar o vinho derramado. Decerto iria se cortar outra vez, ele pensou, e teve uma súbita vontade de correr até a mesa e cuidar dela.

Na verdade, deu um suspiro de alívio quando um servo se aproximou com um pano e limpou a sujeira depressa.

Viu a moça sorrir, tímida. Não tinha certeza, mas suas faces pareciam coradas demais. Era um rosto bonito, decidiu. Delicado e bem delineado. E as maçãs combinavam com seu formato de coração.

Sorriu. Que cabelo!... Teria execrado o fato de uma mulher ter cortado tanto os fios, mas nela as mechas curtas pareciam atraentes. Davam-lhe um ar enigmático e a faziam aparecer deliciosamente desgrenhada, como se ela tivesse acabado de deixar a cama de um amante.

Ártemis seguiu o olhar extasiado do irmão, e seus olhos afiados de deusa avaliaram a mortal, que parecia alheia ao que havia feito. Ela era pequena e se vestira de um modo até agradável apesar do ultrajante corte de cabelo. Não conseguiu definir sua idade. Parecia mais velha do que uma adolescente, porém bem mais jovem do que uma matrona. Era atraente, e a própria natureza de seu desejo provava que não se encontrava comprometida com homem algum.

A deusa sentiu uma pequena onda de alívio. Ao menos a mortal não lhe pedira que desse início a uma guerra, ou pior, que trouxesse paz para seu mundo. Tudo o que desejava era ter um romance com um deus.

Ártemis olhou para seu belo irmão, cuja expressão revelava, sem sombra de dúvida, que ele se interessara pela moça.

Sentiu seu alívio aumentar. Aquilo não podia ser tão difícil.

— Creio que eu esteja exagerando — falou, enfim. — A mortal quer apenas ser seduzida por um deus.

— Ela não disse que queria ser seduzida. Pediu apenas um pouco mais de romance em sua vida — Apolo corrigiu, os lábios curvados num leve sorriso, os olhos ainda fixos na moça.

— Com um homem que fosse divino. Você, meu querido irmão, é um deus. Então, o que está esperando? Decerto, não sou eu o que ela deseja... — Ártemis balançou a cabeça. Apolo nunca fora tão patético. — De qualquer forma, ela me obrigou a cumprir seu desejo, e você, Apolo, é o deus mais próximo de mim em todo o Olimpo. Isso é perfeito para que eu me livre deste problema ridículo.

— Provavelmente. — O sorriso dele se alargou.

— Claro que é — reforçou Ártemis, observando o sorriso presunçoso. Não era isso o que Apolo também desejava? Não estivera todo poético, comentando sobre Hades e sua amante mortal apenas alguns minutos antes?...

Pois agora teria a chance de experimentar o amor de uma mortal moderna. E uma que não estava apaixonada por outro deus.

Por um instante, Ártemis se perguntou se aquele incidente poderia ser mais do que uma simples coincidência.

Olhou ao redor, desconfiada. Zeus estaria tramando alguma coisa?

Não, concluiu, rejeitando o pensamento. Tinha sido ideia dela trazer o irmão para o Reino de Las Vegas a fim de animá-lo.

Pelo visto, seu impulso fora correto. Praticar uma velha e boa sedução com uma mortal poderia fazer milagres com o humor sombrio de Apolo.

Satisfeita, ela descansou a mão no ombro do irmão.

— Vá até lá e dê-lhe o romance que ela deseja. Leve-a para a cama, satisfaça seus desejos mais eróticos... Mas seja breve. É melhor que Zeus não fique sabendo dessa história. Você e eu podemos lidar com Baco sozinhos. E acho melhor não revelar quem é na verdade. Não seria nada bom se uma mortal saísse por aí, dizendo aos outros que conseguiu a ajuda de uma deusa para levar o deus Apolo para a cama.

Ele franziu a testa para a irmã.

— Claro que não.

— Ótimo. — Ártemis suspirou, esfregando as mãos como se tivesse acabado de concluir um trabalho bem-feito.

— E onde estará?

— Sem dúvida não será com você. — Ela sorriu e deu-lhe um pequeno soco de brincadeira. — Acho que vou tomar mais um daqueles deliciosos coquetéis de Martini, depois voltarei para o Olimpo. Eu o encontrarei lá amanhã, depois que a invocação tiver sido cumprida, assim poderá me dar um relatório completo. Depois decidimos o que fazer com Baco.

Ártemis empurrou o irmão de leve e o observou caminhar na direção da mortal que, involuntariamente, invocara o auxílio de uma deusa.

Ajeitou os cabelos, que já se encontravam impecáveis, sorrindo. Pela manhã, Apolo já deveria ter voltado ao seu normal.


— Se quiser conceder o meu desejo, por favor, traga-me alguém que seja mesmo divino para variar.

Mal terminou de falar, Pamela sentiu os pelos dos braços se arrepiando, como se ela houvesse levado um choque elétrico.

Nossa!...

Sorriu num pedido de desculpas ao garçom, que rapidamente limpou seu estrago. Ela tolerava vinho muito bem, mas, desta vez, sentia-se mais tonta do que o normal. Por sorte não precisaria dirigir.

— Vou lhe trazer outra taça, senhora — ofereceu o garçom. — E que tal um Band-Aid também? — completou ao ver o lenço que ela pusera em torno do dedo.

— Obrigada, seria ótimo — agradeceu Pamela, ignorando a própria vergonha.

O rapaz já havia se afastado quando ela pensou que devia ter pedido a ele que pusesse a rolha na garrafa, de modo que ela pudesse levá-la para o quarto. Seria a coisa mais sensata a fazer.

Brincou com o lenço. Não estava com vontade de agir com sensatez. Na verdade, além de estar um pouco corada e embriagada, sentia-se revigorada. Fora libertador admitir seu desejo em voz alta.

Ok, o vinho podia ter algo a ver com aquilo, mas gostava de pensar que existia alguma coisa a mais naquela situação. Ela reconhecera o que a consumira durante meses, talvez anos, por fim. De alguma forma, Duane a marcara como uma criatura quase assexuada. E agora que ela dera voz a seu medo, este não lhe parecia tão monstruoso. Fora como levantar à meia-noite para ver se o bicho-papão se encontrava dentro do armário. Assustador, claro, mas, depois que a porta fora aberta, o desfecho não havia sido assim tão ruim.

Precisava programar o seu “retorno”. Como diria Ve, ela necessitava se mostrar mais disponível e parar de pensar nos homens apenas como parceiros de negócio.

E não poderia fazer isso tampando a garrafa e correndo de volta para o quarto.

— Espero que não esteja doendo muito.

Pamela tirou os olhos do próprio dedo e seu olhar foi subindo, subindo... até encontrar olhos tão azuis que nem pareciam de verdade. E, Céus! , de que altura era aquela criatura? Seu irmão tinha um metro e oitenta e nove, mas aquele homem devia ter pelo menos dois centímetros a mais!

Seu olhar se ampliou, abrangendo os traços do rosto moreno, e todos os pensamentos a respeito de olhos azuis ou de seu irmão se desvaneceram. Que criatura era aquela? As linhas do rosto eram firmes, o queixo quadrado e forte. O cabelo, como ouro puro sob um sol de verão, além de espessos e cacheados. Ele era perfeito. Como se tivesse saído de uma propaganda de revista. Mas não daqueles anúncios pretensamente chiques e andróginos, em que as mulheres pareciam homens e os homens pareciam meninos. Era de uma beleza hollywoodiana, como Cary Grant ou Clark Gable. Só que era loiro e...

Seus pensamentos se fragmentaram quando Pamela percebeu o que mais estava vendo, e ela ficou mortificada ao ouvir uma risadinha escapar dos próprios lábios. Ele era loiro, lindo, e usava algo que parecia um traje de gladiador, o qual deixava muito pouco de seu incrível corpo para a imaginação.

Pamela sentiu o rosto se aquecer de novo, desta vez pelo susto, e depois por constrangimento.

— O quê? — indagou, tendo-se esquecido por completo do que ele dissera.

— Seu dedo — ele apontou para o apêndice envolto no lenço. — Eu vi quando o cortou. Espero que não esteja doendo muito.

Seu sorriso fez o estômago de Pamela se contrair. Covinhas! O homem tinha covinhas que emprestavam à sua beleza máscula um ar inusitadamente doce e infantil.

Era um homem alto, muito alto, com ar de menino e uma beleza de tirar o fôlego. Uma combinação letal.

— Ah, ahn... Sim... — Ela balançou a cabeça na tentativa de clarear as ideias. Maldição dos infernos , aquele vinho devia ser mesmo muito bom! — Quero dizer, não!... Não é nada. Apenas um corte à toa.

— Sabia que no Mundo Antigo as pessoas não acreditavam em acasos? Para elas, tudo o que acontecia possuía um propósito, um presságio, um significado; e o futuro podia ser previsto por meio de coisas tão simples como folhas de chá ou como fumaça subindo da fogueira de um ritual.

Pamela mal podia acreditar no que estava ouvindo. Sua mente voejava de pensamento em pensamento, os quais pareciam bolhas em um vendaval. Um homem como aquele podia engatar uma conversa interessante? E por que, diabos, estaria vestido daquela maneira? Não que não estivesse maravilhoso, mas qual é a razão daquela fantasia bizarra?

E quanto àquele sotaque que tornava sua voz profunda ainda mais sedutora, intrigante?... Parecia envolvê-la e deslizar por sua espinha como óleo aquecido.

Controle-se! , repreendeu a parte mais racional de seu cérebro. Componha-se, menina! Vestido de modo esquisito ou não, o homem é só para flertar!

Ela precisava parar de encará-lo feito uma turista embasbacada e falar de forma inteligível.

— Não, eu não sabia — respondeu no melhor estilo “vamos-fingir-que-estou-sóbria”. — Já faz muito tempo desde a minha última aula de Humanidades na faculdade... Confesso que a única matéria em que eu prestava atenção de verdade era História da Arte, que tratava sobre elementos da arquitetura antiga.

As palavras “elementos da arquitetura antiga” saíram vergonhosamente alteradas.

Oh, Deus! Ela estava arrastando a fala!... Parecia uma alcoólatra!

— Interessa-se por arquitetura antiga?

Ele pareceu surpreso e, mesmo em meio ao efeito do vinho, Pamela precisou conter a própria irritação. O fato de ser bonita não significava que era destituída de inteligência. Detestava aquele tipo de preconceito.

Mas, espere , pensou, enquanto estudava o lindo rosto à sua frente. Não fora isso mesmo o que ela acabara de pensar sobre ele ?

Ficou mortificada ao se lembrar de que ficara admirada ao ouvir um homem tão lindo dizendo algo inteligente e interessante. Quando adotara aquela postura de dois pesos e duas medidas? Na verdade, agora que já conseguia formular pensamentos mais coerentes, percebera que ele parecia satisfeito, não condescendente. Talvez não houvesse tido a intenção de insultá-la. Talvez ela estivesse sensível demais. Pois então ele não estava tentando entabular uma conversa educada? Parecia mesmo interessado em sua resposta. Talvez sua reação rude tivesse mais a ver com ela do que com ele, ou com os homens em geral.

E ela continuava falando bobagens, ainda que em pensamento!

Pamela limpou a garganta e sorriu.

— Sim, é verdade, mas me interesso por todo tipo de arquitetura. É uma parte importante do meu negócio.

— É arquiteta? — ele indagou.

Dessa vez, o choque em sua voz foi tão evidente que Pamela franziu a testa e estreitou os olhos.

— Não me diga que é um desses homens que acreditam que as mulheres devem ficar limitadas a certas condições... Por favor. Estamos na década de 2000, não nos anos cinquenta.

O claro aborrecimento em sua voz e o brilho frio e inteligente nos olhos claros fizeram Apolo se lembrar de Ártemis, e ele sentiu a surpresa se erigindo dentro dele. Já tinha conhecido inúmeras mortais, muitas das quais considerara belas e tentadoras, mas nenhuma jamais o fizera se lembrar de sua determinada, independente e franca irmã gêmea. Elas haviam estado ocupadas demais, adorando-o, para se importar em ser realmente interessantes.

Sorriu de lado. Tinha apenas começado a conversar com a mortal moderna, e ela já se provara uma agradável mudança.

Riu e balançou a cabeça.

— Eu não queria insultá-la. É que você é tão jovem... Todos os arquitetos que conheço são mais velhos; homens enrugados com barbas grisalhas. — Ele se inclinou para a frente e fingiu estudá-la. — Não estou vendo nenhum cabelo branco aí. Por isso a minha surpresa.

— Devo trazer outra taça, senhora? — O garçom perguntou, antes de lhe entregar um Band-Aid e colocar nova taça de vidro sobre a mesa, enchendo-a com cuidado.

— Eu ficaria muito honrado se me permitisse acompanhá-la. — O lindo estranho inclinou a cabeça numa mesura cavalheiresca que os homens deveriam executar diante das mulheres com regularidade.

O pequeno e antigo gesto fez o estômago dela se apertar. Não apenas isso, mas também o fato de a inegável beleza do estranho estar começando a compensar a bizarrice de seus trajes.

De qualquer maneira, por que não poderiam tomar uma bebida juntos? Ele decerto fora bem pago para se vestir daquele modo e entreter os turistas do Caesars Palace.

Pois bem. Iria pensar naquilo como uma ajuda para seu trabalho, o que, na verdade, era extremamente gentil da parte dela. Quem disse que o álcool inibia o pensamento racional? O seu continuava em perfeito estado.

Sorriu para o garçom.

— Sim, pode nos trazer mais uma taça.

O rapaz se afastou, apressado.

Pamela rasgou o invólucro do Band-Aid , mas, antes que pudesse colocá-lo no dedo, ele se inclinou e o tomou de sua mão.

— Espere, deixe-me ajudá-la.

Apolo envolveu o dedo delicado com o pequeno curativo e, conforme o fez, enviou através das mãos uma pequena porção de seu poder de cura para dentro dela.

Pamela piscou, surpresa com seu toque delicado.

— Obrigada. Já parece bem melhor. — Sorriu para ele, em seguida estendeu a mão com o dedo recém-tratado em sua direção. — Pamela Gray.

A hesitação do lindo desconhecido foi tão breve que apenas muito mais tarde ela a registrou.

— Febo — disse com um leve sorriso. — Febo Delos. — Ele aceitou o cumprimento e, mudando a forma de segurar sua mão, levou-a aos lábios.

Seus olhos se encontraram quando a boca macia lhe tocou a pele. Os dela arregalados pela surpresa, os dele, incrivelmente azuis.

Pamela percebeu um calor irradiando pelo corpo e sentiu a boca seca.

— Então ainda está vestido a caráter — falou, puxando a mão para passá-la pelo cabelo, sem saber que postura adotar.

— A caráter? — Ele pareceu confuso.

Ela apontou o dedo com o curativo para o traje que ele usava, inclinou a cabeça e permitiu que o olhar percorresse o corpo másculo em evidente avaliação. A túnica curta era feita do mais fino linho que já tinha visto — e olhe que ela conhecia tecidos caros! —, enfeitada com pesados bordados metálicos, e terminava em pregas que deixavam boa parte das pernas musculosas nuas. Sobre a túnica amarrada no ombro esquerdo, ele ostentava uma couraça ricamente decorada, que parecia ter sido feita com ouro forjado.

— É uma bela fantasia — comentou, batendo com o dedo no queixo. — Vamos ver... Se as dançarinas estavam representando ninfas, meu palpite é que deve estar fazendo o papel de algum deus.

Sorriu, maliciosa, ao perceber a ironia da situação. Ela não desejara um deus?

Pois, puf! , este aparecera em sua mesa, feito mágica. Um sonho em carne e osso.

Teve vontade de rir. Só mesmo em Las Vegas.

— Sua suposição está correta. — Apolo se inclinou para trás. Gostava de vê-la falar. Sem dúvida a moça bebera vinho demais, porém, em vez de pensar que ela era uma inconsequente, ele se viu intrigado. O rubor tornava seu semblante honesto ainda mais atraente. Seus olhos castanhos brilhavam num tom incomum de avelã que lembrava ricos e doces favos de mel. E os lábios... Havia todo um mundo novo ali, esperando para ser explorado.

Respirou fundo. Já podia imaginar aqueles lábios contra os seus. Ela devia ter gosto de vinho... e de mulher.

Tirou os olhos da boca carnuda e tentou se concentrar no que a moça dizia:

— Um deus, então. Bem, decerto você se encaixa no papel. Quero dizer, além da roupa, é ginorme . Tem tamanho suficiente para representar um deus. Perfeito.

Ginorme? Pelo menos ela parecia estar usando a palavra no bom sentido.

Apolo deixou o estranho elogio de lado, não querendo que a conversa seguisse naquela direção.

O garçom reapareceu e encheu seu copo. Tão logo este se afastou, ele o ergueu num brinde.

— A você, às coincidências e ao destino, Pamela.

— Quer dizer que acredita mesmo em coincidências ou destino?

— Creio que eu esteja começando a acreditar — concordou Apolo, sorrindo.


Capítulo 7


— Então me diga como é que se tornou a arquiteta mais bonita em que já pus os olhos — disse Apolo.

Pamela deu uma risada acompanhada de um soluço.

— Não devia ter descrito a minha concorrência como um bando de velhos se queria que eu me sentisse lisonjeada com esse comentário... Na verdade não sou arquiteta, ainda que ter conhecimentos sobre arquitetura seja uma parte importante do meu trabalho. Sou designer de interiores.

— Designer de interiores — Apolo repetiu o estranho título, procurando compreender o seu significado. O que ela poderia desenhar para interiores? Ele não fazia ideia.

E Apolo, o Deus da Luz, mestre da música, da cura, da verdade, e amante de inúmeras mortais, bem como de deusas, viu-se fazendo algo inédito em sua existência: precisou pensar em alguma coisa para dizer, a fim de não soar como um completo ignorante.

Deixou escapar a primeira pergunta que lhe veio à cabeça:

— Arquitetura é importante para um designer de interiores?

— Claro! — Pequenas rugas de expressão tornaram a marcá-la entre as sobrancelhas. — Para decorar um espaço adequadamente, o designer deve, em primeiro lugar, estudar a arquitetura do edifício. Não compreender a estrutura de uma construção seria o mesmo que um chef não saber como misturar os ingredientes para fazer um suflê. Além do mais, muitas vezes trabalho com os engenheiros e me envolvo no projeto desde a fundação até o momento em que os meus clientes vão para suas casas e dão uma festa de inauguração!

Apolo filtrou as estranhas informações e tentou se concentrar em conceitos que lhe eram mais familiares. O trabalho de Pamela parecia ser o de decorar as casas dos mortais. Talvez ela fosse como a irmã de Zeus, Héstia, Deusa do Lar. Mortais antigas costumavam invocar a ajuda de Héstia quando erigiam uma casa nova e, em muitas aldeias, as mulheres acendiam fogueiras dedicadas à deusa, pedindo por segurança e harmonia em seus lares.

— Então faz de uma casa um lugar agradável para se viver — ele concluiu, pensativo. — Deve ser um trabalho gratificante.

— Eu tento. — Pamela sorriu. — O que eu mais gosto é da ideia de possuir o meu próprio negócio. Gosto de dar as cartas. — Seu sorriso oscilou, e sua expressão tornou-se mais grave. — Decidi que é melhor estar no controle da minha vida do que viver sempre de acordo com as expectativas de outra pessoa.

Apolo acenou com a cabeça, absorto, pensando em como ele próprio começara a se sentir sufocado no papel que desempenhava havia eras. Era como se fosse visto eternamente como o grande Deus da Luz, e nunca como ele mesmo.

Encontrou os olhos de Pamela e se surpreendeu ao expor os pensamentos em voz alta.

— Invejo a sua independência. Sei muito bem o que é se ver limitado e ser controlado pelo que os outros esperam de você.

— É sufocante — Pamela completou baixinho.

— É mesmo.

Estudaram um ao outro enquanto bebericavam o vinho, surpresos por terem encontrado tal afinidade de modo tão fácil.

O sorriso de Pamela voltou.

— Verdade que, apesar de eu ter meu próprio negócio, alguns trabalhos me dão mais liberdade do que outros. Por exemplo, o que vim fazer em Las Vegas está mais para “outros”...

— Então não vive aqui, no Fórum?

— Quer dizer em Las Vegas? — ela concluiu de pronto. — De jeito nenhum. Esta é a minha primeira vez na cidade. Sou do Colorado. — Seu olhar irônico abrangeu a fonte e a área ao redor, e Pamela balançou a cabeça. — Manitou Springs é muito diferente de Vegas. E quanto a você? Não reconheço o seu sotaque, mas, obviamente, não é daqui.

Desejando ter mais tempo para fabricar respostas simples para perguntas, tais como quem ele era e de onde vinha, Apolo tomou outro gole de vinho enquanto buscava algo que Pamela pudesse considerar razoável.

— Não posso dizer que sou de um só lugar. Considero a Itália e a Grécia a minha casa.

Ao menos aquilo explicava seu nome incomum e o sotaque , Pamela pensou.

— Parece que temos mais em comum do que o nosso amor pela independência. Eu também sou novo em Las Vegas — ele acrescentou.

Era apenas um trecho da verdade. Suas duas visitas anteriores haviam sido breves e limitadas ao Caesars Palace. Nestas ele tinha apenas seguido o exemplo da irmã e fingido que se divertia.

— Então não costuma representar um deus?

O sorriso de Apolo foi lento e enigmático.

— Posso assegurar que nunca fingi ser um deus.

— Está falando sério? Como tudo isso aconteceu? — Pamela fez um gesto, abrangendo seu traje.

O sorriso de Apolo se alargou quando ele optou pela verdade.

— Responsabilidade da minha irmã. Ela disse que eu andava sério demais, por isso, como um favor a ela, vim para Las Vegas. É essa a razão do que está vendo à sua frente.

A risada de Pamela encantou Apolo. Não era tão melodiosa como a de uma deusa se divertindo, mas era cheia de uma alegria terrena que lhe trazia à lembrança imagens de noites quentes e pernas entrelaçadas...

— Agora, sim, está fazendo sentido. Eu também tenho um irmão. É um bombeiro durão , que nunca me deixa esquecer da época em que eu o convenci a usar uma fantasia do Star-Belly Sneetch — aquele pássaro amarelo, com uma estrela na barriga — e ler as histórias do dr. Seuss para as crianças de uma pré-escola local. Como eu podia imaginar que a mídia ia ficar sabendo e tirar uma foto dele saindo do caminhão de bombeiros com a fantasia? — Ao se lembrar, Pamela riu tanto que quase se engasgou. — Os amigos dele ampliaram a foto, mandaram fazer um pôster, e o afixaram em todas as estações. Às vezes eu ainda o chamo de “Estrela na Barriga”. Não sei se isso é coisa de irmã ou inimiga. — Ela gargalhou do minitributo rimado que fizera sem querer ao dr. Seuss .

Apolo não fazia ideia do que Pamela estava falando, porém seu riso foi tão contagiante que, quando ela se engasgou de verdade, teve um desejo súbito e irracional de se inclinar sobre a mesa e beijar seu adorável nariz.

— Por isso compreendo muito bem as condições que uma irmã pode impor ao irmão. — Ela enxugou os olhos e respirou fundo. Precisava ir mais devagar com aquele vinho. — O que faz quando sua irmã não o está torturando?

Apolo considerou e descartou várias respostas antes de responder.

— Faço muitas coisas, mas gosto de pensar que sou predominantemente uma espécie de curandeiro e músico.

Um médico que cantava? Assim como um caubói que cantava?

Risadinhas ameaçaram brotar do peito de Pamela mais uma vez, e ela as afogou em um gole de vinho, o que não colaborou em nada para mantê-la mais sóbria.

— Que tipo de curandeiro? — perguntou, quando teve a certeza de que podia falar sem cair de novo numa gargalhada.

— Um excelente curandeiro, acredito eu — ele afirmou, surpreso com a pergunta.

Ainda rindo, Pamela balançou a cabeça.

— Acho que temos uma falha de tradução aqui, e isto... — ela bateu uma unha contra a taça de vinho quase vazia — ... não está ajudando em nada.

— Talvez queira caminhar comigo. — Apolo se agarrou à oportunidade de mudar o rumo da conversa. — Tomar um pouco de ar noturno seria uma excelente maneira de clarear as ideias.

— Mas ainda não é noite. — Ela apontou para o céu eternamente claro do Fórum, travessa.

Ele se inclinou para a frente.

— Numa terra como esta não podemos imaginar que seja? — Em uma carícia tão suave que Pamela sentiu mais o calor do que a pressão do toque, Apolo passou um dedo pela mão delicada.

Foi apenas um breve encontro de peles, porém o gesto pequeno e íntimo pareceu atraí-la como um ímã. O mundo em torno deles esmaeceu, e Pamela mergulhou nos olhos azuis. Ele era tão escandalosamente lindo! , pensou, inundada por uma sensação que levou vários segundos para identificar.

Desejo!... Havia quanto tempo que não sentia o calor do desejo por um homem?

Anos. Fazia anos! E ela tinha apenas trinta anos de idade. Era como se tivesse se deixado secar, envelhecer sem paixão.

Não mais, decidiu, soltando a respiração de uma só vez.

— Está bem. Vou dar um passeio com você — declarou, resoluta. — Está hospedado no Caesars Palace? Posso esperar aqui enquanto muda de roupa.

— Não, eu... — Apolo se inquietou, mas, graças aos nove Titãs, conseguiu uma desculpa plausível. — Estou com a minha irmã.

— Ah. — Mais uma vez, Pamela franziu a testa para o traje que ele usava. — Bem, imagino que não precise se trocar.

Estava ali algo que ele compreendia com perfeição. As palavras de Pamela diziam uma coisa, mas sua linguagem corporal dizia outra. Mulheres mortais e deusas tinham essa forma de comunicação em comum.

Olhou ao redor do Fórum. Mortais modernos se vestiam de modo tão estranho!... Como ele não se dera conta antes de não estar bem trajado? Aquelas estátuas malfeitas eram as únicas coisas por ali vestidas como ele.

De repente, concluiu, chocado, que devia estar parecendo um bufão para Pamela. E um bufão dificilmente conseguia seduzir alguém, o que ele precisava fazer para lhe conceder seu desejo e romper o feitiço que a invocação forjara.

Bem lá no fundo, uma voz sussurrou que havia muito mais envolvido naquilo do que a conclusão de uma simples invocação; que ele gostaria de que Pamela o levasse a sério por uma razão muito diferente.

E o pensamento foi um tanto intrigante. O que ele poderia fazer a respeito?

Seus olhos se arregalaram quando a resposta para o dilema surgiu por fim.

— Vou comprar uma roupa.

Surpresa, Pamela torceu os lábios em um sorriso.

— Assim, sem mais nem menos?

— Claro! Não estamos cercados por lojas?

Ela levantou as sobrancelhas e assentiu.

— De fato.

Apolo se levantou, e então percebeu que precisava fazer algo que nunca tinha feito. Até aquele momento, o Deus da Luz nunca necessitara pedir que uma mulher — mortal ou imortal — aguardasse por ele.

Tocou as costas da mão de Pamela com carinho.

— Eu não vou demorar muito. Você se importaria em esperar?

Pamela levou algum tempo para responder, um sorriso maroto brincando na deliciosa boca. Correu um dedo em torno da borda da taça de cristal, e seus olhos encontraram os dele.

— Acho que não. Se não for por muito tempo.

Apolo sorriu e avançou alguns passos. Parou, franziu a testa e voltou para a mesa.

— Que loja sugere? — perguntou em voz baixa.

— Bem... — ela começou, baixando o tom para combinar com o dele — ... Sorte sua eu ser uma especialista em compras. Tenho uma cabeça ótima em se tratando de alta-costura. — Piscou, pensativa. — Parece que há uma Armani bem ali, depois daquela esquina. — Apontou para a direita.

— Então eu vou para a Armani. — Ele segurou sua mão e a levou aos lábios. — ??t ’?? , ?????a ’ Pamela — falou contra a pele macia. Virou-se e se afastou, dobrando a esquina.

Tão logo ele se foi, Pamela correu para o banheiro das mulheres e telefonou, apressada, para Ve.

— Por favor, diga que está telefonando porque acaba de tirar a sorte grande! — exclamou a outra, em vez de dizer “olá”.

— Ah, meu Deus! Acho que sim. Mas não estou falando de dinheiro.

— Está falando sério?! Está mesmo esquisita! Espere, deixe eu me sentar... Se me disser que está ficando com algum gato , vou desmaiar!

— Não estou ficando , só estou flertando! — Pamela pronunciou a palavra como uma oração e, em seguida, caiu na risada a ponto de deixar escapar um soluço.

— Está é bêbada! — constatou Ve.

— Bêbada, não. Só “alegre”.

— Ah, meu bom Deus!...

— É isso mesmo o que ele parece!... Ve, você não vai acreditar! Eu estava limpando o vinho que derramei... Aliás, cortei o dedo na taça quebrada e doeu à beça! O engraçado é que até falei em voz alta: “Quero um pouco de romance em minha vida!...” — Pamela articulou as palavras lenta e distintamente antes de continuar a tagarelar: — E, de repente, lá estava ele, vestido com uma espécie de deus grego! Mas isso foi por causa da irmã... Você sabe, como fiz com Richard e a fantasia de Star-Belly Sneetch . De qualquer forma, ficamos conversando e, tão logo ele comprar umas roupas, nós... Está preparada?... Vamos sair juntos!

— Ahn... Pammy? — Ve começou. — Onde está agora?

— No banheiro das mulheres.

— E ele?

— Foi comprar umas roupas, ora!

— Está bem. Escute-me. Tente ficar sóbria. Ele pode ser algum louco — ponderou a amiga dela.

— Ele não é louco! É médico e também canta.

— A falta de sexo danificou seu cérebro?! Está falando como uma louca! — Ve teve vontade de alcançá-la através do telefone e chacoalhá-la.

— Não é tão estranho quanto parece — Pamela replicou, mordendo o lábio. — Ve, eu gostei dele. Ele me faz sentir de novo. Temos uma conexão estranha... Eu sei que parece loucura, mas há uma espécie de centelha entre nós. É como se nos entendêssemos perfeitamente.

Vernelle abriu e fechou a boca. Então reprimiu a ladainha de alertas que passavam por sua cabeça.

— Pammy, isso é maravilhoso.

— Quer dizer que não estou sendo idiota?

— Não, boneca. Está sendo jovem e solteira. Não há nada de errado com isso — assegurou a outra mulher. — Saia para uma caminhada com o trípode e namore tanto quanto puder. Mas chega de vinho por esta noite, está bem?

— Eu já parei de beber.

— Ótimo. E use um preservativo.

— Vernelle! Não vou fazer sexo com ele!

— Pamela! — Ve imitou o tom chocado da amiga. — Aqui vai uma notícia: se quiser fazer sexo com ele, você pode! O que eu quero é um relatório completo amanhã. Bye-bye , Pammy!

Pamela estava mexendo no Band-Aid quando Febo dobrou a esquina. No mesmo momento, ela ergueu o olhar, e uma emoção líquida e quente correu por seu corpo, indo parar bem no meio de suas coxas. Em seu traje de deus, ele já estivera lindo e exótico de uma forma quase inacreditável — como um ator por quem se podia ficar apaixonada durante um filme. Em roupas normais, Febo não era menos estonteante. E agora parecia de verdade, não mais tão inatingível. Era um sonho se tornando realidade. Usava calças Armani de linho creme que abraçavam a cintura e os quadris estreitos, e um pulôver de lã de seda do mesmo azul incrível de seus olhos.

Olhos que se fixaram nos dela enquanto ele se aproximava.

Parou ao lado do banco em que ela estava e, por um momento, não disse nada. Em seguida, puxou a camisa, nervoso, e passou as palmas na frente das calças. Sorriu, inseguro, o que deixou Pamela perplexa. Como alguém que parecia um deus grego podia se preocupar com a própria aparência?

O silêncio se estendeu entre eles, e Apolo mexeu no colarinho da camisa. Estava realmente nervoso, o que era adorável.

— Gosta da minha roupa nova? — perguntou por fim.

— Você parece um anúncio ambulante de Armani.

— E isso é bom ou ruim?

— Bom. Muito bom... O que fez com a outra roupa?

A preocupação no semblante moreno se desfez.

— Deixei-a com o servo de Armani. Vou buscá-la mais tarde. E então?... Vamos andar? — Ofereceu o braço como se ela fosse uma princesa.

Ou talvez uma deusa , Pamela pensou enquanto observava seu perfil.

Colocou o braço no dele e deslizou para fora do banco. E pôde jurar que cada nervo em seu braço nu ganhara vida onde ele a tocava.

— O servo da loja de Armani me disse que se deixarmos o Caesars Palace, virarmos à direita e atravessarmos a rua, chegaremos a um conjunto de magníficas fontes dançantes.

— As fontes do Bellagio! Já ouvi falar delas, mas nunca as vi.

— Ele disse que não ficam muito longe. — Apolo ergueu as sobrancelhas e a fitou, ansioso.

Que diabo ele esperava que ela fizesse? , pensou Pamela. Claro que ela queria ir com ele, mas... Olhou para o relógio. Seria seguro ir a pé até as fontes do Bellagio quase às onze da noite? Verdade que, no ritmo de Las Vegas, aquela hora devia ser como a hora do rush em qualquer outro lugar. As ruas deviam estar cheias de gente entrando e saindo dos cassinos. Não deveria haver nenhum problema.

Pamela respirou fundo. Não queria cometer o desatino de levar uma vida estúpida como a de muitas mulheres.

Por outro lado, também não queria ser picotada por um lindo e insano assassino em série, e ter um trágico episódio do CSI baseado em suas últimas horas!

— Pamela — ele soltou seu braço a fim de tomá-la pelas mãos —, não precisa ficar com medo de mim. — Seus olhos se encontraram, e Apolo pôde ver a indecisão nos dela. Doía pensar que ela não confiava nele. Se Pamela soubesse quem ele era!...

Pôs o pensamento de lado rapidamente. Se ela soubesse quem ele era, também ficaria sabendo de seu passado e como ele havia seduzido e descartado inúmeras mortais. Se Pamela soubesse a verdade, decerto se afastaria dele. E ele não poderia culpá-la por isso.

Mas ela não sabia quem ele era; pensava que ele fosse um simples curandeiro mortal. Não tinha nenhuma razão para se esquivar dele.

Cerrou o maxilar, decidido. Desta vez, ele queria que as coisas fossem diferentes. Desta vez, seria diferente. Ele cuidaria para que fosse assim.

Apolo falou antes que pudesse se conter:

— Eu nunca machucaria você, nem permitiria que alguém lhe causasse alguma dor. S?? d?’?? t?? ó??? µ??.

As palavras estranhas permaneceram no ar em torno deles e, por um momento, Pamela imaginou vê-los envoltos em uma luz dourada e brilhante.

Piscou, e a imagem se dissipou como fumaça.

— O que disse? — inquiriu, confusa.

— Eu disse que lhe dou minha palavra. Deve saber que em minha terra natal um juramento é algo sagrado, quebrado apenas por uma pessoa que não tem honra.

As palavras a tocaram, porém, mais do que isso, Febo a tocara. Seu fascínio era inegável, contudo ela sentia-se atraída por mais do que apenas a beleza de seu corpo. Havia algo nele que mexia com ela, algo que podia reconhecer.

Sentiu o coração disparar no peito ao perceber o que era: estava se vendo nele. Em seus olhos, podia enxergar o eco de uma emoção que carregara dentro de si por anos, um desejo por algo mais que não conseguia encontrar.

— Por que não está envolvido com alguma bela mulher em vez de estar aqui, pedindo a uma estranha que passeie com você?

O sorriso de Apolo foi como o amanhecer rompendo a escuridão da noite.

— Estou com uma bela mulher. Estou com você.

Pamela suspirou e passou o braço pelo dele.

— Se é assim, acho que não tenho escolha senão ir até as fontes na sua companhia.

— Tem, sim — ele contrapôs, começando a andar. — Mas não creio que qualquer outra preferência seja tão sábia.

— Só para saber... vou cobrar esse seu juramento.

Ele sorriu para ela.

— Nem precisa.


Capítulo 8


De braços dados, Pamela e Apolo atravessaram a área de lojas do Fórum rumo à entrada principal do Caesars Palace. Conforme caminhavam, ela não pôde deixar de notar os olhares que Febo recebia. Eram totalmente, nauseantemente, óbvios. As mulheres não conseguiam manter os olhos longe dele!

Mas também notou outra coisa: Febo não deu atenção a nenhuma delas. Não correspondia a nenhum de seus sorrisos. Seus olhos não lançavam olhares “acidentais” aqui e ali.

O que ele fazia era andar devagar, combinando suas passadas largas com as dela — as quais eram bem mais curtas — e se manter atento a tudo o que ela dizia. Suas respostas eram espirituosas, bem como interessantes.

E Febo se interessava por vitrines! Sem ser coagido, enganado ou subornado. Parecia estar se divertindo de verdade.

O pensamento foi suficiente para deixá-la mais sóbria. Ou talvez ela estivesse mesmo bêbada e continuasse na Adega Perdida, largada sobre o banco, pateticamente desmaiada sobre uma poça úmida de baba...

Não. Aquilo era uma aliteração. Não podia estar tendo alucinações.

Febo seria gay ?

Olhou para ele, fixou o olhar em seus fabulosos olhos azuis, e abriu um sorriso sexy . Ele o devolveu de pronto e com um calor que não negava sua heterossexualidade.

Não. Febo não era gay de jeito nenhum.

Então, o que havia de errado com ele? Tinha que haver alguma coisa.

— Você é casado? — perguntou de repente.

As sobrancelhas douradas se reuniram conforme ele franziu a testa.

— Não. Nunca fui casado.

— E não mora com nenhuma namorada ou algo assim?

— Não.

— Está mesmo descompromissado...?

— Estou — ele respondeu com firmeza.

Bem, ao menos naquele ponto estava tudo bem. Pelo menos em teoria.

Sem qualquer insistência sua, Febo parou diante de uma loja chamada Jay Strongwater , especializada em porta-retratos incrustados com pedras.

— É um trabalho excelente — comentou, pensativo. — O artesão tem um talento extraordinário.

— São lindos, mesmo. — Pamela espiou a vitrine e conseguiu enxergar o reflexo do preço de uma das menores molduras. — Quatrocentos e cinquenta dólares! Para um porta-retrato desse tamanho?... Já não sei se eles são tão bonitos.

Apolo se virou para ela e a tocou sob o queixo com suavidade, erguendo-lhe o rosto.

— Pois eu acho que certas imagens são dignas de tais molduras.

Ao vê-lo olhar para ela com tanta intensidade (como ela podia ter imaginado que ele era gay ?...), Pamela começou a tremer como se estivesse de volta aos tempos de escola e Febo fosse seu namorado. Decerto ela não admitiria algo tão ridículo em voz alta, mas isso não tornava a situação menos verdadeira. Estavam tão perto que podia sentir seu cheiro: um misto do homem e da seda pura da camisa, além de outra coisa... algo tão sutil quanto sedutor, que a fez se lembrar de calor. Um sol quente em uma praia clara, onde corpos nus se entrelaçavam sem inibição e...

Pamela riu de modo exagerado, esquivando-se do toque, e se pôs a andar novamente.

— Febo, você é um romântico. — Ela correu os dedos pelos cabelos, tentando acalmar as batidas do coração.

Os olhos claros brilharam quando ele sorriu para ela.

— Que bom.

Pamela deu-lhe um olhar avaliador.

— Muitos homens não apreciariam ser chamados assim. Não é “macho” o suficiente...

— Na maioria das vezes os homens são uns tolos.

— Eu não poderia concordar mais! — ela falou, surpresa.

Apolo riu, gostando da honestidade.

— Já deve saber que eu não sou como a maioria. E também que tenho toda a intenção de conquistá-la.

— Ah — Pamela tartamudeou, sem saber como responder à declaração.

Apolo riu outra vez. Balançou a cabeça, porém nada disse.

Em vez disso, continuou a observá-la. Suas palavras a tinham perturbado, e ele gostou de ver como as faces de Pamela haviam assumido um tom rosado. O cabelo curto fazia seu pescoço parecer mais delgado; um convite ao toque de seus lábios. O estilo do vestido que ela usava era tão estranho para ele quanto o de sua própria roupa, mas ele também gostava do corte feminino e lisonjeiro, do decote profundo em forma de gota que revelava parte dos seios arredondados. Pamela era pequena, mas uma mulher em todo o sentido da palavra. Suas pernas eram longas e bem-torneadas... Como ela conseguia se equilibrar sobre aqueles sapatos perigosos, que eram pouco mais do que tiras de tecido ligadas a um pino?

Por mais estranho que fossem, entretanto, ele adorava a maneira como faziam suas panturrilhas se estender e flexionar, e o traseiro bem-feito balançar sedutoramente conforme ela caminhava a seu lado.

Pamela pôde senti-lo olhando para ela, e isso fez suas já agitadas entranhas se transformarem em uma verdadeira máquina de pinball . No que Febo estaria reparando? Deus, ele é bonito demais!... E cheira tão bem que dá vontade de comer. Será que está me achando gorda? Por favor, faça que ele não seja um serial-killer!

Seus pensamentos giravam em um turbilhão. O que havia naquele homem que a fazia se sentir como se cada uma de suas terminações nervosas tivesse ganhado vida?

Mas talvez não fosse por causa de Febo. Talvez ela mesma estivesse desacostumada a ter a companhia de um homem.

Não seja estúpida , disse a si mesma. Nunca tivera problemas para namorar antes de Duane. E era a mesma pessoa; apenas mais velha e mais sábia. Pelo menos em teoria.

Parou na frente de uma joalheria Fred Leighton, onde belíssimos brincos de diamante, em forma de pingente, eram exibidos diante de espelhos chanfrados. Avistou o reflexo dos olhos dele no espelho. Tudo o que tinha a fazer era parar de analisar demais a situação. Estava tornando as coisas muito mais difíceis do que deveriam ser.

O olhar firme de Febo capturou o dela e, mais uma vez, Pamela sentiu a conexão sem palavras que brotava entre eles. Respirou profundamente, tentando relaxar.

— Quando jurou que eu estaria a salvo com você, que idioma usou? — inquiriu, curiosa.

— O Grego.

— É a única outra língua que fala?

Febo balançou a cabeça e hesitou antes de responder.

— Tenho dom para as línguas. Falo várias.

— Verdade?... Eu não falo outra língua. Exceto por minha capacidade limitada de pedir dip de queijo, molho extra-apimentado e cerveja em espanhol! Na verdade, o que eu finjo falar é mais um espanglês . — Em resposta ao olhar de dúvida de Febo ela sorriu e explicou: — espanglês : uma péssima mistura de espanhol e inglês. Eu sou um fiasco em idiomas. Invejo quem é poliglota.

O comentário fez Apolo se sentir pouco à vontade. Seu “dom” com as línguas não era nada de especial. Ao menos não para o Deus da Luz. Afinal, ele era um dos Doze Imortais; nenhuma das linguagens do homem lhe era desconhecida.

— Sou mais fluente em Grego e Latim — ele emendou depressa.

— E o que foi que me disse antes de ir até a Armani? Aquilo também era Grego?

— Sim, era Grego. Eu disse: “Até breve, doce Pamela”. — Apolo sorriu. Amava como os olhos castanho-claros refletiam a luz facetada dos diamantes. — Sabia que, em Grego, o seu nome significa exatamente isso? Tudo o que é doce? Pan quer dizer “tudo”, e meli é “doce”, como mel, ou o néctar de uma flor.

Ela desviou o olhar dos espelhos a fim de encará-lo.

— Eu não fazia ideia. Sempre pensei que o meu nome fosse comum.

— É tudo menos isso, Pamela .

Quando Febo pronunciou o nome dela, seu sotaque o fez soar misterioso e muito bonito. Claro que ele não poderia fazer que a palavra “excremento” soasse como uma sedução... Mas ela adorou saber que o que pensara ser tão sem-graça a vida toda significava algo tão bom.

— E quanto ao seu nome? O que significa Febo?

— Significa “luz”.

Pamela fitou o cabelo brilhante e os olhos que pareciam mais azuis do que um céu de verão.

— Luz — repetiu num murmúrio. — Combina com você.

— Agora eu tenho uma pergunta — ele falou, mudando de assunto com facilidade. — O que significa a palavra “ginorme”?

A pequena explosão de riso de Pamela fez sua boca parecer ainda mais convidativa.

— Ginorme é uma palavra que minha amiga Ve e eu gostamos de usar. Mas não creio que vá encontrá-la em algum dicionário... É uma mistura de “gigantesco” com “enorme”. Assim como gimenso : gigantesco com imenso.

— Da mesma forma que misturaram Espanhol e Inglês para formar Espanglês .

— Isso mesmo. — Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— Então ginorme significa “maior do que grande”... — ele concluiu enquanto ambos se lembravam de que assim ela o descrevera.

— Exato! — Pamela sorriu, travessa.

Bem, havia mesmo algo nele que ia além de sua altura, e que parecia torná-lo ainda maior.

Febo era decididamente ginorme .

Um dos inúmeros porteiros abriu as portas de vidro, e eles deixaram o Caesars Palace. Já estava escuro, claro, mas a noite lá fora fervilhava com luz, sons e emoção.

Apolo e Pamela estacaram, impressionados com os arredores. Toda a fachada do Palace estava repleta de portentosas fontes jorrando, iluminadas como boias de luz voltadas para os Céus. Limusines imensas despejavam casais bem-vestidos na entrada, e manobristas uniformizados corriam de um lado para o outro como ratos de libré.

— Ga??? ‘t? ! — Apolo praguejou baixinho, chocado em ver automóveis pela primeira vez. Zeus tinha insistido para que, antes de deixar qualquer um dos imortais passar através do portal, Baco lhes explicasse detalhes sobre o transporte moderno, bem como sobre a utilização da moeda local, da eletricidade e de um sistema de comunicação extraordinário chamado internet, de modo que ele, Apolo, fora capaz de identificar a loucura à sua frente.

Entretanto, ver que os veículos monstruosos se movimentavam como se tivessem vida, ainda que fossem desprovidos desta, e que a noite quente de primavera se encontrava feericamente iluminada por meio de energia elétrica aproveitada, era muito mais avassalador do que ele poderia ter imaginado.

Concentrou-se em uma das visões bizarras que lhe eram mais familiares, as fontes, e se lembrou de que era um deus olímpico, um dos Doze Imortais originais. E que poderia dizimar tudo ao redor com um só pensamento.

Uma daquelas coisas negras e brilhantes derrapou até parar, e outra monstruosidade se pôs à sua frente. Apolo se moveu num salto, colocando-se entre Pamela e as criaturas de metal, e passando-a do braço esquerdo para o direito.

— Eu sei o que está pensando — Pamela falou baixinho.

Ele a encarou, surpreso. Sabia que ela não podia ler seus pensamentos, mas a menor possibilidade de Pamela desconfiar do que se passava em sua cabeça era alarmante.

— Nem precisa falar — ela prosseguiu, os olhos brilhando, zombeteiros. — Pensou que essa fonte era ginorme .

Apolo torceu para que seu alívio não fosse por demais óbvio.

— Infelizmente, está errada — ele devolveu no mesmo tom de brincadeira. — Pensei apenas que ela era gimensa .

— Isso porque está confuso quanto ao uso correto do termo. Gimenso não é tão grande quanto ginorme , portanto, ginorme é a palavra mais adequada para descrever esta... — Pamela hesitou de propósito, lançando um olhar de desprezo sobre toda a extensão da fachada do Palace — ... esta “fonte”.

Apolo assentiu com um gesto de cabeça, aceitando sua derrota com elegância.

— Ponto para você. Uma monstruosidade dessas só pode ser ginorme .

— Então eu não estava tão errada...?

— Como pode uma pessoa tão linda estar errada? — Apolo sorriu, satisfeito. Em se tratando de mulheres, estava longe de ser um tolo em qualquer mundo.

— Posso chamar um táxi para o senhor e sua linda senhora? — indagou um dos carregadores.

O “Não!” de Apolo foi dito com mais ênfase do que ele pretendia. Mas a noite naquele mundo era tão cheia de luzes e sons que o raio que atravessou o céu em resposta à sua voz passou despercebido, o que o deixou feliz.

O Deus da Luz se esforçou para controlar o próprio tom:

— Não — repetiu com mais calma. — A senhora e eu preferimos caminhar.

— As fontes do Bellagio não ficam muito longe daqui, ficam? — Pamela quis saber.

— Não, senhora — concordou o rapaz e apontou. — Sigam pela calçada até o nível da rua, virem à direita, atravessem a rua seguinte, e estarão lá. Não pode deixar de fazer esse passeio.

— Obrigada. — Ela apertou o braço de Febo de leve. — Pronto?

Apolo não estava pronto coisa nenhuma. Preferia enfrentar a poderosa serpente Píton novamente, sozinho, nas cavernas negras do Parnaso, a sair para aquela noite estranha. Mas a mulher delicada em seu braço caminhou adiante com a confiança de Hércules.

Ele cerrou o maxilar e a acompanhou, colocando todos os sentidos em alerta máximo.

— É tão quente aqui!... Muito diferente do Colorado. Apesar de estarmos em maio, tivemos uma primavera muito fria; tanto que nevou de novo na última semana. — Pamela inclinou a cabeça para trás e abriu o braço que não segurava o dele. Rindo, respirou fundo, amando o calor do deserto que ainda pairava no ar. — Não percebi o quanto eu estava sentindo falta da primavera até chegar aqui.

Apolo resmungou uma resposta, o olhar abrangendo a mulher encantadora a seu lado, os veículos que aceleravam na rua cheia de gente, os sinais enormes que brilhavam e os edifícios que se avultavam sobre eles, muitos dos quais continham imagens coloridas em constante movimento. Precisava verificar se Zeus ordenara às ninfas que ficassem dentro dos limites do Caesars Palace. Como pequenas e belas mariposas, estas ficariam extasiadas com todas aquelas luzes brilhantes caso se aventurassem ali fora. Detestava pensar na cena que as semideidades causariam ficando inebriadas com tanta luz e som.

— Cuidado! — a voz de Pamela o trouxe de volta para o Mundo Moderno, ao mesmo tempo que ela a puxava com força. — Caramba, essa foi por pouco!... Eu estava tão distraída que nem me dei conta da rua, e esse tráfego é terrível. É melhor esperarmos pelo sinal.

Estavam parados na esquina de uma rua que fervilhava com automóveis, e Apolo percebeu que, se não fosse por Pamela, ele teria saído para o meio deles. Claro que aquelas coisas de metal não iriam lhe fazer mal, mas não queria nem tentar explicar a ela por que jamais seria estraçalhado por um deles. Distrair-se no Reino de Las Vegas não era algo muito inteligente no seu caso.

— O show das fontes deve ser ali — Pamela concluiu, apontando para as luzes que emanavam de uma massa de água do outro lado da rua.

Ele estreitou os olhos, fitando o fluxo de veículos e gente.

— Não estou vendo fonte nenhuma.

À sua frente, um pequeno círculo vermelho de luz mudou para verde, e as pessoas ao redor se agitaram. Apolo hesitou, mas, quando Pamela desceu com segurança para a rua, ele a acompanhou, atento a qualquer veículo que pudesse cruzar seu caminho.

— As fontes só devem permanecer ligadas durante o show. Aposto que ali podemos obter algumas informações. — Ela o conduziu a um pequeno posto. Lendo um aviso, balançou a cabeça. — É isso mesmo, há shows a cada quinze minutos. — Olhou para o relógio. — São onze e vinte e cinco, então ainda temos cinco minutos.

Apolo tratou de esquecer as distrações ao redor e se concentrou na linda mulher que devia estar cortejando.

— Gostaria de caminhar, ou prefere se sentar e esperar que as fontes comecem a jorrar? — Apontou para um dos vários bancos de mármore espalhados pelo calçadão que contornava o lago artificial.

— Sem dúvida, caminhar — ela respondeu, e eles recomeçaram a passear devagar ao longo da barragem.

Após um pequeno trecho de sociável silêncio, Pamela se manifestou:

— Este lugar é uma estranha mistura do brega com o refinado, não acha?

Apolo queria dizer que ela não fazia ideia do quanto Las Vegas lhe parecia estranha, mas relaxou ao perceber que, obviamente, Pamela também considerava os arredores incomuns.

— Eu não poderia concordar mais.

— Veja bem... — Ela apontou para o outro lado da rua. — Não há nada ali a não ser uma armadilha atrás da outra dizendo: “Venham gastar o seu dinheiro aqui!”... Mas aqui é diferente. — Ela parou e se encostou ao parapeito de mármore branco que imitava uma antiga balaustrada italiana, e que separava o gigantesco espelho de água da calçada. — Deste lado, a rua foi construída de modo a nos fazer crer que estamos caminhando por um passeio europeu. As luzes não são anúncios de néon, mas adoráveis postes antigos, intercalados por lindas arvorezinhas. E aquele lugar ali... — olhou as lojas e os restaurantes do Bellagio, do outro lado da água — ... me lembra uma elegante aldeia toscana. Eu sei que foi tudo planejado, mas essa farsa funciona. Como designer tenho que aplaudir tal representação.

Algo em seu tom atraiu o olhar de Apolo, e ele ficou surpreso ao descobrir uma ponta de tristeza no rosto delicado. Fora aquela inesperada melancolia que se espelhara na voz de Pamela. Até então, ela parecia feliz — mesmo que ainda um pouco embriagada — e aproveitando a noite e a conversa.

O que acontecera afinal?

— Uma representação é assim, tão ruim?

— Não muito — ela replicou, ainda olhando para a água. — É que, às vezes, me pergunto se as coisas são mesmo o que parecem.

Apolo sabia: Pamela estava falando de muito mais do que apenas arquitetura e iluminação pública. Quis confortá-la, dizer que ela não precisava ficar tão triste. Mas como poderia? Ele mesmo não era o que aparentava.

Ou era?

Naquele momento, sentiu-se como um homem comum, que não queria nada mais do que fazer uma linda mulher sorrir.

— Às vezes as coisas são muito mais do que aparentam. Melhores do que parecem no início.

Ela se virou para fitá-lo e se viu presa no azul inacreditável de seus olhos.

— Eu gostaria que isso fosse verdade, mas, segundo a minha experiência, as coisas não costumam ser melhores do que aparentam. Normalmente acontece o contrário.

— Talvez porque ainda não tenha tido o tipo certo de experiência — ele sussurrou, passando os dedos por seu rosto de leve, depois pela lateral macia do pescoço esguio.

Pamela sentiu o peito se apertar. Apolo se inclinou e roçou os lábios nos dela, na breve e suave sugestão de um beijo.

E, quando as bocas se tocaram, as fontes ganharam vida.

 


C O N T I N U A

— Tomei uma decisão, Baco. O portal permanecerá aberto — falou Zeus, dando as costas para o deus corpulento e descansando as mãos no parapeito de mármore liso que emoldurava a varanda. Olhou para o Salão Nobre de Banquetes do Olimpo. A magnífica sala se encontrava repleta de jovens deuses e deusas.

Sorriu, satisfeito. Os imortais eram incomparáveis em sua beleza e, quando se reuniam, como naquela noite, seu fascínio era mais resplandecente do que todas as estrelas dos Céus.

Ficou sério, então. Não importava o quanto o exterior dos deuses fosse perfeito; ele fora forçado aos poucos a admitir para si mesmo que havia algo faltando naquele grupo.

Faltava-lhes o sublime toque mortal da humanidade.

O Governante Supremo dos Deuses se entregou, por um momento, a uma lembrança um tanto encantadora: Egina. Ela fora a mais linda das donzelas, e sua pele, de uma maciez mortal e sedutora. Ainda podia sentir sua suavidade quando ela se agarrara voluntariamente às suas costas emplumadas, no instante em que ele se transformara em uma poderosa águia e a carregara para longe, a fim de fazer amor com ela.

Não, seu corpo não tinha a perfeição dourada de uma deusa. Egina, porém, correspondera ao seu toque com uma ingenuidade e, ao mesmo tempo, com uma exuberância a que jamais nenhuma deusa poderia se igualar. — “Exuberância”! — Zeus deu um tapa no parapeito da sacada e, em resposta, um trovão ribombou no céu. — É isso o que falta aos nossos jovens imortais.

Ele não se virou para Baco. Em vez disso, seu olhar vagou sem descanso pela fascinante multidão.

Estreitou os olhos escuros, pensativo. O que Hera havia dito mesmo?...

Eles tomam por certos os dons de seu poder imortal. Precisam passar algum tempo longe do Mundo Antigo. Em algum lugar em que não sejam idolatrados e adorados.

Tinha que admitir: Hera podia estar certa, embora, muitas vezes, ele houvesse tido motivos para desejar que os poderes de observação de sua esposa fossem menos precisos.

Fez uma careta, querendo esquecer o olhar sábio e penetrante que sempre parecia lhe enxergar a alma.

— Eles já se entediaram o bastante aqui no Olimpo. Já passou da hora de eles se misturarem aos mortais modernos — decidiu de repente.

Baco tentou ocultar a irritação na voz.

— Mas eu sou o único imortal que sempre mostrou interesse pelo Mundo Moderno. Por que insiste que eles se juntem ao meu reino?

Zeus olhou para Baco por cima do ombro.

— Deméter e Perséfone visitaram o Mundo Moderno dos mortais recentemente e, como me disse a Deusa da Colheita, Perséfone se tornou tão ligada a um reino conhecido como Tulsa que fez um trato com uma mortal, de modo a poder retornar sempre para lá.

Baco respirou fundo e tentou não se encolher sob o olhar do Deus do Trovão.

— Então por que não abrir o portal do Reino de Tulsa?

Zeus balançou a cabeça, voltando a contemplar o salão abarrotado. Sua conversa com Deméter o havia convencido de que Tulsa não era um lugar onde jovens deuses e deusas pudessem ir e vir sem ser notados.

— Não, Baco. Pensei muito a respeito. Tenho pesquisado o Mundo Mortal Moderno. Las Vegas é o lugar perfeito para eles; ainda mais com a recreação oferecida pelo Caesars Palace e o Fórum. — Zeus riu ao se lembrar das futilidades que vislumbrara por meio do portal.

— Mas Las Vegas é o meu reino! Sabe muito bem quanto tempo levei para deixar o Caesars Palace e o Fórum ao meu gosto. Eles estarão circulando por uma parte do mundo que escolhi para mim.

Zeus virou a cabeça, os olhos chispando.

— Não acha que é presunção demais? Esqueceu-se de que sou o governante supremo entre os deuses? — Um trovão ecoou ameaçadoramente.

Baco inclinou a cabeça, aflito.

— Perdoe-me, senhor.

— Cuidado, Baco. Não se esqueça de que posso tirar tudo o que lhe dei. — Ele fulminou o outro deus com o olhar antes de voltar a se concentrar na multidão. — Olhe para eles. O portal lhes foi aberto apenas por algum tempo, mas já sinto uma mudança. Até mesmo as ninfas ficaram mais alegres. — Fez uma pausa, franzindo a testa ao se lembrar de que muitas das encantadoras semideidades haviam decidido se transformar em estrelas, flores e árvores porque tinham ficado entediadas com suas vidas.

— Exuberância. É isso o que falta ao Olimpo. E é isso o que Las Vegas avivou em nós mais uma vez.

— Mas, senhor... — Baco disfarçou sua crescente raiva e imprimiu à voz um tom preocupado e paternal. — O senhor sabe o que acontece quando deuses e deusas se envolvem demais na vida dos mortais. Pense em Helena de Troia. Lembre-se de Medeia e Jasão. Considere o que aconteceu com Héracles e Aquiles. Está disposto a condenar o mundo dos mortais modernos ao caos e ao sofrimento?

— Não preciso de sermões vindos de tipos como você, Baco. — Zeus manteve a voz controlada, contudo o aviso foi claro. Em seguida, mudando de humor como uma tempestade de primavera clareando as montanhas, sorriu: — Mas eu já pensei nisso também. Impus certas... restrições ao lugar — pronunciou a palavra com cuidado, os olhos brilhando —, as quais eu pretendo anunciar esta noite. Meus filhos serão apenas agradáveis visitantes, desfrutando uma merecida temporada no Reino de Las Vegas. — Moveu a cabeça, de modo que Baco pudesse ver seu majestoso perfil. — Esta discussão está terminada. Minha vontade prevalecerá.

Baco não teve escolha senão se curvar e retirar-se respeitosamente da varanda.

Sua cabeça fervilhava, entretanto. Mais uma vez suas necessidades haviam sido ignoradas, enquanto Zeus beneficiava seus protegidos.

Las Vegas era sua! Todos o adoravam lá. No Fórum, ele comandava a atenção de uma multidão de mortais todos os dias, que o saudavam e adoravam.

E agora tinha que compartilhar seu reino com os queridinhos e queridinhas do Olimpo?

— Veremos — resmungou por entre os dentes, enquanto a voz de Zeus trovejava na sacada, pedindo silêncio no Salão Nobre de Banquetes.

— Bem amados filhos! — Zeus sorriu para o grupo. — Agrada-me muito que tenham apreciado meu último presente. — Esticou os braços, as palmas abertas em direção aos dois pilares que se erigiam no centro do salão, entre os quais um disco opaco de luz tremeluzia e rodopiava. — Esta noite tenho outras novidades para anunciar. Decidi que o portal poderá ser aberto para as nossas adoráveis legiões de ninfas, bem como para os jovens Olímpicos!

As exclamações de alegria de divindades e semidivindades do sexo feminino soaram como música para Zeus.

— Mas lembrem-se, meus amores, estarão entrando em um mundo que não está habituado a ter deuses como nós entre eles. Não irão se intrometer nos assuntos mortais; apenas observar e se deliciar com um lugar único. Para que não fiquem tentados a se esquecer de que estão lá apenas de passagem, decidi que o portal será aberto por períodos limitados.

Os fascinantes rostos lá embaixo permaneceram com os olhos fixos nele, atentos.

Zeus procurou na multidão até encontrar Deméter regiamente postada ao lado da filha, e inclinou a cabeça em reconhecimento à deusa antes de continuar.

— A Deusa da Colheita me informou que os mortais modernos costumam desfrutar mais durante os dias que eles chamam de “fim de semana”. Portanto, será durante o fim de semana mortal que o nosso portal irá se abrir. Terão desde o anoitecer de sexta-feira ao amanhecer de segunda-feira para se divertir com os mortais modernos.

Com um pequeno gesto, Zeus silenciou o entusiasmado burburinho provocado por suas palavras.

— E agora, eu lhes dou o Reino de Las Vegas! — O Deus do Trovão bateu palmas, e a multidão festejou quando o céu rugiu em resposta.

Lá embaixo, no Salão de Banquetes, Ártemis riu e balançou a cabeça para Zeus com carinho antes de voltar a atenção para o irmão.

— Papai, sem dúvida, está bastante satisfeito.

Apolo encolheu os ombros.

— Não entendo por que tanta excitação. Trata-se apenas do Mundo moderno dos mortais, não de um novo Olimpo.

Ártemis ergueu a sobrancelha dourada e perfeita.

— Isso dito pelo deus que passou meses espionando uma mortal moderna no Reino de Tulsa...?

— Eu só estava fazendo um favor a Deméter — ele respondeu com demasiada indiferença.

Ártemis nada mais disse, porém estudou o irmão gêmeo enquanto ele flertava, sem muito entusiasmo, com uma ninfa de cabelos trançados com violetas, a qual parou de falar, animada, sobre visitar o Reino de Las Vegas.

Não havia dúvida: Apolo vinha se comportando de modo muito estranho desde seu fracasso com Perséfone.

Tomou um gole do vinho vermelho, lembrando-se de como o irmão ficara surpreso com a súbita rejeição da deusa e com a estranha paixão de Perséfone por Hades. E a surpresa se transformara em choque quando Apolo descobrira que a alma que habitara por algum tempo o corpo da diva era a de uma mortal, e que a própria Perséfone se fizera passar por mortal no mundo moderno. Portanto, uma mortal o rejeitara e caíra de amores pelo Deus do Submundo.

Os adoráveis lábios de Ártemis se curvaram em um sorriso de escárnio. Mortais... Pelo que conhecia deles, ou estes viviam choramingando, patéticos, necessitando de cuidados constantes, ou eram tão arrogantes que se autodestruíam. No fim, só serviam para diversão ou flerte.

Não que ela jamais fosse querer se divertir com algum deles. Contudo seu irmão pensava diferente. Muitas vezes Apolo tinha rido e partilhado com ela histórias sobre seus casos com alguma jovem donzela.

Ártemis tomou outro gole da taça. Era bom para um mortal ser agraciado com o amor de um deus. Mulheres mortais deviam agradecer por ser notadas por uma divindade como seu irmão gêmeo.

A ninfa tagarela havia ido embora, e Apolo contemplava em silêncio o portal que girava. Talvez fosse isso!, concluiu Ártemis. Seu irmão precisava de diversão. Ele já passara tempo demais sem fazer nada no Olimpo, meditando sobre a rejeição daquela mortal imbecil. Precisava se lembrar de que mortais eram seres fracos, que viviam suas vidas frenéticas em um piscar de olhos. E que podiam ser facilmente manipulados, assim como postos de lado mais tarde.

Um sorriso lento se espalhou por seu rosto perfeito. Que melhor lugar haveria, para que ele se conscientizasse da insignificância dos mortais, do que aquele Mundo Moderno repleto de criaturas?

— Venha, meu irmão — instigou com um sorriso jovial. — Vamos visitar o Reino de Las Vegas.

 


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Capítulo 1


Deus , ela adorava aeroportos!... Eles a faziam se lembrar de amor, de emoção e da promessa de novos começos. Não pela primeira vez, Pamela pensou que aquela profunda paixão por aeroportos era que havia alimentado seu relacionamento com Duane.

Um só vislumbre dele em seu uniforme de piloto da United Airlines, e toda a razão a abandonara, junto com aquele seu ridículo suspiro de prazer feminino.

Que idiota ela fora!...

Mas aquele fiasco de relacionamento tinha acabado. Até que enfim.

Pamela fechou os olhos e passou os dedos por seu novo corte de cabelo curto e chique, desejando ter encontrado com Duane em algum lugar do aeroporto de Colorado Springs antes de embarcar no jato da Southwest Airlines. Teria gostado de ver sua expressão horrorizada quando ele percebesse que ela cortara o cabelo pesado e escuro, o qual costumava lhe bater na cintura. O cabelo que ele tivera tanto prazer em tocar, acariciar e...

Estremeceu com a lembrança. Só de pensar naquilo sentia-se sufocada. Livrar-se da enorme cabeleira fora seu último passo para se libertar dos grilhões do amor de Duane. Fazia seis felizes meses desde que falara com ele pela última vez. Após muito tempo recusando seus presentes, enviando de volta suas flores e lembrando-o de que aquele casamento só fizera mal a ambos, o fim do relacionamento havia chegado por fim, para grande desgosto de sua família, que acreditava que Duane era perfeito para ela, e que ela fora uma tola em tê-lo deixado. Ainda podia ouvir o irmão, a cunhada e os pais dizendo: Ele não é tão ruim assim. Duane lhe dá qualquer coisa que queira! Ele ganha muito dinheiro e adora você...

Duane não apenas a adorara. Ele quisera consumi-la. Aparentemente, Duane Edwards era um homem bem-sucedido, bonito, um pouco machista e muito carismático. Mas, sob a superfície, onde o verdadeiro Duane existia, ocultava-se um menino-homem carente, controlador, indiferente e agressivo.

Pamela girou os ombros, tentando aliviar a tensão que pensar em Duane lhe causava. Pensando bem, estava feliz por não tê-lo encontrado no aeroporto. Não cortara o cabelo apenas a fim de exibi-lo para ele! Cortara-o porque era isso o que ela queria. O corte combinava com a nova mulher em que estava se tornando, e gostava dela. Uma mulher satisfeita , concluiu Pamela. Descansou a cabeça no encosto do banco, e seus lábios se curvaram.

Não se sentia tão satisfeita consigo havia anos. Não se importava nem mesmo em estar encolhida no assento da janela do jato da Southwest Airlines, sendo cutucada pelo cotovelo duro de uma mulher que lutava para dar conta de uma página de palavras cruzadas do New York Times cheirando a cigarro.

Por que diabo alguém precisava resolver palavras cruzadas de modo tão obsessivo? Aquela criatura não tinha nada melhor para fazer?

A sra. Cotovelo Ossudo riu e preencheu outra lacuna. Pelo visto, não, decidiu Pamela.

Não! Nada de pensamentos negativos. Profecias autorrealizáveis são muito perigosas. Pensamentos negativos geram energia negativa.

Agora estava parecendo sua mãe, que Deus a ajudasse!

Suspirou e apoiou a testa na janela do avião.

Ok, iria começar de novo. Não permitiria que a senhora sentada ao lado a incomodasse porque era um desperdício de tempo, assim como lidar com o negativo.

Inferno , quem era ela para julgar?

Olhou para o livro em seu colo. Ele permanecera aberto na mesma página durante o voo inteiro. O que vinha fazendo com a própria mente? Em vez de ler o delicioso The Stone Prince, de Gena Showalter, havia perdido tempo pensando em seu horrível “ex”.

Ela era melhor do que aquilo. E tinha trabalhado muito para se transformar no que era.

Pamela desviou a atenção para a vista do lado de fora da janela, decidida. O deserto era uma mistura bizarra de rudeza e beleza, e ela se viu admirada ao perceber que o considerava atraente. Ao menos voando a vários milhares de pés acima deste. Era tão diferente do verde exuberante de sua casa no Colorado!... Mas, ainda assim, fascinante.

Em uma manobra, o avião abaixou uma asa, e Pamela prendeu a respiração diante de seu primeiro vislumbre de Las Vegas. Lá, bem no meio do deserto e da areia, da extensão de terra vermelha e desfiladeiros, avistou uma cidade feita de vidro, luz e estradas que serpenteavam e que, poderia apostar até mesmo dali de cima, se encontravam entupidas de carros apressados.

— Parece um sonho — murmurou para si mesma.

— Parece mesmo! Não é maravilhosa? — A sra. Cotovelo Ossudo disse com a voz rouca de quem tragara Virginia Slim Menthol Extra Long em excesso.

Pamela reprimiu a irritação.

— É mesmo incomum. Claro que eu sabia que Vegas tinha sido construída no meio do deserto, mas...

— É a sua primeira vez na Cidade do Pecado?

— Sim.

— Ah, menina! Então está prestes a ter a melhor experiência da sua vida! — A mulher se inclinou em sua direção e baixou a voz. — E lembre-se: o que acontece em Vegas, fica em Vegas.

— Ah, bem, eu não estou aqui por lazer. Vim a negócios.

— Ora, uma mocinha linda como você pode muito bem misturar ambas as coisas. — Ela balançou as sobrancelhas feitas a lápis significativamente.

Pamela apertou o maxilar. Detestava quando as pessoas a tratavam com condescendência só porque ela era atraente. Trabalhava muito para ser bem-sucedida; e também não era nenhuma “mocinha”!

— Talvez eu pudesse se não possuísse o meu próprio negócio e não me importasse caso os meus clientes não recomendassem o meu trabalho a outros... mas me importo. Estou aqui por motivos profissionais, não para me divertir.

O olhar surpreso de sua companheira de assento pousou nos brincos de diamantes de Pamela — um quilate cada — e no corte impecável do tailleur Fendi off-white, cuja aparência clássica era quebrada por um lenço de seda nas cores melão e tangerina.

Pamela leu os pensamentos da mulher e teve vontade de gritar: Não, nenhum homem me comprou esta roupa, droga!

— Trabalha no quê, querida?

— Sou dona da Ruby Slipper, uma empresa de decoração de interiores.

O rosto enrugado da velha senhora suavizou com um sorriso e, de repente, Pamela percebeu que ela devia ter sido muito bonita.

— Ruby Slipper... Gostei. Parece interessante. E aposto que é boa no que faz. Só de olhar para você, posso afirmar que tem classe. Uma característica, aliás, que não tem muito a ver com Vegas. O que veio fazer aqui?

— Meu mais novo cliente é escritor, e está construindo uma casa de veraneio em Las Vegas. Fui contratada para decorá-la.

— Um autor. — A mulher moveu as longas unhas vermelhas diante de Pamela. — Parece coisa grande. Quem é? Talvez eu tenha ouvido falar dele.

— E. D. Faust. Escreve ficção.

Pamela só sabia disso porque o procurara às pressas no amazon.com durante o primeiro telefonema que haviam trocado. O homem se autoproclamara “E. D. Faust, autor de best-sellers ”. Ela não fazia ideia de quem ele era, mas, quando digitara o nome na caixa de pesquisa do amazon , a tela ficara repleta de páginas e páginas de títulos, como “Pilares da Espada”, “O Templo dos Guerreiros”, “Ventos Nus”, “A Fé dos Condenados”... e assim por diante. Naquele momento, ele ganhara sua real atenção, ainda que ela não fosse exatamente fã de homens autores de ficção. Lia um pouco de tudo, portanto até experimentara alguns dos gigantes do gênero, mas era como se todos eles fossem muito parecidos. Espadas, magia, naves espaciais, sangue, testosterona... blá... blá... (bocejo).

Mas não era nenhuma estúpida. Longe disso. E uma de suas primeiras regras era nunca, jamais dizer coisas negativas a respeito de um cliente.

Assim, colocou um sorriso brilhante no rosto e assentiu em resposta à expressão vazia de sua parceira de viagem, como se E. D. Faust fosse Nora Roberts.

— Seu lançamento mais recente é “Pilares da Espada”, mas Faust publicou mais de cinquenta livros, e a maior parte deles aparece nas principais listas de best-sellers .

— Nunca ouvi falar dele, até porque gosto mais de um jogo de palavras cruzadas do que qualquer coisa! — A mulher riu de novo. — A menos que seja um homem bem alto, de chapéu de caubói; ou uma cerveja gelada. — Deu uma cotovelada em Pamela enquanto soltava uma risada forçada.

Pamela se viu surpresa ao sorrir de volta. Havia algo honesto e verdadeiro na velha senhora que fez seu rosto enrugado e seus modos rudes até mesmo atraentes.

— Pamela Gray — disse, estendendo a mão.

— Billie Mae Johnson. — A mulher retribuiu o cumprimento com um aperto firme e um sorriso caloroso. — Prazer em conhecê-la. Se precisar de uma cara amiga ou de uma cerveja gelada, vá ao Flamingo. Normalmente estou trabalhando no bar do piso principal.

— Olhe que eu posso levar isso a sério...

A aeromoça anunciou que eles iriam aterrissar, e Pamela colocou o assento na posição vertical. Billie Mae balançou a cabeça e resmungou para as lacunas nas palavras cruzadas, cuja maioria continuava vazia.

— Esses metidos do New York Times enfiaram estas palavras cruzadas no nariz quando começaram a deixar esses advogados divorciados do Texas escrevê-las. — Suspirou e se concentrou em uma das questões antes de olhar de soslaio para Pamela. — Ei, a dica idiota aqui é “emancipação metafórica”, e a resposta tem dezessete letras. Tudo o que consigo imaginar é Budweiser , mas esta tem nove!

— Foi um advogado ou uma advogada que criou essas palavras cruzadas?

— Um advogado.

— Tente “pensão alimentícia” — arriscou Pamela, sorrindo, maliciosa.

Billie Mae preencheu as letras com um grunhido de satisfação, depois piscou para ela enquanto o avião pousava.

— Acabou de ganhar uma cerveja. Espero que seja tão boa em decoração como é em palavras cruzadas!


Pamela se aproximou do homem uniformizado que segurava uma placa onde se lia “Pamela Gray, Ruby Slipper” em alto-relevo dourado. Antes que pudesse falar, o homem fez uma breve mesura e perguntou com um sotaque britânico:

— Srta. Gray?

— Sim, sou Pamela Gray.

— Muito bem, senhora. Levarei sua bagagem. Por favor, queira me acompanhar.

Ela o fez, e teve que correr para seguir o ritmo acelerado do sujeito conforme este cruzava o aeroporto lotado com destreza até o lado de fora, onde uma limusine os aguardava. Pamela fez menção de parar e deixar cair o queixo quando ele abriu a porta do belo Rolls-Royce vintage , contudo deslizou para o assento de couro cor de creme com graça, agradecendo antes que ele fechasse a porta.

— Que satisfação em conhecê-la, srta. Gray — uma voz grave ribombou do outro lado da limusine.

Pamela deu um salto. Saindo das sombras, um homem se inclinou para a frente, estendendo-lhe a mão enorme. Conforme ela a aceitou instantaneamente, os lustres de cristal pendurados de ambos os lados do automóvel se acenderam.

— Sou E. D. Faust, claro, mas pode me chamar de Eddie.

Recuperando a compostura, ela sorriu, educada, e devolveu o cumprimento firme. Sua primeira impressão de E. D. Faust foi a de que ele era gigante.

Assim que ele a contratara, ela havia ido até a livraria mais próxima e comprado vários de seus romances, de modo a se familiarizar com o autor. Mas as fotos na parte de trás dos livros não capturavam o real tamanho do homem. Faust preenchia o espaço à sua frente, fazendo-a se lembrar de Orson Welles, ou de um envelhecido Marlon Brando.

E ele era... escuro. Na linha em forma de “V” na testa, o cabelo era grosso e negro, amarrado para trás em um rabo de cavalo baixo. A camisa de seda de manga longa também era preta, assim como as calças largas e as botas de couro brilhantes.

Embora disfarçadas por camadas de gordura, as linhas fortes de seu rosto eram ainda evidentes, e sua idade, indeterminada. O homem devia estar entre os trinta e os cinquenta, mas Pamela não tinha muita certeza.

Faust observou seu estudo, e seus olhos castanhos brilharam quase com travessura, como se ele estivesse acostumado a ser o centro das atenções e gostasse disso.

— É bom conhecê-lo enfim, Eddie. E, por favor, pode me chamar de Pamela.

— Pamela, então. — Ele bateu a cabeça de dragão da bengala preta no painel de vidro semifechado que dividia a área de passageiros da limusine do chofer. — Podemos ir, Robert.

— Muito bem, senhor.

A limusine elegante se afastou do meio-fio.

— Espero que a viagem não a tenha cansado muito, Pamela.

— Não, foi apenas um voo curto de Colorado Springs.

— Quer dizer que não se oporia a começar seu trabalho agora mesmo?

— Não, de maneira alguma. Já tomou uma decisão quanto ao estilo que gostaria de adotar na casa? — Pamela quis saber, ansiosa. Se aquele carro fosse uma amostra do bom gosto de Eddie e de seu orçamento...

Sentiu a cabeça girar com as possibilidades. Que vitrine não seria! Ela criaria um verdadeiro paraíso de veraneio para o Rei da Ficção.

— Com certeza. Sei exatamente o que desejo e o encontrei aqui, nesta cidade mágica. Tudo o que precisa fazer é copiá-lo. — Eddie bateu na janela outra vez. — Robert, leve-nos ao Caesars Palace.


Capítulo 2


— Caesars Palace? Mas isso não é um cassino?

As dobras no rosto de Eddie plissaram ainda mais conforme ele sorriu.

— Por isso mesmo é perfeita para este trabalho, Pamela. Nunca esteve em Las Vegas, assim verá tudo com novos olhos. Olhos que podem apreciar e captar a atmosfera única que eu desejo para a minha casa. E tem razão. O Caesars Palace é um cassino, assim como um hotel. Na verdade, a não ser por alguns dos detalhes da piscina, que desejo reproduzir, não é no Palace que eu quero que concentre sua atenção, e sim no shopping maravilhoso anexado a este. O Fórum tem a magia que eu desejo.

— É um centro comercial? — Ela teria ouvido bem? Por que Faust haveria de querer uma casa de veraneio — ou qualquer casa — em um lugar que se assemelhava a um shopping center?

— Você vai ver, minha querida, você vai ver... — Eddie apontou o dedo grosso para um balde de prata cheio de gelo, onde havia várias garrafas. — Gostaria de se refrescar com champanhe ou Pellegrino ?

— Pellegrino , por favor. — Pamela teve a impressão de que precisaria estar com as ideias bem claras para o que estava por vir.

Uma casa de veraneio parecida com um shopping! Aquilo, sim, era um pedido estranho.

Não que pedidos estranhos de clientes a desanimassem. Desde que montara a Ruby Slipper, três anos antes, uma das coisas que ela mais amava em sua própria empresa de decoração era a liberdade para cultivar clientes exclusivos e ajudá-los a transformar seus sonhos em casas confortáveis e de bom gosto.

Enquanto Eddie servia a água em um copo de cristal, Pamela pensou na primeira cliente da Ruby Slipper, Samantha Smith-Siddons. A srta. Smith-Siddons, antes sra. Smith-Siddons, queria redecorar por completo os setecentos e quarenta e três metros quadrados de sua casa após ter flagrado o sr. Smith-Siddons fazendo sexo com a assistente de vinte e um anos. Infelizmente, para o sr. Smith-Siddons, ele vestia lingerie feminina, scarpins de salto vermelhos e uma peruca loira, fato que seus muitos clientes (o sr. Smith-Siddons era proprietário da maior cadeia de funerárias do Colorado) teriam considerado um tanto perturbador se este houvesse se tornado público em meio a seu conturbado divórcio.

Mas o gosto único do sr. Smith-Siddons por lingerie feminina não fora divulgado, e a sra. Smith-Siddons recebera um prêmio considerável por seu diplomático silêncio. Ao contratar a Ruby Slipper, a mulher lhe explicara que não toleraria nenhuma cor, exceto algumas nuanças de branco, pois queria começar de novo e usar a pureza dessa cor para tentar neutralizar a mancha que se derramara sobre seu casamento.

Sem se incomodar com a bizarra restrição, ela, Pamela, se concentrara em texturas em vez de em cores. Tinha usado pisos de madeira de um branco envelhecido, objetos e adornos requintados, seguindo a mesma linha, bem como um pouco de tons rosé , perolados e estanho, mesclados a branco-neve, champanhe e cor de luar. O resultado final fora tão espetacular que a Ruby Slipper ganhara seu primeiro artigo completo na Architectural Digest.

E se ela conseguira transformar a residência sem-graça, quase estéril, da sra. Samantha Smith-Siddons em uma obra de arte, decerto poderia fazer o mesmo com a de Eddie.

— Devo lhe dizer mais uma vez, Pamela, como fiquei impressionado com o trabalho primoroso que fez no boudoir de Judith. — Ele riu, e seu corpanzil vibrou como uma massa gelatinosa. — O Nascimento de Vênus , sem dúvida. Eu jamais acreditaria que a ideia de decoração extravagante de Judith ficaria tão encantadora. Charles diz que nem está se importando em dormir em uma cama que parece uma concha gigante, rodeada por tons pastéis e femininos. Toda vez que Judith sai daquela banheira espetacular, ele não consegue evitar... acredita que está dormindo com uma deusa.

— Foi uma loucura, mas deu muito certo. — Pamela tomou um gole da água gaseificada, pensando que seu maior desafio fora amenizar um estilo de decoração que Judith imaginava ter o glamour de Hollywood quando, na realidade, era típico de um bordel e um tanto brega . Judith queria algo chamativo, e ela, Pamela, conseguira criar um ambiente opulento, porém de bom gosto. Charles e Judith Lollman haviam ficado tão satisfeitos com seu trabalho que tinham organizado uma enorme festa para exibir sua nova suíte. Charles Lollman não apenas produzia alguns dos shows mais bem-sucedidos do horário nobre da TV, como também era um fanático por ficção — inclusive a científica. E um dos muitos que convidara para a soirée fora o autor de best-sellers , E. D. Faust.

Pamela sorriu. O telefonema de Eddie fora o primeiro de vários que haviam acontecido com as indicações, após seu bem-sucedido trabalho.

— Um desafio — Eddie pronunciou a frase sem pressa. — Gosta de desafios, Pamela?

Ela endireitou os ombros e devolveu o olhar firme.

— Os desafios tornam a vida bem mais interessante — observou, sorridente.

— Resposta correta. — O sorriso de Eddie de repente lembrou o do dr. Grinch Seuss.

— Perdão, senhor. — A voz erudita de Robert chegou até eles. — Devo levá-los para a frente do Palace ou prefere a entrada VIP para o Fórum?

— A do Fórum, Robert. E telefone para James. Diga a ele que nos encontre em frente à fonte.

— Muito bem, senhor.

Eddie checou seu Rolex dourado.

— Excelente. Vamos chegar bem na hora. Quero que obtenha pleno efeito.

Pamela pensou em perguntar o que ele queria dizer com “pleno efeito”, mas, conforme dobraram a esquina, Eddie apontou e prosseguiu:

— Parece simples demais quando nos aproximamos por este ângulo, mas reservei uma suíte para você no Palace até o próximo fim de semana, de modo a lhe dar tempo de sobra para absorver a atmosfera. Naturalmente vai querer explorar a entrada principal a seu bel-prazer, bem como o cassino e o shopping.

Pamela piscou, surpresa. Eddie queria que ela ficasse uma semana inteira ali, apenas para fazer pesquisas em um shopping center? Mas ela estava bem no meio de vários outros projetos! Sua assistente poderia lidar com eles sozinha?

Antes que pudesse expressar suas objeções, contudo, Eddie fez um gesto de desdém.

— Compreendo que seu tempo é valioso. — Ele enfiou a mão num bolso fundo e tirou um maço de notas. Contou várias e as entregou a ela. — Quinhentos dólares por dia é o bastante para compensá-la pelo tempo extra que este desafio de decoração vai exigir?

Pamela queria gritar Caramba, claro que é! , mas, em vez disso, enfiou o dinheiro no fundo da bolsa e abriu um sorriso calmo e profissional. Quando tivesse um minuto sozinha, a primeira coisa que iria fazer era telefonar para a assistente. Vernelle teria um ataque cardíaco quando soubesse que aquele trabalho estava superando todas as suas expectativas.

E, juntas, ela e a assistente tinham excelente imaginação.

— Obrigada, Eddie. Isso deve cobrir as despesas que terei por ficar longe do meu estúdio por uma semana.

A limusine parou suavemente, e Robert abriu a porta para ajudá-la a descer. Pamela estudou a frente do edifício enorme enquanto Eddie arrastava o corpanzil para fora do carro. A fachada do Fórum era simples: um enorme bloco de mármore branco, com colunas incrustadas formando a maior parte da decoração. Nada mal , pensou. E até mesmo de bom gosto. Se aquilo era uma indicação do interior do shopping, ela poderia esperar um estilo clean , amplo e elegante.

Desafio? Teve vontade de rir em voz alta. Como Vernelle diria, aquele trabalho seria tão simples como vender boás para os gays !

— O Fórum é por aqui. — Eddie abriu o caminho através de uma porta branca dupla, movendo-se com absurda agilidade para seu tamanho. — Adoro esta entrada — explicou, conforme caminhavam por um corredor totalmente branco, que parecia pertencer a um enorme depósito de móveis. — Eu sempre tenho essa impressão. Gosto de imaginar que estou deixando um mundo e entrando em outro. — Sua risada era profunda e contagiante. — Mas isso porque, talvez, eu mesmo crie outros mundos como meio de vida. Então me diga, Pamela... — Seus olhos brilhavam quando ele abriu uma porta corta-fogo comum e fez uma mesura, indicando que ela deveria precedê-lo. — Eis o Fórum!

Santa Mãe de Deus! , foi o primeiro pensamento de Pamela.

O segundo foi que ela precisava fechar a boca.

De repente, viu-se apanhada em um vórtice de som e imagens. Pessoas lotavam o que fora construído para se parecer com as ruas de Roma. “Parecer”, mesmo porque aquilo tudo era cafona demais. Ela e Eddie tinham emergido em meio às lojas Versace e Escada, cujos nomes reluziam em letras douradas, imitando a antiga Roma. Mas, em vez de evocar a elegância do Mundo Antigo, lembravam uma caricatura dos desenhos animados. Era como se alguém tivesse desenhado a história e a arquitetura com lápis de cera.

— Espetacular, não? — comentou Eddie com sua voz grave.

— O teto... tem nuvens pintadas — foi tudo o que ela conseguiu balbuciar.

Fascinado, ele assentiu com um gesto de cabeça.

— É esse o efeito que quero no forro da minha casa. Vê como eles o iluminaram? — Apontou para cima. As fachadas das lojas eram enormes, mas não alcançavam o teto abobadado. Era óbvio que, acima dos telhados falsos, havia holofotes iluminando as falsas nuvens. — Como vê, agora parece meio-dia. É o que eu desejo para a minha casa: quero que a luz do dia se perpetue nela, de modo que eu possa escrever à luz de um sol eterno.

— Oh, Deus... — As palavras escaparam dos lábios de Pamela antes que ela pensasse em manter a boca fechada.

A risada de Eddie ribombou entre eles.

— Você não fazia ideia de que seria assim.

— Não, não fazia — ela concordou, em choque.

— Venha! O melhor está mais adiante. — Ele tornou a olhar para o relógio. — Precisamos nos apressar. Temos apenas cinco minutos antes de o show começar.

— Show ? — Pamela se obrigou a parar de abrir a boca e correu para alcançá-lo.

— Sim! É o que desejo que crie como ponto central na casa: uma fonte espetacular.

— Quer uma fonte dentro de casa? — Pamela modulou a voz com cuidado, tentando denotar otimismo. Adorava água e acreditava que esta era essencial para se criar um chi positivo em uma residência.

Sentiu a mente alçar voo. Iria contratar um excelente artista e criar... (olhou para cima, tentando não fazer caretas)... uma versão de bom gosto daquele céu azul, cheio de nuvens brancas como algodão, acima deles. E compensaria aquela breguice toda com uma fonte fabulosa. Talvez uma importada da Itália. Eddie iria adorar, afinal, o Fórum pretendia ser uma cópia de Roma. Por isso mesmo seria natural que quisesse uma fonte vinda da...

Viraram para a esquerda, e Pamela estacou, horrorizada. Bem diante deles estava uma monstruosidade que expelia água por todos os lados, cercada por deuses e deusas nus.

Sentiu a cabeça indo para a frente e para trás como se esta não lhe pertencesse. Aquilo era um horror! Enormes cavalos de mármore se projetavam da piscina iluminada, com água brotando ao redor. Zeus, Poseidon, ou outro deus que fosse, posava nu em cima de uma plataforma, segurando um tridente apontado para a água que ele fitava, sério. Em uma das laterais da fonte, havia comensais sentados nas pequenas mesas de um restaurante popular italiano, e Pamela se perguntou como eles conseguiam ouvir um ao outro, tal era o rugido da água.

— Não, não... Não é esta a fonte — Eddie a tocou nas costas, guiando-a para além do monstrengo molhado. — Não preciso de nenhuma imitação de Trevi. Desejo algo verdadeiramente único.

Aliviada, Pamela deixou escapar uma risadinha fraca.

— Também não gosto desta coisa — afirmou o escritor, conforme passavam, apressados, pela Disney Store, a qual apresentava um Pégaso em tamanho natural saindo do topo. — Um cavalo alado me parece um pouco demais.

Pamela assentiu em silêncio. Um cavalo alado era “um pouco demais”, e um teto abobadado, pintado para parecer com um céu iluminado pela luz de um sol eterno, não era?...

Apertou o maxilar. Gostava de um desafio. De verdade. Era uma designer de interiores excelente e experiente, com muito bom gosto e estilo, e gostava de clientes excêntricos.

Não, lembrou-se com firmeza. Não apenas gostava deles, como também os preferia. Não existia projeto estranho, cafona ou bizarro que ela não pudesse levar adiante, recheando-o de bom gosto e refinamento.

Uma pequena multidão se agitava à sua frente, e o braço levantado de um homem alto chamou sua atenção.

— Ah, lá está James. Ele escolheu um excelente local.

Eddie a fez se juntar a ele e mergulhou na multidão, cortando-a como uma baleia em meio a um cardume de guppies , aqueles peixinhos de aquário.

Quando se aproximaram do homem alto, o escritor a impeliu para a frente. Meio sem ar, Pamela sorriu numa saudação, contudo sua expressão se desfez quando percebeu onde estavam.

Diante de outra fonte gigantesca. E aquela possuía a forma de uma enorme janela com arabescos. O centro era dominado por um imenso homem de pedra, sentado em um trono. Três estátuas em pé cercavam a figura entronada, porém Pamela não teve a chance de analisá-las, pois, naquele instante, a luz do “sol eterno” que brilhava no teto abobadado se desvaneceu, e uma espessa neblina começou a se derramar, saída de pequenas aberturas na base do trono.

Pamela espirrou ao sentir o cheiro picante do gelo seco.

— Saúde! — Eddie falou atrás dela. Então se inclinou para cochichar em seu ouvido. — Está começando. Preste atenção.

Um riso assustador irrompeu do meio da fonte. Pamela sentiu um estranho arrepio ao perceber que o centro da estátua havia ganhado vida, e a risada saía dos lábios do homem de pedra. Espantada, observou enquanto a figura sentada se movia sobre a plataforma, de modo a encará-los.

— Está na hora! Está na hora! — proclamou a estátua. — Sou Baco! Venham, venham todos! A festa no Fórum não demora! — O Baco “vivo” ergueu a taça, que de repente cintilou, dourada. Mas Pamela mal prestou atenção aos efeitos especiais, pois o rosto do deus lhe capturara a atenção. Ele era como uma reprodução grotesca de Curly, dos Três Patetas, vestida com uma toga, folhas de uva em torno da cabeça calva e várias papadas no pescoço. Mais risos escaparam de sua boca enquanto o homem fingia beber, em um brinde à multidão.

— César! Acolhe os visitantes que ao nosso Fórum vieram!

Ao comando de Baco, a estátua em pé mais distante deles começou a gesticular com os braços e disse algo sobre o Deus do Vinho fazer uma festa para a multidão. De onde estava, Pamela não conseguia entender muito bem as palavras.

Outro braço, recém-animado, a fez se lembrar de Fred Flintstone.

— Maldição dos infernos! — resmungou por entre os dentes, usando o xingamento favorito de sua assistente. — Que diabo é isso?

— Ártemis, diga-me a que veio! — bradou a estátua de Baco. — E que comece a festa!

A segunda estátua de pé ergueu o braço, e Pamela fez uma careta ao perceber que seus seios enormes balançavam com qualquer movimento.

— Vim para o Fórum, onde da alegria sopra a brisa. Apenas tu, Baco, consegues me afastar da caça e da floresta! Vim para onde se faz compras, se bebe e se é feliz. Principalmente quando se tem um Visa!... — A voz da mulher era fina e, enquanto ela falava, uma aljava repleta de flechas e um arco pendurado por cima de seu ombro brilhavam com um terrível néon vermelho.

— Muito bem dito, formosura! — Baco balançou a cabeça para cima e para baixo num movimento espasmódico e mecânico. — Mas agora é a vez do teu irmão... Apolo, fala à multidão!

A estátua bem diante deles começou a girar até ficar de frente para as pessoas. A harpa nas mãos de Apolo brilhou com uma luz verde enquanto ele a acariciava, e música brotou de um alto-falante semiescondido aos pés de Pamela.

— Sim, ó Baco, isso é certo. Assim como a inspiração e o encanto que trago com minha lira!

— Ah, Apolo e sua magia!... Ela toca meu coração, mira! — declarou a estátua gorda em uma voz estridente. — Mas, basta! Já é hora de convocar a luz do dia!

A estátua de Apolo se curvou, desajeitada, diante do Deus do Vinho, antes de erguer a mão. De repente, o teto abobadado ganhou vida com fachos de laser que cortavam as nuvens em cores brilhantes, enquanto o riso satisfeito de Baco enchia o ar seco e fresco. As luzes finalmente cessaram, culminando em uma explosão de brilho que deixou o falso céu iluminado como se fosse de manhã.

— Agora, meus amigos, comam, bebam, sejam felizes! — entoou Baco, enquanto as outras estátuas se curvavam e paralisavam, e a luz de um spot pintado de rosa tingia seu rosto já corado. — Mas não se esqueçam de retornar para o nosso show especial das oito da noite em ponto! Carpe diem!

Conforme sua risada insana se desvanecia, aplausos espontâneos eclodiram em meio à plateia.

Pamela ouviu uma mulher vestindo moletom vermelho dizer à amiga:

— Não foi melhor do que o da última vez?

— Foi, sim! — respondeu a outra.

— Oh, Deus... — ela gemeu, inconformada.


Capítulo 3


— Não, não precisa se preocupar. Sei exatamente o que a incomoda. — Eddie lhe afagou a mão. — Dinheiro não é problema! Não pouparei gastos para realizar o que imagino.

— Acredite, senhora. Eddie irá supri-la com qualquer quantia.

Pamela piscou, pouco à vontade, para o homem alto.

— Ah, mas que grosseria a minha!... — lamentou Eddie. — Pamela, deixe-me apresentá-la ao meu assistente, James Ridgewood. James, esta é a nossa muito estimada designer de interiores, Pamela Gray.

— É um prazer conhecê-la, senhora.

James a cumprimentou com brevidade e firmeza.

Eddie bateu as mãos nas coxas grossas.

— Mal posso conter a minha ansiedade! Agora que já viu essa fonte maravilhosa, diga-me, Pamela: o que acha?

— O que eu acho? — Pamela parou, repetindo a pergunta. Ela e Eddie se encontravam sentados lado a lado em um dos falsos bancos de mármore que cercavam a fonte agora silenciosa. Devido ao tamanho do autor, o assento que acomodaria três ou até quatro pessoas estava cheio, então James permanecia em pé ao lado deles.

Impotente, Pamela desviou o olhar dos olhos brilhantes de Eddie para os de James que, por sua vez, o devolveu com a expressão atenta de um aluno. Não iria obter nenhuma ajuda dele, ela percebeu. James também comprara a ideia daquela decoração desastrosa.

— Sim! O que acha de transformar uma fonte como essa no ponto central da minha casa?

Pamela estudou Eddie com cuidado. O homenzarrão estava falando sério. Infelizmente, aquilo não era piada. Ele queria mesmo aquela coisa horrorosa!

Ela limpou a garganta e respirou fundo antes de elaborar a resposta.

— É uma ideia um tanto incomum...

Eddie e James balançaram a cabeça em entusiasmada concordância.

— No entanto, existem alguns detalhes que me preocupam. Em primeiro lugar — Pamela apontou para a fonte enorme —, o tamanho. Se bem me lembro, você disse que sua casa não chegava a ter mil e duzentos metros quadrados. Claro que se trata de uma casa espaçosa, mas tenho medo de que mesmo uma propriedade desse tamanho não possa acomodar uma fonte tão... — fez uma pausa, evitando as palavras “monstruosa” e “grotesca” — ... de dimensões tão magníficas.

Eddie pendeu a cabeça para trás e gargalhou, fazendo que várias pessoas parassem para observá-lo.

— Agora compreendo a sua expressão de choque, minha querida. Não quero a fonte dentro da casa. Pelo contrário, quero que seja um ponto de referência no pátio. James, mostre a Pamela o que quero dizer.

Sorrindo, James ergueu uma linda valise de couro cor de vinho e extraiu desta uma pasta grossa de arquivo, que entregou a ela. Pamela a abriu, encontrando fotos coloridas e plantas detalhadas de uma requintada villa italiana. O lugar era construído como um enorme “U” em torno de um encantador pátio de mármore, o qual estava obviamente destinado a ser o ponto central da residência.

Pamela viu-se balançando a cabeça, impressionada com o patrimônio arquitetônico da casa. Então piscou e olhou uma das fotos mais de perto. Sobre a imagem do lindo pátio alguém tinha rabiscado com um lápis: “Retirar as árvores. Substituí-las por colunas romanas, douradas, talvez, como as do Fórum?”.

Colunas douradas?

Seus olhos se desviaram para um dos pilares próximos. Como uma mistura bizarra de bordel e casa funerária, este era coberto por uma pintura de gosto duvidoso, imitando mármore. E a parte superior da coluna era incrustada com vistosos arabescos em ouro.

Ficou feliz por estar sentada, pois sentiu os joelhos fracos.

Tornou a ler as anotações a lápis: “Em vez dos azulejos de cerâmica, fazer o piso como o das ruas do Fórum”.

Horrorizada, Pamela olhou para baixo. As “ruas” do Fórum não eram nada mais do que cimento texturizado, uma imitação barata de pedra, pintado de marrom cor de lama e envernizado. Decerto Eddie não iria queria trocar aquele travertino fabuloso por cimento...?

— Compreende agora? Quero implantar uma fonte como esta no pátio da minha casa.

Pamela sentiu a boca abrir e fechar como a de um peixe, enquanto lutava para dizer alguma coisa.

— Sei que, apesar de o meu pátio ser grande, não tem tamanho suficiente para abrigar uma réplica exata desta fonte. Por isso mesmo decidi que quero uma versão menor. Pode cortar César, Ártemis e Apolo. — O olhar de Eddie se fixou com carinho no centro da escultura. — Mas mantenha Baco, o Deus do Vinho e da Fertilidade. Em minha casa o vinho é sempre bem-vindo. Quanto à fertilidade... — Sua risada ecoou outra vez. — Bem, as regras do cavalheirismo me fazem lembrar que tais assuntos não são adequados para os ouvidos de uma dama, então, por enquanto, digo apenas que gostaria de incentivar a fertilidade da criatividade e da palavra escrita.

Pamela ignorou o brilho travesso nos olhos do homem. Ela certamente não pretendia entrar em qualquer tipo de discussão acerca de “fertilidade” com ele.

— Deixe-me ver se entendi bem. O que quer é a aura desta fonte, algo com sua forma básica e design , mas em menor escala.

— Isso mesmo. — Eddie sorriu. — E, claro, ela precisa ser animada.

Desta vez, quando Pamela deixou a boca abrir, não se preocupou em fechá-la.

— C-com licença... Ahn... Sr. Faust?

Ela se voltou para ver três adolescentes com os rostos cheios de espinha parados atrás deles, cada um segurando uma cópia de capa dura de Pilares da Espada, enquanto olhavam com entusiasmo para Eddie.

— É-É o senhor, não é? — gaguejou o mais alto dos três.

Eddie concordou com um gesto de cabeça.

— Eu mesmo, E. D. Faust.

— Legal!

— Eu disse que era ele! — O menino mais alto lançou um olhar vitorioso aos companheiros. — Acabamos de comprar nossas cópias de Pilares , sabia? Seria, tipo , maravilhoso se você as autografasse para nós, por favor!

Pamela não pôde deixar de sorrir para os meninos. Eles eram até engraçadinhos, de certa forma. Assim como pequenos potros.

Notou que o mais gordinho, perto dela, estava tentando olhar dentro de seu decote, então franziu o cenho e ajeitou a roupa.

Homens... Não importava se tinham quinze ou cinquenta anos. Algumas coisas nunca mudavam.

— Seria uma honra pôr minha assinatura nos livros, rapazes! Venham! Digam-me seus nomes. — Eddie fez um gesto magnânimo.

— Taylor! — O garoto mais rechonchudo se esqueceu de seu decote e saltou na frente dos outros dois.

— Jamie!

— Adam!

A risada de Eddie ressoou, bem-humorada, mas, quando os meninos dispararam para a frente, Pamela percebeu que o autor lançou ao assistente um olhar significativo.

— Srta. Gray — James pareceu aflito ao se inclinar para falar em sua orelha. — Receio que não tenhamos muito tempo. Tudo o que precisa está nesta valise — ele a entregou a ela —, inclusive a chave do seu quarto. Já fiz o check in para a senhorita, e Robert mandou suas malas para a suíte.

— É E. D. Faust mesmo!

— Bem que eu achei que conhecia o cara de algum lugar!

Pamela olhou ao redor, surpresa. Várias pessoas apontavam para Eddie agora.

— Eddie deseja que a senhorita passe este fim de semana simplesmente absorvendo a atmosfera do Fórum e do Caesars Palace. Na manhã de segunda-feira ele enviará um carro, e então será levada para a casa dele. Todos os detalhes estão na pasta. Até lá, pense nos próximos dois dias como um agradável fim de semana em meio à magia de Las Vegas.

— E. D. Faust! Uau! — disse um homem quase sem fôlego antes de correr até Eddie, afastar os adolescentes, que o encararam, irritados, e cumprimentá-lo com um vigoroso aperto de mão. — Eu tenho todos os seus livros!

— Aplaudo o seu gosto na literatura, senhor. — O tom de Eddie era jovial, porém não havia dúvida quanto ao olhar aflito que este lançou a James.

— Vai encontrar outras instruções na pasta, bem como números para contato, caso precise falar conosco antes de segunda-feira. Agora preciso ajudar meu patrão — James terminou depressa.

Pamela observou o rapaz se infiltrar na multidão crescente até se colocar ao lado de Eddie e anunciar que o sr. Faust precisava ir embora, pois tinha uma entrevista importante para a qual não poderia se atrasar. Eddie ergueu o corpanzil do banco, piscou para Pamela e começou a se afastar com falsa relutância em direção à saída. As pessoas continuaram a segui-lo, lutando por conseguir um autógrafo na camiseta ou até mesmo nas costas da mão.

Uma vez deixada para trás, Pamela balançou a cabeça lentamente. Olhou para a pequena multidão, conforme esta se afastava pela rua falsa, atrás do autor de ficção, sentindo-se um pouco como Alice após ter caído no buraco.

E a turba continuou a crescer. A maioria era de meninos e homens maduros — daqueles que usavam alguns fios do cabelo ralo atravessados sobre a careca e meias brancas, puxadas até os joelhos. Eles o assediavam enquanto a figura alta de James impelia a de seu chefe, e a risada característica do autor chegava até ela. Eddie era um verdadeiro superstar . Um superstar meio esquisito, verdade, mas ainda um superstar .

Inacreditável. E ela nem fazia ideia!

Seu olhar pousou mais uma vez na fonte medonha, que, no momento, felizmente se encontrava em silêncio.

Pamela suspirou. Um passo de cada vez , lembrou a si mesma. Iria para o quarto refrescar-se, falar com Vernelle, em seguida voltaria ali para jantar e — pensou no que a estátua havia dito — assistir ao espetáculo daquela noite. Não era possível que fosse pior do que aquele que ela já tinha visto.


— Fale de novo, Pammy, acho que não escutei direito.

— Você me ouviu direito, sim, Ve! Aquela coisa horrorosa fala . E, palavra de honra, tem um monte de luzes de néon coloridas. E ele quer uma igual no pátio!

Sentada na beirada da cama king size da luxuosa suíte, Pamela tirou um dos scarpins e esfregou o pé.

— No pátio da linda casa em forma de vila italiana?!

— Esse mesmo.

— Maldição dos infernos!

— Foi o que pensei — resmungou Pamela.

— Mas isso é pior do que O Nascimento de Vênus ! — Ve bufou. — Santo trípode!...

O termo fez Pamela rir, como sempre. “Trípode”, Vernelle explicara quando elas haviam começado a trabalhar juntas, três anos antes, era uma gíria de lésbicas para “homem”.

E Ve era lésbica. Não daquelas homossexuais impudentes, que odiavam os homens. Vernelle Wilson até os apreciava... Apenas não gostava de dormir com eles.

Ve tinha lhe explicado sua opção da seguinte forma:

— Os homens me aborrecem. Depois que fiquei com um por algum tempo, acho que preferiria explodir os miolos a acordar ao lado de um deles e ficar ouvindo aquela bobajada inútil sobre virilidade pelo resto da vida. Agora, as mulheres... — Seus olhos cor de avelã brilharam, e um sorriso travesso lhe iluminara o rosto. — As mulheres eu posso ouvir sempre.

E esse era um dos muitos pontos fortes de Vernelle: escutar as mulheres. Ela nunca se apressava para satisfazer o desejo de qualquer cliente do sexo feminino, e parecia entender exatamente o que alguma delas queria dizer quando mencionava “aquele tom azul-arroxeado, meio da cor do céu à noite, ou de um amor-perfeito...”.

Embora não fosse graduada em design de interiores, Vernelle era artista profissional e designer gráfica — assim como o incrível website e o logotipo original da Ruby Slipper podiam atestar. Tinha excelente gosto para cores e texturas, e era também uma astuta mulher de negócios.

Pamela sorriu. Contratar Ve como sua assistente fora a primeira das muitas decisões sábias que ela tomara ao dar início ao seu próprio negócio. Ve gostava de dizer que ela, Pamela, se mostrara um tanto evoluída ao escolhê-la em meio à porção de gays que se candidatara para aquele trabalho.

Pamela abafou o riso antes que este se tornasse histérico.

— Eu não sei, Ve, mas vai ser difícil eu conseguir dar um toque de bom gosto a esse trabalho. Pelo amor de Deus, ele quer algo no estilo Liberace, bem brega !

— Ei, é cedo demais para desistir. E, lembre-se, é noite de sexta-feira, e você está em Las Vegas.

— Eu sei, eu sei. Que seja. Agora, o mais importante... Como está o projeto de Katherine Graham? Obviamente ainda está respirando, então ela ainda não a levou ao suicídio.

— Ei, me dê um desconto! Eu até gosto da velha.

— Claro, como gosta de ir ao dentista — contrapôs Pamela.

Ve riu.

— Não, é sério! Estamos nos dando melhor. Ainda odeio seus zilhões de gatos, e não faço ideia de como uma mulher que fuma feito uma chaminé e bebe conhaque como se fosse água ainda pode estar vivinha aos oitenta e sete. Mas seu senso de humor é admirável.

— E quanto ao gosto dela por cores?

— Eu a convenci a abandonar os roxos e rosas. Já quase nos decidimos por amarelo, verde-sálvia e uma pitada de vermelho. Quando terminarmos a fachada, aquela casa vitoriana gimensa vai parecer ter dez anos em vez de cento e dez.

— E, depois, vamos começar a trabalhar na parte interna.

Juntas, Pamela e Vernelle suspiraram.

— Então, tudo está indo bem. Como anda o trabalho de restauro de Starnes?

— Está ótimo, Pamela. Assim como o piso para a sala de estar dos Bate e o acabamento das janelas dos Thackery. Quer fazer o favor de não se preocupar? Você deixou tudo ajeitado antes de viajar, e posso muito bem dar conta dos trabalhos em curso. Se eu me enroscar com qualquer coisa, posso telefonar.

— Promete?

— Claro que sim. E aqui vai uma sugestão... Que tal tirar uns dias de folga? Está em Las Vegas, pelo amor de Deus! Saia um pouco, divirta-se. Pode até fazer umas apostas!

— Quer que eu me arrisque no jogo?

— Pammy, é para isso que serve Las Vegas!

— Eu não sei se gostaria de jogar. Não faz muito sentido para mim. Quer que eu entregue o meu dinheiro sem ter garantia de que vou conseguir comida, vinho, roupas ou uma peça de mobiliário em troca?... Não consigo achar graça nisso.

— Pammy, não está se concentrando no mais importante.

— No quê?

— Seja irresponsável uma vez na vida! Liberte-se! De repente pode até ganhar um prêmio principal.

Pamela inclinou a cabeça para o lado, pensativa.

— Pode ser que tenha razão, Ve. Talvez eu esteja olhando para esse projeto do modo errado. Em vez de pensar em bom gosto, talvez eu devesse estar bancando a lunática.

— É isso! — concordou Ve. — O sujeito é cheio da grana . Mesmo que ele soe meio maluco, você disse que ele parece boa gente.

— E é — ela anuiu de pronto.

— Então, pense da seguinte forma: E. D. Faust vive de criar fantasias. Ele simplesmente está pedindo que crie uma em que ele possa viver dentro! Pare de querer transformar esse projeto em outro layout para a Architectural Digest . E, Pammy, quando eu disse que precisava tirar algum tempo para si mesma, estava falando sério. — Ve fez uma pausa, e seu tom se tornou mais grave. — Há quanto tempo não tira férias?

— Você e eu fomos...

— Não, eu não estou falando de viagens de compras! — Ve a interrompeu. — Estou falando de férias de verdade.

Pamela suspirou. Ve sabia a resposta para aquela pergunta tanto quanto ela: fazia anos. Suas últimas férias haviam sido na companhia de Duane; um verdadeiro pesadelo. Apenas os dois, sozinhos em um balneário mexicano chiquésimo que só recebia casais. O resort proporcionara a seu ex-marido todas as bebidas que ele pudera imaginar e muito tempo para que Duane exercesse sua obsessão por ela. Ele não a perdera de vista por seis dias seguidos.

Só de pensar naquilo, Pamela sentiu falta de ar. Desde que o tinha deixado, ela nem sequer pensara em tirar um descanso. Que tempo tivera para isso?

— Eu não tive a intenção de lhe trazer más lembranças, Pammy — Ve murmurou diante de seu pesado silêncio. — Só quero que pare para pensar há quanto tempo não relaxa e se diverte. — A moça fez uma pausa, respirou fundo, depois continuou no mesmo tom afetuoso: — Você não teve um só encontro desde que terminou com Duane.

— Claro que tive! Saí com... — Pamela lutou, sem sucesso, para lembrar o nome do representante têxtil que a levara para almoçar alguns meses antes.

— Não vale contar um gay ! Muito menos um do qual nem consegue se lembrar do nome — zombou Ve.

— Ele não era gay . Seja lá qual for seu nome.

— Se não sabe o nome do pobre coitado, não importa se ele é gay ou não. Quem mais além dele?

Pamela mordeu o lábio.

— Era o que eu pensava. Pammy, está em Las Vegas. É noite de sexta-feira e está cheia de dinheiro. Além do mais, está solteira e mais do que disponível!... Não! — Ve interrompeu antes que ela começasse a argumentar. — Não comece! Aquele maluco, nojento e pegajoso do seu ex-marido não a incomoda há seis meses. Estão oficialmente divorciados há um ano e meio! Não é nenhuma velha ou doente, e continua com todos os dentes na boca. Se eu entendo bem de mulher, e sabe que nisso eu sou excelente, está prontinha para outra.

— Acha mesmo que eu vou me sujeitar a ter um desses casos de fim de semana em Las Vegas?

— Claro que não! Não alimento esse tipo de esperança... — Ve não precisou ver Pamela para imaginar o modo como ela apertava os lábios. — Agora, falando sério, Pammy, tudo o que estou sugerindo é que se solte um pouco e permita que o sexo oposto ao menos tenha uma chance com você. Não tem porcaria nenhuma para fazer até segunda de manhã, então relaxe e dê uma azarada por aí.

— Azarada?

— Paquere um pouco, criatura! É só se engajar numa conversinha sedutora com algum trípode.

— E posso chamar o cara de trípode? — Pamela riu.

— Só se quiser se bandear para o lado de cá...

— Talvez seja mais fácil.

— Isso é outro mito heterossexual sobre relacionamentos homossexuais, mas não estamos falando sobre a minha vida amorosa patética, e sim sobre sua vida amorosa inexistente . Pammy, esta é a hora e está no lugar perfeito. Não precisa abrir as pernas se não quiser, basta abrir a mente. Veja se consegue pelo menos interagir com um homem sem ser na esfera profissional.

Pamela registrou o toque de preocupação na voz da amiga. Vinha, mesmo, tratando os homens apenas como parceiros de negócios desde o divórcio?

Nem precisou terminar de formular a pergunta na cabeça. Sabia a resposta muito bem. Enquanto pensava, Pamela sentiu uma centelha de raiva reacender dentro dela. Duane ficaria encantado em saber que a transformara em uma assexuada, maníaca por trabalho.

E isso significava que ele ainda podia controlá-la.

— Azarar — murmurou Pamela.

— Azarar — Ve repetiu com firmeza.

— Ok, deve estar certa. — Pamela imprimiu alegria à voz. — Tenho trabalhado muito, mesmo. Vou pensar neste fim de semana como uma pequena fuga do mundo real, e nesse trabalho como uma aventura pela fantasia.

— Quem sabe até mesmo não faça umas apostazinhas? — persuadiu Ve.

— Quem sabe?...


Capítulo 4


— Mortais modernos são estranhos — Ártemis disse ao irmão enquanto observava uma série de senhoras sem-graça puxando as alavancas das máquinas que brilhavam, estalavam e bradavam coisas ridículas como “Roda da Fortuna”. — É como se o brilho e as cores dessas caixas lançassem um feitiço sobre elas.

— São caça-níqueis — Apolo corrigiu.

Ártemis lançou-lhe um olhar zombeteiro.

— Não se lembra do que Baco disse? Elas são chamadas de caça-níqueis! — ele insistiu.

— Caça-níqueis ou caixas brilhantes, que diferença faz? Baco que lide com os mortais.

Uma mulher de meia-idade, vestida com calças fuseau e um moletom, fez uma pausa para franzir a testa para a deusa antes de alimentar a máquina com mais dinheiro.

Apolo tomou a irmã pelo cotovelo e a guiou para fora do corredor de caça-níqueis, onde não podiam ser ouvidos.

— Não devia deixá-las escutar esse tipo de coisa. E não seja tão dura com Baco. Sabe que Zeus ordenou que ele nos explicasse os costumes dos mortais modernos para que pudéssemos nos misturar mais facilmente a eles. — Apolo fez uma pausa para observar um homem com um traje branco e chamativo, incrustado com strass, fazer um grupo de mulheres gritar de prazer enquanto este movia os quadris e cantava qualquer coisa como all shook up , ou sobre estar “todo arrepiado”. — Eu, por exemplo, fico contente que Baco entenda deste mundo. Muito do que vejo aqui é um mistério para mim.

— Está bem!... Se isso melhorar esse seu mau humor, eu faço a matrona ganhar para compensá-la pela minha rudeza.

Com uma sacudidela dos dedos longos e afilados, Ártemis fez a máquina da senhora pausar em uma linha perfeita de cerejas. A mulher gritou e se pôs em pé, pulando enquanto as luzes piscavam e sirenes a proclamavam vencedora do jackpot .

Ártemis fez um muxoxo.

— Essas mortais modernas seriam muito mais interessantes se fossem bonitinhas e fizessem ruídos como filhotes de cachorro em vez de parecerem umas leitoas superalimentadas, prontas para o abate.

— Elas não são animais de estimação. E também não são animais — Apolo lembrou, severo. — E Zeus mandou que não interferíssemos na vida dos mortais.

— Eu não interferi, apenas dei uma compensação à mulher. É diferente. Se quisesse interferir, atearia fogo àquela roupa horrível que ela está usando!

A risada divertida de Ártemis soou como música, fazendo vários homens lançar olhares interessados em sua direção, os quais a deusa ignorou por completo.

Seu irmão resmungou uma resposta qualquer.

— Apolo, o que está acontecendo com você?

— Nada — ele afirmou, segurando-a pelo cotovelo outra vez e guiando-a por entre as agitadas mesas de blackjack e roleta, em direção a um dos muitos barzinhos convenientemente espalhados por todo o cassino.

Mesmo vestidos com quitões, os quais deixavam boa parte de seus corpos esguios à vista, os dois imortais combinavam bem com a colorida mistura de funcionários do cassino e farristas de Las Vegas. As pessoas notavam sua estonteante beleza, além da graça única com a qual se moviam. Como não poderiam?

No entanto, ninguém estranhava o casal vestido como se tivesse saído das ruas da Roma antiga. Afinal, estavam no Caesars Palace da Cidade do Pecado. Ali, tudo podia acontecer.

Apolo enfiou a mão em uma dobra da túnica e tirou o papel que, relutante, Baco havia distribuído entre os olímpicos. O Deus do Vinho explicara que aquilo era o que o mundo moderno utilizava como moeda.

Chamou a atenção da atendente e, embora aquela fosse sua terceira incursão ao Reino de Las Vegas, pediu a bebida de que os imortais gostavam mais:

— Dois Martinis de vodca bem gelados, com azeitonas extras. Batidos, não mexidos.

— Quem é você, querido? — A garçonete lançou-lhe um olhar sedutor por trás dos cílios artificialmente espessos. — César ou James Bond?

— Nenhum deles — ele respondeu com um sorriso de lado. — Sou Apolo.

— Bem que podia ser, bonitão ... — Ela riu, avaliando o corpo musculoso antes de ir rebolando de volta para o bar.

— Criaturas insignificantes. — Ártemis fez uma careta na direção da moça.

— Os mortais modernos não são insignificantes. Eles apenas mudaram.

Ártemis balançou a cabeça para o irmão.

— O que aconteceu com você?

Apolo pensou em dar à irmã sua resposta de sempre: “nada”. Mas quando encontrou seus olhos, leu neles uma verdadeira inquietação.

Deu de ombros, tentando aparentar indiferença.

— Talvez eu tenha mudado, também.

Ártemis sentiu a preocupação aumentar.

— Como assim?

Ele não respondeu até que a atendente tivesse terminado de servi-lo com as bebidas. Quando falou, sua voz profunda saiu melancólica.

— Alguma vez já se perguntou o que ama?... Se o corpo ou a alma?

— O que ama? Que tipo de pergunta é essa?

— O tipo de pergunta que me foi feita por uma mortal, mas a que eu não pude responder. Pelo visto, você também não pode, minha irmã.

Em meio a um gole da bebida, Ártemis engoliu cuidadosamente enquanto considerava as preocupantes palavras do irmão.

— Aposto que foi daquela mortal insana que habitou o corpo de Perséfone. Foi ela, não foi? — exigiu a deusa.

— Ela não era insana coisa nenhuma. Ela apenas preferiu Hades a mim. Assim como o deus do Submundo a escolheu dentre todas as outras mulheres, mortais ou imortais.

— Espero que aquela tonta esteja adorando Hades como deve. Ele pode reinar sobre os mortos, mas é um deus e, por mais estranho que sejam seus gostos, merece total veneração.

Apolo esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça.

— Não é bem assim entre eles. Precisa vê-los juntos, Ártemis. Irradiam uma alegria que está além das palavras. Talvez até além da compreensão... ou ao menos além da minha — acrescentou em seguida, pensativo.

— Andou espionando Hades e Perséfone? — Ártemis fitou o irmão, incrédula.

— Ela não é Perséfone. É a mortal, Carolina. Hades não desejou Perséfone. Ele amou a alma da mortal, não a deusa. E, não, não andei espionando ninguém. Pelo menos não no sentido que está insinuando. Apenas visitei o Submundo como convidado de Hades várias vezes — Apolo justificou depressa.

Por isso seu irmão andava sumido, concluiu Ártemis. E ela imaginando que ele fora visitar o Mundo Antigo para supervisionar seu oráculo ou para inventar algo interessante, como uma pequena guerra ou duas!...

Apolo fora convidado por Hades para ir ao Submundo? Que estranho!...

— Hades sempre foi diferente do restante de nós, Apolo. Por que se incomoda tanto com as excentricidades dele?

— Você não compreende.

Os olhos do deus continham uma ponta de tristeza e introspecção que continuaram a incomodar Ártemis.

— Então, explique-se!

— Hades não me incomoda. A mortal que ele ama não me incomoda. Eu mesmo me incomodo.

— Não faz sentido.

— Eu sei. Não faz sentido nem para mim. Tudo o que sei é que, pela primeira vez na minha existência, vislumbrei algo que desejo, e não tenho ideia de como consegui-lo.

O primeiro impulso de Ártemis foi zombar das palavras e lembrar o irmão de que ele poderia obter as mulheres que quisesse, mas algo em seu tom de voz impediu o comentário. Em vez disso, ela o observou atentamente enquanto bebia. Apolo parecia cansado, e ele nunca ficava desanimado. Seria possível que estivesse desejando uma mortal?

Lembrou-se da que havia recusado o amor de seu irmão. Chamava-se Cassandra. Mas Apolo não ficara deprimido, pelo contrário: ficara irado. Com tanta raiva que acabara negando o dom da profecia que dera a ela.

Mortais como Cassandra, entretanto, eram uma exceção. Apolo era um amante lendário. As ninfas desmaiavam quando ele sorria; até mesmo deusas brigavam por sua atenção. Seria possível que o desejo por uma mortal houvesse embotado seu cérebro a ponto de ele se esquecer dos próprios poderes de sedução?

Uma comoção chamou a atenção de Ártemis. Não muito longe deles, um pequeno grupo de ninfas da floresta, usando diáfanas vestes brancas, tagarelava. Estavam excitadas e completamente alheias ao fato de que todos os homens mortais as devoravam com seus olhares.

Apolo seguiu seu olhar e sorriu com carinho ao ver o lindo grupo de mulheres.

— Não sei se foi sensato deixar as ninfas terem acesso ao Mundo Moderno.

— Deixe-as se divertir. Elas são inofensivas.

— Depende. Não para um mortal aprisionado por seu fascínio — ele lembrou, irônico.

Como se o olhar do belo deus as houvesse atraído, várias das ninfas correram até Apolo.

— Meu senhor! Já sabia? Baco permitiu que nos divertíssemos com os mortais!

— Verdade! Vamos realizar um ritual de invocação!

— Venha assisti-lo, senhor!

— Sim, por favor, venha nos ver!

As ninfas riram, exibindo-se, sedutoras, para seu deus dourado favorito antes de sair correndo.

Ártemis também riu de sua exuberância infantil, mas, quando olhou para Apolo, percebeu que o irmão observava o pequeno grupo com a testa franzida.

— O que elas estão invocando? — Apolo murmurou mais para si mesmo do que para ela.

Ártemis mordiscou sua última azeitona antes de responder.

— Bênçãos, fertilidade, boa saúde... Você sabe, essas coisas que as ninfas gostam de invocar. Vai comer essa última azeitona?

Tão logo Apolo negou com um gesto de cabeça, sua irmã espetou a iguaria com um palito e a colocou na boca.

— Zeus deixou claro que não deveríamos usar nossos poderes para interferir no mundo moderno — ele lembrou.

— Pelas barbas de Zeus, está ficando tão aborrecido como o falecido Tirésias! — A raiva de Ártemis incandesceu ao redor deles, fazendo o palito que ela ainda mantinha entre os dedos explodir em chamas. Irritada, a deusa revirou os olhos e assoprou as cinzas. — As vidas dos mortais são como suas bugigangas: frágeis, consomem-se depressa demais e podem ser prontamente substituídas.

— Está comparando os mortais a uma lasca de madeira? — indagou Apolo, ainda olhando na direção das ninfas que haviam desaparecido.

— Por que não? — Ela suspirou e balançou a cabeça ao se dar conta da distração do irmão. — Está bem. Vamos cuidar para que as ninfas não façam nada para interferir na vida de seus preciosos mortais. — Quando ele hesitou, Ártemis o fez ficar de pé. — Nunca se sabe — sussurrou, fingindo preocupação. — Afinal, algum mortal desavisado pode errar na invocação e pedir nossa ajuda. Posso até ouvir um agora: “Grande Zeus, envie um raio que fulmine o cachorro do meu vizinho que late a noite inteira!...”

Apolo balançou a cabeça para a linda irmã enquanto caminhava com ela, relutante, através do cassino.

— Não devia fazer pouco de um ritual de invocação. Sabe tão bem como eu quantos estragos têm sido feitos por mortais que invocam os deuses.

— Mortais antigos, sim, como Paris ou Medeia. Mas este não é o Mundo Antigo. Esses mortais não sabem nada a nosso respeito. — Ártemis observou, desgostosa, quando um homem careca e gordo comprou um punhado de enormes charutos de uma moça seminua, a qual carregava uma bandeja. — Tudo o que lhes diz respeito agora é... — Parou outra vez quando o gordo apalpou o traseiro da menina de saia curta assim que esta se virou. Com um pequeno movimento dos dedos, a deusa o fez tropeçar e cair de cara no chão. Sorriu presunçosamente quando os charutos rolaram pelo carpete e o homem praguejou em voz alta. — ... é esse tipo de autogratificação barata — completou. E, à medida que passava, pisou de propósito em um dos charutos que tinham vindo parar perto deles, esmagando-o contra o tapete estampado.

— Então eles diferem pouco dos deuses — murmurou Apolo.

Ártemis minimizou o tom acusatório do comentário.

— Somos deuses. A autogratificação é um direito nosso.

— Mas, e se essa autogratificação não for suficiente? — ele indagou, mantendo a voz baixa.

Ártemis sentiu a raiva borbulhar dentro dela. Sem dúvida, havia algo errado com seu irmão, mas toda aquela melancolia e autopiedade já a estavam tirando do sério.

— O que sugere, Apolo? Que outra vida poderia desejar além da que temos? Olhe ao seu redor. — Ela apontou para os mortais que passavam por eles como formigas sem cérebro. — Agimos com superioridade porque somos superiores. A vida de um mortal é algo temporário. Eles são como borboletas sem a beleza das asas. Disse que os mortais modernos estão mudados? A única mudança verdadeira que vejo neles é que não nos reconhecem mais, o que me diz que eles perderam até mesmo a ínfima inteligência que costumavam ter. Veja os deuses que eles adoram agora... — Ártemis parou no final do cassino e olhou para a área de compras do Fórum. — ... Gucci, Prada, Versace, Escada, Visa e MasterCard. — Balançou a cabeça, irritada por o mal-estar do tolo de seu irmão lhe dar tanto nos nervos. — Estamos perdendo tempo. Não devíamos estar seguindo as ninfas? — Apontou com um gesto de cabeça o rastro dourado que as semideidades tinham deixado. Os mortais haviam percebido a trilha cintilante, era óbvio, e várias meninas riam e colocavam o glitter em seus corpos.

Ártemis franziu a testa outra vez. Aquelas roupas que usavam eram mesmo muito estranhas: coisas desbotadas e de cintura baixa, que Baco chamara de jeans, e blusas muito justas e coloridas. Será que elas não percebiam como era feio exibir tantas gordurinhas? Ser sensual era uma coisa, chamar a atenção para as falhas do corpo era outra completamente diferente.

A deusa suspirou. Elas pareciam umas salsichas ambulantes!

— Tem razão — Apolo concordou, enfim, considerando as palavras da irmã conforme abriam caminho através do barulho e da confusão do movimentado mercado. — Há algo faltando neles. Talvez a ausência de deuses e deusas em suas vidas. Mas não creio que todos os mortais modernos sejam tão cabeças-ocas como acredita. Na verdade, eles me lembram a mim mesmo. — Apolo riu da expressão chocada de Ártemis. — Eles parecem estar sempre à procura de algo muito longe de alcançar.

— Você é um deus. Um imortal olímpico. Nada está fora de seu alcance! — ela lembrou, severa. Então arregalou os olhos conforme passavam por uma fonte gigantesca que expelia água em torno de ninfas nuas. O ponto central da monstruosidade era uma estátua enorme de um Poseidon nu e carrancudo, segurando um tridente e olhando para baixo, na direção dos compradores. — Sorte deles Poseidon não ter nenhum interesse em visitar este reino. Esta versão dele nu não faz muito jus ao verdadeiro tamanho do deus... — Ártemis olhou para as partes mais íntimas da estátua.

Apolo sorriu.

— Na certa é por isso que ele parece tão zangado.

Ártemis devolveu o sorriso, satisfeita por Apolo ter soado mais como ele mesmo. Talvez suas palavras estivessem surtindo efeito, afinal.

— E ainda bem que Las Vegas não é perto do mar! Poseidon pode ser muito temperamental.

Passaram por uma grande loja que ostentava o logo da Disney, bem como uma reprodução em tamanho natural de Pégaso alçando voo. Ártemis espiou lá dentro.

— Aparentemente os mortais modernos são obcecados por Hércules, Atlântida e leões.

— Pelo menos essas reproduções são coloridas.

— Hércules não era tão bonito — afirmou a deusa, olhando para a estranha loja por cima do ombro.

— Você nunca gostou dele.

— Ele era careca. Não acho homens carecas atraentes, por mais trabalhos que tenham realizado.

Viraram em uma esquina e avistaram uma grande multidão reunida em torno do que parecia mais uma fonte portentosa. Ártemis se perguntou que deus carrancudo estaria representado sobre aquela. Ela e o irmão ainda não tinham se aventurado por aquela parte do Fórum em suas outras breves visitas, e a curiosidade a arrebatou conforme se aproximavam.

A fonte ficava no meio de uma grande área cercada por colunas esculpidas. As lojas que ladeavam aquela parte eram diferentes da outra extremidade. Ali pareciam estar mais voltadas para a comida e a bebida do que para a venda de roupas e joias.

Um café interessante chamou sua atenção. Ali não havia as letras douradas e baratas que anunciavam os nomes das lojas e butiques de todo o restante do Fórum. Em vez disso, letras de um belo mármore travertino se intercalavam com musgo e videiras vivas, escrevendo o nome do pequeno bar: “A Adega Perdida”.

Ártemis cutucou o irmão com o cotovelo e levantou o queixo na direção do café.

— Vamos até ali. Estou com vontade de tomar um Chianti.

— E quando não está com vontade de beber um bom vinho tinto? — Apolo sorriu para ela enquanto a pegava pelo braço e a conduzia em meio à multidão.

De repente, as luzes que iluminavam o teto pintado com nuvens esmaeceu, e as cores mudaram do amarelo para lilás e violeta. A multidão se agitou, ansiosa, e Ártemis e Apolo pararam do lado de fora da Adega Perdida. Embora ambos fossem mais altos do que a maioria das pessoas, não foi fácil para eles enxergar.

Ártemis deixou escapar um gemido de frustração. Antes que mexesse os dedos, porém, seu irmão sussurrou:

— Seja gentil com eles.

Ela piscou e moveu os dedos afilados maliciosamente. As pessoas que bloqueavam sua visão perderam o interesse no show e se afastaram num passe de mágica. Quaisquer outras que tentavam tomar o lugar vago diante das duas atraentes figuras do Olimpo viam-se com uma vontade incontrolável de soltar gases e, desculpando-se, corriam para o banheiro mais próximo.

— Não se preocupe, meu irmão. — Ártemis sorriu. — Mais tarde, todos eles vão descobrir que esta noite terão uma sorte incrível nos... como chamou aquelas caixas barulhentas, mesmo? Caça-níq... — Sua voz foi sumindo conforme ela registrou o choque no rosto de Apolo. Virou a cabeça, seguindo o olhar atônito do deus, e seus olhos também se arregalaram ao ver a estátua sentada no centro da fonte voltar-se devagar em sua direção e começar a falar:

— Venham, venham todos!...

— Aquela coisa horrível parece Baco! — cochichou Ártemis.

— Eu acho que é Baco! — disse Apolo, tomando o cuidado de manter a voz baixa.

A estátua abriu a boca e riu grotescamente.

— Esta noite, para vocês, uma surpresa sem igual. Ninfas dançando num delicioso ritual!

Obedecendo-o, ninfas em pares começaram a se destacar de onde aguardavam em pé, à margem da plateia, e, para o deleite dos mortais que a tudo assistiam, deram início a uma dança sedutora pela circunferência da fonte, ao som de uma música gravada que continha sinos, gaitas e trompetes. Glitter dourado aureolava as encantadoras divindades da floresta conforme estas giravam e saltavam, movendo-se com uma graça sobre-humana.

A estátua de Baco demonstrou sua satisfação com um gesto mecânico de cabeça, o queixo se movendo de modo estranho enquanto ele continuava a falar:

— Ah, doces ninfas, o quão pura e verdadeira é a vossa magia! O que pensas, Apolo, de tanta alegria?...

Ao ouvir o próprio nome chamado pela estátua animada, Apolo pulou, assustado, e avançou meio passo. Em seguida, congelou ao ver uma das estátuas menores rodar e ganhar vida em resposta.

— Ao encanto da floresta, a graça das ninfas faz jus. Por isso farei brilhar ainda mais sua beleza com a magia da minha luz!

O verdadeiro Apolo emudeceu ao reconhecer a própria caricatura. No instante seguinte, a música aumentou, em conjunto com um show de laser, e as ninfas intensificaram o ritmo de sua dança diante dos aplausos entusiasmados do público.

— Como ele se atreve!? — sibilou Ártemis. Contudo, seu irmão a segurou pelo braço antes que ela avançasse com os olhos faiscando.

— Espere! Não podemos fazer nada aqui, diante de todos esses mortais.

— Deixe-me pegar meu arco e uma única flecha, e Baco irá se arrepender pela eternidade por essa brincadeira de mau gosto!

Apolo balançou a cabeça diante da estátua que supostamente o representava.

— Ele podia tê-la feito ao menos um pouco mais parecida comigo.

— Isso é uma blasfêmia! — A voz de Ártemis soou baixa e ameaçadora.

— A “minha lira” irradia uma luz verde e brilhante? — Apolo tentou, sem sucesso, reprimir uma risada. — E, por favor, diga-me que a minha cabeça não é tão grande!

A resposta da deusa foi abafada pelos berros de Baco:

— Minha adorável Ártemis, o quão bela é a tua visão! É sob o teu sagrado comando que se dá a invocação!

Foi a vez de Ártemis olhar, estupefata, quando uma réplica ridícula dela mesma começou a se movimentar. A estátua se virou e levantou um braço gordo. Ártemis ofegou quando a boneca começou a falar com uma voz de mulher mecânica, que nada lembrava a sua.

— Por meio das belas ninfas, em cada um aqui presente, meu feitiço vou lançar. E neste sonho cintilante, a força da minha magia em vocês vai habitar.

No mesmo momento, as ninfas começaram a cantar com os lábios fechados, num zunido hipnótico, conforme a música de fundo se desvanecia, obliterada por suas vozes doces.

— Agora ele está indo longe demais! — Uma sombra escureceu os olhos de Apolo. Ninguém zombava de sua irmã, nem mesmo um dos imortais!

Ficou surpreso quando, desta vez, foi a mão de Ártemis que apertou seu braço, impedindo-o de avançar a passos largos.

— Ouça as ninfas! — Sua voz soou grave com a tensão.

Apolo deixou de lado a raiva que sentia por Baco e obedeceu. O zumbido melódico tinha um ritmo sedutor e familiar, e, antes mesmo que as semideidades começassem a entoar as palavras da invocação, ele sentiu os pelos dos antebraços se erguerem em resposta ao poder invisível que emanou no ar em torno deles.


Pensem na volta dos imortais,

adoradores dos antigos caminhos,

e em seus distantes ancestrais,

que há muito aos deuses dourados honraram.

Deuses que ao campo, à floresta, ao vento,

à terra, à água e ao ar abençoaram.

Esta noite invocamos os tempos passados...


As vozes das ninfas eram tão lindas que os mortais mal respiravam.

— O que elas estão fazendo? — indagou Apolo, sentindo um aperto no peito. — É um ritual de invocação de verdade! Pelas barbas de Zeus, posso sentir seu poder. Ele é quase visível!

Impotentes, os dois imortais assistiram às ninfas tecendo sua magia.

Do Olimpo, celebrai o despertar,

o retorno dos mistérios do passado,

o culto à beleza e à fecundidade.

Proclamai a volta dos antigos

com canto, música e felicidade.

Que o auxílio dos deuses seja invocado!


— Temos que detê-las! — Apolo começou a avançar, porém, mais uma vez, sua irmã o segurou com firmeza.

— Como?! — sussurrou, aflita. — Como podemos fazer isso sem chamar a atenção?

Apolo apertou o maxilar.

— Não podemos permitir que elas completem a invocação. Pense nas consequências de se unir a moral moderna ao auxílio de um deus!

— Não se preocupe, meu irmão. A invocação é inofensiva.

— Como pode afirmar isso? O poder parece ter sido ampliado dez vezes! A longa ausência de magia neste mundo deve ter intensificado o ritual. Não será possível quebrar o encanto — ele concluiu por entre os dentes.

— O ritual nunca vai ser terminado — Ártemis insistiu. — Quem, aqui, sabe como completá-lo?

O canto sensual das ninfas continuou a preencher o ar:


Ó vento, que de longe vem e sussurra,

alegres saudamos a ti...


— O vinho de uma terra antiga precisa ser derramado e, em seguida, deve-se misturar sangue ao vinho — Ártemis lembrou, torcendo os lábios com presunção. — Quantas eras se passaram desde que esses mortais fizeram um sacrifício de sangue e libação? Sem dizer que nem mesmo isso completa o ritual.

Em nome de Baco, Apolo e Ártemis,

soprai aqui o poder dos deuses...


— Um desejo vindo do fundo do coração precisa ser dito em voz alta enquanto a invocação é concluída — lembrou Apolo, e seus ombros começaram a relaxar. — É mais sábia do que eu, minha irmã. Nenhum mortal moderno saberia como completar a cerimônia.

Ele sorriu para a deusa, então voltou a atenção para as sensuais ninfas. Agora que seus temores pelos mortais que os cercavam tinham sido aliviados, poderia desfrutar a beleza do antigo ritual. Era um rito tão poderoso que ele não conseguia se lembrar da última vez em que as ninfas o haviam realizado no Mundo Antigo.

Elas são donas de uma beleza tão etérea! , pensou enquanto permitia que o feitiço o tocasse e envolvesse seu espírito. A invocação era pura e sincera. Como de costume, as deidades desejavam apenas agradar a humanidade, e Apolo sentiu a essência imortal dentro dele responder ao seu apelo. Teve vontade de caminhar a passos largos em meio às ninfas que dançavam e permitir que os mortais vislumbrassem seu poder. Queria lhes revelar a glória de ter um deus vivo por perto e, em seguida, conceder, àqueles que mereciam, seus mais profundos desejos, mesmo sabendo que aquilo era impossível. Zeus o proibira de interferir na vida dos seres humanos e, desta vez, ele precisava admitir que o pai estava com a razão. Os mortais modernos ficariam melhores sem a interferência dos antigos e esquecidos deuses. Mas, conforme o ritual das ninfas o envolveu com sua magia, pensar que os mortais já não se importavam com o Olimpo o deixou deprimido.

Sentiu-se invadido por um misto de poder e decepção quando a cerimônia chegou a seu clímax:


O auxílio imortal se dá com um desejo sincero

e ao som de um coração atormentado.

Então esquece as dúvidas, dá voz à tua alma

se existe algo que o teu coração almeja.

E possa esse desejo sincero vir a ti como é esperado...

Assim seja!


Conforme as últimas palavras da invocação foram ditas, Apolo e Ártemis sentiram uma força inexplicável, como se suas mentes houvessem sido amarradas, e quem segurava as rédeas tivesse acabado de lhes dar um puxão. Suas cabeças douradas se voltaram ao mesmo tempo para uma mesa pequena e redonda, em meio à área que lembrava um antigo pátio italiano, bem em frente a uma adega. Irmão e irmã assistiram, horrorizados, quando uma pequena mortal — que se encontrava sozinha — derrubou a própria taça, quebrando o cristal delicado e derramando o vinho tinto. A energia pairando no ar pareceu absorver a bebida derramada, envolvendo-a em um círculo escarlate perfeito. Aflita, a mortal tentou limpar o vinho com o guardanapo de linho e deixou escapar um gemido ao sentir um caco de vidro entrar na pele.

— Não! — Ártemis murmurou quando o sangue mortal se mesclou ao vinho italiano.

— Isso não pode acon... — Apolo começou, entretanto suas palavras morreram quando a mulher abriu a boca e pronunciou as palavras que mudariam para sempre seus destinos.


Capítulo 5


O vinho a havia afetado, pensou Pamela ao soluçar baixinho, e quase riu de si mesma.

— Mas, ei, estou na Cidade do Pecado... Por que não? — indagou, expondo seu pensamento em voz alta.

— Com certeza, querida — falou o homem sentado à mesa mais próxima, com um sorriso malicioso.

Pamela observou a brancura ofuscante de seus dentes, os cabelos cuidadosamente pintados de preto e o brilho da pesada corrente dourada que se aninhava em meio à floresta de pelos escuros na área logo abaixo de seu pescoço. Ele deu-lhe uma piscadela, e seus dois amigos riram, divertidos.

Ela fez uma careta e se moveu na cadeira de modo a lhes dar as costas. Abriu a capa lisa e lilás da Edição Anual Especial da California Home & Design , que acabara de comprar em um quiosque do shopping, e afundou o nariz em um artigo sobre a EuroStone e seus granitos, mármores, quartzitos e calcários franceses, dificílimos de encontrar.

Pelo amor de Deus, não podia estar tão embriagada! Na verdade, não achava que já tivesse ficado naquele estado.

Quando o garçom se aproximou com um copo de Chardonnay barato enviado por “seu amigo da mesa ao lado”, Pamela não ficou muito surpresa.

Soltou um longo e dolorido suspiro.

— Obrigada, mas, por favor, mande-o de volta — pediu, sentindo-se de repente muito mais sóbria. — Não aceito bebidas de homens que não conheço.

O garçom pareceu surpreso, o que ela considerou um tanto irritante. Claro que se mantivera longe daquele clima de paquera por... Seu cérebro processou a quantidade de anos, porém Pamela se recusou a admitir o quanto de sua vida ela desperdiçara com Duane. As regras do namoro tinham mudado tanto assim? Estava se sentindo uma velha!

— Com o que posso lhe servir, senhora? — perguntou o garçom.

Deus, ele a chamara de “senhora”!

Então não havia mais dúvida. Ela devia parecer tão velha quanto se sentia.

Voltou os olhos para o cardápio comprido e fino, repleto de uma excelente variedade de vinhos de um lado e aperitivos do outro. Embora houvesse comido uma salada enorme e bebido meia garrafa de vinho no restaurante italiano próximo à outra fonte, a caminhada longa e deprimente em torno do shopping e do cassino a deixara com vontade de mastigar alguma coisa, bem como de tomar outra bebida.

Principalmente de tomar outra bebida.

Seus olhos se iluminaram diante do aperitivo que era uma seleção de azeitonas, queijos e pão fresco. Por que não? , pensou. Estava ficando velha. Poderia ser também gorda e feliz.

— Por favor, traga-me uma porção de azeitonas, queijos, e uma garrafa do... — Estudou os vinhos tintos italianos, listados sob o Chianti Classico em três classificações, e seus olhos cintilaram quando reconheceu o Castello di Fonterutoli Riserva , safra 97. Lera um artigo fantástico sobre vinhos italianos na última edição da Wine Spectator´s Magazine , e se lembrava muito bem daquele nome. — ... do Chianti Classico Castello di Fonterutoli Riserva , safra 97.

— Excelente escolha, senhora. Esse vinho é da Toscana. Seu viticultor afirma que, nos tempos antigos, os próprios deuses caminhavam em meio a seus vinhedos.

— Essa é muito boa — Pamela disse baixinho, tão logo o garçom se afastou. — Presa em uma versão reduzida da antiga Roma, e prestes a passar de “alegre” a bêbada graças ao vinho de um viticultor iludido!

Suspirou outra vez. Tivera boas intenções no início da noite. Após a conversa com Ve ao telefone, tomara um longo banho e secara os cabelos curtos com a toalha até deixá-los sensualmente despenteados. Decidida a caprichar no visual, tinha escolhido o vestido preto que arrematara na liquidação de final de estação da Saks de Denver. Adorava o modo como este terminava em um leve e feminino plissado, alguns centímetros acima dos joelhos. Havia completado a produção com delicados brincos de pingente em ônix e uma bolsa brilhante e tão pequena como fora cara. Para terminar, como pièce de résistance, um par de sandálias de seda preta Jimmy Choo, com bordados de borboletas e corações em cores brilhantes, bem ao estilo retrô.

Antes de deixar a suíte, checara a própria imagem no espelho dourado, que ia do chão ao teto, e parecera bem. Muito bem. O vestido preto envolvia seu corpo esbelto, e as sandálias agregavam mais alguns centímetros ao seu metro e cinquenta e seis, fazendo que suas panturrilhas parecessem mais longas e bem-torneadas.

Sim, ela estivera pronta para flertar.

Isso até parar na entrada do cassino a fim de perguntar a um bonito rapaz, que usava um uniforme românico, onde poderia comprar a entrada.

Ele caíra na risada.

— Senhora... Cassinos não cobram entradas. Quanto mais gente entrar aqui, mais dinheiro eles ganham.

Em seguida, o rapaz se afastara, ainda rindo e balançando a cabeça.

E sua noite não tinha melhorado muito depois disso. Seu jantar fora agradável, porém o cenário rebuscado continuara a lhe dar nos nervos. Dissera a Ve que iria mudar a forma de olhar para aquele trabalho, centrar-se na fantasia em vez de no bom gosto.

Mas quanto mais via do Fórum, mais desesperada ficava. Era tudo tão feio, cafona, barato e de péssimo gosto!...

Barato uma ova, corrigiu-se, os olhos se voltando para a enorme fonte que retratava, de modo grotesco, as imagens de Baco, César, Apolo e Ártemis. Aquilo tudo devia ter custado uma fortuna, assim como custaria a ridícula reprodução que Eddie queria da coisa em sua própria casa.

O garçom reapareceu com a travessa de azeitonas e uma garrafa de cristal com um vinho da cor do sangue. Pamela inalou o aroma rico do Chianti, e este a fez se lembrar, no mesmo momento, da Marilyn´s Pizza House, sua pizzaria favorita, que ficava muito convenientemente a poucos metros de seu estúdio. A Marilyn´s sempre contava com uma boa seleção de vinhos tintos italianos, assim como enormes TVs que exibiam filmes de Marilyn Monroe o tempo todo.

E aquele Chianti era mesmo digno de Marilyn.

Saboreou o sabor macio e persistente da excelente bebida em pequenos goles e escolheu uma azeitona preta do tipo kalamata . Em seguida, deu uma mordida na mozzarella de búfala cortada em fatias grossas. Estava tudo delicioso.

A vida no Fórum tinha lá suas vantagens, decidiu com a boca cheia. A comida era excelente, e a seleção de vinhos, soberba, mesmo em um pequeno café como aquele.

Sem dizer que — admitiu, relutante, conforme o Chianti começou a espalhar sua magia por meio dela —, embora a fachada das lojas fossem cafonas e seu design, lamentável, estas constituíam um verdadeiro paraíso da alta costura.

Sem dúvida, sua incursão na paquera não fora tão bem-sucedida. Mas isso não fora culpa sua. A única perspectiva que se apresentara até então usava uma corrente dourada, portanto nem contava.

Verdade que se mantivera afastada do cassino por conta do pequeno incidente a respeito da compra de um ingresso... Por isso mesmo não fizera nenhuma aposta até o momento.

O fim de semana, porém, estava apenas começando, e ela não podia encarar tudo aquilo como uma perda. Não ainda.

Talvez devesse apenas se transformar em uma “shoppingtonista”. Ou ao menos em uma “sapatonista”.

A ideia de comprar mais sapatos melhorou o humor de Pamela... até ela imaginar Ve criticando-a por ela continuar presa a velhos hábitos em vez de abraçar novas experiências.

Mastigou mais uma azeitona enquanto o garçom fez uma pausa em sua mesa para tornar a encher sua taça. Ve podia estar certa. Talvez ela não estivesse se esforçando o bastante.

Resoluta, Pamela fechou a revista e tratou de se concentrar no ambiente. A multidão ao redor da fonte havia aumentado. Uma moça loira, cujos cabelos eram incrivelmente belos, chamou sua atenção. Ela conversava com outra menina de madeixas tão encantadoras quanto, as quais lhe caíam em uma onda platinada até a cintura. E ambas usavam trajes que pareciam saídos das ruas da Roma antiga: de um tecido diáfano, da cor das nuvens, que flutuava em drapeados em torno de seus corpos jovens e ágeis. Em um momento elas pareciam estar cobertas e vestidas com discrição; em seguida, uma delas ria e se movia com graça, quase como se fosse uma bailarina, e uma fenda se abria em seu traje, permitindo um vislumbre de sua pele perfeita. Também pareciam estar cobertas por uma espécie de glitter dourado porque, conforme caminhavam em meio aos turistas, em direção à fonte, deixavam um rastro brilhante.

Pamela se concentrou no restante da multidão. Nenhum dos homens presentes parecia capaz de desviar os olhos das sedutoras mulheres fantasiadas. Era uma bela jogada de publicidade, concluiu. Pelo menos do ponto de vista masculino.

Passou os olhos pelo grupo crescente de pessoas que se reunia em torno da fonte. Assim como ela pensara, a maioria era de mulheres. No entanto, as duplas de moças seminuas também aumentavam. E não era um rapaz lindo, ali, vestindo um traje tão revelador quanto o das beldades se juntando a elas?...

Claro que não.

— Duvido que as mulheres se vestissem assim na Roma antiga — Pamela resmungou para si mesma. — Seria fácil demais pegar uma pneumonia.


Venham, venham todos!


A voz mecânica da estátua central explodiu nos alto-falantes, pegando-a desprevenida. Pamela olhou para o relógio, surpresa por já serem oito horas.


Esta noite, para vocês, uma surpresa sem igual... Ninfas dançando num delicioso ritual!


Bem, aquilo fazia mais sentido. Eram atrizes contratadas para representar ninfas.

À medida que as moças vestidas com trajes parecidos iam saindo da multidão e começavam a dançar ao redor da fonte, Pamela teve de reconhecer que estas eram muito atraentes. Assistiu ao show bebericando o vinho e pensando que nunca tinha visto apliques tão compridos e caros. As “ninfas” riam e rodopiavam em um gracioso círculo, jogando as pesadas cabeleiras como se tivessem nascido com elas.

As horríveis estátuas de Apolo e Ártemis ganharam vida, uma após a outra, mas, pelo visto, o show da noite se concentraria na dança das ninfas, que eram, sem dúvida, muito mais divertidas do que aqueles bonecos animados e suas ridículas rimas.

Pamela percebeu o pé acompanhando o ritmo pulsante da dança. Até que o show era bom, ponderou, tornando a encher a taça.


Pensem na volta dos imortais, adoradores dos antigos caminhos, e em seus distantes ancestrais, que há muito aos deuses dourados honraram. Deuses que ao campo, à floresta, ao vento, à terra, à água e ao ar abençoaram. Esta noite invocamos os tempos passados...


Quando as dançarinas começaram a cantar, ela se viu agradavelmente surpresa. A letra da música era muito melhor do que as baboseiras que as estátuas mecanizadas articulavam.

E suas vozes!... Eram incríveis.

Fascinada, Pamela escutou a música que falava de tempos antigos, quando as pessoas acreditavam que deuses e deusas perambulavam no meio delas e lhes concediam seus desejos. A despeito de sua opinião cínica acerca do ambiente em que se encontrava, sentiu-se arrebatada pelo desempenho das dançarinas a ponto de ter vontade de se levantar da cadeira e se juntar a elas em sua hipnótica dança.

Mas aquilo seria ridículo , pensou com uma risadinha embriagada, que logo se transformou num soluço. Ainda mais envergando o salto dez de um Jimmy Choo.

Por alguma razão, aquele desejo inédito de se divertir com as pretensas ninfas não a chocou. Olhou para a garrafa semivazia à sua frente. Devia ser o vinho, claro.

Piscou quando o ritmo da dança cresceu, e o glitter que envolvia as ninfas pareceu toldar sua visão. Tanto que, quando foi pegar a taça, calculou mal a distância.

Como se em câmera lenta, Pamela observou a haste de cristal caindo, estilhaçando-se sobre a mesa de mármore, e espalhando a bebida em um arco vermelho no chão, ao seu redor. Sentindo-se culpada, apanhou o guardanapo de linho e tentou absorver a mancha que se alastrava rapidamente. Graças aos Céus a taça se espatifara longe dela. Seria um desastre arruinar seu maravilhoso vestido com Chianti.

Caramba , que sujeira ela havia feito!...

Estava pensando que teria de deixar uma gorjeta extra para o garçom quando limpou a mesa com mais entusiasmo do que devia, e um caco de vidro entrou em seu dedo indicador.

— Ai! — Agitou a mão ao sentir a dor aguda. — Maldição dos infernos! — gemeu, sem acreditar na quantidade de sangue que correu do pequeno corte.

Sentiu o estômago já sensibilizado pelo Chianti revirar. Apertou o guardanapo encharcado no dedo, mas nem mesmo a dor do corte a distraiu diante da fabulosa parte final do show das ninfas. Sua indizível graça e suas vozes celestiais pareciam ter despertado nela emoções pungentes por muito tempo reprimidas.

Um desejo se agitou dentro dela. Um desejo por algo que ela nem sabia — ou podia — denominar.


O auxílio imortal se dá com um desejo sincero e ao som de um coração atormentado. Então esquece as dúvidas, dá voz à tua alma se existe algo que o teu coração almeja. E possa esse desejo sincero vir a ti como é esperado... Assim seja!


Desejo sincero...

Pamela suspirou. A única coisa que desejava no momento era não ter derramado o vinho nem ter cortado o dedo.

No instante em que sua mente formulou o pensamento, contudo, ela percebeu o quanto este era equivocado. Desejar algo tão trivial após aquela dança mágica era quase uma blasfêmia.

Apanhou a bolsa e procurou por um lenço a fim de embrulhar o dedo, enchendo-se de tristeza ao se dar conta de que seu desejo mais sincero fora apenas desfazer um acidente insignificante.

Mas decerto ainda tinha um coração. Não era possível que Duane o houvesse aniquilado!


Então esquece as dúvidas, dá voz à tua alma...


As palavras ecoaram dentro dela, em uníssono com a pulsação que sentia no dedo. Duane não podia ter arruinado todas as suas chances de viver um novo romance. Ela não permitiria.


E possa esse desejo sincero vir a ti como é esperado... Assim seja!


Num impulso, Pamela ergueu o queixo e olhou para o grupo de ninfas que sorria e fazia graciosas reverências de bailarina conforme a multidão irrompia em aplausos. Em seguida, deixou escapar em voz alta o pensamento que a assombrava desde sua conversa com Ve:

— Meu desejo sincero é que o estúpido do meu ex-marido não tenha sugado toda a minha capacidade de amar, ainda que eu tenha medo de que isso já tenha acontecido. Se puder me ajudar... — Fez uma pausa, tentando se lembrar do nome da deusa. Pedir ajuda a uma divindade feminina para ter um pouco de romance de volta na vida fazia mais sentido. Sentindo-se um pouco tola apesar dos aplausos da multidão abafarem suas palavras, Pamela continuou: — Pois bem. Ártemis, você bem que poderia me contemplar com um pouco mais de romance. — Em seguida, lembrando-se do sujeito horrível, com cara de gigolô, que usava uma corrente dourada, acrescentou: — E, Ártemis, estou meio cansada de homens que pensam que são deuses... Se quiser conceder o meu desejo, por favor, traga-me alguém que seja mesmo divino, para variar.


Capítulo 6


— Como isso foi acontecer?! — Ártemis exclamou após puxar o irmão, que continuava a fitar a cena, para um canto mais calmo. — A mortal completou a invocação!

Apolo acenou com um gesto de cabeça, entorpecido.

— E ela ainda usou o seu nome.

Ártemis quis estrangulá-lo.

— E acha que eu não sei?! Eu senti o chamado! — Estreitou os olhos, mirando ao redor. — Onde foi parar Baco, aquele rotundo infeliz? A culpa é toda dele! Sua estupidez causou isto; agora ele vai ter que ajudar a resolver essa confusão.

— Resolver como? — Apolo desviou o olhar para longe da mortal que acabara de obrigar uma antiga deusa a cumprir seu mais sincero desejo. — Não pretende fazer a concessão?

Ártemis abriu a boca para retorquir, mas a fechou em seguida. Seu irmão estava certo. Não havia como fugir daquilo. O vínculo fora forjado e cuidadosamente soldado no lugar. Podia sentir seu peso como uma algema de ferro.

— Está bem. Já aconteceu. Não há nada a fazer senão atender ao capricho da mortal e acabar logo com isso.

Apolo nada disse, os olhos se desviando da carranca da irmã de volta para a moça. Não conseguia parar de olhar para ela. A mortal envolvera o dedo ferido com um tecido leve, e ainda estava tentando, sem sucesso, limpar o vinho derramado. Decerto iria se cortar outra vez, ele pensou, e teve uma súbita vontade de correr até a mesa e cuidar dela.

Na verdade, deu um suspiro de alívio quando um servo se aproximou com um pano e limpou a sujeira depressa.

Viu a moça sorrir, tímida. Não tinha certeza, mas suas faces pareciam coradas demais. Era um rosto bonito, decidiu. Delicado e bem delineado. E as maçãs combinavam com seu formato de coração.

Sorriu. Que cabelo!... Teria execrado o fato de uma mulher ter cortado tanto os fios, mas nela as mechas curtas pareciam atraentes. Davam-lhe um ar enigmático e a faziam aparecer deliciosamente desgrenhada, como se ela tivesse acabado de deixar a cama de um amante.

Ártemis seguiu o olhar extasiado do irmão, e seus olhos afiados de deusa avaliaram a mortal, que parecia alheia ao que havia feito. Ela era pequena e se vestira de um modo até agradável apesar do ultrajante corte de cabelo. Não conseguiu definir sua idade. Parecia mais velha do que uma adolescente, porém bem mais jovem do que uma matrona. Era atraente, e a própria natureza de seu desejo provava que não se encontrava comprometida com homem algum.

A deusa sentiu uma pequena onda de alívio. Ao menos a mortal não lhe pedira que desse início a uma guerra, ou pior, que trouxesse paz para seu mundo. Tudo o que desejava era ter um romance com um deus.

Ártemis olhou para seu belo irmão, cuja expressão revelava, sem sombra de dúvida, que ele se interessara pela moça.

Sentiu seu alívio aumentar. Aquilo não podia ser tão difícil.

— Creio que eu esteja exagerando — falou, enfim. — A mortal quer apenas ser seduzida por um deus.

— Ela não disse que queria ser seduzida. Pediu apenas um pouco mais de romance em sua vida — Apolo corrigiu, os lábios curvados num leve sorriso, os olhos ainda fixos na moça.

— Com um homem que fosse divino. Você, meu querido irmão, é um deus. Então, o que está esperando? Decerto, não sou eu o que ela deseja... — Ártemis balançou a cabeça. Apolo nunca fora tão patético. — De qualquer forma, ela me obrigou a cumprir seu desejo, e você, Apolo, é o deus mais próximo de mim em todo o Olimpo. Isso é perfeito para que eu me livre deste problema ridículo.

— Provavelmente. — O sorriso dele se alargou.

— Claro que é — reforçou Ártemis, observando o sorriso presunçoso. Não era isso o que Apolo também desejava? Não estivera todo poético, comentando sobre Hades e sua amante mortal apenas alguns minutos antes?...

Pois agora teria a chance de experimentar o amor de uma mortal moderna. E uma que não estava apaixonada por outro deus.

Por um instante, Ártemis se perguntou se aquele incidente poderia ser mais do que uma simples coincidência.

Olhou ao redor, desconfiada. Zeus estaria tramando alguma coisa?

Não, concluiu, rejeitando o pensamento. Tinha sido ideia dela trazer o irmão para o Reino de Las Vegas a fim de animá-lo.

Pelo visto, seu impulso fora correto. Praticar uma velha e boa sedução com uma mortal poderia fazer milagres com o humor sombrio de Apolo.

Satisfeita, ela descansou a mão no ombro do irmão.

— Vá até lá e dê-lhe o romance que ela deseja. Leve-a para a cama, satisfaça seus desejos mais eróticos... Mas seja breve. É melhor que Zeus não fique sabendo dessa história. Você e eu podemos lidar com Baco sozinhos. E acho melhor não revelar quem é na verdade. Não seria nada bom se uma mortal saísse por aí, dizendo aos outros que conseguiu a ajuda de uma deusa para levar o deus Apolo para a cama.

Ele franziu a testa para a irmã.

— Claro que não.

— Ótimo. — Ártemis suspirou, esfregando as mãos como se tivesse acabado de concluir um trabalho bem-feito.

— E onde estará?

— Sem dúvida não será com você. — Ela sorriu e deu-lhe um pequeno soco de brincadeira. — Acho que vou tomar mais um daqueles deliciosos coquetéis de Martini, depois voltarei para o Olimpo. Eu o encontrarei lá amanhã, depois que a invocação tiver sido cumprida, assim poderá me dar um relatório completo. Depois decidimos o que fazer com Baco.

Ártemis empurrou o irmão de leve e o observou caminhar na direção da mortal que, involuntariamente, invocara o auxílio de uma deusa.

Ajeitou os cabelos, que já se encontravam impecáveis, sorrindo. Pela manhã, Apolo já deveria ter voltado ao seu normal.


— Se quiser conceder o meu desejo, por favor, traga-me alguém que seja mesmo divino para variar.

Mal terminou de falar, Pamela sentiu os pelos dos braços se arrepiando, como se ela houvesse levado um choque elétrico.

Nossa!...

Sorriu num pedido de desculpas ao garçom, que rapidamente limpou seu estrago. Ela tolerava vinho muito bem, mas, desta vez, sentia-se mais tonta do que o normal. Por sorte não precisaria dirigir.

— Vou lhe trazer outra taça, senhora — ofereceu o garçom. — E que tal um Band-Aid também? — completou ao ver o lenço que ela pusera em torno do dedo.

— Obrigada, seria ótimo — agradeceu Pamela, ignorando a própria vergonha.

O rapaz já havia se afastado quando ela pensou que devia ter pedido a ele que pusesse a rolha na garrafa, de modo que ela pudesse levá-la para o quarto. Seria a coisa mais sensata a fazer.

Brincou com o lenço. Não estava com vontade de agir com sensatez. Na verdade, além de estar um pouco corada e embriagada, sentia-se revigorada. Fora libertador admitir seu desejo em voz alta.

Ok, o vinho podia ter algo a ver com aquilo, mas gostava de pensar que existia alguma coisa a mais naquela situação. Ela reconhecera o que a consumira durante meses, talvez anos, por fim. De alguma forma, Duane a marcara como uma criatura quase assexuada. E agora que ela dera voz a seu medo, este não lhe parecia tão monstruoso. Fora como levantar à meia-noite para ver se o bicho-papão se encontrava dentro do armário. Assustador, claro, mas, depois que a porta fora aberta, o desfecho não havia sido assim tão ruim.

Precisava programar o seu “retorno”. Como diria Ve, ela necessitava se mostrar mais disponível e parar de pensar nos homens apenas como parceiros de negócio.

E não poderia fazer isso tampando a garrafa e correndo de volta para o quarto.

— Espero que não esteja doendo muito.

Pamela tirou os olhos do próprio dedo e seu olhar foi subindo, subindo... até encontrar olhos tão azuis que nem pareciam de verdade. E, Céus! , de que altura era aquela criatura? Seu irmão tinha um metro e oitenta e nove, mas aquele homem devia ter pelo menos dois centímetros a mais!

Seu olhar se ampliou, abrangendo os traços do rosto moreno, e todos os pensamentos a respeito de olhos azuis ou de seu irmão se desvaneceram. Que criatura era aquela? As linhas do rosto eram firmes, o queixo quadrado e forte. O cabelo, como ouro puro sob um sol de verão, além de espessos e cacheados. Ele era perfeito. Como se tivesse saído de uma propaganda de revista. Mas não daqueles anúncios pretensamente chiques e andróginos, em que as mulheres pareciam homens e os homens pareciam meninos. Era de uma beleza hollywoodiana, como Cary Grant ou Clark Gable. Só que era loiro e...

Seus pensamentos se fragmentaram quando Pamela percebeu o que mais estava vendo, e ela ficou mortificada ao ouvir uma risadinha escapar dos próprios lábios. Ele era loiro, lindo, e usava algo que parecia um traje de gladiador, o qual deixava muito pouco de seu incrível corpo para a imaginação.

Pamela sentiu o rosto se aquecer de novo, desta vez pelo susto, e depois por constrangimento.

— O quê? — indagou, tendo-se esquecido por completo do que ele dissera.

— Seu dedo — ele apontou para o apêndice envolto no lenço. — Eu vi quando o cortou. Espero que não esteja doendo muito.

Seu sorriso fez o estômago de Pamela se contrair. Covinhas! O homem tinha covinhas que emprestavam à sua beleza máscula um ar inusitadamente doce e infantil.

Era um homem alto, muito alto, com ar de menino e uma beleza de tirar o fôlego. Uma combinação letal.

— Ah, ahn... Sim... — Ela balançou a cabeça na tentativa de clarear as ideias. Maldição dos infernos , aquele vinho devia ser mesmo muito bom! — Quero dizer, não!... Não é nada. Apenas um corte à toa.

— Sabia que no Mundo Antigo as pessoas não acreditavam em acasos? Para elas, tudo o que acontecia possuía um propósito, um presságio, um significado; e o futuro podia ser previsto por meio de coisas tão simples como folhas de chá ou como fumaça subindo da fogueira de um ritual.

Pamela mal podia acreditar no que estava ouvindo. Sua mente voejava de pensamento em pensamento, os quais pareciam bolhas em um vendaval. Um homem como aquele podia engatar uma conversa interessante? E por que, diabos, estaria vestido daquela maneira? Não que não estivesse maravilhoso, mas qual é a razão daquela fantasia bizarra?

E quanto àquele sotaque que tornava sua voz profunda ainda mais sedutora, intrigante?... Parecia envolvê-la e deslizar por sua espinha como óleo aquecido.

Controle-se! , repreendeu a parte mais racional de seu cérebro. Componha-se, menina! Vestido de modo esquisito ou não, o homem é só para flertar!

Ela precisava parar de encará-lo feito uma turista embasbacada e falar de forma inteligível.

— Não, eu não sabia — respondeu no melhor estilo “vamos-fingir-que-estou-sóbria”. — Já faz muito tempo desde a minha última aula de Humanidades na faculdade... Confesso que a única matéria em que eu prestava atenção de verdade era História da Arte, que tratava sobre elementos da arquitetura antiga.

As palavras “elementos da arquitetura antiga” saíram vergonhosamente alteradas.

Oh, Deus! Ela estava arrastando a fala!... Parecia uma alcoólatra!

— Interessa-se por arquitetura antiga?

Ele pareceu surpreso e, mesmo em meio ao efeito do vinho, Pamela precisou conter a própria irritação. O fato de ser bonita não significava que era destituída de inteligência. Detestava aquele tipo de preconceito.

Mas, espere , pensou, enquanto estudava o lindo rosto à sua frente. Não fora isso mesmo o que ela acabara de pensar sobre ele ?

Ficou mortificada ao se lembrar de que ficara admirada ao ouvir um homem tão lindo dizendo algo inteligente e interessante. Quando adotara aquela postura de dois pesos e duas medidas? Na verdade, agora que já conseguia formular pensamentos mais coerentes, percebera que ele parecia satisfeito, não condescendente. Talvez não houvesse tido a intenção de insultá-la. Talvez ela estivesse sensível demais. Pois então ele não estava tentando entabular uma conversa educada? Parecia mesmo interessado em sua resposta. Talvez sua reação rude tivesse mais a ver com ela do que com ele, ou com os homens em geral.

E ela continuava falando bobagens, ainda que em pensamento!

Pamela limpou a garganta e sorriu.

— Sim, é verdade, mas me interesso por todo tipo de arquitetura. É uma parte importante do meu negócio.

— É arquiteta? — ele indagou.

Dessa vez, o choque em sua voz foi tão evidente que Pamela franziu a testa e estreitou os olhos.

— Não me diga que é um desses homens que acreditam que as mulheres devem ficar limitadas a certas condições... Por favor. Estamos na década de 2000, não nos anos cinquenta.

O claro aborrecimento em sua voz e o brilho frio e inteligente nos olhos claros fizeram Apolo se lembrar de Ártemis, e ele sentiu a surpresa se erigindo dentro dele. Já tinha conhecido inúmeras mortais, muitas das quais considerara belas e tentadoras, mas nenhuma jamais o fizera se lembrar de sua determinada, independente e franca irmã gêmea. Elas haviam estado ocupadas demais, adorando-o, para se importar em ser realmente interessantes.

Sorriu de lado. Tinha apenas começado a conversar com a mortal moderna, e ela já se provara uma agradável mudança.

Riu e balançou a cabeça.

— Eu não queria insultá-la. É que você é tão jovem... Todos os arquitetos que conheço são mais velhos; homens enrugados com barbas grisalhas. — Ele se inclinou para a frente e fingiu estudá-la. — Não estou vendo nenhum cabelo branco aí. Por isso a minha surpresa.

— Devo trazer outra taça, senhora? — O garçom perguntou, antes de lhe entregar um Band-Aid e colocar nova taça de vidro sobre a mesa, enchendo-a com cuidado.

— Eu ficaria muito honrado se me permitisse acompanhá-la. — O lindo estranho inclinou a cabeça numa mesura cavalheiresca que os homens deveriam executar diante das mulheres com regularidade.

O pequeno e antigo gesto fez o estômago dela se apertar. Não apenas isso, mas também o fato de a inegável beleza do estranho estar começando a compensar a bizarrice de seus trajes.

De qualquer maneira, por que não poderiam tomar uma bebida juntos? Ele decerto fora bem pago para se vestir daquele modo e entreter os turistas do Caesars Palace.

Pois bem. Iria pensar naquilo como uma ajuda para seu trabalho, o que, na verdade, era extremamente gentil da parte dela. Quem disse que o álcool inibia o pensamento racional? O seu continuava em perfeito estado.

Sorriu para o garçom.

— Sim, pode nos trazer mais uma taça.

O rapaz se afastou, apressado.

Pamela rasgou o invólucro do Band-Aid , mas, antes que pudesse colocá-lo no dedo, ele se inclinou e o tomou de sua mão.

— Espere, deixe-me ajudá-la.

Apolo envolveu o dedo delicado com o pequeno curativo e, conforme o fez, enviou através das mãos uma pequena porção de seu poder de cura para dentro dela.

Pamela piscou, surpresa com seu toque delicado.

— Obrigada. Já parece bem melhor. — Sorriu para ele, em seguida estendeu a mão com o dedo recém-tratado em sua direção. — Pamela Gray.

A hesitação do lindo desconhecido foi tão breve que apenas muito mais tarde ela a registrou.

— Febo — disse com um leve sorriso. — Febo Delos. — Ele aceitou o cumprimento e, mudando a forma de segurar sua mão, levou-a aos lábios.

Seus olhos se encontraram quando a boca macia lhe tocou a pele. Os dela arregalados pela surpresa, os dele, incrivelmente azuis.

Pamela percebeu um calor irradiando pelo corpo e sentiu a boca seca.

— Então ainda está vestido a caráter — falou, puxando a mão para passá-la pelo cabelo, sem saber que postura adotar.

— A caráter? — Ele pareceu confuso.

Ela apontou o dedo com o curativo para o traje que ele usava, inclinou a cabeça e permitiu que o olhar percorresse o corpo másculo em evidente avaliação. A túnica curta era feita do mais fino linho que já tinha visto — e olhe que ela conhecia tecidos caros! —, enfeitada com pesados bordados metálicos, e terminava em pregas que deixavam boa parte das pernas musculosas nuas. Sobre a túnica amarrada no ombro esquerdo, ele ostentava uma couraça ricamente decorada, que parecia ter sido feita com ouro forjado.

— É uma bela fantasia — comentou, batendo com o dedo no queixo. — Vamos ver... Se as dançarinas estavam representando ninfas, meu palpite é que deve estar fazendo o papel de algum deus.

Sorriu, maliciosa, ao perceber a ironia da situação. Ela não desejara um deus?

Pois, puf! , este aparecera em sua mesa, feito mágica. Um sonho em carne e osso.

Teve vontade de rir. Só mesmo em Las Vegas.

— Sua suposição está correta. — Apolo se inclinou para trás. Gostava de vê-la falar. Sem dúvida a moça bebera vinho demais, porém, em vez de pensar que ela era uma inconsequente, ele se viu intrigado. O rubor tornava seu semblante honesto ainda mais atraente. Seus olhos castanhos brilhavam num tom incomum de avelã que lembrava ricos e doces favos de mel. E os lábios... Havia todo um mundo novo ali, esperando para ser explorado.

Respirou fundo. Já podia imaginar aqueles lábios contra os seus. Ela devia ter gosto de vinho... e de mulher.

Tirou os olhos da boca carnuda e tentou se concentrar no que a moça dizia:

— Um deus, então. Bem, decerto você se encaixa no papel. Quero dizer, além da roupa, é ginorme . Tem tamanho suficiente para representar um deus. Perfeito.

Ginorme? Pelo menos ela parecia estar usando a palavra no bom sentido.

Apolo deixou o estranho elogio de lado, não querendo que a conversa seguisse naquela direção.

O garçom reapareceu e encheu seu copo. Tão logo este se afastou, ele o ergueu num brinde.

— A você, às coincidências e ao destino, Pamela.

— Quer dizer que acredita mesmo em coincidências ou destino?

— Creio que eu esteja começando a acreditar — concordou Apolo, sorrindo.


Capítulo 7


— Então me diga como é que se tornou a arquiteta mais bonita em que já pus os olhos — disse Apolo.

Pamela deu uma risada acompanhada de um soluço.

— Não devia ter descrito a minha concorrência como um bando de velhos se queria que eu me sentisse lisonjeada com esse comentário... Na verdade não sou arquiteta, ainda que ter conhecimentos sobre arquitetura seja uma parte importante do meu trabalho. Sou designer de interiores.

— Designer de interiores — Apolo repetiu o estranho título, procurando compreender o seu significado. O que ela poderia desenhar para interiores? Ele não fazia ideia.

E Apolo, o Deus da Luz, mestre da música, da cura, da verdade, e amante de inúmeras mortais, bem como de deusas, viu-se fazendo algo inédito em sua existência: precisou pensar em alguma coisa para dizer, a fim de não soar como um completo ignorante.

Deixou escapar a primeira pergunta que lhe veio à cabeça:

— Arquitetura é importante para um designer de interiores?

— Claro! — Pequenas rugas de expressão tornaram a marcá-la entre as sobrancelhas. — Para decorar um espaço adequadamente, o designer deve, em primeiro lugar, estudar a arquitetura do edifício. Não compreender a estrutura de uma construção seria o mesmo que um chef não saber como misturar os ingredientes para fazer um suflê. Além do mais, muitas vezes trabalho com os engenheiros e me envolvo no projeto desde a fundação até o momento em que os meus clientes vão para suas casas e dão uma festa de inauguração!

Apolo filtrou as estranhas informações e tentou se concentrar em conceitos que lhe eram mais familiares. O trabalho de Pamela parecia ser o de decorar as casas dos mortais. Talvez ela fosse como a irmã de Zeus, Héstia, Deusa do Lar. Mortais antigas costumavam invocar a ajuda de Héstia quando erigiam uma casa nova e, em muitas aldeias, as mulheres acendiam fogueiras dedicadas à deusa, pedindo por segurança e harmonia em seus lares.

— Então faz de uma casa um lugar agradável para se viver — ele concluiu, pensativo. — Deve ser um trabalho gratificante.

— Eu tento. — Pamela sorriu. — O que eu mais gosto é da ideia de possuir o meu próprio negócio. Gosto de dar as cartas. — Seu sorriso oscilou, e sua expressão tornou-se mais grave. — Decidi que é melhor estar no controle da minha vida do que viver sempre de acordo com as expectativas de outra pessoa.

Apolo acenou com a cabeça, absorto, pensando em como ele próprio começara a se sentir sufocado no papel que desempenhava havia eras. Era como se fosse visto eternamente como o grande Deus da Luz, e nunca como ele mesmo.

Encontrou os olhos de Pamela e se surpreendeu ao expor os pensamentos em voz alta.

— Invejo a sua independência. Sei muito bem o que é se ver limitado e ser controlado pelo que os outros esperam de você.

— É sufocante — Pamela completou baixinho.

— É mesmo.

Estudaram um ao outro enquanto bebericavam o vinho, surpresos por terem encontrado tal afinidade de modo tão fácil.

O sorriso de Pamela voltou.

— Verdade que, apesar de eu ter meu próprio negócio, alguns trabalhos me dão mais liberdade do que outros. Por exemplo, o que vim fazer em Las Vegas está mais para “outros”...

— Então não vive aqui, no Fórum?

— Quer dizer em Las Vegas? — ela concluiu de pronto. — De jeito nenhum. Esta é a minha primeira vez na cidade. Sou do Colorado. — Seu olhar irônico abrangeu a fonte e a área ao redor, e Pamela balançou a cabeça. — Manitou Springs é muito diferente de Vegas. E quanto a você? Não reconheço o seu sotaque, mas, obviamente, não é daqui.

Desejando ter mais tempo para fabricar respostas simples para perguntas, tais como quem ele era e de onde vinha, Apolo tomou outro gole de vinho enquanto buscava algo que Pamela pudesse considerar razoável.

— Não posso dizer que sou de um só lugar. Considero a Itália e a Grécia a minha casa.

Ao menos aquilo explicava seu nome incomum e o sotaque , Pamela pensou.

— Parece que temos mais em comum do que o nosso amor pela independência. Eu também sou novo em Las Vegas — ele acrescentou.

Era apenas um trecho da verdade. Suas duas visitas anteriores haviam sido breves e limitadas ao Caesars Palace. Nestas ele tinha apenas seguido o exemplo da irmã e fingido que se divertia.

— Então não costuma representar um deus?

O sorriso de Apolo foi lento e enigmático.

— Posso assegurar que nunca fingi ser um deus.

— Está falando sério? Como tudo isso aconteceu? — Pamela fez um gesto, abrangendo seu traje.

O sorriso de Apolo se alargou quando ele optou pela verdade.

— Responsabilidade da minha irmã. Ela disse que eu andava sério demais, por isso, como um favor a ela, vim para Las Vegas. É essa a razão do que está vendo à sua frente.

A risada de Pamela encantou Apolo. Não era tão melodiosa como a de uma deusa se divertindo, mas era cheia de uma alegria terrena que lhe trazia à lembrança imagens de noites quentes e pernas entrelaçadas...

— Agora, sim, está fazendo sentido. Eu também tenho um irmão. É um bombeiro durão , que nunca me deixa esquecer da época em que eu o convenci a usar uma fantasia do Star-Belly Sneetch — aquele pássaro amarelo, com uma estrela na barriga — e ler as histórias do dr. Seuss para as crianças de uma pré-escola local. Como eu podia imaginar que a mídia ia ficar sabendo e tirar uma foto dele saindo do caminhão de bombeiros com a fantasia? — Ao se lembrar, Pamela riu tanto que quase se engasgou. — Os amigos dele ampliaram a foto, mandaram fazer um pôster, e o afixaram em todas as estações. Às vezes eu ainda o chamo de “Estrela na Barriga”. Não sei se isso é coisa de irmã ou inimiga. — Ela gargalhou do minitributo rimado que fizera sem querer ao dr. Seuss .

Apolo não fazia ideia do que Pamela estava falando, porém seu riso foi tão contagiante que, quando ela se engasgou de verdade, teve um desejo súbito e irracional de se inclinar sobre a mesa e beijar seu adorável nariz.

— Por isso compreendo muito bem as condições que uma irmã pode impor ao irmão. — Ela enxugou os olhos e respirou fundo. Precisava ir mais devagar com aquele vinho. — O que faz quando sua irmã não o está torturando?

Apolo considerou e descartou várias respostas antes de responder.

— Faço muitas coisas, mas gosto de pensar que sou predominantemente uma espécie de curandeiro e músico.

Um médico que cantava? Assim como um caubói que cantava?

Risadinhas ameaçaram brotar do peito de Pamela mais uma vez, e ela as afogou em um gole de vinho, o que não colaborou em nada para mantê-la mais sóbria.

— Que tipo de curandeiro? — perguntou, quando teve a certeza de que podia falar sem cair de novo numa gargalhada.

— Um excelente curandeiro, acredito eu — ele afirmou, surpreso com a pergunta.

Ainda rindo, Pamela balançou a cabeça.

— Acho que temos uma falha de tradução aqui, e isto... — ela bateu uma unha contra a taça de vinho quase vazia — ... não está ajudando em nada.

— Talvez queira caminhar comigo. — Apolo se agarrou à oportunidade de mudar o rumo da conversa. — Tomar um pouco de ar noturno seria uma excelente maneira de clarear as ideias.

— Mas ainda não é noite. — Ela apontou para o céu eternamente claro do Fórum, travessa.

Ele se inclinou para a frente.

— Numa terra como esta não podemos imaginar que seja? — Em uma carícia tão suave que Pamela sentiu mais o calor do que a pressão do toque, Apolo passou um dedo pela mão delicada.

Foi apenas um breve encontro de peles, porém o gesto pequeno e íntimo pareceu atraí-la como um ímã. O mundo em torno deles esmaeceu, e Pamela mergulhou nos olhos azuis. Ele era tão escandalosamente lindo! , pensou, inundada por uma sensação que levou vários segundos para identificar.

Desejo!... Havia quanto tempo que não sentia o calor do desejo por um homem?

Anos. Fazia anos! E ela tinha apenas trinta anos de idade. Era como se tivesse se deixado secar, envelhecer sem paixão.

Não mais, decidiu, soltando a respiração de uma só vez.

— Está bem. Vou dar um passeio com você — declarou, resoluta. — Está hospedado no Caesars Palace? Posso esperar aqui enquanto muda de roupa.

— Não, eu... — Apolo se inquietou, mas, graças aos nove Titãs, conseguiu uma desculpa plausível. — Estou com a minha irmã.

— Ah. — Mais uma vez, Pamela franziu a testa para o traje que ele usava. — Bem, imagino que não precise se trocar.

Estava ali algo que ele compreendia com perfeição. As palavras de Pamela diziam uma coisa, mas sua linguagem corporal dizia outra. Mulheres mortais e deusas tinham essa forma de comunicação em comum.

Olhou ao redor do Fórum. Mortais modernos se vestiam de modo tão estranho!... Como ele não se dera conta antes de não estar bem trajado? Aquelas estátuas malfeitas eram as únicas coisas por ali vestidas como ele.

De repente, concluiu, chocado, que devia estar parecendo um bufão para Pamela. E um bufão dificilmente conseguia seduzir alguém, o que ele precisava fazer para lhe conceder seu desejo e romper o feitiço que a invocação forjara.

Bem lá no fundo, uma voz sussurrou que havia muito mais envolvido naquilo do que a conclusão de uma simples invocação; que ele gostaria de que Pamela o levasse a sério por uma razão muito diferente.

E o pensamento foi um tanto intrigante. O que ele poderia fazer a respeito?

Seus olhos se arregalaram quando a resposta para o dilema surgiu por fim.

— Vou comprar uma roupa.

Surpresa, Pamela torceu os lábios em um sorriso.

— Assim, sem mais nem menos?

— Claro! Não estamos cercados por lojas?

Ela levantou as sobrancelhas e assentiu.

— De fato.

Apolo se levantou, e então percebeu que precisava fazer algo que nunca tinha feito. Até aquele momento, o Deus da Luz nunca necessitara pedir que uma mulher — mortal ou imortal — aguardasse por ele.

Tocou as costas da mão de Pamela com carinho.

— Eu não vou demorar muito. Você se importaria em esperar?

Pamela levou algum tempo para responder, um sorriso maroto brincando na deliciosa boca. Correu um dedo em torno da borda da taça de cristal, e seus olhos encontraram os dele.

— Acho que não. Se não for por muito tempo.

Apolo sorriu e avançou alguns passos. Parou, franziu a testa e voltou para a mesa.

— Que loja sugere? — perguntou em voz baixa.

— Bem... — ela começou, baixando o tom para combinar com o dele — ... Sorte sua eu ser uma especialista em compras. Tenho uma cabeça ótima em se tratando de alta-costura. — Piscou, pensativa. — Parece que há uma Armani bem ali, depois daquela esquina. — Apontou para a direita.

— Então eu vou para a Armani. — Ele segurou sua mão e a levou aos lábios. — ??t ’?? , ?????a ’ Pamela — falou contra a pele macia. Virou-se e se afastou, dobrando a esquina.

Tão logo ele se foi, Pamela correu para o banheiro das mulheres e telefonou, apressada, para Ve.

— Por favor, diga que está telefonando porque acaba de tirar a sorte grande! — exclamou a outra, em vez de dizer “olá”.

— Ah, meu Deus! Acho que sim. Mas não estou falando de dinheiro.

— Está falando sério?! Está mesmo esquisita! Espere, deixe eu me sentar... Se me disser que está ficando com algum gato , vou desmaiar!

— Não estou ficando , só estou flertando! — Pamela pronunciou a palavra como uma oração e, em seguida, caiu na risada a ponto de deixar escapar um soluço.

— Está é bêbada! — constatou Ve.

— Bêbada, não. Só “alegre”.

— Ah, meu bom Deus!...

— É isso mesmo o que ele parece!... Ve, você não vai acreditar! Eu estava limpando o vinho que derramei... Aliás, cortei o dedo na taça quebrada e doeu à beça! O engraçado é que até falei em voz alta: “Quero um pouco de romance em minha vida!...” — Pamela articulou as palavras lenta e distintamente antes de continuar a tagarelar: — E, de repente, lá estava ele, vestido com uma espécie de deus grego! Mas isso foi por causa da irmã... Você sabe, como fiz com Richard e a fantasia de Star-Belly Sneetch . De qualquer forma, ficamos conversando e, tão logo ele comprar umas roupas, nós... Está preparada?... Vamos sair juntos!

— Ahn... Pammy? — Ve começou. — Onde está agora?

— No banheiro das mulheres.

— E ele?

— Foi comprar umas roupas, ora!

— Está bem. Escute-me. Tente ficar sóbria. Ele pode ser algum louco — ponderou a amiga dela.

— Ele não é louco! É médico e também canta.

— A falta de sexo danificou seu cérebro?! Está falando como uma louca! — Ve teve vontade de alcançá-la através do telefone e chacoalhá-la.

— Não é tão estranho quanto parece — Pamela replicou, mordendo o lábio. — Ve, eu gostei dele. Ele me faz sentir de novo. Temos uma conexão estranha... Eu sei que parece loucura, mas há uma espécie de centelha entre nós. É como se nos entendêssemos perfeitamente.

Vernelle abriu e fechou a boca. Então reprimiu a ladainha de alertas que passavam por sua cabeça.

— Pammy, isso é maravilhoso.

— Quer dizer que não estou sendo idiota?

— Não, boneca. Está sendo jovem e solteira. Não há nada de errado com isso — assegurou a outra mulher. — Saia para uma caminhada com o trípode e namore tanto quanto puder. Mas chega de vinho por esta noite, está bem?

— Eu já parei de beber.

— Ótimo. E use um preservativo.

— Vernelle! Não vou fazer sexo com ele!

— Pamela! — Ve imitou o tom chocado da amiga. — Aqui vai uma notícia: se quiser fazer sexo com ele, você pode! O que eu quero é um relatório completo amanhã. Bye-bye , Pammy!

Pamela estava mexendo no Band-Aid quando Febo dobrou a esquina. No mesmo momento, ela ergueu o olhar, e uma emoção líquida e quente correu por seu corpo, indo parar bem no meio de suas coxas. Em seu traje de deus, ele já estivera lindo e exótico de uma forma quase inacreditável — como um ator por quem se podia ficar apaixonada durante um filme. Em roupas normais, Febo não era menos estonteante. E agora parecia de verdade, não mais tão inatingível. Era um sonho se tornando realidade. Usava calças Armani de linho creme que abraçavam a cintura e os quadris estreitos, e um pulôver de lã de seda do mesmo azul incrível de seus olhos.

Olhos que se fixaram nos dela enquanto ele se aproximava.

Parou ao lado do banco em que ela estava e, por um momento, não disse nada. Em seguida, puxou a camisa, nervoso, e passou as palmas na frente das calças. Sorriu, inseguro, o que deixou Pamela perplexa. Como alguém que parecia um deus grego podia se preocupar com a própria aparência?

O silêncio se estendeu entre eles, e Apolo mexeu no colarinho da camisa. Estava realmente nervoso, o que era adorável.

— Gosta da minha roupa nova? — perguntou por fim.

— Você parece um anúncio ambulante de Armani.

— E isso é bom ou ruim?

— Bom. Muito bom... O que fez com a outra roupa?

A preocupação no semblante moreno se desfez.

— Deixei-a com o servo de Armani. Vou buscá-la mais tarde. E então?... Vamos andar? — Ofereceu o braço como se ela fosse uma princesa.

Ou talvez uma deusa , Pamela pensou enquanto observava seu perfil.

Colocou o braço no dele e deslizou para fora do banco. E pôde jurar que cada nervo em seu braço nu ganhara vida onde ele a tocava.

— O servo da loja de Armani me disse que se deixarmos o Caesars Palace, virarmos à direita e atravessarmos a rua, chegaremos a um conjunto de magníficas fontes dançantes.

— As fontes do Bellagio! Já ouvi falar delas, mas nunca as vi.

— Ele disse que não ficam muito longe. — Apolo ergueu as sobrancelhas e a fitou, ansioso.

Que diabo ele esperava que ela fizesse? , pensou Pamela. Claro que ela queria ir com ele, mas... Olhou para o relógio. Seria seguro ir a pé até as fontes do Bellagio quase às onze da noite? Verdade que, no ritmo de Las Vegas, aquela hora devia ser como a hora do rush em qualquer outro lugar. As ruas deviam estar cheias de gente entrando e saindo dos cassinos. Não deveria haver nenhum problema.

Pamela respirou fundo. Não queria cometer o desatino de levar uma vida estúpida como a de muitas mulheres.

Por outro lado, também não queria ser picotada por um lindo e insano assassino em série, e ter um trágico episódio do CSI baseado em suas últimas horas!

— Pamela — ele soltou seu braço a fim de tomá-la pelas mãos —, não precisa ficar com medo de mim. — Seus olhos se encontraram, e Apolo pôde ver a indecisão nos dela. Doía pensar que ela não confiava nele. Se Pamela soubesse quem ele era!...

Pôs o pensamento de lado rapidamente. Se ela soubesse quem ele era, também ficaria sabendo de seu passado e como ele havia seduzido e descartado inúmeras mortais. Se Pamela soubesse a verdade, decerto se afastaria dele. E ele não poderia culpá-la por isso.

Mas ela não sabia quem ele era; pensava que ele fosse um simples curandeiro mortal. Não tinha nenhuma razão para se esquivar dele.

Cerrou o maxilar, decidido. Desta vez, ele queria que as coisas fossem diferentes. Desta vez, seria diferente. Ele cuidaria para que fosse assim.

Apolo falou antes que pudesse se conter:

— Eu nunca machucaria você, nem permitiria que alguém lhe causasse alguma dor. S?? d?’?? t?? ó??? µ??.

As palavras estranhas permaneceram no ar em torno deles e, por um momento, Pamela imaginou vê-los envoltos em uma luz dourada e brilhante.

Piscou, e a imagem se dissipou como fumaça.

— O que disse? — inquiriu, confusa.

— Eu disse que lhe dou minha palavra. Deve saber que em minha terra natal um juramento é algo sagrado, quebrado apenas por uma pessoa que não tem honra.

As palavras a tocaram, porém, mais do que isso, Febo a tocara. Seu fascínio era inegável, contudo ela sentia-se atraída por mais do que apenas a beleza de seu corpo. Havia algo nele que mexia com ela, algo que podia reconhecer.

Sentiu o coração disparar no peito ao perceber o que era: estava se vendo nele. Em seus olhos, podia enxergar o eco de uma emoção que carregara dentro de si por anos, um desejo por algo mais que não conseguia encontrar.

— Por que não está envolvido com alguma bela mulher em vez de estar aqui, pedindo a uma estranha que passeie com você?

O sorriso de Apolo foi como o amanhecer rompendo a escuridão da noite.

— Estou com uma bela mulher. Estou com você.

Pamela suspirou e passou o braço pelo dele.

— Se é assim, acho que não tenho escolha senão ir até as fontes na sua companhia.

— Tem, sim — ele contrapôs, começando a andar. — Mas não creio que qualquer outra preferência seja tão sábia.

— Só para saber... vou cobrar esse seu juramento.

Ele sorriu para ela.

— Nem precisa.


Capítulo 8


De braços dados, Pamela e Apolo atravessaram a área de lojas do Fórum rumo à entrada principal do Caesars Palace. Conforme caminhavam, ela não pôde deixar de notar os olhares que Febo recebia. Eram totalmente, nauseantemente, óbvios. As mulheres não conseguiam manter os olhos longe dele!

Mas também notou outra coisa: Febo não deu atenção a nenhuma delas. Não correspondia a nenhum de seus sorrisos. Seus olhos não lançavam olhares “acidentais” aqui e ali.

O que ele fazia era andar devagar, combinando suas passadas largas com as dela — as quais eram bem mais curtas — e se manter atento a tudo o que ela dizia. Suas respostas eram espirituosas, bem como interessantes.

E Febo se interessava por vitrines! Sem ser coagido, enganado ou subornado. Parecia estar se divertindo de verdade.

O pensamento foi suficiente para deixá-la mais sóbria. Ou talvez ela estivesse mesmo bêbada e continuasse na Adega Perdida, largada sobre o banco, pateticamente desmaiada sobre uma poça úmida de baba...

Não. Aquilo era uma aliteração. Não podia estar tendo alucinações.

Febo seria gay ?

Olhou para ele, fixou o olhar em seus fabulosos olhos azuis, e abriu um sorriso sexy . Ele o devolveu de pronto e com um calor que não negava sua heterossexualidade.

Não. Febo não era gay de jeito nenhum.

Então, o que havia de errado com ele? Tinha que haver alguma coisa.

— Você é casado? — perguntou de repente.

As sobrancelhas douradas se reuniram conforme ele franziu a testa.

— Não. Nunca fui casado.

— E não mora com nenhuma namorada ou algo assim?

— Não.

— Está mesmo descompromissado...?

— Estou — ele respondeu com firmeza.

Bem, ao menos naquele ponto estava tudo bem. Pelo menos em teoria.

Sem qualquer insistência sua, Febo parou diante de uma loja chamada Jay Strongwater , especializada em porta-retratos incrustados com pedras.

— É um trabalho excelente — comentou, pensativo. — O artesão tem um talento extraordinário.

— São lindos, mesmo. — Pamela espiou a vitrine e conseguiu enxergar o reflexo do preço de uma das menores molduras. — Quatrocentos e cinquenta dólares! Para um porta-retrato desse tamanho?... Já não sei se eles são tão bonitos.

Apolo se virou para ela e a tocou sob o queixo com suavidade, erguendo-lhe o rosto.

— Pois eu acho que certas imagens são dignas de tais molduras.

Ao vê-lo olhar para ela com tanta intensidade (como ela podia ter imaginado que ele era gay ?...), Pamela começou a tremer como se estivesse de volta aos tempos de escola e Febo fosse seu namorado. Decerto ela não admitiria algo tão ridículo em voz alta, mas isso não tornava a situação menos verdadeira. Estavam tão perto que podia sentir seu cheiro: um misto do homem e da seda pura da camisa, além de outra coisa... algo tão sutil quanto sedutor, que a fez se lembrar de calor. Um sol quente em uma praia clara, onde corpos nus se entrelaçavam sem inibição e...

Pamela riu de modo exagerado, esquivando-se do toque, e se pôs a andar novamente.

— Febo, você é um romântico. — Ela correu os dedos pelos cabelos, tentando acalmar as batidas do coração.

Os olhos claros brilharam quando ele sorriu para ela.

— Que bom.

Pamela deu-lhe um olhar avaliador.

— Muitos homens não apreciariam ser chamados assim. Não é “macho” o suficiente...

— Na maioria das vezes os homens são uns tolos.

— Eu não poderia concordar mais! — ela falou, surpresa.

Apolo riu, gostando da honestidade.

— Já deve saber que eu não sou como a maioria. E também que tenho toda a intenção de conquistá-la.

— Ah — Pamela tartamudeou, sem saber como responder à declaração.

Apolo riu outra vez. Balançou a cabeça, porém nada disse.

Em vez disso, continuou a observá-la. Suas palavras a tinham perturbado, e ele gostou de ver como as faces de Pamela haviam assumido um tom rosado. O cabelo curto fazia seu pescoço parecer mais delgado; um convite ao toque de seus lábios. O estilo do vestido que ela usava era tão estranho para ele quanto o de sua própria roupa, mas ele também gostava do corte feminino e lisonjeiro, do decote profundo em forma de gota que revelava parte dos seios arredondados. Pamela era pequena, mas uma mulher em todo o sentido da palavra. Suas pernas eram longas e bem-torneadas... Como ela conseguia se equilibrar sobre aqueles sapatos perigosos, que eram pouco mais do que tiras de tecido ligadas a um pino?

Por mais estranho que fossem, entretanto, ele adorava a maneira como faziam suas panturrilhas se estender e flexionar, e o traseiro bem-feito balançar sedutoramente conforme ela caminhava a seu lado.

Pamela pôde senti-lo olhando para ela, e isso fez suas já agitadas entranhas se transformarem em uma verdadeira máquina de pinball . No que Febo estaria reparando? Deus, ele é bonito demais!... E cheira tão bem que dá vontade de comer. Será que está me achando gorda? Por favor, faça que ele não seja um serial-killer!

Seus pensamentos giravam em um turbilhão. O que havia naquele homem que a fazia se sentir como se cada uma de suas terminações nervosas tivesse ganhado vida?

Mas talvez não fosse por causa de Febo. Talvez ela mesma estivesse desacostumada a ter a companhia de um homem.

Não seja estúpida , disse a si mesma. Nunca tivera problemas para namorar antes de Duane. E era a mesma pessoa; apenas mais velha e mais sábia. Pelo menos em teoria.

Parou na frente de uma joalheria Fred Leighton, onde belíssimos brincos de diamante, em forma de pingente, eram exibidos diante de espelhos chanfrados. Avistou o reflexo dos olhos dele no espelho. Tudo o que tinha a fazer era parar de analisar demais a situação. Estava tornando as coisas muito mais difíceis do que deveriam ser.

O olhar firme de Febo capturou o dela e, mais uma vez, Pamela sentiu a conexão sem palavras que brotava entre eles. Respirou profundamente, tentando relaxar.

— Quando jurou que eu estaria a salvo com você, que idioma usou? — inquiriu, curiosa.

— O Grego.

— É a única outra língua que fala?

Febo balançou a cabeça e hesitou antes de responder.

— Tenho dom para as línguas. Falo várias.

— Verdade?... Eu não falo outra língua. Exceto por minha capacidade limitada de pedir dip de queijo, molho extra-apimentado e cerveja em espanhol! Na verdade, o que eu finjo falar é mais um espanglês . — Em resposta ao olhar de dúvida de Febo ela sorriu e explicou: — espanglês : uma péssima mistura de espanhol e inglês. Eu sou um fiasco em idiomas. Invejo quem é poliglota.

O comentário fez Apolo se sentir pouco à vontade. Seu “dom” com as línguas não era nada de especial. Ao menos não para o Deus da Luz. Afinal, ele era um dos Doze Imortais; nenhuma das linguagens do homem lhe era desconhecida.

— Sou mais fluente em Grego e Latim — ele emendou depressa.

— E o que foi que me disse antes de ir até a Armani? Aquilo também era Grego?

— Sim, era Grego. Eu disse: “Até breve, doce Pamela”. — Apolo sorriu. Amava como os olhos castanho-claros refletiam a luz facetada dos diamantes. — Sabia que, em Grego, o seu nome significa exatamente isso? Tudo o que é doce? Pan quer dizer “tudo”, e meli é “doce”, como mel, ou o néctar de uma flor.

Ela desviou o olhar dos espelhos a fim de encará-lo.

— Eu não fazia ideia. Sempre pensei que o meu nome fosse comum.

— É tudo menos isso, Pamela .

Quando Febo pronunciou o nome dela, seu sotaque o fez soar misterioso e muito bonito. Claro que ele não poderia fazer que a palavra “excremento” soasse como uma sedução... Mas ela adorou saber que o que pensara ser tão sem-graça a vida toda significava algo tão bom.

— E quanto ao seu nome? O que significa Febo?

— Significa “luz”.

Pamela fitou o cabelo brilhante e os olhos que pareciam mais azuis do que um céu de verão.

— Luz — repetiu num murmúrio. — Combina com você.

— Agora eu tenho uma pergunta — ele falou, mudando de assunto com facilidade. — O que significa a palavra “ginorme”?

A pequena explosão de riso de Pamela fez sua boca parecer ainda mais convidativa.

— Ginorme é uma palavra que minha amiga Ve e eu gostamos de usar. Mas não creio que vá encontrá-la em algum dicionário... É uma mistura de “gigantesco” com “enorme”. Assim como gimenso : gigantesco com imenso.

— Da mesma forma que misturaram Espanhol e Inglês para formar Espanglês .

— Isso mesmo. — Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— Então ginorme significa “maior do que grande”... — ele concluiu enquanto ambos se lembravam de que assim ela o descrevera.

— Exato! — Pamela sorriu, travessa.

Bem, havia mesmo algo nele que ia além de sua altura, e que parecia torná-lo ainda maior.

Febo era decididamente ginorme .

Um dos inúmeros porteiros abriu as portas de vidro, e eles deixaram o Caesars Palace. Já estava escuro, claro, mas a noite lá fora fervilhava com luz, sons e emoção.

Apolo e Pamela estacaram, impressionados com os arredores. Toda a fachada do Palace estava repleta de portentosas fontes jorrando, iluminadas como boias de luz voltadas para os Céus. Limusines imensas despejavam casais bem-vestidos na entrada, e manobristas uniformizados corriam de um lado para o outro como ratos de libré.

— Ga??? ‘t? ! — Apolo praguejou baixinho, chocado em ver automóveis pela primeira vez. Zeus tinha insistido para que, antes de deixar qualquer um dos imortais passar através do portal, Baco lhes explicasse detalhes sobre o transporte moderno, bem como sobre a utilização da moeda local, da eletricidade e de um sistema de comunicação extraordinário chamado internet, de modo que ele, Apolo, fora capaz de identificar a loucura à sua frente.

Entretanto, ver que os veículos monstruosos se movimentavam como se tivessem vida, ainda que fossem desprovidos desta, e que a noite quente de primavera se encontrava feericamente iluminada por meio de energia elétrica aproveitada, era muito mais avassalador do que ele poderia ter imaginado.

Concentrou-se em uma das visões bizarras que lhe eram mais familiares, as fontes, e se lembrou de que era um deus olímpico, um dos Doze Imortais originais. E que poderia dizimar tudo ao redor com um só pensamento.

Uma daquelas coisas negras e brilhantes derrapou até parar, e outra monstruosidade se pôs à sua frente. Apolo se moveu num salto, colocando-se entre Pamela e as criaturas de metal, e passando-a do braço esquerdo para o direito.

— Eu sei o que está pensando — Pamela falou baixinho.

Ele a encarou, surpreso. Sabia que ela não podia ler seus pensamentos, mas a menor possibilidade de Pamela desconfiar do que se passava em sua cabeça era alarmante.

— Nem precisa falar — ela prosseguiu, os olhos brilhando, zombeteiros. — Pensou que essa fonte era ginorme .

Apolo torceu para que seu alívio não fosse por demais óbvio.

— Infelizmente, está errada — ele devolveu no mesmo tom de brincadeira. — Pensei apenas que ela era gimensa .

— Isso porque está confuso quanto ao uso correto do termo. Gimenso não é tão grande quanto ginorme , portanto, ginorme é a palavra mais adequada para descrever esta... — Pamela hesitou de propósito, lançando um olhar de desprezo sobre toda a extensão da fachada do Palace — ... esta “fonte”.

Apolo assentiu com um gesto de cabeça, aceitando sua derrota com elegância.

— Ponto para você. Uma monstruosidade dessas só pode ser ginorme .

— Então eu não estava tão errada...?

— Como pode uma pessoa tão linda estar errada? — Apolo sorriu, satisfeito. Em se tratando de mulheres, estava longe de ser um tolo em qualquer mundo.

— Posso chamar um táxi para o senhor e sua linda senhora? — indagou um dos carregadores.

O “Não!” de Apolo foi dito com mais ênfase do que ele pretendia. Mas a noite naquele mundo era tão cheia de luzes e sons que o raio que atravessou o céu em resposta à sua voz passou despercebido, o que o deixou feliz.

O Deus da Luz se esforçou para controlar o próprio tom:

— Não — repetiu com mais calma. — A senhora e eu preferimos caminhar.

— As fontes do Bellagio não ficam muito longe daqui, ficam? — Pamela quis saber.

— Não, senhora — concordou o rapaz e apontou. — Sigam pela calçada até o nível da rua, virem à direita, atravessem a rua seguinte, e estarão lá. Não pode deixar de fazer esse passeio.

— Obrigada. — Ela apertou o braço de Febo de leve. — Pronto?

Apolo não estava pronto coisa nenhuma. Preferia enfrentar a poderosa serpente Píton novamente, sozinho, nas cavernas negras do Parnaso, a sair para aquela noite estranha. Mas a mulher delicada em seu braço caminhou adiante com a confiança de Hércules.

Ele cerrou o maxilar e a acompanhou, colocando todos os sentidos em alerta máximo.

— É tão quente aqui!... Muito diferente do Colorado. Apesar de estarmos em maio, tivemos uma primavera muito fria; tanto que nevou de novo na última semana. — Pamela inclinou a cabeça para trás e abriu o braço que não segurava o dele. Rindo, respirou fundo, amando o calor do deserto que ainda pairava no ar. — Não percebi o quanto eu estava sentindo falta da primavera até chegar aqui.

Apolo resmungou uma resposta, o olhar abrangendo a mulher encantadora a seu lado, os veículos que aceleravam na rua cheia de gente, os sinais enormes que brilhavam e os edifícios que se avultavam sobre eles, muitos dos quais continham imagens coloridas em constante movimento. Precisava verificar se Zeus ordenara às ninfas que ficassem dentro dos limites do Caesars Palace. Como pequenas e belas mariposas, estas ficariam extasiadas com todas aquelas luzes brilhantes caso se aventurassem ali fora. Detestava pensar na cena que as semideidades causariam ficando inebriadas com tanta luz e som.

— Cuidado! — a voz de Pamela o trouxe de volta para o Mundo Moderno, ao mesmo tempo que ela a puxava com força. — Caramba, essa foi por pouco!... Eu estava tão distraída que nem me dei conta da rua, e esse tráfego é terrível. É melhor esperarmos pelo sinal.

Estavam parados na esquina de uma rua que fervilhava com automóveis, e Apolo percebeu que, se não fosse por Pamela, ele teria saído para o meio deles. Claro que aquelas coisas de metal não iriam lhe fazer mal, mas não queria nem tentar explicar a ela por que jamais seria estraçalhado por um deles. Distrair-se no Reino de Las Vegas não era algo muito inteligente no seu caso.

— O show das fontes deve ser ali — Pamela concluiu, apontando para as luzes que emanavam de uma massa de água do outro lado da rua.

Ele estreitou os olhos, fitando o fluxo de veículos e gente.

— Não estou vendo fonte nenhuma.

À sua frente, um pequeno círculo vermelho de luz mudou para verde, e as pessoas ao redor se agitaram. Apolo hesitou, mas, quando Pamela desceu com segurança para a rua, ele a acompanhou, atento a qualquer veículo que pudesse cruzar seu caminho.

— As fontes só devem permanecer ligadas durante o show. Aposto que ali podemos obter algumas informações. — Ela o conduziu a um pequeno posto. Lendo um aviso, balançou a cabeça. — É isso mesmo, há shows a cada quinze minutos. — Olhou para o relógio. — São onze e vinte e cinco, então ainda temos cinco minutos.

Apolo tratou de esquecer as distrações ao redor e se concentrou na linda mulher que devia estar cortejando.

— Gostaria de caminhar, ou prefere se sentar e esperar que as fontes comecem a jorrar? — Apontou para um dos vários bancos de mármore espalhados pelo calçadão que contornava o lago artificial.

— Sem dúvida, caminhar — ela respondeu, e eles recomeçaram a passear devagar ao longo da barragem.

Após um pequeno trecho de sociável silêncio, Pamela se manifestou:

— Este lugar é uma estranha mistura do brega com o refinado, não acha?

Apolo queria dizer que ela não fazia ideia do quanto Las Vegas lhe parecia estranha, mas relaxou ao perceber que, obviamente, Pamela também considerava os arredores incomuns.

— Eu não poderia concordar mais.

— Veja bem... — Ela apontou para o outro lado da rua. — Não há nada ali a não ser uma armadilha atrás da outra dizendo: “Venham gastar o seu dinheiro aqui!”... Mas aqui é diferente. — Ela parou e se encostou ao parapeito de mármore branco que imitava uma antiga balaustrada italiana, e que separava o gigantesco espelho de água da calçada. — Deste lado, a rua foi construída de modo a nos fazer crer que estamos caminhando por um passeio europeu. As luzes não são anúncios de néon, mas adoráveis postes antigos, intercalados por lindas arvorezinhas. E aquele lugar ali... — olhou as lojas e os restaurantes do Bellagio, do outro lado da água — ... me lembra uma elegante aldeia toscana. Eu sei que foi tudo planejado, mas essa farsa funciona. Como designer tenho que aplaudir tal representação.

Algo em seu tom atraiu o olhar de Apolo, e ele ficou surpreso ao descobrir uma ponta de tristeza no rosto delicado. Fora aquela inesperada melancolia que se espelhara na voz de Pamela. Até então, ela parecia feliz — mesmo que ainda um pouco embriagada — e aproveitando a noite e a conversa.

O que acontecera afinal?

— Uma representação é assim, tão ruim?

— Não muito — ela replicou, ainda olhando para a água. — É que, às vezes, me pergunto se as coisas são mesmo o que parecem.

Apolo sabia: Pamela estava falando de muito mais do que apenas arquitetura e iluminação pública. Quis confortá-la, dizer que ela não precisava ficar tão triste. Mas como poderia? Ele mesmo não era o que aparentava.

Ou era?

Naquele momento, sentiu-se como um homem comum, que não queria nada mais do que fazer uma linda mulher sorrir.

— Às vezes as coisas são muito mais do que aparentam. Melhores do que parecem no início.

Ela se virou para fitá-lo e se viu presa no azul inacreditável de seus olhos.

— Eu gostaria que isso fosse verdade, mas, segundo a minha experiência, as coisas não costumam ser melhores do que aparentam. Normalmente acontece o contrário.

— Talvez porque ainda não tenha tido o tipo certo de experiência — ele sussurrou, passando os dedos por seu rosto de leve, depois pela lateral macia do pescoço esguio.

Pamela sentiu o peito se apertar. Apolo se inclinou e roçou os lábios nos dela, na breve e suave sugestão de um beijo.

E, quando as bocas se tocaram, as fontes ganharam vida.

 

 

 


C O N T I N U A