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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEUSA DA PRIMAVERA / P. C. Cast
DEUSA DA PRIMAVERA / P. C. Cast

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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— Mesmo em meio às Dríades, sua linda filha brilha, minha senhora — Irene disse, sem olhar para mim enquanto falava. Ao contrário, sorria para Perséfone de uma forma orgulhosa e maternal, e não percebeu que meus lábios se apertaram numa linha fina.

— Ela é a personificação da primavera. Nem mesmo a beleza das ninfas pode competir com tal esplendor.

Ao som da minha voz, Irene transferiu para mim seu olhar penetrante. Minha fiel ama me conhecia havia tempo demais para não reconhecer meu tom.

— A menina tem lhe preocupado, Deméter? — perguntou ­suavemente.

— Como não poderia?

Apenas o silêncio de Irene traiu sua mágoa.

Mudei o cetro de ouro da mão direita para a esquerda e me inclinei para a frente, de modo a lhe tocar o braço em um pedido de desculpas silencioso. Como de costume, ela estava próxima do meu trono, sempre pronta a me servir.

Mas, naturalmente, era muito mais do que uma simples ama ou criada. Era minha confidente, u ma das minhas conselheiras mais leais, e, como tal, merecia ser tratada com respeito. O tom áspero que eu havia usado fora apenas um sinal de como eu estava esgotada.

Com o meu toque, seus olhos cinzentos se desanuviaram, compreensivos.

— Gostaria de vinho, Grande Deusa?

— Para nós duas.

Eu não sorri. Não era do meu temperamento.

Ela, contudo, compreendia tão bem a mim e ao meu humor que muitas vezes apenas um olhar ou uma só palavra era suficiente entre nós.

Observei minha filha enquanto Irene ia buscar o vinho. A pequena campina de Nysaian tinha sido a escolha perfeita para passarmos a tarde inexplicavelmente quente. Perséfone e suas amigas, ninfas da floresta, complementavam a beleza que nos rodeava.

Embora o dia estivesse agradável, as árvores que cercavam a clareira já começavam a se despir de suas vestes de verão, e assisti a Perséfone rodopiar alegremente sob um carvalho antigo, brincando de tentar apanhar as folhas coloridas que caíam. As ninfas ajudavam a jovem deusa, dançando nos galhos de forma a garantir uma cascata constante de laranja, vermelho e ferrugem.

Como de costume, Irene tinha razão. As Dríades da floresta eram etéreas e delicadas; cada uma delas, uma verdadeira ­obra-prima. Não admirava que os mortais as considerassem irresistíveis.

Mas, quando comparadas à Perséfone, a beleza delas se tornava comum. Em sua presença, as ninfas não passavam de simples criadas. Os cabelos de minha filha cintilavam como mogno polido, o que nunca deixou de me surpreender porque sou loira demais. Também não cacheavam como a minha cabeleira clara. Em vez disso, eram uma massa espessa de ondas brilhantes que circundavam a curva suave de sua cintura.

Sem dúvida percebendo minha vigilância, Perséfone acenou alegremente antes de apanhar outra folha aquarelada. Seu rosto se inclinou em minha direção. Era um coração perfeito. Os olhos enormes, cor de violeta, eram emoldurados por sobrancelhas arqueadas e espessos cílios escuros. Os lábios eram cheios e convidativos e o corpo, bastante ágil.

Senti meus lábios curvarem-se para baixo.

— Seu vinho, minha senhora. — Irene me ofereceu um cálice de ouro, cheio de vinho fresco, da cor da luz solar.

Bebi, pensativa, expressando meus pensamentos em voz alta, na certeza de que estes permaneceriam com minha ama.

— É claro que Perséfone é suave e encantadora... Por que não seria? Passa o tempo todo brincando com ninfas e colhendo flores.

— Também prepara banquetes divinos.

Fiz um barulho pelo nariz muito pouco adequado a uma deusa.

— Sei muito bem que ela produz verdadeiras obras de arte culinárias, mas, em seguida, se refestela por horas com essas... — fiz um gesto na direção das Dríades — semideusas.

— Ela é muito amada — Irene me lembrou, paciente.

— Ela é fútil — repliquei, severa.

De repente, fechei os olhos e me encolhi ao ouvir outra voz soar em minha cabeça com a insistência de um clarim:

Deusa sábia, forte e justa, amante dos Campos, Frutas e Flores, eu te peço! Ajuda o espírito de nossa mãe que ronda, inquieto e sem o conforto de uma divindade, pelos Domínios da Escuridão...

— Deméter, você está bem? — A preocupação de Irene interrompeu a súplica, fazendo a voz se dissipar como poeira ao vento.

Abri os olhos e encontrei seu olhar.

— Isso não acaba nunca.

Mesmo enquanto eu falava, outras vozes preenchiam minha mente:

Ó, Deméter, nós te imploramos que a nossa irmã que seguiu para o Além receba o teu conforto de deusa...

Ó, bondosa senhora, que concede vida por meio da colheita, peço a tua clemência para a minha amada esposa, que atravessou os Portais do Submundo e o habita eternamente, sem o conforto de uma divindade...

Com muito esforço, bloqueei o tropel em minha cabeça.

— É preciso fazer algo quanto a Hades. — Minha voz soou dura. — Eu compreendo os mortais. Suas súplicas são válidas. É fato que não existe nenhuma deusa do Submundo. — Fiquei em pé e comecei a andar de um lado para o outro com frustração. — Mas o que devo fazer? A deusa das Riquezas do Campo não pode abandonar seus domínios e descer para o Reino dos Mortos.

— Mas os mortos também demandam o toque de uma deusa — Irene acrescentou com firmeza.

— Eles precisam de mais do que apenas o toque de uma deusa. Precisam de luz, de atenção e... — Minhas palavras se desvaneceram quando o riso de Perséfone preencheu a campina. — Eles precisam do sopro da primavera.

Irene arregalou os olhos.

— Não está falando da sua filha?

— Por que não? Luz e vida acompanham essa menina. E é exatamente isso o que falta naquele reino sombrio.

— Mas ela é tão jovem!

Senti meu olhar mais brando ao observar Perséfone pular um riacho estreito e correr a mão sobre um canteiro seco de flores do campo, as últimas da estação. No mesmo instante, os caules se encheram de vida, se aprumaram, e desabrocharam em lindos botões.

Apesar de seus defeitos, ela era tão preciosa, tão cheia de alegria de viver!

Eu não tinha dúvida de que a amava muito. Tanto que, muitas vezes, me perguntei se a minha devoção a impediu de se tornar uma deusa em seu próprio reino.

Endireitei os ombros. Já passara da hora de eu ensinar à minha filha como voar.

— Perséfone é uma deusa.

— Ela não vai gostar de sê-lo.

Apertei os lábios com firmeza.

— Ela obedecerá às minhas ordens.

Irene abriu a boca como se quisesse falar. Então, pareceu mudar de ideia e bebeu um bom gole do vinho.

Eu suspirei.

— Sabe que pode se abrir comigo.

— Eu só estava pensando que não seria uma questão de Perséfone obedecer aos seus comandos, e sim... — Irene hesitou.

— Ora, vamos! Diga-me o que está pensando.

Ela pareceu um tanto desconfortável.

— Deméter, sabe que amo Perséfone como se ela fosse minha própria filha.

— Sim, sim. Claro que sim — assenti, impaciente.

— Ela é encantadora e cheia de vida, contudo é um pouco superficial. Não acho que tenha maturidade suficiente para ser deusa do Submundo.

Uma resposta malcriada veio à minha mente, porém a sabedoria segurou minha língua. Irene estava certa. Perséfone era uma deusa bela e jovem, entretanto sua vida tinha sido muito fácil, cheia de prazeres.

E por minha culpa. Minha filha mimada era a prova de que até mesmo uma deusa podia errar como mãe.

— Concordo, minha velha amiga. Antes que Perséfone se torne deusa do Submundo, precisa amadurecer.

— Talvez ela devesse passar algum tempo com Atena — sugeriu Irene.

— Não. Isso só a ensinaria a se intrometer nos problemas dos outros.

— E com Diana?

Fechei a cara.

— Acho que não. Eu gostaria de ser abençoada com netos ­algum dia. — Estreitei os olhos. — Não. Perséfone precisa crescer e ver que a vida nem sempre é preenchida com os prazeres e luxos do Olimpo. Precisa ter responsabilidade, mas, enquanto puder contar com o poder de uma deusa, enquanto for reconhecida como minha filha, ela nunca vai aprender.

De repente, eu soube o que deveria fazer.

— Senhora? — Irene me observou, ressabiada.

— Há apenas um lugar onde Perséfone aprenderá a ser uma deusa... Mas onde precisará aprender, primeiro, a ser mulher.

Irene recuou, o rosto assumindo uma expressão horrorizada conforme começou a compreender o que se passava em minha cabeça.

— Não vai mandá-la para?

— Ah, vou. É exatamente o lugar para onde ela deve ir.

— Mas eles não a conhecem. Não sabem nem mesmo quem a senhora é! — Irene franziu a testa já muito enrugada.

Senti meus lábios curvando-se em um dos meus raros sorrisos.

— Isso mesmo, minha amiga. Isso mesmo.

 

 

 


 

 

 


Capítulo 1

Oklahoma, nos dias atuais

— Não... Não é que eu não “compreenda”. O que eu não entendo é como deixou isso acontecer — Lina falou, devagar, por entre os dentes.

— Sra. Santoro, eu já expliquei que não fazíamos ideia de que havia algum erro até que a Receita nos contatou ontem.

— E vocês não possuem nenhum sistema para controle e balanço dos orçamentos. Vocês só foram contratados para administrar meus impostos porque eu precisava de um especialista! — Ela olhou para o número obsceno e sem sentido, digitado na parte inferior do formulário do governo. — Compreendo que possa haver alguns erros e deslizes, mas não entendo como uma coisa como esta pôde passar despercebida.

Frank Rayburn limpou a garganta antes de responder. Lina sempre achou que ele parecia um aspirante a gângster. Naquele dia, o terno preto listrado e o jeito furtivo não contribuíam para que ela mudasse essa imagem.

— Sua padaria foi muito bem no ano passado, sra. Santoro. Na verdade, a renda da senhora aumentou mais do que o dobro. Quando há um grande aumento nos números, é mais fácil ocorerr algum erro Creio que seria mais produtivo, agora, se nos concentrássemos na maneira como poderá pagar o que deve ao governo, em vez de tentarmos encontrar os culpados. — Antes que ela falasse, ele se apressou: — Já pensei em várias sugestões. — Apanhou outra folha de papel lotada de colunas e números, e entregou a ela. — A sugestão número um é pedir um empréstimo. As taxas de juros estão bastante razoáveis no momento.

Lina apertou o maxilar. Odiava a ideia de pegar dinheiro emprestado, sobretudo uma quantia daquela. Sabia que se sentiria ­exposta e vulnerável até que o empréstimo fosse pago.

Isso se o empréstimo pudesse ser pago.

Sim, ela estava indo bem. Mas uma padaria não era exatamente um estabelecimento de primeira necessidade em uma comunidade, sem dizer que os tempos andavam difíceis.

— Quais são as suas outras sugestões?

— Bem, a senhora poderia lançar uma linha mais atraente de pratos. Talvez incluir algo novo na hora do almoço, além daquela... — Rayburn hesitou, fazendo pequenos círculos no ar com o grosso dedo indicador. — ...pizzinha.

— Pizette Fiorentine — Lina mastigou as palavras com raiva. — É uma minipizza originária de Florença, mas que não é exatamente uma refeição. Destina-se mais a um lanche da tarde servido com queijo e vinho.

— Que seja. — Ele deu de ombros. — Tudo o que estou dizendo é que ela não atrai muita gente na hora do almoço.

— Está sugerindo algo como um buffet de frango frito. Ou talvez que eu monte uma chapa e prepare hambúrgueres e batatinhas...?

— É uma ideia — Rayburn anuiu, totalmente alheio ao sarcasmo dela. — A sugestão número três seria a de fazer um corte na sua equipe.

Lina tamborilou os dedos na mesa de reunião.

— Continue — incitou, mantendo a voz agradável.

— A quarta opção seria abrir falência. — Ele ergueu a mão para impedi-la de falar, embora ela não emitisse nenhum som. — Eu sei que parece drástico, mas, depois dessa reforma cara que acabou de fazer, a senhora ficou sem nenhuma reserva a que recorrer.

— Eu só fiz essa “reforma cara” porque você me assegurou que a Pani Del Dea poderia arcar com ela! — As mãos de Lina contraíram-se com a vontade de agarrá-lo pelo pescoço.

— Seja como for, as suas reservas acabaram — Rayburn afirmou, condescendente. — E a falência é apenas uma opção, e não o que eu indicaria. Na realidade, recomendo a opção número cinco: vender a padaria para aquele grande concorrente que lhe fez uma proposta há alguns meses. Eles só querem o seu nome e o seu ponto. Poderia entregá-los sem problemas. Dessa forma, a senhora teria dinheiro suficiente para pagar suas dívidas e começar outra vez com um novo nome e em outro lugar.

— Mas eu passei vinte anos construindo o nome da Pani Del Dea ! Não tenho a menor intenção de sair daqui!

Se Frank Rayburn tivesse o mínimo de intuição, teria reconhecido a tempestade que se formava nos expressivos olhos de Lina, mesmo que ela ainda não tivesse aberto a boca.

Rayburn, porém, não era nada intuitivo.

— Bem, eu lhe dei as opções. — Ele se recostou na cadeira forrada de pelúcia e cruzou os braços enquanto lançava a Lina seu olhar mais severo e paternal. — Você é a patroa. É sua tarefa decidir.

— Está equivocado. Não sou mais sua patroa. — A voz de Lina saiu calma e suave, porém cortante como aço. — Está despedido. Afinal, provou ser tão incompetente com o meu negócio quanto o é para escolher seu vestuário... Minha advogada vai entrar em contato, mas fique tranquilo. Vou me certificar de que ela tenha várias sugestões, as quais poderá considerar. Quem sabe uma delas o livre do tribunal? Tenha um bom dia, sr. Rayburn. E, como minha santa avó dizia: Tu sei un pezzo di merda. Fongule e tuo capra! — Lina se levantou, alisou a saia e fechou a valise de couro com um baque. — Ah, que falta de educação a minha... O senhor não fala italiano! Permita-me traduzir as sábias palavras de minha antepassada: “Seu merda! Vá f... uma cabra!”. Arrivederci .

Lina fez meia-volta e atravessou o escritório decorado, sorrindo cinicamente para a bem maquiada recepcionista.


Capítulo 2

Era uma questão de intuição, Lina lembrou a si mesma, acelerando o BMW até quase voar pelo viaduto da Rodovia 51 enquanto deixava a área comercial do centro de Tulsa para a badalada Cherry Street, onde ficava a padaria. Da próxima vez, seguiria seus instintos, e, quando estes lhe dissessem que deveria sair correndo , não seria tão estúpida a ponto de contratar outro idiota como aquele.

Que diabo tinha pensado?

Suspirou. Sabia bem: que precisava de ajuda. A parte financeira da empresa nunca fora o seu forte. O pai sempre havia cuidado daquilo, mas, três anos antes, ele e a mãe dela tinham se juntado à sua avó numa casa de repouso da Flórida. E ele estivera tão certo de que a filha poderia dar conta das finanças sozinha que, no ano anterior, ela nem mesmo revelara ter desistido e contratado um contador.

E, em vez de pedir o conselho do pai sobre quem deveria contratar, ela se precipitara e escolhera o vulgar e insosso sr. Frank Rayburn.

— É o que você merece por ser tão orgulhosa — murmurou para si mesma enquanto virava na direção leste da 15 th Street , que, em dois quarteirões, se transformava na área conhecida como ­Cherry Street , a qual, por sua vez, a levaria até a porta de sua maravilhosa, incrível, bonita, e agora totalmente falida, padaria.

Sentiu um aperto na boca do estômago. Devia haver uma forma de pagar aquelas dívidas e manter seus dois funcionários de longa data, bem como seu nome e o ponto.

Agarrou o volante com uma das mãos e com a outra enrolou uma mecha de cabelo. Não venderia a firma. Não podia fazer isso.

Pani Del Dea, ou “Os Pães da Deusa”. O nome soava como mágica.

E estava indelevelmente relacionado às lembranças mais maravilhosas de sua infância. Pães de uma deusa eram o que ela e sua adorada avó costumavam fazer nas longas tardes de inverno enquanto assistiam a velhos filmes em preto e branco, e bebiam um cheiroso chá adoçado com mel.

— Carolina Francesca, você cozinha como uma pequena diva!

Ainda ouvia o eco da voz da avó, i ncentivando-a a experimentar receitas clássicas do Old Country , sua amada Itália.

— Si, bambina . Primeiro aprende a receita, testa e experimenta. Depois começa a adicionar un poco aqui, outro ali... Assim é que vai fazer o seu próprio pão.

E assim ela havia feito: sozinha, e com uma força de vontade que impressionara até mesmo sua progenitora, a qual já era tida como excepcional cozinheira.

E tanto sua avó se gabara de seu talento para os amigos que eles começaram a lhe pedir que assasse “algo especial” por ocasião de seus aniversários ou bodas. Quando ela se formara no ensino médio, já possuía uma clientela cativa, principalmente de viúvas e viúvos que apreciavam o sabor e a qualidade de seus pães caseiros.

A avó, então, se dispusera a mandá-la a Florença, para que ela estudasse na famosa escola de panificação Apicius.

E, dessa maneira, começara a dar forma e concepção ao seu sonho: o de possuir sua própria padaria.

A avó vivia lhe dizendo que a Itália e a panificação estavam em seu sangue desde menina. Por isso, após se formar na Apicius, ela finalmente ouvira os conselhos que recebera na infância e voltara para Tulsa.

E, com ela, havia trazido uma parte da Itália: seu estilo e seu romance, bem como uma surpreendente e rica variedade de pães e bolos.

Mais uma vez, a avó a tinha ajudado. Juntas, elas descobriram um edifício velho e malconservado, bem no meio da área artística de Tulsa conhecida como Cherry Street. Elas o haviam comprado e, aos poucos, transformado em um pedacinho de Florença.

Lina balançou a cabeça e desligou o rádio. Não podia deixar a Pani Del Dea falir. Aquilo não partiria apenas seu próprio coração, mas também o de sua avó.

E quanto aos clientes? A padaria era ponto de encontro de um grupo deliciosamente eclético, formado por excêntricos moradores locais, celebridades e aposentados. Era mais do que uma simples padaria. Era um verdadeiro centro social.

O que Anton e Dolores fariam? Eles trabalhavam para ela havia dez e quinze anos respectivamente. Podia até ser um clichê, mas aqueles dois eram mais do que funcionários: eram como se fossem da família. Até porque ela não tinha filhos.

Lina suspirou outra vez, então inalou o ar. Ao perceber o cheiro de fumaça de Pinyon se insinuando pelas janelas abertas do BMW, seus lábios se curvaram num breve sorriso apesar dos horrores do dia. Estava passando por Grumpy’s Garden, a pequena loja que assinalava o início do distrito de Cherry Street. Como de costume, “Grumpy”, que na realidade era uma senhora muito simpática chamada Shaun e, de modo algum, era mal-humorada como pregava o nome do estabelecimento, deixara várias de suas lareiras acesas, perfumando a vizinhança com o cheiro característico desse pinho do sudoeste dos Estados Unidos.

Lina sentiu o nó no estômago afrouxar conforme trocava a marcha e desacelerava o carro, tomando cuidado com os pedestres que atravessam as alamedas, entrando e saindo das lojas de antiguidades, livrarias new age , descolados estúdios de design de interiores e restaurantes exclusivos.

Finalmente, no coração da rua, entre um pequeno e moderno spa e uma joalheria vintage , avistou a Pani Del Dea.

Como sempre, havia poucos lugares para estacionar, e ela entrou na travessa ao lado a fim de parar em uma das vagas reservadas na parte de trás do prédio.

Mal saiu do carro, teve aquela sensação esquisita e familiar. Era sempre a mesma, embora variasse em grau e intensidade. Naquele momento, fora como se alguém muito distante houvesse chamado seu nome, e o vento tivesse carregado o eco direto para sua mente, sem que este tivesse passado por seus ouvidos.

Lina fechou os olhos. Não estava com tempo para aquilo. Não naquele dia.

Quase que no mesmo instante lamentou o pensamento e tratou de se recompor. Não permitiria que problemas financeiros afetassem seu modo de ser.

E parte dela era assim. Aquele era um dom seu.

Olhou ao redor e espiou as sombras nos cantos do edifício.

— Onde está, pequena? — chamou baixinho. Concentrou-se e uma vaga imagem surgiu em sua mente. Lina sorriu. — Vamos lá, bichano. Eu sei que está aí... Não precisa ter medo!

Com um miado fraco, uma gatinha malhada saiu, hesitante, detrás de um latão de lixo.

— Olhe só para você... parece uma florzinha de tão fofa! Venha aqui, menina. Está tudo bem agora.

Encantada, a gatinha laranja seguiu em linha reta para os braços estendidos de Lina.

Ignorando o estrago que o pelo desgrenhado e sujo da gata poderia fazer em seu terno de seda limpo e caríssimo, ela abraçou o animal sarnento.

Com os olhinhos cheios de adoração, a gatinha recompensou sua salvadora com um forte ronronar.

Lina não se lembrava de uma única vez em que não houvesse sentido uma forte afinidade com animais. Quando pequena, bastava que ela se sentasse calmamente em seu quintal e logo era visitada por coelhos, esquilos e até mesmo por arganazes, os ariscos ratos do campo. Cães e gatos a amavam. Cavalos a seguiam como filhotes de cachorro gigantes. Até mesmo as vacas, que Lina sabia terem o cérebro grande e mole, se curvavam caso ela se aproximasse demais de onde estas pastavam.

Os animais sempre a haviam adorado, porém apenas na adolescência ela percebera a extensão de seu dom: ela conseguia compreendê-los.

Mais ou menos. Não era nenhuma Dr. Doolittle ou coisa do gênero. Não podia conversar com eles. Gostava de pensar em si mesma mais como uma “encantadora de cavalos”, ainda que suas habilidades não se limitassem a esses bichos.

E tinha uma “coisa” extra que a maioria das pessoas não possuía. Às vezes, pressentia quando algum gato precisava de ajuda. Era algo que surgia em sua mente; uma espécie de conexão que conseguia ­realizar.

Sabia que era estranho.

Por um breve período, no ensino médio, havia pensado em se tornar veterinária. Até se oferecera para trabalhar numa clínica entre o segundo e o terceiro ano da faculdade, durante o verão.

Um verão em que aprendera que, embora sangue e parasitas fossem uma parte importante do trabalho veterinário, definitivamente não combinavam com aquela “coisa” especial que ela possuía com os animais. Apenas lembrar-se disso a fazia sentir arrepios e querer coçar o couro cabeludo.

— Em uma padaria, você nunca, jamais , tem que lidar com sangue ou parasitas — disse à gata laranja enquanto saía da ­travessa, virava à esquerda e inalava profundamente. — Magnifico! — murmurou no tom de voz da avó.

O sedutor aroma de pão recém-assado acalmou seus sentidos, e Lina aspirou o ar, satisfeita, ao identificar diferenças sutis: azeitonas, alecrim e queijo, casados com um doce cheiro de manteiga, canela, nozes, passas; e também dos licores que faziam parte da especialidade da padaria. Era o gubana, pão doce de Friuli, uma pequena região a leste de Veneza.

Fez uma pausa em frente à enorme vitrine da Pani Del Dea e assentiu com um gesto de cabeça, satisfeita, ao ver as travessas de cristal cuidadosamente dispostas em fileiras, repletas com uma enorme variedade de doces e biscoitos italianos.

O orgulho a invadiu. Como sempre, tudo estava perfeito.

Olhou através da vitrine e percebeu que cerca de metade das doze mesas de café com tampos de mosaico se encontrava ocupada. Nada mal para um final de tarde de sexta-feira, concluiu em pensamento.

Mudou a gatinha de braço e consultou o relógio. Eram quase quatro horas, e eles encerravam o expediente às cinco. Normalmente a hora que precedia o fechamento era tranquila. Hora em que tentavam liquidar a produção do dia.

Talvez essa fosse uma solução... Talvez devesse estender aquele horário.

Mas será que não precisaria de mais ajuda? Anton e Dolores já trabalhavam em turnos de tempo integral, e ela própria quase não se ausentava da padaria. O custo adicional, gerado por outro empregado, não anularia qualquer receita obtida das horas extras de trabalho?

Lina pressentiu o início de uma grave enxaqueca.

Obrigou-se a relaxar e espiou através da vitrine enorme e bem polida mais uma vez, observando os afrescos recém-pintados que decoravam as paredes. Aquilo também era parte da cara reforma que acabara de ser concluída.

Contudo, tinha valido a pena pagar caro para que Kimberlei Doner, um conhecido artista e ilustrador local, pintasse as paredes da Pani Del Dea com cenas autênticas da Florença antiga. As pinturas, somadas à leve instalação vintage e às mesinhas de café, criavam uma atmosfera que fazia seus clientes se sentirem como se tivessem deixado as ruas de Tulsa para serem transportados até a velha e mágica Itália.

— Vamos entrar e ver o que podemos fazer por você — Lina disse à gata, que ainda ronronava em seus braços. — Primeiro vou cuidar desta minha nova amiga, depois vou pensar no que fazer com essa dívida — resolveu, desejando desesperadamente que o dinheiro viesse até ela com tanta facilidade como os gatos.

O sino de vento em cima da porta tilintou, alegre, quando Lina adentrou a Pani Del Dea, e ela ficou ali por um momento, ­deleitando-se com a cena familiar. Anton lidava com a máquina de ­ cappuccino e cantarolava o refrão de All That Jazz , do filme ­ Chicago . Dolores explicava a um casal de meia-idade a diferença entre panetones e colombas.

Eram as únicas pessoas na loja que ela não conhecia, pensou.

Anton ergueu a cabeça quando vários clientes a cumprimentaram. Ao vê-la, seus lábios cheios começaram a se curvar num sorriso, porém logo se apertaram, resignados, diante da gata nos braços dela.

— Oh, vejam! É a nossa destemida líder, a Protetora dos Bichanos! — exclamou, com um gesto teatral em sua direção.

— Não comece, Anton, ou pego de volta o DVD de Chicago que lhe dei no seu aniversário — Lina ameaçou, fingindo estar zangada.

— Está me magoando! — O biquinho do funcionário se transformou em uma exclamação, e ele levou as mãos ao coração, como se tivesse sido esfaqueado.

Dolores riu ao terminar de atender ao pedido do casal.

— Ele passou o dia cantarolando All That Jazz . Está pior do que naquela fase do Moulin Rouge .

— Os musicais não são uma “fase”. São uma paixão — Anton afirmou.

— Então deveria me compreender. Ajudar os animais é a minha! — replicou Lina.

O rapaz revirou os olhos e suspirou dramaticamente.

— Eu até decorei o telefone do tal resgate, o “Gatos de Rua”.

— Faça logo essa chamada — ela ralhou.

Ao ver que Anton discava o número, piscou para ele, agradecida.

— Lina! Eu estava ansiosa por vê-la hoje.

Lina sorriu e caminhou até a mesa próxima à vitrine. Em vez de falar com a mulher de cabelos escuros que tinha acenado para ela, no entanto, cumprimentou primeiro o schnauzer micro, sentado como uma vareta sobre a almofada escarlate, aos pés de sua dona.

— Dash, como você está bonito hoje! — A gatinha laranja se eriçou em seus braços, porém ela a acalmou com um afago distraído.

— Também... Ele acabou de chegar de um banho na petshop .

Lina sorriu para o bem-comportado cachorrinho.

— Nada como um dia no salão de beleza, não é mesmo, querido? Quem não precisa disso? — Voltou a atenção para a dona de Dash. — Como está o pão de azeitona, hoje, Tess?

— Excelente. Sim plesmente divino, como de costume. — O sotaque de Tess, típico da cidade de Tahlequah, era lento e melódico. — E este San Angelo Pinot Grigio que Anton recomendou, ficou perfeito com o pão!

— Que bom. Nosso objetivo é agradar.

— Por isso mesmo quero falar com você. A Associação dos Poetas e Escritores de Oklahoma escolheu sua “Autora do Ano”, e teremos vários eventos para homenageá-la na semana que vem. Quero me certificar de que poderemos contar com uma seleção de seus excelentes pães para o jantar.

A mente de Lina voou para longe . Tess Miller era a diretora da Associação dos Poetas e Escritores de Oklahoma, bem como apresentadora de um talk-show regional muito popular... além de uma das clientes mais leais da Pani Del Dea. Fazia anos que Tess e Dash paravam na padaria durante suas caminhadas diárias, a ponto de Lina, ter mandado fazer uma almofada especial para o pequeno schnauzer , a qual ela mantinha em um cantinho confortável sob a caixa registradora.

Certamente não havia ninguém melhor com quem começar a sua expansão.

Mesmo que ainda não tivesse certeza de que expansão seria essa.

— Ahn, Tess... — Lina engoliu em seco. — Claro que eu adoraria fornecer quaisquer pães de que possa precisar, mas eu também gostaria de conversar com você a respeito do nosso novo sistema de buffet . Talvez possamos cuidar de todo o menu.

— Mas isso seria esplêndido! Estou certa de que qualquer coisa que preparar ficará perfeita. Posso telefonar na segunda-feira? Assim poderá me fornecer as opções de cardápio, e eu a colocarei a par dos detalhes.

Lina viu-se acenando e sorrindo enquanto se afastava da mesa e manteve o sorriso tenso estampado no rosto enquanto se dirigia para o balcão e falava com cada um dos c lientes pelo caminho.

Apenas quando chegou à bancada e se deparou com as expressões chocadas nos rostos de Anton e Dolores foi que vacilou.

— Eu ouvi você dizer a palavra “buffet ”? — Anton indagou num sussurro.

— E “todo o menu”? — emendou Dolores com voz esganiçada.

Lina fez um gesto com a cabeça em direção ao fundo antes de cruzar as portas cor de creme que dividiam a cozinha, o depósito e o escritório do restante da padaria.

Seus dois funcionários correram atrás dela.

Enquanto empurrava a assustada gatinha laranja para dentro do transportador de animais que ela havia tirado do armário, falou rapidamente:

— Sabem a reunião que tive com meu contador hoje? Não era uma boa notícia. Estou devendo uma fortuna para a Receita ­Federal.

Anton chupou o ar num gesto exagerado e empalideceu.

— Deus, Lina! É tão ruim assim? — Dolores soou como se tivesse doze anos de idade.

— É. — Ela olhou atentamente para cada um deles. — Pior do que imaginam. Por isso teremos que fazer algumas mudanças.

Lina registrou o horror na face dos empregados. Os olhos de Anton se encheram de lágrimas, e o rosto já pálido de Dolores perdeu o resto da cor.

— Ei, pessoal, vamos com calma! Não é nada do que estão pensando. Vocês manterão seus empregos. Todos nós manteremos nossos trabalhos.

— Ah, meu Deus! Eu preciso me sentar. — Anton se abanou.

— Para o meu escritório, rápido. Nada de desmaios! — Ela apanhou o transportador de animais e estalou a língua para a gatinha malhada enquanto caminhava. — E nada de chorar também! — falou por sobre o ombro. — Lembrem-se...

— ...É proibido chorar na cozinha! — Anton concluiu a frase por ela.

Dolores concordou vigorosamente.

Lina colocou o transportador com a gata ao lado da escrivaninha, depois se acomodou em sua poltrona. Anton e Dolores afundaram nas duas cadeiras estofadas de frente para ela.

Ninguém falou.

Hesitante, Anton fez um gesto vago na direção do gato.

— Patrícia, do “Gatos de Rua”, disse que vai ficar um pouco além do expediente, hoje. Se quiser, posso deixar essa coisinha laranja lá quando estiver indo para casa... Não fica muito fora do meu caminho — concluiu com um sorriso fraco.

— Obrigada, Anton. Vou aceitar a sua oferta, apesar de você tê-la chamado de “coisinha laranja”.

— Na verdade eu ia dizer “monstrinho laranja”, mas resolvi ser um sujeito agradável — provocou Anton, soando mais como si mesmo e já não tanto como um candidato a ter um colapso nervoso.

— O que vamos fazer? — Dolores perguntou.

Mais centrada, a moça continuava atenta à situação. Embora tivesse apenas vinte e oito anos, trabalhava na Pani Del Dea havia dez. O fato de ter a mão maravilhosa para bolos e um jeito todo especial com os mais velhos não foi o único motivo pelo qual fora contratada. Lina também apreciava sua personalidade forte. Dolores era o contraponto perfeito para o estilo dramático de Anton, concluiu, ao observar os modos do outro funcionário. Ele estava sentado, com as pernas delicadamente cruzadas, e os olhos piscando, ainda meio marejados.

Os três se davam bem, e ela pretendia que isso conti­nuasse assim.

— Vamos ampliar nosso cardápio — falou com firmeza.

— É uma ideia — Dolores aquiesceu, pensativa. Anton roeu a lateral do polegar.

— Estão querendo dizer, adicionar sanduíches ou algo assim?

— Eu ainda não tenho certeza — confessou Lina. — Não tive tempo para pensar sobre o assunto. Só sei que temos de ganhar mais dinheiro, o que significa que precisamos atrair mais clientes. Teoricamente, se expandirmos o nosso menu, atingiremos um grupo maior de pessoas.

Anton e Dolores balançaram a cabeça em concordância.

— Fornecer o jantar de Tess Miller é um bom começo, sem dúvida — aderiu a moça.

— Fornecer o jantar — repetiu Anton com desdém. — Não sei, isso me parece tão vulgar!

— Vulgar como a falência? — Lina indagou com cinismo.

— Não! — Anton se desesperou.

— Pois é.

— O que vamos servir, então? — Dolores se inquietou.

Lina correu os dedos pelo cabelo bem cortado. Não fazia a mínima ideia.

— Vamos servir as opções do nosso menu completo. Dessa forma obteremos prática, assim como uma boa publicidade.

— E esse “menu completo” seria o que, exatamente? — incitou a funcionária.

— Não tenho ideia — ela admitiu.

— E pensar que eu não trouxe nem um Xanax 1. para o trabalho, hoje! — Anton se pôs a roer o polegar de novo.

— Pare com isso! — admoestou Dolores. — Nós vamos dar um jeito nesta situação! — afirmou, desviando o olhar para Lina. — Não vamos?

O coração dela se apertou. Eles pareciam passarinhos com os bicos escancarados, na expectativa.

— Claro que vamos — respondeu com voz confiante. — Tudo o que eu preciso fazer é... — hesitou, e seus filhotes piscaram seus enormes olhos redondos, esperando, ansiosos, por suas palavras — ...é um brainstorm — concluiu finalmente.

— Brainstorm? Como se faz antes de escrever uma redação? — Anton, eterno estudante esporádico do curso noturno da Tulsa Community College, agarrou-se à única definição que lhe pareceu familiar.

— Claro! — Dolores acrescentou, entusiasmada. — Lina decerto tem um zilhão e meio de livros sobre culinária em casa. Tudo o que ela precisa fazer é escolher as melhores receitas!

— Então ela vai compartilhá-las conosco, e vamos pôr a mão na massa! — emendou Anton. — Que delícia! Mal posso esperar! — Ele agarrou a mão de Dolores e a apertou. — Eu me sinto péssimo por ter ficado tão negativo no início. Quase me esqueci do nosso “Lema do Padeiro”...

Eles sorriram um para o outro e, em seguida, como se fossem declamar o Pledge of Allegiance , juramento tradicionalmente feito nas escolas americanas, puseram as mãos sobre o coração e, em uníssono, recitaram, solenes:

— Uma vez na panificação, sempre à altura da situação!

Lina se perguntou se não estava num manicômio de padeiros, mas continuou aquiescendo e sorrindo. Dolores estava correta em parte, afinal, ela possuía mesmo uma maravilhosa coleção de livros, todos lotados com receitas fabulosas para pães e bolos...

Mas pouquíssimos contendo receitas para jantares e banquetes. Na verdade, nem sequer cozinhava muito para si mesma. Um pouco de macarrão aqui, uma salada ali, e uma boa taça de Chianti era sua ideia de refeição completa.

Assar, sim, era sua especialidade e sua paixão.

Quanto a jantares... bem, eram algo quase banal. Na realidade, não tinham nada a ver com ela, Lina admitiu para si mesma.

Aquela ideia toda não tinha nada a ver com ela.

Sentindo-se como um pardal que lutava para alimentar os cucos em seu ninho, Lina continuou sorrindo e balançando a cabeça para os pintinhos.

— Bem, acho que já ficamos distantes da linha de frente por muito tempo. Agora que temos um plano, por favor, vão tocando as coisas por aqui até a hora de a padaria fechar. Vou para casa começar o brainstorm .

— Tess vai ligar para você na segunda-feira para conversarem sobre o menu, não vai? — Dolores perguntou.

— Foi o que ela disse. — Lina tentou manter o pânico longe da voz.

— Ah, que emocionante! Aposto que vai haver um monte de celebridades nesse jantar! — Anton balançou as sobrancelhas bem cuidadas. — Sem falar na cobertura da mídia.

— Imagino que sim.

Lina deixou o escritório a passos largos. Conforme se despedia rapidamente dos clientes e rumava para a porta, ainda pôde ouvir Anton dizendo a Dolores que ele precisaria de vários modelitos novos para combinar com o novo menu.

Respirou fundo. Sua avó lhe dissera, muitas vezes, que falar palavrões era um comportamento reprovável, especialmente para as mulheres, e reservado apenas para campesinos e homens sem classe.

Mas que não tinha nada contra uma praga italiana bem pronunciada, destinada apenas a demonstrar um pouco de “criatividade”...

Parada em frente à padaria, Lina desfiou um verdadeiro rosário de obscenidades, começando com va al diavolo, passando por merda e alla malora e terminando por dizer aos funcionários da Receita que eles eram todos uns rompicoglioni .

Num perfeit o sotaque italiano, claro.

Sua avó teria ficado orgulhosa.

Quando as pessoas começaram a olhar, entretanto, calou a boca e disse a si mesma para respirar lenta e profundamente. Afinal, era uma mulher de negócios inteligente e bem-sucedida.

Mesmo podendo blasfemar à vontade em italiano e em inglês, tentou manter o inglês ao mínimo. A avó tinha razão: um doce de pessoa não falava aquelas coisas.

E, sim, sua avó também teria apreciado o trocadilho...

Inferno. Não podia ser tão difícil para ela inventar novas opções de cardápio. Mesmo que fossem refeições e não pães.

Começou a torcer uma mecha de cabelo, porém se conteve e obrigou a mão a ficar de lado. O problema não era inventar receitas novas. A questão era que, por meio da Pani Del Dea, ela já estabelecera uma sólida reputação quanto a preparar pães originais e deliciosos. Agora não podia simplesmente derramar um molho pesto sobre uma massa e colocar uma salada ao lado de um prato. Se não pudesse fazer a coisa direito, preferiria nem fazer. O nome Pani Del Dea era sinônimo de excelência, e ela cuidaria para que este nunca representasse menos do que isso.

Cogitou ligar para a avó. Ela teria um monte de ideias e ficaria feliz em compartilhá-las com a sua amada bambina mais uma vez.

— Mas que bambina , “santa”?! — Lina murmurou para si mesma, imitando Anton. — Já passou dos quarenta... Está mais do que na hora de parar de correr para o colo da vovó.

O monólogo de Lina foi interrompido pelo som de risadas vindo de duas mulheres que tinham acabado de sair do sebo, no outro lado da rua. Ela fez uma careta, desejando poder se preocupar apenas em sair com uma amiga para comprar um livro.

A careta se desfez e Lina ficou pensativa. A Toca do Livro era um sebo maravilhoso, com uma vasta seleção de livros de ficção e não ficção. Ela mesma já havia passado horas perdida naquele labirinto de prateleiras. Certamente poderia encontrar algo fabuloso nas estantes; algo que tivesse permanecido na obscuridade por anos e contivesse em suas páginas uma mistura perfeita de Itália, magia e ingredientes...

Sim, pensou, enquanto se esquivava dos carros e atravessava a rua. A Toca do Livro era o lugar perfeito para começar um ­brainstorm .


Capítulo 3

A pilha de livros usados era assustadora. Lina já tinha encontrado dez volumes antigos de culinária italiana. Interessantes de olhar e esgotados no mercado. Enquanto estivera escolhendo, estes não lhe pareceram tão espessos, ou númerosos.

Mas agora que ela os trouxera para casa e os empilhara sobre o tampo de vidro da escultura de ferro forjado que utilizava como mesa de centro, estes pareciam ter se multiplicado.

Não poderia ter limitado suas escolhas e selecionado menos livros antes de sair do sebo?

— Uma vez na panificação, sempre à altura da situação! — falou para o enorme gato preto e branco, de pelos compridos, deitado bem no meio da chaise longue da mesma cor.

A combinação perfeita fez Lina sorrir. Ela gostava de comprar móveis que agradassem a seus animais de estimação, mesmo que seu gato não se dignasse a lhe agradecer por isso. Mesmo assim, recebeu um breve olhar de tédio e um rápido balançar de cauda, vindo do outro lado da sala, em resposta à sua declaração.

— Patchy Poo the Pud Santoro — ela se dirigiu formalmente ao gato, por seu nome completo. — Você é um belo animal, mas não entende nada de panificação.

A seus pés, a sonolenta buldogue inglesa, de meia-id ade, bufou como se concordasse.

— Não seja maldosa, Edith Anne — Lina repreendeu a cadela sem entusiasmo. — Vocês dois entendem muito mais de comer do que de cozinhar.

Edith suspirou, satisfeita, quando sua dona coçou-lhe a orelha direita.

Com a mão livre, Lina apanhou o primeiro livro. Era uma brochura espessa, intitulada Descobrindo a Itália Histórica . Abriu-a com dificuldade e começou a ler um parágrafo longo e complexo sobre a preparação adequada de vitela.

Empalideceu e tratou de fechar o livro. Vitela podia ser um prato popular na Itália, porém ela só conseguia pensar nos filhotes de vaca aparvalhados, de olhos enormes e adoráveis.

— Talvez nem sempre seja possível ficar à altura de uma situação difícil sem uma preparação adequada... — falou à buldogue, que agora roncava. — Na panificação ou não. — Devolveu o imenso livro à mesa como se este fosse uma bomba que poderia explodir a qualquer momento se não tratada com cuidado.

— Acho que esta situação, em particular, pede uma boa taça de vinho tinto italiano — disse a Patchy Poo the Pud Santoro.

O gato a fitou com os olhos semicerrados e bocejou.

— Vocês dois não ajudam em nada!

Balançando a cabeça, Lina afastou-se da mesa e se dirigiu para o armário onde guardava os vinhos. Em sua opinião, um Monte Antico Rosso Sangiovese era o acompanhamento perfeito para qualquer situação difícil... relacionada ou não à panificação.

— Eu deveria mais era servir um vinho italiano tão bom com o meu novo menu, que os clientes nem prestariam atenção ao que estivessem comendo, de tão bêbados — falou por sobre o ombro enquanto se servia da bebida.

Porém nem precisou de uma “não resposta” de seus animais de estimação para saber que sua última declaração era ridícula. Se fosse assim, ela estaria administrando um bar e não uma padaria, o que certamente provocaria um ataque apoplético em Anton.

Lina endireitou a espinha, agarrou um saco de amendoins cobertos com uma grossa casquinha de chocolate, o acompanhamento perfeito para o Sangiovese, e marchou de volta para a sala de estar. Acomodou-se no sofá, abriu o notebook e apanhou na pilha o livro seguinte: Cozinhando com a Itália .

Cão e gato ergueram as cabeças e, de forma idêntica, lançaram-lhe um olhar zombeteiro.

— Que comecem os jogos! — ela declarou, séria.

Três horas depois, Lina havia vasculhado nove dos dez livros e contava com uma lista de quatro possíveis receitas para o prato principal: pollo picatta , spaguetti alla puttanesca , melanzane alla parmigiana e il grande aioli , uma travessa com alcachofra, azeitonas, tomates, salmão poché e carpaccio, regados com aioli , um tipo de maionese à base de alho.

Sentiu uma pequena comoção ao olhar para sua lista. Estava realmente se divertindo. Pesquisar nos livros mofados tornara-se uma verdadeira aula de História e cultura italianas, duas coisas que tinham sido parte integrante de sua educação.

Faltava apenas um livro de receitas agora, o de capa fina, que ela havia guardado propositadamente para o final. No sebo, ela ficara intrigada com a capa, que era de um azul-royal profundo, com um desenho em relevo gravado em ouro. O título, O Livro de
Receitas da Deusa Italiana, encimava a figura dourada de uma deusa circunspecta, sentada em um enorme trono, vestida com uma túnica longa e com os cabelos enrolados em volta da coroa em intrincadas tranças. Em uma das mãos ela segurava um cetro cuja cabeça era uma espiga de milho maduro. Na outra, empunhava uma tocha flamejante. Sob a ilustração, as palavras “Receitas e mágicas para a deusa que existe em cada mulher” também estavam escritas em ouro. O nome da autora, Filomena, fora gravado na capa, embaixo da impressão em alto-relevo.

— Só mais uma... Ajude-me a encontrar apenas mais uma receita, e vou estar com a noite ganha! — pediu Lina, passando a mão sobre a figura.

Sentiu os dedos formigarem e franziu o cenho. Descansou o livro no colo e esfregou as mãos. Devia estar cansada.

Olhou para o relógio. Tinha passado apenas um pouco das nove horas, mas aquele fora um longo dia.

Concentrou-se novamente na capa do livro. A impressão em ouro parecia captar a luz da luminária, fazendo com que a palavras “Receitas e mágicas para a deusa que existe em cada mulher” ­cintilassem.

Que coincidência estranha o fato de uma mulher que cozinhava como uma diva italiana houvesse encontrado uma cópia antiga de O Livro de Receitas da Deusa Italiana ! Sua avó a teria atribuído a la magia dell’Itália , sem dúvida.

Num impulso, fechou os olhos. Acreditava na magia da Itália. Já a tinha experimentado no mármore multicolorido do Duomo de Florença, nas janelas enfeitadas por floreiras repletas de gerânios de Assis, e no maravilhoso e lúgubre Fórum Romano, durante a noite.

Concentrou-se no amor que sentia pela terra natal da avó e abriu o livro que repousava em seu colo em uma página qualquer.

Abriu os olhos e começou a ler.

Pizza alla Romana, ou pizza por metro. Esta receita extraordinária vem de Roma. É aconselhável deixar que a massa, macia e flexível, descanse por muito tempo, cerca de oito horas. Quanto mais, melhor. Em seguida, coloque-a numa pá de forneiro de mais ou menos oitenta centímetros de comprimento, sovando-a de modo ritmado e com tal vigor que, literalmente, esta dance sob seus dedos.

Lina piscou, surpresa, e sorriu. Pá de forneiro! Aquela pá de madeira comprida, usada para soltar o pão dentro e fora do forno. A Pani Del Dea tinha várias delas, claro.

Continuou lendo:

Quando a massa parar de balançar, besunte-a com óleo e coloque a pá no forno, onde o mais inesperado acontece: bem devagar, retire a pá, esticando essa pasta maleável, até que ela se torne uma pasta fina e incrivelmente leve, de até surpreendentes dois metros, dependendo do tamanho do forno de cada diva.

Ora, a Pani Del Dea possuía vários fornos compridos. Ela poderia esticar a massa até o limite de dois metros!

Lina esquadrinhou o resto da receita. No livro havia também vários recheios, desde um específico para Pizza Bianca , feito apenas com azeite, alho, sal, alecrim e pimenta, até o da Pizza Pugliese , um exagero completo com os ingredientes favoritos da Itália: berinjela, provolone, anchovas, azeitonas... A lista não tinha fim.

— Esta pode ser a resposta. Por que lidar com um monte de receitas diferentes? Por que não ter apenas uma especialidade, Pizza alla Romana , por exemplo, com diversas variações? Sem dizer que isso ainda seria panificação!

Reagindo à excitação na voz da dona, Edith Anne se manteve acordada apenas o suficiente para um latido abafado de apoio. Patchy Poo the Pud exerceu o papel inato de um gato e a ignorou completamente.

Lina deu um tapinha na cabeça da cadela enquanto estudava a receita da massa.

Por esta massa utilizar pouca levedura e necessitar de muito tempo para crescer, uma diva pode incluí-la em sua movimentada agenda americana, preparando-a à noite com água fria e refrigerando-a logo após a mistura. Na manhã seguinte, só precisará colocá-la num local fresco para que cresça lentamente durante todo o dia à temperatura ambiente. Depois disso, basta abri-la e assá-la para o jantar.

Lina correu os olhos pela lista de ingredientes: fermento, água, farinha, sal, azeite de oliva... sim, claro que tinha tudo. Poderia fazer a massa naquela mesma noite, deixá-la descansar por todo o dia seguinte, e então ela e seus “filhotes” poderiam prová-la.

Encantada, Lina se pôs a ler sobre os preparativos:

Antes de começar, você precisará de uma vela verde para representar a Terra e a deusa que honramos com esta receita. É Ela, que dá vida à farinha com a qual nossa massa é fabricada: Deméter, a Grande Deusa da Colheita, das Frutas e das Riquezas da Terra.

Os olhos de Lina se arregalaram.

Quando começar os preparativos, acenda a vela verde e concentre os pensamentos em Deméter. Só então deverá dar início a receita.

Lina correu os olhos pela receita. Intercaladas nas orientações para mexer o fermento e misturar a farinha e o sal, havia instruções do Além!

Leu uma das linhas com a testa franzida. Seria uma mágica?

Tratou de ler outra. Aquilo parecia mais uma invocação, ou talvez uma oração.

Fosse qual fosse o nome da coisa, porém, as coordenadas sobrenaturais eram, definitivamente, parte integrante da receita.

Não pôde deixar de sorrir. La magia dell’Itália ...

Sua avó aprovaria aquilo, sem sombra de dúvida.

Cantarolando, foi em busca de uma vela verde.


Capítulo 4

Lina olhou ao redor do balcão e acenou com a cabeça, satisfeita. Tinha reunido todos os ingredientes e utensílios de cozinha necessários para o preparo da massa.

E ainda havia encontrado uma pequena vela verde que recendia vagamente a pinho. Era uma relíquia do Natal anterior, e ela tivera que revirar duas caixas de enfeites antes de encontrá-la.

Abriu o livro e o colocou sobre o balcão, ao lado de sua tigela de aço inoxidável favorita.

Então, começou a ler.

Em primeiro lugar, acenda a vela verde e concentre-se em Deméter, Mãe da Colheita.

Sendo uma chef consumada, Lina seguiu as instruções com precisão.

Acendeu a vela e permitiu que os pensamentos fluíssem para a deusa da Colheita, divindade esquecida havia tanto tempo, perguntando-se quantos rituais culinários lindos e excêntricos não teriam sido esquecidos com ela.

Continuou a ler:

Misture o fermento na água morna de uma tigela pequena e deixe essa mistura repousar por cerca de dez minutos, até ficar cremosa.

Ela suspirou, sentindo-se relaxada e feliz conforme suas mãos experientes se moviam.

Enquanto a levedura descansa, concentre-se e respire fundo três vezes, de modo a realizar uma limpeza. Imagine a energia sendo filtrada pelo centro do seu corpo, percorrendo sua espinha até a cabeça, e depois se derramando como numa cachoeira ao redor, para ser reabsorvida em seu âmago novamente. Quando se sentir revigorada, poderá começar a Invocação de Deméter.

As instruções a lembraram um pouco de uma aula de relaxamento new age que havia tido uma vez.

Sorrindo, Lina acertou o timer da cozinha para dez minutos antes de dar início às etapas do exercício de concentração.

Tinha de admitir que, em pouco tempo, se não estava se sentindo, assim, revigorada , ao menos se sentia bem mais desperta e atenta.

Voltou para a receita.

Quando estiver pronta, leia o seguinte em voz alta: “Ó graciosa e magnífica Deméter, deusa de tudo o que é cultivado e colhido... Eu clamo por parte da tua presença, para que enriqueças o presente generoso que tão abundantemente já forneceste. Peço também que sopres a tua magia nesta cozinha... ”

O timer soou e Lina de um pulo, surpresa pelos dez minutos terem passado tão depressa.

Misture a farinha e o sal em uma tigela grande enquanto invoca: “Vem, Deméter, eu te chamo com este sal e farinha, riquezas da tua terra!”

O ritmo da invocação combinava harmoniosamente com a receita, e Lina encontrou-se ansiosa por ler as linhas seguintes.

Faça um buraco no centro da farinha; em seguida despeje o fermento dissolvido, 1 xícara mais 3/4 de água, 1 colher de sopa de óleo e a banha. Fale com a diva enquanto misturar a farinha aos poucos no líquido e produzir uma massa leve da qual poderá fazer uma bola: “Rogo-te, ó deusa da Colheita, e te dou boas-vindas aqui, no centro daquilo que tu criaste.” Então amasse-a sobre uma superfície revestida com farinha até ficar macia, lisa e maleável, de dez a quinze minutos, polvilhando com mais farinha conforme a necessidade. À medida que a massa tomar forma, recite o seguinte a Deméter: “Que o poder seja evocado, que me venha a energia... E que ele me una a ti, ó deusa da Colheita. Faz-me maior e melhor. Dá-me força e concedei-me o domínio... ”

As mãos de Lina se moveram de modo ritmado enquanto ela espalhava a massa sobre a bancada. Seus olhos se fecharam com as palavras, as quais lhe vieram tão facilmente aos lábios como o movimento familiar às suas mãos.

— Ó, Deméter, minha irmã e guardiã, eu te dou graças. Que o meu chamado caia com leveza nos teus ouvidos, e possam tua sabedoria e força permanecer comigo, crescendo com tanta perfeição quanto os grãos maduros para a colheita...

Lina continuou a amassar a mistura, os pensamentos correndo soltos. Que intrigante era casar a magia de uma deusa antiga com a perfeição de uma receita que fora passada de mãe para filha e preservada por gerações! Era uma ideia tão maravilhosa e natural instar a força de uma diva por meio da culinária.

Se aquilo funcionava de verdade, se uma deusa realmente ouvia ou não, isso era outra história. O fato era que se tratava de um lindo e poderoso ritual. Um ritual que, no mínimo, poderia ajudá-la a focar os pensamentos no que era positivo e lembrá-la de ter sempre um momento para desfrutar a feminilidade da carreira que escolhera.

O perfume adocicado da vela de pinho mesclou-se ao da levedura e da farinha, e o aroma final era delicioso e inebriante.

De repente, alimentada pela estranha fragrância, Lina sentiu uma onda de sensações percorrerem o corpo. Por um momento, ficou tonta e desorientada, como se tivesse sido subitamente deslocada da cozinha e transportada, com massa e tudo, para o meio de uma floresta de pinheiros.

Esfregou as costas da mão cheia de farinha na testa. Sentiu-a quente, porém seu próprio toque a recompôs, e a tontura se dissipou.

Tinha sido um dia difícil. Não devia estar surpresa por se sentir daquela maneira.

Moveu os ombros e fez a cabeça pender para a frente e para trás, fazendo com que seus músculos sobrecarregados pelo cansaço se alongassem e relaxassem. Com certeza dormiria bem naquela noite.

Olhou a conclusão da receita. Eram as mesmas instruções de costume: deveria colocá-la numa tigela, cobri-la e esperar que crescesse por pelo menos oito horas.

Impaciente, correu os olhos pelo restante da receita a fim de completar o ritual.

Retire uma pequena porção da massa. Escolha um lugar especial, do lado de fora, onde possa deixar sua oferenda. Respingue-a com vinho e apresente-a a Deméter, dizendo: “Ó, deusa da Colheita abundante, da força, do poder e da sabedoria, eu te louvo, te venero e te agradeço. Bendita sejas!”. Nota: É possível acrescentar um pedido pessoal ou outros louvores antes da conclusão do ritual. Que chovam bênçãos sobre você, e que a fome nunca lhe aflija!

Lina abriu um sorriso sardônico. A curva de seus quadris só lhe permitia sentir fome de vez em quando. Não que fosse gorda, corrigiu-se depressa. Era apenas... vo­luptuosa.

E ser assim não era exatamente agradável naqueles tempos.

Bufou. Jamais entenderia a obsessão da atual geração por aquelas mulheres desnutridas que morriam de fome ou então vomitavam qualquer coisa que ameaçasse lhes arredondar os corpos. Ela era toda suavidade e curvas, e preferia a si mesma dessa forma.

— Eu sou como uma deusa — falou com firmeza.

Sem mais hesitação, tirou um pequeno pedaço da massa recém-preparada e o colocou de lado para remodelar e cobrir o resto. Já havia feito a invocação, portanto era justo que partisse direto para a conclusão. Afinal, uma boa cozinheira nunca deixava uma receita por completar.

Não levou muito tempo para arrumar sua já imaculada cozinha e carregar a máquina de lavar louças. Após secar as mãos, ­serviu-se de uma taça de vinho fresco e embrulhou o pequeno pedaço de massa em uma toalha de papel antes de sair do cômodo.

Equilibrando a taça e a massa em uma das mãos, abriu a porta do armário no corredor com a outra. Antes que vestisse o casaco, ouviu o ruído das patas de Edith no corredor azulejado.

Sorrindo, ela tirou a guia da buldogue de seu gancho.

— Não importa se está dormindo. Basta eu abrir a porta e você vem correndo, não é? — Riu, prendendo a guia na coleira da cadela.

A buldogue bocejou, depois fungou para ela.

— Eu sei que é tarde, mas tenho algo que preciso terminar e conheço o lugar perfeito para isso.

Longe de reclamar, Edith foi a primeira a alcançar a porta do apartamento. Tanto que Lina precisou fazer malabarismos para equilibrar o vinho sem derramá-lo.

— Calma, garota! — Ela guardou o pacotinho de massa no bolso da jaqueta e fechou a porta.

Era o início de março. A noite em Oklahoma encontrava-se excepcionalmente quente, e o ar parecia denso com a promessa da primavera.

Suspirando, Lina deixou que Edith a levasse para o centro do pátio bem conservado.

Uma sombra passou depressa por cima delas e chamou sua atenção. A lua cheia ia alta no céu: redonda, brilhante e da cor do chantilly .

Ela a fitou. Que tom de amarelo era aquele? Era tão diferente que emprestava aos arredores do condomínio estilo Tudor um brilho etéreo, lançando sombras meio sinistras sobre as sebes e as calçadas.

— Ah, faça-me um favor, Lina... Não pode estar vivendo um momento Senhora dos Anéis, pode? — admoestou a si mesma.

Dolores estava certa. Estava indo demais ao IMAX babar pelo Aragorn... O ritual e o frenesi em preparar aquela massa tinham, obviamente, lhe subido à cabeça se começara a ver formas estranhas por seu bem cuidado condomínio.

— Preciso contar isso a Anton — murmurou para si mesma. — Quem sabe eu o convença a dividir aquele Xanax comigo?

Na realidade, agora que estava lá fora, e o livro de receitas e feitiços se encontrava devidamente empilhado com os outros volumes de culinária em sua sala, estava começando a sentir-se um pouco tola.

— Eu devia ter tomado mais vinho antes desta parte da receita — resmungou para Edith, que moveu as orelhas para trás, em sua direção, e bufou, antes de prosseguir, apressada, por sua trajetória familiar. — Ou talvez eu só esteja esgotada e precise ir para a cama.

Estavam chegando à sua parte favorita do complexo: a enorme fonte de mármore que ficava bem no meio do pátio. Ao longo de todo o ano, esta jorrava água de um impressionante gêiser, a qual caía em cascata por três níveis côncavos e delicados.

Na verdade, fora aquela fonte que a convencera a comprar o apartamento no condomínio. Durante o verão, ela considerava aquela área coberta de pedregulhos e sombreada pelos velhos carvalhos ainda mais refrescante do que a piscina... e muito menos lotada. Nos meses de inverno, a fonte, assim como a piscina, era aquecida, e ela havia passado muitas das tardes frias de Oklahoma enrolada num cobertor, enquanto escutava a melodia suave da água caindo.

— É este o lugar perfeito e especial — falou para Edith Anne, que farejava um arbusto de azaleia. — Fique aí. Isto não vai demorar muito — completou, largando a coleira da buldogue.

Obediente, Edith plantou o largo traseiro no chão, depois pareceu reconsiderar e, com o suspiro típico dos cães, relaxou e se esticou no solo, observando a dona com olhos sonolentos.

O carvalho mais próximo era também o maior daquela área. Lina se aproximou cuidadosamente sob a luz amarelada do luar, cuidando para não tropeçar nos nós imbricados das raízes que tinham proliferado ao redor da base da árvore.

De súbito, eles lhe pareceram ameaçadores, despertando nela imagens de tentáculos ganhando vida e tentando agarrá-la, e de serpentes se contorcendo.

— Não seja ridícula — disse a si mesma, no tom que costumava reservar para os vendedores de perfumes genéricos , e o som de sua voz dissipou a perturbadora visão, devolvendo o carvalho à sua forma sólida e familiar.

Lina tirou o pequeno pacote de massa do bolso e olhou ao redor. Nada se movia. Nem mesmo Edith Anne, que parara de observá-la e agora roncava baixinho.

Ela se agachou e posicionou a bolinha de massa no vértice de duas raízes especialmente espessas que se encontravam na base da árvore.

Olhou em volta de novo. Certa de que, exceto pela buldogue que roncava, ela se encontrava sozinha, mergulhou os dedos no copo de vinho e espirrou gotas vermelhas sobre a massa.

Sentiu-se bem e sorriu. Parecia a coisa certa a fazer.

Ainda sorrindo, molhou os dedos outra vez e, divertindo-se, espirrou o excelente Chianti Classico em torno da base da árvore antiga.

Rindo tal qual uma menina, continuou espalhando a bebida sobre as raízes retorcidas até ver a taça de cristal vazia.

Em seguida, endireitou os ombros e limpou a garganta.

— Eu gostaria de dizer algo antes de encerrar este respeitável ritual.

Sorriu, mas tratou de se recompor, querendo parecer mais sóbria. Decerto não tinha a intenção de desrespeitar nada nem ninguém, mas rir ao final da invocação a uma deusa poderia ser considerado uma gafe.

Começou seu discurso novamente:

— Deméter! — Sua voz saiu com tal energia que o nome da divindade pareceu ecoar por todo o pátio.

Edith se agitou e abriu os olhos, mas apenas ajeitou o corpanzil e continuou com seu cochilo.

Lina engoliu em seco e suavizou a voz.

— Meu nome é Carolina Francesca Santoro, e eu quero que saiba que gostei muito do seu ritual. Creio que a massa vai dar uma pizza excelente, e estou ansiosa por prová-la.

Seu discurso de improviso lembrou-a do motivo pelo qual ela experimentara a receita, o que a deixou momentaneamente surpresa: já havia até se esquecido de seus problemas.

As linhas em sua testa se aprofundaram e seus ombros caíram.

— Espero que fique boa... Não. Eu espero mais: preciso que ela fique boa. Não posso perder a minha padaria. Ela é ­responsabilidade minha e muitas pessoas dependem de mim. Deméter, se estiver ouvindo, por favor, envie-me alguma ajuda! Em troca, eu vou... vou... — ela gaguejou e depois desabafou: — Droga, não tenho ideia do que poderia fazer por você. — Encolheu os ombros. — E peço desculpas por ficar praguejando assim, em inglês... É melhor eu dizer, de mulher para mulher, que eu realmente gostaria da sua ajuda e ficaria feliz em recompensá-la com o que eu puder.

Satisfeita, fechou os olhos, visualizando as palavras finais do ritual.

— Ó, deusa da Colheita abundante, da força, do poder e da sabedoria, eu te louvo, te venero e te agradeço. Bendita sejas!

Às palavras “Bendita sejas”, Lina foi invadida por uma imensa sensação de libertação.

Seus lábios se curvaram de leve. Era como se sua oração tivesse sido escutada e atendida.

Logicamente, ela sabia que aquilo não era possível, mas acreditava no poder do pensamento positivo, em promessas de autorrealização, em feng shui .

Abriu um sorriso. Acreditava no poder da magia dell’Itália.

Respirou fundo e abriu os olhos, surpresa, quando um ar adocicado lhe preencheu os sentidos. Que cheiro era aquele?

Tornou a encher os pulmões. Era maravilhoso!

Farejando a brisa suave como um cervo, Lina foi rodeando o carvalho. E parou abruptamente. Em meio ao emaranhado de raízes, na metade do caminho ao redor da árvore, uma flor perfeita havia crescido. Seu caule era longo e espesso, da largura de uma mangueira de jardim, e se estendia mais de meio metro até se transformar em uma espécie de sino com bordas onduladas.

— Nossa! Como você é bonita! Mas é muito cedo para um narciso silvestre. — Lina sacudiu a cabeça e, no mesmo instante, se corrigiu: — Quero dizer, para um narcissus florescer.

Podia ouvir a avó repreendendo-a:

Não chama ela pelo nome comum, bambina! Chama as bei fiora , as flores bonitas, pelo nome certo!

Mas, qualquer que fosse a sua denominação, a planta era incomum por outras razões além de sua floração precoce.

Maravilhada, Lina se agachou diante dela. A flor era de um amarelo claro e luminoso, como se um pedaço da lua tivesse caído na Terra e florescido naquela noite.

E ela não se lembrava de, alguma vez, ter visto um narciso daquele tamanho. Se fechasse a mão em punho, conseguiria fazê-la caber dentro das pétalas.

E que perfume!

Lina se inclinou para a frente e o aspirou. Nenhuma das flores de sua avó cheirava como aquela. Que aroma tinha? Ele lhe parecia familiar, contudo ela não conseguia nomeá-lo.

Respirou fundo outra vez. A fragrância fez seu coração bater mais depressa e o sangue correr mais rápido por seu corpo. Havia algo naquele perfume fantástico que despertava nela um desejo quase juvenil.

De súbito, Lina se lembrou de seu primeiro beijo. Acontecera muitos anos antes, porém o beijo continha aquela mesma doçura.

Suspirou. Era o aroma do que aconteceria se o luar e a inocência da primavera tivessem se unido para criar uma flor.

Piscou, surpresa, e soprou pelo nariz, como Edith, sua buldogue, costumava fazer. Estava ficando poética e romântica agora? Que coisa mais bizarra. Aquilo não tinha mais nada a ver com ela. Muito menos aos quarenta e três anos de idade!

Fora muito romântica, melosa e blá, blá, blá quanto ao amor, até que a vida, a experiência e os homens haviam curado sua ingenuidade.

Lina estreitou os olhos para a flor. Romance? Por que estava pensando naquilo agora? Jurara esquecer aquela baboseira em seu quadragésimo aniversário.

Pronto. Fim.

E não lamentara sua decisão.

Uma imagem de seu último namorado lhe veio à mente: cinquentão, empresário bem-sucedido, divorciado duas vezes, quatro filhos problemáticos... dois de cada casamento.

A melhor coisa que poderia dizer a respeito dele? O homem era coerente. Durante todo o jantar caro em um dos restaurantes favoritos dela, ele se queixara do tamanho da pensão alimentícia que precisava pagar para os filhos e de suas duas malditas e interesseiras “ex”, as quais nunca o tinham compreendido ou gostado dele. Tanto que, antes de o prato principal ser servido, ela já se vira em total empatia com suas antigas esposas.

E tal experiência resumia bem os homens de sua faixa etária. Podia até ser um clichê, mas, infelizmente, era a pura verdade: os melhores homens já haviam se comprometido, ou então eram gays . O restante não passava de carecas fracassados, que costumavam passar a noite se queixando sobre suas escolhas erradas.

Ou que, como seu ex-marido, tinham optado por ter como companheiras mulheres mais jovens e perfeitas. Mulheres capazes de fazer mais do que criar animais de rua. Mulheres capazes de gerar filhos.

Pare com isso! Lina se repreendeu. Por que estava pensando naquilo? Seu ex-marido era história, assim como seu desejo de se envolver com alguém. Falando com franqueza, considerava mil vezes melhor ficar em casa e fazer um bolo. Ou caminhar com o cachorro. Ou acariciar o gato... se ele estivesse disposto a aceitar tal mimo.

Decididamente, ela não se arrependia de ter desistido do romance.

Seus olhos focaram mais uma vez o estranho narciso. Era apenas uma flor... uma bela e apressada flor.

E ela havia tido um dia difícil, estranho, o que explicava por que estava se sentindo tão esquisita.

Ou talvez fosse uma questão hormonal.

Com um suspiro, lembrou a si mesma de pedir à mãe algumas orientações sobre climatério na próxima vez em que se falassem.

Uma leve brisa agitou o narciso, carregando outra nuvem de seu doce aroma até Lina.

Só mais uma cheiradinha, ela pensou, então pegaria Edith Anne e iria para a cama, onde já deveria estar havia muito tempo.

Apoiada nos calcanhares, projetou o corpo, tomando o pesado narciso nas mãos. Quando trouxe o rosto mais para perto, o miolo da flor em forma de sino se moveu.

Lina piscou. Mas, que diabo?!

Inclinou-se e olhou dentro das pétalas abertas.

Como a boca de uma eclusa sendo aberta, o choque fez todo o sangue drenar de seu rosto. Ao olhar dentro do narciso, o que viu foi o rosto de uma mulher incrivelmente jovem e bela. Seus enormes olhos cor de violeta estavam arregalados, os cabelos em total desalinho, e os lábios adoráveis encontravam-se semiabertos, como se ela houvesse sido apanhada em flagrante.

Lina tentou se mover, porém seu corpo se recusou a obedecê-la. Estava paralisada tal qual uma estátua viva.

O medo pulsou através dela, e seu coração disparou dolorosamente em resposta.

E então foi como se sua alma estivesse sendo arrancada do corpo por um gigante aspirador.

Por um momento, ela ainda foi capaz de olhar para trás e mirar a concha imóvel em que se transformara seu corpo físico antes de ser impulsionada para a luz ofuscante que emanava do centro do narciso em expansão.

Sua mente se rebelou conforme rodopiava para dentro da flor e do caule, e ela tentou gritar. Tentou parar. Tentou respirar... Mas não havia nada além daquele turbilhão e da sensação angustiante de deslocamento.

Quando pensou que fosse enlouquecer, sentiu um chacoalhão e foi cuspida para fora do caule, batendo em algo.

Lágrimas lhe inundaram os olhos e a impediram de ver mais do que imagens vagas e desfocadas.

Numa reação instintiva, Lina buscou ar. Ainda levados pela vertigem, seus braços se moveram ao redor até colidir com a terra gramada na qual seu traseiro descansava. Lutou para se ancorar e deixou o corpo cair, os braços abertos agarrando o chão.

Pressionou o rosto contra a grama. Estava ofegante e tremendo, e parecia presa numa teia de seda.

— Tirem isso de mim! Tirem! — Ainda em pânico, ela puxou o que a aprisionava. — Ai! Merda!

A dor de ter os cabelos quase arrancados penetrou sua mente conturbada e, no mesmo instante, sua visão clareou. Encontrava-se, na verdade, deitada sobre um gramado, e suas mãos tinham se enrolado em uma massa de cabelos cor de mogno, os quais, de tão longos, desciam até a cintura de sua dona...

Sua cintura.

Enquanto enxugava as lágrimas, Lina olhou para si mesma.

Respirou fundo, abriu a boca e gritou tal como uma figurante de filme trash .


Capítulo 5

— Acalme-se! Não há nada a temer por aqui.

Ainda lacrimejando, Lina olhou para si, aquele corpo definitivamente não era o dela. A poucos metros de onde estava, havia duas mulheres. A que se manifestara era alta, magra e tinha os cabelos grisalhos puxados rigorosamente para trás em um coque. Encontrava-se de pé ao lado da outra, que permanecia em silêncio... sentada em um enorme trono.

Lina piscou, não querendo acreditar nos próprios olhos. A que estava sentada usava uma espécie de túnica larga de linho creme, e tinha os cabelos loiros presos por meio de complicadas tranças, além de... — ela piscou outra vez, contudo a imagem permaneceu a mesma — ...uma coroa intrincada, com delicadas espigas de milho entalhadas em ouro, descansando regiamente sobre a cabeça. Em uma das mãos, segurava um longo cetro e, na outra, segurava um cálice dourado. Era linda, porém de uma beleza tão contundente que chegava a ser assustadora.

E ela a observava com atenção.

— Bem-vinda ao meu reino, Carolina Francesca Santoro, filha de humanos.

Milhares de perguntas borbulharam no cérebro de Lina, e, respirando em espasmos, ela tentou combater sua confusão e a persistente sensação de deslocamento físico.

Olhou para baixo. Através do tecido sedoso do traje que usava, podia ver claramente os bicos rosados de um par de seios fartos empurrando o material fino.

Nem mesmo vinte anos antes seus seios tinham sido como aqueles, que pareciam ter saído direto das páginas de uma revista com as imagens retocadas . Carne de verdade não podia ser tão perfeita.

— Oh, Deus! Acho que vou vomitar — murmurou, então cobriu a boca com a mão. Aquela também não era a sua voz! Onde fora parar a mistura suave do sotaque de Oklahoma com o de sua avó italiana? — O que aconteceu comigo?! — gritou, ofegante.

— Como Irene já disse, não há o que temer aqui. — A voz majestosa da mulher soou profunda e reconfortante.

Lina agarrou-se a isso e tratou de acalmar a própria respiração. Vomitar não a ajudaria em nada.

Quando se viu mais calma, sua mente começou a trabalhar outra vez, e ela assimilou as palavras da estranha.

— Você falou “meu reino”... O que quis dizer com isso? Onde estou?

Deméter demorou algum tempo antes de responder à humana, já lamentando a ausência da alma da filha. O que mais desejava era chamar Perséfone de volta e saber que esta, se encontrava perto dela, protegida e segura.

Mas esse era o problema. Mantinha a filha protegida demais. Já era hora de permitir ou, no caso, de obrigar que ela crescesse.

Por isso tomou esta decisão. E agora estava amarrada à sua promessa, mesmo que esta só tivesse sido feita a si mesma.

— Meu reino não tem fim. Do menor jardim até a vastidão dos grandes campos preparados para a colheita, verá que tudo é meu. Quanto ao lugar onde está... — Ela ponderou, hesitante. — ...Reconhece o nome Olympus?

Lina aderiu com movimentos bruscos da cabeça.

— Olimpo... sim. Na mitologia, é onde os deuses viviam.

— Por que essas meninas mortais sempre dizem “deuses” e deixam as deusas de fora? — Indagou a mulher ao lado do trono.

— Ah! Isso eu não posso responder. — A que estava sentada encolheu os ombros largos. — Os mortais nem sempre fazem sentido, principalmente os da Terra Esquecida.

— Esperem um pouco... Parem aí! — Lina tirou alguns fios de cabelo da frente do rosto, obrigando-se a ignorar o fato de que estes também tinham a cor e o comprimento muito diferentes dos dela. — Preciso saber onde estou, quem é você e o que está acontecendo!

Ambas as mulheres se voltaram para ela.

— Não sabe com quem está falando, mortal? — A mulher de cabelos grisalhos, cujo nome era Irene, fez um gesto com a cabeça na direção da soberana.

Lina não respondeu, e ela franziu a testa antes de continuar a falar:

— Está na presença de Deméter, a Grande Deusa da Colheita.

Deméter não sorriu, porém seus olhos azuis se suavizaram.

— Como pode não saber quem sou? Não foi a minha ajuda que invocou?

O queixo de Lina caiu. Tinha de ser um sonho. Um sonho terrível, inacreditável e realista. Quando acordasse, precisava se lembrar de nunca mais pôr na boca o que comera antes de ir para a cama.

Ou talvez fossem os malditos hormônios outra vez. Precisava ter uma conversa urgente com sua mãe.

— Carolina Francesca Santoro — repetiu Deméter, soando perturbadoramente como sua avó. — Não está sonhando, tampouco alucinando.

— Pode ler pensamentos?!

— Eu sou uma deusa, e sua expressão é bastante cristalina.

Deméter fez um gesto em direção a um ponto à sua frente. No mesmo instante, uma cadeira dourada se materializou.

— Chegue mais perto. Temos muito sobre o que conversar e nosso tempo é limitado.

Lina se levantou do chão, ainda zonza. Seus passos eram hesitantes e constrangidos, no entanto seu corpo parecia ter adquirido um ritmo próprio. Sobre pés delicados, ela se aproximou e, em seguida, acomodou-se graciosamente na cadeira que lhe fora oferecida.

Deméter fez um gesto, falando baixinho a Irene.

— Ela precisa de vinho.

Lina viu, de olhos arregalados, quando a grisalha Irene acedeu, virou-se e desapareceu em uma espécie de abertura no meio do nada, atrás dela. Após instantes, voltou trazendo uma taça igual à de Deméter, e uma garrafa de cristal contendo um líquido dourado.

Em primeiro lugar, a mulher completou a taça da deusa, então encheu a que tinha na mão e a trouxe para ela.

Lina sentiu nos dedos o frio do metal forjado e bebericou o vinho gelado e delicioso. Seu gosto a invadiu e, de imediato, acalmou seus sentidos.

— É vinho e, ao mesmo tempo, não é... — sussurrou, maravilhada. — É como beber o sol.

— É ambrosia. Beba mais... Vai acalmar essa inquietação que sente por dentro — garantiu Deméter.

Lina obedeceu, permitindo que a bebida fria fluísse por seu corpo. Enquanto bebia, sentiu os últimos resquícios daquela sensação de deslocamento desaparecer, deixando-a surpreendentemente calma e alerta.

Sustentou o olhar de Deméter com firmeza.

— Estou no Olimpo.

A deusa anuiu.

Lina tornou a olhar para o próprio corpo.

— Mas esta não sou eu.

— Não. Está habitando o corpo de minha filha — revelou Deméter com simplicidade.

Lina tomou outro gole de ambrosia. Aquele era o corpo da filha de Deméter?

Vasculhou sua mente, procurando restos empoeirados de conhecimentos inúteis que aprendeu na escola.

A filha de Deméter. Quem era ela?

— Perséfone? — arriscou.

Algo mais lhe veio com o nome: a vaga lembrança de uma lenda.

Entretanto a rápida resposta da deusa nem sequer lhe deu tempo para refletir sobre isso.

— Sim. Minha filha é a deusa Perséfone — Deméter assentiu, solene.

— Se estou aqui — Lina apontou para si mesma —, então, onde ela está?

O calafrio que a varreu dos pés à cabeça respondeu à pergunta antes mesmo que ela ouvisse a voz da deusa formulando as palavras.

— Você é ela, e ela se transformou em você.

— Por quê? — Lina balbuciou a pergunta.

— Porque invocou o meu auxílio, e minha filha é que atenderá a seu pedido.

— Sua filha? Mas como essa troca de papéis com a deusa Perséfone pode salvar a minha padaria? — Totalmente confusa, Lina se esforçou para manter a calma.

— Criança tola! — ralhou Irene. — Já basta de perguntas. Não há melhor maneira de insuflar vida nova àquela sua padariazinha insignificante do que abençoando-a com a personificação da primavera!

Lina fulminou Irene com o olhar. Podia estar confusa e fora de seu ambiente, mas não iria tolerar nenhum tipo de ofensa.

— Em primeiro lugar, eu não sou mais criança, portanto não se dirija a mim dessa maneira — replicou, fazendo a mulher arregalar os olhos. — Em segundo lugar, pode ser uma “padariazinha insignificante” para você, mas está falando sobre o trabalho da minha vida e o ganha-pão dos meus empregados. E, em terceiro, eu tenho todo o direito de fazer perguntas e esperar que estas sejam respondidas!

— Como ousa? — Irene começou, contudo a mão de Deméter a silenciou.

— Basta. — Embora o tom da deusa fosse de comando, sua expressão era calma e atenta quando ela estudou Lina. — Seus argumentos são válidos.

Irene bufou, e Deméter se voltou na direção da amiga.

— Carolina Francesca está apenas demonstrando sua maturidade e senso de responsabilidade.

Irene apertou os lábios em uma linha fina, porém nada disse.

— Lina. Meus amigos me chamam de Lina — falou, chamando a atenção da deusa de volta para ela.

Deméter ergueu as sobrancelhas benfeitas.

— Eu ficaria honrada se me chamasse por esse nome também — prosseguiu, segurando a respiração. Teria se excedido?

— Muito bem, Lina — concordou Deméter.

— Mas você deverá chamá-la de Grande Deusa.

— Ou de Deméter — interrompeu a divindade, lançando um olhar divertido na direção da amiga.

— Deméter... — repetiu Lina. — Por favor, explique-me por que Perséfone e eu trocamos de lugar.

— Eu ouvi a sua invocação e me emocionei. Havia muito tempo que eu não era chamada com tanta esperança por alguém do seu mundo. Por isso resolvi atendê-la.

Com a mão livre, Lina esfregou a testa.

— Mas por que essa troca entre sua filha e eu? Não poderia ter simplesmente... não sei, feito uma mágica para melhorar o meu negócio?

Os lábios da deusa quase se curvaram num sorriso.

— Foi o que eu fiz. Emprestei Perséfone a ele.

— Eu não tenho a intenção de desrespeitá-la, Deméter, mas o que sua filha sabe sobre panificação?

— Perséfone tem a sabedoria das deusas! — As feições da soberana endureceram, e seu tom fez Lina se arrepiar. — Ela é a personificação da primavera. Vai honrar sua padaria e soprar vida nova sobre ela. — Sua expressão se abrandou. — Não tema, Lina. Tem minha palavra de que a sua empresa vai prosperar cada vez mais. Em seis meses, o dinheiro que deve aos cobradores de impostos será triplicado.

— Seis meses?! — Lina sentiu como se tivesse sido atingida no estômago. — Perséfone vai tomar o meu lugar por seis meses? E o que devo fazer enquanto isso?

Deméter pareceu ponderar sobre a questão.

— Há uma pequena tarefa que pode executar para mim. Como é uma mulher madura e experiente, não deverá ter nenhuma dificuldade. — Os olhos da deusa capturaram os dela, lembrando-a das palavras finais de sua invocação. — Digamos que estará apenas retribuindo um favor.

Lina suspirou. Havia feita uma proposta, e Deméter a tinha aceitado. E a Lina empresária manteria sua palavra.

— Está bem — aquiesceu, tensa. — O que posso fazer por você?


Capítulo 6

— Quer que eu vá para o inferno!? — A cabeça de Lina começou a latejar.

— Não encare isso nos termos limitados dos mortais — Deméter explicou. — Hades é o Submundo, o lugar onde as almas passam a eternidade. E há vários reinos dentro do Submundo, sendo que muitos deles também guardam beleza e magia.

— E o resto é o inferno — completou Lina.

Olhou para Irene, que escutava, impaciente, sua discussão com Deméter. Se a mulher tivesse um relógio, estaria verificando as horas a cada minuto.

— Eu gostaria de um pouco mais de vinho, por favor — pediu a criada, que bufou com força, mas completou sua taça.

Lina tomou um longo gole.

— Creio que ainda não compreendeu — prosseguiu Deméter, paciente. — Não existe “inferno” no Submundo. Existem apenas diferentes níveis de recompensa ou punição.

— Os quais são todos cheios de mortos — Lina desabafou.

Deméter balançou a cabeça, pesarosa.

— Está bem. Mas não de pessoas mortas e sim de seus espíritos. Almas, Lina. Hades é cheio de almas.

— E qual é a diferença?

— Você, melhor do que muitos mortais, deveria compreender essa diferença. Sua própria alma não adentrou o corpo de minha filha? Isso, por acaso, a torna uma morta? Ou, como você mesma diz, um fantasma? Não. Foi simplesmente deslocada. E isso é tudo o que acontece com aqueles que vão descansar no Submundo. Eles também foram deslocados. Alguns vão passar a eternidade em meio às maravilhas dos Campos Elíseos; alguns, pagar por seus pecados no Tártaro. Outros beberão do Rio Lete, o Rio do Esquecimento, e terão a possibilidade de renascer dentro de outro corpo mortal. Algumas almas vão perecer junto ao Cócito, o Rio da Lamentação, jamais conseguindo abandonar o luto por sua morte. E outras...

— Espere! — Lina a interrompeu. — Está me deixando completamente perdida. Eu não entendo nada sobre esses rios e níveis do infer... ahn... do Submundo. Como poderei governar esses... esses... mortos, ou almas deslocadas, se nem sei onde eles deveriam estar ou o que deveriam fazer? Acho que arrumou a pessoa errada para esse trabalho.

Deméter dispensou suas dúvidas com um gesto.

— Tudo isso é fácil de compreender. Basta ouvir a voz em seu coração. Há o suficiente da essência de Perséfone dentro de você para guiá-la em meio a qualquer dificuldade que possa enfrentar.

Lina a fitou, incrédula, e, desta vez, os lábios de Deméter realmente se curvaram num sorriso.

— Tente, filha de mortais. Ouça o que diz o seu interior.

Lina estreitou os olhos e se concentrou. Deméter afirmava que havia rios lá embaixo, porém ela só escutara falar de um: o Estige.

Assim que pensou na palavra, uma voz sussurrada, como uma lembrança meio esquecida, lhe veio à mente:

O Rio Estige é o Rio do Ódio. Não beba dele, pois não vai acabar bem.

Lina soltou um gritinho de surpresa. Não era como se houvesse uma pessoa falando em sua cabeça. Era mais como se ela pudesse acessar uma fonte de informação... o espírito de uma prateleira de enciclopédias antigas, sepultado em algum lugar de seu ser.

Gostou da irônica analogia e sorriu de soslaio para a deusa, que balançou a cabeça, compreensiva.

— Perséfone também terá essa capacidade enquanto estiver no meu corpo? Digo, de obter informações desse, não sei bem como explicar, desse “eco de mim mesma”?

— O eco de você mesma. É uma excelente descrição. Sim, minha filha tem essa capacidade. Embora agora ela seja mortal, não ficará perdida em seu mundo.

— E ela é mesmo mortal enquanto está no meu corpo? — Lina quis saber.

— Claro que é. Assim como é uma deusa enquanto sua alma habitar a forma física de Perséfone.

Lina tomava um gole de vinho e, ao escutar as palavras de Deméter, engasgou, quase pondo o ambrosia pelo nariz.

— Então agora eu sou... uma deusa?! — indagou, abismada.

— Sim — confirmou Deméter. — Enquanto estiver habitando o corpo de Perséfone, estará investida de seus poderes.

— Poderes? — ela repetiu, aparvalhada.

— Mesmo em seu tolo mundo, vocês, mortais, devem saber que deusas têm muitos poderes... — provocou Irene.

Por que aquela mulher implicava tanto com ela?!

— Merda! — Lina explodiu, exasperada. — Será que pode me dar um tempo?! Você gostaria de ser sugada para fora do seu mundo, jogada no meio de Tulsa, Oklahoma, no ano de 2000 e alguma coisa — olhou para Deméter e adicionou: — d.C. , com uma estranha dizendo que, por seis meses, você teria de cumprir uma missão em um lugar que só pensava existir nos contos de fadas e nas histórias para dormir? Eu lhe digo uma coisa, minha amiga... Nem precisaria ir ao inferno para imaginar estar lá!

Irene piscou, confusa.

— Viu como não é fácil? — provocou Lina, voltando-se para Deméter. — De que tipo de poderes estava falando?

— Perséfone é a deusa da Primavera. Carrega vida e luz consigo, e pode compartilhar seus dons como bem entender — explicou Deméter.

Os olhos de Lina se arregalaram.

— Está me mandando para o inferno, e eu poderei ressuscitar as pessoas?

— Não as pessoas. Perséfone não pode devolver a vida aos mortais que já se foram. Partilho meu reino com minha filha, então ela tem domínio sobre todas as coisas que se desenvolvem: flores e árvores, o trigo do campo, a grama sob seus pés... Isso tudo responde ao toque de Perséfone — explicou Deméter. — E ela também pode criar a luz. Não pense que o Submundo é um lugar escuro e triste. A presença de Perséfone evoca a luz.

— Quer dizer que posso fazer flores crescer, acender coisas... O que mais?

— Tudo o que precisa saber está dentro de você. Procure bem no fundo da alma e encontrará os poderes que procura — afirmou Deméter, misteriosa.

Lina encontrou o olhar da deusa. Reconhecia uma evasiva quando ouvia uma.

Muito bem. Então Deméter não queria que ela soubesse da extensão dos poderes de seu novo corpo.

— Creio que terei de descobrir algumas coisas do meu jeito — concluiu, cautelosa.

— Você pensa rápido. Não terá muitas dificuldades para realizar seu objetivo — declarou a deusa.

— Por que seis meses? Parece-me tempo demais já que não terei tantas dificuldades assim — Lina observou.

— São os seis meses necessários para que a sua padaria prospere. Mas não se preocupe com a passagem do tempo... ele é medido de modo diferente pelos deuses. — Deméter fez um gesto vago com as mãos. — Seis horas, seis meses, seis anos... é tudo a mesma coisa. Concentre-se em realizar sua meta, e tudo ficará bem.

— E essa meta é gerir o Submundo?

— É uma maneira de colocar a questão — a deusa aderiu.

— Suponho que deva estar ocorrendo algum tipo de problema lá em baixo.

— Digamos que seja um problema moral. — Deméter encolheu os ombros com indiferença. — O Submundo necessita do toque de uma deusa. Tem sido um local desprovido de influência feminina por muito tempo... É muito simples. Permita-se ser vista pelos mortos. Eles precisam acreditar que seu descanso eterno não será privado do amor e da atenção de uma divindade. Pense em si mesma como uma líder, um símbolo da força feminina e da sabedoria. Almas mortais anseiam pelo amor e atenção de uma mãe imortal. Apenas sua presença acalmará as coisas.

Lina esfregou a testa outra vez. O que estaria acontecendo lá embaixo?

Haveria um bando de espíritos sentados, se coçando e soltando gases enquanto assistiam à versão mitológica do Super Bowl e forçavam suas mulheres fantasmas a cozinhar alimentos calóricos e engordurados para eles?

A voz firme de Deméter continuou durante a turbulência mental de Lina:

— Pense no Submundo como uma padaria de grande porte, desorganizada porque sua dona esteve ausente, e use sua sabedoria e experiência para colocá-la em ordem. E saiba que, ao fazê-lo, estará retribuindo o favor de uma deusa.

— Deméter, o tempo urge. Ela deve começar sua jornada — Irene falou, ansiosa.

— Está correta, como sempre, minha amiga. — Deméter sorriu para a criada e se levantou, gesticulando para que Lina a seguisse. — Venha. Vou levá-la até a entrada do Submundo.

— Só isso? — Lina perguntou, em choque. — É a única instrução que vai me dar?

— É alguma criança que precisa ser conduzida pela mão? — Irene indagou, sarcástica.

— Sabe de uma coisa? Se você pintasse esses cabelos brancos, seu humor provavelmente seria bem melhor. Sempre funciona para mim — provocou Lina.

Irene abriu a boca e fechou. Uma vez.

Deméter disfarçou o início de uma gargalhada com uma tossidela. Aquela humana tinha muita personalidade.

Limpou a garganta antes de abordar Lina.

— Não a privarei de ajuda. Solicitei a uma finada que a guiasse até o Palácio de Hades. Ela vai ajudá-la com as questões que sua voz interior não puder responder. — Conforme falava, a deusa foi caminhando rapidamente pelo prado, e Lina teve que se esforçar para acompanhá-la. — Mas preciso que compreenda algo: ninguém pode saber que não é a verdadeira Perséfone.

— O quê!? Mas, como eu... — Lina começou, ofegante.

— Seria um insulto — Deméter a interrompeu. — Os mortos merecem respeito. Não devem chegar à conclusão de que não podem ter contato com uma verdadeira deusa.

— Mas eu não sou uma verdadeira deusa!

— Claro que é! — O olhar intenso de Deméter capturou o dela. — Eu já lhe dotei com os poderes de minha filha. Acredite que é uma deusa e aja de acordo. E lembre-se: no seu mundo, Perséfone permanecerá sob a mesma regra. Ninguém vai saber que ela não é a verdadeira Carolina Francesca Santoro... Agora tem que me dar a sua palavra de que não revelará sua real identidade.

— Prometo que manterei este segredo — ela concordou, depois de apenas uma breve hesitação. Que escolha tinha?

Deméter inclinou a cabeça em régia concordância com o juramento de Lina antes de continuar sua caminhada, deixando o campo para trás, a fim de adentrar uma área arborizada. Lina mal teve tempo de se perguntar no que havia se metido, enquanto corria atrás da deusa que se afastava.

Estavam atravessando um bosque de árvores frondosas. Uma brisa soprava, leve, e ainda continha um toque do calor do verão. Mesmo assim, fazia as folhas secas dos galhos robustos caírem como chuva colorida sobre suas cabeças.

— Não é primavera aqui — Lina falou de repente.

Por cima do ombro, Deméter olhou para a mulher que usava o corpo de sua filha.

— Não. Como eu já expliquei, o tempo, aqui, corre de forma diferente, Carolina. A primavera já deixou este mundo, e as estações latentes, outono e inverno, estão para chegar. Por isso Perséfone pôde visitar o seu mundo, onde a primavera apenas se inicia.

Lina apertou os lábios. Então era aquilo. Muito conveniente que fosse primavera na Oklahoma que ela acabara de deixar. Perséfone havia acabado de chegar lá.

Isso até a fazia lembrar-se de uma velha fábula...

Lina estacou. Irene tropeçou e quase colidiu com ela por trás.

— Precisa se apressar — disse a mulher com irritação. — Não temos tempo para... — Irene silenciou diante da expressão em seu rosto.

Pressentindo o problema, Deméter se virou no exato momento em que as palavras de Lina cortaram o ar:

— A violação de Perséfone! — Ela abraçou a si própria, na defensiva. — Lembro-me da fábula agora. Hades, o rei do Submundo, rapta a deusa virgem, Perséfone. Ele a violenta e a convence a permanecer lá, em sua companhia, fazendo-a comer seis porções de uma fruta... — Ela vasculhou a memória, e o nome brotou de seus lábios. — ... Seis pedaços de romã! Por esse motivo existe, por seis meses, o outono e o inverno. Porque a mãe de Perséfone, no caso você, Deméter, entrou em luto pela perda de sua filha e se recusou a deixar florescer qualquer coisa até que ela retornasse. — Lina engoliu em seco, tentando combater o medo. Não era uma virgem inocente. Era uma mulher madura, de meia-idade, e não se deixaria levar docilmente para uma armadilha. — Pretende me trair... Quer que eu tome o lugar de sua filha para que a verdadeira Perséfone não seja abusada.

Lina ouviu uma exclamação chocada de Irene.

Antes que pudesse continuar, Deméter cobriu o espaço que as separava tão depressa que sua visão se embaçou. A deusa a segurou com firmeza pelos ombros e, sem pestanejar, encontrou seu olhar .

— Não deve acreditar nessa mentira, Lina — falou com voz grave.

— Eu li a história. É assim que acontece.

— Não aqui. Não neste mundo. — Deméter pôde sentir o corpo da moça tremendo sob as mãos e concentrou seu poder nos olhos de Lina. Precisava fazer aquela filha mortal acreditar que dizia a verdade. — Eu não permitiria que tal coisa acontecesse. Não à minha própria filha, nem a você.

— Mas eu me lembro! É o que acontece — Lina insistiu, teimosa.

— As histórias que conhece deste reino são apenas sombras da verdade, como os boatos. A verdade foi distorcida, alterada e utilizada para explicar certos mistérios. Pense, filha de mortais. Crê, honestamente, que eu deixaria alguém roubar minha filha de mim?

Lina encontrou os olhos de Deméter, e a figura da deusa preencheu-lhe a visão. Seu poder era algo tangível.

De repente, lembrou-se da mãe e da avó, reconhecendo em Deméter o tom sério e protetor de uma mãe que faria qualquer coisa para garantir que a filha não fosse prejudicada.

E Deméter detinha o poder dos imortais para apoiar seus instintos maternais.

— Pensando bem, não me parece muito lógico que uma deusa permitisse que a filha fosse molestada... — Lina admitiu devagar. — Mas, como eu disse, não sou sua filha.

Um sorriso verdadeiro suavizou a expressão da deusa, e Lina percebeu claramente o amor que Deméter sentia por Perséfone.

— Está no lugar da minha filha, Carolina. Fala por meio de seus lábios, está abrigada em seu corpo... Eu não permitiria que nenhum mal a afligisse, criança.

— O rei do Inferno não quer me estuprar ou a Perséfone?

— Não, Lina. Hades é um deus recluso e sombrio há mais tempo do que posso me lembrar. Ele não se diverte com ninfas, não tem companheira, tampouco tem demonstrado interesse por qualquer deusa. — O belo rosto de Deméter se contorceu com uma ponta de cinismo. — Hades não se importa com o amor ou a vida. Sua amarga existência resume-se ao funcionamento do Submundo. ­Lembre-se, Carolina... Estará sempre sob a minha proteção. Todos os deuses e deusas sabem: nenhum mortal ou imortal ousaria abusar de minha filha.

As palavras de Deméter tinham lógica, refletiu Lina. A divindade à sua frente transpirava poder e autoridade. Não lhe parecia provável que ela fosse descuidar da filha.

Lina fitou os olhos claros e sinceros de Deméter e percebeu, meio surpresa, que confiava nela.

— Ele sabe que está enviando Perséfone lá para baixo?

— Hades ficará satisfeito por ter sua assistência. Não se preocupe com isso. Tudo ficará bem. — Deméter apertou-lhe os ombros antes de retomar sua caminhada por entre as árvores e fez um gesto impaciente na direção de Lina para que ela a acompanhasse.

Como esta não se moveu, a deusa se voltou e levantou uma sobrancelha interrogativamente.

— Dizer que Hades ficará satisfeito com o meu apoio não significa que tenha contado a ele que estou indo para lá — Lina declarou. Também reconhecia um bom discurso empresarial quando se deparava com um. Havia acabado de despedir um contador especialista neste tipo de coisa. — Em outras palavras, ele não tem ideia de que estou chegando, muito menos de que pretendo mexer com a gestão de seu reino. Estou certa?

A expressão de Deméter era irônica.

— Você é experiente o bastante para entender que nem tudo pode ser dito às claras. Muito menos se lidamos com homens.

— Tem razão. Compreendo o que quer dizer. Então aqui vai um pedido: eu gostaria que enviasse a ele uma mensagem, dizendo que sua filha está a caminho para... — Lina fez um gesto vago — ... passar umas férias por lá. Minha experiência no mundo dos negócios diz que é sempre bom manter a linha de comunicação o mais transparente possível.

Deméter considerou o pedido. Talvez a mortal estivesse certa. Hades deveria ser avisado de sua chegada, mesmo que o sisudo deus não fosse se dignar a lhe dar as boas-vindas.

De qualquer modo, era de bom tom para uma divindade sinalizar caso adentrasse o reino de outra.

Levantou a mão e apertou os lábios, entoando um melódico canto de pássaro. Antes que o som encantador morresse ao vento, um rufar de asas se fez ouvir sobre suas cabeças, e um corvo enorme circundou Deméter uma vez, antes de pousar em seu braço estendido.

— Leve a notícia da chegada de minha filha ao Submundo de Hades — ela falou ao pássaro. — Diga a ele que a deusa da Colheita é grata por sua hospitalidade e sua proteção quando a primavera visitar a Terra dos Mortos. — Deméter levantou o braço, e o corvo se ergueu graciosamente ao vento, desaparecendo entre as árvores.

— Isso satisfaz seu senso de responsabilidade? — perguntou a Lina.

— Sim, obrigada — esta agradeceu enquanto se apressava em correr atrás da deusa.

Deméter chegou a uma elevação na terra que assinalava o fim da linha das árvores, e ali esperou que Lina e Irene se juntassem a ela.

Contudo, os olhos da mortal já não estavam sobre a deusa, e sim concentrados na incrível paisagem à sua frente.

— Nossa! — O ar lhe faltou, e Lina se viu tonta. — Nunca vi um lugar assim. Este é?

— O lago Averno. — Pela primeira vez, a voz de Irene tinha perdido seu tom cáustico. — E, mais além, fica a baía de Nápoles.

— É tão lindo! — Lina exclamou, sem palavras para descrever a fantástica vista. O lago se estendia diante delas como um grande espelho líquido da cor da safira. A luz brilhava e dançava como mágica em sua superfície, emprestando-lhe mais vida, de maneira que o manto perfeito e vítreo cintilava. Não havia árvores próximas da margem do lago, porém samambaias o circundavam com seu verde vivo. Além do lago, o oceano descansava, e seus tons mais claros, de um azul-turquesa, faziam com que parecesse o complemento feminino para o volume de água de cor mais escura que o precedia.

— Apenas começou a conhecer as maravilhas deste mundo, Lina — declarou Deméter.


Capítulo 7

As passadas seguras da deusa encontraram um pequeno caminho de terra que parecia dar a volta no lago. Deméter virou-se para a direita e seguiu pela trilha ao longo de uma curva que levava direto para uma abertura, dentro de uma grande formação rochosa, perto da margem. Ao se aproximarem da passagem subterrânea, Lina percebeu que suas paredes de pedra tinham sido alisadas e pintadas com fabulosos afrescos representando deuses e deusas em festa, rindo e se amando.

Porém, estes logo foram engolidos pela escuridão do local.

Ela sentiu a garganta seca. Era como um túmulo.

Os passos de Deméter não vacilaram, marchando para dentro da passagem escura. Quando Lina hesitou, a deusa a chamou, áspera:

— Precisa vir também. De que outra forma nosso caminho pode ser iluminado?

— Iluminado? — ela repetiu, percebendo que soava como um idiota.

Irene suspirou.

— Você é a deusa da Primavera. Use seus poderes!

Lina franziu o cenho.

— Ouça seu interior, Perséfone — Deméter pronunciou o nome com cuidado —, e seu corpo saberá o que fazer.

Ignorando uma crescente frustração, Lina se concentrou.

Luz. Se pudesse obtê-la, como faria?

Pense! , disse a si mesma, permitindo que uma ideia estranha adejasse por sua mente.

Levantou a mão direita até o nível dos olhos. A mão era linda: clara, lisa e sem rugas. Ao contrário da sua, já meio judiada por seus quarenta e poucos anos. De qualquer forma, se pudesse produzir luz, ela o faria como tantas outras coisas importantes em sua vida... com aquelas mãos.

De repente, Lina soube como.

Voltando a palma para cima, enviou uma mensagem por meio do braço estendido: Eu quero luz.

Com um alegre estalar, um pequeno globo brilhante brotou de sua palma e pairou alguns centímetros acima desta.

Orgulhosa, ela sorriu e, tirando os olhos da luz, fitou Deméter.

— Eu faria assim.

— Muito bem feito, Perséfone — elogiou a deusa, e apontou com um gesto de cabeça o túnel aparentemente sem fim.

Endireitando os ombros, Lina avançou um passo, porém a bola de luz continuou pairando atrás delas.

— Precisa ordenar que ela a acompanhe — orientou Deméter.

Como ela já se encontrava no limite da escuridão, Lina não teve certeza; mas algo lhe dizia que a deusa estava rindo.

— Vamos, então. Fique comigo — falou para a luz.

No mesmo instante, esta saltou para a frente, quase batendo em sua cabeça.

Lina se esquivou, apertando os olhos para o intenso brilho.

— Eu disse comigo , não em cima de mim! — sussurrou para a bola incandescente, e esta se posicionou acima de seu ombro direito.

— Mais alto, ainda está me cegando!

A bola subiu alguns centímetros.

— Isso mesmo. Bom trabalho.

A luz ondulou, como se feliz com seu elogio, o que a fez sorrir.

— Estamos prontas — disse a Deméter.

Seguiram em frente, desta vez com Lina e sua luz liderando o caminho.

A passagem era grande e foi descendo, íngreme; contudo, os muros ao seu redor pouco mudaram. Afrescos coloridos decoravam o espaço escuro, e a presença ofuscante das três mulheres parecia uma incongruência em meio à quase total escuridão.

Lina estava prestes a perguntar a Deméter quem tinha pintado aquelas cenas quando as paredes ao redor desapareceram de vez, deixando apenas um negrume sem fim.

De súbito, bem à sua frente, um bosque se materializou.

Lina piscou, ressabiada.

— Árvores fantasmas! — sussurrou, perplexa.

Ao menos era o que parecia. Embora seus ramos fossem grossos e repletos de folhas aparentemente frescas, tudo nelas era branco: troncos, galhos, folhas... Tudo da cor do leite.

Ela entreabriu os lábios, fascinada. As plantas eram de uma beleza delicada e sobrenatural, e pareciam apelar para seus sentidos em um nível profundo e elementar.

— É em meio a esta floresta que vai encontrar a entrada para o Submundo — informou Deméter, depois ergueu a voz, chamando para dentro do bosque: — Eurídice,venha!

Lina sentiu o estômago se contrair. Estava prestes a conhecer a primeira pessoa morta de sua vida.

Não. Precisava parar de pensar nelas dessa forma. Isso só lhe provocaria mais arrepios. Tinha que se lembrar das palavras da deusa: eram apenas “almas deslocadas”, assim como ela.

Fez-se um movimento dentro da mata fechada, e Lina precisou se obrigar a respirar quando uma figura delgada saiu da linha das árvores e caminhou em sua direção. Tensa, enrolou uma longa mecha de cabelos no dedo, esforçando-se para obter uma imagem mais clara, porém tudo o que podia ver era uma massa indistinta de cabelos longos e o revoar de um traje diáfano.

Eurídice pisou em seu círculo de luz, e Lina sentiu o nervosismo abandoná-la por completo. Não se tratava de uma alma andarilha ou um zumbi como os de Despertar dos Mortos . Era apenas uma menina pálida e de olhar assustado. Se ela, Lina, houvesse tido uma filha, ela teria aquela idade: provavelmente dezoito ou dezenove anos.

Eurídice se aproximou e, hesitante, fez uma reverência a Deméter. Só então Lina percebeu que seu corpo não era tão substancial como parecia. Após uma inspeção mais atenta, notou que a luz atravessava o corpo da moça e também o manto de seda que ela usava. Eurídice não era bem um espectro ou um fantasma; era mais como uma aquarela inacabada que havia ganhado vida.

O instinto maternal de Lina se manifestou, e ela sentiu pena da garota. Ela era tão jovem! O que lhe teria acontecido?

— Grande Deusa, aqui estou, à sua espera, como me ordenou — murmurou com voz doce e melódica.

— Fez bem, criança. Esta será a sua tarefa final: peço que sirva de guia para minha filha, a qual deseja visitar o Submundo.

— Terei enorme prazer em atendê-la como desejar, senhora — respondeu a moça. Então virou-se para Lina e inclinou a cabeça com respeito. — É uma grande honra que a deusa da Primavera se junte a mim em minha viagem para Elísia.

— Obrigada por me ajudar, Eurídice. — Lina sorriu calorosamente para a menina. — Eu nunca fui para o inf... — ela se deteve e mudou as palavras, torcendo para que a moça não houvesse notado — ... para Hades antes.

— Nem eu, senhora.

A voz de Eurídice saiu marcada pela tristeza, e Lina quis dar um tapa na própria cabeça pelo comentário insensível.

Antes que pudesse se desculpar, contudo, Deméter falou com a menina:

— Embora ainda não tenha experimentado as maravilhas de Elysium, sua alma conhece o caminho e quer levá-la ao seu destino. Assim como ela a conduz, você conduzirá minha filha. Eu a confio aos seus cuidados — proclamou Deméter com voz doce e uma expressão maternal.

Eurídice inclinou a cabeça, obviamente agradecida por sua confiança.

Deméter voltou-se, então, para Lina.

— É aqui que eu devo me despedir, Perséfone. — Abraçou-a, e Lina se viu envolvida por um aroma de milho maduro e campos de trigo ao vento. — Que a sua estada no Submundo leve a primavera ao reino de Hades e conforto para aqueles que sentiram a ausência de uma divindade. Boa sorte, milha filha... Minhas bênçãos a acompanham. Beijou-a suavemente na testa e, em seguida, virou-se para partir.

— Espere! — Lina chamou, aflita. Deméter já estava indo embora, assim, sem mais nem menos?

A deusa a fitou por cima do ombro.

— Ouça sua voz interior, Perséfone. Seus instintos não lhe faltarão.

Ela deu um passo em direção a Deméter e baixou a voz:

— E se eu precisar de mais ajuda?

— Confie em si mesma. Trabalhe seu conhecimento interior, bem como suas outras experiências — enfatizou a diva. — A vida a preparou bem para esta empreitada.

A resposta de Lina foi apenas para os ouvidos de Deméter:

— Como faço para encontrá-la se surgir algo com que eu não possa lidar?

A diva assentiu com um gesto de cabeça, pensativa.

— Talvez seja melhor assim... — Gesticulou em direção ao corredor sombrio pelo qual haviam descido. — Deixarei o meu oráculo nessa entrada. Terá apenas que olhar para ele e verá meu rosto.

— Mas como posso ter certeza de que encontrarei o caminho de volta?

— Você é a filha da Colheita. Erga a cabeça, e seus passos sempre a levarão de volta para casa — interveio Irene em seu tom cáustico habitual.

Em seguida, a mulher encontrou o olhar claro de Lina e sentiu-se amolecer. Afinal, a pobre se encontrava presa, contra a sua vontade, no corpo de Perséfone.

— Acredite em si mesma, criança. Sua força repousa em seu íntimo.

Lina não saberia dizer se ficou mais surpresa com a gentileza nas palavras de Irene ou com seu sorriso.

— Vou me lembrar. Muito obrigada.

Deméter adiantou-se e a beijou levemente na testa outra vez.

— Que você seja abençoada com alegria e magia, minha filha.

A deusa se afastou com tal determinação que Lina não ousou chamá-la de volta, embora seu coração pulsasse, nervoso, diante do que estava por vir. Assistiu à escuridão engolir as duas mulheres, e, mal se perguntara se deveria enviar um pouco de luz para conduzir Deméter até a superfície, viu-a brilhar com a luz dourada de um dia de verão.

— Como se ela precisasse de mim para iluminar o caminho! — murmurou, balançando a cabeça.

— Peço perdão, senhora, mas temos de começar nossa jornada.

Lina voltou-se para Eurídice. A menina apertava as dobras de sua diáfana veste, desculpando-se com um sorriso tímido.

— Sinto-me compelida a continuar... Minha alma me diz que já esperei demais.

— Ah, claro — Lina aderiu, sentindo vergonha de si mesma. Ali estava ela, preocupando-se por Deméter tê-la deixado sozinha para assumir seu emprego temporário, do qual, aliás, tinha a garantia de que completaria a contento, e Eurídice ali... morta . Pobre criança. — Estou pronta. Vamos.

No mesmo instante, o espírito da moça readentrou o bosque branco, tendo Lina bem atrás dela. A pequena bola incandescente as envolvia em um brilho suave, e, conforme este tocava as árvores que as rodeavam, os galhos e folhas claros cintilavam tal qual joias multifacetadas.

— São tão bonitas! — Lina exclamou baixinho.

— Creio que a sua luz é que as faz assim, senhora — Eurídice falou com sua voz tímida de criança.

— Não... Aposto que elas sempre foram bonitas.

Mal ela havia proferido as palavras, os galhos acima delas começaram a ondular, como se em resposta ao seu elogio, e mais folhas facetadas cintilaram em sua luz.

Lina sorriu para sua guia e apontou para aquela verdadeira floresta de diamantes.

— Elas já estavam aqui havia muito tempo, bem antes de eu chegar. Minha luz apenas permite que sejam vistas como elas realmente são.

— Perdão, senhora. Eu não pretendia ser inconveniente.

Lina desviou o olhar das fascinantes folhas. Eurídice havia abaixado a cabeça, como se esperasse por algum tipo de castigo.

— Não foi inconveniente. Você apenas acabou de fazer uma observação. Quero que fique à vontade para conversar comigo, Eurídice. Honestamente, já estou sentindo falta da minha... — Lina se deteve mais uma vez. Quase dissera “da minha vida”. Também podia ter dito “da minha padaria”... — ... da minha mãe — completou, por fim. — É bom ter com quem conversar para desviar meus pensamentos dela.

— Também sinto falta da minha mãe — Eurídice sussurrou.

— Ah, eu sinto muito. Eu não queria lembrá-la disso.

— Não é tão terrível assim, senhora — a moça garantiu depressa. — Embora eu esteja morta há pouco tempo, creio que já esteja começando a compreender.

Quando a menina parou de falar, Lina a incentivou a continuar:

— Pois eu gostaria muito de saber o que foi que compreendeu.

— As dores do mundo vivo já estão desaparecendo em mim. Tenho saudades da minha mãe e... bem... de outras pessoas. Mas sei que acabarei por me reunir a elas um dia. Ainda sou eu mesma, afinal. — Eurídice estendeu um braço, e a luz de Lina brilhou claramente através do membro delicado. — Meu corpo mudou um pouco, contudo minha cabeça e meu coração são os mesmos, o que é um grande alívio para mim. O que descobri é que o medo da morte é pior do que a própria morte — concluiu, apressada.

Lina sorriu.

— Você é muito sábia.

— Oh, não — afirmou a menina, sacudindo a cabeça e fazendo os cachos loiros e transparentes flutuar ao seu redor. — Se eu fosse realmente sábia, teria evitado os meus erros.

Antes que ela a questionasse mais a fundo, haviam deixado o bosque de árvores brancas e se viram diante de um enorme portão cor de marfim. Além do portão, Lina avistou uma estrada negra que ondulava até a total escuridão tal qual um pedaço de noite.

— Temos de entrar aqui e seguir por esse caminho — orientou Eurídice. — Isso nos levará a Caronte.

Lina não precisou apelar para o conhecimento de Perséfone. Reconheceu de imediato o nome do barqueiro do Submundo.

Assentiu e esticou o braço para abrir o enorme portão, porém este se esquivou de seu toque. No mesmo instante, ouviu-se um zunido, e a escuridão diante delas pareceu ondular. Um rio de névoa brotou do outro lado do portão, engolfando Lina em uma nuvem fria e cinzenta.

O medo a invadiu como um rio caudaloso. Sons macabros assaltaram seus sentidos, lembrando-a de todos os pesadelos que ela já experimentara.

Seu primeiro impulso foi cobrir os ouvidos e sair gritando, porém a voz em sua essência tranquilizou sua alma amedrontada:

São falsos sonhos. O nevoeiro é inofensivo, formado apenas por antigos pesadelos. Você é uma deusa, e eles não podem aterrorizá-la. Mande-os embora, e eles obedecerão.

Forçando as mãos para os lados, Lina endireitou o corpo e sacudiu-se como um gato tentando se livrar da água.

— Vão! — ordenou, confiante.

E deu um suspiro de alívio quando a névoa se dissolveu.

— Oh, obrigada, minha Deusa! — Eurídice se aproximou dela e quase a tocou.

Lina pôde ver o pavor nos olhos claros da moça.

— Eles não poderiam machucá-la, querida. Eram apenas lembranças de antigos pesadelos — assegurou com um breve sorriso. — Desagradáveis, sem dúvida, mas não perigosas.

— Eu nunca gostei de pesadelos — Eurídice suspirou, olhando em volta.

— Ninguém gosta. Por isso eles são chamados de sonhos ruins. Não se preocupe mais com eles... Seus pesadelos já eram . — O portão cor de marfim permanecia aberto, e Lina apontou para a estrada escura. — Não disse que tínhamos de seguir por este caminho?

— Sim, minha deusa.

— Então, vamos.

Lina passou pelo portão e tomou a estrada, com Eurídice logo atrás dela. Sob as chinelas macias que adornavam os pés delicados de Perséfone, o solo lhe pareceu duro e frio.

Ela se agachou para tocá-lo.

— Mármore — sussurrou e avaliou a distância. — O caminho parece feito desse único bloco de mármore preto... — Levantou-se e sorriu para Eurídice. — Não é a estrada de tijolos amarelos de O Mágico de Oz, mas com certeza é fácil de seguir.

A menina pareceu confusa.

— É só um modo de dizer que nosso caminho está bem marcado... — Lina tentou consertar seu deslize, para em seguida iniciar a caminhada com Eurídice a seu lado e a esfera de luz flutuando entre elas. — E eu gostaria muito se me chamasse pelo meu nome.

— Mas você é uma deusa! — A moça ficou chocada com o pedido.

— Acontece que eu tenho um nome, e “senhora” soa muito austero e protocolar. Sou a deusa da Primavera, e a primavera é tudo menos algo rígido e formal.

Lina prestou atenção em seu interior enquanto falava e percebeu que o eco de Perséfone ficou satisfeito com o que ela dissera.

De repente, ficou curiosa a respeito da mulher cujo corpo ela habitava. Como seria ela?

Olhou para si própria. Que era bonita, disso não tinha dúvida. Mas seria também arrogante e egocêntrica? Ou era uma deusa benevolente, que tratava os outros com gentileza?

— Será uma honra chamá-la de Perséfone. — A voz de Eurídice invadiu seus pensamentos, e ela sorriu em incentivo para a menina.

— Ótimo.

Ao menos era um começo.

Caminharam em sociável silêncio, e Lina estudou a terra em torno delas. Estava começando a distinguir os vários níveis de treva em ambos os lados da estrada. À primeira vista, parecia que tudo estava envolto na escuridão de uma noite sem estrelas, mas, conforme seus olhos se acostumaram com a falta de luz, percebeu que havia sombras e formas em meio ao breu. O espaço que se estendia a cada lado lembrava um pântano escuro. Podia até discernir folhagens em tons de cinza e blocos de gramíneas espessas que se agitavam, embora não houvesse qualquer vento.

Foi nesse momento que uma forma passou por elas, capturando o olhar de Lina. Era um velho, quase dobrado ao meio por conta da idade. Ele mancou em direção à estrada, depois recuou um passo; então avançou outra vez, os olhos remelentos piscando para o vazio, na direção de Lina.

Enquanto ela se perguntava se deveria ajudá-lo, outra silhueta tomou forma na escuridão. Uma mulher. Parecia ter a idade dela, e estava agachada na grama sombria, encolhendo-se de um agressor invisível.

O primeiro instinto de Lina foi socorrê-la, porém a voz ecoou dentro de sua mente:

Você não pode ajudá-los. Eles são a Velhice e o Medo.

Veja... Mágoa, Ansiedade, Fome, Doença e Agonia se juntarão a eles.

Lina assistiu a outras formas espectrais tomando forma ao lado das duas primeiras. Eram horríveis, e a simples visão delas fez seu estômago se apertar.

Elas são parte da existência mortal. Não podem ser ajudadas. Podem apenas ser superadas. Vamos, não fique plantada aí!

Lina percebeu que tinha praticamente parado de andar, e Eurídice olhava, temerosa, ao redor.

— Penso que precisamos nos apressar. Vo cê tem um encontro com a eternidade, e eu odeio me atrasar para qualquer coisa. Acho uma falta de educação — completou alegremente conforme apertava o passo a ponto de obrigar a moça a quase correr para se manter junto dela.

Ouviu gemidos de dor e estremeceu, recusando-se a olhar para trás. Ao contrário, concentrou a atenção em vários contornos brilhantes que pairavam no caminho à sua frente. Mesmo não podendo vê-los muito bem, Lina não sentiu qualquer perigo ou animosidade vindo deles, e sua voz interior permaneceu quieta, o que ela entendeu como um sinal positivo.

— Gostaria de saber o que são aquelas coisas ali em cima... — comentou, tentando conversar com a calada menina a seu lado.

— Devem ser outros como eu — Eurídice falou devagar.

Lina reprimiu um calafrio.

Que diabo? Encontrava-se na Terra dos Mortos... Ela achava, mesmo, que não cruzaria com nenhum por ali? Era como imaginar que não encontraria fermento em uma padaria, disse a si própria com firmeza.

— Bem, então estamos indo na direção certa. — Sorriu para Eurídice.

— Mas você sabia que estávamos no caminho certo... — respondeu a moça, sorrindo de volta com timidez.

— Isso porque tenho uma boa guia — ela replicou, o que fez o sorriso de Eurídice se ampliar e seu rosto pálido se encher de cor e prazer.

Lina tentou manter na mente o calor daquele sorriso quando se deparou com o primeiro dos espectros. Era outra moça, e, mais uma vez, pensou que a menina também tinha idade para ser sua filha. A jovem alma carregava um embrulho que mantinha escondido e pressionado contra o peito, e, apenas pelo formato deste, Lina pôde afirmar que se tratava de um bebê. O olhar da mulher vagava pela paisagem escura à sua frente, e encontrou o de Eurídice sem se alterar.

Mas, quando ela percebeu a presença de Lina, seus olhos tristonhos se arregalaram, e sua expressão se animou.

— É a deusa da Primavera que anda no meio dos mortos? — indagou com a voz dominada pela emoção.

Após uma ligeira hesitação, Lina respondeu:

— Sim... sou Perséfone.

— Santo Deus! — A morta pressionou a mão transparente contra a boca como se para conter as emoções. Depois respirou fundo e, ao se recompor, falou novamente: — Então esta jornada escura não é, assim, tão desesperadora. Não, se caminhamos na presença de uma deusa.

Pelo canto dos olhos, Lina percebeu Eurídice sorrindo e assentindo em silêncio.

Seu nome ecoou em sussurros, como uma onda suave por entre o grupo de espíritos iluminados que de repente as rodeou.

— Perséfone!

— É a deusa da Primavera!

— Ela veio iluminar nossa jornada sombria!

Um a um, os espectros se voltaram para Lina. Eram espíritos de todas as idades e aparências: desde os velhos, já curvados com a idade, até moços que circulavam por entre os mais idosos com toda a exuberância de sua juventude. Alguns deles ainda apresentavam ferimentos, e havia outros tantos com os corpos pálidos tingidos pelo vermelho de golpes de espada. Alguns, como Eurídice e a jovem mãe, não tinham qualquer cicatriz.

Porém não importava seu estado. Todos possuíam algo em comum: a expressão de prazer e esperança renovada pela presença de Perséfone.

Lina ficou surpresa com a própria reação ao ser cercada pelos espíritos dos mortos. Não era assustador. Estava conseguindo até mesmo suportar a visão de suas feridas, desde que não as olhasse por muito tempo e se concentrasse nos olhos da pessoa. Neles ela podia ver a luz que acendia dentro de cada alma quando sorria e as cumprimentava com o que, esperava, fosse uma demonstração de carinho.

Conforme ela e Eurídice seguiram pelo caminho escuro, o número de mortos ao seu redor continuou a crescer. Deméter não tinha exagerado. Aqueles espíritos obviamente precisavam dela. Reagiam à sua presença como se ela fosse a chuva e eles, uma planície deserta. Ressequidos, eles bebiam de seus sorrisos e saudações.

Vozes sussurravam sem parar ao seu entorno, murmurando palavras em línguas que ela não devia compreender, mas compreendia.

Sentindo-se um pouco sobrecarregada, Lina tentou não pensar na quantidade de espíritos que a seguia. Concentre-se em um de cada vez , disse a si mesma. Pense neles como clientes ansiosos, e não como um mar de mortos.

Como se pressentisse o seu crescente desconforto, Eurídice se postou a seu lado, certificando-se de que ela pudesse avançar.

— Já posso ver o pântano à nossa frente — sussurrou. — Lá tomaremos o barco de Caronte, e ele nos levará pelo lago até o caminho que conduz aos Campos Elísios. O palácio de Hades fica à beira destes. Não deve demorar muito para que nós o alcancemos.

Lina ia agradecer a moça pela animadora informação quando a trilha diante delas tremeu, e, com um rugido ensurdecedor, o mármore negro se partiu, criando uma abertura no chão parecida com a boca de um gigante.

Exclamando de medo, as almas dos mortos se espalharam, deixando apenas Lina e Eurídice sozinhas para enfrentar o buraco negro.


Capítulo 8

— Droga! Droga! Droga! — Lina gritou, chocada demais para se lembrar de mudar para o italiano ao ver a terra se abrir aos seus pés. Girou os braços para não cair para a frente; em seguida, agarrou a mão transparente de Eurídice e começou a se mover para trás, puxando a menina com ela. Tinha dado apenas alguns passos quando quatro garanhões cor de ébano surgiram da abertura. Expelindo fogo em uma impressionante demonstração de poder, eles convergiram para Lina e Eurídice.

— Minha deusa, ajude-me! — gritou a moça.

A voz aterrorizada da menina arrancou Lina de seu estupor. Sem pensar duas vezes, ela largou a mão pequena e pálida, e deu um passo à frente para enfrentar os cavalos. O garanhão líder a desafiou com um relinchar agudo, as orelhas coladas ao crânio maciço. Foi o primeiro animal do qual ela se aproximou.

Cruzando os dedos mentalmente para que seu dom não houvesse ficado para trás junto de seu próprio corpo, Lina baixou a voz e começou a falar num tom dócil, enquanto esticava a mão para o focinho ameaçador.

— Olá, garoto. Nossa, como você é bonito!

O cavalo bufou, desconfiado, mas ergueu as orelh as de modo a captar os sons que ela emitia.

Lina sorriu. Era óbvio que seu carisma era uma parte de sua alma e não de seu corpo.

Deu um suspiro de alívio. Não importava o quanto os cavalos eram grandes ou ferozes. Eram apenas cavalos, e, como todos os animais, aqueles também a adoravam.

Fez um barulhinho com a língua enquanto acariciava o focinho aveludado do magnífico animal.

— Você é grande mesmo, hein? — sussurrou, amorosa.

— Quem se atreve a perturbar as almas dos mortos e a tocar os temíveis cavalos de Hades?!

O clamor desceu como um chicote sobre ela, e Lina puxou as mãos do focinho macio, olhando, culpada, na direção da voz grave.

Engoliu em seco. Que idiota! Ficara tão fascinada com os garanhões que não havia nem sequer olhado além deles.

O homem tinha longos cabelos presos em uma trança espessa, negra e brilhante, e estava de pé em uma biga prateada, da cor do luar. Segurava uma lança dupla em uma das mãos e grossas rédeas de couro na outra, com o corpo maciço envolto numa túnica azul-noite. Um manto escuro ondulava ao seu redor e, sob a luz fraca emitida pela deusa, as dobras deste cintilavam em tons de roxo e azul-royal.

Os olhos de Lina se desviaram para o rosto moreno, de um tom exótico. A pele, uma mistura de ouro e bronze, dava-lhe a aparência intimidadora de uma estátua viva. Um par de olhos escuros e faiscantes a fitava de cima dos traços fortes, do queixo bem definido, e do nariz aquilino. Ele parecia zangado, irritado.

Mas era magnífico.

Nossa, Lina pensou, entorpecida. Ele parece o Batman! Só faltam a máscara e o Batmóvel.

— Perdão — murmurou, nervosa. — Eu não queria perturbar ninguém. Os mortos ficaram felizes em me ver e...

Um dos “temíveis cavalos”, obviamente irritado com sua falta de atenção, bufou fumaça em seu rosto, obscurecendo-lhe a visão.

No mesmo instante, ela o repreendeu com um estalo de língua e o acariciou no focinho.

— Mais uma vez você se atreve a tocar meu feroz corcel... — Desta vez, a voz profunda soou mais confusa do que zangada.

Lina teve que afastar a enorme cabeça e espiar por baixo do pescoço do cavalo.

— Pelo visto, ele não percebe que é um animal tão feroz. — Sorriu para o garanhão, carinhosa, e este lhe lambeu o ombro. No mesmo instante, os outros três começaram a esticar as cabeças para ela, ansiosos por sua cota de atenção. — Bem, não é exatamente assim... A verdade é que eu tenho essa “coisa” com os animais. Eles gostam de mim. Muito. — Alcançou outro focinho e o acariciou. — Tenho certeza de que estes corcéis ainda são bastante perigosos... Apenas não neste momento.

Foi então que sua mente registrou as palavras do homem. Ele havia dito “os temíveis cavalos de Hades ”!

Lina se encolheu por trás do animal mais próximo. Merda! Aquilo significava que o Batman, ali, era o deus do Submundo!

Fechou os olhos e contou até três. Respirou fundo e se afastou dos animais que ainda demandavam de carinho.

— Eu sinto muito. Foi muito rude da minha parte não me apresentar. Sou Perséfone, filha de Deméter. Ela mandou avisá-lo de que eu estava vindo para uma visita.

Os olhos do deus se arregalaram de leve, porém ele não respondeu.

Lina prosseguiu:

— Eu não quis perturbar os mortos, verdade. Peço desculpas se fiz algo que não devia ter feito.

Ele permaneceu em silêncio, e o estômago de Lina se contraiu.

— Você deve ser Hades. Espero não ter chegado em um momento inconveniente?

— Eu a reconheço agora, deusa — ele falou, sério. — Recebi o aviso de sua vinda.

Lina sentiu uma ponta de surpresa. Ele a reconhecera? Não esperava que Hades conhecesse Perséfone. Deméter não havia mencionado nada sobre isso.

— Não fez mal algum — ele prosseguiu, seco. — Acontece que o Submundo não é normalmente visitado por imortais. Os mortos não estão acostumados com a presença de outros deuses.

Lina tentou sorrir, embora o olhar penetrante de Hades fizesse com que ela tivesse vontade de se encolher.

— Foi ideia de minha mãe — comentou e se arrependeu no mesmo instante.

Droga. Parecia uma adolescente. — Também achei que seria bom eu sair um pouco — acrescentou depressa.

Hades ergueu uma sobrancelha escura, assim como Batman teria feito.

— Deméter me disse que o Submundo é cheio de magia e beleza — ela repetiu, sincera. — Fiquei com vontade de ver por mim mesma.

— Há muitas maravilhas no meu reino que passam despercebidas pelos imortais lá de cima — ele falou devagar.

— Então não se importa que eu as visite?

O deus a estudou com olhos escuros e impenetráveis. Antes que desse uma resposta, contudo, o garanhão mais próximo de Lina colou as orelhas na cabeça, e, com um relinchar, arreganhou os dentes para a silhueta clara que se aproximara dela.

Com um grito, Eurídice saltou para trás.

No mesmo instante, Lina se pôs à frente do cavalo, fazendo com que o enorme animal desistisse de seu ataque.

Com as mãos nos quadris, ela o repreendeu:

— Que coisa feia! Eurídice estava apenas chegando perto de mim, ela não ia fazer nada de errado... E vocês já assustaram as outras almas. Deviam ter vergonha!

Contrariado, o cavalo abaixou a cabeça e piscou para ela com olhos tristes.

Hades observou a jovem deusa repreender seu corcel, incrédulo. O que ela havia feito com Órion? Lançado algum feitiço sobre ele?

Olhou os outros três garanhões, os quais balançavam a cabeça e olhavam, fascinados, para Perséfone. Que tipo de magia possuía a deusa da Primavera? Ele a tinha visto umas poucas vezes em suas raras incursões à superfície. E o que observara fora uma deusa jovem, bela e fútil, à qual ele dera tanta atenção quanto ao restante dos imortais.

A mulher diante dele, no entanto, parecia muito mais centrada e dona de um inconfundível ar de maturidade.

E ela encantara suas montarias.

Hades balançou a cabeça, inconformado. Que sentimento era aquele que Perséfone despertara nele? Curiosidade?

Eras haviam se passado desde a última vez em que se sentira levemente curioso a respeito de outro ser.

Que coisa intrigante! O simples pensamento de ter considerado a deusa da Primavera interessante o fez ter vontade de rir às gargalhadas.

Tomou uma decisão e se obrigou a falar antes que mudasse de ideia.

— É bem-vinda ao Submundo, Perséfone.

Lina piscou, surpresa. A voz do deus tinha mudado, assim como sua expressão sombria. Agora ele a fitava com uma intensidade quase tangível. Seus olhos não pareciam mais distantes e ilegíveis. Eles brilhavam com uma ponta de curiosidade e, ela quase podia jurar, com humor, se não soubesse que ele era o deus do Submundo.

Hades se parecia, mesmo, com o Batman. Aliás, com o Batman sexy , num daqueles dias em que o Coringa não o apoquentava. Ele era tão másculo que irradiava poder. A descrição apressada que Deméter fizera dele definitivamente não a preparara para a presença daquele deus.

— Obrigada, Hades. Agradeço sua hospitalidade — murmurou, um pouco ofegante.

— Venha, então. Vou lhe mostrar meu palácio. — Ele fez um gesto magnânimo e abriu espaço ao seu lado na biga.

Lina desviou o olhar para os cavalos.

— É melhor eu me despedir deles primeiro...

Hades notou quando, sem qualquer hesitação ou medo, a deusa retornou para o meio dos gigantescos garanhões e foi cercada por eles. Uma pequena e estranha esfera de luz a seguia, fazendo com que a pelagem escura dos animais brilhasse, ao mesmo tempo que encerrava a moça em um círculo iluminado e deixava seu rosto claramente visível. Ele pôde vê-la sorrindo como uma menina enquanto acariciava um cavalo por vez e se perguntou: onde estava a fútil e egocêntrica deusa da Primavera? Aquela Perséfone madura e amante dos cavalos não era o que ele esperava.

— Vocês são todos umas gracinhas, meninos. Não fiquem tristes. Não estou mais zangada.

Hades custou a acreditar, contudo seus apavorantes corcéis a acariciavam e relinchavam feito pôneis.

Rindo, Perséfone finalmente saiu do meio deles. Sentiu que o deus ainda a observava e sorriu para ele.

— Adoro cavalos. E você?

A expressão radiante no rosto dela fez o estômago de Hades apertar. Que deusa olhara para ele daquele modo antes?

Sentiu a boca seca e soltou o ar, contrariado.

— Eu também.

Lina se perguntou como podia se perder diante de apenas duas palavras pronunciadas por aquela voz grave e profunda. Por algum motivo ridículo, sentiu o rosto quente e se virou rapidamente para acarinhar o pescoço liso de um garanhão.

Que diabo havia de errado com ela? Precisava se controlar. Era uma mulher adulta. Não tinha razão para ficar com os joelhos fracos e os olhos estatelados apenas porque Hades acabara se revelando tudo, menos um sujeito aborrecido ou um troll ... um daqueles gigantes do folclore escandinavo.

Olhou para ele.

Senhor! O homem a deixava nervosa.

Recluso e sombrio ..., pensou, cínica. Deméter devia ter adicionado “deslumbrante” à descrição.

Merda! Precisava começar a pensar nele como nada mais do que um... executivo de nível superior.

Um executivo de nível superior incrivelmente poderoso.

Negócios, Lina. Esta viagem é apenas de negócios. Lembre-se disso!, falou a si mesma com firmeza.

— Estou pronta. — Endireitou os ombros, deu no cavalo um tapinha final, e começou a se aproximar de Hades.

Parou.

Droga. Tinha acabado de repreender os cavalos por mau comportamento, e lá estava ela, reagindo à presença de um homem bonito como uma adolescente idiota e se esquecendo dos bons modos.

— Eurídice! — chamou, afastando-se da biga para que pudesse enxergar a alma que permanecia, nervosa, pouco atrás dela. — Vamos... Hades vai nos dar uma carona.

Os olhos da menina continuaram arregalados de medo.

— Oh, não, senhora. Eu não poderia ir com... — ela começou, então calou-se, impotente.

Lina suspirou. Eurídice parecia uma corsa pálida e assustada.

— Querida, eu jamais continuaria sem você. Afinal, foi uma guia maravilhosa e uma boa amiga. — Ela se voltou para o deus. — Seu palácio não fica no caminho para os Campos Elísios?

Ele anuiu em silêncio.

— Há algum problema se Eurídice for conosco?

Em vez de responder a ela, Hades voltou a atenção para a pequena alma:

— Não tenha medo, criança. Pode se juntar à sua senhora.

Sua voz tinha mudado outra vez, Lina notou. Agora ele parecia um pai persuadindo a filha tímida. Sua expressão também suavizara, e o olhar intenso com o qual a havia estudado se fora. Parecia gentil e, repentinamente, muito mais acessível e compreensivo.

De algum modo, também parecia mais velho do que antes.

— Como quiser, meu senhor — Eurídice respondeu com voz doce. Conseguiu até mesmo ensaiar um sorriso enquanto tentava contornar os quatro garanhões para se juntar a Lina.

— Não precisa mais se preocupar — Lina afirmou, obrigando-se a desviar os olhos do rosto de Hades para acenar em direção aos animais. — Eles vão se comportar.

Eurídice lançou um olhar nervoso para os corcéis e tomou o cuidado de manter a deusa entre eles, mesmo que os cavalos não dessem nenhum sinal de que iriam atacá-la. Encontravam-se ocupados demais adorando Perséfone.

O chão da biga ficava bem acima do solo, e, agradecida, Lina aceitou a ajuda de Hades para subir. A mão grande e quente envolveu a sua, e Lina ficou surpresa ao sentir a aspereza de calos contra a palma lisa de Perséfone.

Perguntou-se qual era o trabalho de Hades, e o que ele fazia com as mãos, porém não teve tempo para continuar. Tão logo puxou Eurídice para cima do veículo, Hades gritou um comando, e a biga arrancou, fazendo uma volta fechada e mergulhando na abertura que se formara na terra.

Olhando por cima do ombro, Lina avistou a fenda se fechando atrás deles. Engoliu em seco e puxou Eurídice para a frente, agarrando-se à borda lisa do carro e prendendo a moça dentro do círculo de seus braços para que ela não caísse.

A esfera de luz se manteve acima de seu ombro direito, porém sua iluminação já não era necessária. Tochas brilhavam de arandelas de prata, iluminando as paredes altas e lisas do túnel escuro através do qual eles voavam.

— É como a Batcaverna!

Lina percebeu que tinha falado em voz alta quando Hades se voltou na sua direção, lançando-lhe um olhar inquiridor.

— Eu estava me perguntando se havia morcegos nesta caverna... — Ela disfarçou, sem graça.

— Sim, muitos.

Lina desviou o olhar para a capa que voava atrás dele.

— Aposto que são morcegos grandes — falou, irônica.

Hades bufou, soando como um de seus apavorantes corcéis.

— Tem medo de morcegos, Perséfone?

— Nunca pensei sobre isso — ela respondeu com sinceridade. — Na realidade, não sei muita coisa sobre eles.

— É normal ter medo do que não conhecemos — ele observou.

Seu tom era ainda paternal e um pouco condescendente, Lina concluiu.

Levantou uma sobrancelha. Se ela pensasse daquela maneira, os acontecimentos do dia a teriam paralisado.

— Não considero que isso seja normal, e sim um sinal de imaturidade — afirmou com segurança.

Hades bufou mais uma vez, e Lina se viu irritada com tal comportamento.

— Assim nos diz uma deusa muito jovem...

— A maturidade nem sempre pode ser medida em anos — ela retorquiu, irritada. Ele podia ser o “Mister Mundo do Inferno”, ou ser parecido com o Batman, mas teria uma surpresa se tentasse tratá-la como uma jovenzinha estúpida.

A única reação de Hades foi um olhar penetrante. Em seguida, gritou outro comando para os cavalos, e estes aumentaram a velocidade, tornando qualquer conversa impossível.

Lina concentrou-se em se agarrar à biga e ter certeza de que não perderia Eurídice em uma daquelas guinadas.

Quando começava a achar que suas mãos criariam garras de tanto segurar com força o veículo, Hades levantou a lança de duas pontas para o teto. Um facho de luz explodiu das ponteiras, fazendo a passagem subterrânea se abrir e o chão se inclinar para cima.

Com um barulho ensurdecedor, a biga saiu da passagem aberta e, em meio a uma impressionante chuva de faíscas, causada pelos cascos dos cavalos, deslizou até parar.

Lina olhou ao redor, emudecida. O primeiro pensamento que a atingiu foi que não estava mais escuro. O céu acima deles era claro e, embora não houvesse nenhum sol, brilhava como uma paleta de lindas cores pastéis, as quais variavam do mais suave violeta, passando pelo azul-turquesa do Caribe, até o amarelo dos ranúnculos. Pôde ouvir o canto lírico das aves, e a brisa que acariciava seu rosto trazia consigo um aroma doce e familiar.

Respirou profundamente. Onde tinha sentido aquela fragrância maravilhosa antes?

Seus olhos se desviaram da beleza sutil do céu sem sol, e sua pergunta foi respondida. Árvores altas e imponentes, que ela reconheceu como ciprestes, ladeavam o caminho, e, em vez de terem crescido em um terreno pantanoso coberto por musgo ou lama, a área sob elas estava forrada de flores. Flores enormes, da cor do luar, que ela soube identificar de pronto.

— Narcisos! — exclamou, surpresa.

Hades a fitou.

— Sim, o narciso é a flor do Submundo. — Ele respirou fundo. — Não me canso de seu doce perfume.

Lina nada disse, porém sua mente refletiu sobre quão irônico era Deméter ter usado a flor do Submundo para trocar sua alma com a de Perséfone. Então a deusa da Colheita tinha apenas respondido à sua invocação? Queria apenas ajudá-la com a padaria porque era uma espécie de “Boa Samaritana do Olimpo”? Não possuía nenhuma missão secreta como, por exemplo, mandá-la para o inferno no lugar de Perséfone?

Olhou para o deus a seu lado. Ele não parecia disposto a saltar sobre ela e estuprá-la. Mas também não era o ídolo que a deusa da Colheita descrevera. Em muito pouco tempo Hades fora intenso, sexy , intimidador e gentil. Estava muito distante de ser um deus aborrecido, assexuado e sem qualquer interesse pelos mortos.

O que Deméter pretendia? , perguntou-se Lina. Ela não era uma menina tola, que acabara de deixar as fraldas.

De qualquer forma, manteria os olhos abertos e a guarda alta, afinal tinha um trabalho a fazer, e só voltaria para casa depois de cumprí-lo.

Hades bateu as rédeas, e a biga começou a avançar novamente. Mas, desta vez, a uma velocidade mais moderada. A floresta em ambos os lados era densa e antiga. Aves exóticas voejavam, brincando nas árvores e chamando umas às outras com seu canto melódico. As raízes dos ciprestes descansavam so bre o manto de narcisos e, ocasionalmente, ela ouvia o sussurro de um riacho.

Avistou um lago cristalino, refletindo o céu aquarelado. De vez em quando, pensava ter visto a sombra de espíritos, mas, se tentava focar nas imagens, estas desapareciam.

No fim, nenhuma outra alma atravessou seu caminho.

— É tão lindo! — disse Eurídice com a voz abafada como a de uma criança na igreja.

— É mesmo — Lina concordou. Então olhou para o globo brilhante que pairava sobre seu ombro. Abrindo a mão, sustentou-o com a palma voltada para cima. — Acho que não precisamos de você no momento...

Imediatamente, a luz reagiu. Mergulhou em sua palma e, com um estalo, se dissolveu.

Lina sentiu a palma formigar e teve que se esforçar para não esfregá-la contra a túnica. Em vez disso, abriu um grande sorriso para Eurídice e fingiu ser normal ter bolas de luz inteligentes, desaparecendo em sua pele.

— Ora, veja — disse à menina. — Você tinha razão em não ter medo. Não há nada terrível ou assustador aqui.

O deus sombrio a seu lado concordou com um gesto de cabeça e sorriu gentilmente para o espírito da menina.

— Assim como no seu caso, criança, a morte não precisa significar terror. Você poderá passar a eternidade desfrutando as delícias dos Campos Elíseos, ou, se preferir, beber do Lete, o Rio do Esquecimento, e renascer para outra vida mortal.

Lina tentou esconder sua surpresa. Almas podiam optar por renascer?

Olhou para a menina muito quieta no círculo protetor de seus braços. Ela morrera tão moça... Certamente desejaria a chance de renascer e viver uma vida longa e plena.

— Que maravilha, Eurídice! — Lina sorriu para ela. — Você pode apenas descansar um pouco e passear pelos campos como se estivesse de férias, como eu! Depois pode beber do Rio do Esquecimento e ter toda uma nova vida para viver.

O sorriso de Lina se desvaneceu quando ela viu o rosto pálido de Eurídice ficar quase incolor, e o pavor refletido em seus olhos.

— O que foi, querida?

— Por que não posso ficar com você, Perséfone? — Eurídice pediu, aflita. — Eu não quero renascer. Não quero... Mesmo se eu esquecer a minha vida passada, eu poderia cometer os mesmos erros, poderia escolher o mesmo... — Sua voz falhou em meio a um soluço, e ela mergulhou o rosto nas mãos.

Lina olhou para Hades e envolveu a menina nos braços.

Hades estudou o espírito da moça com uma expressão sábia no olhar.

— Acalme-se, criança. Enquanto a sua senhora permanecer no Submundo, você terá acesso a ela. Silêncio, agora. Suas lágrimas não são necessárias. Elísia é diferente para cada espírito mortal. E ficará em Elísia ao lado de Perséfone.

Lina sorriu para Hades, agradecida. Eurídice era jovem e estava assustada. Se ele permitisse que a menina ficasse com ela, então esta teria ao menos seis meses para se acalmar. No momento em que ela, Lina, tivesse que partir, Eurídice estaria tão acostumada com o Submundo que não se incomodaria com sua ausência.

Talvez pudesse até mesmo convencê-la a renascer, depois que ela relaxasse e ganhasse alguma confiança, ponderou.

Perguntou-se o que teria acontecido na breve vida de Eurídice para provocar nela tal dor e fez uma anotação mental para conversarem a respeito quando a pequena estivesse se sentindo mais segura.

— Verdade? — Eurídice levantou o rosto. — Posso ficar com Perséfone? — perguntou, surpresa.

— Tem a palavra do deus do Submundo — Hades respondeu solenemente.

O rosto da moça floresceu com alegria.

— Oh, obrigada, senhor! Prometo servir bem à minha deusa.

Lina acariciou a menina debaixo do queixo.

— Amigos não servem um ao outro, Eurídice.

A moça pensou por um momento antes de falar:

— Se não vai permitir que eu a sirva, vai ao menos me deixar cuidar de você e ter a certeza de que está sendo bem cuidada?

Lina pensou em dizer à pequena alma que era mais do que capaz de cuidar de si mesma. Contudo, a expressão ansiosa de Eurídice freou suas palavras. A menina, obviamente, precisava de alguém em quem concentrar sua atenção. Talvez fosse melhor, pelo menos por algum tempo, que ela se mantivesse ocupada.

— Eu ficaria honrada em ter você cuidando de mim, Eurídice — falou, devolvendo o abraço apertado que a moça lhe deu em agradecimento. — Minha mãe cansou de dizer que eu precisava de uma ama.

Na verdade, era a avó era quem tinha feito o comentário, por ocasião da milésima vez em que ela derramara algum tipo de alimento em si mesma. E fizera o comentário em italiano.

Mas Lina se absteve de partilhar esse detalhe com Eurídice.

— Como vai ver, criança, meu palácio tem muitos cômodos. Terá um quarto próximo ao de sua senhora. — Com um floreio, Hades apontou à sua frente, e as duas mulheres olharam para cima. — Eis o Palácio de Hades.

Eles haviam chegado a um ponto onde a estrada formava um “T”. A ponta esquerda desaparecia na floresta densa, mas foi para o lado direito que Hades chamou a atenção. O caminho fazia uma curva graciosa, circundando um magnífico castelo.

O queixo de Lina caiu. Disse a si mesma para se recompor, porém não conseguiu e ficou de boca aberta como uma caipira. O castelo era feito do mesmo mármore negro da estrada. Acima deles, viam-se vastos telhados e balaústres e impressionantes torres pontiagudas que se estendiam para o céu violeta. E como o caminho, também pareciam feitos de um único pedaço de pedra. Janelas altas e arqueadas, de múltiplas vidraças, encontravam-se iluminadas, dando à enorme estrutura uma aparência convidativa. No topo da mais alta das torres circulares, tremulava uma enorme bandeira negra.

Lina estreitou o olhar e protegeu os olhos com a mão a fim de enxergar o brasão de armas representado em prata. De um lado da bandeira, viu um elmo ornamentado; do outro, a figura de um cavalo de criação.

Sorriu ao perceber que o garanhão lhe era muito familiar.

— É um dos seus temíveis cavalos? — perguntou a Hades, apontando para a bandeira.

— Sim, é Órion. — Ele apontou na direção do cavalo líder, que virou a cabeça e ergueu as orelhas ao som de seu nome. — Ele é, de fato, um dos meus corcéis, embora hoje seja temível apenas na teoria...

— Pois eu o considero assustador — murmurou Eurídice.

— Ouviu isso? — Lina chamou o garanhão negro, e Órion virou a cabeça outra vez, relinchando em resposta. — Sua reputação está garantida.

Hades deixou escapar um som de desgosto, que Lina ignorou.

— Seu palácio é incrível. Mal posso esperar para vê-lo por dentro.

— É uma maravilha que poucos imortais experimentaram. — Ele soou como um pai carinhoso falando com orgulho de um filho, e foi fácil entender por quê.

Lina estava certa de nunca ter visto coisa igual. Aquilo não se comparava às velhas mansões de Tulsa, muito menos às magníficas construções antigas de Florença.

A biga percorreu a estrada que cercava o palácio e, conforme eles fizeram a curva, ela se viu sem fôlego. Jardins bem cuidados
se estendiam, fileira após fileira, por detrás do palácio. Fontes adoráveis borbulhavam alegremente, e os arbustos tinham sido podados em formas geométricas perfeitas. As flores brotavam em profusão, e ela reconheceu muitas delas: orquídeas, lírios, rosas, e, claro, o sempre presente narciso, bem como várias plantas que lhe eram desconhecidas.

Não obstante, todas possuíam algo em comum:

— Todas as flores são brancas! — observou, perplexa.

Não que fossem todas iguais. Ela não havia percebido, até então, quantos tons de branco poderia haver.

Naquele momento tinha diversos tons brilhando à sua frente: desde o branco puro e brilhante da neve recém-caída à iridescência sutil das pérolas. E cada um com uma cadeia única de pigmentos.

— É a cor do Submundo — explicou Hades. — O branco representa a pureza da morte.

— Eu pensei que o preto fosse a cor da morte.

— Também. Cada um dos animais negros está ligado a mim. O negro da noite e as sombras nasceram no meu reino, assim como a escuridão da pequena morte conhecida como sono. O branco e o preto são as mais perfeitas das cores, Perséfone. E ambas pertencem ao Submundo.

— Branco para a pureza da morte... Depois da sua explicação, faz todo o sentido, mas até agora eu não teria associado branco com o infer... — Lina se deteve, limpou a garganta e continuou: — ... com o Submundo.

Hades pareceu satisfeito, enquanto conduzia a biga ao longo de uma parte do caminho que bifurcava a partir da estrada principal, e fazia um ângulo por trás do palácio levando a uma edificação comprida e estreita, feita do mesmo mármore preto. Obviamente, um opulento estábulo.

Pararam diante deste, e quatro espectros de homens saíram do edifício, trajados com fardas negras contendo o mesmo brasão em prata da bandeira. Cada um deles assumiu um garanhão.

— Trate-os bem — Hades ordenou aos fantasmagóricos cavalariços enquanto ajudava Lina e Eurídice a descer do carro, gesticulando para que elas o precedessem no caminho para o palácio. — Eles tiveram um dia... — fez uma pausa, olhando para Lina, e ergueu as sobrancelhas escuras — ... incomum.

Ela piscou, surpresa com o tom de zombaria. Em seguida, replicou em voz alta o suficiente para os estribeiros ouvirem:

— Eles me assustaram um bocado... Não são chamados de “os temíveis cavalos de Hades” à toa. — Cutucou Eurídice com o cotovelo. — Não é mesmo?

A menina esboçou um sorriso e acenou com a cabeça vigorosamente.

— Sim, senhora.

Hades bufou.

Um dos cavalos se curvou e relinchou para Lina como um colt , um daqueles potros treinados, fazendo com que um cavalariço a fitasse, perplexo.

Ela disfarçou uma risada com uma tosse e acelerou o passo para impedir que os garanhões se humilhassem ainda mais.


Capítulo 9

— É ainda mais lindo por dentro! — exclamou Lina, tão fascinada que não conseguia parar de olhar ao redor.

Entraram no palácio por trás, passando por um intricado portão de ferro forjado. Depois atravessaram um corredor largo que levava a um impressionante pátio, o qual parecia ter sido construído bem no centro da estrutura. No meio desse pátio, havia uma fonte enorme, tão intimidadora como a Fontana di Trevi, em Roma, exceto pelo fato de que o deus que saía das águas, na parte de trás da biga, não era Netuno, e sim Hades em todo seu sombrio esplendor... puxado, obviamente, por seus famosos e temíveis cavalos. Flores brancas cresciam nas moitas em torno dos bancos de mármore: o sempre presente narciso, assim como uma flor delicada que Lina não reconheceu.

— Que flor é aquela? — perguntou ao deus.

— É uma abrótea — ele respondeu, lançando-lhe um olhar estranho. — Surpreende-me que não a reconheça, Perséfone.

Lina engoliu em seco. Evitando o olhar afiado do deus, ela se curvou, fingindo estudar a pequena planta. A deusa da Primavera deveria reconhecer qualquer flor!

— Ah, claro. — Riu, nervosa. — Eu a reconheço agora. Essa luz incomum fez com que ela me parecesse estranha. — Estendeu um braço, de modo a observar a luz suave e rosada sobre a pele cor de alabastro de Perséfone. — É tão diferente da luz solar! Ela faz tudo parecer alterado de alguma forma. Até mesmo coisas que me deveriam ser familiares.

Sorriu diante da ironia de que seu braço não lhe parecia nada familiar.

— A luz no meu reino foi criada por mim, e é tão diferente do mundo de Apolo como eu sou do deus da Luz. — A voz de Hades soou irritada, e ele se pôs imediatamente na defensiva.

— Ah, bem... — Lina começou, pouco à vontade. — Eu não disse que não gostei, pelo contrário: acho linda. É apenas diferente.

Ele não respondeu. Apenas a observou com seus olhos intensos e expressivos.

Lina pensou que não era à toa que Hades não recebia muitos visitantes. Seu humor era uma verdadeira montanha-russa.

Precisava conversar com ele a respeito disso antes de partir. Poderia muito bem ajudá-lo enquanto estivesse ali, assim como pretendia fazer com todos os mortos.

Na realidade, a ideia era um tanto interessante. O pouco que já tinha visto do Submundo era bonito demais para ser sepultado em superstições e desinformação.

E Hades não era nada parecido com o deus desinteressante que Deméter havia descrito.

Lina o olhou de esguelha. Ele era como uma pantera volúvel e intrigante.

O que o deus necessitava era de uma boa campanha de marketing para provocar uma mudança em sua imagem.

Não pôde deixar de sorrir, discreta. Sempre fora excelente em mercadologia.

Os três caminharam dev agar pelo enorme pátio, e logo Lina se encontrou completamente absorta no seu entorno. Lindas estátuas de deuses e deusas nuas pontilhavam a área; tão benfeitas, em mármore de cor creme, que pareciam de carne e osso.

Sorriu. Esperava que seu emprego temporário não a mantivesse ocupada demais, assim poderia desfrutar o jardim. Aquele era um lugar perfeito para se sentar, beber um gole de vinho e ficar sonhando.

— Após essa nossa viagem, imagino que queiram repousar um pouco — Hades falou de repente. — Mas eu gostaria que vocês se juntassem a mim para uma bebida — acrescentou depressa, como se esperando que ela fosse recusar, e ele precisasse oferecer um bom argumento. — A menos que esteja muito cansada, o que é compreensível.

— Não estou cansada, e sim faminta — Lina sorriu para o sombrio deus, querendo deixá-lo à vontade.

— Muito bem. — Hades suspirou, a expressão relaxando um pouco. — Vou lhe mostrar o seu quarto. — Acenou para Eurídice. — E também o seu, criança, o qual, pode ficar certa, será perto dos aposentos de sua senhora.

A moça sorriu, feliz, e Lina sentiu-se agradecida ao deus pela compaixão que ele vinha demonstrando por Eurídice.

Conforme continuaram pelo pátio, Lina vasculhou a memória. O que sabia acerca de Hades? Não se lembrava de ter lido muito sobre ele. Era o rei do Inferno que tinha sequestrado a jovem Perséfone, mas, o que mais?

Seu estoque de conhecimento se agitou e sussurrou:

Hades. Melancólico, recluso, rígido... O deus sombrio se enriquece com as lágrimas dos mortais.

Lina tentou não franzir o cenho enquanto ouvia sua voz interior. Hades não agia como se as lágrimas de Eurídice o beneficiassem de alguma forma. Na verdade, parecia o oposto.

Confusa, bloqueou a mente para o eco de Perséfone e sorriu, distraída, para sua companheira, que comentava sobre a beleza das flores brancas.

O gigantesco pátio chegou ao fim, e eles chegaram a duas grandes portas de vidro, as quais se abriram sem que Hades as tocasse.

Magia , deduziu Lina, tentando não parecer assustada. Não podia demonstrar surpresa diante daquele tipo de coisa.

Preciso agir como uma deusa. Preciso agir como uma deusa. Preciso agir como uma deusa , lembrou a si mesma, recitando o mantra em silêncio.

Hades abriu espaço e fez um sinal para que ela adentrasse o palácio.

Para Lina, foi como pisar em um sonho. O chão era do mesmo mármore escuro e inteiriço que compunha a estrada e o exterior do palácio, contudo as paredes internas eram diferentes: de ébano, com veios de um branco pálido. Dia e noite mesclados com harmonia. Arandelas de prata ostentavam tochas que ardiam alegremente. Dos tetos altos, notou Lina com os olhos voltados para cima, pendiam lustres feitos de pedras preciosas e velas. As chamas banhavam as joias e brilhavam como o sol batendo nas águas.

Bem acima de suas cabeças, havia uma verdadeira cachoeira de ametistas. Um pouco mais à frente, no saguão, um candelabro pendia, aparentemente trabalhado em topázio. Mais adiante, outro lustre piscava com o verde puro e perfeito das esmeraldas.

— Joias! — Ela balançou a cabeça, admirada. — Os lustres são mesmo feitos de pedras preciosas?

— São. Não fique tão surpresa, minha deusa. As pedras não são encontradas nas profundezas da Terra? E o mais profundo reino da Terra não é o Submundo? — Hades parecia divertido.

— Eu não sabia que era o deus das joias, também — Lina sussurrou, ainda incapaz de tirar os olhos da maravilhosa vista.

— Há muito sobr e mim que outros imortais não sabem — ele afirmou.

— Senhor, perdoe-me por estar atrasado. Pensei que fosse entrar pela frente do palácio.

A nova voz fez Lina desviar os olhos dos lustres carregados de riquezas. Um homem corria pelo saguão em sua direção. Vestia uma espécie de toga branca, assim como a que Hades usava, porém menos volumosa.

Ele se aproximou do deus do Submundo e se inclinou respeitosamente.

— Não há problema, Iapis. Eu apenas imaginei que a deusa Perséfone fosse apreciar entrar pelo pátio.

— Com certeza, senhor. — O homem se curvou outra vez para Hades antes de se voltar para Lina. — Deusa Perséfone... É um enorme prazer receber a primavera no Submundo.

A mesura foi formal, porém seu sorriso era sincero, e a primeira impressão de Lina foi de que Iapis era como um daqueles impecáveis mordomos ingleses, do tipo que Anthony Hopkins interpretara em Vestígios do Dia . A diferença era que ele usava uma túnica, tinha mais cabelos e estava morto.

Sorriu gentilmente, tentando se esquecer daquela última parte.

— Obrigada. Pelo pouco que vi do Submundo, já estou muito bem impressionada.

— Senhora, os baús que sua poderosa mãe enviou já foram abertos, e seus trajes, dispostos em seus aposentos. Se me seguir, eu lhe mostrarei o caminho e cuidarei para que permaneça bem instalada. — Iapis olhou para Hades. — Se isso lhe convier, senhor.

— Sim, sim. — Hades acenou com desdém. — Entende melhor dessas coisas do que eu, Iapis. Ah... Arrume um cômodo próximo ao da deusa para esta pequena. Ela optou por ficar ao lado de ­Perséfone.

Iapis aquiesceu solenemente.

Hades virou-se para Perséfone.

— Basta chamar Iapis quando estiverem prontas, e ele lhes mostrará o caminho até mim.

O deus do Submundo inclinou a cabeça, deu meia-volta e se afastou depressa.

Lina o acompanhou com o olhar, vendo-o desaparecer numa esquina com a longa capa adejando às costas.

Batman. Não podia evitar. Ele a fazia se lembrar do super-herói.

E, tinha que admitir, ela sempre se sentira ridiculamente atraída pelo Batman. Mais ainda pelo beicinho de Val Kilmer.

E Hades, assim como o ator, era dono de lábios muito sensuais...

— Senhora? — chamou Iapis.

— Oh, desculpe. Eu estava tão distraída com... com esses lustres! Eles são tão incomuns. Estou encantada com a beleza do palácio. — Lina percebeu que falara demais, mas não conseguiu se conter.

Iapis inclinou a cabeça diante do cumprimento, ignorando deliberadamente o fato de que o rosto dela havia corado de repente.

— O próprio Hades constrói esses lustres.

— Verdade?! — Lina ficou ainda mais abismada.

Iapis acenou para que ela o precedesse ao longo do comprido corredor à sua direita, e Lina caminhou lentamente, com Eurídice a seu lado.

— Sim. — A voz do criado assumiu um tom professoral conforme ele andava e falava: — Hades supervisionou cada aspecto da criação de seu palácio e das terras circunvizinhas. Nenhum detalhe era pequeno demais para receber a atenção do meu senhor. Nada escapou à sua observação. Ele tem olhos de artista para com as cores e texturas, e um apurado senso estético. Este palácio é um verdadeiro monumento ao deus do Submundo.

Lina ponderou sobre as palavras de Iapis. Então o deus austero, contemplativo, assexuado e avesso a mortais produzira as maravilhas que a cercavam. Tinha “olhos de artista” e um “apurado senso estético”.

Poderia um deus tão aborrecido e sem entusiasmo ter criado uma beleza tão ímpar e com tanta atenção aos detalhes? Ela não entendia nada sobre imortais, contudo possuía o conhecimento de uma mulher madura acerca dos mortais...

E não imaginava que um homem sem qualquer paixão fosse capaz de tal criação.

— Gosto das flores entalhadas nas paredes — comentou Eurídice timidamente, apontando para a coroa que moldava cada janela e porta em arco sob as quais eles passavam.

— Ah, sim. Hades aprecia muito os narcisos e os acrescentou a vários detalhes do palácio. — Iapis sorriu para o espírito da moça.

— Sinto muito, parece que me esqueci das boas maneiras hoje! — lamentou Lina. — Iapis, esta é minha amiga... — fez uma pausa ao perceber que a menina prendera a respiração ao ouvir a palavra “amiga” e lançou-lhe um olhar carinhoso —... Eurídice.

Iapis parou para cumprimentar a menina, e esta respondeu com uma graciosa reverência.

— Vou cuidar de Perséfone — afirmou, surpreendendo Lina com sua determinação.

— Tenho certeza de que vai fazer um trabalho admirável — professou Iapis, condescendente. — Talvez devêssemos nos encontrar diariamente para que você possa me manter informado sobre os desejos de sua senhora.

— Sim, é uma boa ideia — Eurídice acedeu.

Lina se manteve em silêncio. Não queria desmanchar a expressão feliz no rosto da moça. Gostando ou não, tinha definitivamente ganhado uma babá.

— Podemos continuar, senhora?

Lina aderiu e prosseguiu pelo corredor espaçoso. À sua direita, a parede repleta de janelas proporcionava uma maravilhosa vista do pátio do palácio. Ela já perdera a conta do número de salas que se espalhavam à sua esquerda, no entanto havia tido alguns vislumbres de cômodos ricamente mobiliados e algumas silhuetas semitransparentes deslizando pelos cantos.

Sim, o belo Palácio de Hades podia ser qualificado como um castelo assombrado.

Lina pensou em todos os A & E Specials a que ela assistira ao longo dos anos: “Hotéis Assombrados da Europa”, “As Dez Mansões Mais Assombradas”, “A Lista das Pousadas Assombradas de A & E”...

Com o canto dos olhos, viu outro espírito passando. O canal Arts & Entertainment adoraria aquele lugar.

Iapis as guiou pelo corredor aparentemente interminável. Deram várias voltas, e Lina sentiu-se perdida, até que, por fim, pararam em frente a uma grande porta revestida com prata entalhada na forma de um narciso em flor.

— Perséfone, este será o seu quarto — anunciou Iapis.

Tal como acontecera com Hades, a porta se abriu sem que Iapis tocasse a maçaneta de prata.

Um perfume doce de floração recebeu Lina quando ela pisou no cômodo.

Grandes buquês da cor da lua, cuidadosamente arrumados em vasos de cristal, pontilhavam o opulento cômodo. Uma das paredes possuía janelas do chão ao teto, que se abriam para uma ampla varanda em mármore. Cortinas de veludo creme eram presas por grossos cordames de prata para que a vista da parte traseira do castelo fosse espetacular. Fogo crepitava em uma lareira de tamanho normal, e diversos armários de madeira escura recostavam-se numa das paredes, divididos por uma impressionante penteadeira, a qual se encontrava repleta com todos os tipos de item para o toalete feminino.

Mas o que mais chamou a atenção de Lina foi a enorme cama de dossel. Era a peça de mobília mais magnífica que ela já havia visto. A roupa de cama combinava com o cortinado de veludo e era decorada com bordados de prata. As cortinas do dossel tinham uma cor pálida que lembrava neblina, e parecia quase etérea em sua diáfana delicadeza.

— O seu quarto de banho é ali, senhora — explicou Iapis, apontando para uma versão menor da porta de entrada incrustada em prata.

— Já organizei suas roupas e outros itens. Por favor, avise-me caso estes não estejam ao seu gosto.

— Tenho certeza de que tudo está perfeito. Obrigada, Iapis. Os aposentos são maravilhosos.

O rapaz fez uma mesura.

— Eu apenas segui as instruções de meu senhor. Quando a deusa Deméter enviou a Hades uma mensagem, dizendo que a deusa da Primavera faria uma peregrinação pelo reino, ele ordenou que este quarto fosse preparado especialmente para a senhora.

— Se a deusa precisar de algo, ela me informará, e eu direi a você — interpôs-se Eurídice depressa.

— É claro. E eu sempre respeitarei os seus conhecimentos sobre os gostos de Perséfone.

Lina percebeu com quanta eficiência Iapis disfarçou seu riso, limpando a garganta e fazendo a voz soar sincera e compenetrada. Ele era mesmo muito gentil.

Sorriu em agradecimento, e o rapaz inclinou a cabeça discretamente.

— Vai precisar de ajuda para se vestir, senhora? — Ele quis saber.

— Oh, não! — ela respondeu, apressada, percebendo que Eurídice já começava a assentir. — Posso me virar sozinha... ao menos desta vez — acrescentou, notando o olhar decepcionado da moça.

— Como queira. Quando estiver pronta, basta chamar meu nome, e eu a conduzirei até Hades.

Lina acenou e sorriu, como costumava fazer com qualquer pessoa.

— Até lá, senhora, vou deixá-la a sós. — Ele se curvou respeitosamente. — Eurídice, seus aposentos ficam no final do corredor. Gostaria que eu a levasse até lá?

A menina a fitou, nervosa, e Lina afagou-lhe o braço, tranquilizando-a.

— Vá em frente. Vou ficar bem. Se precisar, eu ligo — prometeu Lina, sem pensar.

Iapis e Eurídice franziram o cenho.

— Claro... — concordou o fantasmagórico mordomo, confuso. — Se sua senhora precisar de ajuda, ela a convocará com uma só palavra.

Lina deu um suspiro de alívio quando seu deslize passou despercebido. Ela havia dito que “ligaria” no sentido de usar um telefone celular!

— Se a senhora tem certeza de que não precisa de mim...— murmurou Eurídice.

— Eu vou ficar bem, já disse. Vá ver seu quarto.

— Vai me chamar se precisar de ajuda?

— Claro que sim, querida! — reafirmou Lina, tentando ser paciente, pois tudo o que queria era uma chance de ficar sozinha e pôr os pensamentos em ordem.

— Venha, Eurídice — Iapis chamou a menina, e esse foi o incentivo final para que ela deixasse o quarto.

Lina ainda pôde ouvi-los discutindo “os gostos de Perséfone” enquanto a pesada porta se fechava por conta própria. Quase disse “eu preciso de uma bebida urgente!” em voz alta, mas ficou com medo de que um ou ambos corressem de volta para atendê-la.


Capítulo 10

Os armários estavam lotados de roupas bonitas e caras. Vestes de seda, de todas as cores imagináveis, porém em um estilo muito semelhante: largas, com saias longas, algumas com fendas nas laterais e outras não, marcadas por cinturas altas e corpetes justos feitos com tecidos maravilhosos, normalmente drapeados sobre o peito.

Eram todas lindas e sensuais, e contrastavam muito com o estilo despojado de Lina. Em casa, ela escolhia, dependendo do clima, confortáveis moletons, ou short e camiseta. Para o trabalho possuía vários terninhos bem cortados, alguns com calças compridas, outros com saias. E tendia a optar por cores neutras, de modo a combinar melhor as peças e expandir o guarda-roupa.

Lina deixou a mão correr pelos materiais acetinados, adorando o contato com o tecido, assim como a mistura de cores. Quando começara a se vestir como uma matrona corporativa?

Provavelmente na época em que desistira do amor.

A conclusão não foi nada agradável, e ela a afastou, tentando se concentrar nos armários. Nas gavetas largas e profundas havia uma infinidade de roupas íntimas, bem como chinelos em couro delicado e camisolas longas e femininas, do tipo que as antigas estrelas do cinema costumavam usar.

— Talvez por isso eles as chamem de “deusas do cinema” — sussurrou enquanto tocava uma lingerie particularmente deslumbrante.

A penteadeira tinha sido abastecida com mais maquiagem e parafernália para cabelos do que uma loja de produtos de beleza.

— Se este é o inferno, preciso me lembrar de ser uma menina muito má quando voltar! — murmurou, escolhendo entre uma infinidade de sombras para os olhos.

O banheiro era outra maravilha. A banheira, quase uma piscina. E alguém já a enchera até a boca com uma água quente e convi­dativa, fazendo-a perceber como estava imunda depois daquela viagem.

Tomaria um banho rápido, trocaria de roupa e renovaria a maquiagem. Depois chamaria Iapis, Eurídice, ou ambos, pensou com um suspiro, e se deixaria escoltar até poder desfrutar um refresco na companhia de Hades.

O que se come no inferno? , perguntou-se enquanto perambulava pelo enorme quarto de banho.

— Espero que tenha mais ambrosia — disse, correndo os olhos pela coleção de vidros coloridos de várias formas e tamanhos sobre a laje de mármore. Tirou a tampa de cada um deles, sentindo seus perfumes, até encontrar um de que gostou mais: o que cheirava a lírios.

Jogou um pouco deste na banheira. Na outra borda, apanhou um pente e utilizou-o para fixar a massa de cabelos, a qual prendeu no topo da cabeça.

Despindo-se rapidamente, deslizou para dentro da deliciosa água quente e mergulhou até o pescoço com um longo suspiro de satisfação.

Poderia ficar ali para sempre, mas se lembrou de que Hades esperava por ela, e não queria que Iapis fosse obrigado a apressá-la.

Assim, acelerou a maravilhosa experiência do banho, prometendo a si mesma que muito em breve mimaria a si própria com uma longa imersão.

Erguendo-se para fora da água, procurou por uma toalha, que logo localizou em um aparador próximo ao enorme espelho.

E congelou, transfixada por seu reflexo.

Não, não era seu reflexo, lembrou a si mesma. Era o de Perséfone.

E ela era realmente uma deusa.

Claro que tinha percebido antes que seu corpo estava diferente. Sabia que sua alma agora possuía um corpo de mulher mais jovem e bonita.

Mas não fazia ideia.

Com a mão delgada, traçou um caminho junto a uma das maçãs do rosto perfeito. Era deslumbrante. Os olhos luminosos, de um tom extraordinário de violeta, eram sombreados por espessos cílios negros e sobrancelhas arqueadas. A boca, observou, tocando-a, era carnuda e de um vermelho pálido. Ela soube disso porque, quando seu olhar percorreu o restante do corpo nu, suas faces se tingiram do mesmo tom.

Perséfone era exuberante. Seus seios eram altos e redondos, tão perfeitos quanto o resto dela.

Tocou de leve um dos montes macios. Em resposta, o mamilo rosado endureceu, enviando uma doce sensação de formigamento por todo seu corpo. Seus adoráveis lábios se entreabriram, e ela soltou um pequeno suspiro.

Aquele corpo era ultrassensível, ou fazia tanto tempo desde que se permitira sentir desejo que já não sabia o que era excitação?

E quanto à vida amorosa de Perséfone? A deusa era virgem ou tinha muitos amantes?

Lina continuou a estudar seu novo corpo, enquanto considerava as perguntas. A deusa era esguia sem ser magra demais. Sua cintura era graciosamente estreita em contraste com os quadris largos e sensuais. As pernas eram longas e bem torneadas, e a região entre elas, coberta com um “V” de macios cachos escuros.

Sua mão moveu-se para tocar o convidativo triângulo, porém Lina piscou, sentindo-se culpada.

Balançou a cabeça, rindo, nervosa, para o reflexo no espelho.

— Tenha a santa paciência! Precisa viver com este corpo. Não pode ter vergonha de olhar para ele! — Apanhou a toalha e começou a se enxugar com vigor, tocando intimamente cada parte de seu novo corpo. — ... Ou para qualquer outra coisa — completou, determinada.

Enquanto escolhia um vestido e penteava, distraída, o emaranhado de cabelos longos, porém, as dúvidas continuaram pairando em sua cabeça. Que tipo de vida Perséfone levava? Ela devia ter ao menos um amante. Com aquele corpo, como poderia ser celibatária?

Por isso Deméter fizera aquela troca? Talvez ela quisesse que a filha ficasse longe de algum namorado indesejado.

Lina suspirou e esfregou a testa. Havia acontecido muita coisa, e rápido demais. Não fazia ideia se os deuses necessitavam dormir, mas ela estava exausta. Precisava beber com Hades de uma vez, assim poderia voltar para o quarto e descansar.

Chamou em voz alta:

— Iapis? Estou pronta!

Dentro de instantes escutou uma batida firme na porta.

— Pode entrar!

A porta se abriu e o rapaz fez uma mesura.

— Por aqui, senhora. — Apontou o corredor na direção de que tinham vindo.

— Obrigada, Iapis... Estou morrendo de fome.

— Acredito que ficará satisfeita com as iguarias que Hades escolheu para honrá-la.

— Hades também cozinha? — Lina ergueu as sobrancelhas.

Iapis riu.

— A senhora verá.

Lina mordeu o lábio e o seguiu. O que estava pensando? Dificilmente havia cozinhas no inferno. Afinal, por que espíritos precisariam comer?

Então se lembrou de Irene apanhando vinho em uma abertura invisível. Devia ser a deusa dos Idiotas, isso sim. Precisava manter a boca fechada e os olhos abertos até que aprendesse todos os detalhes de seu novo emprego.

Iapis interrompeu seu autoflagelo.

— Senhora, devemos chamar Eurídice? Eu não gostaria que a moça pensasse que estou tentando usurpar sua posição...

— Claro. É muito gentil de sua parte, Iapis. — Lina levantou a voz: — Eurídice! Preciso de você.

Quase no mesmo instante, uma porta no corredor foi aberta e a moça surgiu, correndo para o lado de sua senhora em um adejo de trajes diáfanos e cabelos esvoaçantes.

— Oh, Perséfone! Estou tão feliz por ter me chamado! — Ela falou, emocionada, e abraçou Lina.

— Sua senhora imaginou que você talvez quisesse nos acompanhar. Dessa forma poderá encontrar o caminho de volta facilmente, caso ela deseje um refresco em horas ímpares.

Mais uma vez, Lina ficou impressionada com o tratamento que Iapis dispensava à menina.

— Obrigada por colocar a questão tão bem, Iapis — agradeceu, sincera.

— Sem dúvida! — Eurídice anuiu com um gesto de cabeça várias vezes, lembrando um animado filhote de cachorro que fazia de tudo para agradar o dono. — Preciso conhecer tudo por aqui se quiser cuidar bem de Perséfone.

Com um esforço, Lina se absteve de suspirar em voz alta.

— Perséfone, Eurídice, se me seguirem, terei o maior prazer em escoltá-las até o meu senhor.

Iapis as conduziu através de um labirinto de corredores, explicando, principalmente para Eurídice, que, embora o palácio fosse grande, não era difícil andar por ele. Hades o tinha dividido em seções. A parte da frente fora desenhada como o Salão Nobre, onde ele deliberava e ouvia as petições dos mortos. Havia no centro um espaço menor para reuniões, que era para onde eles estavam indo naquele momento.

A sala era ligada à ala dos hóspedes, onde Perséfone e Eurídice se encontravam instaladas, e contava com dois salões de baile.

Lina perguntou-se por que Hades se preocuparia em construir uma ala inteira para convidados e dois salões para dança, quando obviamente não estava acostumado a receber visitas.

Manteve os pensamentos para si mesma, porém, e permitiu que Iapis prosseguisse com sua explicação.

— Existe uma ala inteira do palácio desenhada aos aposentos pessoais de Hades. Como pode ver, Eurídice, você só precisará se familiarizar com a posição das diferentes alas para saber onde está.

— Compreendo. Se me permitirem desenhar, talvez eu possa fazer um mapa simples — sugeriu, olhando, esperançosa, para Lina.

— Claro! Considero uma ótima ideia. Talvez isso possa me ajudar a me localizar, também. Sou terrível com as direções... — comentou Lina. — Iapis, você acha que consegue encontrar alguns materiais de desenho para Eurídice?

— Com certeza, senhora. Será um prazer me certificar de que sua amiga tenha tudo o que desejar — afirmou, solícito.

— Obrigada! — Lina e Eurídice disseram juntas, sorrindo uma para a outra quando suas vozes se mesclaram em harmonia.

Iapis virou em outra esquina e parou diante de imensas portas duplas, as quais, naturalmente, se abriram sem o seu toque para uma sala gigantesca em que uma enorme mesa de jantar negra era o ponto central. Suspensos sobre esta, havia três imensos lustres de cristal.

Lina apertou os olhos diante de sua beleza ofuscante e, de repente, percebeu que as pedras brilhantes não eram cristais.

— Diamantes! — falou Eurídice em voz baixa.

— Isso mesmo — concordou Iapis. — Meu senhor optou por pendurar os lustres de diamantes nesta sala; eles iluminam perfeitamente a mesa de jantar e combinam com os castiçais de crisocola.

Atordoada, Lina correu o olhar primeiro pelos diamantes e, depois, pelos seis candelabros de várias camadas, dispostos ao longo da vasta mesa. Eram feitos de uma pedra azul-esverdeada incomum, na qual velas branco-neve encaixavam-se de modo ordenado.

— Crisocola? — Lina perguntou. — Eu não conhecia essa pedra.

— A crisocola se esconde bem no fundo da terra. — A voz profunda de Hades fez Lina dar um pulo. Ela não o ouvira entrar na sala. — Gosto de sua mistura única de azul-turquesa, jade e lápis-lazúli, mas a razão por que decidi dispor os lustres de crisocola na mesa de jantar foram as propriedades da pedra. — Fez uma pausa, pensativo.

— E quais são as propriedades da pedra? — Eurídice indagou, a voz saindo quase num sussurro.

Hades sorriu calorosamente para ela.

— A crisocola é a pedra da paz. Ela acalma as emoções.

Os olhos de Eurídice se arregalaram.

— É a escolha perfeita para uma sala de jantar!

— Concordo, pequena — interveio Iapis, fazendo a menina corar. Então se curvou para Hades e Perséfone e apontou para a mesa. — Se quiserem sentar, informarei os criados de que estão prontos para serem servidos.

Hades aderiu com um gesto brusco de cabeça e caminhou para a mesa. Puxou uma das cadeiras de espaldar alto, dispostas em frente a uma das pontas do mármore maciço, e fez um sinal para que Lina se sentasse.

— Obrigada — ela agradeceu, alisando as dobras da saia de seda enquanto se acomodava. Estava tão encantada com os candelabros e os lustres que não tinha notado o deslumbrante aparelho de jantar de cristal.

Eurídice seguiu Iapis para fora da sala, deixando-a a sós com Hades, e Lina sorriu, nervosa, tentando não fazer nenhuma bobagem.

Hades havia trocado de roupa, notou. Seu manto era tão impressionante quanto o anterior, e tão escuro quanto a túnica preta, mas aquela roupa apresentava um intrincado acabamento em prata. Os cabelos longos continuavam presos numa trança grossa, contudo ele já não usava a capa.

Qualquer outro homem teria ficado ridículo ou até efeminado naqueles trajes que eram um misto de Errol Flynn , Zorro e Gladiador , ela refletiu.

Mas não Hades.

— Espero que seu aposento esteja a seu gosto.

Que bom! , Lina pensou. Precisava apenas conversar com ele, como se o deus do Submundo fosse um homem normal.

— É adorável, assim como o restante do seu palácio — elogiou, sincera. — Iapis me contou que devo agradecer a você tão calorosa recepção, com as flores frescas, aquele banho maravilhoso e tudo o mais. Obrigada, estava tudo perfeito. É como se eu tivesse sido convidada, em vez de ter invadido seu reino por livre e espontânea vontade.

Hades piscou, aturdido. Nunca tinha visto nada tão bonito como o sorriso envergonhado que aqu eceu o rosto à sua frente.

De repente, viu-se fazendo algo que não fazia há séculos: sorriu, inclinou-se para a frente e capturou a mão de Perséfone para levá-la aos lábios.

— Você é muito bem-vinda aqui, deusa da Primavera.

Lina pensou que ia cair da cadeira. Em quarenta e três anos, nunca um homem beijara sua mão.

Agora não tinha certeza do protocolo correto. Deveria deixar a mão na dele? Deveria puxá-la?

Inferno! O que ela queria era beijá-lo de volta!

Em vez disso, sentiu os lábios formando o que, provavelmente, não passava de um sorriso pateta.

— Ahn, obrigada — gaguejou.

Hades soltou-lhe a mão e desviou o olhar. Estava agindo como um tolo impulsivo. Ela era uma deusa... Nunca poderia se esquecer disso.

Lina viu suas feições endurecerem. O que havia de errado?

Não parecia muito lógico, porém tinha a nítida impressão de que aquele aspecto de Hades — o de deus austero e sem expressão — era apenas uma fachada.

Mas por quê?

Merda , só de ouvir seus pensamentos sentia vontade de dar um tapa na própria cara e dizer a si mesma para pular fora daquilo! Em que momento tais ilusões românticas tinham invadido sua mente disciplinada e bem resolvida?

Ela já sabia a resposta: quando encontrara aquele narciso.

Um silêncio desconfortável se estendeu entre eles.

Pense em algo para dizer , ordenou a si mesma.

Respirou fundo e tentou outra vez:

— Muito interessante o que disse sobre a crisocola. Eu não sei muito muito sobre os atributos das pedras. — Olhou para o s ofuscantes lustres. — Por exemplo, considero os diamantes lindos, mas não tenho ideia sobre suas propriedades.

— Os diamantes são gemas complexas. — O olhar de Hades também se voltou para cima e, conforme o tema das pedras preciosas ganhou força, sua voz perdeu a austeridade. — Eles promovem a cura, a coragem e a força. Quando usados por guerreiros, podem verdadeiramente aumentar a força física. Por isso algumas das culturas mortais vão à guerra usando-os no interior de braceletes de platina ou prata.

— E todo este tempo eu só pensava neles como o melhor amigo de uma mulher! — Lina falou, brincando.

— É sua pedra preferida? — indagou Hades.

Lina abriu a boca para responder “sim!”, porém o olhar penetrante do deus a deteve. Algo em seus olhos lhe dizia que ela deveria pensar melhor antes de responder.

Fechou a boca e reconsiderou. Não possuía muitos brilhantes. Na verdade, os que usara tinham sido um presente de seu ex-marido.

Franziu a testa, lembrando-se de como seu belo e caro anel de casamento, um enorme diamante cercado por uma profusão de baguetes, tornara-se um símbolo de escravidão em vez de fidelidade. Seus brincos da mesma pedra, por sua vez, haviam sido uma forma de seu marido aplacar a própria culpa após mais um de seus discursos bêbados em que confessara o quanto o crescente sucesso da Pani Del Dea o intimidava.

O colar de brilhantes e o anel coquetel chamativo pertenciam a sua sogra, uma mulher fútil e manipuladora, que nunca gostara dela.

Toda as vezes em que havia usado uma das peças, sentira-se presa à família fria e distante do marido. Consequentemente, parara de usá-las muito antes de deixar de ser sua esposa.

Por tudo isso, quando tinha começado a comprar suas próprias joias, nem mesmo considerara os diamantes.

Sorriu ao pensar nos lindos brincos de pingente com os quais presenteara a si própria em seu último aniversário. Aquela, sim, poderia qualificar como sua pedra favorita.

— Ametista — falou com firmeza. — Minha pedra preciosa favorita é a ametista. Quais são suas propriedades?

Hades pareceu surpreso, porém não decepcionado.

— A ametista é uma pedra espiritual com nenhum efeito colateral ou associações com violência ou a raiva. É a pedra da serenidade. Ela suscita esperanças, acalma os temores e também tempestades emocionais. Mesmo em situações de perigo em potencial, ela pode vir em seu auxílio. É uma escolha sábia para um talismã.

— Estou muito contente em saber isso! — Ela sorriu. — Não é à toa que eu sempre a adorei.

A beleza de Perséfone atordoou Hades. Quando ela sorria, brilhava mais do que os diamantes sobre suas cabeças.

Sentiu o estômago se contrair. Tinha se esquecido do fascínio e do poder devastador da beleza de uma deusa. Sua reação e desejo por ela chegavam a ser primitivos. Sentiu que a paixão que trazia encerrada no peito brotava outra vez, e vontades que julgava extintas havia milhares de anos começaram a vir à tona. Estava impotente na esteira daquelas estranhas emoções.

— A ametista combina com seus olhos.

A voz de Hades soou rouca e sexy .

E o corpo emprestado de Lina respondeu a esta tão rapidamente quanto sua alma.

Ela olhou no fundo dos olhos do estonteante deus.

— Obrigada — murmurou. Desta vez, sua experiência assumiu o comando, e ela não gaguejou nem enrubesceu.

Hades se viu dominado por uma onda de calor que percorreu suas veias. Perséfone não fazia ideia da tentação que representava para ele. Ela era uma deusa. Es tava acostumada a atrair a atenção dos homens, mortais e imortais, da mesma forma...

Mas não estava habituada com o senhor do Submundo. Não podia saber como era doloroso para ele vê-la à sua frente, tão jovem, bonita e desejável. Com o retorno da paixão, Hades percebeu que o antigo vazio voltou a brotar, conforme a diferença entre ele e os outros imortais se fazia presente mais uma vez.

Desviou o olhar da armadilha que eram os olhos aveludados de Perséfone.

— Gostaria de vinho? — indagou num suspiro.

— Sim, por favor — Lina aceitou.

Piscou, confusa, ao vê-lo se virar à mesa e gritar pela bebida como se estivesse em um mercado de peixe.

O que tinha acontecido? Hades elogiara seus olhos, e ela apenas o agradecera.

Uma verdadeira descarga elétrica se passara entre eles. Nem mesmo uma mulher mais jovem teria problemas em reconhecer aquela faísca, e ela não era mais nenhuma menina. Havia pensado até mesmo que Hades começara a se inclinar em sua direção e, de repente, a dor sombreara seu rosto, e a atração se estilhaçara.

Respirou fundo. Sentia-se como se alguém tivesse lhe jogado um balde de água fria.

Dois criados correram para a sala, cada um com uma jarra de vinho, e, sem dizer nada, Hades apontou para Perséfone.

— Deseja vinho branco ou tinto, senhora? — Um dos moços quis saber.

— Tinto, por favor — ela respondeu de pronto, sem se importar se o deus mandaria lhe servir peixe, carne, aves ou massa para o jantar. Só esperava que o vinho fosse forte, rico e encorpado, e tomou um longo gole.

Por sorte, a bebida era tudo isso e mais um pouco.

— Deixe esse vinho e traga mais — Hades ordenou ao servo depois que este lhe encheu a taça.

Os dois beberam sem nada dizer.

Hades estudou o prato vazio, desejando ser diferente; desejando que a presença de Perséfone não o lembrasse do motivo pelo qual ele deveria permanecer afastado do restante dos imortais.

— O vinho é excelente. — A voz de Lina invadiu o silêncio.

Ele deixou escapar um grunhido de concordância.

— Prefiro vinho tinto... — ela informou. Agora que começara a falar, não pararia mais. Ergueu a taça de cristal e permitiu que a luz dos diamantes incidisse através dele. — O vinho me faz lembrar os rubis.

Hades permitiu que seu olhar encontrasse o dela novamente.

— Rubis — repetiu a última palavra, aproveitando o tema inofensivo. — Sabia que uma joia feita com rubis pode ser usada para banir a tristeza e os pensamentos negativos?

— Não — confessou Lina, estudando o vinho cor de sangue. — O que mais pode fazer?

— Joias com rubis também podem produzir alegria, força de vontade e reforçar a confiança, bem como dissipar o medo.

Hades notou a ironia das próprias palavras. Talvez, enquanto Perséfone visitasse seu reino, ele também devesse usar rubis.

— Eu não imaginava que as joias podiam ser tão fascinantes — Lina murmurou, olhando mais uma vez para os lustres de diamantes e os candelabros de crisocola. Em seguida, voltou a fitar o vinho escuro. — Na verdade, não tenho pensado muito em joias. Principalmente nos últimos tempos.

Hades ergueu uma sobrancelha escura.

— Uma deusa que não tem pensado muito em joias... É uma deusa única de fato.

Ela sentiu uma pontada na boca do estômago. Havia falado demais? Tinha ficado tão envolvida no que Hades dizia que se esquecera de não ser ela mesma.

Um grupo de criados semitransparente, trazendo bandejas carregadas de comida e seguido por Iapis e Eurídice, entrou na sala.

Lina deu um suspiro de alívio, agradecida pela distração.

— Oh, Perséfone, espere até ver o que foi preparado para você! — Eurídice falou, incapaz de conter o próprio entusiasmo. — Eu nunca vi tantas delícias!

Lina olhou as travessas. Não poderia estar mais de acordo com a menina.

— O cheiro já é fantástico — comentou e observou com expectativa enquanto travessas repletas de cor, aromas e texturas eram dispostas diante dela. Havia grupos de iguarias brancas que, percebeu, consistiam de vários tipos diferentes de pétalas, as quais tinham sido açucaradas, cristalizadas e congeladas em uma flor perfeita. Azeitonas, da verde até a preta, apinhavam-se ao lado de grossos pedaços de queijo, tão apetitosos como as baguetes de pão quente que repousavam a seu lado.

Mas foram as frutas sozinhas numa bandeja que capturaram definitivamente o olhar de Lina. Sua casca rosa-escura fora aberta, e seus grânulos vermelhos se derramavam, implorando para ser consumidos.

— Romã! — ela balbuciou, os lábios entorpecidos.

— Não gosta de romã, Perséfone? — Hades franziu o cenho. — Posso mandar retirá-la.

Lina ergueu a cabeça, vendo toda a equipe de criados olhando para ela, os rostos pálidos cheios de preocupação.

Não seja paranoica , disse a si mesma, é apenas uma coincidência boba .

— Eu adoro romã! Está tudo perfeito! — Num impulso, apanhou várias gotas da fruta vermelha e as colocou na boca. O sabor que se espalhou por sua língua a fez suspirar de prazer. — Está maravilhosa! — murmurou em meio ao sumo doce.

Os criados soltaram um suspiro coletivo de felicidade.

— Tudo parece estar ao meu gosto, também — Hades falou com uma ponta de ironia. Perséfone parecia ter lançado sobre seus servos o mesmo feitiço que usara nos cavalos. — Podem deixar os pratos. Se precisarmos de algo, eu os chamarei.

Os criados correram de volta para a cozinha.

— Vocês dois não vão se juntar a nós? — Lina perguntou, olhando para Iapis e Eurídice.

Afinal, os mortos comiam? Não fazia ideia, porém lhe pareceu rude não perguntar.

— Não, senhora — Iapis respondeu.

— Iapis e eu temos muito que conversar — acrescentou Eurídice, ansiosa. — Estamos preparando o material de desenho.

Lina sorriu para a garota, feliz ao ver que ela parecia à vontade.

— Vão em frente. Eu os vejo amanhã — disse em meio a mais um bocadinho de sementes de romã.

— Não se esqueça de chamar por mim quando estiver com sono, assim posso ajudá-la a se preparar para dormir. — Uma ponta de ansiedade ressurgiu na voz de Eurídice.

— Ah, claro... — Lina aquiesceu depressa, não querendo desapontar a menina.

Satisfeita com a confiança de sua senhora, a moça sorriu, feliz, enquanto fazia uma reverência para Perséfone e Hades, e seguia Iapis para fora da sala.

— Ela vai ficar mais segura com o tempo — ele a tranquilizou.

— Espero que sim... ou vai me desgastar um bocado. — Lina suspirou.

— Os mortos exigem bastante cuidado.

Ela concordou com um gesto de cabeça.

— Eu não fazia ideia disso até agora. Assim como não fazia sobre as joias.

Hades sorriu, charmoso e descontraído de novo.

— Por isso mesmo também tem a comida do Submundo bem diante de você. Sirva-se, Perséfone, para que o espírito de Eurídice não tema que sua senhora definhe aqui embaixo, sob o mundo dos mortais.

— Ha! — Lina começou a encher o prato. — Como se isso pudesse acontecer... Não rodeada por tudo isso! — Fez um gesto amplo com a longa colher de prata.

— Agrada-me que aprecie a beleza do Submundo — confessou Hades, servindo-se das azeitonas.

— Quem não apreciaria? — ela falou entre mordidas, e se arrependeu imediatamente quando viu a expressão dele começar a mudar outra vez. Foi como se Hades tivesse colocado uma máscara sobre o rosto, de modo a esconder suas emoções.

Continuou olhando para ele vez ou outra, na esperança de que ele descartasse a máscara e se tornasse acessível uma vez mais.

Nos minutos que se seguiram, comeram em silêncio, até que Lina percebeu que a tensão nos ombros largos parecia ter melhorado, e suas feições, abrandado.

Tomou um gole de vinho, pensativa. Sim, Hades parecia infinitamente mais à vontade com a barriga cheia.

Seus lábios se curvaram num breve sorriso. Ele podia ser um deus, mas ainda era do sexo masculino.

— Você se importaria se eu lhe fizesse algumas perguntas sobre os mortos? — perguntou com cuidado.

Os olhos escuros se deslocaram do prato para ela, e de volta para o prato.

Então Hades mastigou e engoliu.

— Não — respondeu por fim.

Lina apressou-se em falar:

— Não sei coisas básicas sobre o assunto, e não quero dizer nada que possa envergonhar Eurídice, ou aborrecê-la de novo, como quando mencionei que ela deveria beber daquele rio, o...

— Lete — ajudou Hades.

— Isso mesmo, Lete. Viu? Era exatamente isso o que eu queria dizer. Não sei o suficiente sobre o Submundo.

— Faça quantas perguntas desejar.

— Ótimo... Em primeiro lugar, a deliciosa comida que estamos comendo. Ela me fez pensar: os mortos também se alimentam?

— Não. Eles não sentem sede e fome como os vivos, porém suas almas conservam a essência de sua vida mortal, de modo que eles levam para a eternidade suas necessidades e desejos. Você já percebeu isso acontecendo com a sua Eurídice. Ela ainda carrega seus medos e inseguranças do Mundo dos Vivos, embora as coisas que a perturbaram não possam atingi-la aqui — respondeu Hades, tentando esconder sua surpresa com a pergunta. Perséfone, com certeza, não era o que ele esperava.

Ao contrário dos outros imortais que tinha conhecido, parecia genuinamente interessada em seu reino e nos espíritos dos mortos.

— Faz sentido. — Ela franziu a testa enquanto mordiscava uma pétala branca e açucarada. — É evidente que as lembranças de sua antiga vida estão perturbando Eurídice. Pobre criança... Eu gostaria de poder fazer algo.

— Já está fazendo, Perséfone. O espírito de Eurídice precisa de segurança; precisa saber que pertence a algum lugar. Ela teria, eventualmente, encontrado essas coisas em Elísia, mas você as trouxe até ela, dando-lhe um luga r a seu lado. Eurídice agora se sente confortável, útil, e muito menos obcecada pelas chances que perdeu ou pelo que poderia ter sido.

Hades sorriu incentivando à jovem deusa. Perséfone já havia feito muito pelo espírito da pequena. Muitos imortais achariam que a aflição de Eurídice não lhes dizia respeito. Ela não estava mais entre os vivos e, portanto, não poderia adorá-los. Assim, seu espírito não mais os interessava.

Mas as atitudes de Perséfone até o momento lhe diziam que ela não aderia àquela postura arrogante.

Hades notou que ela ponderava as palavras dele enquanto tomava um gole de vinho. Aquela deusa era um mistério. Tinha a beleza de uma imortal, mas parecia tão diferente...

— Isso me fez sentir melhor. — Lina suspirou, dizendo a si mesma que se referia a Eurídice, e não ao calor do sorriso de Hades. Estava ficando fascinada pelo Mundo dos Mortos, e não apenas por seu deus. — Eles dormem, também?

Os olhos de Hades se enrugaram nos cantos, numa reação divertida às perguntas inusitadas. Ele nunca havia tido uma conversa como aquela antes.

De repente, viu-se surpreso ao perceber o quanto estava gostando de trocar ideias com a jovem deusa a respeito de seu reino.

— Eles não dormem como nós, ou como fazem os mortais, mas também precisam de repouso.

— Os seus servos são como Eurídice? Quero dizer, eles optaram por ficar aqui com você em vez de ir para Elísia?

— Alguns. Mas não por devoção a mim, como acontece com a sua Eurídice. E sim porque eles encontram conforto ao se apegar a vestígios de sua vida mortal. Outros estão nessa função como penitência por suas ações.

Hades serviu-se do fruto do Submundo, enquanto ­aguardava a pergunta seguinte. Quase podia ver o cérebro de Perséfone borbulhando. Ela parara de comer e agora rodava no dedo um fio dos cabelos longos. Um gesto que ele considerou estranhamente cativante.

— Iapis deve ser um dos mortos que permanece aqui porque ama você.

Desta vez, Hades não pôde deixar de rir em voz alta.

— Iapis não é um dos mortos, Perséfone. Ele é um daimon . Mas, sim, ele optou por se manter sempre a meu lado.

Lina não soube dizer o que mais a surpreendeu: saber que Iapis era um diabo ou perceber o efeito do riso de Hades sobre ela.

Reagiu, em primeiro lugar, ao menos importante deles:

— Iapis é um demônio?! — indagou com voz esganiçada.

Na segunda explosão de risos de Hades, a porta dos criados se abriu e vários rostos assustados espiaram a sala de jantar. Em seguida, recuaram rapidamente, mas não antes de Lina registrar suas expressões chocadas.

— Eu disse que ele é um daimon , não um demônio. — Hades balançou a cabeça.

— Ah, sim... claro — Lina gaguejou enquanto sua mente gritava:

Que diabo é um daimon?!

Por sorte, sua voz interior forneceu uma resposta:

Um daimon é uma divindade menor do que os deuses do Olimpo. Eles são guardiões, semideuses e imortais.

— Jovem Perséfone, como deve estar chocada por não ter reconhecido Iapis como um daimon! — Hades concluiu, ainda rindo.

O maldito estava rindo dela e fitando-a com a mesma expressão condescendente e paternal que usara com Eurídice. E ainda a chamara de “jovem Perséfone”! Como se ela fosse uma garotinha ingênua! Ele não fazia ideia de que estava lidando com uma mulher adulta. E uma adulta que, definitivamente, não gostava de ser alvo de piadas do sexo masculino.

Sua irritação fez Lina se esquecer de que Hades era o deus do Submundo e que ela era visita em seu reino. Naquele momento, ele era apenas mais um homem que a tinha aborrecido.

Sem parar para pensar nas consequências, estreitou os olhos e modulou a voz suave de Perséfone segundo a sua própria.

— Acho que, de certa forma, estou mesmo chocada. Até porque me ensinaram que um hóspede não deveria ser motivo de chacota.

Hades ficou sério no mesmo instante, reconhecendo em seus olhos a ira de uma deusa.

Era um idiota. Havia se permitido relaxar a seu lado e tinha tropeçado na armadilha de suas próprias fantasias. Perséfone pertencia ao Olimpo, ele nunca deveria se esquecer disso.

Baixou a cabeça, aceitando a reprimenda.

— Eu lhe peço perdão, senhora... Mas creio que não há ­desculpa para a minha atitude rude.

Sem dizer mais nada, levantou-se, fez uma mesura e marchou para fora da sala.

Lina o fitou por um momento, depois se pôs a praguejar num italiano mais do que fluente.


Capítulo 11

— Iapis! — A voz de Hades ecoou pela vasta câmara.

— Senhor? — O daimon se materializou dois segundos após seu nome ser pronunciado.

— Vá ficar com Perséfone. Quando ela terminar a refeição, mostre-lhe o caminho de volta para seus aposentos. E certifique-se de que tenha tudo o que deseja. — Hades continuou andando no mesmo ritmo, enquanto falava. — Eu a insultei.

Iapis permaneceu em silêncio, contudo, levantou uma sobrancelha.

— E depois a deixei lá — completou o deus. — Perséfone ainda não tinha acabado de comer. — Hades passou a mão pelo cabelo, fazendo com que algumas mechas mais curtas se soltassem, e olhou para o leal amigo. — Sabe que eu nunca fui capaz de fazer isso.

— Isso o quê? — Iapis perguntou.

— Isso! Isso! Aderir a esse ritual insano de fingimentos e provocações de que elas necessitam para manter o interesse.

— Talvez queira dizer esse ritual de conversar com uma deusa?

— É exatamente o que quero dizer! — Hades explodiu.

Perplexo diante do comportamento do deus, Iapis manteve a voz calma e curiosa.

— E Perséfone exigiu muito desse “fingimento e provocação” antes que você a insultasse?

Hades parou e esfregou a testa, considerando a pergunta.

— Não — respondeu com sinceridade.

— Estava conversando com ela?

— Sim! — ele admitiu.

Então a realidade se descortinou diante dele. Estava se divertindo. Perséfone havia demonstrado interesse por seu reino, e fora tão fácil falar com ela! Ela era tão diferente de Afrodite, Atena ou...

Seus lábios se curvaram em um sorriso de escárnio, quando pensou nas outras jovens deusas que tinha conhecido. Eram beldades mimadas e manipuladoras que raramente se importavam com algo, além de suas próprias necessidades e desejos.

Ao escutar a voz de Perséfone endurecer diante daquilo que ela tomara como um insulto, ele logo se lembrara das outras lindas imortais, e sua reação fora instantânea. Simplesmente a abstivera de sua presença.

— Teve a intenção de insultá-la? — Iapis quis saber.

— Claro que não! — Hades começou a andar outra vez. — Apenas achei divertido o que ela disse. — Lançou a Iapis um olhar sombrio. — Perséfone confundiu você com um dos mortos.

Os lábios de Iapis tremeram quando ele tentou não sorrir.

— Eu ri da observação e então falei com ela como se fosse uma criança. — Hades deu de ombros. — Foi isso o que a insultou. Ela reagiu como qualquer deusa teria reagido.

— Se aconteceu assim, a sala de jantar foi destruída e Perséfone foi embora do Submundo? — observou Iapis, atento.

— Não, ela... Não. Perséfone continua aqui e não destruiu nada. — Hades parou de andar e buscou o olhar do daimon, intrigado.

— Então ela não reagiu como qualquer outra deusa — concluiu Iapis. — Qual foi exatamente sua reação?

— Disse que um hóspede não deveria ser motivo de chacota.

— E o que respondeu?

— Eu me desculpei e saí.

— Posso sugerir que, da próxima vez, o senhor peça desculpas e fique, senhor?

— Da próxima vez? — Hades sentiu o peito arder de um modo familiar. Sabia que a sensação logo se espalharia para o fundo de sua garganta, e ele passaria outra noite sem dormir, cheio de raiva e ressentimento.

Era o que Hermes afirmou estar errado com ele.

— Da próxima vez — Iapis confirmou.

— Ela é diferente. — A voz de Hades se aprofundou, falando com uma intensidade controlada.

— Verdade.

— Ela não evita os espíritos. Ela... — Hades se interrompeu, lembrando-se do rubor da deusa, da curiosidade em sua voz e do calor em seus olhos. Apertou a mandíbula. — Eu deveria ficar longe de Perséfone pelo resto de sua visita.

— Meu amigo... — Iapis descansou a mão em seu ombro. — ...Por que não se permite desfrutar a presença dela?

— Para quê? — Hades afastou a mão do daimon. — Para que eu possa aproveitar a vida e, quando ela for embora ou perder o interesse, o que é provável, eu fique de mãos vazias? Não é o bastante, Iapis. Nunca foi.

Lá estava, mais uma vez, o que o distinguia do restante dos imortais, Hades pensou enquanto retomava suas passadas firmes. Ao contrário de outros deuses e deusas, ele ansiava por algo que havia testemunhado diversas vezes, em meio às almas dos mortais, mas que nunca vislumbrara, nem uma única vez, entre os imortais.

— Meu senhor — recomeçou Iapis suavemente —, não é melhor experimentar um pouco de felicidade do que nenhuma?

— Não sou como eles. Não considero o amor um brinquedo.

Iapis fitou os olhos sombrios do deus, viu ali a solidão que Hades nutria por incontáveis eras... e sentiu o espírito se condoer pelo amigo.

O daimon pensou em Perséfone. Havia algo único na jovem deusa; algo além de sua elogiável beleza e capacidade de espalhar a luz pela escuridão. Hades não deveria evitá-la. Se o fizesse, receou Iapis, o deus do Submundo extinguiria qualquer possibilidade de eliminar a solidão de sua existência.

Mas como poderia persuadir Hades a desistir daquela reação instintiva de evitá-la, até que sua visita fosse concluída? Seu senhor não estava habituado a receber visitantes. Sua existência era planejada, ordenada, definida, e não condizia com a dos outros imortais.

E a deusa da Primavera era, definitivamente, uma perturbação para Hades. Era bela, entusiasmada e intrigante.

Ah, se Hades se sentisse tão à vontade com Perséfone como se sentia com os inúmeros mortos em seu reino!

Os olhos do daimon se arregalaram com uma ideia foi criando raízes e cresceu.

— Acho que tenho a solução, senhor.

Hades fez um gesto impaciente para que ele continuasse.

— Imagine que Perséfone é um dos incontáveis mortos do reino.

— Iapis, isso é ridículo!

— Por quê? — Ele abriu os braços, frustrado. — Está em guerra consigo, Hades! Diz que deve se afastar dela, mas, quando fala de Perséfone, vejo em seus olhos uma fagulha que esteve ausente durante uma eternidade! E se as Parcas, que têm o poder de controlar e decidir tudo, resolveram ser gentis e colocaram em seu caminho uma imortal? Como poderá saber, se permanecer fechado para a vida? Dê uma chance a Perséfone.

Antes que Hades replicasse, Iapis inclinou a cabeça, como se tivesse ouvido algo.

— Ela chamou meu nome.

— Então vá! — ordenou o deus.

Mas, no momento em que Iapis desapareceu, Hades gritou seu nome outra vez.

— Senhor? — perguntou, materializando-se outra vez.

— Convide a deusa da Primavera para se juntar a mim amanhã, no Salão Nobre. Diga-lhe, que se ela ainda tiver interesse em conhecer o Submundo, escutar as petições dos mortos é uma excelente fonte de informações. — Hades proferiu as palavras rapidamente, como se quisesse exprimi-las antes de mudar de ideia.

Iapis sorriu, enigmático.

— Sim, senhor.

— Amanhã, então, deusa Perséfone...

Iapis fazia uma reverência e se preparava para deixar o quarto de Lina, quando Eurídice entrou correndo pela porta aberta e trombou com seu traseiro.

— Uff! — Ele cambaleou para a frente, tropeçou em seus próprios pés e caiu de cara no chão.

Lina e Eurídice olharam uma para a outra, boquiabertas; em seguida Lina riu.

Não pôde evitar. Iapis sempre parecia tão digno, e agora lá estava ele, esparramado no chão.

Primeiro, soltou um riso sufocado que escapou de seus lábios.

Depois, outro escapou dos de Eurídice: baixinho, fluido... e delicioso. Aquilo era, definitivamente, uma risadinha.

E esta lançou por terra os últimos vestígios de controle de Lina.

Iapis se pôs de pé, lutando para recuperar o orgulho ferido, porém o som musical do riso das mulheres acabou por eliminar qualquer tipo de irritação, e ele se juntou a elas.

Como desejava que Hades estivesse ali! Seu senhor precisava tanto de um pouco de alegria na vida.

Ainda rindo, ele olhou para o mármore liso sob seus pés.

— Parece que tropecei em alguma coisa.

— E o nome da coisa é Eurídice — Lina falou com uma gargalhada.

A menina tentou, sem sucesso, reprimir as risadas com a mão.

— Então vou ter que prestar bastante atenção nessa coisa. — Os olhos de Iapis se iluminaram, cheios de bom humor e, Lina concluiu enquanto assistia ao rosto pálido de Eurídice corar, algo mais .

Olhou o daimon, pensativa, após este se curvar e sair, desta vez, com sucesso da sala.

— Oh, Perséfone, eu tive um dia! — Eurídice correu para um dos guarda-roupas, cantarolando uma música animada, e puxou as gavetas até encontrar as camisolas de sua deusa. — Iapis me arrumou carvões e um pergaminho maravilhoso, e já comecei a traçar um esboço do palácio.

— Que bom, Eurídice — respondeu Lina.

Ainda ponderando sobre o calor que tinha visto nos olhos do daimon, ela assentiu sem prestar muita atenção ao que a menina dizia, e permitiu que esta a ajudasse a se livrar do manto. Estendeu os braços, e Eurídice colocou-lhe a camisola longa por sobre a cabeça.

Passou as mãos por toda a extensão do tecido. Era um cetim branco, primorosamente bordado com botões de narcisos. Tão macio que parecia água em sua pele.

— Sente-se aqui na penteadeira enquanto escovo os seus cabelos. Parece cansada... — comentou a moça, estudando sua senhora e notando as manchas escuras sob os olhos cor de violeta.

Lina se acomodou na cadeira acolchoada, dando um suspiro de prazer quando Eurídice começou a lhe escovar os longos fios com firmeza. Não tinha percebido o quanto ficara cansada.

Enquanto trabalhava, a menina falou alegremente sobre o processo de mapeamento do palácio, a voz jovem quase tão suave como o toque de suas mãos.

Lina sentiu os ombros mais relaxados, e sua mente começou a divagar.

Depois que Hades abandonara a sala de jantar, ela havia terminado de comer e esvaziara o restante da garrafa de vinho.

Não. A verdade era que primeiro tinha amaldiçoado os homens em geral, depois decidido que nunca mais outro sujeito malcriado arruinaria um jantar maravilhoso como aquele.

Quando concluíra a refeição por fim, dando cabo da excelente bebida, dissera o nome de Iapis em voz alta e, em um piscar de olhos, ele havia aparecido, pronto para acompanhá-la de volta ao quarto. Durante sua caminhada, Iapis fizera vagas referências à falta de visitantes no Submundo e comentara como ele tinha pouca experiência em entreter os convidados. Pedira, inclusive, que ela não o julgasse, ou àquele reino, tão duramente ou com precipitação.

Lina entendeu a mensagem em alto e bom som. “Ele” era Hades, e não Iapis. O daimon decerto pedira desculpas pelo comportamento de seu deus.

Após ter dado conta sozinha do vinho e de ter seu temperamento um tanto alterado, sua vontade fora pedir a Iapis que transmitisse uma mensagem especial (e em italiano) para Hades.

Porém, felizmente, um resquício de bom-senso a fez manter a boca fechada. Hades era um deus, e ela se encontrava hospedada em seu reino. Não fora inteligente de sua parte antagonizar com ele. Agora que estava longe de sua presença e tinha tempo para pensar sobre a noite, lamentava sua birra. Hades não era um divorciado de meia-idade que lhe convidara para jantar com as palmas das mãos suadas, apenas para se lamentar sobre a ex-mulher e, em seguida, devorá-la na sobremesa... Era um imortal poderoso, um ser sobre o qual ela sabia muito pouco.

E, exatamente, por que ela havia ficado tão aborrecida com ele? Ele tinha sido malcriado e imprevisível no jantar, sem dúvida, mas também fora interessante e sexy .

A explicação de Iapis sobre a falta de modos de seu deus fazia sentido. Hades não estava acostumado a receber visitas. Era evidente que suas habilidades sociais andavam um pouco enferrujadas.

E, de qualquer modo, como um imortal, o quanto educado ele precisava ser?

Pensou na forma imperiosa de Deméter e na grosseria de Irene. Na realidade, o temperamento de Hades combinava bem com o daquelas duas.

Eurídice terminou de lhe escovar os cabelos. Contudo, obviamente percebeu sua tensão porque começou a lhe massagear os ombros com as mãos frias e macias.

Lina suspirou e fechou os olhos, deixando que o toque da moça lhe acalmasse os nervos e clareasse as ideias. Não tivera nenhuma razão plausível para atacar Hades. Não fora nem mesmo o alvo de sua piada. Ele apenas a tratara como a jovem e ingênua deusa que ela fingia ser, e sua ridícula explosão pouco fizera para lhe provar o contrário. Se queria que ele a tratasse como uma mulher adulta, deveria tentar agir como uma.

Merda! Encontrava-se ali havia menos de um dia e já estava fazendo tudo errado. Tinha perdido a cabeça? Afinal, estava no Submundo para cumprir uma missão.

Ao menos tivera bom-senso suficiente para dizer “sim” quando Iapis lhe transmitira o convite de Hades para que ela ouvisse as petições dos mortos com ele na manhã seguinte. Agora precisava colocar a cabeça no lugar e pensar naquilo como uma parte do trabalho que Deméter lhe atribuíra. Precisava ficar visível para os mortos, de maneira que sua presença lhes trouxesse conforto.

Seu “sim” nada tinha a ver com o fato de desejar passar mais tempo com Hades porque o deus sombrio a intrigava. Isso era ridículo, uma bobagem. Uma verdadeira estupidez.

Ainda que fosse verdade.

Não podia negar. Enquanto Eurídice acalmava seus nervos em frangalhos, podia até mesmo admitir para si mesma: Hades a fascinava, assim como tudo o mais no Submundo. Sentia-se atraída por ele, provavelmente porque fora deslocada para aquele mundo incrível, e tudo ali era novo e único. Como poderia não se sentir fascinada pela magia que a cercava?

Porque tal magia incluía o deus responsável por ela. Era uma reação perfeitamente normal sentir-se compelida a descobrir mais sobre ele.

Ao menos foi o que ela disse a si mesma.

— Perséfone, está quase dormindo — observou Eurídice, e puxou-a pelo braço até a cama com dossel. — Deite-se. Vou cantar para você, como minha mãe costumava fazer para mim.

Cansada demais para protestar, Lina permitiu que o espírito da moça a acomodasse na cama enorme.

Eurídice aninhou-se junto a ela. Ainda acariciando seus cabelos, começou a entoar uma canção de ninar suave, sobre uma criança que viajava no vento, para uma terra de sonho repleta de cores.

— Eurídice — ela sussurrou, sonolenta.

— Sim, senhora?

— Obrigada por cuidar de mim.

— Por nada, Perséfone — a moça respondeu sorrindo.

E o sono envolveu Lina, fazendo-a sonhar que viajava no vento enquanto perseguia a sombra de Batman.


Capítulo 12

O Salão Nobre fazia jus a seu nome. Lina já havia considerado a sala de jantar e seu quarto extravagantes, mas nada se comparava à sala do trono. Era enorme, mesmo considerando o tamanho do palácio. Três cores dominavam o lugar: preto, branco e roxo. O chão, as paredes e o teto da catedral eram todos feitos do mesmo mármore negro e imaculado do exterior da construção. Assim como a plataforma em que uma espécie de trono parecia ter sido esculpida na pedra, cujo branco etéreo ela não conhecia. No altar, ao lado do trono, havia uma mesa alta e estreita, feita da mesma pedra leitosa e, sobre a mesa, repousava um elmo de prata que lhe pa­-
receu estranhamente familiar.

Lina o estudou e percebeu que já o tinha visto antes. Era o elmo que fora estampado na bandeira pairando sobre o palácio, que adornava o uniforme dos cavalariços e que brilhava à luz das velas com uma beleza sobrenatural.

Obrigou-se a tirar os olhos do elmo para analisar a outra cor predominante no salão, o roxo, a qual vinha das dezenas de lustres e arandelas de parede, todos feitos de uma pedra cintilante que ela logo reconheceu: a ametista.

Lina hesitou no limiar da sala, intimidada por sua austera grandeza. De repente, sentiu-se pequena, insignificante e muito, muito mortal.

— Aconteceu alguma coisa, Perséfone? — Eurídice perguntou.

Ela respirou fundo. Era uma deusa, lembrou a si mesma. Mesmo que temporária.

— Não, querida, nada está errado. Estou apenas admirando o salão. — Sorriu para a pequena alma da moça.

— Ah, aí vem Hades — falou Iapis.

O deus do Submundo entrou no Salão Nobre por uma porta no lado oposto. Suas sandálias douradas tocavam o chão de mármore com determinação, e, ao observá-lo, Lina sentiu o batimento cardíaco se igualar a seus passos. Hades vestia seu manto, e este voejava às suas costas, acentuando as linhas fortes de seu corpo. Sua túnica parecia negra a princípio, mas, conforme a luz dos candeeiros a tocou, o tecido cintilou como a asa de um corvo, com reflexos de roxo e azul-royal. Seu cabelo estava solto e caía em uma espessa cortina negra ao redor dos ombros largos.

Lina sentiu o estômago se contrair. Hades tinha a mandíbula cerrada e o rosto sombrio. Transpirava tanta masculinidade que ela precisou se esforçar para não torcer o próprio cabelo, nervosa.

Ele galgou os degraus da plataforma em uma passada, virou-se e estava prestes a se sentar quando percebeu as três figuras de pé sob a entrada, do outro lado do salão. Seu olhar encontrou o de Lina e o sustentou.

— Perséfone — saudou, inclinando ligeiramente a cabeça sem desviar os olhos dos dela. — É uma honra receber a Primavera no Salão Nobre.

Lina engoliu, desejando que sua boca não estivesse tão seca.

— Obrigada, Hades — agradeceu, satisfeita por sua voz soar forte e clara. — Sou eu quem fica honrada com seu convite.

— Junte-se a mim, por favor — ele incitou. Então, quebrando o feitiço que unira seus olhos aos dele, Hades voltou a atenção para o daimon. — Iapis, providencie uma cadeira para a deusa.

— Agora mesmo, senhor. — Iapis chamou por cima do ombro, e seguiu-se uma comoção. Dentro de instantes, servos espectrais carregavam uma delicada cadeira esculpida em prata para juntá-la ao trono de Hades.

Lina adentrou o salão. Podia sentir os olhos do deus sobre ela e ergueu o queixo, altiva. Eurídice a havia ajudado com o novo vestido, e ela se viu satisfeita por a seda violeta que tinha escolhido com­­-
binar com a cor dos lustres de ametista que ardiam sobre suas ­cabeças, bem como com seus olhos, ainda que isso tivesse sido incidental. Naquela manhã, enquanto se vestia, fora atingida outra vez pela beleza imortal de Perséfone. E sabia que, independentemente do turbilhão que acontecia em sua cabeça, ela atravessava a sala com toda a beleza e graça de uma deusa.

Hades hesitou ao vê-la chegar ao altar. Então, com um olhar de soslaio para Iapis, foi a seu encontro. Quando ela subiu o primeiro degrau, ofereceu-lhe a mão, como fizera para ajudá-la a subir na biga, no dia anterior.

Bastou Lina colocar a mão na sua, e o deus sombrio a levou devagar até os lábios.

— Espero que tenha dormido bem, senhora.

— Sim, obrigada — ela respondeu, tentando ignorar o modo como sua pele formigou ao toque dele.

— Agrada-me ouvir isso — Hades falou.

Lina sorriu e concordou. Hades parecia diferente naquele dia: mais poderoso e seguro de si.

E havia algo mais em seu olhar. Um magnetismo que ele parecia centrar inteiramente nela.

Ficar tão perto do deus do Submundo a fez sentir a força de sua presença, e Lina viu-se um pouco intimidada... para não dizer feminina.

Verdade que fazia muito tempo desde que tinha se visto às voltas com um homem tão alto e viril.

Lançou um olhar furtivo em sua direção enquanto ele a ajudava a subir os degraus e a conduzia até a cadeira.

Tudo bem. Possivelmente, ela nunca estivera ao lado de um homem como ele. Observou o modo como a capa de Hades girava em torno de seu corpo quando ele se virou para sentar-se a seu lado. Ele cumpria bem o seu papel de deus do Submundo.

— Eurídice, não precisa ficar para trás. Pode ficar aqui, ao lado de sua senhora — Hades chamou a menina, que permanecera de pé sob a entrada.

Envergonhada por ter se esquecido da menina, Lina sussurrou um rápido agradecimento para Hades conforme Eurídice percorreria o salão e subia os degraus do altar para tomar lugar ao lado da cadeira de Lina.

— Podemos começar, como de costume, Iapis — ordenou Hades.

O daimon se curvou para o deus antes de desaparecer da sala.

— Iapis está indo para a frente do palácio. Uma vez lá, ele vai anunciar que estou pronto para as petições. Elas não vão demorar a chegar, você vai ver.

— Faz isso todos os dias? — Lina perguntou.

— Não.

— Quantas vezes ouve os mortos?

— Sempre que sinto ser necessário.

— Ah. — Ela assentiu, pouco à vontade com as respostas curtas.

Perséfone enrolou uma mecha de cabelo, e o pequeno gesto de desconforto fez Hades perceber que, mais uma vez, ele estava ­agindo como se fosse feito de pedra .

Dê uma chance à deusa. As palavras do amigo tocaram sua memória.

Ele engoliu em seco e se inclinou na sua direção.

— Posso sentir as necessidades dos mortos. Não que eu consiga ouvir seus sentimentos e desejos; é mais como se eu tomasse consciência de sua crescente inquietação. Sinto quando eles precisam de mim, e então abro o Salão Nobre para escutar seus apelos.

— Deve ser um dom incrível ser capaz de responder às necessidades das almas mortais.

Hades virou-se para poder fitar os olhos cor de violeta da deusa a seu lado. Seus rostos estavam muito próximos, e ele podia sentir o perfume doce e feminino que emanava dela.

— O fato de eu ser tão ligado aos mortos não lhe causa repulsa?

— Claro que não — ela afirmou sem preâmbulos.

Hades pareceu tão vulnerável de repente que Lina teve o impulso quase irresistível de passar os dedos por seu rosto e tentar suavizar as linhas de preocupação que lhe vincavam a testa. Ao contrário, estendeu a mão e pegou a de Eurídice. Apertou-a e sorriu para a pequena alma, que lhe sorriu de volta. — Alguns de meus melhores amigos estão mortos.

Os olhos de Hades se desviaram da moça para pousar em Perséfone, e a esperança floresceu dentro dele com tanta intensidade que, mais uma vez, ele se viu obrigado a pedir vinho com estardalhaço para disfarçar a resposta exagerada de seu coração.

No mesmo instante, os servos armaram uma pequena mesa a seu lado, e Hades pôde se recompor enquanto estes serviam o líquido dourado em duas taças de ouro.

Lina agradeceu com um gesto de cabeça e tomou um gole.

Seu rosto se iluminou num lindo sorriso.

— É ambrosia! Isto é tão delicioso! Obrigada por ter pensado nisto.

Hades a fitou, fascinado. Por que Perséfone era tão diferente? Ela não sentia aversão pelos mortos e obviamente gostava muito
de Eurídice. Até havia chamado a moça de “amiga”! E coisas com que a maioria dos imortais não se importava, como ambrosia e a opulência dos deuses, Perséfone adorava, como se tudo fosse novo e interessante.

Ela era um enigma. Um enigma que ele estava começando a ansiar por resolver.

— Se lhe agrada tanto, terei de me lembrar de servi-la com frequência — Hades disse e ergueu a taça para ela.

Com um frio na boca do estômago, Lina bateu sua taça contra a dele. O Hades formal que deixara abruptamente o jantar na noite anterior parecia ter desaparecido e fora substituído por um deus poderoso e charmoso.

Sentiu o rosto e o corpo arderem. Os olhos escuros de Hades eram hipnotizantes.

Meio perdida, Lina desviou o olhar do dele e olhou ao redor do Salão Nobre, lembrando-se de respirar.

A luz dos candelabros iluminava o elmo de prata sobre a mesa do outro lado do trono. Tinha um brilho estranho que, de alguma forma, era difícil de focar.

Lina sentiu o calor dos olhos de Hades e se voltou para ele.

— É um lindo elmo. Eu nunca vi um assim.

— Obrigado. Foi um presente do Ciclope — revelou Hades, satisfeito com o elogio.

Ciclope? , ela repetiu em pensamento. O sujeito com um olho só?

Ciclope é o monstro de um só olho que presenteou Zeus com raios e trovões, Poseidon com seu tridente e Hades com seu elmo.

Claro! Lina interrompeu seu monólogo enciclopédico interno. Fosse quem fosse o Ciclope, não estava com vontade de conversar sobre criaturas mitológicas com Hades.

Por isso fez o qu e qualquer mulher calma, centrada e madura faria: mudou de assunto rapidamente.

— O seu trono é muito incomum também. Não conheço essa pedra.

— É a calcedônia branca — ele explicou.

— Ela tem propriedades especiais, também? — Lina perguntou.

— Sim, ela expulsa o medo, a histeria, a depressão e a tristeza. Imaginei que fosse uma boa escolha para esta sala em particular.

— Concordo com sua escolha.

Hades virou a cabeça e se inclinou de leve em sua direção, quase juntando seus rostos novamente.

— Reconheceu a pedra colorida do salão?

— É a ametista.

— Ela é da mesma cor dos seus olhos, Perséfone! — exclamou Eurídice, alegre com a descoberta.

— Eu já havia notado — comentou Hades sem desviar o olhar do dela.

Sua voz soou baixa como uma carícia, e Lina sentiu uma pontada na boca do estômago.

— Os mortos pedem para falar com seu deus! — A voz de Iapis carregou as palavras com autoridade pelo Salão Nobre.

Relutante, Hades desviou o olhar do dela, e Lina tentou se recom­por. Como poderia pensar no trabalho que tinha pela frente, com Hades a seu lado bancando o deus do Sexo?

Ela quase desejou que ele voltasse a agir como o imortal antipático de antes.

Quase.

Esperava que Perséfone estivesse tendo mais sorte em Tulsa, meditou, preocupada.

— Que entrem os mortos! — Hades ordenou com sua voz grave e poderosa.

Lina viu quando Iapis empunhou a lança de prata de duas pontas que Hades carregara no dia anterior e, com um barulho que lembrava o de um trovão, a bateu contra o chão de mármore. Uma das sombras do lado de fora da entrada em arco estremeceu, em seguida adentrou o Salão Nobre. Tensa, Lina observou atentamente conforme o espírito se aproximava do altar. Era uma mulher de meia-idade, e ela não vislumbrou nenhum ferimento em sua forma semitransparente. Na verdade, Lina pensou, ela era bastante atraente. Tinha os cabelos presos em intrincadas tranças no alto da cabeça, tal qual uma coroa, e vestia várias camadas de tecido drapejado, que fluíam ao seu redor até que parou ao pé da plataforma. Curvou-se numa reverência profunda, e Hades se manifestou:

— Pode subir, Steneboia.

A mulher endireitou o corpo, mas, ao reconhecer Perséfone, seus olhos se arregalaram e ela tornou a se dobrar em outra mesura.

— Sinto-me honrada com a presença da filha de Deméter — falou com uma voz doce e rouca, numa imitação barata de Marilyn Monroe.

— Levante-se, por favor — pediu Lina, perguntando-se por que antipatizara de imediato com a alma da mulher.

Steneboia endireitou-se novamente. Após prestar-lhe o devido respeito, ignorou Lina por completo, concentrando os olhos pintados de Kohl em Hades.

— Eu vim, Grande Deus, pedir para que permita que eu beba água do rio Lete e renasça para o mundo mortal.

Hades a estudou com atenção. Quando falou, Lina percebeu que sua voz soava cheia da confiança e da autoridade típicas de um deus. Tanto que os pelos em seus braços se arrepiaram em resposta ao poder que emanava dele.

— É um pedido inusitado, Steneboia. Sabe que os espíritos dos suicidas raramente são autorizados a beber do Lete.

Lina piscou, chocada. A mulher havia se matado? Por quê?

Steneboia baixou os olhos, recatada.

— E você sabe, Grande Deus, que eu não tinha a intenção de morrer.

O título “Grande Deus” foi dito quase como uma carícia.

Lina sentiu o queixo cair. Steneboia estava flertando com Hades!

O espírito da moça fez um beicinho.

— Tudo não passou de um trágico acidente. Devo pagar por toda a eternidade?

— O que aprendeu enquanto percorria as margens do Aqueronte? — Hades perguntou abruptamente.

Steneboia fez uma pausa, parecendo organizar com cuidado os pensamentos. Quando tornou a falar, suas palavras soaram como um ronronar:

— Aprendi que fiz uma escolha imprudente, e não a repetirei, senhor do Submundo.

Os olhos de Hades se estreitaram e sua voz profunda soou cheia de desgosto.

— Então aprendeu pouco. Você desejou Belerofonte, um rapaz com a metade da sua idade e, depois que ele a rejeitou, mentiu a seu marido, afirmando que o rapaz tentara estuprá-la. Por sorte, Atena frustrou sua tentativa de matar o jovem. A deusa foi sensata ao dar Belerofonte à sua irmã mais nova. Ela era mais digna.

— Aquela ratazana sem graça não merecia Belerofonte! — A explosão de ódio de Steneboia torceu suas feições atraentes, e seu rosto tornou-se rijo e cruel.

Hades continuou como se ela não tivesse se manifestado:

— Você não tinha a intenção de se matar, eu sei. Pretendia apenas assustar sua família e lhes causar tanta dor e tristeza que eles rejeitariam o arranjo de Atena e enviariam Belerofonte para longe. Sua desgraça foi sua criad a ter dormido demais e não tê-la descoberto até que tivesse sangrado além da salvação.

Os olhos de Steneboia desviaram para longe do olhar penetrante do deus e ela apertou a mão branca e delicada contra a testa, como se suas palavras a houvessem aborrecido.

— Vou fazer escolhas mais sábias em minha próxima vida — prometeu, ofegante.

— Onde está seu remorso, Steneboia? — Hades perguntou com voz grave. — Tentou manipular o amor com mentiras e sedução. Nenhum amor pode sobreviver a um veneno desse tipo.

— Não entende! — O espírito da mulher começou a soar desesperado. — Eu o queria tanto! Ele também devia ter me querido. Eu ainda era bonita e desejável.

— O amor não pode sobreviver a tanto veneno — Hades repetiu. — A luxúria e o desejo são apenas uma pequena parte do amor. Mas isso é algo que ainda precisa aprender. — Ele sacudiu a cabeça, pesaroso. — Eu nego o seu pedido, Steneboia. Em vez disso, ordeno-lhe que retorne para as margens do Aqueronte, o Rio das Dores. Passar mais tempo lá talvez lhe permita abrir o coração para mais do que seus desejos egoístas. E não peça para vir até mim antes de outro século.

Steneboia abriu a boca em um grito mudo quando uma ventania soprou pelo salão e rodopiou em torno dela como um furacão em miniatura antes de apanhá-la e varrê-la para longe dos olhos deles.

Iapis levantou a lança para sinalizar a entrada de outro espírito, porém Hades ergueu a mão, impedindo o gesto, e voltou a atenção para Lina.

— O que achou do meu julgamento? — questionou-a.

— Penso que foi muito sábio — ela respondeu sem hesitação. — Não conheço a história toda, mas, pelo que ouvi, Steneboia fez uma coisa terrível e, sem dúvida, não me pareceu arrependida. Contudo também me fez pensar uma coisa...

Hades acenou para que ela continuasse.

— Se ela bebesse do Lete esqueceria tudo de sua vida anterior?

— Sim — ele confirmou.

— E ela ainda seria o mesmo tipo de pessoa? Quero dizer, seria como se tudo fosse limpo, ou ainda existiria um resíduo de sua antiga personalidade?

— Excelente pergunta — comentou Hades com evidente ­satisfação.

— Quando um espírito bebe do Lete, as lembranças são completamente apagadas, e a alma renasce no corpo de uma ­criança. No entanto, esta ainda pode manter algumas de suas antigas ­características. Em última análise, o corpo é apenas um invólucro; e a alma é que define o homem, a mulher, o deus ou a deusa.

— Então isso só reforça o fato de que você tomou uma decisão sábia. Steneboia teria renascido apenas para fazer alguém infeliz.

— Ela baseou sua vida em mentiras, a maioria das quais revelou sua verdadeira natureza. Sua alma não ansiava por riqueza ou luxo, e sim por amor. Mas o amor não pode existir com mentiras e falsidades — disse Hades.

— É muito perspicaz sobre o amor — comentou Lina, pensativa.

Hades fez uma pausa antes de proferir as palavras seguintes, e, quando parou, sentiu a esperança se agitar mais uma vez dentro dele.

— Passei séculos estudando as almas dos mortos e por fim compreendi que o amor é uma emoção que os mortais conhecem infinitamente melhor do que os deuses.

Lina piscou, surpresa. Os mortais conheciam o amor melhor do que os deuses?

Para uma mulher divorciada, que não tinha um encontro decente havia anos, aquelas palavras eram um choque.

— Acha isso mesmo? — ela perguntou, incrédula.

Hades viu sua esperança oscilar.

— Sim, é a pura verdade — afirmou antes de acenar para Iapis, que bateu o cabo da lança no chão novamente.

Lina teve pouco tempo para refletir sobre a reação do deus do Submundo à sua pergunta. Sob o comando do daimon ela pôde observar uma mulher pálida percorrer, hesitante, o Salão Nobre. Estava vestida com roupas muito mais discretas do que Steneboia, porém seu traje parecia tão rico quanto o da outra mulher, e os cabelos escuros também tinham sido presos de forma semelhante. Uma pequena coroa circulava sua cabeça.

Conforme ela se aproximou, Lina percebeu que se tratava de uma mulher obesa, porém atraente, de cerca de trinta e poucos anos.

Ficou chocada quando percebeu a mancha vermelha na parte frontal de suas vestes. Era uma ferida aberta que ainda pingava sangue.

A alma fez uma profunda reverência.

— Perséfone e Hades, sinto-me honrada em me curvar diante da deusa da Primavera e do senhor do Submundo.

A voz da mulher era forte e magnificente.

Lina sorriu e inclinou a cabeça em boas-vindas.

— Saudações, Dido. O que a rainha de Cartago deseja? — ­indagou Hades.

— Hades, peço sua bênção para que eu possa deixar a área da Lamentação junto ao rio Cócito e passar para Elísia.

O deus estudou o espírito, pensativo.

— Já superou a dor de seu amor não correspondido, Dido?

A mulher baixou os olhos, não de modo dramático como fizera Steneboia, porém de uma forma que Lina reconhecia muito bem de seu próprio passado. Baixou-os para esconder a dor que ainda se refletia neles.

— Sim, Grande Deus. Parei de ansiar por aquilo que não posso ter.

Lina se moveu na cadeira, irrequieta, e olhou para Hades. Certamente ele não acreditaria em Dido.

Hades coçou o queixo e observou a rainha morta.

— O que aprendeu durante o tempo de lamentação?

— Que eu devia ter acreditado mais na força do amor. Devia saber que Eneias só precisava de tempo. Zeus ordenou que ele partisse. O que mais ele poderia fazer? Era um homem piedoso, um guerreiro de grande fé. Não foi sua culpa. Eu devia ter sido mais compreensiva, devia ter me disposto a... — Suas palavras se transformaram num soluço e ela cobriu o rosto com as mãos.

— Dido, ainda não superou seu lamento. — A voz do deus soou gentil.

— Superei, sim! — Dido ergueu o queixo e enxugou o rosto. — Estou apenas emocionada como uma criança por estar na presença de imortais. — Seus olhos brilhantes se desviaram para Lina, numa súplica.

Lina devolveu o olhar da mulher desesperada com simpatia. Sabia muito bem como era ser abandonada e culpar apenas a si mesma por isso.

— Eu lhe concedo o seu pedido, Dido. Pode adentrar Elísia com a minha bênção.

As palavras de Hades chocaram Lina, e ela se viu encarando o deus do Submundo enquanto a exuberante Dido deixava, apressada, o Salão Nobre.

Iapis fez menção de levantar a lança e, mais uma vez, um só movimento de Hades o impediu de fazê-lo.

— Não concorda com a minha decisão, Perséfone? Ele se virou no trono de modo a ficar de frente para a deusa.

Lina endireitou a espinha e encontrou seu olhar.

Você é uma deusa... Você é uma deusa...

Não!

Ela freou a ladainha. Mais importante do que isso era o fato de ser mulher. Uma mulher que, na vida real, amara e fora rejeitada... e por isso compreendia exatamente o que Dido estava sentindo.

— Não. Eu não concordo com a sua decisão.

Surpreso com a resposta, ele franziu o cenho.

— Poderia me explicar por quê?

— Dido não superou seu amor por Eneias. Ela continua ferida, no fundo do poço, e ainda se culpa. Dido ainda é uma vítima. Qualquer que seja a lição que deveria aprender no rio da Lamentação, esta ainda não surtiu efeito.

Hades sentiu a raiva borbulhar dentro dele. O que Perséfone sabia sobre amor e perda? Era uma moça mimada, que sempre obtivera tudo aquilo que desejara.

— Como pode saber disso?

Os olhos de Lina se estreitaram diante do tom condescendente, porém ela se conteve antes de dar uma resposta malcriada. Para Hades ela era apenas uma jovem deusa. Ele não tinha como saber sobre seu verdadeiro passado e suas mágoas.

Respirou diversas vezes, lenta e profundamente, de modo a conter o próprio temperamento antes de iniciar sua explanação.

— Percebi detalhes importantes. Em primeiro lugar, o fato de Dido ter desviado o olhar e chorado foi uma prova contundente... com minhas desculpas pelo trocadilho ruim. Em segundo, você escutou o que ela disse? — Lina prosseguiu, incontinenti , sem dar a ele nenhuma chance de resposta.

— Seu discurso foi repleto de “eu, eu, eu” e “pobre de mim, mim, mim”... Adicione a parte “não é culpa dele, a culpa é minha”, e terá uma vítima em potencial à sua frente. Dido não precisa ir para o paraíso, precisa ir a uma academia, ou talvez a um psiquiatra, e trabalhar um pouco esse ódio de si mesma.

Lina se calou, imaginando se Hades tinha alguma ideia do que fosse um psiquiatra.

Ele inclinou a cabeça para o lado e a fitou como se ela fosse um experimento científico interessante. Então fez algo que realmente a aborreceu: ele sorriu.

Depois riu.

Lina apertou os lábios. Tentou encontrar sua própria voz, agora perdida na doçura de Perséfone, e foi recompensada por um tom de aço com uma ponta de sarcasmo:

— Pense, Hades. Esse Eneias, por exemplo. Aposto um dos seus candelabros de diamantes contra uma das coroas de ouro de Deméter que ele está em Elísia. E estamos falando da mesma Elísia para a qual Dido acabou de conseguir um passe. Também vou apostar que ele é um recém-chegado lá, o que motivou esse súbito interesse dela em ir para os Campos Elíseos .

A risada de Hades morreu, e seus olhos se estreitaram.

— Talvez a jovem deusa da Primavera queira mais do que apenas uma oportunidade de observar e fazer comentários. O próximo julgamento é seu, Perséfone. E, em troca, o destino julgará se fez uma boa avaliação.

Lina anuiu sem veemência, e apenas uma palavra passou por sua cabeça: merda.

Iapis atingiu o chão de mármore com a lança de Hades, e esta entoou seu dobre fúnebre como se anunciando o fim dos tempos.

Desta vez não apenas uma, mas várias almas entraram pela porta e se aproximaram do altar.

Com o coração batendo forte, Lina contou quase uma dúzia de espíritos e suas mãos suadas se agarraram aos braços da cadei ra. Não seriam apenas um ou dois suplicantes solitários, mas toda uma horda deles. Eram mulheres de várias idades, e seus espíritos se encontravam em vários estados. Alguns deles pareciam quase tão substanciais na forma quanto o de Eurídice, enquanto outros se mostravam tão transparentes que eram praticamente inexistentes.

Elas se moveram em grupo, como ovelhas assustadas, a princípio hesitantes e inseguras. Ao avistá-la na cadeira ao lado de Hades, deu-se uma visível mudança em seu comportamento. Elas perderam a timidez.

Conforme uma delas avançou, determinada, seus passos foram se tornando cada vez mais ansiosos conforme se aproximavam do altar. Quando estavam ao pé da escada, ficaram em silêncio, olhando-a com indisfarçado fascínio.

Foi então que uma das almas, a mulher mais velha do grupo, pôs-se de joelhos e abaixou a cabeça.

Imediatamente, o restante das mulheres seguiu seu exemplo.

Pelo que pareceu a Lina uma eternidade, ninguém falou. Em seguida, a voz grave de Hades cortou o silêncio:

— Que solicitação trazem hoje?

A mulher mais velha levantou a cabeça. Respondeu a Hades, contudo seus olhos brilhantes não chegaram a deixar Lina.

— Não temos nenhuma solicitação, Grande Deus. Viemos ver a deusa da Primavera, agradecer-lhe por responder às nossas orações. Estamos há muito tempo sem a presença de uma deusa. — A mulher acenou com a mão, e as outras, mais jovens, se puseram de pé e avançaram. Carregavam dentro das saias vários buquês de flores recém-colhidas, os quais colocaram aos pés de Lina.

Hades observou tudo com uma sobrancelha curvada para cima. Permaneceu em silêncio, aparentemente fiel à sua palavra de permitir que ela lidasse com a situação.

Lina engoliu em seco e obrigou as mãos a ficar presas aos braços da cadeira quando, no fundo, tudo o que queria era ficar mexendo nos cabelos.

Ela era uma deusa, lembrou-se pela milésima vez, e deusas não enrolavam fios de cabelo no dedo. Ao menos não em público.

— Ora essa, isso tudo é uma grande surpresa. Fico feliz por terem vindo, e as flores são adoráveis. — Ela inclinou a cabeça para a pequena alma a seu lado. — Eurídice vai colocá-las na água para mim, e eu vou cuidar bem delas.

As mulheres sorriram e cochicharam, felizes.

Lina começou a relaxar. Elas pareciam estar muito bem-intencionadas. Nem mesmo um padeiro de Tulsa poderia estragar aquele momento.

— Não vai embora do Submundo tão cedo, vai, Perséfone? — perguntou a mais velha.

— Não — Lina afirmou. — Não vou embora antes de seis meses, o que certamente não é “tão cedo”.

As almas explodiram num alegre burburinho.

— Estamos tão satisfeitas, senhora! — recomeçou a mulher, porém suas palavras foram sumindo conforme um som incrível flutuou pela câmara.

Lina piscou, surpresa, quando o som a envolveu. Música! E uma música linda.

Enlevada, ela escutou as notas que subiam e desciam como um complexo canto de pássaros. Conforme o som foi mudando, tornou-se mais fluido. Alguns deles eram como seixos rolando, suaves, sobre o leito de um riacho claro, outros caíam ao longo da margem de sua audição, e outros, ainda, cascateavam poderosamente, formando um tilintar ritmado.

— Iapis! — A voz de Hades invadiu a música, fazendo com que Lina franzisse a testa. Por que ele não ficava quieto?

— Meu senhor, eu não...

O daimon foi interrompido quando o músico entrou no Salão Nobre. Ele caminhou em direção ao altar, e o grupo de mulheres se repartiu ao meio para que ele passasse.

Lina o estudou, ainda espantada com a bela música que o rapaz produzira. Ele era um rapaz jovem, de aparência comum, e tocava uma pequena harpa de madeira folheada a ouro. O ouro se refletia em seu cabelo e no fino tecido que lhe cobria o corpo, deixando nu um de seus ombros morenos e musculosos.

Ele continuou a espalhar a magia que vinha da harpa conforme se aproximava do altar. Cantarolava uma melodia alegre, e Lina ficou surpresa ao notar que sua atenção não estava dirigida a Hades ou a ela. Seus olhos brilhavam para um ponto à sua esquerda.

— Por que um homem vivo se atreve a entrar no Submundo? A voz de Hades interrompeu a música, silenciando-a.

Lina sentiu um choque de reconhecimento. Não admirava que ele lhe parecesse tão normal. Estava vivo.

— Quem é você? — trovejou Hades.

A resposta veio da pequena alma à esquerda de Lina.

— Ele é Orfeu... Meu marido.


Capítulo 13

A voz de Eurídice soou trêmula, e o olhar de Lina se voltou para ela. A moça fitava o esposo, os olhos enormes e redondos, o rosto completamente desprovido de cor.

— Com que direito entra no reino dos mortos? — exigiu Hades.

Orfeu desviou o olhar da esposa. Curvou-se, em primeiro lugar para Hades e depois para Lina. Então correu os dedos de leve pela lira, como se testando sua prontidão. Quando falou, suas palavras foram acompanhadas por notas leves, e sua voz foi a magia que as uniu:

Ó, Hades, que o mundo silencioso e escuro governa,

a ti toda mulher nascida deve vir,

pois todas as coisas belas a ti regressam.

Tu és o credor que é sempre pago

pelos que sobre a Terra permanecem.

Pela eternidade somos teus, assim.

Procuro, todavia, alguém que veio a ti muito cedo:

botão que foi colhido antes de florejar.

Tentei aceitar minha perda, mas, ah, eu a amo tanto

que aos poucos essa dor vai me matar!


Meu amor é muito forte;

seu poder, devastador.

Por isso te peço: o que era meu, retorna-me

e tece outra vez as tramas dessa doce vida

que tão cedo teve fim.

Peço-te apenas isto: que a devolvas a mim.

Ao chegar a hora, tua ela será outra vez.

Porque, ah, eu a amo tanto

que a dor de sua ausência

aos poucos está me matando!


As palavras de Orfeu chegaram ao fim, entretanto seus dedos continuaram roçando as cordas suavemente.

Lina sentiu o coração partir ao meio. A música a tocara como nenhuma outra.

Sentiu as faces úmidas e tocou o rosto, enxugando as lágrimas que ela nem percebera derramar.

Olhou para o deus sentado em silêncio a seu lado. Seu rosto também refletia tristeza pela canção do mortal. Hades fez menção de falar; entretanto, quando seus olhos escuros viram os dela cheios de lágrimas, ele suspirou.

— A escolha é sua. Permiti que deliberasse a sentença seguinte, mas, mesmo que eu não o tivesse feito, a vida de Eurídice é sua prerrogativa. Apenas você poderá libertá-la; portanto, por duas vezes lhe foi concedido o poder de decidir sobre seu destino. Decida com sabedoria, deusa da Primavera — falou em uma voz que espelhava a emoção da música de Orfeu.

Lina suspirou, trêmula, sentindo pela primeira vez a impressionante responsabilidade que se exigia de uma deusa. O futuro de Eurídice repousava em suas mãos.

Ela se virou na cadeira para encarar a moça.

O corpo delgado de Eurídice continuava rijo. O único movimento nele era o das lágrimas que corriam por sua face pálida e pingavam no tecido de seu diáfano vestido.

— Como você morreu? — Lina perguntou suavemente.

Eurídice não respondeu.

A melodia de Orfeu mudou para uma canção mais melancólica, que sublinhou suas palavras:

— Apenas um mês após o nosso casamento, fomos fazer uma caminhada ao luar. Eurídice se perdeu por conta de uma súbita neblina e escolheu o caminho errado. Em vez de este conduzi-la de volta para mim, seu amado marido, levou-a a um ninho de víboras, onde ela encontrou a morte.

Embora Orfeu não cantasse, suas palavras ainda soavam líricas. Lina sentiu que estas criavam um manto de tristeza ao seu redor, e tornou a chorar pela tragédia da morte de Eurídice.

Então aquela fora a escolha errada da menina. E a perda de seu jovem marido, o preço que ela havia pagado. Um preço que ainda pesava sobre sua alma.

Lina observou que a moça continuava emudecida pela tristeza, mesmo diante de Orfeu.

Comovida, estendeu o braço e apertou a mão da pequena alma. Esta era fria, e ela pôde sentir os tremores que sacudiam o corpo frágil de Eurídice.

— Eu a liberto — disse em meio às lágrimas. — Pode retornar à vida com seu marido. Agora compreendo sua tristeza e fico feliz em poder ajudá-la.

Eurídice engasgou com a surpresa. Seu corpo tremeu visivelmente, assim como seus lábios.

— Oh, querida! Não se preocupe comigo. Eu ficarei bem. Iapis cuidará de mim, assim como o deus do Submundo. — Lina tornou a lhe apertar a mão, buscando o apoio de Hades com o olhar.

O deus sombrio observava Eurídice, atento.

— Perséfone fez sua escolha e eu me curvo a ela. Porém, com uma condição... — Hades encarou Orfeu. — Eurídice pode retornar ao Mundo dos Vivos apenas se você não olhar para trás. Deve confiar que ela o seguirá. Quando sair deste palácio, não poderá pôr os olhos nela até que a pequena alma tenha partido do meu reino e esteja uma vez mais no mundo mortal.

— Sua vontade é uma ordem. Ela me seguirá, disso eu não tenho dúvida. — Orfeu se curvou diante de Hades e Lina. — Nunca mais deixarei de louvar sua benevolência com o meu canto. — Seus olhos capturaram os de Eurídice, e, mais uma vez, suas palavras se transformaram em música:

Segue-me, segue-me!

Juntos para sempre ficaremos

Tu me pertences, pertences a mim...

Unidos para sempre seremos.

Orfeu continuou extraindo magia de sua lira. Com um último olhar penetrante para a esposa, ele se virou, e, entoando seu canto, caminhou pelo Salão Nobre.

Eurídice começou a segui-lo, como se ele a tivesse laçado com uma corda invisível. Tropeçou nos degraus do altar, mas endireitou o corpo e seguiu aos trancos atrás do marido.

Olhou uma única vez por cima do ombro, e Lina ficou chocada com a expressão vidrada em seus olhos. A pequena alma parecia mergulhada num transe.

Orfeu e Eurídice saíram do palácio, e Hades falou em meio ao repentino silêncio:

— As petições estão encerradas por hoje.

Iapis bateu a lança contra o chão de mármore, e o grupo de mulheres se curvou para Lina mais uma vez antes de desaparecer pela porta de entrada, deixando-a sozinha com Hades e Iapis.

Nenhum deles proferiu uma só palavra.

Lina não conseguia tirar da cabeça a expressão de Eurídice enquanto esta acompanhava o marido para fora do salão.

Enrolou um fio de cabelo ao redor do dedo, intrigada. Era como se a menina estivesse presa. Agora que Orfeu e sua música mágica haviam ido embora e a cena se repetia em sua cabeça, algo parecia fora do lugar.

Na realidade, sua intuição gritava que alguma coisa estava muito errada.

— Vou voltar para os meus aposentos — disse, tentando parecer indiferente, e sorriu brevemente para Hades. — Obrigada por me convidar. Achei tudo muito interessante. — Segurando a respiração, desceu os degraus do altar, apressada, na esperança de que Hades não a impedisse de sair dali. Fez um sinal para Iapis, que continuava em pé na entrada do salão. — Pode me levar de volta ao meu quarto? Quero descansar um pouco. Essa tensão toda me deixou exausta.

Lina viu o daimon lançar um olhar inquiridor por cima do ombro, contudo ele devia ter tido o aval de Hades, pois acedeu e, solícito, conduziu-a para fora do Salão Nobre. Quando já estavam distantes da sala de audiência, ela parou e puxou a manga de Iapis para que ele a encarasse.

— Há algo errado com Eurídice. Posso sentir isso. Não percebi nada enquanto Orfeu tocava sua música, mas, logo que ele se foi, tudo mudou.

— O que deseja fazer, senhora? — Iapis perguntou, baixando a voz.

— Preciso segui-los. — Lina não soubera o que ia dizer até ter falado... Porém as palavras a fizeram se sentir bem. — Tenho que me certificar de que tomei a decisão certa ao deixá-la voltar para o marido.

Iapis aderiu solenemente.

— Ninguém quer que ela se magoe.

— Claro que não.

— Venha por aqui — ele orientou, decidido, e levou Lina rapidamente para a frente do palácio. — Esse é o caminho. — Apontou para a trilha de mármore preto. — Eurídice não deve estar muito longe.

— Obrigada, Iapis! — Ela o abraçou num impulso, em seguida saiu correndo.

— O Submundo é seu, deusa da Primavera! — o daimon gritou atrás dela. — Pode ir e vir à vontade. E Eurídice também pertence a este reino. Mas Orfeu é um mortal: uma vez que passar pelo portal, não poderá mais voltar enquanto permanecer vivo.

— Vou me lembrar disso! — ela respondeu por cima do ombro.

— Perséfone foi atrás de Eurídice? — Hades perguntou ao amigo.

— Sim.

Ele caminhou pelo salão vazio, inquieto.

— Orfeu estava escondendo alguma coisa. Sua música teceu uma teia de sedução, porém suas palavras eram falsas. A pequena alma não queria segui-lo.

— Concordo, senhor — Iapis falou com convicção.

Hades parou de andar.

— E você gosta de Eurídice.

Não era uma pergunta.

— Sim — confessou o daimon.

— Tem certeza?

— Eurídice me faz rir. E eu não ria há eras.

— Já se conheceram bem? — perguntou o deus das Trevas.

— Ainda não houve tempo para isso. E ela é tão moça! — l­amentou Iapis, impotente.

Hades concordou.

— As mulheres são seres complicados.

— Verdade.

— Traga-me o elmo da invisibilidade. Vou seguir Perséfone. É possível que eu tenha de interceder para corrigir esse erro.

O alívio inundou as feições do daimon.

— Obrigado, senhor.

O olhar de Hades se aqueceu, e ele segurou a mão de Iapis.

— Não precisa me agradecer, meu amigo.

Iapis caminhou, apressado, para o suporte que segurava o elmo da invisibilidade. Agarrou-o com firmeza e, como sempre, seu peso foi uma surpresa para ele. Este parecia tão leve, mas, na verdade, era um enorme fardo para carregar.

Levou o elmo para o senhor do Submundo, e Hades o tomou de suas mãos.

Em seguida, fez uma pausa, pensativo.

— Iapis, preciso que faça algo por mim.

— Claro, senhor.

— Veja se Eneias esteve em Elísia recentemente.

— Fique tranquilo.

O deus assentiu. Depois, em um movimento rápido, colocou o elmo da invisibilidade sobre a cabeça.

A dor que varreu seu corpo foi excruciante, porém ele apertou os lábios e se recusou a ceder à agonia. Passaria logo, lembrou a si mesmo. Tudo o que valia a pena tinha um preço.

Respirou profundamente até recuperar os sentidos.

Iapis assistiu ao corpo do deus ondular e, em seguida, desaparecer.

— Traga-as de volta, senhor — falou para o espaço vazio diante dele.

A resposta de Hades flutuou até o daimon, já vindo do outro lado do salão:

— Eu as trarei.


Capítulo 14

Lina avançava, depois abrandava o passo, conseguindo manter Eurídice à vista sem se colocar ao alcance da música de Orfeu.

— Ele não se cansa nunca? — indagou para si mesma.

Ao considerar a situação com a mente limpa, em vez de nublada pelas notas de um feiticeiro disfarçado de músico, não fora difícil para ela perceber o perigoso efeito que a música de Orfeu tinha sobre todos que a ouviam. Os mortos interrompiam sua peregrinação por Elísia quando ele passava. Flores e árvores balançavam em sua direção. Até mesmo ela ficava sorrindo como uma boba se chegava perto demais de sua voz.

— Urgh! Orfeu parece aquelas guloseimas que são doces demais! Deliciosas à primeira vista, mas capazes de provocar vômitos logo em seguida — Lina falou para si mesma, feliz por se ver atenta apenas à própria voz enquanto cumprimentava brevemente os espíritos que, surpresos, faziam reverências e se curvavam enquanto ela passava, apressada.

— Eu devia ter sido mais esperta. Devia ter prestado mais atenção a Eurídice do que a esse fedelho que canta! E não devia ter sido tão arrogante em relação àquela cena toda de Dido — concluiu, mordendo o lábio, frustrada.

O céu à sua frente começou a mudar, e um calafrio percorreu seu corpo. Sabia muito bem que a luz se desvanecendo sinalizava o final da parte bela do Submundo. Estava refazendo o caminho pelo qual ela e Eurídice tinham vindo do Mundo Superior.

Obrigou-se a não pensar nos sonhos ruins e nas trevas. Se Eurídice passaria por ali novamente, ela também passaria.

À sua frente, ouviu um latido assustador. Pouco depois, a música distante ficou mais alta, e os latidos se transformaram em grunhidos de filhote.

Lina abanou a cabeça. Que diabo Orfeu estava fazendo?, perguntou-se com uma careta.

Armando-se contra o feitiço da música, apressou o passo até caminhar num ritmo constante, e as pernas longas de Perséfone a carregaram rapidamente. Sua respiração continuou profunda e regular, e ela sorriu com satisfação. O corpo de Perséfone não era apenas jovem; também estava em grande forma.

A trilha fez uma curva abrupta para a esquerda, e Lina estacou. Bloqueando o caminho, bem à sua frente, estava um cão­ ­monstruoso. A criatura medonha se avultou sobre ela e rosnou num aviso ameaçador.

Ela piscou, tentando clarear a visão, mas a imagem permaneceu diante dela.

— O maldito tem três cabeças! — disse, ofegante.

O “maldito” rosnou outra vez, e Lina apertou os lábios. Era apenas um cão. Claro que o maior cão que ela já havia visto... E, merda!, tinha três cabeças!

A criatura tornou a rosnar com saliva escorrendo pelas três bocas.

O rosto de Lina se iluminou com um sorriso aliviado assim que sua mente atordoada processou o que ela via. O monstro não era nada mais do que uma versão gigante de Edith Anne, com a mesma papada e baba pendendo da boca, só que multiplicada por três.

Seu riso fez três pares de orelha se erguer em sua direção.

Ela avançou, falando em um tom que considerava o seu mais “canino” (o qual era muito diferente de seu “tom felino”, pois gatos não toleravam conversa de bebê de nenhum tipo):

— Ei, bonitinho! — chamou, delicada.

O monstro abanou as três caudas, hesitante.

— Que surpresa maravilhosa! E pensar que eu já estava sentindo falta de Edith Anne! Acho que agora vou ter que transformá-lo no meu Cãozinho do Inferno enquanto eu estiver aqui — falou, já a curta distância da horrenda criatura.

— Arfgh!?? — respondeu a fera.

— Edith adora quando eu faço carinho em suas orelhas. Venha cá. Abaixe-se um pouco para experimentar. — Lina estendeu a mão delgada em direção a uma das seis orelhas, e o monstro inclinou a cabeça para que ela a acariciasse.

Uma das outras cabeças da besta suspirou e roçou seu braço, quase fazendo-a perder o equilíbrio. As outros duas ganiram, lastimosas.

— Cachorro bonito... — Lina sorriu, batendo de leve no focinho molhado da cabeça do meio, e fazendo o terceiro cão uivar como um filhotinho carente. — Ah, venha aqui... Que tal um carinho sob o queixo?

Enquanto sussurrava, acariciava e seduzia o monstrengo, Lina vasculhou a mente em busca de um nome.

O Cérbero é o cão de guarda do Submundo. Sua função é devorar qualquer alma que tente escapar e evitar que pessoas vivas entrem no reino de Hades.

— Isso, garoto! — Lina prosseguiu. O cão ganiu e todas as três cabeças lhe deram aquele olhar triste de cachorro. — Não se sinta mal. Orfeu me enganou também.

Três caudas balançaram no ar.

— Tudo bem, vamos fazer um acordo. Vou seguir aquele músico impostor e Eurídice. Só precisa cuidar para que o “Linguinha de Ouro” não passe por você de novo! — Ela tentou reunir os três pares de olhos. — Entendeu bem?

O Cérbero se agitou e latiu.

— Ótimo. Já vi reprises de Lassie o suficiente para saber quando um cachorro diz “sim”. Seja um bom menino, quero dizer... sejam bons meninos . Eu os verei na volta.

E, com um carinho final em uma das orelhas, Lina deixou o guardião do Submundo abanando os rabinhos e latindo tal qual um cachorrinho feliz.

Saiu, apressada, retomando seu ritmo com determinação.

— Eu não devia mais ficar tão surpreso — Hades murmurou para si mesmo depois de observar Perséfone enfeitiçar o Cérbero como havia feito com suas montarias. Seguro dentro da invisibilidade proporcionada por seu elmo, ele seguira a deusa de perto o suficiente para ouvi-la censurar a si própria por ter permitido que a música de Orfeu a influenciasse em seu julgamento. Perséfone era muito mais sábia do que imaginava. Pois ele também não se deixara enganar pelas palavras do mortal? E isso porque era um deus maduro e experiente no comando de seu reino!

Verdade que ela era uma deusa, mas parecia uma criança. E, mesmo assim, continuava a dar provas incríveis de maturidade.

Por exemplo, o instinto dele lhe dizia que Iapis confirmaria que Eneias havia acabado de entrar em Elísia. Como Perséfone tinha percebido a dissimulação de Dido quando tudo o que ele ob servara fora uma alma feminina adorável acostumada à presença de imortais?

E ela ainda se opusera a seu ponto de vista, não com a ira típica das deusas, mas com lógica e discernimento.

Hades riu ao se lembrar da aposta que Perséfone havia feito. Antes de ela ter vindo visitar seu reino, ele jamais teria acreditado que a deusa fosse muito mais do que uma jovem e fútil divindade.

Perséfone acariciou o Cérbero, e Hades sentiu uma súbita onda de ciúme por conta da atenção que ela dispensava à criatura de três cabeças.

Apertou a mandíbula. Queria que Perséfone o tocasse.

O pensamento fez suas mãos suar. Era chocante, porém ele não podia mais negar: talvez o que Iapis dissera fosse verdade. Talvez fosse melhor, mesmo, experimentar um pouco de felicidade do que nenhuma.

Enquanto seguia às pressas pela estrada, Lina pensou que, mais cedo ou mais tarde, teria que voltar e visitar o cão de três cabeças outra vez. Quem sabe pudesse levar um agrado para ele. Edith Anne, sua cadela, amava Bacos ... Certamente o pessoal da verdadeira Hell’s Kitchen , a cozinha do Inferno, poderia fritar um pouco de bacon para um lanche.

Ao se lembrar do tamanho da criatura que acabara de conhecer, contudo, concluiu que eles teriam que fritar muito bacon para o Cérbero.

A estrada fez outra volta abrupta, e Lina estacou, quase caindo na beira de um lago que ameaçou engolir seus pés. Suas águas eram densas e negras, quase oleosas.

Olhou ao redor. A escuridão cercava toda a lagoa, de modo que a água parecia se estender infinitamente para todos os lados.

Estremeceu, porém tratou de se recompor. Ela era uma deusa, lembrou, medindo cada palavra com cuidado.

Ilumine o lugar! , sussurrou sua consciência.

Com uma exclamação de alívio, Lina levantou a mão e ordenou:

— Preciso de luz!

A esfera incandescente brotou de sua palma e pairou sobre ela.

— O que deseja, senhora?

Ela pulou e soltou um gritinho estridente que, com certeza, não a qualificaria como uma deusa. Surgindo da escuridão, um homem esquelético se materializara a seu lado. Usava vestes cinzentas que se arrastavam no chão e carregava um longo cajado, fazendo-a se lembrar das varas que os gondoleiros usavam para conduzir os barcos pelo canal de Veneza.

Mas era aí que sua semelhança com qualquer coisa mortal ou romântica acabava. O homem era um ser repugnante, cujos olhos enormes, cor de âmbar, brilhavam com uma estranha luminescência.

Lina não precisou vasculhar a memória para lhe dar um nome. Era ninguém menos do que Caronte, o barqueiro do Inferno.

— Preciso seguir Orfeu e Eurídice. Você os transportou através do lago?

— Sim, senhora.

— Então eu quero ir também.

— Como desejar, senhora. — Ele fez um gesto largo e, de repente, um barco apareceu, empurrando o banco de areia a seus pés.

Dizendo a si mesma para não pensar em naufrágios, lagos sem fundo ou coisas assustadoras que poderiam estar à espreita logo abaixo da superfície, Lina subiu na embarcação, tomando assento próximo ao centro.

Caronte entrou no barco e se inclinou para fincar a vara no fundo do lago, porém parou em meio ao movimento e ficou muito quieto, como se estivesse ouvindo palavras sussurradas. Balançou a cabeça com o mais breve dos movimentos, fez uma pausa e, em seguida, finalmente os empurrou para longe da margem.

— A viagem não é longa, senhora.

Lina assentiu e tentou, sem sucesso, relaxar. Manteve os olhos focados adiante, não querendo olhar para a água.

Uma lembrança a invadiu: a cena de O Senhor dos Anéis, no momento em que Frodo e Sam atravessavam os Pântanos Mortos. Estremeceu, com medo de olhar para dentro da água e ver refletidos rostos de cadáveres. Seu único consolo era a esfera de luz que pairava lealmente perto de seu ombro.


Perséfone estava com medo. Com tanto medo que ele quase arrancou o elmo da cabeça.

Mas, então, se lembrou de sua reação quando zombara dela por ser jovem e mimada. Provavelmente Perséfone não ficaria muito feliz com sua interferência, por ele ter usado o elmo como subterfúgio... muito menos com o fato de ter se disfarçado para segui-la.

Seus instintos, entretanto, sussurravam para que ele a tomasse nos braços e a protegesse de seus medos.

Como sempre, Hades ouviu a voz da razão, embora, pela primeira vez em sua existência, ansiasse por seguir a do coração.

Caronte sentiu a presença de seu deus. Sabia que, quando embarcara com Perséfone, o senhor das Trevas também entrara no barco. Também se deu conta de que o deus do Submundo queria manter a deusa alheia à sua presença.

E se havia uma coisa que sabia fazer era ser discreto.

Hades permaneceu na extremidade oposta da embarcação com os olhos fixos em Perséfone. Viu a maneira como ela se agarrava ao assento: com tanta força que tinha os nós dos dedos esbranquiçados. Também mantinha a espinha ereta, como se, assim, pudesse se armar contra seu pavor. Sua pequena luz iluminava o espaço ao redor, e ela parecia estar flutuando em um halo que era quase tão fascinante quanto sua beleza.

O barco encontrou uma marola e oscilou perigosamente. Perséfone estremeceu inteira em resposta.

Rápido, mas com cuidado! A raiva de Hades viajou até os pensamentos de Caronte. O barqueiro concordou com um discreto gesto de cabeça, mesmo estremecendo sob a fúria do deus.

Com o senhor do Submundo em permanente vigilância, o restante da travessia foi rápido e tranquilo.

— Siga o caminho que conduz até lá adiante, senhora. — Caronte apontou para a frente, na escuridão, e Lina saiu do barco para a margem. — O portal do Hades fica um pouco além. Após passar por ele, encontrará a entrada para o Mundo Superior.

Lina percebeu que não precisava de nenhuma coordenada. Deméter tinha razão. Era como se seu corpo pressentisse o caminho para o mundo lá de cima.

Mesmo assim, sorriu educadamente para o barqueiro.

— Obrigada, Caronte. Conheço o caminho a partir daqui. — Deu alguns passos, parou e voltou-se para o homem alto. — Vai estar aqui quando eu voltar, não vai?

Caronte quase sorriu.

— Sim, senhora.

— Ainda bem.

Lina e sua esfera de luz se afastaram do lago e, sob o manto de invisibilidade, Hades as seguiu.

Os portões cor de marfim assomaram diante dela. Por sorte, não havia nenhum sinal do misterioso nevoeiro formado por pesadelos.

Passando pelas portas, Lina estreitou os olhos, tentando avistar a forma etérea de Eurídice, mas não viu nada além do veludo da escuridão.

Parou e tentou escutar alguma coisa. Ainda podia ouvir a música, porém esta parecia distante e indistinta.

Ah, por favor, não permita que seja tarde demais! , rezou em silêncio enquanto disparava a correr com a vontade de uma velocista.

Passou pelo bosque de árvores brancas como um relâmpago, em seguida encontrou a passagem subterrânea e deu um suspiro de alívio. Dentro deste, divisou duas silhuetas: uma a vários metros à frente da outra.

Correu silenciosa e rapidamente, cobrindo a distância que a separava de Eurídice em um só fôlego.

Mas a música era tão doce!

Lina sentiu os ombros relaxar e os passos vacilar. Deveria descansar um pouco e depois...

Não preste atenção à música!, sua mente gritou as palavras, e, com o poder de uma deusa, ela bloqueou a enfeitiçante melodia de Orfeu.

De repente, e com muita clareza, Lina foi capaz de ouvir algo que ficara abafado sob as notas até então: o choro de Eurídice.

Como se pressentisse sua presença, a moça olhou por sobre o ombro e, quando a viu, suas feições se transformaram com a força de sua emoção.

Lina percebeu que Eurídice ainda lutava contra o feitiço da canção de Orfeu. Mesmo estando quase na boca do corredor escuro, a pequena alma continuava tropeçando e arrastando os pés, resistindo como podia à atração que a música do marido exercia.

De súbito, num descomunal esforço, ela proferiu silenciosamente apenas uma palavra na direção de sua deusa:

Socorro!


Orfeu entrou na luz solar do Mundo dos Vivos, e Hades ergueu as mãos para tirar o elmo da invisibilidade e fazer algo que ele nunca tinha feito: revogar sua palavra, não permitindo que Eurídice deixasse o Submundo.

Antes que pudesse agir, contudo, Perséfone o fez: agarrou Eurídice pela mão e a segurou de tal modo que a moça conseguiu impedir a si mesma de pisar na luz.

Então, com uma voz doce que representava bem a sua ingenuidade, a pequena alma chamou o músico, que permaneceu de costas.

— Oh, meu Deus! Orfeu, veja! A luz do sol faz com que minha túnica fique transparente, e não tenho nada por baixo!

Com um grito de vitória, o jovem e arrogante músico se virou.

Seu olhar de triunfo desapareceu, no entanto, quando percebeu que encarava a esposa e a deusa Perséfone, e que ambas continuavam em segurança na boca escura do Submundo.

— Nãããão! — Seu grito de fúria ecoou pelo túnel, e ele saltou para a frente.

Invisível, Hades ergueu a mão e emitiu um comando silencioso.

O corpo vivo do músico tentou passar pela sombria entrada de seu reino, e o ar ao seu redor pareceu solidificar.

Orfeu cerrou o maxilar e tentou avançar outra vez, mas a barreira invisível o impedia. Quanto mais lutava, mais firme a barreira se tornava.

— Você pertence a mim! — Suas palavras não eram mais sedutoras ou mágicas, e sim duras e cruéis.

Eurídice se encolheu, como se com medo de que ele a surrasse.

Lina sentiu uma onda de raiva invadi-la.

— E você parece uma criança mimada, Orfeu! Não pode possuir a alma de outra pessoa. Volte para o seu mundo e deixe Eurídice em paz!

— Nunca! Ela sempre será minha!

Lina abanou a cabeça. Conhecia bem aquele tipo de homem. Ele nunca se contentaria apenas em amar uma mulher. Sua espécie precisava controlar, intimidar, subjugar...

Percebeu a ira se expandindo dentro dela, o que conferiu poder às palavras que atirou em Orfeu:

— Vá embora, fedelho!

Algo se chocou contra o músico, ergueu seus pés e o lançou para longe do corredor sombrio, até que ele desapareceu.

Aparentemente, havia descoberto outro poder da deusa Perséfone, Lina refletiu com um sorriso amargo. Ninguém deveria irritar uma deusa.

Sem saber que estava sendo seguida pelo deus invisível, passou um braço em torno de Eurídice, que ainda soluçava em silêncio. Apoiando seu peso leve, afastou-se do Mundo dos Vivos e conduziu a moça pela escuridão acolhedora do túnel, depois pela clareira das árvores brancas.

Uma vez segura dentro do corredor sombrio, Eurídice desabou no chão. Tinha parado de chorar, mas estava ofegante como se tivesse acabado de correr uma maratona.

— ...Você veio atrás de mim! — ela se esforçou para falar enquanto lutava para controlar a respiração.

Lina sentou-se a seu lado e a abraçou com força.

— Claro que vim. Eu sabia que algo estava errado. Desculpe eu tê-la deixado ir... Foi a música. A princípio não consegui pensar claramente por causa dela, mas, assim que partiu com Orfeu, percebi que não queria ir com ele.

— Não. — Eurídice estremeceu, porém buscou forças no abraço de sua deusa. — Eu não queria ir com ele.

— A escolha errada que disse ter feito... Não foi ter tomado o caminho que a levou à morte, foi? — Lina quis saber.

— Não — confirmou a moça, a voz tornando-se mais forte enquanto falava. — Orfeu foi a minha pior escolha. Eu o conheci, e no dia seguinte estava comprometida com ele. Fiquei tão cega pela magia de sua música, que nem mesmo olhei para sua alma. Se eu tivesse feito isso, teria visto que seu coração era cheio de crueldade, mas não me dei conta de nada até que fosse tarde demais. — Eurídice estremeceu, porém tentou se controlar. Precisava desabafar. Ficara em silêncio por tempo demais. — Tudo começou com coisas pequenas. Ele não gostava do meu cabelo, pediu-me que mudasse. Eu obedeci. Depois implicou com as minhas roupas, com meus amigos... — As palavras vinham cada vez mais rápido. — Tentei contar à minha família, mas eles só ouviam a música de Orfeu. Entregaram-me a ele de boa vontade, acreditando que a minha hesitação era puro “temor virginal”. Depois que nos casamos, Orfeu nem sequer me permitiu visitar minha família. Não suportava minha ausência. Era como se quisesse me consumir. Se eu tentava ficar longe dele, mesmo que fosse para ter um momento de privacidade, ele me batia. Orfeu me bateu várias vezes. A vida com ele era uma prisão. — Os olhos de Eurídice continuaram marejados, porém as lágrimas cessaram. — Quando o nevoeiro fez com que eu me perdesse dele, simplesmente fugi. Nem mesmo vi o ninho de cobras. No final, fiquei feliz por ter sido mordida. De certa forma foi um alívio.

— Você é muito corajosa. — Lina tocou a face úmida da garota.

— Acha isso mesmo, Perséfone?

— Claro que sim. Tem a palavra de uma deusa.

Eurídice sorriu.

— Então devo acreditar. — Sua expressão mudou, tornando-se introspectiva.

— O que foi, querida? — Lina quis saber.

A menina olhava para o caminho que levava de volta ao Submundo.

— Tenho que ir. Não posso ficar tão próxima do Mundo dos Vivos. Não me sinto bem.

Lina concordou com um gesto de cabeça. Podia ver a necessidade nos olhos da pequena alma.

Os passos de Eurídice se mostraram confiantes conforme ela atravessava o bosque de árvores cor de leite, e Lina a seguiu vagarosamente.

Quando se embrenharam por entre as árvores, ela parou, e a moça a fitou por cima do ombro.

— Não vai voltar comigo? — A voz de Eurídice soou assustada mais uma vez.

— Sim, não se preocupe. Eu estou indo. — Lina hesitou. — Importa-se em ir na frente, querida? Preciso fazer algo, primeiro, e não quero obrigá-la a me esperar.

— Mas, vai voltar para o palácio de Hades?

Sob o elmo da invisibilidade, o deus prendeu a respiração à espera da resposta.

— Claro que sim. Eu só preciso ter uma conversa rápida com Deméter.

Ele e a menina suspiraram, aliviados.

Eurídice compreendia a necessidade de Perséfone de falar com a deusa, até porque, de certa maneira, ela havia tomado o lugar de sua mãe viva. Assentiu com um sorriso.

— Posso voltar antes para o palácio, então.

— Não vai ficar com medo de ir sozinha?

— Não. Meu lugar é aqui. Não sinto mais medo.

Lina a abraçou outra vez.

— Não vou me demorar muito.

A pequena alma sorriu e cruzou os portões cor de marfim.

Conforme Lina adentrou o bosque novamente, ouviu a voz da garota ecoando através dos galhos.

— Vou providenciar para que deixem uma refeição pronta para você! Vai estar faminta quando voltar!

Lina sorriu. Eurídice ficaria bem.

Sentindo-se como um voyeur , Hades continuou no encalço da desavisada Perséfone.

Não deveria continuar a seguir a deusa. Eurídice estava livre e retornava em segurança ao palácio. Essa fora a razão para que ele pusesse o elmo da invisibilidade e fosse atrás delas: um motivo plausível.

Agora, deveria voltar ao palácio também, afinal, sua missão fora cumprida.

Mas não voltaria. Ainda não. Queria ver Perséfone correndo por entre as árvores, a esfera de luz tocando-lhe o lindo rosto como uma carícia.

Ah, como ele invejava aquela luz!

Perséfone passou pelo túnel rapidamente, mal parando para levantar a mão e ordenar que a luz a acompanhasse. Então saiu do Submundo para o brilho suave de um belo amanhecer.

Hades a seguiu.

Perséfone olhou ao redor, atenta, e ele se perguntou se ela estaria preocupada que Orfeu continuasse à espreita.

Não, lembrou a si mesmo. O músico fora lançado longe pelo poder da ira da deusa. Perséfone devia saber que ele se encontrava muito distante dali.

Mas ele parecia procurar por algo.

Perséfone se afastou da passagem escura, descendo a trilha ladeada por exuberantes samambaias. Eventualmente, parava e espiava por entre a vegetação como se estivesse procurando por um berloque perdido.

Então suspirou, resmungou algo ininteligível, e seguiu em frente.

O caminho foi se tornando íngreme, e logo Perséfone chegou perto da margem alta do lago Averno. A deusa sorriu e respirou fundo, apreciando a vista.

Hades quis gritar que o Averno não era nada comparado às maravilhas de Elísia. Havia coisas muito mais espetaculares em seu reino do que um simples lago ao amanhecer.

Apertou a mandíbula. Queria tanto mostrar a ela a magnificência de seu reino e ver seu rosto se iluminar com a descoberta!

— Ah, aí está você!

A voz de Perséfone soou aliviada, e ela correu para uma cuba de mármore sobre uma pilastra, à margem da trilha. ­No interior desta, ele avistou uma bola de vidro de grandes dimensões. Seu interior era sombrio, como se estivesse cheio de um creme denso, e Hades reconheceu imediatamente o oráculo de uma deusa.

Perséfone parou diante do oráculo e hesitou. Parecia insegura.

Então fechou os olhos, como se precisasse se concentrar. Quando os abriu, um momento depois, seus lábios carnudos se curvavam no mais breve dos sorrisos.

Sem mais hesitação, ela passou as mãos sobre o cristal três vezes, e o interior do globo começou a girar.

— Deméter? — Perséfone falou com o oráculo. — Eu quase te coloquei numa encrenca!—

O rosto da deusa da Colheita se materializou dentro da esfera de vidro.

— Usou a palavra “quase”, o que significa que deve ter corrigido seu erro — Deméter replicou, a voz soando meio abafada e artificial ao sair do oráculo.

Perséfone suspirou.

— Sim, mas se eu não o tivesse corrigido, meu erro teria resultado em uma vida de sofrimento para uma menina linda e jovem.

— Não temos de ser perfeitas apenas porque somos deusas. Devemos usar nosso melhor julgamento, mas, às vezes, cometeremos erros.

Perséfone puxou um longo fio de cabelo e começou a girá-lo em torno do dedo.

— Não quero cometer erros que causem dor aos outros.

Hades se obrigou a dar meia-volta e caminhou rapidamente pela passagem sombria. Já havia invadido demais a privacidade de Perséfone. Sua consciência não lhe permitiria continuar a ouvir a conversa da jovem deusa com sua mãe.

Arrancou o elmo da invisibilidade. Aquilo não era para ser usado como um dispositivo de escuta. Era para ser usado com discernimento, não com egoísmo. Estava envergonhado de si mesmo. Não tinha acabado de repreender Steneboia por suas mentiras e egoísmo?

Nunca se comportara daquela maneira. Não era nenhum rapaz imaturo. Sabia que assim não ganharia o coração de uma deusa.

Hades parou. Era isso o que ele queria? Conquistar o coração de Perséfone?

Passou a mão pelo cabelo. Ele a desejava. Seu corpo até doía. Por muito tempo, acreditou que suas características, de alguma maneira, o mantinham fechado para as necessidades comuns dos deuses. Evitava as mulheres, fossem elas mortais ou imortais, porque sua natureza desprezava os casos amorosos simples e a paixão sem sentido. Isso não lhe satisfazia.

Era após era, testemunhou nos espíritos dos mortos aquilo que os mortais conheciam tão bem: o laço eterno de almas gêmeas. E ser testemunha dessa forma de amor única e inesquecível só aumentou sua crença. Nada menos do que a união por toda a eternidade o satisfaria.

Ah, ele já havia tentado séculos antes... Ainda sentia o estômago se apertar ao pensar em sua breve amante mortal, Menta.

Conhecera a moça durante uma de suas raras visitas ao Mundo dos Vivos. Ela estivera colhendo flores para seu primeiro ritual de fertilidade, e a chegada dele fora como uma resposta às suas orações.

Ele a fizera sua lá mesmo, no campo perfumado, e lá ele a visitara muitas vezes, até que ela jurou amá-lo e prometeu deixar a casa em que morava para viver com ele.

Olhando para trás, ficou surpreso com a própria ingenuidade. Ainda doía lembrar a histeria de Menta no momento em que ele enfim revelou-se como o senhor dos Mortos.

Em sua mente, podia ver tudo acontecendo outra vez: o voo cego da moça quando ela se atirara no precipício, e como ele a apanhara no ar antes que ela pusesse fim à própria vida.

Em vez de condená-la a uma eternidade de lamentações em seu reino, ele invocou seu poder imortal e a transformou na erva doce e perfumada, a qual mantivera sua beleza delicada, bem como seu nome.

Ao contrário das mortais, as deusas não o temiam, porém também não o compreendiam. Zombavam dele, pensando que era austero e sombrio por governar o Submundo. Além de Perséfone, nenhuma outra divindade tinha se preocupado em visitar seu reino.

Hades bufou, irônico. Ele também nunca tivera vontade de convidá-las a fazer isso. Deusas não sabiam o que era lealdade, ­tampouco o que era amar verdadeiramente.

Atena, por exemplo. Traíra seu precioso Ulisses, permitindo que ele ficasse perdido por vinte anos antes de retornar à casa de sua fiel esposa.

Suspirou. Tinha sido fácil convencer a si mesmo de que nunca teria uma companheira.

Mortais precisavam morrer para reinar a seu lado, por isso o temiam e fugiam do seu amor. Deusas eram imortais, entretanto elas jamais pertenceriam a ele.

Por isso se contentara em governar seu reino e viver cercado pela beleza dos Campos Elísios e maravilhas de seu palácio.

Mas, não mais.

Seus lábios benfeitos sorriram com ironia. O deus dos Mortos desejava a deusa da Primavera. Mesmo dentro de sua cabeça isso parecia impossível.

Lembrou-se do sorriso brilhante de Perséfone e da maneira quase infantil com que ela reagira a seus domínios. Mesmo assim, demonstrara uma maturidade que desmentia sua aparência jovem. Era diferente das outras deusas.

Mas Perséfone seria diferente o bastante para amá-lo? Como ele poderia seduzi-la?

Andou de um lado para o outro enquanto pensava.

De repente, teve uma ideia e abriu um sorriso vitorioso.

Levou os dedos aos lábios e seu assobio rasgou a escuridão, viajando com uma velocidade mística por todo o caminho de volta até o palácio.


Capítulo 15

— Em outras palavras, não há nenhuma varinha mágica, ou algo do gênero, que possa sacudir em cima de mim para garantir que eu tome as decisões corretas. Mesmo que meus erros prejudiquem os outros? — Lina sabia que parecia irritada. Para que servia uma deusa se ela também era falível?

A expressão de Deméter era gentil.

— A sabedoria não vem com a imortalidade, filha . — Ela deu ênfase à última palavra de modo a reforçar seu papel. — A sabedoria vem com a experiência. E você já adquiriu muita experiência na vida. Ouça a sua intuição. Use sua mente. Acredite em si mesma. Se cometer um erro, aprenda com ele. — A esfera de vidro começou a ficar enevoada, obscurecendo o rosto da deusa. — Agora retorne a Hades com a minha bênção...

E a voz de Deméter, assim como sua imagem, desapareceu.

Lina suspirou. Estava sozinha.

— Espero que Perséfone esteja tendo mais sorte na Pani Del Dea — resmungou consigo.

No instante em que proferiu as palavras, o vapor dentro da esfera começou a girar outra vez. Ao mesmo tempo que ela assistia, com espanto, a nebulosidade se dissipar, revelando uma cena que fez seu estômago se contrair com uma inesperada onda de nostalgia.

Lina se curvou para perto do oráculo, atenta. A Pani Del Dea estava, definitivamente, tendo um bom dia. A pequena padaria encontrava-se repleta de clientes. Na verdade, ela piscou, surpresa, estava entupida de gente.

Tentou enxergar melhor através da esfera mágica, notando os rostos familiares e percebendo que estes estavam em minoria. Não reconhecia mais a sua clientela!

Porém, esta parecia mais do que satisfeita. Havia muita conversa e riso enquanto... — piscou de novo, e seu rosto se desmanchou num sorriso — ...enquanto comiam Pizza alla Romana , a pizza que tinha convocado Deméter!

Também avistou várias placas novas ao longo da parede, atrás das travessas de massas. Em negrito lia-se “ Pizza del Giorno, ou Pizza do Dia: Quattro Stagioni — Pizza Quatro Estações, com todos os seus ingredientes favoritos: tomate, alcachofras, cogumelos, azeitonas, três queijos e presunto.” Outra chamava a atenção para o “ Vino del Giorno , ou Vinho do Dia: Peppoli, Chianti Classico Riserva .”

O último cartaz, entretanto, a confundiu: “Barricas de cream cheese de ambrosia limitadas a três por cliente.”

Cream cheese de ambrosia? O que era aquilo?

Engasgou e sentiu o rosto pegar fogo quando se viu saindo das portas de abrir e fechar da cozinha e entrar na padaria. Sacudiu a cabeça repetidas vezes em um movimento de negação.

O que Perséfone fizera com ela?! Não estava usando um de seus bem cortados terninhos. Usava uma saia de seda trespassada, de um fúcsia brilhante, e uma blusa sem mangas, cor de melão. E a saia era curta... Muito curta!

E fúcsia! Não tinha nenhuma peça de roupa daquela cor! Sem dizer que o decote baixo da blusa expunha perigosamente seus seios.

Boquiaberta, Lina olhou para o restante de seu próprio corpo. A parte das pernas que a saia revelava estava morena, assim como o resto de seu corpo, o qual, em sua opinião, encontrava-se exposto demais. E ela perdera peso.

Estreitou os olhos e estudou a si mesma. Não. Talvez não tivesse perdido peso. Parecia apenas mais tonificada e saudável. Suas curvas continuavam lá, porém mais visíveis e bem definidas. E seus cabelos também pareciam diferentes. Estavam pelo menos uns dois centímetros mais longos.

Como era possível? Não se encontrava fora apenas um ou dois dias?

Lina olhou novamente. Sim, estavam mais compridos, mesmo, e lhe caíam sobre os ombros em camadas, o que lhe dava um ar travesso.

Um homem lhe fez um sinal, e ela respondeu jogando os cabelos e abrindo um sorriso atrevido.

Merda! Ele não era nem mesmo um homem : era um menino que, mais do que depressa, se concentrou no objeto de sua atenção.

Lina ficou boquiaberta enquanto se observava flertando descaradamente com um jovem bonito e musculoso e que parecia familiarizado demais com ela. E ele não tinha mais de vinte e cinco anos!

De repente, o rapaz se curvou e a beijou na boca. Bem no meio da padaria! Bem na frente de todos!

— Que p... merda é essa?! — Lina exclamou, chocada demais para praguejar corretamente em italiano ou inglês.

Perséfone riu e andou, ainda brincando, para longe de seu pretendente. Por uma fração de segundo, ele ergueu os olhos e piscou para ela !

Lina respirou fundo e recuou como se tivesse levado um tapa. No mesmo instante, o vidro começou a girar, ficou turvo outra vez, e a imagem da Pani Del Dea se dissipou como fumaça.

— Problemas com o oráculo, minha deusa? — Uma voz profunda falou atrás dela.

Ela se virou e deu de cara com um homem.

Um homem surpreendentemente belo e forte.

— Perséfone? Eu não sabia que era você.

— O-Olá — ela gaguejou, ofegante, a mão trêmula cobrindo o coração que batia forte. Quem era aquele deus ?

Um nome flutuou, sedutor, de sua mente, tal qual um sussurro erótico: Apolo .

Lina abanou o rosto quente e tentou se recompor.

— Você me assustou... Apolo.

O deus descansou de encontro a uma grande pedra. Trajava uma túnica de couro curta, com uma espécie de placa no peito,
e uma saia curta que se assentava em torno de seus quadris estreitos e pernas musculosas.

A “saia”, entretanto, de modo algum o fazia parecer efeminado. Usava, também, um par de sandálias, e o restante de seu corpo estava nu.

Muito nu. E Apolo era todo músculos. Seu sorriso era suave e atraente, e ela não pôde evitar encará-lo. Até porque, olhar para ele era o que a situação exigia.

O deus apontou o oráculo com um gesto de cabeça.

— Conversando com Deméter?

— ...Sim.

— Ela foi visitar Hera. Acho que aquelas duas estão planejando algo novo com que atazanar Zeus. — Apolo baixou a voz num tom conspirador, e seus olhos brilharam. — Correm boatos de que ele se apaixonou por uma mortal... outra vez. — Coçou o queixo forte, pensativo. — Parece que o nome da infeliz é Io. — Balançou a cabeça e riu, os olhos de um azul fascinante, brilhando maliciosamente. — Nunca vou entender esse temperamento de Hera. Nós todos sabemos que Zeus tem uma queda por tudo o que é belo, mas ele escolheu apenas uma mulher. Ela não deveria perder tempo com ciúmes infundados.

Lina levantou uma sobrancelha perfeita.

— Não considera importante a fidelidade no casamento?

— Acredito que o importante é o prazer. Aliás, como você bem sabe, Perséfone... — O olhar dele foi íntimo e sedutor.

Santo Deus! Apolo tinha sido amante de Perséfone?!

— Aliás, eu ficaria muito honrado em lembrá-la das delícias de que somos capazes, deusa da Primavera...

Ele se ergueu da pedra e se aproximou dela com uma graça felina.

Lina sentiu a boca seca. Ele a tomaria nos braços?

Ergueu a mão, impedindo-o de continuar. Apolo podia ser o homem mais bonito que ela já vira na vida, mas ela não era do tipo que beijava estranhos, embora fosse exatamente isso o que Perséfone vinha fazendo em seu mundo.

O jovem deus a viu se retesar, mas, bem versado na sedução, sabia muito bem como lidar com uma deusa que fingia timidez. Em um movimento fluido, mudou de tática. Em vez de tomar o delicioso corpo de Perséfone nos braços, segurou seu pulso, curvou-se galantemente sobre a mão delicada e, como o cavalheiro que não era, beijou-a de leve. Sem soltá-la, fitou-a no fundo dos olhos.

— Eu a vi brincando nos campos, enquanto eu dirigia minha carruagem no céu. Seu corpo se move com mais graça do que as flores sob a brisa da manhã. Faríamos uma boa dupla, você e eu: o deus da Luz e a deusa da Primavera.

Lina quase riu alto aliviada. Ali estava uma coisa com a qual ela estava acostumada a lidar: um cara de pau com um bom discurso.

Piscou os cílios longos para o belo deus e suspirou com um ar angelical. Para garantir, até adicionou um pouco do sotaque cantado de Oklahoma na resposta:

— Ah, Apolo, estou tão feliz!

Os lábios perfeitos do deus começaram a se curvar com a vitória, porém as palavras seguintes de Lina o fizeram congelar.

— Imagine, só! Eu me casando com o deus da Luz! Eu não poderia estar mais emocionada! — Ela apertou a mão dele e começou a dar pulinhos como uma adolescente tonta. — Espere até eu contar à minha mãe!

— C-Casando? — A voz grave e profunda de Apolo deu lugar a uma quase esganiçada.

Lina sorriu, inocente, fitando os olhos cor de safira.

O rapaz soltou-lhe a mão como se esta fosse uma tocha flamejante e recuou um passo.

— Não é aconselhável partir para o casamento tão depressa. — Engoliu em seco como se a palavra “casamento” lhe estivesse atravessada na garganta.

Lina franziu a testa com determinação.

Algo dourado cintilou sobre o ombro direito de Apolo nesse momento, chamando-lhe a atenção e interrompendo a resposta vigorosa que ela planejara. Quando olhou além dele, sentiu os lábios se curvar num sorriso de prazer.

— Ah! Que coisa mais linda!

Olvidando-se por completo do lindo deus à sua frente, concentrou-se nos quatro cavalos que tinham acabado de trotar para dentro de seu círculo de visão, presos a uma carruagem de ouro tão brilhante que seus olhos lacrimejaram.

Mas os cavalos! Eram do mesmo tom dourado, mas com crinas e rabos prateados.

Os quatro pararam bruscamente, bufando e batendo os cascos.

Apolo olhou por sobre o ombro e, ao se deparar com sua salvação, esqueceu-se da consternação pela interpretação errônea da deusa.

— Sim, Hadar, já estou indo! — Voltou o olhar para Perséfone. Tivera a intenção de correr para longe, e se considerou uma criatura de sorte por ter uma desculpa pronta. Casamento? Ela só podia estar brincando.

A expressão arrebatadora que iluminava o rosto belo e delicado, contudo, obrigou-o a uma trégua. Perséfone era maravilhosa.

Sentiu um aperto familiar nas entranhas.

— Eu não sabia que se interessava por cavalos, Perséfone.

— Adoro cavalos! — ela respondeu sem nem ao menos olhar para ele.

— Venha, vou mostrá-los... — Apolo estendeu-lhe a mão.

Distraída, Lina a aceitou e correu em direção aos animais, ansiosa, puxando o deus com ela.

Apolo enrugou a testa. Era como se ela tivesse se esquecido completamente dele!

Um sentimento estranho o perpassou. Nunca uma deusa o havia ignorado daquele modo. Muito menos uma deusa jovem, que acabara de tentar fazê-lo cair na armadilha de um casamento.

As quatro éguas bateram as patas no chão e sopraram pelo nariz, inquietas. Com um floreio, ele as apresentou a Perséfone.

— Perséfone, deusa da Primavera, tenho a honra de lhe apresentar as éguas que atraem a luz do sol no céu: Hadar, Aquila, Carina e Deneb — falou, apontando uma delas por vez.

A deusa fez uma reverência graciosa, aos modos de uma bailarina.

— O prazer é todo meu em conhecê-las! O pelo de vocês é incrível! De tirar o fôlego.

O efeito de sua voz sobre os cavalos foi imediato. Quatro pares de orelhas se ergueram e os cascos cessaram sua incansável coreografia. A égua mais próxima dela estendeu o focinho em sua direção, relinchando como um potrinho.

— Ah, minha linda! — Perséfone riu e a acariciou.

Apolo observou, atordoado, enquanto a deusa se movia de cavalo em cavalo, fazendo sons delicados com a boca e murmurando palavras carinhosas. As éguas, geralmente distantes e orgulhosas, reagiam a ela com verdadeiro afeto, lambendo seu rosto e se espremendo em busca de carícias. E todas, sem exceção, abanavam a cauda.

A reação dos cavalos o espantou, porém ele também estava surpreso com Perséfone. Nunca havia percebido aquele seu lado. Costumava flertar com ela, e tinham encontros amorosos ocasionais... mas que sempre começavam e terminavam a seu critério. Sempre imaginara que ela não possuía nenhum interesse além de flores, brincar com as ninfas e dar festas suntuosas.

Mas, naquele dia, parecia muito diferente: ainda mais porque não tinha caído de bom grado em seus braços.

Seus olhos se estreitaram, enquanto ele pensou no comportamento da bela deusa. Perséfone havia zombado dele! Não estivera interessada em casamento.

Agora se encontrava completamente encantada com suas éguas...

E era magnífica.

Ainda observava Perséfone, tentando descobrir o que poderia ter causado tal mudança na jovem deusa, quando um grito ­estridente cortou o ar.

Suas éguas reagiram de imediato. Curvaram os pescoços e balançaram as cabeças, respondendo com relinchos.

O deus da Luz se virou, pronto para uma batalha, e deparou-se com um enorme garanhão negro que agitava as patas no ar, acima dele.

Apolo reconheceu a criatura raivosa como um dos apavorantes cavalos de Hades. Seus dentes estavam arreganhados e seus olhos faiscavam, ao que as éguas responderam com violência.

— Parem já com isso! — O comando de Lina jogou água fria na exibição de força dos cavalos.

Apolo se pôs de lado, intrigado com aquela nova faceta de Perséfone. Com as mãos plantadas firmemente nas ancas benfeitas, ela se afastou das éguas, indo direto para a besta negra.

Ele assistiu, em suspense, ansioso por ver o que ela faria em seguida.

— Órion, que diabo há com você?! — A deusa se posicionou de modo a repreender todos os cavalos de uma só vez. E tinha as costas voltadas para ele, o que lhe proporcionou uma excelente visão do traseiro bem torneado.

Apolo concluiu que este parecia até mais redondo e convidativo do que da última vez que o vira... Ou talvez ele nunca o tivesse olhado tão de perto.

— E quanto a vocês quatro? O que pretendiam fazer? Atacar Órion, mesmo ele estando claramente em desvantagem? — Ela deu um estalo com a língua, desgostosa.

Os cinco cavalos baixaram a cabeça, parecendo criancinhas arrependidas. Órion arriscou um passo na direção do objeto de sua afeição e esticou o focinho para Perséfone.

Ela ainda lhe deu um olhar rijo antes de capitular.

— O que está fazendo aqui? — perguntou, tentando não sorrir quando ele lhe acariciou o rosto.

Foi então que notou as rédeas e o lindo selim de couro tingido, tão negro como seu pelo. Bem em cima do freio, havia um botão de narciso.

Sentiu uma pequena onda de emoção.

— Ele mandou você vir me buscar?

Apolo ficou irritado com a alegria evidente na voz delicada. “Ele”? Com certeza ela não queria dizer “Hades”?

Uma das éguas douradas relinchou, e Perséfone se voltou para elas.

— Acho que tenho de ir. Foi maravilhoso conhecer vocês. Espero vê-las em breve!

A deusa se posicionou ao lado do corcel negro e agarrou parte de sua crina, obviamente se preparando para montar e partir.

Apolo não acreditou no que estava vendo. Perséfone se despedira de seus cavalos, porém não trocara uma só palavra com ele!

— Permita-me ajudá-la, Perséfone — disse, movendo-se com rapidez.

— Ah, que indelicadeza a minha, Apolo. — Ela acenou, delicada, para os cavalos. — Com toda essa excitação, eu me esqueci de você. Foi um prazer conhecê-lo, também.

Ele sorriu sugestivamente para a linda deusa.

— Como se fôssemos muito estranhos um para o outro.

Perséfone corou, tornando-se ainda mais atraente.

— Ah, que bobagem a minha. Eu não quis dizer que... Eu só estou um pouco... destrambelhada.

Apolo jogou a cabeça para trás e riu.

— Destrambelhada? Pois saiba que, de agora em diante, vou pensar em você como a deusa das Surpresas em vez de a deusa da Primavera. — Tocou-lhe o rosto suavemente. — E eu penso em você... Muito.

Lina sentiu o calor da mão dele no rosto. Apolo estava tão próximo que ela quase podia ouvir seus batimentos cardíacos.

Ou talvez fossem os dela, pois os olhos dele eram de um tom de azul vibrante que combinava perfeitamente com os cabelos cor de sol e a pele dourada.

Sem perceber, inclinou-se para ele.

Órion bufou e Lina recuou, assustada.

Apolo sorriu. Antes que ela recusasse, ele a segurou pela cintura e, devagar, ergueu-a para a sela do garanhão que aguardava, impaciente, tomando o cuidado de roçar o corpo no dela ao fazê-lo.

— Quando poderei vê-la de novo? — perguntou, tão logo se acomodou sobre a sela e colocou os pés nos estribos.

— Não faço ideia. Tenho muito que fazer. — Lina apontou a entrada para o Submundo com um gesto de cabeça.

— Está hospedada no reino de Hades?

O tom incrédulo do deus a irritou.

— Estou de passagem pelo Submundo.

Apolo tornou a rir. Órion colou as orelhas à cabeça e Lina temeu que ele mordesse o rapaz.

— Está de férias no reino dos mortos? Nunca ouvi falar de tal coisa.

— Descobri que o Submundo, assim como seu deus, tem sido grandemente subestimado... Tenha um bom dia, Apolo. — Lina cutucou Órion com os pés.

O corcel fez meia-volta sobre os cascos e avançou a galope, ansioso por voltar para casa com seu tesouro.

— Estarei aqui a cada amanhecer, Perséfone! — Apolo gritou atrás dela.

Lina se inclinou para frente, agarrando-se à crina de Órion. Ignorou o deus Sol, concentrando-se em manter-se no lugar, embora o galope de Órion fosse suave. Uma infância em Oklahoma lhe ensinou a ser excelente amazona.

Apolo era bonito, sedutor e interessante, mas ela, ao contrário de Perséfone, tinha um trabalho a fazer e não podia se distrair. Também ao contrário de Perséfone, nã o pretendia causar constrangimentos, quando seus corpos ­fossem trocados novamente.

O vento que soprava por cima da cabeça de Órion trouxe com ele o sedutor perfume da flor de narciso e, sem que ela percebesse, seus lábios se curvaram em um melancólico sorriso.


Capítulo 16

As passadas fluidas de Órion cobriram a distância da entrada do Submundo até o palácio de Hades no que pareceram minutos. Até mesmo a travessia de barco foi mais rápida e fácil com o enorme garanhão a seu lado.

Conforme a construção foi surgindo à sua frente, Órion diminuiu o galope. Sem ter de ser guiado, conduziu-a ao redor das laterais do palácio, indo direto para os estábulos. Um cavalariço se fez presente assim que os viu, segurando a cabeça do corcel e mantendo-o quieto para que Lina desmontasse.

— Obrigada — ela sussurrou para o garanhão, beijando seu focinho macio, e Órion a acariciou de volta, afetuoso. — Foi um passeio maravilhoso.

Antes de dar um último tapinha no pescoço elegante do animal, Lina se esticou para apanhar o narciso de cima da sela. Hesitou apenas um segundo, em seguida prendeu-o atrás da orelha direita, para então se voltar na direção do cavalariço.

— Sabe onde está Hades?

— Sim, senhora. Está na ferraria. Pode seguir por esse caminho. Ele o levará ao deus.

Lina sorriu, agradecida, e começou a descer a trilha. Sabia que Eurídice devia estar esperando no palácio com sua refeição e estava com fome, mas antes queria agradecer a Hades por ter lhe enviado o cavalo. Também queria perguntar se ele se importava que ela saísse com Órion ocasionalmente. O garanhão era o sonho de qualquer admirador de cavalos.

O caminho ondulava ao redor dos estábulos e era ladeado por rosas cor de creme. Lina respirou fundo diversas vezes, deliciando-se com sua fragrância, a qual se mesclava com o perfume adocicado do narciso em sua orelha.

A trilha fez uma curva para a esquerda, e ela viu que este a levava em direção a um pequeno prédio, um pouco afastado do estábulo principal. De lá ressoava uma batida ritmada, que se deslocava até ela trazida pelo vento. Era metal batendo contra metal, percebeu, o que indicava que estava seguindo na direção certa.

A porta da edificação encontrava-se entreaberta, e Lina deslizou em silêncio para o interior mal iluminado. Piscou, tentando ajustar a visão depois da claridade do lado de fora.

Ouviu um ruído estranho, seguido por outro mais forte. No canto oposto da construção, havia uma fornalha enorme, cuja boca expelia chamas que lambiam o ar e o devolviam na forma de súbitas explosões que avermelhavam a escuridão.

Um homem encontrava-se em pé diante do forno, a silhueta escura marcada contra as chamas alaranjadas. Tinha as costas voltadas para ela e estava quase nu, coberto apenas por uma espécie de tanga que se ajustava em torno de suas nádegas rijas. Com golpes longos e poderosos, ele martelava um objeto de metal bem preso no lugar por um par de pinças. Com cada movimento fluido, seus músculos se retesavam e relaxavam. Seu corpo forte estava coberto por uma fina camada de suor, o que só fazia destacar os contornos de finidos de sua impressi onante forma, e o cabelo encontrava-se preso por uma tira grossa e escura.

Lina sentiu um choque de reconhecimento. Era Hades.

Claro que ela já o considerava bonito e se sentia atraída por ele, mas, merda!, não fazia ideia de como ele era delicioso! Até então Hades tinha estado tão... vestido.

Sentiu a boca seca. Ele estava nu . E era tão musculoso! O homem mais sexy que ela já vira na vida.

Apolo também estivera pouco vestido, porém ver Hades daquele jeito foi diferente. O deus da Luz era bonito, contudo sua beleza parecia a de um gatinho manso em comparação à masculinidade quase rude do deus do Submundo.

Vê-lo tão suado e gloriosamente seminu despertou fantasias em Lina que ela pensava ter posto para dormir havia muito tempo.

Fantasias.

Encantada como uma naja, ela olhou para o deus e sentiu uma pontada profunda no centro do corpo. Fazia tanto tempo!

Seus pensamentos voaram. Ah, se Hades a acariciasse com o mesmo ímpeto com que trabalhava aquele metal! Ele parecia tão incrivelmente poderoso.

Lina estremeceu ao imaginar corpos quentes e suados um contra o outro.

Quando era mais moça, sonhava em ser passional e sem reservas na cama. Desejara isso com ardor. Em vez de arrumar um parceiro que viesse ao encontro de seus desejos, no entanto, havia se casado com um homem que considerava a qualidade na cama proporcional à quantidade.

Dessa forma, eles faziam sexo muitas vezes, mas com uma rapidez e uma regularidade entediantes. Seu marido não tinha imaginação ou paciência para experimentar a paixão. Em algum ponto de seu casamento, suas fantasias foram se transformando em tédio e, a partir disso, ela já nem mesmo as notava.

Claro que tivera amantes depois do marido. Não muitos, mas o suficiente. Havia muito tempo se conformara com a possibilidade de atrair apenas homens mais cerebrais do que sensuais.

Na verdade, sua vida amorosa fora um fracasso.

Por isso, foi com uma intensidade inesperada que o corpo de Hades ressuscitou suas fantasias juvenis.

Sem perceber que estava sendo observado, ele limpou o rosto que pingava com as costas da mão e se endireitou, esticando as costas antes de mover os ombros maciços.

Um gemido escapou da garganta de Lina.

Hades olhou para trás e a viu. Ela estava em pé, perto da porta, com uma expressão peculiar no belo rosto.

Uma onda de prazer aqueceu ainda mais seu corpo. Perséfone usava o narciso nos cabelos.

Lina umedeceu os lábios.

— Ahn... eu não queria perturbá-lo.

— Não está perturbando. — Ele pôs de lado as pinças e limpou as mãos em um pedaço de pano.

A voz da deusa tinha soado estranha, pensou, como se ela estivesse tendo problemas para respirar. Talvez a viagem de volta do Mundo dos Vivos tivesse minado suas forças.

Preocupado e querendo deixá-la à vontade, ele fez um gesto de boas-vindas.

— Por favor, entre...

Lina caminhou em sua direção, tentando não olhar o peito largo. A pele morena de Hades parecia lisa e convidativa.

E que músculos! Sua vontade era gemer de prazer e correr as mãos por todo aquele torso suado.

Trate de agir de acordo com a sua idade!, repreendeu a si mesma mentalmente.

— Eu queria agradecer por ter mandado Órion atrás de mim.

Perséfone parecia sem fôlego e talvez até um pouco nervosa, o que ele achou estranho. O que estaria incomodando a deusa?

— Ele ficou feliz por lhe prestar seus serviços, garanto.

Os hormônios de Lina gritaram que era dos serviços dele que ela gostaria, porém sua voz se mostrou mais comportada.

— Se não se importar, eu adoraria montar Órion outra vez.

— É evidente que não me importo. — Hades hesitou. Continue falando, não fique aí parado como um imbecil!, sua consciência ordenou. — Estou certo de que será um prazer para Órion... Apesar de que existem outros três cavalos que também estarão clamando por sua atenção — falou, tornando a limpar a testa com a parte de trás da mão.

O movimento fez uma única gota de suor deslizar pelo pescoço forte. Lina assistiu quando esta viajou com uma lentidão agonizante pelo peito largo, pelas linhas bem definidas de seu abdômen, e desapareceu, instigante, sob a tanga de couro.

Sua mente se recusou a formular uma resposta. Tudo o que ela pôde fazer foi ficar ali, emudecida, olhando para o caminho úmido que a gota de suor traçara na pele brilhante do deus e desejando poder segui-la com a língua.

— Perséfone? Eu estava brincando... Claro que pode montar Órion — ele assegurou, confuso.

Por que ela não abria a boca? Não era comum que ficasse em silêncio por tanto tempo.

— Ahn... obrigada. — Os olhos de Lina se desviaram para o rosto moreno. — Sinto muito, eu... estava distraída.

Hades anuiu, compreensivo.

— Foi um dia difícil para você, imagino. — Ele a fitou com timidez. — Eu pedi a Iapis que verificasse se Eneias havia estado em Elísia.

— Verdade? — As palavras de Hades tornaram a despertá-la. — E o que ele disse?

— Parece que lhe devo um lustre de cristal... A alma do guerreiro está mesmo descansando nos Campos Elísios. E, assim como previu, ele só entrou recentemente no Submundo.

Lina franziu a testa, preocupada.

— O que vai fazer com Dido?

O deus suspirou e limpou outro rastro de suor do rosto.

— Não voltarei atrás em minha decisão. Farei com que Iapis a vigie e... — Ele se interrompeu. A intuição da deusa sobre Dido estivera correta. Por que não incluí-la naquilo? Deu-lhe um olhar avaliador. — O que sugere que eu faça, Perséfone?

Lina sentiu uma onda de prazer invadi-la. Hades valorizava sua opinião.

— Bem, não acho que seja prudente deixá-los juntos em Elísia. Dido jamais vai superar o que sente por Eneias desse modo. — Distraída, ela enrolou uma mecha dos longos cabelos em torno do dedo enquanto considerava o que fazer com o espírito. — Suponho que não queira mandar Eneias embora de Elísia?

— Não. O guerreiro mereceu ganhar o paraíso.

— E já disse que não mandará Dido de volta para a lamentação... Desse modo, creio que a única resposta razoável é permitir que ela beba do rio Lete. Você disse que, quando as almas bebem do Lete, elas se esquecem de suas vidas, mas permanecem essencialmente como eram antes. Então faça com que Dido renasça em outra vida. Talvez ela tenha aprendido alguma coisa durante a lamentação; algo que a presença de Eneias suprime. Sem a lembrança dele acho que... — Lina fez um gesto vago com as mãos. — O que estou tentando dizer é que talvez ela se dê melhor da segunda vez.

O sorriso de Hades quase alcançou-lhe os olhos. Por um instante, ele quis tomá-la nos braços e gritar de alegria.

— Perséfone, como uma deusa tão jovem pode ser tão sábia?

O coração de Lina disparou com o calor de sua expressão.

— Não devia me julgar pela minha aparência. Há muito mais em mim do que apenas um rostinho bonito.

Hades não pôde evitar tocar o lindo rosto à sua frente.

— Está certa novamente. Eu, mais do que todos os outros deuses, deveria saber que não se pode julgar os outros pela aparência ou se baseando em rumores.

Os dedos dele eram quentes, e Lina teve vontade de virar o rosto e comprimi-lo contra a palma larga.

— Estou longe de ser perfeita — disse, a voz saindo num sussurro. — Também cometi um erro em minha decisão sobre Eurídice.

— Mas foi sábia o suficiente para corrigi-lo. Você salvou a pequena alma. Tudo está como devia ser agora. — Enquanto falava, ele deixou seu rosto para tocar a flor da cor do luar que ela havia colocado atrás da orelha. Desviou o olhar do dela, fitando o narciso. — Imaginei que fosse aprovar a decoração de Órion...

Lina parecia sem fôlego quando lhe respondeu.

— Ele ficou lindo com o narciso.

Exprima seus pensamentos em voz alta! , incitou a consciência de Hades.

Ele respirou fundo.

— É uma flor bonita, realmente, mas empalidece em comparação a sua beleza, Perséfone.

Quase como se por conta própria, sua mão se moveu do narciso até a lateral do pescoço de Perséfone, e ele acariciou a pele macia com suavidade.

A deusa prendeu a respiração, e uma exclamação brotou de seus lábios.

No mesmo instante, Hades parou, a mão pairando sobre a curva de seu pescoço, e seus olhos se encontraram.

— Prefere que eu não a toque? — Sua voz soou rouca e estranha.

Perséfone piscou duas vezes.

Hades cerrou a mandíbula e se afastou dela. Que bobagem havia feito! Tinha lido o olhar de Perséfone e não vira nele nenhum desejo, nem tampouco aceitação. Apenas choque e confusão.

— Espere!

Hades respirou fundo outra vez, tentando se controlar. Virou-se para encará-la.

— Não é que eu não queira que me toque... Eu apenas... — Lina se obrigou a parar de gaguejar, em seguida recomeçou em um tom mais controlado e racional: — Deméter me disse que você não se interessava pelas mulheres e que não costumava se divertir com ninfas ou seduzir deusas. Por isso é uma surpresa para mim que esteja tão... tão... — Ela suspirou, frustrada com sua incapacidade em explicar. — Hades, você não é nem um pouco parecido com o deus sisudo e aborrecido que Deméter me descreveu.

Ele ficou ainda mais imóvel. Seus olhos encontraram os dela, e Lina percebeu, surpresa, a satisfação nas profundezas de seu expressivo olhar.

— Os rumores têm fundamento — Hades falou devagar e com clareza, os lábios se curvando num sorriso. — Não costumo me divertir com ninfas ou deusas porque nunca encontrei ninguém que me interessasse...

— Ah — murmurou Lina, incapaz de desviar os olhos de seu olhar penetrante.

Senhor, como ele era sexy !

— ... Até que entrou no meu reino — completou Hades com determinação.

Hades avançou e, num movimento rápido, tomou-a nos braços.

Lina sentiu-se derreter no calor do corpo suado e escorregadio quando ele se inclinou e comprimiu a boca contra a dela. Seus lábios se apartaram e, por um momento delicioso, o beijo se aprofundou.

Então, cedo demais, Hades a soltou.

Lina sentiu-se tonta, como se tivesse estado submersa por muito tempo e não conseguisse recuperar o fôlego.

— Para mim, é preciso mais do que a aparência e rumores — Hades repetiu suas palavras.

— Eu acredito em você.

Ele se curvou para provar de sua doçura novamente.

Lina deixou escapar um gemido rouco de encontro à boca macia, e o som o inflamou ainda mais. Os seios redondos de Perséfone ardiam contra seu peito, e Hades percebeu sua força de vontade se dissolvendo com a paixão que o consumia.

O tremor que o perpassou se transferiu para ela, e Lina deslizou as mãos por seu peito nu, enlaçando-o pelo pescoço.

— Não pare! — sussurrou, tomando-lhe o lábio inferior entre os dentes para mordiscá-lo de leve.

Com um gemido de puro desejo, ele cobriu-lhe as nádegas com as mãos e a ergueu de modo a ter sua maciez firmemente pressionada contra o corpo. Em dois passos, prendeu-a contra a parede da ferraria e capturou-lhe um peito. O mamilo doce e sedutor se retraiu contra a palma de sua mão, e Hades o moldou e acariciou. Com a outra mão, encontrou uma abertura no vestido de seda e seus dedos quentes tocaram a pele nua de Perséfone. Sentia a pulsação latejar nos ouvidos conforme seu mundo reduzia ao desejo selvagem que sentia pela deusa da Primavera.

Presa entre a parede de pedra sólida e fria, e o calor de Hades, Lina sentiu-se consumir em seus braços.

De repente, Eurídice irrompeu na ferraria como um rojão em 4 de julho.

— Perséfone? Ah, aí está voc...Oh! — Estacou, os olhos se arregalando ao notar o rubor de sua deusa e a intensidade com a qual Hades a pressionava contra a parede.

— O que significa isto?! — Hades rugiu, fazendo o chão vibrar em resposta.

— Perdão! — O rosto já pálido de Eurídice ficou ainda mais branco, e ela recuou, apavorada, em direção à porta.

Lutando para recuperar o fôlego, Lina empurrou o peito de Hades com firmeza.

O deus a fitou, os olhos ainda enevoados de desejo.

— Está assustando Eurídice — ela sussurrou e acrescentou em voz mais baixa ainda: — e a mim também.

Nunca havia testemunhado o desejo brutal de um deus. Este a excitara, claro, mas era quase esmagador.

Lentamente, em meio à névoa de sua paixão, Hades reconheceu o medo nos olhos de Perséfone.

Pelas barbas de Zeus! Não queria que ela tivesse medo dele.

Piscou e, com um suspiro que mais parecia o vento em uma tempestade, tornou a colocá-la de pé no chão enquanto suprimia o desejo que ainda o assolava.

— A pequena alma não deve partir! — Hades bradou, e a porta da ferraria se fechou antes que Eurídice escapulisse por ela.

A moça se virou lentamente para encarar o deus.

— Foi uma tolice minha interrompê-los — desculpou-se com voz trêmula. — Por favor me perdoem, eu... eu não sabia.

Lina percebeu que Eurídice estava prestes a irromper em lágrimas.

— Não seja boba, minha querida, não há nada a perdoar. — Ajeitou os cabelos e tentou ignorar o calor que ainda lhe queimava os seios, o colo e as faces. — Eu vim agradecer Hades por ele ter mandado Órion atrás de mim.

A seu lado, o deus suspirou.

— Vou ter que mandar esse garanhão buscá-la mais vezes.

Lina encontrou seu olhar, e este brilhava com uma ponta de diversão, e outra emoção que ela imaginou ser ternura.

Para sua surpresa, Hades tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos, relutante, antes de voltar a atenção para Eurídice.

— Acalme-se, criança.

Eurídice lançou-lhe um olhar dúbio, e ele abriu um sorriso tranquilizador, a voz cheia de uma preocupação quase paterna.

— Por que estava procurando por sua senhora?

A menina olhou dele para Perséfone, que assentiu, encorajando-a.

A expressão da pequena alma começou a relaxar, e ela sorriu de volta para o deus das trevas.

— Iapis me pediu que encontrasse Perséfone. As Limoníades estão chamando por ela.

— Verdade? — Embora ele houvesse detestado a interrupção, não pôde evitar uma onda de prazer. Os espíritos não apenas haviam aceitado a presença da deusa em seu reino, como também a buscavam ativamente.

Eurídice concordou com entusiasmo.

— Iapis disse que elas não vão começar a coleta enquanto a deusa não se juntar a elas.

Lina olhou de Hades para Eurídice enquanto acessava as memórias de Perséfone:

Limoníades: ninfas dos prados e das flores.

Então os espíritos das flores a chamavam para uma coleta, e Hades e Eurídice pareciam felizes com isso...

— É lógico que elas haveriam de querer a presença da deusa da Primavera — Hades comentou.

Ela fingiu saber do que eles estavam falando. Coleta? O que as ninfas poderiam estar coletando?, perguntou, aflita, para os arquivos de sua memória.

No Olimpo, as ninfas das florestas são as responsáveis pela colheita de muitas coisas: ervas para poções, uvas para o vinho, flores para adornar os palácios dos Imortais...

Seu monólogo interior foi interrompido pela voz poderosa do deus.

— Naturalmente, a decisão é de Perséfone — ele falou, parecendo intrigado com sua hesitação.

— Bem, eu...

— Oh, por favor, eu posso ver? — Eurídice correu e agarrou-lhe a mão. — Eu nunca presenciei a coleta do néctar de ambrosia, tampouco vi uma ninfa. Nem em carne e osso, nem em espírito — acrescentou, sorrindo para ela.

Lina sorriu de volta diante da alegria contagiante da menina.

— É claro que pode.

Sentiu uma ponta de alívio. Coletar néctar para ambrosia não podia ser tão difícil. Precisava apenas seguir o exemplo da Limonadas , ou fosse qual fosse o nome das tais ninfas.

— Obrigada, Perséfone! — Eurídice dançou até a porta.

— Posso ir também?

Lina olhou para Hades, surpresa com a pergunta. Afinal de contas, ele era o deus do Submundo. Podia comandar qualquer um dentro daquele reino e com certeza não tinha que pedir sua permissão.

E, no entanto, lá estava ele, fazendo exatamente isso, com um sorriso brincando nos lábios benfeitos. O suor ainda frisava sua pele nua, tornando os músculos morenos de seu peito ainda mais sensuais e desejáveis.

Sentiu nova pontada em seu âmago: uma resposta elementar diante da beleza viril do deus à sua frente.

— Claro que pode — falou meio sem fôlego.

— Ótimo. Agrada-me observá-la — murmurou Hades, repetindo o gesto de tocar suavemente a flor que ela prendera atrás da orelha.

Quando retirou a mão, permitiu que seu dedos roçassem o rosto delicado numa carícia. A deusa ainda estremecia sob seu toque, porém, desta vez, ele viu o reflexo de seu desejo nos olhos cor de violeta.

— Depressa, Perséfone! — Eurídice chamou da porta, olhando para trás em busca de sua senhora. — Mal posso esperar para ver as Limoníades!

Hades suspirou outra vez, reprimindo a frustração por ter de partilhar a companhia de Perséfone.

Mas será que ele poderia tê-la de outra maneira?

Não. Queria que a deusa fosse aceita em seu reino, e com tal aceitação vinha a responsabilidade de compartilhar sua atenção.

Relutante, afastou-se para apanhar o manto escuro que pendia da parede atrás dele, o qual ele enrolou em torno do corpo.

— Já estou indo! — avisou Lina, correndo para alcançar Eurídice quando ela saiu em disparada pela porta e ao longo do caminho.

Hades caminhou a seu lado, e ela percebeu sua presença como um fio elétrico vivo em sintonia com sua própria eletricidade. Estava energizada pela proximidade dele e pela persistente emoção de seu toque. Quanto tempo se passara desde que um homem a tinha feito se sentir tão ofegante e viva?

Tempo demais, disse a si mesma, ignorando a fraca voz da razão que a aconselhava a pensar no que estava fazendo. E que também a lembrava de que ela se encontrava ali apenas para concluir um trabalho; que não sabia nada sobre imortais, Limoníades, néctar, ou...

O caminho fez uma curva abrupta depois do estábulo e se abriu para a extensão dos jardins dos fundos do palácio. Lina parou, segurando o ar nos pulmões, surpresa.

Várias formas feitas de luz lotavam as primeiras camadas do vergel gradeado. Conforme ela avançou, se fazendo presente, várias delas tremeram e, em seguida, com um ruído muito parecido com o arrulhar de pombos, foram se aproximando até que a cercaram junto a Eurídice e Hades.

Lina as fitou, perplexa. Mulheres nuas! As luzes pairando em torno dela e murmurando eram centenas de mulheres nuas...

Eram pequenas e delicadas.

Mas cada uma delas era única e bela por si mesma: como flocos de neve ou pétalas de uma flor.

Não bastasse isso, saindo da parte traseira de cada pequena alma havia um par de asas diáfanas e cintilantes, finas como névoa.

Eurídice deu uma risadinha nervosa.

— Por que nenhuma delas está vestida?

O eco do riso de Eurídice varreu as Limoníades como água ao longo de um riacho de pedras.

— Olhe mais de perto, criança — Hades respondeu com sua voz profunda. — Estão vestidas com a luz, o riso e o brilho de seus espíritos. São as únicas vestes de que as almas das flores e dos campos necessitam.

— Elas são perfeitas! — exclamou Lina.

O som da voz da deusa provocou uma onda de entusiasmo no grupo, e várias das ninfas rodopiaram e pularam de alegria.

Junte-se a nós, deusa da Primavera. Abençoe a coleta do néctar, que se tornará a ambrosia do Submundo!, falaram com uma voz melódica que parecia magia fluindo por meio da brisa suave.

Venha conosco, Perséfone. As flores aguardam a deusa da Primavera.

As vozes eram encantadoras e, instintivamente, o corpo de Lina respondeu, fazendo-a se afastar de Eurídice e Hades para se juntar às Limoníades.

Notas musicais e o chiar de centenas de asas a envolveram. Sentindo como se seus pés flutuassem no ar, ela rumou com os espíritos para os prados repletos de flores.

As Limoníades começaram a cantarolar. O som zuniu pelo sangue de Lina, lembrando-a da sensação das noites quentes de verão, do cheiro de feno recém-cortado e do sabor do chocolate.

Fascinada, ela observou as formas brilhantes se separando e descendo sobre os botões. Com suas asas ofuscantes, elas pairavam acima do solo como beija-flores para, em seguida, mergulharem em meio às pétalas abertas.

Maravilhada, Lina viu as ninfas tirar as gotas de ouro dos miolos, e Hades foi esquecido. Eurídice deixou sua mente. Seu único pensamento era o quanto gostaria de se juntar às Limoníades.

Sim! Chame o néctar para você. Tome o lugar que lhe é de direito como deusa da Primavera, em meio às Limoníades.

A voz no interior de Lina soou inquieta, impaciente.

E foi o empurrão de que ela precisava. Com o coração batendo no ritmo da canção das ninfas, Lina se aproximou de um punhado de tulipas cor de leite. Seus caules eram longos e grossos, e suas flores se encontravam abertas, expondo o amarelo encrespado dos pistilos.

Precisava chamar o néctar.

Estreitou os olhos, colocou um dedo em uma das tulipas e se concentrou. A primeira gota de líquido dourado jorrou da flor com força, e ela deu um gritinho de surpresa, vendo-a grudar em sua mão, pegajosa.

A risada profunda de Hades vibrou pelo ar junto ao trinado alegre das Limoníades.

Lina olhou o deus por cima do ombro, e os olhos escuros brilharam para os dela.

Com um olhar atrevido, ela jogou os longos cabelos para trás.

Foi então que um pensamento a invadiu: sentia-se viva, incrivelmente sensual e sedutora.

Prendeu o olhar de Hades, sorrindo com malícia. Arqueou a sobrancelha, levantou a mão e deixou que a língua rosada lambesse o néctar doce e licoroso de seu dedo.

As Limoníades responderam com assobios e trinados de incentivo enquanto Hades congelava, de queixo caído e sem fala.

Devagar, senhora, devagar — ronronou uma das Limoníades. — O néctar já

deseja vir até você. Precisa apenas persuadi-lo, não comandá-lo. Ele não é nenhum deus...

Sem querer ver a reação de Hades às palavras da ninfa, Lina reprimiu um sorriso e voltou a se concentrar no canteiro de tulipas. Cutucou outra flor e pediu seu néctar em pensamento.

Uma pérola de ouro brotou de dentro da tulipa e pousou na ponta de seu indicador.

Lina sorriu, triunfante, para a ninfa.

A coleta! Junte-se à coleta.

Ainda sorrindo, ela olhou ao redor. Enquanto voejavam de flor em flor, chamando o néctar, cada uma das ninfas juntava a seu lado um pequeno monte de gotas douradas.

Ela poderia fazer isso, decidiu. E começou a fazer sua própria pilha.

Sem parar para pensar, compreender ou questionar, Lina se valeu da voz perfeita de Perséfone para harmonizar com os espíritos das flores.

Quando se juntou às Limoníades em sua canção, o jardim de Hades pareceu vibrar com uma sensação quase palpável de alegria e, em seguida, desabrochou em uma gloriosa floração. Cada uma das espécies se abriu, oferecendo as gotas de seu néctar dourado.

Em meio a tudo aquilo, Perséfone brilhava, e Hades não conseguia tirar os olhos dela. Em toda a sua existência, ele nunca desejara tanto alguém como desejava aquela deusa. Estava consumido pela paixão.

O pensamento fez sua alma imortal se arrepiar. O que aconteceria quando ela fosse embora? E ela teria de ir, lembrou a si mesmo. Perséfone era a deusa da primavera e pertencia ao Mundo Superior, enquanto ele era o deus do escuro Submundo, desprezado por tudo o que era vivo.

Tudo, exceto por ela.

Mas, por quanto tempo?

Uma dor dentro dele pulsou como se com vida própria, e Hades enfim compreendeu o que a causava; o que Perséfone tinha despertado junto com a esperança:

Solidão.

Cerrou o maxilar contra sua aflição e, não querendo mais olhar a bela e jovem deusa brincando alegremente entre os espíritos de seu reino, fez meia-volta para a direita, trombando com Eurídice.

Reprimiu um gemido enquanto impedia a pequena alma de ir ao chão e obrigou a expressão rígida do próprio rosto a se transformar num sorriso.

— Eu não a vi, criança.

Desviou-se dela, contudo Eurídice o fez parar outra vez.

— Não está indo embora, está? O que devo dizer a Perséfone? — ela perguntou com sua voz doce e tímida.

— Diga-lhe que tenho questões do reino para resolver — ele resmungou por entre os dentes.

Os olhos de Eurídice o fitaram, enormes, parecendo chegar até sua alma. Sua decepção era evidente, assim como sua preocupação por sua senhora.

Hades passou a mão pelo cabelo.

— Diga à sua deusa que desejo cavalgar com ela amanhã.

O rosto da pequena alma se iluminou com um sorriso.

— Perséfone vai adorar a notícia.

O suficiente para ficar comigo?, ele quis perguntar.

Em vez disso, tratou de se cobrir com seu habitual manto de seriedade, e de ter a certeza de que, quando falasse, sua voz estivesse livre de qualquer emoção.

— Enviarei Iapis para acompanhá-la até os estábulos depois do amanhecer.

— Sim, senhor.

Hades se afastou, resmungando sobre as deusas e mulheres em geral.

Assim que estava fora de vista, Iapis se materializou ao lado de Eurídice.

A moça olhou para o daimon, e seu olhar não traiu nenhuma surpresa por aquela súbita aparição.

— Como foi? — ele perguntou.

— Bom o suficiente — disse, parecendo mais sábia do que seus poucos anos lhe permitiriam.

— Acha que ele levou o meu conselho a sério e pensou nela como um dos mortos?

— Não por muito tempo — Eurídice garantiu, enigmática, relembrando o rosto corado de sua senhora e o calor no olhar de Hades.

— Não por muito tempo?

O daimon sorriu e, pegando a mão da pequena alma na sua, levou-a aos lábios para beijá-la com delicadeza.

O rosto pálido de Eurídice ganhou cor, porém seus olhos enormes o fitaram com firmeza, e ela devolveu o sorriso.


Capítulo 17

— Adeus! Obrigada! — Lina acenava para as Limoníades conforme os brilhantes espíritos desapareciam a distância, carregando com eles as resplandecentes gotas de néctar dourado, e sua despedida musical chegava até ela pelo vento.

— Isso foi maravilhoso de assistir, Perséfone. — Eurídice era toda sorrisos quando Lina se juntou a ela à margem dos jardins.

— Estou tão feliz que tenham me chamado! Foi uma expe­riência incrível — ela respondeu com voz embargada. Sentia-se meio zonza, porém cheia de energia, como se tivesse tomado cappuccino s demais antes do café da manhã. — Oh, Eurídice, este mundo é incrível! — Riu, passando um braço em torno do espírito da moça. Olhou ao redor, então. — Hades se foi? — perguntou, tentando soar indiferente.

— Ele precisava cuidar dos assuntos do reino... Mas solicitou sua presença nos estábulos, amanhã — Eurídice acrescentou depressa, quando a expressão iluminada da deusa ameaçou desaparecer.

— Para eu montar Órion outra vez, na certa. — O sorriso de Lina se tornou sonhador no momento em que ela pensou no garanhão negro. Mal podia esperar pelo passeio do dia seguinte...

Assim como não via a hora de ver Hades outra vez.

Sua mente viajou, misturando imagens do deus de corpo suado, da música sensual das Limoníades e do modo como os lábios do senhor do Submundo tinham colado nos dela.

Sentiu seu corpo jovem e “emprestado” formigar com sensualidade.

— Aquele cavalo me assusta — comentou Eurídice.

Lina piscou para o rosto pálido da moça, reorientando-se.

Merda! Precisava parar de sonhar acordada.

— Não tem o que temer. Órion é como um cachorrinho nas minhas mãos — afirmou, despreocupada, tentando não pensar no dono de Órion e em como este parecera bem diferente de um animalzinho sob seu toque...

— Acho que vou me manter longe dele — decidiu a pequena alma.

Lina suspirou, dizendo a si mesma que aquela era a atitude que deveria adotar acerca de Hades. Ele era atraente demais. Perigosamente atraente. Tinha de ficar longe dele.

O aperto que sentia no baixo ventre, contudo, dizia o contrário.

Céus! , ela precisava parar de pensar em Hades.

— Ei, que tal arrumar algo para eu beber? — Arqueou as sobrancelhas para Eurídice. — Essa coleta de néctar me deu vontade de tomar ambrosia.

— Também deixou você toda lambuzada — emendou a moça.

Lina olhou para si mesma. Estava inteira salpicada de manchinhas douradas e brilhantes. Tocou uma delas e, em seguida, levou o dedo à boca. Tinha gosto de cana-de-açúcar misturada com mel e algo parecido com caramelo; ou manteiga de caramelo, talvez. Era uma delícia.

Mas Eurídice tinha razão: ela estava um horror. E também não podia ficar pensando em como seria bom se Hades lambesse o doce de seu corpo...

— Preciso de uma chuveirada. Fria, de preferência — murmurou.

— Chuveirada? Gostaria de ser pega por uma chuva fria?

Lina riu.

— Não exatamente. Uma chuveirada não tem a ver com a chuva que cai do céu. É uma espécie de banho em que se fica de pé e a água é derramada sobre você.

— Ah, isso parece o ritual de banho da minha mãe, embora ela não gostasse de água fria — comentou Eurídice.

— É mesmo? — Lina perguntou, surpresa. — Que tipo de ­ritual de banho tinha sua mãe?

A moça sorriu, travessa.

— Eu poderia mostrar à senhora. Provavelmente seria uma maneira bem mais fácil de se livrar desse néctar... — Ela tocou uma das gotas, e esta se dividiu em vários fios que continuaram ligados à pele da deusa. — Isso vai transformar sua água de banho num mingau.

— Eurídice, você é um gênio! Esta noite estarei em suas mãos.

A pequena alma tinha virado uma “minissargento”. Na segunda vez em que pisavam no palácio, Eurídice distribuía ordens e comandava um verdadeiro exército de servos. Não permitia que Lina fizesse nada, exceto ficar sentada à penteadeira, bebericando ambrosia.

— A deusa prefere se banhar na varanda.

Lina engasgou com a bebida. Banhar-se na varanda?! O que ela estava pensando?

Naquele momento, enquanto batia o pé delicado contra o chão de mármore, pensativa, parecia dizer: “Sou a ama da deusa, e é melhor se lembrarem disso!”

Sem dar chance a Lina de protestar, Eurídice continuou:

— Minha mãe sempre usou o nosso jardim de inverno... Não! Aí não! — O espírito berrou para dois criados que lutavam para carregar uma enorme banheira para a sala de banho, apontando para a porta do meio da sacada. — Coloquem-na lá.

— Eurídice, a troco de que vamos para a varanda?

— Não se preocupe com nada, Perséfone. Tudo será perfeito. — Ela fez uma careta para um dos empregados que deixou a banheira bater de leve no chão de mármore.

— Senhora... — Iapis entrou na sala e fez uma mesura para Lina antes de voltar a atenção para a pequena alma. — Precisa de mim, Eurídice?

— Sim. — Ela prendeu os cabelos longos e finos atrás das orelhas. — A deusa vai se banhar na varanda e...

— Espere! — Lina interrompeu num impulso. — Não creio que seja uma boa ideia eu me banhar na varanda. Quero dizer, a vista é espetacular, mas eu não ficaria à vontade. — Baixou a voz, de maneira que o daimon e Eurídice tiveram de se inclinar para ouvi-la. — Não quero que um monte de homens me veja nua!

Mesmo que estejam mortos , acrescentou em silêncio.

Eurídice estreitou o olhar como se não entendesse muito bem o que ela estava dizendo, e Lina ficou aliviada ao ver Iapis acenando com a cabeça.

— Com a deusa Ártemis também é assim. Ela não permite que sua nudez seja vislumbrada por qualquer mortal, exceto por suas damas de companhia. Mas esse problema pode ser facilmente resolvido, Perséfone. Basta eu ordenar que todos os espíritos fiquem longe de sua ala do palácio e dos arredores.

Eurídice contemplou o daimon com um sorriso cheio de calor, e Iapis pareceu satisfeito consigo mesmo.

Lina sentiu como se tivesse sido apanhada num redemoinho de boas intenções que girava ao seu redor... determinado a livrá-la de suas roupas.

— Eu não quero dar trabalho — falou, impotente.

— Não é trabalho nenhum —assegurou o daimon.

— E você é a deusa da Primavera! — lembrou Eurídice.

Aparentemente, aquela era a palavra final.

Resignada, ela relaxou, decidindo não se importar se sujava de néctar a cadeira estofada de seda.

Afinal, era a deusa da Primavera.

Assistiu ao turbilhão de preparação para o seu banho. Todos pareciam ansiosos por limpá-la.

Eurídice sacudiu a cabeça, séria, quando um dos criados não trouxe o número correto de toalhas da sala de banho. Na realidade, os servos pareciam estar com medo da pequena alma.

Ao menos esta não tinha ficado traumatizada com os acontecimentos do dia.

Lina tomou um gole de ambrosia, pensativa. Orfeu descera para o Submundo naquela mesma manhã? Era como se isso tivesse acontecido havia muito tempo.

E como ela podia ter conhecido Hades apenas dois dias antes?

O que Deméter tinha dito, mesmo? Algo sobre a passagem do tempo ser medida de forma diferente pelos deuses...

Suspirou. Seus instintos lhe diziam que as palavras da deusa eram verdadeiras. A passagem do tempo era mesmo diferente naquele lugar. Tão diferente como sua “vida emprestada”.

E seu coração também não parecia o mesmo. A capa de cinismo que o cobrira por tantos anos parecia não tê-la acompanhado até o Mundo dos Mortos.

Mas cobiçar um deus...

Lina sentiu o estômago se apertar. Não era estupidez demais?

— Senhora, vou deixá-la aos cuidados de Eurídice e das servas. E fique tranquila: nenhum mortal ousará pôr os olhos em sua pessoa. — Iapis curvou-se para ela.

— Iapis! — Um pensamento repentino fez Lina chamá-lo de volta. — Disse que nenhum mortal poderá me ver, mas, e quanto a Hades? Onde ele está? — Ela fingiu não perceber que seu rosto ardia.

O daimon permaneceu impassível.

— O senhor do Submundo foi para os Campos Elísios. Parece que foi buscar Dido e escoltá-la até o rio Lete.

Embora Lina houvesse ficado satisfeita com a notícia de que Hades havia seguido seus conselhos, franziu a testa ao apontar além da porta de vidro aberta da varanda.

— Os Campos Elísios ficam naquela direção?

— Alguns deles, senhora. — Os olhos do daimon demonstraram compreensão. — Vou ao encontro do meu senhor e o guiarei de volta ao palácio por um percurso diferente. Fique tranquila, Perséfone. Hades não gostaria de perturbá-la em sua privacidade.

— Oh, não, claro que não — ela respondeu às pressas.

— Aproveite seu banho, deusa — reforçou Iapis.

Eurídice o seguiu até a porta.

— Se a sua senhora precisar de qualquer outra coisa, basta que envie uma das criadas até mim, e eu cuidarei para que seja atendida.

A pequena alma concordou com um gesto de cabeça.

— É muita gentileza sua, Iapis — disse, saindo para o corredor. Uma vez neste, baixou a voz para que Perséfone não pudesse ­ouvi-la. — Hades foi mesmo para Elísia?

— Sim — o daimon confirmou num sussurro.

— Então não o impeça de voltar pelos jardins.

Iapis respondeu com um sorriso lento e deu-lhe uma piscadela.

A moça precisou apertar os lábios para não rir.


Eurídice conversava alegremente enquanto ajudava Lina a se livrar dos respingos de néctar. Estavam em pé no meio da espaçosa varanda que dava para o glorioso terreno dos fundos do palácio.

Terreno que se encont rava vazio de espíritos, homens ou não, observou Lina, satisfeita. Bem à sua frente, estava a banheira que Eurídice havia feito os servos trazerem, e, ao lado desta, uma pequena mesa coberta com garrafas e esponjas.

Próximo dali, avistou uma espécie de pufe e, perto da extremidade da sacada, a espreguiçadeira que a pequena alma insistira para que os servos arrastassem para fora do quarto. Sobre a chaise divisou uma bandeja primorosamente esculpida em madeira, repleta com lindas romãs já descascadas e com suas sementes cor de granada escorrendo.

E, claro, uma garrafa de cristal cheia de ambrosia gelada.

Lina sorriu. Não havia ambrosia que bastasse para uma deusa.

A varanda, assim como o restante do palácio, era opulenta e única. Não se estendia apenas para fora das paredes do quarto: fazia uma curva graciosa, tal como a metade de um coração, até as balaustradas que precediam uma escadaria circular em mármore. Estas davam num passeio ladeado por flores que, por sua vez, levava até a primeira camada dos jardins de Hades. Era sua entrada particular para o paraíso.

Lina continuou admirando o cenário deslumbrante enquanto Eurídice a livrava das roupas. A pequena alma não tinha exagerado quando afirmara que a vista dali era espetacular.

Agora a luz também começara a mudar. O tom pastel do céu estava escurecendo, e as cores se aprofundando: do rosa para o coral, e do violeta para o roxo.

De repente, várias tochas se acenderam por todo o jardim, fazendo-a pular com a surpresa.

— Não precisa se preocupar, senhora. — Uma das moças que tinha ficado para assistir Eurídice falou com voz de criança. — As tochas se acendem sozinhas. Não há nenhum mortal nos jardins olhando sua nudez.

— Qual é o seu nome? — ela perguntou para o espírito da moça.

— Hersília. — Ela abaixou a cabeça timidamente.

— Obrigada por me lembrar de não ser tão tola, Hersília. — Lina sorriu para a criada.

Eurídice tirou a última camada de seda de sua cintura e inclinou-se para ajudá-la com os chinelos de couro.

— Agora é só entrar na banheira, Perséfone — orientou com segurança.

Lina sentiu a banheira de mármore fria com os pés descalços e pensou que era como se estivesse entrando em uma tigela de cereais gigante. A borda chegava-lhe até os joelhos.

Estava prestes a dizer que se sentia como uma Fruit Loop pelada quando Eurídice subiu em cima do pufe.

— Podem mandar os cântaros!

As demais criadas tinham formado uma fila que saía da varanda, passava pelas portas de vidro e ia até o banheiro. De lá elas começaram a passar, de mão em mão, cântaros de argila em forma de ampulheta cheios de água que, para o prazer de Lina, Eurídice entornava sobre sua cabeça.

Outras servas passaram sabão em esponjas macias como bolas de algodão e, lenta e gentilmente, começaram a limpar sua pele.

A reação inicial de Lina foi ficar muito quieta e rígida, com os braços abertos em “T”.

Então Eurídice começou a cantar baixinho.

Logo as outras almas se juntaram a ela, e um coro de doces vozes femininas preencheu a varanda:


Além dos limites dos portais,

coroada com cabelos de seda, ela se eleva,

Ela, que todas as coisas congrega

em suas mãos macias e imortais.


A canção era lenta e sensual, como a batida do bolero, e mexeu profundamente com Lina.

Intrigada, ela acessou as lembranças de Perséfone.

Elas cantam antigos louvores para a beleza da deusa, o que é uma grande honra.

Uma grande honra...

De repente, não mais importava que ela estivesse usando um corpo que não era o seu. Sentia-se viva, bela e dotada com o poder extraordinário de uma deusa.

Lina relaxou o corpo. Respirou fundo e exalou todo o estresse, todos os receios e inibições de sua vida mortal. Sua pele cor de marfim formigava, e ela começou a balançar graciosamente no ritmo da música.


Seus lábios macios são mais doces

do que o amor que por ela espera

Mas nenhum mortal verá a deusa

como mais do que uma quimera.


A água quente escorria por seu corpo nu; um rio de seda que as esponjas percorriam. Lina virou-se, rindo e se divertindo com as sensações que cascateavam por sua pele. Sentiu a brisa da noite lambendo as laterais de seu corpo. Ela era quente, mas, em contraste com o calor da água, esta lhe provocou um arrepio e fez com que seus mamilos se contraíssem eroticamente.

Seu riso foi contagiante, e logo as criadas se juntaram a ela, fazendo a alegria fluir pelo palácio e pelos jardins do deus dos Mortos.


Com passos lentos, Hades seguia, pensativo, pelo caminho que serpenteava no meio da floresta, a qual separava os jardins do palácio dos Campos Elíseos.

A trilha o conduziu até a terceira camada do jardim. Ele estava feliz por ter ouvido o conselho de Perséfone. Tinha sido fácil encontrar Dido, e ele só precisara localizar Eneias em seguida. O espírito da moça havia estado nas proximidades, consumindo-se miseravelmente enquanto seguia cada movimento do guerreiro às escondidas.

Dido nunca quisera beber do Lete, tal era a intensidade de seu amor não correspondido.

Porém sua alma pertencia a ele, Hades, e o que o deus ordenara ela fora obrigada a fazer.

No final, como sempre acontecia, quando Dido se aproximara do Lete, seu espírito se vivificara, e a voz sedutora do rio a tinha encantado, tornando sua transição suave.

Mas não era a lembrança de Dido que retardava os passos de Hades. Era Perséfone. A deusa assombrava seus sentidos. Embora ele a tivesse tido nos braços apenas brevemente, ainda sentia o cetim de sua pele contra a dele, saboreava a doçura de sua boca, sentia o cheiro de mulher que exalava de seu corpo.

E ainda podia ouvir sua risada.

Praguejou em voz baixa. Aquilo era amor? Precisava se consumir pensando nela?

O riso de Perséfone soou outra vez. Escutando com atenção, Hades parou.

Então respirou, aliviado. Não era imaginação sua. A risada vinha do palácio, trazida pela brisa morna.

Agora podia discernir outras vozes junto com a de Perséfone. Algumas rindo, outras cantando. Mas todas deliciosamente femininas.

Quando se pôs a andar outra vez, seus passos já não eram morosos.

Entrando na segunda camada dos jardins, ele vasculhou os fundos de sua morada. O dia tinha se transformado em noite, e a luz das to chas pouco ajudava em sua visão. Como de costume, as jane­­­­-
las do palácio encontravam-se alegremente iluminadas, e ele pôde vislumbrar silhuetas curvilíneas delineadas contra as janelas do quarto de Perséfone. Considerou estranho que estas estivessem na varanda, contudo, apertou o passo.

Quando chegou à escada que o levaria até a primeira camada, teve a certeza de que ouvia respingos de água. Galgou os degraus de três em três e subiu depressa até o nível do palácio. Ali a vegetação e as flores formavam um verdadeiro labirinto, e Hades não teve uma visão clara da sacada de Perséfone até que chegou muito próximo do limite dos jardins.

Deu a volta em uma cerca viva e parou como se tivesse batido contra uma parede invisível. Perséfone estava nua. Em pé no centro de uma enorme banheira, parecia uma estátua primorosa que tinha ganhado vida.

Um pensamento passou por sua mente entorpecida: de repente, ele compreendia a obsessão de Pigmaleão por Galateia. Sua mente pareceu deixar de funcionar, e ele se tornou nada mais do que um receptáculo para o desejo que chamuscava seu sangue.

Eurídice despejava cântaros de água quente sobre Perséfone, enquanto criadas semitransparentes ensaboavam sua pele e cabelos. A deusa ria e, brincando, jogava água nas almas, as quais cantarolavam uma melodia lenta e sedutora entre risos. A luz era pouca, porém ele podia ver a silhueta de Perséfone contra as janelas iluminadas e a água varrendo sua pele de marfim.

Os olhos de Hades percorreram o corpo curvilíneo, e seus dedos formigaram quando ele se lembrou da curva delicada daquele pescoço sob sua breve carícia.

Olhou para os seios. Eram cheios e redondos, e os mamilos se mostravam rijos, implorando pelo toque de seus lábios e lín gua.

Sentiu as entranhas se contraírem e latejarem dolorosamente com o calor da luxúria, e apertou os dentes para conter o gemido de frustração que brotou de dentro dele.

Mas não se afastou. Não parou de olhar para ela. Não conseguia fazer isso.

A cintura de Perséfone se estreitava com graça, para então se abrir em quadris benfeitos. Suas pernas eram longas e bem torneadas.

Os olhos dele se fixaram no convidativo “V” de pelos escuros. Este brilhava com a água que escorria do interior das coxas roliças.

Como se pressentindo sua presença, Perséfone ergueu o queixo e desviou o olhar das alegres servas para vasculhar os jardins. Hades teve a certeza de que seria descoberto, contudo seu manto escuro como a noite se mesclou às sombras, e ele passou incólume sob o olhar da deusa.

Eurídice derramou um último cântaro de água sobre Perséfone e, em seguida, a pequena alma pediu a uma das criadas que lhe trouxesse toalhas. As moças ajudaram a sorridente diva a deixar a banheira e começaram a secar seu corpo.

Já era hora de ele ir embora.

O riso de Perséfone flutuou até ele, entretanto, e seus olhos se recusaram a abandoná-la, buscando outros vislumbres de sua nudez.

Hades respirou fundo. Sua consciência lhe dizia que ele deveria ir, mas o desejo recém-despertado, a saudade e a solidão a abafaram.

As criadas terminaram de enxugar o corpo da deusa da Primavera. Seus cabelos caíam numa cascata de mechas úmidas, as quais Eurídice reuniu e amontoou sobre sua cabeça. Em seguida, a pequena alma derramou o líquido espesso de uma garrafa de vidro na mão e começou a massagear o óleo na pele de sua senhora. Duas outras servas se juntaram a ela.

Hades viu Perséfone fechar os olhos e um sorriso sensual curvar seus lábios enquanto as mãos das moças ungiam seu corpo.

Sentiu a respiração se acelerar. O óleo capturava as luzes que cintilavam através das janelas do quarto, e logo o corpo da deusa brilhava num luminoso convite.

A dor que lhe fazia latejar as entranhas tornou-se insuportável, e Hades buscou com a mão o membro ingurgitado. Sentiu a respiração sair em pequenos espasmos conforme afagava a si mesmo, sem nunca tirar os olhos do corpo da deusa.

Estreitou o foco até que ela era tudo o que existia em seu mundo. Imaginou que eram suas as mãos que escorregavam com óleo pelos seios fartos, pelas nádegas firmes e deliciosas, para depois viajar até as coxas de marfim e encontrar seu centro úmido. Ali ele queria mergulhar e bombear seu desejo dentro dela, cercado por seu calor aveludado...

O orgasmo rasgou seu corpo, explodindo com tal intensidade que o levou a cair de joelhos. Ali ele permaneceu, ajoelhado na sombra, sozinho, lutando para recuperar o fôlego.

E, ainda assim, seus olhos enevoados de desejo continuaram presos à deusa da Primavera.

— Perséfone... — O nome dela saiu num sussurro de seus lábios.

 

 

 


C O N T I N U A