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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEUSA DE TROIA / P. C. Cast
DEUSA DE TROIA / P. C. Cast

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

Tétis dos Pés Prateados subiu das profundezas da angra escondida. Seu filho já se encontrava ali, esperando por sua chegada. Com aquela calma estranha, quase sobrenatural, que lhe era peculiar desde criança, estava de pé na praia, mirando com intensidade o horizonte pálido a distância. Ainda não tinha percebido sua presença, por isso ela aproveitou a oportunidade para observá-lo com cuidado.
Embora vivesse havia apenas dezesseis verões, ele lembrava mais o homem e guerreiro que se tornaria do que a criança que ela carregara junto ao seio não muito tempo  antes. Era magnífico. Seu filhote de águia dourado, seu orgulho, seu amor... seu Aquiles.
E agora a alma dela chorava pelo que o oráculo de Zeus manifestara.
Tétis desejou poder negar a verdade ou simplesmente fugir das escolhas que o grande deus revelara. Mas ela também era uma divindade, nascida da água, filha de Nereu,
um antigo deus do mar, e sabia muito bem que as profecias dos deuses não podiam ser evitadas; que fugir delas deixava apenas caos e dor, e que vidas eram arruinadas como consequência. Não se podia evitar o destino, portanto era preciso suportá-lo.
Ao menos fora dada uma escolha a Aquiles.
A ponta de esperança que o pensamento proporcionou a Tétis não durou muito. Desvencilhou-se de seu coração enquanto ela continuava a olhar para o homem maravilhoso em que o filho estava se tornando.
Antes da concepção de Aquiles, o oráculo havia predito que ele seria melhor do que o pai - o que a libertara dos aborrecidos assédios de Zeus e Apolo. Afinal, nenhum dos dois deuses suportaria que um filho o ofuscasse. E se casara com Peleu, o Rei dos Mirmidões.


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Um leve sorriso tocou seus lábios rosados e benfeitos. Peleu a desejara tanto que, frente às suas coxas brancas e macias, as previsões do oráculo não tinham significado absolutamente nada para ele.
Tétis jogou para trás o cabelo loiro-platinado. Ela não havia, claro, conseguido se unir a um mortal, fosse ele rei ou não; mas ainda pensava em Peleu com muito carinho. Talvez fosse visitá-lo mais tarde, naquela noite. Ele sempre a acolhia com alegria em sua cama, e ela haveria de precisar da distração da paixão após ouvir a escolha de Aquiles.
Infelizmente, conhecia o filho bem demais. O que o oráculo de Dodona profetizara iria acontecer, sem dúvida.
Tétis respirou fundo e se preparou.
- Aquiles! - chamou.
A resposta dele foi instantânea. Virou-se para ela com um sorriso radiante e uma reverência tão profunda e respeitosa que até a própria Hera teria ficado satisfeita.
- Minha mãe, que notícias me traz do oráculo de Dodona e de Zeus?
Tétis deslizou até ele, estendendo a mão macia.
- Não vai dar nem mesmo um "Olá" à sua mãe? Oráculos e profecias são tudo o que lhe importam, filho meu?
Os olhos azuis de Aquiles, do mesmo turquesa das águas em que a mãe nascera, cintilaram com humor.
- Perdoa-me, grande deusa do mar! - Ele tomou-lhe a mão, beijou-a com carinho e, em seguida, colocou-a em torno do braço já bem musculoso enquanto a tirava das águas
quentes do mar Egeu. - Como vai de saúde, minha mãe? Alguma mudança nestes dois dias, desde a última vez em que a vi?
Ela o empurrou no ombro, que parecia ainda mais sólido do que dois dias antes, quando haviam almoçado juntos naquela mesma enseada.
- Minha saúde é perfeita, como sabe muito bem. Sou apenas uma humilde deusa do mar, e não uma dos Doze Olímpicos; portanto, não precisa ficar me bajulando... como
também bem sabe.
Aquiles se inclinou e a beijou na face.
- Você é a minha deusa, mãe; e mais divina para mim do que qualquer um dos Doze.
Em vez de responder com suas habituais brincadeiras, Tétis encontrou os olhos brilhantes do filho.
- Não se brinca com os deuses. Se eu desrespeitasse um dos Doze Olímpicos, mesmo que apenas em pensamento, seria um insulto muito grave, e minha arrogância poderia
ser severamente punida.
Aquiles franziu a testa.
- O que aconteceu, minha mãe?
Tétis suspirou e se desvencilhou do braço do filho. Em silêncio, caminhou até uma pedra do tamanho de uma cadeira e sentou-se.
Então olhou para Aquiles. Ele estava de pé, com o mar às suas costas, o sol acariciando-lhe o corpo jovem com seus raios dourados. Por um momento, lembrou uma estátua
de ouro de si mesmo; algo que as pessoas - talvez num futuro distante - erigiriam a fim de lembrar as façanhas de um guerreiro cuja vida ardera como um cometa e
se desintegrara cedo demais.
Um arrepio atravessou o corpo de Tétis.
- Mãe? - Aquiles repetiu. Começou a andar em sua direção, porém ela ergueu a mão para detê-lo.
- Será mais fácil se permanecer onde está. - Dessa forma, ela não ficaria tentada a agarrá-lo como se ele ainda fosse um bebê, e lhe pedir que fosse sábio... que
pensasse muito.
Tétis respirou fundo mais uma vez. Quando falou, sua voz soou impassível, como se ela própria fosse um oráculo.
- O oráculo de Zeus lhe apresentou duas opções, Aquiles. - Fechou os olhos e recitou: - Um dos caminhos para o futuro o levará a uma vida longa e próspera. Os Mirmidões
irão florescer sob o seu comando. Terá uma esposa fértil que dará à luz muitos filhos e filhas. Irá conhecer a paz, a tranquilidade e o amor. Terá uma vida longa,
plena e rica, e irá morrer tranquilo em seu leito quando sua barba estiver branca, cercado por aqueles que o amam. Será muito pranteado, mas eventualmente seu nome
será esquecido, assim como um grão nas incontáveis areias da história. - Tétis respirou fundo e continuou, ainda sem abrir os olhos. - O outro caminho para o futuro
o fará brilhar mais do que todos os outros reis e guerreiros. Você vai levar os Mirmidões à batalha com uma ferocidade que irá dizimar tudo à sua frente.
O seu fogo vai arder alto, de modo que o seu nome será lembrado por milhares de anos em terras além dos limites do mundo. Mas, como todo fogo que queima alto e forte,
irá se consumir depressa e não chegará a ver o fim de trinta verões. A Fúria vai destruir sua vida. Irá apenas vislumbrar a paz, o amor e a tranquilidade; no entanto,
nunca irá conhecê-los. - Tétis fez nova pausa a fim de se preparar para o que sabia que iria ver, e então abriu os olhos.
Aquiles já exultava. Ela soubera que aquilo iria acontecer no momento em que o oráculo havia recitado as escolhas de seu filho, mas não pudera deixar de alimentar
um fio de esperança. Agora, como uma vela apagada, sua esperança se extinguira.
- Precisa escolher com calma, meu filho. Pense bem. Lembre-se: uma vez que fizer sua escolha, Zeus decretará o seu destino, e o caminho estará definido.
O sorriso de Aquiles foi jovem e indômito.
- Já fiz a minha escolha, mãe. - Ergueu os braços para o céu, pendeu a cabeça para trás e gritou sua decisão para o Olimpo como uma oração aos deuses: - Divino Zeus,
eu te honro pelas escolhas que me deste. Escolho a vida de guerreiro e a fama eterna!
No mesmo momento, o céu acima dele foi rasgado por um trovão ensurdecedor, e um relâmpago intenso, irregular e ofuscante disparou do firmamento sobre seu corpo,
fazendo o rapaz cair de joelhos e preenchendo-o com um poder que literalmente mudou seu semblante, endureceu o rosto liso e o fez crescer a olhos vistos, tornando-o
mais alto e forte. Muito mais do que era até então. Seus olhos brilharam com o fulgor do sangue, e seus lábios se retraíram sobre os dentes em um rosnado feroz quando.
Mais uma vez, ele gritou sua decisão com uma voz irreconhecível:
- Eu escolho a vida de guerreiro e a fama eterna!
Lágrimas escorreram em silêncio pelas faces de Tétis enquanto ela via o filho optar por uma vida curta. Seu filhote de águia, seu Aquiles, parecia um deus dourado.
Orgulhoso, bonito, feroz e imortal.
Mas ele não era imortal. Iria sucumbir em muito pouco tempo. E ela o veria brilhar e se apagar.
Inclinando a cabeça, Tétis enviou sua própria oração ao Olimpo. Não aos gritos, e sim entoada com o poder do coração partido de uma mãe.
- Hera, Deusa de Todas as Mães, tem piedade de mim. Se for possível, deixa que meu filho amado conheça o amor e a paz antes de perecer. Atena, Deusa da Guerra e
da Sabedoria, peço-te com minha alma imortal... Embora Aquiles tenha escolhido a vida de guerreiro, dê-lhe sabedoria para sobreviver à sua própria infantilidade.
Novo trovão rasgou o claro céu grego, e Aquiles riu com alegria, sem perceber o gracioso pavão que, de repente, surgiu ao lado de sua mãe. A ave estendeu o pescoço,
altiva, e pousou a cabeça cor de safira contra a coxa da deusa do mar. Em seguida, do outro lado, uma magnífica coruja apareceu, etérea em suas penas brancas. O
olhar sábio da coruja encontrou o de Tétis, e a ave se curvou regiamente para a deusa. Logo depois, ambos os pássaros divinos desapareceram em uma nuvem de poeira
cintilante.
Treze anos mais tarde, no Monte Olimpo
- Vou dizer uma coisa, meus queridos, essa Guerra de Troia já está me torrando a paciência! - declarou Vênus, olhando para Atena com a sobrancelha levantada.
- Não sei por que está me olhando assim! - respondeu a outra deusa, exasperada.
- Atena, minha amiga, isso pode ter algo a ver com o fato de ser a Deusa da Guerra - apontou Hera.
- Sem falar nessa sua obsessão pela segurança de Ulisses, que não ajuda em nada lá em Troia - acrescentou Vênus, antes de erguer o cálice vazio. - Minha ambrosia
acabou!
No mesmo instante, um sátiro galopou para perto, trazendo um jarro reluzente que continha o vinho dourado dos deuses. Vênus soprou dois beijos na direção do entusiasmado
macho, e este exultou em agradecimento à atenção da deidade. Curvou-se para lhe acariciar os pés e, em seguida, trotou com relutância para longe do salão.
- Mima demais essas criaturas - acusou Atena, franzindo a testa para o sátiro. - E, continuando, foi você quem incitou Ulisses a se apaixonar por mim, lembra-se?
- A deusa de olhos cinzentos jogou para trás o cabelo dourado. - Portanto, nosso relacionamento é culpa sua.
- Se não fosse tão gelada, talvez tivesse uma relação de verdade em vez de décadas de frustração e obsessão sexual - Vênus resmungou.
- O quê!? - Atena exigiu, estreitando os olhos.
- Eu só estou dizendo...
- ... que a Guerra de Troia tornou-se muito aborrecida - Hera interrompeu com firmeza. - Eu mesma estou revoltada com esses últimos rumores. Já é ruim o suficiente
que Agamenon e Menelau culpem a pobre Helena pelo início dessa luta, quando a verdadeira causa foi sua cobiça pelas riquezas de Troia e seu orgulho exagerado.
Atena lançou um olhar enviesado na direção de Vênus.
- Por acaso você tem algo a ver com a paixão de Paris por Helena?
A Deusa do Amor bufou de leve.
- Menelau não deu a mínima para a beleza de Helena. O homem é um bronco, sem consideração. Tudo o que fiz foi criar um pequeno feitiço de amor para deixar o idiota
com ciúme. Eu não fazia ideia de que Paris seria tão suscetível e Helena, tão carente.
- Seja qual for o motivo - interveio Hera -, é ridículo que os Gregos estejam atribuindo toda uma guerra a uma única mulher e ao homem que a raptou.
- Homem? Paris não passa de um adolescente controlado pelo excesso de hormônios. Por isso mesmo imaginei que o meu feitiço não fosse criar problemas.
- Por mais ridículo que seja uma mulher ser a causa de uma guerra, esse boato não é nada comparado ao que estão dizendo agora. Ouviram falar que os Troianos acham
que nós três instigamos esse desastre entre Helena e Paris? E não estou me referindo apenas a um feitiçozinho que ficou fora de controle - emendou Vênus.
- Não tem a ver com aquela história da maçã, tem? Ouvi essa versão bizarra meses atrás. Não acredito que isso tenha vingado e ainda esteja se repetindo! - exclamou
Atena.
- Como se nós três fôssemos realmente participar de um concurso de beleza! - Hera zombou.
- Culpa da Discórdia, você sabe. Ela ficou com ódio por não ter sido convidada para o casamento de Peleu e Tétis, então começou o boato - lembrou Vênus. - Sei que
foi ela, pois em todas as fofocas sou chamada de Afrodite. Discórdia sabe que prefiro o meu nome romano. É bem típico dela começar rumores sobre mim usando o nome
que eu menos gosto, só para me irritar. E eu nem estava naquela festa idiota!
- Discórdia sabe mesmo como incomodar - concordou Hera.
- Não é de se admirar que ela não seja convidada para a maioria das festas - emendou Vênus.
- O boato é que Vênus, ou melhor, Afrodite... - Hera fez uma pausa e sorriu para a deusa, desculpando-se - ... deu Helena a Paris como recompensa por ele tê-la escolhido
como a mais bela de nós três.
- Também ouvi esse absurdo. Por isso mesmo essa guerra está me dando nos nervos. Já estou farta de ver Gregos e Troianos culpando as mulheres por tudo. As deusas
principalmente. Queridas, temos que fazer alguma coisa para pôr fim a essa guerra tola. Agora.
- Já faz quase dez anos. Ou melhor, até onde sei, a guerra tem se arrastado pelos últimos nove anos - corrigiu-se Hera.
- É isso mesmo - acedeu Vênus.
- Exatamente - Atena concordou.
- Então o que vamos fazer? - Vênus suspirou. - Eles culpam as mulheres, mas são esses malditos homens do mundo antigo, com suas atitudes arcaicas, que, na verdade,
mantêm as coisas como estão.
- Você sabe que não é culpa de Ulisses - Atena emendou depressa, como sempre, defendendo seu favorito.
Vênus soltou uma risada seca.
- Acredito que esteja certa, Atena - opinou Hera com um gesto de cabeça. - Aquiles e sua ira é que são o ponto central dessa luta.
- Verdade - concordou Atena. - É ele o problema. Se nós o neutralizarmos, assim como seus Mirmidões, os Gregos decerto perderão o elã pela guerra e não manterão
o cerco a Troia. - Visivelmente irritada, a deusa tamborilou um dedo afilado contra o vidro de seu cálice de vinho. - Devíamos ter imaginado que isso não iria dar
em coisa boa anos atrás, quando Tétis evocou nossa ajuda. Se tivéssemos agido na hora, teríamos nos poupado de muitos aborrecimentos.
Hera suspirou.
- Não agimos apenas por conta dos problemas que isso teria causado entre mim e Zeus. De novo.
- Alguém pode me explicar do que vocês duas estão falando? - exigiu Vênus.
- Sabe que Tétis foi ao oráculo de Zeus em Dodona a fim de perguntar pelo futuro do filho, não sabe? - Hera indagou à Deusa do Amor.
- Mais ou menos. Foi algo sobre Aquiles ter uma escolha entre a fama e uma vida longa, não foi?
- Isso mesmo. E o pirralho escolheu a fama, claro - resmungou Atena. - Quando ele fez isso, Tétis invocou a nossa ajuda. Nós a ouvimos e, pelo menos eu, decidi agir
de uma vez. - A deusa encolheu os ombros delicados. - Mas talvez não fosse o momento certo. Preciso admitir que isso nem passou pela minha cabeça.
- Eu também decidi agir. Não quis esperar, temendo que Zeus tentasse me dissuadir. E ainda há essa ira terrível com que Zeus contemplou Aquiles. No momento em que
suas emoções são despertadas - sejam elas boas ou más - ele fica possuído. Parece que nem raciocina - Hera baixou o tom de voz.
- Ouvi dizer que as mulheres têm tanto pavor dele que Aquiles não tem uma amante há anos.
Vênus tornou a bufar.
- Aquiles precisa mais é de uma boa dose de uma dessas mulheres fortes e independentes do mundo moderno! Aposto que isso iria colocá-lo nos trilhos, curá-lo dessa
ira absurda e lhe proporcionar equilíbrio. Tenho certeza de que ele não é mais nenhum adolescente imbecil. Tem um pouco de juízo, e duvido de que queira morrer antes
mesmo que seu cabelo comece a ficar grisalho. - Vênus fez uma pausa para saborear a ambrosia e notou que Hera e Atena a fitavam, atentas. - O que foi?
- Acho que a Deusa do Amor acabou de apresentar a solução para o nosso problema - declarou Atena.
- Sim... E, se ela trouxer uma mulher moderna para Troia, Zeus não vai me responsabilizar por tudo o que acontecer! - emendou Hera.
- Que bom poder ajudá-la em seus problemas conjugais - respondeu a Deusa do Amor, irônica.
- Vai fazer isso ou não? - indagou Atena, com sua habitual franqueza.
- Claro que vou. Estou tão farta quanto vocês duas dessa Guerra de Troia e desses rumores. - Vênus jogou os longos cabelos para trás e tomou um gole de ambrosia
enquanto pensava no passo seguinte. - Estou muito familiarizada com a cidade de Tulsa, no mundo moderno. Seria fácil apontar o meu oráculo nessa direção. Talvez,
se eu bisbilhotar um pouco, possa descobrir a mulher perfeita para Aquiles. - Ela sorriu e deu de ombros. - E, uma vez que eu encontrá-la, posso transportá-la para
cá. Podemos ter uma conversinha com ela a respeito do guerreiro antes de enviá-la para o acampamento grego. Imagino que... - Vênus fez uma pausa e bebericou o vinho,
enquanto as outras duas deusas aguardavam, impacientes.
- Imagina o quê? - incitou Hera.
- Que devamos oferecer a essa moça uma recompensa maravilhosa, ou qualquer coisa assim, por seus serviços.
- Recompensa? Já não é recompensador o suficiente que ela seja escolhida por uma deusa? - perguntou Atena de cenho franzido.
Vênus revirou os olhos.
- Atena, querida, você precisa sair mais. Os mortais modernos, principalmente os do sexo feminino, não se curvam nem sorriem para nós como umas bobas, muito menos
nos adoram. É um sossego andar no meio delas. - Vênus sorriu, lembrando-se de suas aventuras em Tulsa e do amor eterno que havia conquistado lá. - Confie em mim.
- Uma recompensa para a mortal me parece justa - declarou Hera enquanto Atena lançava um olhar enviesado na direção de Vênus. - Por que não lhe conceder uma bênção?
Um favor da Deusa do Amor deveria satisfazer qualquer mortal, moderna ou não.
- Excelente ideia, Hera. - Vênus sorriu, maliciosa, para Atena.
- Parece um bom plano - aquiesceu Hera.
- Sim, estamos todas de acordo - declarou Atena, ainda que um pouco relutante.
Hera levantou a taça.
- À modernização de Aquiles e ao fim dessa maldita Guerra de Troia.
- E às mulheres modernas! - Vênus acrescentou sorrindo.
Capítulo Um
- A Ilíada? Será que ouvi direito? Está lendo essa merda de misoginia? - Jacqueline indagou enquanto procurava, na colorida coleção de vinho tinto da despensa, outro
Shiraz para abrir.
- Anda com problemas para dormir? Quando eu estava na faculdade, Homero foi um santo remédio para a minha insônia - comentou Kat. - Jacky, se está procurando por
outra garrafa do Coppola Shiraz, continua na sacola que deixei perto da porta.
- Como de costume, leu os meus pensamentos, Kat - Jacqueline falou por sobre o ombro enquanto se dirigia para o hall de entrada da casa elegante. Parou perto da
entrada, diante do espelho vintage de corpo inteiro, e deu uma rebolada.
- Bota pra quebrar, garota! - Kat falou rindo.
Jacqueline apanhou a garrafa de Shiraz e voltou para o grupo.
- Eu queria saber rebolar assim! - continuou a outra moça.
- Kat, querida, eu te amo, mas você sabe que nenhuma branca tem molejo suficiente para requebrar como eu. Eu sou gostosa por natureza... - Jacqueline falou arrastado,
num ronronar sexy, enquanto passava as mãos pelo corpo curvilíneo e jogava beijinhos para a melhor amiga.
Sorrindo, desapareceu na cozinha para abrir a garrafa. - Sobre o que estávamos falando mesmo? - gritou de lá de dentro.
- Sobre a pobre da Susie estar lendo a maldita Ilíada. - Kat piscou para a pobre Susie. - Agora, explique exatamente por que decidiu passar por esse calvário.
Susie, a dona da fabulosa casa de 1920, onde o grupo de amigas se encontrava duas vezes por mês para uma noite só de mulheres, deu um longo suspiro e jogou as mãos
para cima, num gesto frustrado.
- Em primeiro lugar, Katrina - usou o nome completo de Kat em um tom que dizia "você está sendo uma menina muito má" -, eu não estou morta, estou na faculdade...
Então apenas me sinto morta. Em segundo lugar, estou lendo a merda da Ilíada porque é leitura obrigatória daquele professor machista idiota, da droga da antepenúltima
aula que sou obrigada a fazer antes de conseguir me formar, e, por fim, na ridícula idade de 48 anos, conseguir o meu maldito diploma.
- Está bem. Agora explique por que uma mulher que é tão bem-sucedida a ponto de a boutique maravilhosa dela - que começou como uma lojinha de acessórios femininos
em uma parte não muito boa de Tulsa - estar agora na quadra mais elegante da Utica Square, assim como na Galleria em Dallas, na Magnificent Mile, em Chicago, e no
delicioso centro de Denver, acha que tem de conseguir um pedaço de papel que diz que ela é inteligente...? - provocou Kat em meio a alguns goles do champanhe que
enchia o cálice alto, fino e gelado.
- Fala sério! - Christy levantou o cálice bojudo de vinho tinto. - Apoiado!
- Também concordo. - Heather levantou a própria taça; em seguida, franziu a testa para a bebida. - Vou dizer de novo. Vou ficar tão feliz quando eu der fim a este
suco de uva espumante e voltar para aquele excelente chardonnay, que sou capaz de me mijar de prazer, ou então fazer isto aqui virar uma festa de arromba. De arromba
mesmo!
- Parece uma boa ideia - concordou Kat. - A festa de arromba... não você se urinar inteira!
- Ei, só falta um mês. Não vai querer conservar esse bebê em álcool até lá - lembrou Christy, esticando-se para acariciar a barriga volumosa de Heather.
- Eu sei, mas estou desesperada por um copo de vinho!
- Foco, mulherada! Estávamos nos solidarizando com Susie por conta do trabalho horroroso que ela tem para fazer sobre a maldita Ilíada - Jacqueline lembrou.
- E eu estava dizendo que não acho que ela precise de um pedaço de papel que prove o quanto é "inteligente" quando Susie já é incrivelmente bem-sucedida - completou
Kat.
- Isso é fácil de dizer para uma mulher que tem mestrado em Psicologia - contrapôs Susie, apressando-se para não ser interrompida por Kat. - Na verdade, todas vocês
têm esse "pedaço de papel inútil"; para não dizer dois deles! Certo? - Apontou primeiro para Jacqueline. - A sra. Enfermeira de Pronto-Atendimento é bacharel em
Ciências. - Apontou para Heather. - E você tem Mestrado em Pedagogia, não é mesmo?
- Culpada - aquiesceu Heather.
- E você, Christy, é graduada em Educação Física, acertei?
- Verdade, mas, se quer mesmo saber, eu me dou bem como personal trainer por conta da minha experiência em academias, e não porque meus pais insistiram para eu ir
para a faculdade.
- Tudo bem, eu entendo, mas será que não conseguem enxergar o denominador comum aqui? A faculdade faz parte do seu sucesso. Christy na certa ainda poderia estar
trabalhando como personal sem o diploma, mas Kat e Jacqueline não poderiam fazer seu trabalho sem seus pedaços de papel e o conhecimento que adquiriram para obtê-los.
Estou certa?
Kat e Jacky assentiram com relutância.
- E, Heather, não poderia lecionar sem o diploma que tirou antes de começar o mestrado. Certo?
Heather suspirou e acariciou a barriga de grávida.
- Certo, mas não ter que lecionar e ficar gritando feito uma louca com aqueles alunos de Ensino Médio, enquanto meus tornozelos incham como um balão, seria uma maravilha.
Jacqueline estremeceu.
- Deus, adolescentes... Eles são insuportáveis! Não sei como consegue lidar com tanto hormônio.
- Não posso discordar. Eles são criaturas intragáveis mesmo - reforçou Heather.
- Só está mal-humorada porque seus tornozelos parecem dois troncos de árvore. Costumava gostar de lecionar, lembra-se? Volte no tempo, para antes dessa "era gravídica"
- sugeriu Susie.
- Não consigo me lembrar de nenhuma época em que eu não estivesse grávida. Parece que fui enorme e horrorosa assim a vida toda.
- Coma um chocolate, querida - Jacqueline estendeu-lhe a bandeja de trufas.
- Vai estar melhor daqui a um mês - lembrou Kat.
Heather abriu um sorriso cansado para a amiga e devorou uma trufa.
- Sabe, Kat, fico espantada em ver como é otimista - resmungou enquanto dissolvia o chocolate na boca. - E quanto àqueles idiotas que abusam da sua boa vontade na
clínica que gerencia? Se eu tivesse que lidar com aqueles cretinos seria uma verdadeira megera, mas você, não. - Heather fitou a amiga quase como se ela fosse um
experimento científico. - Gosta mesmo daqueles caras, não gosta?
O riso de Kat foi desinibido e contagiante.
- Sim, eu gosto mesmo deles. Sem dizer que nem todos os cretinos com quem lido são homens. Há muitas cretinas também... E nem todos são uns idiotas inconvenientes,
apesar de muitos me procurarem antes mesmo de se graduarem "parasitas profissionais".
- Assim como eu - Susie proclamou. - Ainda vou me formar nisso um dia desses.
Jacqueline franziu a testa.
- Credo, Susie. Não acho que se formar "parasita profissional" seja algo a que se aspirar!
A mulher mais velha revirou os olhos.
- Estou falando do meu próprio diploma, não no diploma de babaquice. Quando eu me livrar dessa maldita aula, daqui a alguns meses, será uma maravilha. Minhas duas
últimas aulas vão ser moleza. Essa é a última aula infeliz que tenho de suportar. Assim que eu acabar essa maldita tese sobre a Ilíada, as coisas vão melhorar muito.
- Eu sei! - Kat falou com uma trufa derretendo na boca. - Que tal escrever na sua tese sobre como é ridículo que as mulheres tenham sido culpadas por toda a desgraça
que ocorreu na Guerra de Troia? Verdade que não leio essa coisa faz um zilhão de anos... - Franziu a testa. - Na verdade, acho que nunca li. Na certa só li o resumo
das CliffsNotes, mas o que me lembro é que Helena levou toda a culpa pela guerra.
- Ei, eu me lembro disso! - Jacqueline exclamou. - Também não havia uma história sobre três deusas terem começado a coisa toda?
- Sim, Hera, Atena e Afrodite - respondeu Susie. - A deusa Discórdia estava chateada por não ter sido convidada para um casamento, por isso atirou uma maçã de ouro
para o grupo, onde estava escrito "Para a mais bela". Nenhum dos deuses foi cretino o bastante para julgar nesse concurso de beleza, então um sujeito chamado Paris,
que era filho de Príamo, Rei de Troia, foi encarregado de fazer o trabalho. A coisa é que ele não chegou a escolher qual deusa era a mais bonita. Escolheu que propina
ele gostava mais! Afrodite lhe ofereceu a mais bela mortal do mundo, e ele optou por esse suborno. Helena era a mortal mais bonita, mas ela já estava casada com
o rei grego, Menelau. Paris a roubou de Menelau, com a bênção de Afrodite, e a Guerra de Troia teve início.
Jacqueline soltou uma risada seca.
- Isso tudo parece uma bela bobagem para mim. Quero dizer, por favor... Por que deusas iam dar ouvidos para o que pensava um mortal?
- Isso é verdade, Jacky - Kat interveio. - Você não é deusa e raramente se importa com os homens... sejam eles mortais ou não!
As sobrancelhas perfeitas de Jacqueline subiram quase até alcançar a linha do cabelo curto e ondulado ao estilo Halle Berry.
- Não sou uma deusa?... Acabou de dizer que não sou nenhuma deusa, Kat?
Kat ergueu as mãos, simulando rendição.
- Deve ter sido esta garrafa de champanhe.
- E quanto a esse comentário de que não dá a mínima para os homens? - Christy provocou.
Jacky encolheu os ombros.
- Ela que fale. Eu gosto dos homens. Em teoria.
- Viram? Por isso Jacky e eu vamos ser amigas para sempre! - declarou Kat. - Eu sou uma eterna otimista, e ela é a Sra. Pessimismo. Jacky me põe um freio quando
vou longe demais, e eu a faço dar uma chance às pessoas, afinal elas não são de todo ruins.
- As pessoas não são más. Já os homens são outra história - resmungou Jacky.
- Que cascavel! - exclamou Kat.
Jacqueline fixou os olhos cor de chocolate na melhor amiga.
- Acho que vou impedi-la de tomar essa segunda garrafa de champanhe.
Kat sorriu para ela.
- Não vai, não! Lembre-se do nosso pacto: eu pago a corrida do táxi, portanto bebo quanto champanhe quiser.
- Ahn, senhoras, antes que comecem a falar sobre táxis e tal, poderíamos conversar um pouco mais sobre essa tese que vou escrever para o imbecil do meu professor?
- De algum lugar, Susie fez surgir um caderno da faculdade e um lápis número dois afiado, que já segurava no ponto certo do papel.
- O imbecil do seu professor não vai gostar de uma tese feminista - lembrou Kat.
- Ei, eu disse que queria o diploma, não um "A". - Ela sorriu para as amigas, maliciosa. - Parafraseando o fabuloso Bonnie Raitt, "Vamos lhe dar algo do que falar"...
Vênus riu alto.
- Foi exatamente por isso que o meu oráculo as encontrou, minhas queridas! - falou baixinho e bateu palmas, embora o grupo de mulheres mortais modernas não pudesse
ouvi-la e ignorasse que ela as observava por meio de seu brilhante oráculo, o qual funcionava como um comprido telescópio, do Olimpo para Tulsa. Vênus se concentrou
na mulher com a contagiante risada, brilhantes olhos azuis e o adorável apelido de Kat.
- Pelas nádegas resplandecentemente gays de Hermes! Ela é perfeita! - A deusa levantou um dedo bem-cuidado para cada ponto que ressaltava: - Aconselha as pessoas,
então deve ser capaz de lidar com Aquiles e aquela sua ira idiota; é otimista e gosta dos homens. - O sorriso da deusa foi contido. - Gostar de homens é sempre uma
vantagem quando se trata de seduzi-los. E ela ainda foi esperta o bastante para saber por intuição que essa versão sobre a Guerra de Troia, que tem sido repetida
há... - parou e fez uma careta - ... há mais tempo do que eu imaginava ser possível, é ridícula! - A deusa voltou a atenção para o pequeno grupo de amigas e riu
com elas ao ouvi-las elaborando uma tese muito engraçada, inteligente e feminista para o professor a quem chamavam de sr. Ânus.
Vênus gostou de todas as cinco mulheres, o que a deixou ainda mais segura de que Kat era a escolha acertada para a missão das deusas. As amigas de uma mulher refletiam
quem ela era, e Vênus adorou a imagem que estava obtendo de Tulsa. Gostou principalmente da exótica Jacqueline, que era, sem dúvida, a melhor amiga de Kat. Jacky,
como a chamavam, era ousada, atrevida e muito persuasiva com aquele seu raciocínio rápido e sua adorável pele cor de caramelo.
Por um momento, a deusa considerou se Jacky poderia ser uma escolha melhor do que Kat, mas decidiu que não. Jacqueline era maravilhosa, contudo Kat possuía mais
das habilidades necessárias para conquistar Aquiles. Além disso, o lindo tom escuro de pele de Jacqueline seria muito difícil de explicar em meio aos dourados Gregos.
- Azar deles - resmungou.
Desviou a atenção para Kat, concentrando-se com todos os seus vastos poderes.
Então a Deusa do Amor sorriu, aliviada. Não, Kat não estava apaixonada por nenhum mortal. Se estivesse, ela, Vênus, que era o amor personificado, teria percebido.
Na verdade, agora que estava pensando no assunto, reparou que, das cinco, apenas a gravidíssima Heather se encontrava comprometida e apaixonada por um homem.
- Bem... - Vênus tamborilou os dedos na lateral do oráculo de mármore. - Quem sabe, quando eu puser fim nesta Guerra de Troia, eu possa formar mais alguns pares?
- O pensamento a fez cantarolar, feliz. Encontrar um amante para a maravilhosa Jacqueline seria sua primeira missão. - Não! - Ela conteve o próprio entusiasmo. -
Primeiro Aquiles. Depois poderei brincar de formar pares no mundo mortal moderno outra vez. - Sorriu. Tinha coisas mais importantes para fazer antes disso. Precisava
trazer Kat do mundo moderno para o Olimpo, o que não seria muito difícil.
A deusa ergueu as mãos e se pôs a invocar o poder que - por ser ela um dos Doze Olímpicos - seria para sempre seu. O ar entre as palmas de suas mãos começou a cintilar
com pequenas faíscas de energia, tão brilhantes como diamantes em miniatura. Assim que Kat estivesse sozinha, ela, Vênus, poderia usar o oráculo e transportar a
moça para o portal que unia o mundo moderno ao Olimpo, e que continuava aberto, porém invisível, em Tulsa. Em seguida, iria simplesmente se transferir para lá e
teria uma breve conversa com Kat.
A deusa bateu no queixo com a ponta de um dedo enquanto pensava. Decerto precisaria operar algum tipo de magia a fim de provar para a mortal que era Vênus, a Deusa
do Amor. Mas isso não levaria muito tempo. Iria dar cabo da tarefa e, depois, retornar ao Olimpo com a mortal. Em seguida, chamaria Hera e Atena ali, em seu templo,
de modo que as três pudessem explicar em detalhes para a moça qual seria a sua missão.
Como diria sua amiga mortal, Pea Chamberlain, era moleza.
Ainda concentrando poder entre as mãos, Vênus espiou através do oráculo. Viu Kat e Jacqueline rindo enquanto mais do que cambaleavam pelos degraus da escada da linda
casa de Susie até um veículo que as aguardava.
A deusa riu também.
- Ainda bem que elas não estão dirigindo. Nenhuma delas me parece sóbria o bastante para lidar com essa máquina de metal.
Assim como nenhuma das duas mulheres - especificamente Kat - parecia sóbria o bastante para ser transportada até o Olimpo naquela noite.
Talvez fosse melhor assim, concluiu Vênus. Precisava se reunir com Hera e Atena mais uma vez a fim de decidir a melhor maneira de transportar Kat até o acampamento
de Aquiles. Kat precisaria adquirir algum tipo de status real. Ou talvez uma delas pudesse aparecer para Aquiles e prever a vinda de uma "sacerdotisa" que necessitava
da proteção dele.
Vênus suspirou. Aquilo poderia ser mais complicado do que tinha imaginado a princípio.
Mas não importava. Usaria o oráculo para seguir Kat até a casa dela, guardaria o endereço da mortal e lhe faria uma pequena visita divina no dia seguinte.
Sorrindo, voltou a atenção para o oráculo... bem a tempo de ver uma gigantesca caminhonete Suburban passar pelo sinal fechado e colidir com o pequeno carro amarelo
que levava Kat e Jacqueline.
- Não!... PARE! - gritou a deusa, lançando o poder que vinha erigindo através do oráculo a fim de proteger e circundar o carro, e também congelando o tempo, de modo
que a cena se transformou em uma terrível pintura.
Mas, mesmo enquanto dava a ordem, Vênus sabia: era tarde demais.
A deusa respirou fundo e agitou as mãos sobre o oráculo.
- Permita que eu veja Katrina e Jacqueline - ordenou, solene.
A visão do oráculo se estreitou para dentro do carro batido. Vênus prendeu a respiração, abafando um soluço. As mulheres deviam ter percebido a iminência do acidente.
Haviam se abraçado, e agora pareciam duas bonecas quebradas, agarradas uma à outra. Kat estava com um corte horrível na cabeça, e seu pescoço se inclinara em um
ângulo pouco natural. Jacqueline se encontrava mais próxima do local do impacto, e seu peito fora completamente esmagado.
Estavam ambas mortas.
Vênus sentiu uma terrível e despropositada sensação de perda diante do pouco que tinha conhecido das mortais.
- Eu devia ter prestado mais atenção. Eu devia ter sido capaz de impedir isso! - sussurrou, combalida. - Elas eram tão jovens, tão cheias de energia!... Suas vidas
foram ceifadas cedo demais.
Enquanto a deusa observava, duas esferas douradas e brilhantes se ergueram dos corpos alquebrados das mortais. Vênus arregalou os olhos.
- Talvez eu ainda possa fazer alguma coisa!
Concentrando seu poder, bradou um comando através do oráculo:
Vida e amor aclaram tuas almas
livres para recomeçar, para longe voar...
É o próprio Amor quem clama:
Vinde a mim, abençoados espíritos
A tua missão vos chama!
Lançou ainda mais poder no oráculo e, como uma chama açambarcando os espíritos esvoaçantes das mortais, este fez com que as almas de Katrina e Jacqueline flutuassem
para dentro do fluxo de energia criado por ela, até que, com um ruído que lembrava o de uma garrafa de champanhe sendo aberta, estas brotaram da bacia de mármore
e pairaram no ar à sua frente.
Quando a deusa olhou através do portal, viu o carro amarelo explodindo em chamas.
Suspirou.
- Bem, queridas, e agora? O que vamos fazer?
Capítulo Dois
- Você fez o quê!? - Atena quase cuspiu (aliás, de modo bem pouco elegante, observou Vênus) enquanto fitava com olhos arregalados as orbes brilhantes que continham
os espíritos das duas mortais.
- Bem, eu não podia simplesmente deixá-las morrer! - a Deusa do Amor falou na defensiva, acariciando a esfera que flutuava mais próximo dela. - Foi terrível e cedo
demais. Elas são tão jovens!...
- Mortais morrem, Vênus. Ponto-final. Não devia ter interferido no que o destino reservou para elas - declarou Atena.
- Ah, por favor! Elas são mortais modernas. Não acreditam em destino.
Hera entrou correndo na câmara do oráculo de Vênus.
- O que aconteceu? Vim assim que o sátiro me passou a mensagem urgente e... - A deusa se interrompeu ao avistar as esferas flutuantes e enrugou a testa. - São almas
mortais?!
- Isso mesmo - concordou Atena.
- E o que estão fazendo aqui? Estão perdidas?
- Não. Elas não estão perdidas. São os espíritos de duas mortais modernas, e Vênus os trouxe para cá.
Vênus franziu o cenho para Atena.
- Por acaso tem orgasmos regulares, Atena? Se não, é por isso que é tão mal-humorada e crítica!
- Vênus! - A voz de Hera soou enérgica, fazendo a Deusa do Amor se lembrar de que se encontrava na presença da Rainha do Olimpo. - Por que os espíritos dessas mortais
modernas estão nesta câmara?
- Um deles... - Vênus fez uma pausa para estudar as esferas e, finalmente, apontou para a mais próxima dela - ... este, creio eu, é o espírito da mortal que escolhi
para nos ajudar no nosso problema com Aquiles. O outro é o da sua melhor amiga.
- O que ainda não explica por que suas almas estão aqui, no Olimpo, em vez de em seus corpos, no mundo mortal moderno ao qual elas pertencem - observou Hera.
- Elas não poderiam estar em seus corpos porque estes estão sem vida - Atena esclareceu. - Na verdade, eles foram reduzidos a cinzas.
- Elas morreram queimadas?... Como pôde escolher uma alma cujo corpo foi incinerado para Aquiles?! - Hera esfregou a têmpora com uma das mãos, enquanto, com graça,
acenava com a outra, fazendo surgir um cálice de ambrosia do qual tomou um longo gole.
- Na verdade, é fácil de explicar - Vênus minimizou, lançando a Atena um olhar enviesado.
- Então explique, por favor - ordenou Hera.
- Escolhi a mortal para Aquiles quando ela ainda estava viva. Logo em seguida, houve um acidente. Ela e a amiga haviam acabado de sair de uma festa e, bem, acabaram
morrendo. Eu não pude suportar. Elas eram tão jovens e felizes!... E Kat era perfeita para Aquiles - afirmou, determinada.
- E, por isso, trouxe seus espíritos desencarnados para cá...? - Hera fez uma pausa e suspirou. - Vênus, compreendo que seja fácil se apegar aos mortais, mas não
fez nenhum favor a essas mulheres. Elas deviam estar a caminho da vida após a morte que as espera. Não há nada que possamos... - A deusa se interrompeu de súbito.
Uma expressão de choque transformou seu rosto adorável, e o cálice de ambrosia deslizou de seus dedos para se espatifar no chão de mármore.
- Hera! O que foi?! - indagou Vênus, e Atena correu para o lado da divindade ao ver que seu rosto ficara terrivelmente pálido.
- Minhas sacerdotisas! Elas estão aos prantos, chamando por mim.
- Aqui, sente-se. Respire fundo e conte-nos o que aconteceu. - Vênus conduziu Hera até uma chaise macia enquanto Atena fazia surgir um cálice de ambrosia gelada,
que levou aos lábios de Hera.
A deusa dispensou a bebida, porém.
- São os Gregos. Eles estão invadindo o meu templo que fica do lado de fora da muralha, a oeste de Troia. - Passou a mão trêmula sobre os olhos, como se para apagar
a imagem da cabeça, e olhou para as duas deusas. - Não compreendo. Meus templos não costumam ser violados. Eu sou a Deusa do Lar, a Deusa do Casamento e da Família,
Rainha dos Olímpicos! Não há razão para que eles me aviltem. - Hera oscilou de leve, como se fosse desmaiar. - Preciso me sentar.
- Está sentada - falou Atena.
- O que posso fazer? - O suor escorreu pelo rosto pálido da deusa. - Minhas sacerdotisas estão suplicando por mim!
- Não sei! - Vênus sentou-se pesadamente no banco ao lado de Hera, tomou o cálice de ambrosia da mão de Atena e o esvaziou em um só gole. - Eu sou a Deusa do Amor.
As pessoas fornicam nos meus templos, o que eu não considero nenhuma profanação. De vez em quando um amante traído - desses meio loucos, verdade - se lança sobre
a própria espada. Mas não tenho como impedir esse tipo de coisa.
- Eu sei o que podemos fazer.
Vênus e Hera ergueram os olhares para Atena, vendo-a colocar um capacete de guerra que acabara de se materializar.
- Preciso lembrá-las de que sou a Deusa da Guerra?
Vênus e Hera negaram em conjunto com um gesto de cabeça.
- Então, vamos. Ninguém viola um de nossos templos e sai impune. - Os olhos cinzentos de Atena se estreitaram. - Ou vocês duas podem ficar aqui... Ainda que Zeus
vá ficar louco ao saber que me envolvi nessa história.
Hera se ergueu devagar. Sentia os joelhos fracos, entretanto sua voz soou dura como rocha.
- Que Zeus e suas ordens fiquem fora disto! Ninguém que ataca minhas sacerdotisas pode sair ileso.
Vênus e Hera trocaram um olhar.
- Vamos com você - declarou a Deusa do Amor. - Se Zeus vai ficar zangado, que fique com todas nós.
- Assim seja - concordou Atena. - Fiquem perto de mim.
Antes que as três deusas desaparecessem, Vênus agitou a mão na direção do oráculo e um círculo brilhante surgiu em torno dele, mantendo as esferas dos dois espíritos
em segurança.
Rematerializaram-se bem no rescaldo da destruição.
- Oh, não! - Hera exclamou com um soluço. Mas então endireitou a espinha e comprimiu os lábios com força. - Estas são as minhas mulheres. Não vou abandoná-las! -
bradou, contundente, antes de correr para o primeiro corpo.
- Fique com Hera. Vou lidar com os açougueiros que continuam aqui - Atena disse a Vênus, caminhando para fora do salão em direção ao som abafado de gritos que vinham
do lado de fora do templo.
Vênus se juntou a Hera quando esta se curvou sobre o corpo de uma sacerdotisa. Assim como o restante das mulheres naquela parte do templo, a morta usava a túnica
de linho azul, típica daqueles que juravam servir a Rainha do Olimpo. Sentindo-se enjoada, a Deusa do Amor pensou que o escarlate fresco de seu sangue parecia grotesco,
além de uma profanação suprema no templo de Hera, que normalmente era repleto de cores suaves, de um delicioso perfume de incenso, e preenchido pela musicalidade
das vozes e dos risos das mulheres.
- Era uma das minhas sacerdotisas mais antigas! - A voz de Hera soou embargada pelas lágrimas. - Cuidou deste templo por mais de 40 anos! - A deusa tocou a cabeça
da mulher morta. - Que a sua jornada até os Campos Elíseos seja rápida e tranquila - murmurou, e o ar em torno delas se agitou com o poder de sua oração. Hera olhou
para Vênus, então. - Precisamos abençoar todas elas.
- Claro. - Vênus apertou a mão de sua amiga e rainha; em seguida, ambas foram de corpo em corpo, conferindo a cada sacerdotisa tombada uma bênção eterna de paz e
felicidade.
Foi na base da estátua de Hera, no santuário que ficava na parte mais central, que elas as encontraram: duas moças que haviam morrido abraçadas. A mulher de cabelos
escuros tinha um ferimento medonho na cabeça. A loira que se juntara a ela na hora da morte fora atravessada no peito por uma espada.
- Sacrilégio! Blasfêmia! - Hera sibilou as palavras, a tristeza e o horror finalmente substituídos por um ódio mortal. - Estas duas nem sequer são minhas sacerdotisas...
Sem dúvida estavam aqui suplicando pela minha bênção! - Apontou o cálice de vinho derramado e o frasco quebrado de mel que jazia, estragado, ao lado dos corpos.
- Ela me parece familiar. - Vênus apontou a mulher de cabelos escuros. - Essa linda barra púrpura e dourada em sua estola... não é usada apenas pelos que pertencem
à Casa Real de Troia?
- Hera! - O grito de Atena as interrompeu, e a deusa de olhos cinzentos entrou no salão. Estava suja de sangue e carregava uma moça também vestida de azul nos braços.
A sacerdotisa gemia e, com um grito estrangulado, Hera correu até ela, ajudando Atena a deitá-la no chão de mármore. Aflita, a Rainha do Olimpo usou o próprio colo
como apoio para a cabeça da moça ferida.
Vênus olhou a moça e percebeu que esta não passava de uma menina recém-saída da puberdade. Tinha um corte horroroso de espada no braço, que agora ensopava Hera e
a ela própria num rio de sangue fresco. Seus olhos estavam fechados, porém ela gemeu outra vez, provando que se encontrava viva.
- Quem fez isso?! - A voz de Hera soou gelada e ríspida.
- Foram os homens de Agamenon. A menina me contou que a maioria deles tomou as sacerdotisas que quis e voltou para o acampamento grego. Garanto que os poucos que
permaneceram irão acampar nas sombras do Submundo à noite - declarou, feroz.
- Temos de curá-la.
- Curá-la? - Atena franziu a testa.
- Sim, nós três. Temos que curá-la! - a Rainha do Olimpo repetiu, olhando para as duas amigas numa súplica.
- Não quer que a transformemos em uma linda árvore ou, talvez, em uma fonte eterna para simbolizar seu pranto? - sugeriu Atena.
- Não. Quero que me ajudem a curá-la e que ela continue a ser o que é.
- Que estranho - murmurou Atena. - Costumamos salvar mortais transformando-os em outra coisa.
Vênus revirou os olhos.
- Precisa relaxar um pouco. - Resoluta, ela segurou a mão de Hera e estendeu a outra para Atena. - Vamos curar essa criança - decidiu.
A Deusa da Guerra franziu a testa.
- Não é assim que costuma ser feito - resmungou, porém tomou a mão que a outra divindade lhe oferecia e, em seguida, completou o círculo segurando também a mão de
Hera.
Vênus começava a compor em pensamento adoráveis versos de cura quando a voz raivosa da Rainha do Olimpo se sobrepôs à dela:
- Ouça-me, Destino... Com o poder deste círculo de deusas, elimino o ferimento mortal desta criança ferida e ordeno que ela sobreviva a este brutal ataque!
Vênus e Atena soltaram uma exclamação ao sentir a energia do poder divino fluir por meio de suas palmas e tomar a jovem sacerdotisa que continuava com os olhos fechados
no colo de Hera. As costas da menina se arquearam e seu corpo cintilou. Em seguida, tão repentinamente como tinham vindo, a luz e o poder se foram.
Com um pequeno grito, a sacerdotisa sentou-se, levando a mão à ferida horrorosa que antes ostentava no braço. Arregalou os olhos ao não encontrar nada, a não ser
uma pele saudável, recém-curada.
Desviou o olhar para Hera.
- Minha Deusa! - entoou numa voz suave e musical. - É você mesma! Pensei que tivesse sido abençoada com um lindo sonho antes da minha morte.
Hera sorriu e tocou a face da menina.
- Não vai morrer hoje, criança. Qual é o seu nome?
- Ilítia - ela murmurou, abaixando a cabeça até tocar o solo ao lado de Hera. - Perdoe-me por não ter protegido o seu templo, Grande deusa!
- Ilítia, minha querida, esta profanação não é culpa sua. Não espero que minhas sacerdotisas combatam guerreiros! Levante-se, filha, e não tema ter me desagradado.
Eu só gostaria de ter sabido desta invasão mais cedo a fim de ter salvado a vida das outras sacerdotisas.
Devagar, a menina ergueu a cabeça e fitou Hera com olhos arregalados, cheios de adoração.
- Não fazíamos ideia. Todos esses anos, os Gregos deixaram os templos do lado de fora da muralha em paz. Não havia nenhuma razão para que esperássemos um ataque
tão repentino. - A moça mordeu o lábio para não chorar.
- Ilítia, disse que os homens de Agamenon raptaram as sacerdotisas de Hera? - indagou Atena.
A menina baixou a cabeça respeitosamente para a deusa antes de responder.
- Isso foi o que eles disseram, Atena. Primeiro fingiram que não seriam violentos. Seu líder, Taltíbio, falou que Agamenon estava furioso. Sua noiva de guerra, Criseida,
foi devolvida ao pai, e Aquiles se recusou a abrir mão de sua própria noiva de guerra, Briseida. Então eles estavam procurando por uma jovem donzela que tomasse
o lugar da moça e apaziguasse seu rei.
Atena assentiu com um gesto de cabeça.
- Eu ouvi Artemis falando a respeito.
Criseida é filha de um dos sacerdotes favoritos de Apolo. Artemis ficou tão irritada com isso que derramou trevas e morte sobre o acampamento grego até que eles
devolvessem a moça.
- Artemis e Apolo ficam muito zangados quando qualquer um deles é ofendido - comentou Vênus. - É uma mentalidade típica de gêmeos.
- Sim, todos sabemos como aqueles dois podem ser sentimentais - Hera resmungou, impaciente. - Mas notaram que o problema sempre acaba em Aquiles? - As outras duas
deusas acenaram com a cabeça, mais uma vez em completo acordo com sua rainha. - Continue, Ilítia. Estava dizendo que os Gregos vieram ao templo após Criseida ter
sido devolvida ao pai.
Ilítia passou a mão trêmula sobre a testa.
- Sim, eles eram tão bonitos e foram tão encantadores, a princípio, que imaginamos que eles estavam brincando a respeito dessa história de nos levar. Tanto que até
rimos com eles. Explicamos a eles que aquelas de nós que haviam jurado servir à Grande deusa não poderiam se tornar noivas de guerra, e eles pareceram compreender.
Foi então que eles viram Leis. - Ela fez uma pausa. Estremecendo, respirou fundo antes de continuar. - Leis é uma linda sacerdotisa que recentemente se pôs a seu
serviço, minha Deusa.
Hera concordou, balançando a cabeça.
- Eu me lembro da linda Leis fazendo seu juramento. - Uma sombra passou pelo rosto encantador da deusa. - Mas não me lembro de ter visto seu corpo entre as mortas.
Ela está aqui?
Ilítia balançou a cabeça, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
- Não. Os Gregos a levaram. Nós tentamos detê-los, e os homens ficaram irados por isso. Foi daí que passaram a matar qualquer uma de nós que cruzasse seu caminho!
- A moça sacudiu os ombros na tentativa de conter o choro, contudo se esforçou para continuar falando em meio aos soluços. - Eles violaram até o seu santuário mais
íntimo, Grande deusa. Descobriram a princesa lá, e a assassinaram ao pé da sua estátua.
- Por isso ela me pareceu tão familiar! Eles mataram a filha mais moça do rei Príamo, Polixena! - exclamou Vênus.
Ilítia assentiu.
- A serva da princesa, Melia, vem sempre aqui para orar por sua ajuda e pedir pelo fim da guerra, de modo que sua patroa possa se casar com o jovem Rei de Sardes.
E hoje Polixena veio acompanhando Melia para derramar libações e queimar incenso. - Ilítia olhou para sua deusa com lágrimas inundando o rosto. - Os Gregos atacaram
a princesa com menos remorso do que fariam com um de seus cavalos.
- Que perda terrível! - lamentou Hera. - Ela era tão moça, tinha tanto ainda para viver!... O Destino não pode ter planejado obrigá-la a deixar o reino mortal tão
cedo.
Uma súbita exclamação de Vênus fez a deusa fitá-la interrogativamente.
- É isso! Essa é a nossa solução!
- Do que está falando? - indagou Atena.
- É perfeito! - Vênus apontou para o santuário. - Há dois corpos lá dentro. Duas lindas jovens, já sem alma. E, no meu templo, tenho a sorte de ter duas almas sem
corpo!
- Não está insinuando que nós...
- É claro que não estou insinuando - Vênus interrompeu Atena. - Estou afirmando! Se acabamos de curar o corpo de Ilítia sem qualquer problema, sem dúvida nós três
poderíamos fazer o mesmo com Polixena e Melia. Posso pegar as almas das mortais modernas, colocá-las nestes corpos, e Polixena irá se tornar a nova noiva de guerra
de Aquiles!
- Mas, Deusa, Aquiles já tem Briseida como noiva de guerra - lembrou Ilítia com sua voz doce e tímida.
Vênus sorriu para ela.
- Não depois de a sua deusa fazer uma visitinha a Agamenon.
- Eu? - questionou Hera.
- Claro! Você é a Deusa do Casamento. Pode aparecer para Agamenon e dizer que seus problemas seriam bem menores se ele trocasse de noiva de guerra... e que Briseida
seria a pessoa ideal para ele.
- Mas eu nem conheço essa moça! Sem dizer que não suporto aquele miserável e sua arrogância - completou Hera.
- Pode dar certo - opinou Atena.
- Claro que pode! - Vênus sorriu diante da aprovação da outra deusa. - Enquanto Hera estiver aparecendo para Agamenon, você, Atena, fará uma visita à encantadora
Tétis. Faça-a dizer ao filho que ele deve se retirar da batalha por conta do desrespeito que Agamenon demonstrou ao lhe roubar a noiva e, em seguida, deixar claro
que arrumou outra noiva de guerra para ele: uma nobre donzela que tem toda a sua aprovação porque não é tola como a maioria das mulheres com que ele está acostumado.
Isso deve deixá-lo intrigado.
Atena estreitou seus astutos olhos cinzentos para a Deusa do Amor.
- E, nesse meio-tempo, você vai preparar a nossa Polixena para o papel que ela irá desempenhar.
- Isso mesmo. Ela precisa manter Aquiles ocupado. Ocupado o suficiente para nem mesmo voltar à batalha. Ela também poderá lidar com aquele seu temperamento desagradável
e, talvez o amor, ou uma versão mais sensual dele, possa alcançar o homem dentro da besta. - Vênus sorriu, maliciosa. - Pensem bem: Zeus profetizou o destino do
jovem Aquiles anos atrás. Na certa já se esqueceu de tudo. Vocês sabem como o Rei do Olimpo é ocupado. Se o próprio Aquiles se voltar contra o futuro que lhe foi
predestinado, Zeus decerto permitirá que ele mude seu destino. - A Deusa do Amor sorriu para Hera. - Principalmente se a esposa de Zeus exercer um pouco de sua influência
sobre o marido... - completou num ronronar.
Hera suspirou.
- Seu plano parece complicado, perigoso. E muito sujeito a incidentes.
- Por isso mesmo ele é tão perfeito, querida - redarguiu Vênus. - O amor nunca é simples. E é ele quem está fazendo acontecer este show.
- Que todos os deuses e deusas nos ajudem! - Atena murmurou.
Vênus a ignorou.
- E então, vamos curar estes corpos para aquelas duas almas, ou preferem ficar aqui, olhando para o nada?
- Vamos começar a trabalhar agora mesmo. Eu já estou mais do que farta dessa Guerra de Troia - decidiu Hera.
- Isso é algo com que nós três concordamos - emendou Atena.
- Nem me diga! - exclamou Vênus.
E as três deusas entraram no principal santuário de Hera, com a confusa Ilítia correndo atrás delas.
Capítulo Três
- Eu não sei por que temos de curar ambos os corpos. A mortal que escolheu para Aquiles vai tomar o corpo de Polixena. Não deveríamos enviar a outra para onde quer
que as mortais modernas vão depois da morte? - indagou Atena.
Vênus balançou a cabeça com desgosto.
- Atena, você precisa ter mais amigas. Vamos transformar uma mortal moderna em uma princesa antiga e lhe pedir que faça o que pedimos. E quanto à breve lembrança
que ela tem do acidente e que ela e a melhor amiga foram mortas... Lamentável, mas o que se pode fazer? Precisamos dela, então já era. Ela deveria mais era dar cabo
da nossa missão e esquecer o assunto.
- O problema é que...? - incitou Atena. - E o que quer dizer com "já era"?
Vênus revirou os encantadores olhos.
- É apenas uma expressão usada pelos mortais modernos que significa "feito", "acabou".
- E o problema em pedir a uma mortal que faça algo para nós sem incluir a amiga dela é que as mortais modernas são diferentes das mortais antigas - Hera explicou,
paciente. - Elas são independentes, espertas e não estão acostumadas a se curvar e obedecer a ordens. Na verdade, pensando bem, elas são muito parecidas com deusas.
- Exatamente o que eu estava tentando dizer a ela - concordou Vênus.
- Não sei se estou gostando disso - murmurou Atena com a testa franzida.
- Não vai gostar é das rugas que vão começar a aparecer no seu rosto se não parar de fazer caretas - ralhou Vênus.
- Também não vai gostar nem um pouco do que irá acontecer se despertar a ira da Deusa da Guerra! - completou Atena.
- Já chega! - A voz de Hera soou, poderosa, contra as paredes de seu templo. Em seguida, ela fechou os olhos por um instante e respirou fundo. - Essa discussão está
atrapalhando a nossa missão aqui. Pior do que isso, está me dando dor de cabeça! - A Rainha das Deusas olhou para Ilítia, que continuava encolhida em um canto. -
E estão assustando a minha sacerdotisa, que já teve sua cota de estresse por hoje.
Vênus e Atena murmuraram desculpas.
- Vamos acabar com isto de uma vez. - Hera lançou mais um olhar sério na direção das duas deidades antes de se voltar para Ilítia. - Vamos precisar de um cálice
para cerimônias cheio do vinho do templo. Pode providenciar isso para mim?
- Claro, minha Deusa! - Recuperando-se, ao se ver às voltas com uma tarefa que lhe era familiar, a jovem sacerdotisa se afastou correndo e retornou momentos depois
com um cálice de ouro repleto de um encorpado vinho tinto.
- Muito bom. - Hera acenou com aprovação. Em seguida, aproximou-se dos corpos de Polixena e sua serva, sinalizando para que Vênus e Atena se juntassem a ela. - Traga
a taça, Ilítia, e se posicione diante dos corpos. Quando eu der início à magia da cura, erga o cálice, de modo que o vinho possa ser preenchido com a nossa energia.
Compreendeu?
- Sim, minha deusa. - A jovem sacerdotisa postou-se em seu lugar.
- Vamos nos juntar em um círculo de poder divino. - As três deusas se deram as mãos solenemente em volta da princesa de Troia morta e sua criada. - Concentrem-se
no vinho do cálice - instruiu Hera. Então limpou a garganta e recitou o feitiço:
Três deusas por um só pensamento unidas,
três poderes que resgatam vidas!
Ilítia soltou uma exclamação quando o vinho no cálice que tinha erguido acima da cabeça começou a cintilar com uma luz tão forte que refletiu no teto alto e abobadado
do templo.
Por esta luz divina aqui banhadas,
O dom da cura nós invocamos,
Derramando nossos poderes neste vinho,
da videira o fruto que agora abençoamos.
- Está quente! - exclamou Ilítia, mas não soltou o cálice resplandecente.
- É o calor do sopro de vida. Rápido, criança, derrame o vinho nos lábios da princesa e de sua serva! - ordenou Hera.
Ilítia obedeceu a sua deusa no mesmo instante. Curvou-se e, com cuidado, verteu metade do vinho dentro na boca ensanguentada de Polixena, e a outra metade na de
sua jovem criada.
- Não sei se isso vai funcionar - murmurou Vênus com a testa franzida ao ver que a maior parte do vinho escorrera pelas faces macilentas das duas mortas. - Talvez
nós devêssemos...
De repente, Polixena engasgou e encheu os pulmões com dificuldade. Pouco depois, o peito de Melia começou a subir e descer do mesmo modo.
- Mantenham-se concentradas! - Hera lembrou as outras duas deusas antes de completar a magia:
Recuperada a saúde e curada a ferida,
Que arda dentro delas a centelha da vida!
Enquanto as deidades e a sacerdotisa observavam, o horrível corte na cabeça de Polixena desapareceu, e a ferida aberta no peito de Melia cintilou e se fechou. Agora
as duas mulheres pareciam em perfeito estado, ainda que o único movimento em seus corpos fosse sua respiração lenta e constante.
Ilítia caiu de joelhos e se curvou.
- Deu certo! Vocês as curaram!
Hera tocou o rosto da sacerdotisa suavemente.
- Curamos apenas seus corpos, criança. Suas almas estão viajando para os Campos Elíseos. Neste momento, elas não passam de duas conchas vazias.
- Acontece que tenho duas almas mortais desesperadas por um par de conchas - declarou Vênus. - Devo buscá-las?
- Sim, mas Atena e eu precisamos fazer nossas visitas a Agamenon e Tétis primeiro.
Atena franziu o cenho diante dos corpos recém-curados.
- Não deveria dar um jeito nesse sangue todo antes de trazermos para cá as almas das mortais? Não sou especialista em mortais modernas, mas imagino que qualquer
mulher ficaria horrorizada ao se ver neste cenário. - A deusa fez um gesto amplo, abrangendo o templo manchado de sangue.
- Urgh... Embora eu odeie admitir isso, está certa - Vênus concordou com um suspiro. Então fez um gesto distraído na direção de Atena e Hera. - Vão em frente, não
se preocupem com isso. Vou evocar alguns sátiros para que eles cuidem desta sujeira.
- Sátiros? - Hera repetiu com estranheza. - Mas eles não são bagunceiros por natureza?
- Nada provoca mais desordem do que um sátiro no cio. Por isso mesmo eles são tão bons em fazer limpeza. Estão acostumados.
Hera e Atena fitaram Vênus, confusas.
- Vocês não acham que me dou ao trabalho de fazer faxina depois das nossas orgias, acham?... - Vênus balançou a cabeça, desgostosa. - Sou sua deusa, não a mãe deles.
Atena bufou.
- Vamos deixar isso para a Deusa do Amor. - Hera guiou Atena para fora do santuário, antes que as deidades se pusessem a discutir novamente. - Faça seus amigos limparem
tudo depressa; isso não pode levar muito tempo - completou por cima do ombro.
- Por que é que a bagunça sempre sobra para o Amor? - resmungou Vênus.
- Será que é porque o amor é um sentimento muito confuso? - conjeturou Ilítia com um sorriso doce e inocente.
- Querida, é óbvio que você é nova nesta coisa de sacerdotisa, por isso mesmo não vou desintegrá-la por me chamar de confusa.
Ilítia soltou uma exclamação e pareceu prestes a explodir no choro.
Vênus suspirou.
- Relaxe, criança. Foi apenas um pouco de humor divino. Agora vamos pôr os sátiros para trabalhar. - A deusa olhou os dois corpos à espera das almas. - Enquanto
eu penso nos detalhes, arrume trajes novos para estas duas. Esse sangue todo não vai sair nunca destas roupas - continuou a murmurar para si mesma antes de fazer
surgir um rebanho inteiro de agitados sátiros e fazê-los colocar o templo em ordem.
Hera se materializou no compartimento mais íntimo da volumosa tenda de Agamenon. Com exceção do rapaz imberbe que lubrificava o cabelo escuro e encaracolado do rei,
estavam sozinhos.
- A Deusa Hera! - gritou o rapaz e se jogou no chão no mesmo instante, afundando o rosto no solo forrado por ricos tapetes.
Agamenon apenas se curvou. E não o suficiente para o gosto de Hera.
A deusa ignorou o rei, contudo, e tocou o topo da cabeça loira do garoto.
- Levante-se, filho. Quero falar com o seu rei a sós, mas saiba que segue com a minha bênção. - Esperou até que o menino saísse antes de voltar a atenção para Agamenon.
Estudou-o sem pressa, sabendo que o irritava manter a cabeça inclinada diante dela. Notou como ele se encontrava envolto em ouro e teve que se obrigar a não fazer
uma careta de desgosto. O homem achava que era algum deus? Se assim fosse, estava redondamente enganado. - Levante-se, Agamenon. Trago boas-novas - falou por fim.
- Traz alguma mensagem do poderoso Zeus, Grande deusa?
Os olhos de Hera faiscaram com raiva, e sua voz vibrou com um poder tão tangível que chegou a roçar com um estalo a pele do arrogante mortal.
- Não sou mensageira do meu marido!
Desta vez, a reverência de Agamenon foi baixa, obsequiosa e muito mais apropriada.
- Perdão. Não tive a intenção de ofender a Rainha das Deusas.
Hera curvou um canto dos lábios.
- Estranho que não tenha tido essa intenção, uma vez que esse tipo de coisa seja tão corriqueiro em se tratando de você. Ouça o que eu digo, rei grego: sua arrogância
será o seu fim. - Ela o viu empalidecer, satisfeita. - Mas não importa. - Fez um gesto gracioso com a mão para que ele se endireitasse. - A notícia que trago tem
a ver com a sua cama deserta - revelou, ainda que, ao se lembrar do adolescente que acabara de sair, ela se perguntasse o quanto esta realmente andava vazia.
- De fato, deusa. Minha noiva de guerra foi devolvida para apaziguar a ira dos gêmeos dourados. Embora eu não tenha cometido nenhum desrespeito ao reivindicar Criseida,
seu pai me desaprovou.
- Criseida não servia para você. Um rei do seu quilate merece coisa melhor. Apenas Briseida é boa o bastante para um soberano. - Em pensamento, Hera prometeu a si
mesma que iria procurar a pobre Briseida assim que pusesse fim àquela conversa e concederia à moça uma bênção especial por ela ser obrigada a partilhar a cama daquele
cretino.
- Briseida!? Ela é adorável, mas pertence a Aquiles. - A expressão do rei se transformou com a malícia. - Embora eu tenha ouvido que toda sua beleza está sendo desperdiçada,
pois Aquiles só faz assustar as donzelas.
Então os rumores sobre Aquiles eram verdadeiros, Hera pensou, desgostosa.
- Por isso mesmo Briseida seria perfeita para você.
Agamenon acariciou a barba espessa, pensativo.
- Isso lá é verdade. Mas, ainda assim, Aquiles...
- Quem governa os Gregos, afinal? Aquiles ou Agamenon? - interrompeu Hera.
- Eu governo os Gregos!
- Pois trate de reivindicar o prêmio de guerra que mais lhe convém! - ela concluiu.
Agamenon encontrou o olhar da deusa.
- Posso fazê-lo com a sua bênção?
- Claro. E, para ajudar a aplacar a já conhecida Fúria de Aquiles, já lhe arrumei outra companhia. Uma noiva de guerra diferente de outras mulheres, por sinal, mas
que também conta com uma bênção especial minha.
- Eu me curvo diante da sua vontade, Grande deusa - declarou Agamenon.
- Ótimo. Mande seus homens buscarem Briseida agora mesmo.
Enquanto Agamenon se curvava, Hera bateu palmas e desapareceu em uma nuvem de fumaça azul e cintilante.
Tétis fez uma reverência respeitosa a Atena. Em seguida, fazendo surgir às pressas ambrosia e cadeiras almofadadas, feitas de madrepérola, fez um sinal para que
a deusa de olhos cinzentos sentasse.
- Acomode-se, Atena. A que devo esta... - Suas palavras morreram quando ela percebeu que a deusa se encontrava manchada de sangue e com uma expressão revoltada no
olhar. - Pelo tridente de Poseidon! O que aconteceu?
A deusa moveu os dedos quase com indiferença sobre as manchas de sangue, e estas desapareceram instantaneamente.
- Foi tudo por causa dessa infeliz Guerra de Troia. Nós decidimos que ela deve ter fim.
O belo rosto de Tétis perdeu sua sedutora cor de pêssego.
- Meu filho está fadado a morrer na Guerra de Troia. Se ela está chegando ao fim, o mesmo vai acontecer com a vida dele.
- Por isso mesmo vim até aqui. Tivemos uma ideia que pode se provar muito benéfica para todos nós. Acreditamos que a Guerra de Troia possa ser terminada sem que
Aquiles pereça.
Tétis recuperou parte de sua cor.
- Eu farei qualquer coisa, minha Deusa! Qualquer coisa para salvar meu filho! - exclamou, comovida. - ... Você disse "nós"?
- Hera, Vênus e eu.
Os olhos azuis de Tétis se arregalaram.
- Três deusas poderosas unidas por um único propósito!
- Bem, nem sempre é uma aliança fácil, mas nós três temos uma coisa em comum: estamos mesmo cansadas dessa guerra.
- Então somos quatro - declarou Tétis com firmeza. - Seremos quatro aliadas por esse objetivo se existe alguma chance de que meu filho seja poupado.
- Diga-me, Tétis, Aquiles ainda está satisfeito com a escolha que fez de acabar com a própria vida tão cedo? - indagou Atena.
Tétis mordeu o lábio carnudo enquanto pensava.
- Aquiles jamais vai falar sobre isso abertamente, mas eu o conheço bem. Nos últimos anos, ele vem se mostrando cada vez mais infeliz. Sabia que ele não tem uma
amante há quase uma década?
Atena arregalou os olhos.
- Verdade?
Tétis assentiu.
- Por conta da Fúria que o domina. As mulheres têm medo dele por causa disso. Meu filho nunca obrigaria uma donzela a aceitá-lo, por isso vive o tempo que lhe resta
sozinho, cercado apenas por seus Mirmidões. E mesmo estes têm se mostrado ressabiados em sua presença. Posso sentir a tristeza de Aquiles. Acredito que ele só continue
se movendo em direção ao seu destino porque a vida que leva não lhe traz nada além de solidão.
- Quer dizer que esta noiva de guerra que vive em sua tenda não é amante dele?
- Briseida é uma linda moça, que tem tanto medo de meu filho como as outras, ainda que ele só a tenha tratado com bondade - lamentou Tétis.
Atena franziu a testa, pensativa.
- Mas, se ele é gentil com Briseida, ela acabaria por aceitá-lo eventualmente.
- Nunca viu quando a Fúria o domina, viu? - Tétis indagou, calma.
- Não.
Tétis estremeceu.
- É uma coisa terrível de se ver. Ele não é mais o meu Aquiles quando ela toma conta. Ele se transforma em um monstro, em uma besta. É uma manifestação física de
raiva que gera apenas violência.
- Mas o quarto não é um campo de batalha.
- Qualquer emoção forte pode desencadear a Fúria - explicou Tétis, e balançou a cabeça, tristonha. - Nenhuma mortal se disporia a olhar para além de sua ira e enxergar
o homem; muito menos agora que ele está tão marcado por cicatrizes de batalha.
- Cicatrizes de batalha? - Atena tentou se lembrar de qual fora a última vez em que ela havia visto Aquiles, e percebeu que não o via desde que ele era um menino,
naquela mesma praia. - Mas ele era tão bonito!...
- Era. Suas vitórias nos campos de batalha tiveram um preço. Aquiles não é indestrutível, você sabe - Tétis falou na defensiva. - Ele é mortal. Apenas quando sua
ira é despertada ele luta com furor. - A Deusa do Mar enxugou uma lágrima que lhe deslizara pela face. - Às vezes é preciso muito para que sua raiva se manifeste,
porém seu corpo jovem já exibe as marcas de uma vida repleta de sangue e morte. - Tétis caiu de joelhos diante de Atena. - Eu imploro, Atena, assim como fiz no dia
em que esse fardo foi colocado sobre Aquiles... Ajude meu filho a se libertar dessa sina terrível!
Atena pegou a mão de Tétis e a pôs de pé com cuidado.
- Talvez eu possa atender a esse pedido. Conseguiria fazer Aquiles se retirar da luta, ao menos por algum tempo?
- Sem nenhuma razão?
Atena pensou por um momento.
- Aquiles é menos impetuoso do que era quando menino, mas ainda é muito orgulhoso?
- Infelizmente, creio que sim.
Atena abriu um de seus raros sorrisos.
- Então posso dar a ele um motivo para que pare com as batalhas. Ouça com atenção...
Capítulo Quatro
- Gosto da linda cor vinho destas vestes, você não? Ela combina com o tom escuro do cabelo dela. - Vênus ajeitou o drapeado sedoso da estola que envolvia o corpo
ainda imóvel de Polixena.
- Qualquer coisa que lhe satisfaz, satisfaz também a mim, minha Deusa - adulou um sátiro.
- Sim, querido, eu sei. Por isso mesmo eu não estava perguntando a você. Agora termine de limpar esses últimos vestígios de sangue do chão de uma vez. - Vênus deu
um tapinha na face da criatura para amenizar o aguilhão de suas palavras. - Ilítia, era com você que eu estava falando.
- Ah, sim, Deusa. Acho a cor maravilhosa.
- Então por que está franzindo a testa?
- Bem, é meio estranho que vista a criada com a mesma elegância da princesa.
Vênus alisou a túnica de seda creme, de modo que a estola salmão da serva não ficasse amassada. Depois franziu o cenho para a pequena sacerdotisa.
- É verdade que este é o corpo de uma serviçal, criança, mas a alma que vai residir nele, não. Já será um belo choque para a pobre Jacqueline despertar em um corpo
estranho e descobrir que terá de fazer o papel de empregada de sua melhor amiga.
- Você é a deusa. Eu me curvo à sua inteligência, sabedoria e...
Vênus dispensou os elogios com um gesto.
- Curve-se mais tarde. Agora apenas me diga que este tecido é perfeito.
- O tecido é perfeito.
- Vênus! Os sátiros fizeram um trabalho excelente no meu templo! - Hera irrompeu salão adentro, sorrindo para as desordeiras criaturas da floresta e fazendo-os se
agitar com alegria.
- Eu disse que eles eram maravilhosos - reforçou a Deusa do Amor, soprando beijos para os espécimes mais próximos.
- Estou surpresa por eles terem conseguido dar fim a todo aquele sangue - confessou Atena, materializando-se não muito longe de Hera.
- E quanto a elas? - Vênus fez um gesto exagerado na direção dos dois corpos que acabara de limpar e vestir. - Não acha que também estão perfeitas?
- As mortais estão belíssimas, assim como o meu templo. Obrigada, Vênus, por ter feito um trabalho tão bom - agradeceu Hera.
- Mesmo como duas conchas vazias, sem alma, elas são bonitas - observou Atena.
Vênus ignorou a Deusa da Guerra.
- Deu tudo certo com Agamenon? - perguntou, ansiosa.
A Rainha das Deusas torceu os lábios com desgosto.
- Minha opinião é de que aquele insuportável não mudou nem um pouco. Ainda estou com pena da pobre Briseida.
- O que significa que ele vai tomá-la de Aquiles...? - Atena concluiu.
- Sim.
- Maravilha. E Tétis dará um jeito de tirar o filho da guerra tentando mexer com seu orgulho. Aparentemente, Aquiles não é mais o adolescente impulsivo que preferiu
a glória e as batalhas. Não está feliz com o destino que escolheu para si mesmo, mas ainda é um tanto orgulhoso. Tétis me assegurou de que não será problema fazer
com que ele desista da batalha, pelo menos por algum tempo - contou Atena. - Agora tudo o que resta é que a mortal opere a sua magia e mantenha Aquiles fora dessa
luta por tempo suficiente para que os Troianos reivindiquem a vitória. Então toda essa confusão terá terminado.
- Não se preocupe com a minha mortal. Ela vai fazer tudo direitinho.
- É mesmo? Ela fala Grego antigo? - provocou Atena, incisiva.
Vênus hesitou apenas por alguns instantes.
- Vai falar depois que eu fizer um pouco de... - A Deusa do Amor moveu os dedos, fazendo o ar cintilar.
Atena soltou uma risada seca.
- Vênus, que tal colocar as almas nos corpos, para que possamos dar cabo disto de uma vez por todas? - incitou Hera.
- Ah, claro... Sátiros! - Vênus bateu palmas, num gesto de comando. - Voltem para o Olimpo. Vou mandar ninfas Nyseideian para lhes agradecer por terem me ajudado.
As criaturas bateram os cascos, fazendo festa, enquanto desapareciam.
- Muito bem. Agora se afastem. Deem-me espaço para que eu possa trabalhar. - A Deusa do Amor alisou o cabelo longo e loiro e, em seguida, ergueu as mãos com as palmas
voltadas para cima.
Katrina e Jacqueline,
Espíritos mortais que livrei do fim
Ouvi agora o meu chamado
Libertai-vos e vinde até mim!
Duas esferas brilhantes surgiram no ar e flutuaram até descansar nas palmas de Vênus.
Com o idioma cogente eu vos contemplo,
para que daqui possais partir tão logo possível for
De cumprir vossa missão é chegada a hora
Animai estes corpos e concluí a tarefa do Amor!
Vênus lançou as esferas brilhantes na direção dos corpos tal qual uma arremessadora da liga de beisebol.
Kat soltou uma exclamação e tossiu. Sentou-se, afoita, passando a mão pela testa. Jacky gemeu e levou as mãos ao peito, no lugar exato em que fora ferida.
- Oh, Deus, estou me sentindo um lixo! - murmurou Kat. - Quanto champanhe bebi, afinal? - Limpou a garganta e piscou os olhos. - Ei, o que há de errado com a minha
voz? E onde, diabos... - Suas palavras morreram quando teve a visão clareada, por fim. Com os olhos arregalados, ela fitou as três lindas mulheres que a observavam
como se ela fosse uma nova espécie de flor que acabara de florescer.
- Kat, acho que estou tendo um ataque do coração! - Jacky gemeu novamente.
- Desde quando ressaca provoca ataques cardíacos? - Kat desviou os olhos das três atraentes desconhecidas e virou-se para encarar a pessoa que, embora falasse como
Jacky, tinha a voz muito diferente da de sua am... - Que merda é esta?! Jacqueline?... É você?!
A bela loira piscou várias vezes, tentando clarear a própria visão, e continuou a esfregar o peito.
- Quem mais poderia ser, o Coelhinho da Páscoa? Por que está falando desse jeito? Deus, estou ficando surda, também?!
- Não temam, Jacqueline e Katrina. Estão bem e seguras sob a nossa proteção - declarou a mulher que se encontrava mais próxima delas e, provavelmente, a mais impressionante
das três.
Kat fechou os olhos e respirou fundo várias vezes.
- Isto só pode ser sonho de bêbada. Nunca mais vou tomar tanto champanhe de novo, juro!
Hora de acordar, Katrina, e lidar com essa ressaca horrorosa! - Abriu os olhos.
- Não está sonhando, mortal - falou a mulher de ar régio, vestida com uma túnica branca esvoaçante com detalhes em azul-céu.
Em seguida, a mulher escultural, com incomuns olhos cinzentos, avançou um passo.
- Nós alteramos o seu destino. Em vez de permitir que perecessem no mundo moderno, tiramos suas almas de seus corpos destroçados e trouxemos para o mundo antigo.
Deveriam nos agradecer.
Irritada, a mulher que havia falado primeiro franziu o cenho para a segunda.
- Faça-me o favor, Atena! Elas não precisam nos agradecer coisa nenhuma. Elas não pediram por isto. Além do mais, rebaixar-se diante de deuses não é praxe no mundo
mortal moderno.
- Este não é o mundo mortal moderno - retrucou a mulher de olhos cinzentos.
- Verdade? Eu não tinha notado. Pensei que...
- Que diabo?! - Jacqueline exigiu, sentando-se.
- Jacky? - Kat ignorou as mulheres que discutiam e se virou para a amiga.
- Kat?... É você que está aí?!
- Sim, sou eu.
- Mas você não é você! Quero dizer, não é nem um pouco parecida com você! E que diabo está vestindo? - Jacky tocou o drapeado do manto vinho e seus olhos ficaram
cravados em sua própria mão. - Katrina Marie Campbell, o que está acontecendo?! Esta não é a minha mão!
- Podemos explicar - afirmou a mulher mais pomposa, fazendo um gesto de cabeça para a mais bonita delas. - Vá em frente, Vênus. Conte tudo a elas.
- Na verdade, é tudo muito simples. Vocês duas sofreram um terrível acidente depois que saíram da festa de sua amiga. Eu as estava observando por meio do meu oráculo
e... - A Deusa do Amor fez uma pausa e sorriu. - Eu sou Vênus, Deusa da Beleza Sensual, do Amor e das Artes Eróticas. - Apontou para a moça de olhos cinzentos. -
Esta é Atena, Deusa da Guerra e blá, blá, blá... - Gesticulou, então, na direção da imponente mulher. - E esta é Hera, a Rainha do Olimpo. Enfim, como eu dizia,
eu as estava observando através do meu oráculo e testemunhei o acidente. Não poderia deixá-las morrer assim, por isso resgatei suas almas. Não muito tempo depois,
um templo de Hera foi violado e Polixena, a princesa de Troia, e sua, ahn, dama de companhia, Melia, foram mortas. Paramos para pensar, realizamos uma cura rápida,
usamos suas almas e pronto. Aqui estão vocês. Ainda que em corpos diferentes. Viram? Eu disse que tinha sido simples.
- Eu... eu... - Kat balbuciou sem sucesso.
- Eu estou branca! - Jacqueline se pôs de pé e olhou para o novo corpo. - Oh, Jesus!... Santo Deus do Céu... Jesus! Eu vou desmaiar! Meu coração, Kat! Estou morrendo!
- Ela estendeu a mão às cegas, e Kat correu para segurá-la.
- Você não está morrendo. Estamos sonhando, é isso!
- Que merda de sonho é esse em que estou branca?! - Jacky choramingou, agarrando-se à Kat com uma das mãos e se abanando com a outra. - Meu coração, Senhor, o meu
coração! Está doendo!
- Minhas queridas, eu já disse que não estão sonhando - repetiu Vênus.
- E o que há de errado em ser branca? - indagou Atena.
- É apenas um pesadelo causado pela embriaguez - afirmou Kat, tentando manter a calma e usar seu melhor tom de psicóloga. - Vamos acordar em um instante e descobrir
que desmaiamos de novo em sua sala de estar. Lembra-se do último réveillon?
Vênus se aproximou de Kat e Jacky, e suspirou profundamente.
- Eu não queria fazer isso, mas precisam aceitar o que aconteceu. - Agitou os dedos afilados até que o ar começou a cintilar como diamante. Em seguida, lançou o
pó mágico sobre elas, dizendo: - Lembrem-se...
Kat aspirou a poeira cintilante com Jacky, espirrou, e se viu levada de volta ao fim da festa de Susie. Como se assistindo a um filme macabro, viu as duas tropeçando,
rindo, e se segurando uma na outra conforme entravam no táxi, que desceu a Reservoir Hill até o farol, no cruzamento. Horrorizada, Kat testemunhou o SUV avançar
o sinal vermelho e se chocar com o carro amarelo. Houve uma pausa silenciosa, mas, em seguida, com uma espécie de sopro sinistro, a cabine do táxi explodiu em chamas.
- Oh, Deus! Nós estamos mortas! - exclamou, compreendendo, enfim.
- Nós morremos e eu me tornei branca! - emendou Jacky. - Isso não pode estar acontecendo! Eu tinha certeza de que iria para o Céu!
- Eu devia ter ido para o Céu, também!
- Não sei, não, Kat. Lembra-se da sua adolescência na associação de moças? Daquele zagueiro da Tulsa University na linha de cinquenta jardas?... Esse tipo de comportamento
conta, viu? Pode ter certeza.
Kat deixou cair o queixo.
- Retire o que disse! Não acredito que acha que eu vou para o inferno por causa de um... deslizezinho na faculdade.
- Deslizezinho? Isso é uma palavra? E você não está apenas indo para o inferno, minha amiga. Você me arrastou até aqui!
- Jacqueline, já lhe ocorreu que você pode ter me arrastado para o inferno? E quanto àquelas vezes em que devolveu sapatos que tinha acabado de comprar, dizendo
que nunca os havia usado quando na verdade dava umas voltas com eles e depois os devolvia porque tinha gastado mais do que podia? Hein?
- Ora, por favor. Sapatos não podem entrar para o rol dos pecados. Além do mais, não faço mais isso há anos.
- Anos?
- Está bem. Meses.
Kat bufou e pôs as mãos nos quadris.
- E o que não dizer dos seus palavrões? - lembrou, crítica.
- Eu não falo palavrões. Eu uso expletivos.
- Exple... o quê? Que merda é essa?
- Senhoras! - Vênus se colocou entre elas. - Ninguém está no inferno. Vocês estão mortas... mas não estão. - A deusa franziu a testa e balançou a cabeça como se
ela própria precisasse clarear as ideias. - Não, não é tão confuso assim. Seus corpos estão mortos. Suas almas vivem porque são eternas. Elas são a sua essência.
Tudo o que fiz foi transferi-las para corpos que ainda estão funcionando.
- Como assim, "funcionando"? Onde estão as almas eternas que estavam nestes corpos? - Kat perguntou, aflita.
Vênus silenciou, constrangida, e Hera decidiu intervir.
- Você, Katrina, agora habita o corpo que pertencia à princesa Polixena, de Troia. E você, Jacqueline, agora reside no corpo que pertencia à Melia, sua serva.
- Virei empregada, agora? E uma empregada branca ainda por cima! Santo Deus, a coisa está ficando cada vez pior! - Voltou um olhar parado para Kat. - Eu realmente
fui arrastada para o inferno com você!
- Eu não estou no inferno! - protestou Kat.
- Nenhuma de vocês está no inferno! - Vênus repetiu depressa.
- Onde estão as almas que estavam nesses corpos? - Kat exigiu de novo.
Hera respondeu antes que Vênus pudesse fazê-lo.
- Elas estão desfrutando a felicidade eterna nos Campos Elíseos do Submundo grego antigo.
- Oh, Senhor, preciso me sentar... Estou no corpo de uma criada branca morta! - Jacky sentou-se com desânimo nos degraus do altar, abanando-se mais uma vez.
Kat observou o próprio corpo, aflita.
- Mas não vejo nenhuma ferida. Do que essa princesa morreu?
- Ah, meu Deus! Foi uma praga, não foi? Kat, estamos contaminadas com alguma coisa!
- Não, não, não! - Vênus tratou de acalmá-las. - Elas não morreram por conta de nenhuma doença. Elas foram assassinadas por guerreiros gregos.
- Mas onde estão os ferimentos?! - Kat olhou por dentro das vestes, virando de um lado para o outro na tentativa de enxergar todo o corpo.
- Nós as curamos antes de reanimá-las com as suas próprias almas - explicou Vênus.
- Essa é a primeira boa notícia que ouvi - Jacky falou com um suspiro, recuperando-se o suficiente para poder parar de se abanar. - Se é assim, basta que curem os
nossos corpos antigos, nos coloquem de volta neles, e poderemos esquecer que isto tudo aconteceu.
- Sinto muito. Não posso fazer isso. Seus corpos foram completamente carbonizados. Resgatei suas almas apenas porque já tinha decidido lhe perguntar, Kat, se pode
me fazer um pequeno favor.
- Deixe-me ver se entendi bem - principiou Kat. - Estava me espionando?
- E a mim também! - interveio Jacky.
- E também a Jacky - concordou Kat. - Isso porque queria que eu lhe fizesse um favor. Mas então nós morremos e, mesmo assim, resgatou as nossas almas...? Isso não
faz o menor sentido!
- Claro que faz, querida, embora eu não pense no meu oráculo como espionagem - Vênus contrapôs, reticente. - Hera, Atena e eu decidimos que precisávamos da ajuda
de uma mulher moderna mortal, e me foi dada a tarefa de encontrá-la. Você me pareceu perfeita, mas, logo em seguida, aconteceu esse trágico acidente. Mesmo assim,
ainda era a melhor para aquilo de que precisamos. Ao mesmo tempo, o templo de Hera foi atacado, e dois corpos se tornaram disponíveis. Um pouco de magia aqui, um
pouco de cura acolá, e aqui está você: viva e ainda perfeita para a pequena tarefa que eu preciso que execute. E, minhas queridas... - Vênus incluiu a carrancuda
Jacky em seu brilhante sorriso - ... Por me ajudarem, vou conceder uma bênção a cada uma de vocês.
- A única bênção em que estamos interessadas é nos ver de volta a nossos antigos corpos - Jacky falou com firmeza. - Não aos carbonizados, claro! Queremos ser colocadas
de volta nos nossos antigos corpos curados e limpos. - Olhou para baixo. - Como estes, mas só que os nossos.
- De acordo - declarou Kat.
- Isso simplesmente não é possível - repetiu Vênus. - Não temos poderes suficientes para curar seus antigos corpos. Sinto muito, mas...
- Não podem ter os seus antigos corpos de volta, mas nós três podemos encontrar outros, parecidos, em seu velho mundo - interveio Hera.
- Com "parecidos" quer dizer mais jovens e mais bonitos? - indagou Kat.
- E que passem pela nossa aprovação! - acrescentou Jacky.
- Como quiserem. Se cumprirem com a pequena tarefa que vamos lhe pedir, e esse for o seu desejo, irão retornar ao mundo moderno nos corpos mortais da sua escolha.
Jacky e Kat se entreolharam, deram as costas para as deusas e aproximaram as cabeças.
- Como será que Queen Latifah anda se sentindo? Talvez ela tenha alguma doença terrível que as deusas possam acelerar - Jacky sussurrou com esperança.
- Eu estava pensando a mesma coisa sobre Catherine Zeta-Jones - confessou Kat, mantendo a voz baixa. - E então? Vamos topar esse negócio ou não?
- Vamos! - decidiu Jacky.
Elas se voltaram para as deusas novamente.
- Está bem. Tudo o que precisamos fazer é esse pequeno favor para vocês, e depois vão nos levar de volta para o nosso tempo, em corpos da nossa escolha. Certo? -
indagou Kat.
- Sim - as três deusas responderam em uníssono.
- E qual é esse favor de que tanto necessitam? - quis saber Jacky.
- Muito simples. Queremos o fim da Guerra de Troia - Vênus respondeu.
- Pai do Céu!... - exclamou Jacqueline. - Você me trouxe mesmo para o inferno, Kat!
Capítulo Cinco
- Jacky, acho que pode estar certa - decidiu Kat, sentando-se ao lado da amiga no degrau do altar. - Nós estávamos falando sobre a Ilíada na casa da Susie. É óbvio
que essa nossa morte trágica nos jogou em algum tipo de inferno literário. Vai ver a próxima etapa é sermos sugadas para um livro de Thomas Hardy, cacete!
- Thomas Hardy? Deus meu... A dor voltou! - Jacky se abanou com força.
- Droga, eu sinto muito por ter metido você nisto. Transar com o zagueiro da Tulsa University definitivamente não valeu a pena.
- Eu sabia que ter uma melhor amiga branca ia dar merda um dia! - Jacky segurou o braço esguio e claro de Kat, desanimada. - Eu só não sabia que ia ser tão ruim.
- Vou perguntar mais uma vez: o que há de tão terrível em ser branca? - exigiu Atena.
- Nada, se você é branca - respondeu Jacky. - Mas eu não sou. - Ela suspirou. - Ou pelo menos não era antes de eu vir para o inferno.
- Pelas barbas de Zeus, como elas são teimosas! - Atena falou a Vênus. - Você não nos disse nada sobre isso.
- Eu disse que elas eram diferentes das mortais antigas. E isso é só o começo.
- Helloo!... Também estamos aqui no inferno com vocês! - chamou Kat, então se virou para Jacky. - O que será que elas fizeram para também terem sido mandadas para
cá?
- Elas são maravilhosas. Mulheres assim estão sempre aprontando com alguém - afirmou a outra moça.
- Ah, sim. Tem razão. Eu me esqueci.
- Elas estão dizendo que magoamos os outros? Mas nós somos deusas! Não aborrecemos as pessoas, elas é que nos aborrecem! - declarou Atena, lançando a Vênus um olhar
severo. - Diga a elas!
- Ei, nós estamos escutando! - falou Jacky.
- Jacqueline! Katrina! Vocês-não-estão-no-inferno! Parem com essa bobagem de uma vez! E o fim da Guerra de Troia não será tão difícil. Já temos um plano de ação
- Vênus revelou.
- Ei, não são essas as três deusas que causaram toda aquela encrenca a respeito de Helena e Paris? - Jacky lembrou. - Sabe, o casamento, a maçã, a história de terem
levado Helena - que já estava casada com outro - para Paris e outros bichos mais?
- Verdade. Acho que está certa - murmurou Kat.
- Vê há quanto tempo está durando esse boato ridículo? - Vênus disse a Hera, virando-se em seguida para as duas mortais. - Por isso mesmo já estamos fartas dessa
Guerra de Troia. Nós - fez um gesto abrangendo a si mesma, Atena e Hera - não começamos essa luta, e estamos cansadas de ser responsabilizadas por ela.
- É típico daquele miserável do Agamenon culpar os outros - resmungou Hera.
- O que Vênus, Hera e eu decidimos é que esta guerra já durou demais. Queremos que ela acabe. Agora - completou Atena.
- E por que acham que Kat e eu poderíamos ajudá-las nisso? - Jacky perguntou.
- Pelo visto, o que vocês precisam é transportar alguns cientistas modernos para cá. Dessa forma eles poderiam preparar uma ou duas armas de destruição em massa
- sugeriu Kat.
- Como se fosse fácil encontrá-los! - redarguiu Jacky.
- Isso é verdade - Kat concordou. - Mas, se estão pensando que nós podemos fazer alguma coisa a respeito, estão, mesmo, nos confundindo com outras pessoas.
- Ei, trazer armas modernas para o mundo antigo poderia mexer com a Primeira Diretriz ou algo assim - lembrou Jacky.
- Deus, você é mesmo uma imbecil! - exclamou Kat. - Este é o inferno, não um episódio de Jornada nas Estrelas. Embora os dois tenham algumas semelhanças.
- Cuidado, isso é blasfêmia, como a que colocou você nesta situação.
- Aquiles. - Vênus falou em voz alta, e ambas as mortais se voltaram para ela, fitando-a interrogativamente. - Aquiles é a razão para que essa guerra não termine
nunca. Se ele e seus Mirmidões se retirarem do campo de batalha, os Gregos não vão continuar com o cerco a Troia. Vão desanimar e voltar ao lugar a que pertencem.
- Continuo não entendendo o que isso tem a ver conosco - Kat resmungou.
- Na verdade, tem a ver apenas com você, Katrina - desabafou Hera, lançando a Jacky um olhar de desculpas. - Sua amiga só está aqui porque Vênus achou que vocês
duas não gostariam de ficar longe uma da outra.
- Eu não disse?! - exclamou Jacky.
- Merda! - praguejou Kat. - Preciso de uma bebida.
- Excelente ideia. - Vênus olhou ao redor do salão, até avistar Ilítia sentada, com os olhos arregalados, em um canto escuro. - Querida, será que pode nos trazer
um pouco de vinho? É uma longa história.
A sacerdotisa saiu correndo no mesmo instante, e a deusa respirou fundo.
- Agora, deixem-me explicar tudo...
- Nem a pau esse plano vai dar certo! - exclamou Jacky.
- É claro que vai dar certo - retrucou Vênus.
- Fala sério! Quem já ouviu falar de uma terapeuta salvando o mundo? Isso não aconteceu nem em Buffy - afirmou Jacky.
- O que é Buffy? - Atena perguntou.
- Estou começando a acreditar que isto aqui pode não ser o inferno - murmurou Kat. - Todo o mundo sabe que Buffy se passa no inferno.
- Ponto para você - respondeu Jacky. - A propósito, esse seu comentário sobre Buffy, a Caça-Vampiros, é tão idiota quanto o meu sobre Jornada nas Estrelas.
- Não, você que é idiota porque assiste aos dois.
- Eu não assistia até ver aquele gostoso do Spike fazendo sexo. Nossa, eu iria adorar fazê-lo explodir como uma rolha de champanhe! - comentou Jacky.
- O que é Buffy? - Atena perguntou a Vênus outra vez.
A Deusa do Amor deu de ombros.
- Não pode esperar que eu saiba tudo sobre mortais modernos. - Tomou um gole longo e fortificante de vinho antes de continuar. - Kat, vai nos ajudar com o nosso
plano ou não?
Katrina mordeu o lábio.
- Basicamente, quer que eu faça uma megassessão de terapia com Aquiles para ajudá-lo a controlar sua raiva, e, ao mesmo tempo, que o impeça de lutar.
- Pelo visto, elas querem que faça uma megassessão de sexo com ele, também - opinou Jacky.
Vênus a ignorou.
- Como eu já expliquei, Tétis, a mãe de Aquiles, está providenciando para que ele se retire do campo de batalha.
- Porque a amante de Aquiles, a tal da Briseida, foi afastada dele. Quer que eu tome o lugar dela?
- Sim - confirmou Vênus.
- De quem eu estou tomando lugar? - Jacky perguntou.
- De ninguém, querida - explicou a deusa. - Você será a serva de Polixena.
- É verdade, cacete. Eu quase me esqueci. Onde está a menina do vinho? Preciso de uma dose extra.
Ilítia se apressou a preencher o cálice de Jacky.
- Responda-me uma coisa, Deusa do Amor - pediu Kat enquanto Jacky bebia. - Acabaram de tirar a mulher de Aquiles dele. Se isso foi o suficiente para que o homem
parasse de lutar, por que cargas d'água acredita que ele estaria interessado em trocar de mulher? Quero dizer, pelo que parece, ele tinha mais do que uma queda pela
antiga.
- Não foi uma relação de amor - garantiu Vênus. - O orgulho de Aquiles ficou ferido por terem tomado Briseida dele, mas não seu coração.
- Como pode ter tanta certeza? - perguntou Jacky.
- Agamenon diz que a beleza de Briseida foi desperdiçada nas mãos de Aquiles - contou Hera.
- Maravilha, Kat, ele é gay - afirmou Jacky.
- Gay? - Atena indagou, confusa.
- Aquiles não é gay! - objetou Vênus.
- Gay? - Atena repetiu, batendo o pé, exasperada.
- Isso significa que ele só transa com outros homens - Jacky explicou. - Transar quer dizer fo...
- Eu sei o que significa - interrompeu Atena. - E concordo com Vênus. Aquiles não é gay. Mas parece que ele não transa há anos, então Briseida não era amante dele.
- Como sabe que ele... - começou Vênus.
- A mãe de Aquiles me contou - revelou Atena.
- E por que ele não tem tido nenhuma amante? - Kat quis saber.
- Ah, isso é fácil de explicar - interveio Atena. - Ele assusta as mulheres.
- Por quê?! - Jacky exigiu, mais do que alarmada.
- A Fúria de Aquiles as assusta. Parece que ele é dominado pela ira quando lhe despertam algum tipo de emoção, seja luxúria ou raiva - explanou Atena.
- Sim, e as donzelas do mundo antigo não estão preparadas para lidar com um homem assim. Mas eu sei que as mortais modernas são diferentes: são mais fortes, mais
inteligentes, mais independentes. Além disso, ouvi que costuma aconselhar homens no seu trabalho. Por isso a escolhi - Vênus terminou com um grande sorriso para
Kat.
- Bem, na verdade não apenas homens, mas principalmente casais cujo casamento está em crise.
Vênus fez um gesto de desdém.
- É tudo a mesma coisa. Também a ouvi descrevendo a si própria como uma mulher muito otimista e que aprecia os homens. Ou seja, é perfeita para este trabalho.
- E ela ainda diz que não estava espionando você! - resmungou Jacky.
- Tétis também mencionou algo sobre as mulheres ficarem assustadas com as cicatrizes de Aquiles - Atena acrescentou de repente.
- Eu não sabia de Aquiles tinha cicatrizes - falou Vênus.
- Nem eu - emendou Hera.
Atena deu de ombros.
- Parece que são cicatrizes de batalha. Tétis disse que nem sempre ele sai incólume de seus acessos de raiva.
- Bem, isso pode ser uma coisa boa. Mostra que Aquiles precisa de um gatilho para que isso aconteça. Se eu conseguir fazê-lo identificar esse gatilho, então talvez
possa desarmá-lo - comentou Kat. - Parece um caso de Gerenciamento da Raiva 101.
- Interessante. Não me parece preocupada com o fato de ele ser marcado - observou Atena.
Jacky respondeu antes que Kat pudesse fazê-lo.
- Como diz Vênus, as mulheres modernas são diferentes. É preciso mais do que algumas cicatrizes para nos colocar para correr.
- Eu diria que tenho a capacidade de enxergar além do físico - contrapôs Kat.
- Idem - concordou Jacky. Em seguida apontou para o próprio corpo. - Exceto neste caso... Deus, tenho mesmo que vestir cor-de-rosa? Odeio rosa!
- Pois ficou muito bem em você. Sabe que está linda, Jacky - elogiou Kat.
- Estou é branca demais! - resmungou a outra.
- Nem tanto. Há algum espelho por aqui? - ela perguntou a Vênus.
- Ilítia, querida, poderia nos trazer um espelho?
A sacerdotisa tornou a sair correndo e, logo depois, voltou com um espelho redondo, de tamanho médio, emoldurado em bronze. Kat o segurou diante de Jacky, de modo
que esta pudesse ver a si mesma.
- Viu?
Jacky arregalou os olhos e levou as mãos aos cabelos.
- Meu Jesus Cristinho!... meu cabelo está comprido! Tenho fios compridos, sedosos e loiros!
- Muito lindos por sinal - elogiou Kat.
- Puta merda! Sabe que eu não tenho a menor ideia de como cuidar de cabelo de mulher branca. Principalmente de um cabelo loiro como este!
- Ah, querida, não se preocupe com isso. Eu posso ajudar. Sou especialista no assunto. - Vênus balançou a cabeça para trás, fazendo com que as próprias madeixas
flutuassem, cintilantes.
- Eu não estou no inferno. Estou presa em um romance - concluiu Jacky. Em seguida se inclinou para o espelho. - E os meus olhos estão azuis, da cor do céu!
- Pense de outra forma - aconselhou Kat. - Se estamos presas em um romance, significa que vamos ter sexo. Muito sexo.
- Acha mesmo? - indagou Jacky, esperançosa. - Seria ótimo se fosse um romance erótico.
- Tomara - emendou Kat. Então respirou fundo e virou o espelho para si mesma. - Caramba! - Tocou o rosto devagar. - Cacete, quantos anos eu tenho?! Pareço uma adolescente!
- Você também tem cabelo comprido - Jacky observou. - Embora ele seja preto e não tão impressionante quanto o meu.
- Eu pensei que preto fosse bom - Atena falou, confusa.
- Eu nunca vou entender essas duas - sussurrou Hera.
- Falando a sério, quantos anos tinha Polixena? - Kat quis saber, ainda olhando para si mesma.
- Acredito que ela estivesse próxima de completar dezoito verões - arriscou Hera. - A idade ideal para se casar. Por isso mesmo ela estava aqui, pedindo a minha
ajuda. Polixena queria se tornar a noiva do Rei de Sardes.
- Meu bom Deus, dezoito?! Mas ela era moça demais! - lamentou Kat.
- Você continua solteira, não é mesmo, Katrina? - Hera perguntou, educada.
- Totalmente - confirmou Kat.
- Eu também - Jacky emendou.
- E com quantos anos vocês estavam? - indagou a Rainha das Deusas.
- Eu tenho 36 - Kat disse. - Ou pelo menos tinha.
- Ainda é um bebê, Kat. Estou com 38 - Jacky contou a Hera. Em seguida, franziu a testa e enfiou a cara perto da de Kat, de maneira a olhar o próprio reflexo outra
vez. - Hum. Eu também pareço mais moça. Aposto que a gente nem chegou aos vinte.
- Elas eram solteironas? - Hera perguntou, visivelmente chocada. - Você escolheu solteironas?!
- Como eu já disse mais do que devia, as mortais modernas são diferentes! - explicou Vênus.
Refletidas no espelho, os olhares de Jacky e Kat se encontraram.
- Sua velha feia e solteirona - provocou Kat.
- Bruxa seca! - devolveu Jacky.
E as duas explodiram em uma gargalhada.
Capítulo Seis
- Oh, Deus, nós somos engraçadas - concluiu Kat, encostada em Jacky, que ainda ria e enxugava os olhos.
- Vai nos ajudar ou não? - Vênus perguntou.
Kat ergueu os olhos para a deusa.
- E se eu der o melhor de mim por Aquiles, não der certo e ele voltar a lutar? Meus conhecimentos sobre Mitologia são medíocres, mas todo o mundo sabe que Aquiles
foi um famoso guerreiro que morreu porque uma flecha perfurou seu calcanhar, o único lugar em que ele era vulnerável. E também que ele viveu para lutar e morreu
lutando.
Vênus revirou os olhos.
- O calcanhar era o único lugar em que ele era vulnerável?
- Mais boatos - afirmou Hera, balançando a cabeça. - Sempre os desagradáveis boatos!
- Então essa história de calcanhar não é verdade? - admirou-se Jacky.
- Isso não faz o menor sentido! - interveio Atena. - Como uma flechada no calcanhar poderia matar alguém? Mortais modernos acreditam em qualquer coisa, mesmo.
- Helloo! Isso foi escrito por gente do tempo de vocês, não do nosso! Até o tendão que temos sobre o calcanhar foi batizado com o nome de Aquiles - lembrou Kat.
- Ei, e quanto àquela história sobre o Cavalo de Troia? - indagou Jacky.
As deusas a fitaram, sem entender.
- Essa guerra estúpida foi ganha quando, ahn...
- Quando os Gregos adentraram as muralhas de Troia escondidos dentro de um gigantesco cavalo oco de madeira - Kat terminou para ela. - Ou algo parecido.
Vênus negou com um gesto de cabeça.
- Primeiro fomos nós, as deusas, que começamos a guerra. Depois Aquiles só pôde ser morto ferido no calcanhar. Agora estão me dizendo que um enorme cavalo de madeira
ganhou a guerra? Isto está ficando cada vez mais ridículo. Nada disso é verdade - falou com firmeza.
- Que maravilha. Quer dizer, basicamente, que os únicos detalhes interessantes que Jacky e eu nos lembramos das nossas inúteis aulas de Ciências Humanas são bobagem.
- É o que parece - concordou Vênus.
- Tudo bem. Qual é a verdade? Aquiles não é indestrutível, mas é um guerreiro. Ao menos essa parte confere, certo?
- Aquiles não é imortal, mas a Fúria o torna quase impossível de ser morto. E, sim, ele foi guerreiro durante toda a sua curta vida.
- Oh, Deus, não me diga que ele também é um adolescente! - Kat murmurou.
- Não, mas nem chegou aos trinta. Zeus profetizou que, se Aquiles escolhesse uma vida de glória e batalhas, não chegaria a viver trinta verões, mas seria lembrado
por milhares de anos.
- O quê? Aquiles escolheu isso? Se é assim, não sei o que esperam que eu faça! - ela exclamou.
- Ele fez essa escolha quando ainda era um menino. Mas cresceu e mudou desde então. Tétis afirma que o filho se arrependeu de sua decisão infantil e anseia por paz;
contudo, seu destino parece definido, e ele perdeu a esperança de tomar um rumo diferente daquele que lhe foi traçado - explicou Atena.
- Compreendo - Kat falou devagar. - Vou tentar ajudá-lo. Mas apenas com a condição de que, ganhando ou perdendo, ajudando-o ou não, Jacky e eu sejamos enviadas de
volta para o nosso mundo.
- E nos corpos que escolhermos! - Jacky acrescentou.
- Se conseguirem acabar com a Guerra de Troia, será concedida uma bênção a cada uma de vocês.
- Hera... - Kat enfrentou a Rainha do Olimpo. - Não pode esperar que eu entre em cena de repente e conserte um sujeito que eu nunca vi antes. E que se encontra em
uma situação fora da minha área de especialização.
- No entanto, é essa a proposta que fazemos - insistiu a deusa. - E tenham uma coisa em mente: quanto mais dias se passarem de seu infeliz acidente, mais difícil
será para nós devolvê-las em perfeito estado para sua antiga vida.
- Não pode nem mesmo garantir o que está dizendo?
- Posso garantir que usaremos todos os nossos vastos poderes para tentar realizar isso - esclareceu Hera.
Kat olhou da Rainha das Deusas para Vênus. Era óbvio que a Deusa do Amor estava descontente com a "proposta" de Hera, entretanto deu de ombros e balançou a cabeça,
conformada, deixando óbvio que não tinha como fazer sua rainha mudar de ideia.
- Está bem - Jacky falou. - Kat vai cuidar dessa história o mais rápido possível, sem problemas, e a senhora, Toda-Poderosa, apenas mantenha a sua parte no acordo.
- Eu sempre cumpro com a minha palavra! - afirmou Hera.
- Se for assim, estamos entendidas - declarou Kat.
- Não inteiramente - interveio Vênus. - Acho que precisa ficar claro que elas estão sob proteção divina.
- Concordo - disse Hera.
- Eu também concordo - emendou Atena.
- Ótimo. Então é sob a sua proteção que elas vão ficar - Vênus falou a Atena.
- Por que só minha?!
- Elas não podem ficar sob a minha porque, de acordo com os rumores gregos, fui eu quem causou todo o problema Paris/Helena. Não podem ficar sob a de Hera porque
ela acabou de mandar Agamenon tomar Briseida de Aquiles. Você é a única que resta. Além disso, tem uma história com Ulisses, assim como com Tétis, que já deve ter
dito ao filho que você lhe assegurou uma nova noiva de guerra. Por tudo isso, Polixena tem de ficar sob a sua proteção - concluiu Vênus.
- Sim... Bem, acho que está certa - concordou Atena, relutante.
- Querem saber, não tenho certeza se gosto da expressão "noiva de guerra". Não sou nenhuma pudica, mas sempre escolho com quem vou para cama. Além do mais, não sou
propriedade de ninguém - afirmou Kat.
- Apoiado - emendou Jacky.
- Tétis me garantiu que o filho não iria obrigar ninguém a se deitar com ele - contou Atena.
- Tudo bem, mas isso ainda deixa em aberto a questão de eu me tornar propriedade dele.
Atena franziu a testa, confusa.
- Mas você é mulher e também um prêmio de guerra, portanto propriedade dele!
Kat levou as mãos aos quadris.
- Não sou propriedade de ninguém.
- Ser propriedade de Aquiles vai ajudá-la a se manter segura, e também a mantê-la ao lado do guerreiro - observou Vênus.
- E quanto a mim, sou propriedade de quem? - indagou Jacky.
- De Polixena - a Deusa do Amor respondeu.
- Que merda!
- Precisamos de uma explicação para esses modos estranhos delas - decidiu Hera, lançando a Jacky um olhar severo.
- Tem razão - aquiesceu Atena, estudando Jacky e Kat enquanto falava. - O jeito esquisito dessas duas vai chamar a atenção.
- Poderia dizer que Kat é um experimento seu; que você a imbuiu com conhecimento sagrado - sugeriu Hera.
- É isso! Podem pensar que ela é uma espécie de oráculo, por isso está sempre se comportando de modo estranho - completou Vênus.
- Isso pode explicar Katrina, mas e quanto a ela? - Hera apontou o queixo na direção de Jacky.
- Meu Jesus Cristinho, eu estou aqui, sabiam?! Caramba, como é irritante quando vocês falam de mim como se eu tivesse ficado surda e muda! - protestou a moça. -
Além do mais, eu não me comporto de modo estranho.
Ninguém falou nada por vários instantes, então Kat suspirou.
- Que tal isso? Sou um oráculo bizarro, por isso não é de estranhar que a minha criad... - Capturou o olhar assassino de Jacky e se corrigiu, apressada: - ... que
as minhas amizades também sejam esquisitas.
- Isso não é exatamente plausível - declarou Atena devagar.
- Mas é tudo o que temos - decidiu Vênus.
- Está bem - falou Kat. - Vamos dar cabo desse trabalho de uma vez.
- Espere! Se vamos ficar sob a proteção de Atena, por que temos que dar explicações? - indagou Jacky.
- Estarão sob a minha proteção, mas não posso ficar o tempo todo a seu lado.
- Então como, diabos, vai nos proteger? - exigiu a moça.
- Vão invocar a minha ajuda, ora - explicou Atena.
- Ou a minha - Vênus completou.
- Ou a minha - finalizou Hera, embora ainda franzisse a testa para Jacky.
- Não estou sentindo muita firmeza - contestou Jacky.
- Acontece que isso é tudo com que podem contar - Vênus reforçou.
Jacky bufou e abriu a boca para retrucar, mas vozes masculinas, vindas do lado de fora do templo, a interromperam. Atena remexeu os dedos no ar e foi como se uma
tela de exibição secreta se abrisse, mostrando meia dúzia de guerreiros que entrava no templo.
Kat só conseguiu vislumbrar o loiro que vinha à frente do grupo antes que Atena fechasse a janela.
- É Aquiles! - Ilítia reconheceu, soando meio sem fôlego. - Eu o vi apenas a distância, mas sua armadura dourada é inconfundível.
Kat sentiu o estômago dar um nó, e Jacky apertou sua mão.
- Vai dar tudo certo. Você é uma tremenda terapeuta. E, não bastasse isso, também é uma tremenda gata agora.
- Ao contrário da "tremenda tiazinha" que eu era antes?
- De certa forma. Com o porém de que ainda tem muita coisa boa aqui... - Jacky apontou para a cabeça de Kat - ... e aqui. - Tocou seu coração. - O esquentadinho
aí não tem a menor chance.
- Está bem. Vamos resolver isso de uma vez - Kat falou a Vênus com um suspiro.
A deusa sorriu calorosamente para ela.
- Lembre-se: a Deusa do Amor acredita que é perfeita para isso. Você e essa sua amiga maluca. - Virou-se para Hera. - Temos que sair daqui. Atena precisa enfrentar
os guerreiros e deixar clara a sua proteção. Nossa presença iria apenas confundir as coisas.
Atena assentiu.
- Encontro vocês no templo de Vênus mais tarde.
- Sigam com a minha bênção, estranhas mortais modernas - conclamou Hera, dirigindo-se a Kat e Jacky. Em seguida beijou Ilítia na testa. - Você, minha doce sacerdotisa,
me agradou deveras hoje.
Enquanto Ilítia fazia uma reverência profunda, Hera e Vênus desapareceram em uma nuvem de poeira cintilante.
- Que legal deve ser poder fazer isso! - exclamou Jacky. - Quer saber? Estou começando a acreditar nelas. Acho que não estamos no inferno.
- Também prefiro sua teoria do romance erótico - ironizou Kat.
- Preparem-se, mortais, e sigam-me - ordenou Atena antes de marchar regiamente para fora do salão.
Kat e Jacky reviraram os olhos uma para a outra e, dando um adeusinho para Ilítia, foram atrás da deusa.
Os guerreiros tinham acabado de chegar ao centro da câmara exterior do templo de Hera, que não possuía paredes, mas que era cercado por graciosas colunas de mármore
a céu aberto. Kat teve a atenção distraída dos homens em função daquilo que as rodeava. Era um dia belíssimo: claro e quente, e o ar cheirava a mar e incenso adocicado.
- Se isto aqui é o inferno, é uma maravilha! - Jacky sussurrou, segurando a mão dela com ainda mais força.
Os homens as avistaram, ou melhor, avistaram Atena; e Kat não teve mais tempo para a paisagem.
- A deusa! É a deusa Hera! - Um guerreiro gritou, e pouco mais de meia dúzia de homens caiu de joelhos.
Na verdade, Kat observou que todos eles, exceto dois, haviam se ajoelhado. O mais alto se encontrava de costas para o sol, e a inclinação dos raios da tarde tornava
difícil para ela vê-lo bem. Tudo o que enxergava era muito cabelo, músculos e altura. O outro estava mais próximo da deusa, e ela conseguiu avaliá-lo melhor. Era
um sujeito bastante comum, de altura mediana, cabelos castanhos, corpo bem-estruturado (o que se podia discernir sem problemas por trás da túnica de couro curta
que usava). Não havia nada de notável nele até o momento em que falou.
Depois disso, ela se viu imediatamente atraída por seu tom de voz culto, inteligente, e pelos olhos que brilhavam com sagacidade. Ele caminhou cerca de meio metro
na direção da deusa antes de se pôr sobre um joelho, mas não curvou a cabeça em reverência, assim como o restante dos homens. Em vez disso, levou a mão direita ao
coração e sorriu com óbvio carinho para Atena. Suas primeiras palavras foram ditas em voz tão baixa que se Kat não estivesse de pé ao lado da deusa, não as teria
escutado.
- Salve Atena, minha deusa! Há muito tempo não aparece para mim. Senti sua falta.
- Claro que sentiu minha falta, Ulisses. O preço de ser amado por uma deusa é que fica sujeito a seus caprichos, e não ela aos seus.
A voz de Atena soou forte, porém Kat ficou chocada ao ver como a expressão da divindade se tornou mais suave quando ela olhou para o rapaz.
- Mirmidões imbecis! - O homem alto bradou com uma voz grave e áspera para os outros guerreiros. - Como puderam confundir Atena, a Deusa da Guerra, com Hera? - Avançou
para se ajoelhar ao lado de Ulisses e inclinou a cabeça com respeito. - Salve Atena! Perdoe meus homens. Seus cérebros devem ter apodrecido com o sol e o mar de
Troia. Eles não tiveram a intenção de desrespeitá-la.
- Estão perdoados, Aquiles. Você e Ulisses podem se levantar agora.
Aquiles! O nome provocou um arrepio na pele de Kat.
Então ele se levantou e ergueu o rosto.
O primeiro pensamento de Kat foi que ela entendia, agora, por que ele assustava tanto as mulheres. Seu segundo pensamento foi se perguntar como, naquele mundo antigo
sem penicilina e transfusões de sangue, ele sobrevivera a tantos ferimentos.
Manteve a expressão cuidadosamente neutra, contudo. Ouviu a exclamação de Jacky a seu lado, mas soube que a reação da enfermeira não era de choque ou aversão, e
sim também de espanto por Aquiles ter sobrevivido a ferimentos tão horríveis.
Nem precisou se preocupar com sua própria expressão, contudo. Aquiles não tinha olhos para ninguém, exceto para Atena.
- Se veio até aqui, Aquiles, é porque Tétis falou com você - deduziu a deusa.
- Sim, deusa - ele admitiu.
- Agamenon tomou seu prêmio de guerra.
Embora Atena não houvesse entoado as palavras como uma pergunta, Aquiles acenou com a cabeça, constrangido.
- Isso mesmo.
Kat notou que os homens atrás dele reagiram à afirmação com nervosismo e se movimentaram, inquietos.
- Se é assim, vou substituir o que perdeu. Trago-lhe Polixena, Princesa de Troia, filha de Príamo! - Atena fez um gesto exagerado e se afastou.
O olhar de Aquiles se voltou para Kat, e ela teve a sensação de que os pés haviam criado raízes e afundado no chão de mármore do templo. Ele era dono dos olhos mais
incrivelmente azuis que ela já vira!
Jacky tossiu, e, conforme cobria a boca, conseguiu empurrar Kat para a frente.
- Princesa Polixena, conheça Aquiles, Chefe dos Mirmidões - apresentou Atena.
Por sorte, Kat conseguiu assumir sua postura de terapeuta. Sorriu, educada, e, em uma voz modulada, calma e falsa, saudou:
- Olá, Aquiles. É um prazer conhecê-lo. Ouvi falar muito sobre você. - Então avançou com propósito e, ainda sorrindo, estendeu a mão para ele.
Aquiles hesitou. Olhou da mão estendida para seu rosto e, depois, para sua mão outra vez. Kat manteve o sorriso desenhado nos lábios e a mão no ar. Por fim ele a
aceitou, cauteloso, e se inclinou sobre ela como se fosse beijá-la, mas parou bem antes que seus lábios lhe tocassem a pele. Em seguida, soltou-a e deu meio passo
para trás.
- Eu vos saúdo, princesa - disse, contudo seu olhar já se deslocava mais uma vez para Atena.
- Tenho que voltar para o Olimpo - anunciou a deusa. - Aquiles e Ulisses, quero que fique claro que Polixena é especial. Ela nunca será uma simples noiva ou prêmio
de guerra, pois é muito mais do que isso. Decidi imbuí-la com um conhecimento sagrado. Pensem nela como se fosse o meu amado oráculo. Polixena e sua serva estão
sob a minha proteção. Quem se atrever a molestá-las irá evocar a minha eterna ira! - Atena ergueu a voz, de modo que seu poder tocasse fisicamente os homens ajoelhados.
- Compreendemos, senhora - murmurou Aquiles.
- Certifique-se de mantê-la segura - instruiu Atena. - Ulisses, precisamos conversar. - A deusa fez um sinal para que o guerreiro a seguisse até um local onde não
pudessem ser ouvidos, deixando Kat e Aquiles a sós.
Kat queria olhar para ele. Sem dúvida, olhar era tudo o que as mulheres faziam ao conhecê-lo... Ou então estas se recusavam a fazê-lo.
Assim como ela.
Deus, estava agindo como uma idiota!
Resoluta, voltou-se para Aquiles, e o pilhou olhando para o nada por cima de seu ombro, a mandíbula apertada. Ele devia odiar primeiros encontros como aquele, pensou.
Limpou a garganta e, quase com relutância, os olhos de Aquiles encontraram os seus.
- Aquiles, eu gostaria de apresentá-lo à minha... serva. - Kat tropeçou um pouco na palavra. - Esta é J... Melia - corrigiu-se a tempo, quase se esquecendo do novo
nome de sua melhor amiga.
Jacky ergueu o queixo e fez uma reverência breve e meio estranha.
- Prazer - falou apenas.
Ignorando-a por completo, Aquiles franziu o cenho.
- Está me apresentando à sua escrava?
- Bem... sim - Kat confirmou.
- Santo Deus, é como se eu não estivesse aqui de novo! - Jacky resmungou.
- Ela é uma nobre! - A voz imperiosa de Atena fez com que todos dessem um pulo. A deusa caminhou a passos largos de volta para eles. - Melia foi uma nobre princesa
em sua própria terra antes de ser raptada e vendida a Troia, e Polixena optou por não magoá-la ainda mais. Como eu disse, a princesa é uma mulher muito especial.
- A deusa deu as costas para os guerreiros, de maneira a lançar um olhar severo na direção de Kat e Jacky. - Vou-me embora agora. - Voltou-se para os homens novamente
e ergueu um braço num gesto majestoso. - Lembrem-se de que os estarei observando, e que nunca se sabe quando surgirei outra vez. - E desapareceu em uma nuvem de
poeira cinzenta e cintilante.
- É a rainha do drama... - Jacky cochichou para Kat.
- Vamos, princesa. Vou lhe mostrar a sua nova casa. - Sem esperar para ver se ela o seguia, Aquiles marchou para fora, deixando que seus soldados formassem uma coluna
em torno das mulheres e fossem atrás dele.
Capítulo Sete
- Meu Jesus Cristinho, olhe só para isso! - Jacky sussurrou para Kat.
Elas estavam à beira de uma enorme vala, inserida entre a planície gramada que descia da chapada em que Troia fora construída, e uma ampla praia de areia branca,
beijada por um mar turquesa tão claro e azul que fez os olhos de Kat doer.
Mas não foi a estranha vala ou a beleza do mar que tinham feito Jacky murmurar e ficar de olhos arregalados. À sua esquerda, até onde se podia enxergar, a praia
se encontrava repleta de barracas coloridas e homens. E, a pouca distância da areia, a baía arredondada estava lotada de antigos navios de madeira.
- Por aqui, princesa - chamou Ulisses, rompendo o feitiço que a vista lançara.
Piscando, Kat o fitou. Haviam ficado para trás dos guerreiros, que viraram para a direita e agora seguiam a linha da costa após terem descido e depois saído da trincheira.
- Aquiles e seus Mirmidões nunca acampam conosco - explicou Ulisses, torcendo os lábios de leve.
- Nem mesmo antes de Agamenon levar Briseida? - perguntou Kat.
O rapaz negou com um gesto de cabeça.
- Nem antes. - Fez sinal para que as duas mulheres caminhassem a seu lado. - Todos sabiam da antipatia que Aquiles e o rei Agamenon sentem um pelo outro, embora
apenas recentemente essa antipatia tenha se transformado em ódio.
- Não me parece muito inteligente odiar tanto o seu próprio rei - observou Jacky.
Ulisses se voltou para a moça um pouco espantado antes de responder, e Kat deu um discreto suspiro de alívio. Talvez seu disfarce de oráculo - e o de "nobre serva"
de Jacky - dessem certo.
- Aquiles é o maior guerreiro da Grécia. Talvez a questão seja por que um rei se afastaria de seu campeão. - Kat riu, sarcástica. - Quem sabe por arrogância, vaidade,
luxúria...? Reis não são propensos a essas coisas? - Começou a cantarolar em pensamento o emocionante refrão de "Deus Salve a América". Mas quando pensou na atual
política americana, a música derrapou até uma metafórica parada.
O olhar de Ulisses era astuto.
- Pois dizem que seu pai não possui nenhuma dessas características. Ao contrário, há rumores de que ele é sábio, honrado e muito amado por seu povo.
- Ele não é o único rei que eu conheço - Kat replicou depressa, esperando não ter metido os pés pelas mãos. Desejou que seus dias de faculdade não tivessem ficado
para trás, e que ela houvesse prestado mais atenção nas aulas de Literatura Mundial.
- Dizem que estava prestes a se tornar a noiva do filho do rei de Sardes - comentou Ulisses.
Puta merda! Ela estava quase comprometida? E com um rei, ainda por cima!
Kat engoliu em seco. Vênus devia ter feito pelo menos um resumo das coisas!
- Eu gostaria de não falar sobre... você sabe, a minha antiga vida.
Ulisses curvou a cabeça em respeito ao que - Kat imaginou - devia ter sido a sua vida arruinada.
- Diga-me, que tipo de garota era Briseida? - quis saber, mudando de assunto.
O guerreiro ergueu as sobrancelhas diante da pergunta.
- Era uma noiva de guerra muito bonita e cordata.
Jacky bufou, o que fez o famoso herói sorrir.
- E ela se dava bem com Aquiles? - insistiu Kat.
O tom de Ulisses se tornou enigmático.
- Assim como todas as outras mulheres - ele respondeu, hesitante. Então acrescentou: - Aquiles é um grande lutador.
- Há coisas mais importantes na vida do que a guerra.
- Não desde que Paris raptou Helena - contrapôs o rapaz. - Tanto no meu mundo como no seu.
- Talvez seja hora de mudarmos isso - Kat declarou.
O olhar do rapaz se voltou para ela.
- Atena a enviou para cá a fim de nos conceder a vitória sobre Troia?
Não. Na verdade, estou aqui para que Aquiles fique fora da guerra e, tão logo quanto for possível, os Troianos a ganhem, ela respondeu em pensamento.
- Como Atena disse, estou aqui por causa de Aquiles - falou em vez disso.
- Claro - concordou Ulisses, deixando evidente que essa era a última coisa em que ele acreditava.
A praia deixou de ser plana e arenosa e ficou cheia de dunas e vegetação. Kat se viu feliz por ela e Jacky ficarem para trás e serem obrigadas a seguir Ulisses em
torno dos pequenos morros de areia, o que tornou a conversa impossível. De repente, a duna desembocou em uma enseada que era impressionante em termos de tamanho
- embora fosse bem menor do que a baía onde a frota grega se encontrava atracada - e protegida em ambos os lados por enormes dentes de coral escuro. Entre esses
dentes havia mais navios - todos com velas negras, que Kat parou de contar ao chegar nos 30 e alguma coisa.
A praia em frente à enseada também se encontrava repleta de tendas.
- Aquiles fica lá, mais próximo da costa. - Ulisses diminuiu o passo, de forma que as duas pudessem caminhar com ele à margem do acampamento conforme este rumava
na direção de uma enorme tenda que ficava além das demais. Sua lona fora tingida de um amarelo tão vivo que parecia ouro e continha uma majestosa águia pintada de
cada lado.
Kat percebeu que Aquiles estava fora da barraca e se juntara a um pequeno grupo de homens que se encontrava de pé, em torno de alguém sentado.
- Quanta delicadeza dele ter esperado por nós! - Jacky resmungou. - Parece que o Mr. Mundo também vai precisar de umas aulas de etiqueta.
Kat suspirou, concordando com Jacky em pensamento. Haviam acabado de alcançar Aquiles, que não lhes deu a menor atenção. Sem dúvida ele estava totalmente envolvido
com o que acontecia com o sujeito no meio do círculo.
Estava pensando em lhe perguntar onde ficaria hospedada, ou se deveria apenas entrar na barraca e verificar as instalações, quando percebeu o que todos estavam olhando:
um rapaz sentado em um banco, com um corte horrível na parte externa do bíceps esquerdo que sangrava muito.
A seu lado, um senhor baixinho remexia uma velha cesta de palha. Com um grunhido de vitória, o homem tirou do cesto uma agulha enorme, tão afiada quanto suja, e
que já trazia um fio comprido que lembrava uma linha de pesca preta. O velho olhou para o rapaz que sangrava, e abriu um sorriso malicioso.
- Isso vai doer um pouco, filho... - Então se inclinou sobre o braço ferido e começou a pressionar as bordas da carne, sem dúvida se preparando para costurá-las.
- Ah, não. Não vai fazer isso! - Jacky deu um salto e arrancou a agulha do homem, que a fitou, boquiaberto. - Isto aqui está nojento! - Exibiu a agulha. - Se usá-la
nesse corte - apontou a ferida aberta - o braço dele vai cair de podre!
- Como esta mulher se atreve?! - O velho começou, e Kat abriu caminho até se postar ao lado de Aquiles.
- Ela é curandeira - explicou ao guerreiro.
- Eu sou o curandeiro! - explodiu o homem, indignado.
- Não, você é um charlatão. E um charlatão com mãos sujas - retrucou Jacky.
Kat ignorou a ambos e se concentrou em Aquiles.
- Ela recebeu um dom especial de Atena.
O velho se voltou para Kat.
- E quem é você?
- Sou o oráculo de Atena e a noiva de guerra de Aquiles - ela respondeu com calma.
- Um oráculo de Atena que é prêmio de guerra! Bah!... Que brincadeira é essa? Acha mesmo que Kalchas, adivinho e profeta dos Aqueus, não iria saber da chegada de
um oráculo divino?
Ulisses limpou a garganta.
- Kalchas, meu velho amigo, acabamos de retornar de um encontro com a deusa. Atena, de fato, presenteou Aquiles com Polixena, a quem ela proclamou seu oráculo.
Kalchas estreitou os olhos remelentos.
- Viu Atena pessoalmente?
- É o que estou dizendo.
- E eu digo que você sempre foi melhor profeta do que curandeiro, Kalchas - A voz profunda de Aquiles silenciou a todos. - A serva de Polixena vai curar Pátroclo.
Isto é, se meu primo não fizer nenhuma objeção.
A voz do rapaz que sangrava saiu bem-humorada, e seu som fez Kat notar que Pátroclo era bonito, jovem e muito, muito loiro.
- Eu me curvo à sua vontade, primo - ele declarou. Em seguida, exibiu os dentes brancos para Jacky, acrescentando: - E, é claro, também à vontade dos deuses e da
minha linda curandeira.
- Ótimo. Vou precisar que fervam esta coisa. - Jacky levantou a agulha suja. - Também preciso... - Fez uma pausa, e Kat teve a certeza de que a amiga estava descartando
palavras como "desinfetante" e "penicilina". - ... preciso do álcool mais forte que tiverem.
Os homens piscaram para Jacky com um ponto de interrogação nos rostos.
Kat se voltou para Aquiles e o tocou no braço, observando, mas não reagindo, ao fato de ele ter se esquivado de sua mão como um cavalo arisco.
- Ela quis dizer a bebida mais forte que tiverem. Algo que deixe os homens embriagados facilmente.
Aquiles olhou para Ulisses.
- Não disse que a bebida maldita que Idomeneu trouxe de Creta faria cair os pelos de um cão?
Ulisses sorriu.
- Disse. E Idomeneu me deve um favor. - Ele dirigiu seu sorriso para Jacky. - Fique tranquila. Vou providenciar a bebida que quer, pequena Melia. - E marchou na
direção do restante do acampamento grego.
- Do que mais ela necessita? - Aquiles indagou a Kat.
- Preciso de tiras finas e limpas de tecido - Jacky respondeu como se ele houvesse falado com ela.
Kat notou que Aquiles torceu os lábios em uma sugestão de sorriso. Em seguida, ele dirigiu sua pergunta seguinte diretamente para a moça:
- Mais alguma coisa, pequena Melia?
- Algo para anestesiar a dor - ela pediu, mal olhando para o guerreiro por cima do ombro conforme continuava a analisar o terrível ferimento. - Como suco de papoula,
talvez.
- Pensei que a bebida forte fosse para isso - Pátroclo falou por entre os dentes, tentando fingir que os toques de Jacky não estavam lhe causando uma dor excruciante.
- Não. E fique quieto. A bebida é para limpar a ferida. Aliás, o que o cortou?
- Quem me cortou, você quer dizer. Foi Ajax - contou Pátroclo, e em seguida não pôde deixar de se encolher todo quando ela cutucou a ferida ainda mais.
Aquiles bufou.
- Teve sorte por não ter perdido o braço e essa cabeça oca lutando com Ajax.
Pátroclo começou a dar de ombros, mas captou o olhar severo de Jacky e, obviamente, pensou melhor.
- Ele é maior do que eu, mas não é tão rápido.
- Pois parece que ele foi rápido o suficiente - ela retrucou antes de olhar por sobre o ombro para Aquiles outra vez. - Alguém vai buscar as coisas para mim, ou
vamos deixá-lo aqui, sangrando até a morte?
- Peguem para a curandeira tudo o que ela pedir - ordenou o guerreiro, e vários homens bateram em retirada.
Não demorou mais do que apenas alguns minutos para que tudo estivesse pronto. Logo - cedo até demais para o estômago de Kat - a agulha e a linha tinham sido esterilizadas,
e Pátroclo havia bebido algo que parecia e cheirava a xarope para tosse. O rapaz também tomara vários goles da "bebida maldita" que Ulisses fora buscar, então revirava
os olhos, alegre.
Jacky lançou a Kat o olhar que esta tanto temia e fez um sinal para que ela se aproximasse.
Kat suspirou e caminhou até a amiga.
- Sim, você tem que me ajudar - declarou Jacky.
- Sabe que sou fraca para esse tipo de coisa. Não pode chamar o velho para ajudá-la? - cochichou, aflita.
- Não, ele se mandou quando eu comecei a ferver a agulha. Acho que é alérgico a limpeza. Já você é a limpeza em pessoa. - Jacky entregou-lhe um pedaço de linho limpo.
- Basta enxugar o sangue enquanto eu for costurando. É fácil.
- É horrível, isso sim. É bem capaz de eu vomitar.
- Você é terapeuta, ou seja, uma espécie de médica. Não sei como pode ficar enjoada ao ver sangue!
- Helloo!... Eu curo as feridas emocionais das pessoas. Psicólogo lida apenas com sangue metafórico.
- Vocês duas têm um modo muito estranho de falar - Pátroclo disse com voz arrastada.
- Meus pacientes não falam, a menos que eu lhes pergunte algo, anjinho - Jacky replicou com firmeza, dando-lhe um tapinha na cabeça para pontuar as palavras, o que
o fez rir, bêbado. Ela olhou para o círculo crescente de homens que os assistia e ergueu a voz em um comando: - Alguém precisa segurá-lo. Se ele se mexer, vai estragar
a cicatriz máscula e de bom gosto com que estou planejando contemplá-lo.
Aquiles caminhou até eles. Sentou-se no banco em frente ao primo e o agarrou pelos antebraços.
- Vá em frente - disse a Jacky. - Ele não vai se mover.
Kat concluiu que não havia som mais horrível do que o de uma agulha perfurando carne humana, e se lembrou, mais uma vez, por que optara pela faculdade de Psicologia
em vez da de Medicina (frustrando, assim, os sonhos da mãe de ter uma "médica de verdade" na família). Em vez de se concentrar no sangue que brotava e que ela enxugava
para Jacky - e que ameaçava fazê-la vomitar até o cérebro -, manteve-se lançando olhares furtivos na direção de Aquiles, que contava em voz baixa para Pátroclo a
respeito de algum tipo de corrida que ele ganhara na Grécia, o que estava fazendo o rapaz rir, embora Jacky continuasse lhe dizendo para ficar quieto. Ambos os homens
a ignoravam, o que deu a Kat a oportunidade perfeita para se embasbacar com Aquiles.
Ele era mesmo um sujeito grande. Devia bater no um metro e noventa e cinco, com ombros largos e um peito enorme combinando. Tinha um cabelo longo e maravilhoso:
espesso e castanho-claro, preso por uma tira de couro em um rabo de cavalo baixo. Uma parte deste havia escapado, contudo, lembrando a juba de um leão. O cabelo
de Aquiles era sua característica mais marcante depois de seus incríveis olhos azuis.
Na verdade, não. Se ela fosse honesta, a coisa mais impressionante em Aquiles eram as cicatrizes que marcavam seu corpo. A maior em seu rosto corria logo acima de
seu olho esquerdo, depois pela testa, e de alguma forma se desviava do olho para continuar face abaixo. O nariz era torto, pois, sem dúvida, fora quebrado várias
vezes. A bochecha direita exibia uma cicatriz em ziguezague que parecia ter sido feita por uma faca de manteiga enferrujada. Outra cicatriz lhe circundava o pescoço,
como se ele houvesse tido a garganta literalmente cortada, e ela se perguntou, mais uma vez, como, diabos, o homem sobrevivera a ferimentos tão terríveis.
Seus braços nus eram musculosos e de uma linda cor dourada. Em seu antigo mundo, Kat refletiu, as mulheres seriam capazes de matar por alguém com aquele bronzeado.
Mas ali, também, a perfeição de sua pele se encontrava marcada por grossas cicatrizes: de algumas brancas, mais antigas, até uma ou duas ainda inflamadas, em tom
de rosa. De seu ponto de vista, não podia lhe ver as pernas muito bem, mas era certo que estas deviam se encontrar no mesmo estado do restante de seu corpo: crivadas
com linhas e vergões.
Os olhos de Kat se voltaram para o rosto moreno. Ele tinha uma boca deliciosa, sem dúvida. Aquiles não possuía lábios muito finos e um queixo comum. A verdade era
que, à parte as cicatrizes, era um homem maravilhoso.
Caso não se conseguisse ignorar suas marcas, contudo, era um homem assustador.
- Será que dá para você parar de babar e me ajudar aqui? - Jacky falou alto o suficiente para que Aquiles as fitasse, surpreso.
- Você sabe que, se eu olhar para o sangue, vou vomitar. Ou desmaiar. Ou ambos - Kat completou, nervosa.
- Tudo bem. Então enxugue o sangue ao menos de vez em quando, e veja se me ajuda a tirar essa merda de cabelo comprido da frente dos meus olhos. Nunca imaginei o
saco que seria ter esses cabelos de Barbie! - Em meio aos pontos, Jacky olhou para ela e sorriu com doçura. - A menos que esteja ocupada demais contemplando certo
par de olhos azuis.
Kat sentiu o rosto arder, e pôde sentir o "certo par de olhos azuis" fixos nela. Arriscou um olhar na direção de Aquiles e viu que ele a observava com uma expressão
preocupada.
Seus olhares se encontraram.
Aquiles acha que estou olhando para ele por causa das cicatrizes, Kat percebeu.
Depois, ainda com o olhar fixo no dele, falou clara e deliberadamente:
- Que culpa eu tenho se o homem tem lindos olhos azuis?
Pátroclo riu, embriagado.
- A princesa acha que tem olhos bonitos, primo!
- Ela também acha que precisa pegar isto emprestado - declarou Kat, e estendeu a mão para puxar a tira de couro do cabelo de Aquiles.
Ele recuou como se ela segurasse uma barra de ferro incandescente e estivesse tentando pressioná-la contra seu rosto.
- Ei! Continue segurando seu primo! - Jacky ralhou, fulminando Aquiles com o olhar.
- Desculpe, foi minha culpa - afirmou Kat, voltando-se para Aquiles. - Eu só queria usar a sua tira de couro para prender o cabelo dela.
- Ah, claro... Fique à vontade - ele respondeu, reticente.
Kat puxou a tira do cabelo espesso, gostando de sua textura no pouco tempo em que a sentiu sob os dedos. Em seguida puxou as longas madeixas loiras de Jackie e as
atou com firmeza.
- Pronto, isto deve ajudar.
- Obrigada. Agora continue a enxugar o sangue. Só não olhe muito porque não estou disposta a ter que tirá-la desse chão de areia, muito menos de limpar vômito!
- Vou fazer o possível para não incomodá-la - Kat resmungou, e tornou a espiar Aquiles vez ou outra. Só que agora com mais frequência, já que ele parecia estar evitando
encará-la.
- Muito bem... Acho que já está bom - declarou Jacky, e Kat desviou a atenção do guerreiro para avaliar o corte agora menos sangrento e recém-costurado. - Passe-me
a tira de linho.
Ela entregou a bandagem e observou enquanto a amiga atava o braço do rapaz com habilidade.
- Mantenha isto limpo e seco. Eu o verei amanhã - Jacky disse a Pátroclo. - Ele precisa descansar agora - falou, voltando-se para Aquiles.
Aquiles concordou e ajudou a pôr o grogue Pátroclo de pé. No mesmo instante, o rapaz se afastou do primo para se dirigir a Jacky, que se ocupava em ferver meticulosamente
a agulha e o restante do material de sutura.
- Obrigado por ter salvado a minha vida - disse com voz arrastada, cambaleando de leve.
Kat mordeu o lábio para não rir. Pátroclo parecia um daqueles adolescentes bêbados da associação. Na verdade, um daqueles adolescentes altos, lindos e bêbados da
associação.
- Não ia morrer por causa desse arranhão, imbecil - rosnou Aquiles, embora Kat percebesse que ele, também, sufocava uma risada.
- Não. Mas eu insisto. - Pátroclo ergueu o dedo no ar como um grande estadista. - Melia me salvou, e eu lhe devo a vida. A minha vida. Então, a partir de agora,
ela está sob a minha proteção. - Fez uma pausa, franziu a testa e piscou os olhos turvos para Kat. - Isto é, se a princesa permitir.
- Fala sério... - Jacky respondeu. - Está bem, que seja. Mas trate de ficar sóbrio e bem.
Pátroclo ficou meio confuso com as estranhas palavras, no entanto prosseguiu, incontinenti:
- É uma questão de honra. Princesa, se der a sua permissão, a adorável Melia estará formalmente sob a minha proteção. - Soluçou e tornou a oscilar, desta vez quase
perdendo o equilíbrio, porém manteve a expressão séria a despeito de sua embriaguez.
Kat o achou uma graça. Decerto iria fazer muito bem a Jacky ter seu anjinho seguindo-a por toda parte como um cãozinho de estimação e lambendo seus tornozelos brancos...
Riu apenas de imaginar a cena.
- Por mim, tudo bem!
- Então, é oficial. Melia não é mais uma serva. De agora em diante é minha noiva de guerra. Minha noiva - Pátroclo bateu no peito musculoso e depois se encolheu
com a dor que causou a si mesmo.
- Quê?! - exclamou Jacky.
Pátroclo sorriu para ela como se Jacky fosse um enorme pacote vermelho numa manhã de Natal.
- E proclamo que a sua habilidade para a cura, mileide, é quase tão grande quanto a sua beleza... - Curvou-se, e caiu de cara no chão de areia, aos pés de Jacky.
- Ah, meu Jesus Cristinho! - Jacky exclamou, aflita. - Segurem essa criatura! Isso vai estragar todo o meu trabalho!
Os três tentavam fazer Pátroclo ficar em pé (de novo) quando o velho Kalchas caminhou até eles.
- Agamenon está pedido a presença de Aquiles em sua tenda, e ordena-lhe que leve com ele a princesa Polixena, seu suposto oráculo.
Capítulo Oito
Kat sentiu-se uma imbecil conforme se arrastava pela areia atrás do silencioso e carrancudo Aquiles e desejou, pela enésima vez, que houvesse percebido o que o lindo
e embriagado Pátroclo lhe pedira quando, estupidamente, ela dissera "por mim tudo bem" por ele querer proteger Jacky. Como podia ter imaginado que esta seria levada
para a tenda do rapaz, que ela própria seria privada da companhia de sua melhor amiga e obrigada a seguir aquele loiro alto e mal-humorado?
Aquilo tudo estava um saco.
Estavam quase chegando ao acampamento grego agora. O sol se pusera havia pouco, e a paisagem na praia, à sua frente, era incrível, ainda mais com todas aquelas tendas,
tochas e fogueiras.
O problema era que as chinelas de couro macio em seus pés tinham se enchido de areia, e aquele vestido/túnica/toga que usava - embora fosse de uma cor linda e combinasse
perfeitamente com seu novo e jovem corpo - também era um porre, pois a obrigava a levantá-lo o tempo todo de modo a não tropeçar na barra e cair de cara. Seu cabelo
era longo, pesado e, sim, muito bonito, sem dúvida. Porém a brisa marítima soprava forte e, como Jacky diria, fazia suas malditas madeixas lhe açoitar o rosto.
Não bastasse isso, estava com fome. E cansada. Tudo o que queria era um pouco de comida, uma garrafa de vinho e assistir a uma maratona de Top Chef na Bravo TV.
Quando um carrapicho entrou em seu chinelo, Kat decidiu que já bastava. Parou e limpou a garganta, porém Aquiles não fez nem menção de diminuir sua marcha.
- Ei! Você me deixou muito para trás! - gritou para ele.
Aquiles estacou. Kat teve a certeza de ver os ombros largos se erguerem com o que era, sem dúvida, um colossal suspiro antes que ele se virasse para encará-la.
Entreolharam-se.
- Tem um carrapicho no meu sapato! - Kat berrou através do trecho de areia que os separava. - E já estou cansada de ficar correndo atrás de você. - Como ele não
deu nenhuma resposta, ela revirou os olhos. - Suas pernas são mais compridas do que as minhas! - Aquiles continuou em silêncio. - O que foi? É algum homem das cavernas,
por acaso? Seria ótimo se eu tivesse um pouco de ajuda aqui! - Ergueu os braços, exasperada.
Aquiles caminhou de volta para ela devagar.
- Você fala muito.
- E você não fala nada - Kat redarguiu. Quando ele se aproximou o suficiente, estendeu a mão e lhe agarrou o braço a fim de se equilibrar, tirar a chinela e despejar
desta um monte de areia.
Pôde sentir os olhos de Aquiles observando-a enquanto tentava encontrar o carrapicho no sapato, mas o ignorou.
Quando, por fim, achou o que procurava, tirou o pequeno ouriço do calçado e, depois, com a maior naturalidade, segurou-se em Aquiles com a outra mão de modo a repetir
o procedimento no outro pé.
- Não tem medo de mim? - A voz dele soou profunda e sombria, embora Aquiles parecesse absolutamente perplexo.
Ainda utilizando-o como apoio, Kat calçou o outro sapato e depois o encarou.
- Eu deveria ter medo de você?
- As mulheres têm medo de mim, devendo ou não.
Com os sapatos livres de areia e carrapichos, Kat se endireitou e soltou um suspiro de alívio antes de afastar os cabelos do rosto.
- Não respondeu à minha pergunta.
Os lábios de Aquiles se contraíram.
- Assim como não respondeu à minha.
- Você não me deu nenhuma razão para isso, então... Não. Não tenho medo de você. Isto é, eu gostaria muito que diminuísse seu ritmo, me desse o braço e me ajudasse
a andar nesta areia, mas falta de educação não se traduz em medo na minha cabeça.
Ele a estudou em silêncio, e Kat reconheceu o conflito refletido nas profundezas de seus olhos cor de mar. Por fim, Aquiles lhe ofereceu o braço.
- Obrigado. - Ela sorriu, deslizou a mão ao redor de seu bíceps, e eles retomaram a caminhada até o acampamento grego, desta vez sem que Aquiles agisse como se estivesse
liderando um cortejo fúnebre.
- Melia me pareceu uma curandeira notável - ele comentou.
- E é - afirmou Kat, sem saber bem o que dizer. "Sim, ela é uma enfermeira de pronto-atendimento e tanto", não seria a coisa mais certa. De repente, algo lhe veio
à cabeça, e ela decidiu arriscar. - Que tipo de homem é Pátroclo? Quero dizer, ele vai ser bom para Melia? E ele é um sujeito paciente?... Porque ela é uma mulher
bastante incomum.
- Isso eu já percebi - respondeu Aquiles. - E, sim, Pátroclo é um homem honrado. - Olhou para ela e acrescentou: - Também é gentil.
- E não é casado, ou algo assim?
- Não.
- E quanto a você?
- Eu?
- É casado ou algo assim? - Kat perguntou, embora já soubesse a resposta.
- Não. Não tenho esposa. Nem qualquer outro tipo de companhia.
O silêncio se estendeu entre eles.
- Estou com fome. Acha que Agamenon vai nos dar o que comer? - Kat indagou, antes que a atmosfera ficasse ainda mais constrangedora.
- Não - ele respondeu. - Não vamos dividir o pão com Agamenon. Ele e eu não somos camaradas. Agamenon está pedindo a minha presença apenas para tentar mostrar que
tem controle sobre mim.
- E será que ele não tem controle sobre você? Agamenon é o seu rei.
O olhar de Aquiles endureceu.
- Ele não é o meu rei.
- Ah, bem, então acho que não tenho que me preocupar caso o meu estômago ronque tão alto a ponto de fazer com que passe vergonha à sua frente.
A risada de Aquiles pareceu surpreendê-lo tanto quanto fez com Kat, e ele a fitou, balançando a cabeça e sorrindo.
- Não ficaremos na tenda de Agamenon por tempo suficiente para que o seu estômago reclame, princesa.
- Fico feliz em ouvir isso. Estou morrendo de fome. Ah, e você deveria sorrir mais. Fica bem sorrindo.
Kat pôde sentir na pele o pequeno choque que suas palavras causaram em Aquiles e se perguntou qual fora a última vez em que ele fora elogiado por uma mulher.
Logo depois se lembrou do que as deusas tinham dito a seu respeito - que ele não tinha uma amante havia muito tempo porque as mulheres o temiam - e sentiu um inusitado
arrepio sacudi-la. Aquele antigo herói e guerreiro, o homem cujas proezas físicas continuavam conhecidas milhares de anos após sua morte, não fazia sexo havia anos.
Aquilo, sim, devia ser fome!
- Esteja certa de que a manterei bem alimentada quando voltarmos para a minha tenda, princesa.
O olhar de Kat encontrou o de Aquiles, e o arrepio que lhe percorrera o corpo se transformou em uma deliciosa onda de calor brotando em seu âmago.
- Estou ansiosa por isso - ela respondeu em voz baixa.
Foi então que ambos se viram arrancados de seu momento de intimidade por um grito:
- Salve, Aquiles! - Um guerreiro trajando uma armadura completa o saudou com formalidade e, em seguida, puxou a aba de uma enorme tenda para eles.
Ainda segurando com firmeza o braço de Aquiles, Kat se viu adentrando uma verdadeira cacofonia de cenários exóticos, sons e aromas. No mesmo instante, concluiu que
o ouro devia ser o fraco de Agamenon. As paredes da tenda eram escarlates, mas praticamente todo o restante era dourado. Os grossos tapetes feitos à mão eram dourados.
As cadeiras, a maioria das quais se encontrava ocupada por homens barbados usando túnicas e uma quantidade bizarra de joias, eram de ouro. As colunas que sustentavam
a tenda eram de ouro. As taças das quais as pessoas bebiam vinho ruidosamente eram de ouro. A plataforma de três níveis, disposta na parte de trás da tenda como
se estivesse ao final de uma passarela, era dourada.
A pièce de résistance não era o imenso trono da mesma cor sobre o pedestal, e sim o velho empoleirado no trono. Ele era grande, isso ela precisava admitir, e usava
uma ampla túnica/toga dourada, que era um misto da fantasia da Elizabeth Taylor Cleópatra e uma daquelas capas típicas de Liberace. Além do mais, o homem usava joias
o suficiente para fazer com que os outros vovôs que o cercavam parecessem parentes pobres. Sem mencionar a coroa (de ouro, claro) que brilhava à luz das tochas.
Mas o que fez Kat ficar de olhos arregalados não foi seu ouro ou suas joias. O que a espantou ainda mais do que toda aquela opulência foi o cabelo do sujeito. Era
comprido até o peito, visivelmente tingido em um tom muito artificial de marrom. Também era cacheado, ao estilo Shirley Temple, juntando-se, de algum modo, à barba
longa também pintada e cacheada. Seus olhos se encontravam pintados de preto, o que combinava muito bem com aquela aparência de drag queen.
Kat estava achando difícil não rir de toda aquela ridícula pompa e circunstância, quando o rei falou, e ela sentiu o braço quente de Aquiles endurecer como aço sob
sua mão.
- Que bom que atendeu ao meu chamado, Aquiles. Embora, como sempre, esteja atrasado. - A voz de Agamenon soou poderosa e condescendente, como se ele estivesse se
dirigindo a uma criança irritante. Seu efeito no grupo foi instantâneo. A conversa parou, e todas as atenções se voltaram para Aquiles.
Kat não pôde deixar de notar quantos dos homens presentes arregalaram os olhos, chocados, ao perceber que seu braço estava enroscado no dele. No mesmo momento, ergueu
o queixo e os encarou. Não era como as outras mulheres, aquelas florezinhas de estufa que se urinavam de medo diante das cicatrizes do guerreiro e de sua rabugice.
Ela também seria mal-humorada se houvesse sido privada de relações sexuais por anos a fio.
Merda. Agora que tinha pensado nisso, também não fazia sexo havia anos! Não sexo decente, pelo menos. Na verdade, com ninguém além dos apetrechos Magic Tickler.
De repente se deu conta de que, enquanto falava consigo, ninguém mais abrira a boca. Ninguém mesmo. Aquiles continuava parado ali feito uma estátua. O olhar de Agamenon
se estreitou, e ela se preparou para uma tempestade real.
De súbito, porém, a expressão do homem relaxou e se tornou estranhamente jovial.
- Ah, já percebemos por que ficou mudo. Não está acostumado a acompanhar mulheres bonitas. Imaginem que os Troianos combatem o poderoso Aquiles há nove anos... Por
sorte eles não sabem que bastaria o toque de uma mulher para derrotá-lo. - Agamenon riu com crueldade e estendeu a mão para acariciar a moça que mal se encontrava
coberta por uma camada de seda dourada, no chão, ao lado do trono. A menina, que Kat imaginou ser Briseida, fitou-a com hostilidade; contudo, mal dirigiu o olhar
para Aquiles.
Kat mal pôde acreditar em como aquele sujeito era imbecil. E era o rei deles?...
Cretino. Idiota. Odiava gente que gostava de humilhar os outros. E, como sabia, graças a anos de experiência, quando se lidava com um valentão, o melhor era não
demostrar nenhuma fraqueza e enfrentar o imbecil.
Olhou ao redor até encontrar quem procurava, e ficou aliviada ao perceber que este era um dos poucos homens presentes que não estavam rindo com Agamenon para bajulá-lo.
- Ulisses - chamou, erguendo a voz para que esta se fizesse ouvir em meio às risadas. - Fiquei confusa, esta manhã, quando comentou sobre a reputação de meu pai
por ele ser sábio, honrado e amado por seu povo, como se isso fosse incomum. Agora entendo por quê. Essas são características que parecem estar em falta entre os
governantes gregos.
- Sua prostituta atrevida! - O velho Kalchas gritou, saindo de trás do trono do rei. - Ela deveria ser espancada por seu desrespeito!
Vários dos outros homens também começaram a pedir por seu sangue, contudo a mão levantada de Ulisses os acalmou.
- Cuidado, Kalchas. Polixena não apenas tem a proteção de Atena, como também é seu oráculo - ele lembrou. - Não se esqueça de que fui testemunha de quando a deusa
presenteou Aquiles com a princesa, e não me restou dúvida quanto à sua vontade.
- A princesa também está sob a minha proteção. - A voz de Aquiles ressoou por sobre o burburinho de protestos que brotara em resposta à afirmação de Ulisses. - Não
tenho a intenção de lutar com nenhum de vocês - prosseguiu, e Kat percebeu que ele não se dirigira ao rei, excluindo-o propositalmente dessa declaração -, mas, se
tocarem nela, eu os mato.
Os olhos de Kat se voltaram para Aquiles. Ele havia dito aquilo com uma calma absurda, com a maior naturalidade, contudo sua expressão era implacável, e ela não
teve dúvida de que Aquiles falava a sério.
O riso condescendente de Agamenon cortou o silêncio que as palavras do guerreiro tinham provocado.
- Ora, vamos, Aquiles. Guarde suas ameaças de morte para os Troianos. Quero dizer, todos os Troianos, exceto essa pequena, de aparência tão delicada. Afinal, não
podemos ameaçar a sua nova noiva de guerra. Foi bom ter encontrado uma substituta tão depressa... ainda mais alguém tão formosa. - Agamenon sorriu, e Kat sentiu
o estômago embrulhado. - Vai precisar de toda a sua força amanhã. Fui visitado por Hera hoje, e acredito que foi um sinal de que a nossa vitória está próxima. Amanhã
será um grande dia para a Grécia!
Kat teve de se esforçar para não deixar cair o queixo. A visita de Hera, um sinal de que os Gregos iriam ganhar a guerra? Podia imaginar a reação da deusa àquela
notícia. Nunca ouvira uma bobagem tão grande na vida! Não era de admirar que o mais absurdo dos rumores nascera ali.
Os homens, entretanto, acreditaram em cada palavra e, dominados pela testosterona, comemoraram aos gritos. Aquiles esperou até que o tumulto diminuísse e então proferiu
uma única palavra que pareceu chocar o rei maníaco por ouro até a alma.
- Não.
Agamenon não demorou a recuperar sua fachada de indiferença.
- Não? - repetiu com um sorriso sarcástico. - Algum problema com os Mirmidões, Aquiles? Alguma doença nova? Eu já devolvi Criseida, como você insistiu, e isso deteve
as trevas que haviam se abatido sobre o nosso acampamento. Que sacrifício me pede agora?
- Não lhe peço nenhum sacrifício, Agamenon. Peço apenas que lute suas próprias batalhas. - Aquiles desvencilhou-se da mão de Kat e avançou, dirigindo-se não apenas
aos anciãos ricamente vestidos que se encontravam sentados nas cadeiras douradas, mas também aos jovens guerreiros que se postavam atrás destes. - Por que as guerras
são discutidas pelos mais velhos e travadas apenas pelos mais jovens? Se desejo uma mulher, luto por ela. Se desejo riquezas, combato por elas. Se desejo glória,
luto por ela. Nunca tomei nada pelo que outros lutaram e morreram.
Assim como os demais presentes, Kat se viu hipnotizada por Aquiles. Ele não era apenas uma estúpida máquina de matar que visava à glória e à fortuna. Era um líder,
um verdadeiro rei a seu modo.
Ele se moveu pelo espaço da tenda até que, por fim, pôs-se em pé diante do pedestal de Agamenon.
- Talvez seja hora de lutar por aquilo que diz ser seu, grande rei. - Ao contrário da de Agamenon, sua voz de não soou marcada pelo sarcasmo, e sim firme, profunda,
honesta. Ele capturara o olhar do rei usando a verdade, não artifícios humilhantes. - E talvez seja a hora de eu descansar. A vida tem mais a oferecer do que apenas
batalhas. - Virou-se e olhou para Kat. - Hoje fui lembrado de que Atena é a Deusa da Sabedoria, assim como Deusa da Guerra.
- Não pode se retirar do campo de batalha! - Agamenon se pôs de pé, incapaz de continuar fingindo controle. - Eu sou seu rei e ordeno que lute!
Aquiles se voltou devagar, de modo a ficar, mais uma vez, frente a frente com Agamenon.
- Você não é meu rei. Eu nunca lhe jurei lealdade. Sou filho de um soberano e lidero meus próprios homens. Estou aqui apenas por um erro que cometi na juventude.
- Acha mesmo que pode fugir do seu destino? - Agamenon zombou.
- Não pretendo fugir de nada, mas posso lhe dizer que só voltarei a lutar por algo por que valha a pena morrer - Aquiles respondeu, e então caminhou de volta para
Kat.
- Detenham-no! - gritou Agamenon.
Aquiles reagiu no mesmo instante. Empurrou Kat para a saída da tenda, postando-se protetoramente diante dela, enquanto desembainhava a espada e a brandia à frente
do corpo. Kat viu os guerreiros hesitarem. Era óbvio que não pretendiam lutar com Aquiles.
De repente, ouviu-se um selvagem bater de asas, e uma coruja enorme, branca como neve fresca, entrou na tenda. Os homens ofegaram quando esta pousou na frente de
Aquiles e os encarou, como se desafiando alguém a se mover.
Ulisses foi o primeiro a romper com o silêncio. Avançou dois passos e se ajoelhou perante a coruja.
- Como quiser, minha deusa - murmurou. Depois se levantou e encarou os homens. - A vontade de Atena é clara. Aquiles e a princesa não devem sofrer nenhum dano. Se
algum de vocês quiser ir contra a vontade da minha deusa, também terão que me enfrentar.
Foi a última coisa que Kat escutou, pois Aquiles a puxou para fora da tenda. Agarrando seu braço com firmeza, ele a guiou pelo acampamento grego e atravessou a praia
na direção do território dos Mirmidões. Ela não chegou a ver o guerreiro Taltíbio sussurrar ao ouvido de Agamenon a história sobre um templo que ele atacara naquele
mesmo dia, e sobre uma princesa que devia estar mais do que morta àquela hora...
Capítulo Nove
Kat não segurou o braço de Aquiles na viagem de retorno; ele segurou o dela, praticamente impedindo que seus pés tocassem a areia conforme a impulsionava pelo acampamento
grego e, depois, por todo o trecho de praia e dunas que os separavam de seus Mirmidões. Mesmo se ela não necessitasse de todo fôlego que possuía para se manter de
pé, não o teria bombardeado com os zilhões de perguntas que tinha na cabeça. Em apenas alguns minutos, Aquiles havia se transformado de um homem quase tímido e cheio
de cicatrizes para um imponente rei guerreiro, e ela precisava de um pouco de tempo para processar aquela mudança nele.
Pela primeira vez, começou a duvidar da tal Fúria que o dominava. Aquiles continuava o mesmo. Não estava espumando pela boca ou fora de controle como narravam os
historiadores.
Observou sua expressão fechada com o rabo dos olhos. Seu corpo inteiro parecia estar em alerta. Nada, nem ninguém, poderia detê-lo. Ele continuava com a espada desembainhada,
e esta brilhava perigosamente ao luar que se refletia no oceano.
Mas a espada de Aquiles não era a coisa mais mortal nele. O próprio Aquiles era uma arma, e as cicatrizes em seu corpo agora faziam sentido. Ele usara a si mesmo
como ferramenta, como máquina. Uma máquina de matar.
Chegaram ao acampamento dos Mirmidões, por fim, e Aquiles diminuiu o passo. Em seguida, soltou o braço dela.
- Automedon! - chamou. - Venha até aqui!
Um homem baixo e musculoso, cuja couraça tinha a imagem de uma carruagem esculpida, correu até ele.
- Agamenon se iludiu, achando que poderia mandar em mim, e talvez ainda tente exercer alguma pressão. Redobre a guarda.
- Sim, senhor! - Automedon saudou e se afastou correndo.
Aquiles continuou caminhando através de seu acampamento e, a cada passo que dava, Kat podia ver sua tensão se esvaindo. No momento em que chegaram à tenda, sua expressão
severa se abrandara, e ele embainhou a espada.
- Ainda está com fome? - perguntou, dirigindo-se a ela pela primeira vez desde que haviam deixado a tenda de Agamenon.
- Estou.
- A ceia é servida ali. - Aquiles apontou para uma fogueira entre a tenda e o restante do acampamento. - Vamos... A comida é mais simples do que a da tenda do rei,
mas bem menos amarga.
Caminharam até a fogueira, onde um cheiro delicioso exalava de um enorme caldeirão de ferro que fervia. Cerca de doze homens se encontravam sentados em rochas e
troncos, os quais haviam sido arrastados para formar um círculo ao redor do fogo. Estavam sendo servidos por uma moça muito bonita, vestida com puro linho. Infelizmente,
Jacky não se encontrava à vista.
Os homens saudaram Aquiles com familiaridade, dirigindo-se a ele com evidente respeito, embora nenhum houvesse se curvado. Quase no mesmo momento, uma mulher lhe
entregou uma tigela cheia do cheiroso ensopado e um pedaço de pão fresco, e Kat notou que ela evitou olhar para o guerreiro.
Ele fez um gesto em sua direção, e a mesma mulher se apressou em trazer outra tigela acompanhada de pão para ela.
Quando os olhos da moça encontraram os seus, Kat percebeu neles um choque de reconhecimento. Quase imperceptivelmente, a mulher abaixou a cabeça e murmurou:
- Princesa...
Kat devorou o excelente ensopado de peixe pensando que seria melhor se ela evitasse as outras mulheres tanto quanto possível enquanto permanecesse ali. Sem dúvida
a maioria das noivas de guerra era de Troia e iria reconhecê-la como sua princesa. Ou melhor, iriam reconhecer o corpo da moça, que ela iria habitar como sendo o
de sua princesa.
- Como foi com Agamenon? - um velho guerreiro indagou a Aquiles.
- Ele continua o mesmo: arrogante, rude e com a equivocada certeza de que pode me governar.
- Mas meu senhor o colocou em seu devido lugar, não?
Os lábios de Aquiles se contraíram no que Kat estava começando a reconhecer como a sua versão de um sorriso.
- Sim. Por isso mesmo a guarda será redobrada à noite, e em todas as outras noites a partir de agora.
Os homens grunhiram seu acordo.
- Eu me retirei formalmente da batalha contra os Troianos.
Aquiles soltou essa bomba sem qualquer preocupação, enquanto se deliciava com o guisado. Kat observou os rostos dos homens com cuidado, e viu expressões que variavam
do choque à descrença, e até mesmo à raiva, embora apenas o mais velho dos guerreiros tivesse decidido falar.
- Por quanto tempo, meu senhor?
Aquiles deu de ombros.
- Até que eu sinta a necessidade de lutar por outra glória humana.
- Mas, meu senhor, temos lutado pela glória de Aquiles! - exclamou um dos mais jovens. - Para que o seu nome seja louvado por séculos!
Aquiles concordou e olhou de homem para homem.
- E vocês todos lutaram com bravura nessa guerra por quase dez anos, por conta de um destino que não foi escolha sua. Talvez seja a hora de cada um de nós reavaliarmos
seu destino.
- Está pedindo que continuemos a lutar sem o senhor? - indagou o rapaz.
- Peço apenas que cada um de vocês siga a sua própria consciência, assim como desejo seguir a minha.
Ninguém falou por alguns minutos. Então o guerreiro mais velho bocejou e se espreguiçou.
- Acredito que estes ossos velhos mereçam um descanso da batalha. Vou me retirar junto com Aquiles.
- Eu também - decidiu o rapaz.
- Eu também!
- Também eu!
Todos os Mirmidões presentes se manifestaram a favor de seu líder.
Kat estudou a reação de Aquiles quando os homens preferiram se juntar a ele a continuar lutando por glória. Aquiles fitou, distraído, a tigela de sopa inacabada
e mal respondeu a seus guerreiros.
Quando tornou a falar, por fim, foi com ela, e não com os homens, os quais recomeçaram a conversar a seu redor.
- A minha tenda agora é a sua casa. Qualquer coisa que Briseida tenha deixado nela é sua. Se sentir falta de algo, estas mulheres lhe trarão o que precisar. - Em
seguida, jogou a tigela no fogo, pegou um odre que estava nas proximidades e, sem dizer uma só palavra, se afastou em direção à praia.
Kat não tinha a menor ideia do que deveria fazer. Os guerreiros a ignoravam. As mulheres, que se encontravam sentadas um pouco além dos homens, continuavam a observá-la
furtiva e curiosamente. A única coisa que sabia com certeza era que Aquiles a irritara sobremaneira.
E não estavam se dando bem até o momento? Ao menos era o que parecia. E, de repente, aquela história com Agamenon havia estragado tudo.
Com um suspiro, ela se levantou e aproximou-se da mulher que lhe entregara o guisado.
- Olá... Eu queria saber se têm ideia de onde está a minha criada, Melia? - perguntou.
- Não, princesa. Não vimos a sua serva. - A mulher se remexeu, nervosa. - Como posso servi-la? Está bem, princesa? Não está machucada, está?
- Não, estou bem. Muito bem - assegurou Kat.
A mulher se aproximou, então, e sussurrou:
- Princesa, sou Aetnia, a ajudante de cozinha do palácio de seu pai. Fui raptada junto com um grupo de empregados que comprava peixe fora da cidade há mais de dois
anos. Vai ser difícil, mas podemos ajudá-la a escapar. Uma vez que estiver à vista, nas muralhas, Heitor virá resgatá-la.
Kat piscou, surpresa e preocupada diante da seriedade daquela estranha.
- Oh, não... Não estou precisando de nada mais esta noite - respondeu em voz alta o suficiente para que os homens a ouvissem. Em seguida, baixou a voz e murmurou:
- Obrigada, mas não pretendo fugir. Pelo menos não agora. - E, levantando a voz outra vez, continuou: - Acho que vou me recolher. Foi um dia muito cansativo. - E
bateu em retirada para a tenda vazia de Aquiles.
Não exatamente vazia, corrigiu a si mesma. Vazia apenas dele. A tenda, em si, era repleta de coisas lindas.
Assobiou baixinho. Não era possível que um homem que colecionasse todos aqueles tesouros fosse uma irracional máquina de matar, voltada apenas para a guerra e a
destruição.
A tenda era enorme, embora não tão grande quanto a de Agamenon, e iluminada por lamparinas a óleo perfumado, penduradas nas vigas do teto. Sob seus pés havia um
espesso tapete vermelho bordado com pássaros e flores silvestres, e tapeçarias com detalhes requintados pendiam das paredes, a maioria delas retratando cenas do
mar, embora algumas exibissem uma linda cidade, cheia de templos, sobre uma colina com vista para o mar.
Com exceção de um elmo, algumas lanças e um escudo de ouro que trazia a figura de uma águia, não existia nenhuma evidência de que a tenda pertencia a um soldado.
Nos fundos da barraca, Kat avistou uma cama com cobertas e um espesso dossel com cortinas transparentes. Observou-a, nervosa, pensando que, sem Aquiles deitado nela,
esta podia até parecer grande, mas que com ele presente não haveria jeito de ela dormir de modo casto, sem roçar a pele na dele, tocar aqueles músculos enrijecidos
pelas batalhas e...
Foi quando notou o leito feito por mantas de lã e travesseiros, formando um opulento ninho no outro lado da tenda, e que ficava o mais distante da cama quanto era
possível, ainda que dentro dos limites da barraca.
- Então é ali que a noiva de guerra deve dormir - concluiu em voz alta. E, droga, independentemente de como aquilo a fizesse parecer pequena e insignificante, viu-se
decepcionada. - Está bem, eu admito. E em voz alta. Teria sido interessante dormir ao lado de Aquiles e tentar manter as mãos longe dele. Quero dizer, fazer com
que ele mantivesse as mãos longe de mim - corrigiu-se, rindo de si mesma. - Katrina, minha amiga, pelo visto faz tempo que você não faz sexo. Ao menos com um parceiro.
Continuou olhando ao redor e, com um gritinho de felicidade, encontrou uma jarra cheia de vinho tinto, disposta ao lado de dois cálices vazios num convite.
- Bem - falou enquanto se servia de uma dose generosa -, Aquiles disse que tudo aqui era meu, por isso vou começar pelo vinho.
Avistou uma cadeira ao lado da mesa onde encontrara a bebida, e se acomodou nela. Até que o dia não havia sido tão terrível. A não ser aquela história de ela e Jacky
terem morrido... Apesar de que isso seria temporário.
Hera iria recompensá-las, sem dúvida, e em breve. E nem parecia justo, pois o próprio Aquiles estava fazendo o trabalho por ela. Era óbvio que estava farto de lutar
e louco da vida com Agamenon, o que ela podia compreender perfeitamente. Seu pequeno entrevero com o rei acerca de Briseida fora a gota d'água. Tudo o que ela precisava
fazer era encorajar Aquiles a seguir na direção que ele já tomara. Podia até relaxar e fingir que aquilo tudo não passava de férias inesperadas.
Olhou para o seu novo corpo e esticou a perna, deixando a túnica drapeada cair para um lado de modo a revelar o membro jovem, forte e bem-torneado.
- Será que o que acontece no mundo antigo fica no mundo antigo? - indagou-se, distraída, olhando por dentro da roupa para estudar os seios empinados.
Perguntou-se onde estaria Jacky e o que ela fazia naquele momento.
- Decerto está dando uma de babá para seu anjinho.
Precisava aprender uma lição com a amiga. Precisava aprender a relaxar e a aproveitar ao máximo a situação.
- Em outras palavras, se eu quiser transar com Aquiles, vou transar com Aquiles e pronto. Diacho, seria bom para nós dois! Vivo dizendo aos meus pacientes para que
se liberem sexualmente. Se é assim, grande terapeuta, cura-te a ti mesma! - Kat tornou a encher o cálice de vinho e saiu da tenda, caminhando com determinação em
direção à praia.
Não foi difícil encontrar Aquiles. A lua estava alta e cheia no céu. Refletindo o mar calmo, era como uma luminária gigante. Além do mais, ele era um sujeito enorme,
que não fazia a menor questão de se esconder. Estava sentado em uma pedra de frente para a água. Tinha tirado a couraça da armadura, assim como as peças de metal
que lhe cobriam as canelas, e usava uma túnica fina, aberta no peito, que deixava seus braços e pernas nus. Sentado ali, parecia uma estátua grega, iluminada pela
noite e banhada pelo misticismo antigo.
- Não devia andar sozinha à noite por aqui - ele falou sem olhar para ela.
- Não estou sozinha, estou com você.
Aquiles virou a cabeça para fitá-la.
- Precisa de alguma coisa, princesa? - A pergunta foi educada, porém o tom era distante, quase frio.
- Sim. De companhia - Kat respondeu com honestidade, e ficou satisfeita com a surpresa que viu em seus olhos. - É a minha primeira noite aqui. Não é algo a que eu
esteja acostumada, e estou com saudades de casa.
- Deve estar me odiando por eu tê-la roubado de sua família e de seu reino.
- Não foi você quem me roubou. Foi Atena.
- E odeia a deusa por isso?
- Não. - Kat abanou a cabeça. - Ela fez o que sentiu que precisava fazer. Além do mais, você não é tão ruim.
Ele deixou escapar um som que era um misto de risada com surpresa.
- É muito estranha, Polixena de Troia. Todas as princesas de sua cidade são como você?
- Claro que não - ela replicou com firmeza.
Aquiles riu. Riu de verdade, e Kat não pôde deixar de notar o quanto seu riso parecia musical em meio ao ruído das ondas.
- Tem mais vinho nessa coisa mole? - perguntou, movendo-se para mais perto dele para estender o cálice vazio.
Aquiles apanhou o odre e o encheu.
Os dois apreciaram a bebida olhando para o mar. O silêncio entre eles era sociável, e Kat pensou como era estranho que um homem que assustava as mulheres pudesse
ser tão fácil de conviver.
O que a fez se lembrar...
- Gostei do que fez hoje, na tenda de Agamenon.
Aquiles a encarou e ergueu as sobrancelhas.
- Era de se esperar, uma vez que é a princesa de Troia. Sem dúvida iria considerar minha retirada da batalha contra o seu povo uma coisa boa - declarou simplesmente,
sem soar zangado ou ressentido.
- Está certo, mas não era bem o que eu estava pensando. Eu também não gostaria de lutar por um homem como Agamenon.
- Não foi muito sábio da sua parte insultá-lo - afirmou Aquiles.
- Por que não? Ele e eu já éramos inimigos.
Aquiles se virou para encará-la.
- E quanto a você e eu? Não somos inimigos, também?
Kat sentiu a boca seca. Ele a fitava nos olhos, e ela sentiu o desejo arder dentro dela. Abriu a boca para lembrá-lo de que era sua noiva de guerra - sua propriedade,
portanto -, mas não se permitiu tal bobagem. Não importava que estivesse em um corpo estranho, fazendo o papel de uma princesa em um mundo antigo; Kat ainda era
Kat. Até mesmo as deusas concordavam que era a alma que carregava a essência de uma pessoa, e não o corpo. Não havia como ela se considerar propriedade de alguém,
assim como não havia a menor chance de ela agir como tal pessoa.
Sustentou o olhar de Aquiles.
- Neste exato momento, você e eu somos um homem e uma mulher, sozinhos sob uma lua cheia, na praia de um mar lindo... e isso é tudo.
Aquiles ergueu a mão devagar e tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos. Ela sentiu sua aspereza contra a pele e percebeu que ele tremia.
- Eu gostaria que isso fosse verdade - ouviu-o murmurar.
- É verdade - reforçou Kat. - Neste momento, neste instante, é tudo o que somos.
- E você não tem medo de mim.
Aquiles não colocou as palavras como uma pergunta, mas ela a respondeu de qualquer maneira.
- Não tenho medo de você. - Aproximou-se dele de modo a se colocar entre suas pernas. De um modo lento e deliberado, deslizou as mãos pelos braços fortes, descansando-as
em seus ombros.
Aquiles não se moveu. Parecia ter parado de respirar. Sentado na pedra, continuava alto o bastante para que ela tivesse de ficar na ponta dos pés a fim de lhe alcançar
a boca. Beijou-o com suavidade, interrogativamente, misturando a própria respiração à dele enquanto aprendia seu sabor e textura. Aquiles era salgado como o mar
e tinha gosto de vinho. Seus lábios eram suaves, porém tudo o mais nele era sólido. Os ombros sob seus dedos eram como ferro, e as mãos que a circundaram pela cintura
eram ásperas e calejadas devido a décadas de lutas de espada.
A diferença de texturas - a solidez dele e sua suavidade - era deliciosamente erótica, e ela se inclinou para Aquiles, desejando mais. A ponta de seus seios pressionou
o peito largo, e seu corpo cedeu, moldando-se ao dele. Havia tão pouco separando suas peles!... Apenas o quitão de seda e a túnica fina que ele usava. Seus mamilos
sensíveis formigaram e enrijeceram, e ela gemeu contra a boca de Aquiles, aprofundando o beijo, exigindo mais dele.
De repente, mãos ásperas seguraram suas nádegas e a força lendária do guerreiro a manteve cativa enquanto sua boca possuía a dela. Um membro rijo e quente a pressionava
no baixo ventre, e ela se esfregou nele, desejando que estivessem deitados... desejando não ter aquelas malditas roupas entre seus corpos... desejando...
- Não! - Com um grito abafado, Aquiles a empurrou para longe conforme saltava da rocha, afastando-se vários metros, aos tropeços.
- O que acont... - Kat começou, movendo-se em sua direção.
- Pare!
A palavra soou como um comando ao qual ela obedeceu no mesmo momento. A voz dele se aprofundara, tornando-se áspera, dura e estranha. Kat congelou onde estava e
ergueu o olhar. Aquiles estendeu a mão, a palma voltada em sua direção, como se esperando ter que empurrá-la de novo. Segurava a cintura com o outro braço e se inclinava
para a frente. Parecia sentir dor e lutar para respirar.
Kat imaginou compreender ao menos uma parte do que estava acontecendo. Ela havia disparado algum tipo de gatilho, e Aquiles lutava para controlar o que as deusas
tinham descrito como "a Fúria".
Tudo bem. Poderia lidar com aquilo.
- Aquiles, é melhor entrar na água - falou com uma voz calma e profissional.
Ele a encarou, e Kat precisou sufocar uma onda de medo ao notar que seu rosto, seu corpo inteiro, parecia estar se transformando literalmente. Ele estava ficando
cada vez mais forte. Seus olhos brilhavam na escuridão com um estranho fogo escarlate que lembrava sangue.
- O que está dizendo? - Ele se esforçou para falar em meio à respiração pesada.
Kat se obrigou a permanecer e soar calma.
- Precisa romper o ciclo do que está acontecendo dentro de você; confundir a reação que está tentando dominar seu corpo. Entre na água - repetiu. - Isso irá ajudá-lo.
Aquiles começou a recuar em direção às ondas com passos cambaleantes, quase dolorosos. Pouco antes, porém, jogou-se ao mar e gritou uma única palavra para ela:
- Corra!
Capítulo Dez
Embora aquilo não fosse nada profissional, Kat correu. Que diabo estava acontecendo com Aquiles? Já tinha visto homens lutando contra acessos de raiva antes. Já
vira alguns muito loucos, fora de controle. Mas nenhum deles se transformara fisicamente.
Ela, no entanto, estava certa de que o corpo de Aquiles se tornara maior, mais forte, mais assustador e...
- Uff! - Kat trombou com Ulisses.
- Calma, princesa! - ele pediu, agarrando-a pelo cotovelo para impedir que caísse sentada. Depois estreitou os olhos ao reparar em seu rosto lívido e em sua aparência
desgrenhada. - Aquiles.
- Sim - ela admitiu, ofegante.
Ulisses a colocou atrás dele, em atitude de defesa, enquanto olhava na direção da praia.
- Não consigo vê-lo. Foi um dos homens de Agamenon que o atacou? - inquiriu, enquanto permanecia alerta.
- Não.
- Os homens atacaram você?! - Tomou-lhe o cotovelo novamente e se pôs a guiá-la rumo à fogueira. - Os Mirmidões jamais vão aceitar isso.
- Ulisses, escute. Ninguém me atacou. Quero dizer, ninguém enviado por Agamenon me atacou...
Ele diminuiu o passo e lançou-lhe um olhar avaliador. Então seus olhos se arregalaram.
- Compreendo. A Fúria dominou Aquiles enquanto estavam sozinhos.
- Sim.
O rapaz tornou a olhar na direção do mar.
- Parece que ele a controlou, afinal não a seguiu.
- Eu disse a ele que entrasse no mar - desabafou Kat. - Ele obedeceu e me disse para correr.
- Ordenou ao grande guerreiro Aquiles que entrasse no mar quando a Fúria o dominava? - Ulisses riu. - Eu daria tudo para ter visto isso!
Kat franziu o cenho.
- Não tem graça nenhuma. Ele... ele se transforma!
Ulisses ficou sério.
- É verdade. É o preço que paga pela escolha que fez há muito tempo. Ou melhor, um dos preços que paga.
- Eu não entendo. Pensei que... Bem, quando ouvi os rumores sobre Aquiles, achei que fosse apenas um problema de raiva. Mas o que estava começando a acontecer com
ele era muito mais do que isso.
Eles haviam se aproximado da tenda de Aquiles, e Ulisses fez sinal para que ela se acomodasse em um banco do lado de fora. Os guerreiros que antes comiam por ali
tinham ido embora, e o fogo fora cuidadosamente extinto. Kat percebeu que o acampamento continuava acordado e alerta, mas não viu ninguém perto o bastante para escutar
sua conversa.
Encontrou o olhar inteligente de Ulisses.
- Eu gostaria que me explicasse o que acontece com Aquiles.
- Princesa, não tenho certeza se dev...
- Atena quer que eu o ajude - Kat interrompeu a negação. Assim como esperava, evocar o nome da famosa deusa padroeira dos guerreiros teve um efeito imediato sobre
Ulisses.
- O que quer saber?
- Vi quando Aquiles começou a se transformar. Fisicamente. O que acontece com ele?
- Já testemunhei isso muitas vezes, e a cada vez é mais aterrorizante... e inspirador - confessou o rapaz. - Quando ele é estimulado o bastante, seja pela dor, pelo
medo, ou até mesmo pela paixão, a Fúria com que Zeus o contemplou toma conta dele. É como se Aquiles fosse possuído por um deus irado.
- E é ele ainda? Quero dizer, ele sabe o que está fazendo?
- Aquiles se lembra de suas ações quando a Fúria o deixa, mas quando é dominado fica fora de controle.
- E como ela vai embora?
- A raiva acaba se dissolvendo, deixando-o extenuado, porém normal outra vez - explanou Ulisses.
- É por isso que as mulheres o temem. Porque não é ele de verdade. Quero dizer, Aquiles muda... Literalmente!
- Agora está com medo dele também? - Ulisses perguntou, preocupado.
Kat tornou a encontrar seus olhos.
- Não. Não sou como as mulheres daqui.
- Sendo ou não como as outras mulheres, Aquiles é muito perigoso quando está sob o domínio da Fúria. Aconselho que tenha cuidado quando estiver a sós com ele. -
Ulisses fez menção de dizer mais, contudo apertou a mandíbula e, com uma expressão sombria, olhou para trás, na direção do mar.
- Eu vou ter cuidado. Além do mais - ela acrescentou com um sorriso amargo -, estou sob a proteção de uma deusa, lembra-se?
Sua expressão suavizou-se, e ele sorriu para ela.
- Eu não me esqueceria da minha deusa, princesa. - Ulisses hesitou por um momento, depois acrescentou: - No entanto, mesmo sob a proteção de Atena, você correu dele.
Kat suspirou.
- Sim. Bem... Pareceu-me a coisa mais inteligente a fazer. O que estava se passando com Aquiles me surpreendeu. Fui pega desprevenida, o que não vai acontecer outra
vez. Quer dizer que emoções fortes é que provocam essa mudança.
- É o que parece.
- Se é assim, por que Aquiles não se transformou na tenda de Agamenon? Ele odeia o rei, não odeia?
Ulisses assentiu:
- Sim.
- O ódio é uma emoção forte, e Aquiles ficou possesso com o que aconteceu lá.
Ulisses lançou-lhe um olhar confuso.
- "Possesso" equivale a dizer "com muita raiva" - ela explicou depressa.
- Ah, sim. Agamenon geralmente deixa Aquiles muito irritado.
- Então, mais uma vez, por que ele não se transformou?
Ulisses deu de ombros.
- Aquiles estava calmo, com a raiva controlada e...
- Espere! Responda-me uma coisa - Kat o interrompeu. - Aquiles tem que treinar para manter sua vantagem nos combates, certo? Portanto ele deve treinar com uma espada,
ou seja lá o que for, e na certa corre ou se exercita... ou ambos. Certo?
Ulisses franziu a testa.
- Aquiles treina com frequência. E também é um corredor excelente.
- A Fúria se abate sobre ele quando Aquiles está treinando?
- Não. Eu nunca o vi ser dominado pela ira enquanto treinava.
- Mas ele não fica todo suado e exausto? - ela quis saber, animada.
- Sim, claro.
- Então é isso! - concluiu. - Se Aquiles permanecer calmo fisicamente, não importa o quanto ele fique louco da vida. A transformação não acontece. E também funciona
de outra maneira: enquanto ele mantém sua resposta emocional sob controle, não importa o quanto ele trabalhe o físico; vai continuar a ser ele mesmo. Por isso ele
tem tantas cicatrizes. Aposto que sua frequência cardíaca e sua respiração têm de se elevar em conjunto com um pico emocional para desencadear a transformação. Portanto
alguém tem que estressá-lo para que seu ritmo cardíaco aumente e ele precisa ficar louco da vida com isso. - Um arrepio de emoção a percorreu quando ela se deu conta
do que aquilo significava em relação aos beijos que tinham compartilhado. - Acho que faz sentido. Se é que alguma coisa aqui faz - completou mais para si mesma do
que para Ulisses. - A transformação é fisiológica, bem como emocional, portanto necessita de um gatilho que se baseie em ambas.
Ulisses a estudava, atento.
- É mesmo uma mulher incomum, princesa.
Kat abria a boca para fazer piada a respeito, dizendo que era isso o que dava ser um oráculo ou o que o valesse, quando a voz profunda de Aquiles soou de algum lugar
bem atrás deles.
- A que devo o prazer da sua companhia, Ulisses?
O rapaz sorriu de leve e se pôs de pé, segurando o antebraço de Aquiles em uma saudação, enquanto este se juntava a eles.
- Um velho amigo não pode fazer uma visita sem nenhum motivo em particular?
Kat percebeu que o cabelo e a túnica de Aquiles estavam molhados, e que ele carregava a couraça, assim como o cálice vazio que ela não se lembrava de ter deixado
cair. Tinha círculos escuros sob os olhos - que ela jurava não estarem ali antes de eles serem interrompidos em seu pequeno amasso -, mas, fora isso, parecia normal
outra vez.
- Quer dizer que Agamenon o mandou aqui - estava dizendo.
O sorriso de Ulisses se alargou.
- Claro.
Aquiles torceu os lábios.
- Pois vai ter de informar a ele que eu estava falando sério, e que não vou me juntar à batalha amanhã.
- E quanto aos seus Mirmidões?
Aquiles encolheu os ombros largos.
- Meus homens são meus companheiros, não meus escravos. Podem fazer o que bem entenderem.
- O que significa que eles o estão apoiando - concluiu Ulisses.
- Aparentemente.
- Desejo-lhes boa noite, então. Vou retornar à minha tenda... Após relatar esta triste notícia ao nosso rei, claro - completou o rapaz.
- Ele é o seu rei, não o meu - lembrou Aquiles.
Ulisses levantou um ombro.
- Como você já disse muitas vezes antes. Boa noite, meu amigo. - Inclinou a cabeça para Kat. - Desejo-lhe boa noite, também, princesa.
- Boa noite, Ulisses - Kat respondeu.
Pouco antes de ele se afastar, Aquiles tornou a chamá-lo.
- Ulisses!... Agradeço por ter se certificado de que a princesa voltaria ilesa à minha tenda.
O sorriso do guerreiro foi tristonho.
- Eu não acreditava que a princesa estivesse correndo perigo de verdade, companheiro. Eu apenas a mantive entretida enquanto aguardávamos o seu retorno.
- Boa noite, meu amigo - Aquiles repetiu.
Apenas após Ulisses ter se afastado, ele olhou para Kat.
Ela sustentou seu olhar e se obrigou a não se mover, nervosa. Queria que ele dissesse alguma coisa, porém Aquiles apenas continuou a fitá-la com uma expressão inescrutável.
Por fim, Kat decidiu dizer a coisa mais neutra que lhe veio à cabeça.
- Parece cansado.
Ele assentiu de leve com a cabeça.
- Assim como você.
- Acho que estou, mesmo.
Aquiles limpou a garganta.
- Não tem nenhuma razão para confiar no que digo, mas juro que não precisa ter medo de dormir na minha tenda. Não vou tocá-la, muito menos machucá-la. O que aconteceu
na praia não vai se...
- Acredito em você - Kat o interrompeu, percebendo, de repente, que não queria ouvi-lo dizer que o que havia acontecido entre eles na praia fora um erro, e que este
não se repetiria. - E também não tenho medo de você.
A descrença no rosto dele era evidente.
- Está bem. Não tenho medo de quem é agora - Kat se corrigiu. - Também não temo que vá se transformar em outra coisa espontaneamente, sem uma extrema provocação.
Aquiles resmungou seu acordo, embora não parecesse convencido com seu pequeno discurso. Apontou para a entrada da tenda.
- Vá para a sua cama. Parece exausta.
Kat se levantou e cruzou a curta distância até a abertura da barraca. Quando se deu conta de que ele não a seguia, perguntou:
- Não vem?
- Pensei em lhe dar algum tempo para... - Ele encolheu os ombros, e suas palavras sumiram.
- Por quanto tempo vamos compartilhar esta tenda?
Aquiles piscou, surpreso com a pergunta.
- Não sei.
- Na certa mais do que uma noite ou duas...?
- Sim. Provavelmente.
- Então temos mais é que parar de bancar os estranhos perto um do outro - Kat decidiu com naturalidade, evitando mencionar que a razão de eles estarem se comportando
com tanto constrangimento era o fato de que o amor que eles quase haviam feito o transformara em um monstro raivoso. - Vamos, entre aqui comigo.
Aquiles resmungou de novo, mas desta vez concordou em silêncio quando ela se abaixou sob a aba, e a seguiu.
Uma vez lá dentro, ignorou-a por completo. Foi direto para a cama enorme, cerrou a cortina leve e, de costas para ela, começou a tirar a túnica, secando-se com um
pano de linho.
Kat sentou-se em sua cama-ninho, tirou os sapatos e limpou a areia dos pés. Em seguida, livrou-se do manto de seda cor de rubi que sobrepunha o traje, ficando vestida
apenas com uma fina túnica creme que, embora larga, ainda favorecia seu corpo jovem.
Durante todo o tempo que ocupou se despindo, tentou, sem sucesso, não olhar de esguelha para Aquiles. Quando ele saiu de trás do cortinado da cama para apagar algumas
lamparinas, viu que ele estava nu, exceto por uma espécie de toalha curta de linho que enrolara abaixo da cintura, em volta dos quadris.
Kat observou, incrédula, as cicatrizes que crivavam seu peito musculoso.
Como se pressentindo seu exame, os olhos dele se voltaram para ela.
- Nunca vi ninguém com tantas cicatrizes - Kat confessou.
Aquiles apertou a mandíbula.
- Eu sei que pareço um monstro.
- Não - ela contrapôs depressa, aliviada por estarem conversando de novo. - Parece apenas um homem que sempre usou o corpo como uma arma.
Ele a fitou por alguns momentos, então fez um gesto brusco.
- Exatamente. - Apagou a última lamparina, deixando a tenda iluminada apenas por uma luz tênue que criou uma atmosfera de sonho. Em seguida voltou para trás da cortina
transparente e foi para a cama.
Kat queria dar a noite por encerrada, virar-se, fechar os olhos, fingir que estava desmaiada no sofá de Jacky de novo e que acordaria depois com nada mais do que
uma maldita ressaca.
Mas não podia. Não se queria voltar para o próprio corpo e sua antiga vida. Hera havia dito que ela precisaria trabalhar depressa, portanto não tinha tempo para
ilusões e procrastinação. E havia mais. O toque de Aquiles selara a atração que ela já sentia por ele, e agora queria mesmo ajudá-lo.
Também era madura o bastante para admitir que queria que ele a tocasse outra vez. Sim, o que começara a acontecer com ele a assustara... mas também a excitara. Aquiles
a excitava, assim como a certeza de que ele não ficava com nenhuma mulher havia muito tempo.
- Aquiles - chamou baixinho, não querendo acordá-lo caso ele houvesse adormecido.
- Não tem nada a temer, princesa.
- Ainda não dormiu - Kat constatou, e revirou os olhos para si mesma. Era uma mulher culta, inteligente, e aquilo fora o melhor que conseguira dizer?
- Eu não durmo - ele falou sem rodeios.
- Nunca?
- Raramente.
Ela sorriu, embora ele não pudesse vê-la.
- Em relação a isso, sei que posso ajudá-lo.
Houve uma pausa, até que Aquiles continuou:
- Como?
- Para isso eu teria de ficar mais perto de você. Se não se importar.
- Pode vir - ele respondeu, ainda soando sem emoção.
Kat abriu o cortinado e o encontrou sentado, as costas apoiadas contra a cabeceira de carvalho esculpido. Fez um gesto na direção da beirada da cama.
- Importa-se se eu me sentar aqui?
- Não, não me importo.
Ela sentou. Na verdade, empertigou-se na borda da cama.
Aquiles ainda mudou de posição, como se não querendo que a perna tocasse qualquer parte do corpo dela. Seus olhos azuis a observaram com cautela.
- Disse que pode me ajudar a dormir?
- Posso.
- Como? Não vou beber nenhuma poção, nem fumar nenhuma erva ruim - acrescentou, antes que ela pudesse responder.
- Por mim, tudo bem.
- Como vai fazer isso, então?
Kat pensou por um momento, tentando encontrar a melhor maneira de descrever a hipnose a um guerreiro do mundo antigo.
- É um feitiço que consigo fazer graças ao poder de Atena. Algo inerente aos oráculos - elaborou por fim.
Ele assentiu, muito sério.
- A deusa tem grandes poderes. O que deve fazer?
- Na verdade, é algo que você mesmo faz. Eu apenas o auxilio. Espere um pouco. - Kat cruzou as cortinas e ergueu a lamparina de seu gancho, colocando-a sobre a mesa
de cabeceira. Diminuiu ainda mais o pavio, de modo que apenas uma pequena chama bruxuleasse. Satisfeita, retornou à sua precária posição na beirada da cama. - Para
começar, precisa relaxar. - Aquiles pareceu cético, e ela sorriu. - Confie em mim. Eu sou o oráculo.
- Pois então, oráculo, se eu fosse capaz de relaxar, seria capaz de dormir. Ou seja, é justamente esse o problema.
- Tudo bem. Se é assim, vamos conversar. Talvez eu possa fazer o feitiço aos poucos.
- Conversar?
- Sim, como estamos fazendo agora. E como fizemos mais cedo, esta noite.
Ele desviou o olhar para longe do dela.
- Eu lhe devo um pedido de desculpas, princesa. Não devia tê-la tocado como fiz.
- Se bem me lembro, fui eu quem o tocou primeiro.
- Eu não devia ter permitido isso. É perigoso.
- Ulisses me contou sobre a Fúria que o domina - confessou Kat devagar.
- Por isso mesmo eu não devia ter permitido que me tocasse.
- Acontece toda vez que, ahn, beija uma mulher?...
Seus olhos se encontraram de novo.
- Acontece quando eu fico excitado.
- Sempre? - Kat indagou baixinho.
- Eu... Eu não sei.
- Como assim? Como pode não saber?
Seus olhos azuis encontraram os dela.
- É simples. - Aquiles se moveu depressa, pegando-a de surpresa. Em um momento estava recostado, no outro havia projetado o corpo e a agarrado pelos pulsos, puxando-a
até que seus rostos estivessem a centímetros um do outro. - Não posso saber, porque não me permito desejar uma mulher, tocar uma mulher. Não como a estou desejando
e tocando agora.
Merda!, Kat pensou. Teria sido mais fácil se houvesse sido enviada para o inferno!
Capítulo Onze
- Verdade? - Kat manteve a voz cuidadosamente neutra. - Então não tocou nem assustou Briseida?
As palavras tiveram o efeito desejado sobre Aquiles. O brilho avermelhado que começava a tingir seus olhos desapareceu, e ele lhe soltou os pulsos como se estes
o queimassem.
- Não - falou apenas. - Nunca toquei a virgem Briseida.
Kat reprimiu o desejo de esfregar as marcas que, sem dúvida, ele lhe deixara nos pulsos.
- Você não a tocou, e mesmo assim ela ficou com medo, não ficou?
- Ficou.
- Se é assim, precisa entender uma coisa de uma vez por todas... Eu-não-sou-como-Briseida! Na verdade, não sou como nenhuma das mulheres que já conheceu. Se você
e eu vamos nos dar bem - e creio que estejamos nos dando bem -, terá que aceitar isso e parar de me julgar como costuma fazer com as outras mulheres. - Kat olhou
ao redor e deu um suspiro de alívio ao ver dois cálices na mesa de cabeceira. - Deus, preciso de uma bebida. - Levantou-se, pegou a taça e rumou para o jarro de
vinho, que se pôs a esvaziar. Olhou através do cortinado, de volta para Aquiles.
- Importa-se se eu tomar um pouco de vinho?
Ele parecia perplexo. Outra vez.
- Claro que não.
- Ainda bem. - Ela encheu o cálice e, em seguida, levou o cântaro consigo, voltando para a enorme cama. Colocou o jarro sobre a mesa de cabeceira, ao lado da lamparina,
mas, desta vez, não se pôs na beirada do leito feito uma pombinha inconsequente, com medo de uma estátua assustadora (Aquiles) que de repente ganhara vida. Jogou-se
sobre a cama dobrando as pernas confortavelmente e, sentada mais próxima ao guerreiro, tomou um longo gole de vinho tinto antes de falar. - Está bem, vamos lá. Acho
que posso ajudá-lo. Não apenas com a sua dificuldade para dormir, mas também com essa história de não conseguir tocar uma mulher pela qual se sente atraído. - Deu-lhe
um sorrisinho nervoso. - Isso supondo que se sinta atraído por mim...?
Ele torceu os lábios, esboçando um sorriso.
- Eu me sinto, sim.
- Mas, se me tocar demais, o que - de novo, estou imaginando - inclui coisas como as que fizemos na praia esta noite, vai deixar de ser o que é agora - Kat apontou
para ele e, em seguida, para a distância, como se Aquiles fosse parte integrante de uma apresentação de PowerPoint -, para se transformar naquilo que eu quase testemunhei
esta noite.
- Então não chegou a me ver como... como ele.
A tensão na voz de Aquiles era mais do que evidente, e Kat estendeu o braço para tocar com cuidado uma cicatriz enrugada que corria por seu bíceps esquerdo.
- Não, não vi. Como poderia? Ulisses me explicou o que acontece com você, e eu fui testemunha do princípio dessa mutação. Estava se transformando em algo que, definitivamente,
não era o que você é agora.
Aquiles pendeu a cabeça de leve, como se um enorme peso houvesse sido tirado de cima dele, e ele precisasse se ajustar à sua ausência. Depois, devagar e com cautela,
endireitou os ombros e tornou a erguer a cabeça, encontrando seus olhos.
- É a primeira mulher que consegue compreender o que acontece. Não sou eu. É alguma coisa que me possui e que não consigo controlar. Dificilmente posso impedi-la...
assim como não posso invocá-la de modo espontâneo. - Ele deixou escapar um som irônico da garganta. - Se eu pudesse, não teria me transformado nesse monstro cheio
de cicatrizes.
- Elas não o tornam hediondo - afirmou Kat, os dedos ainda descansando na ponta da antiga marca em seu bíceps. - Elas são uma parte de você. Na minha cabeça, não
passam de uma evidência física do quanto precisou lutar. - Sorriu para ele. - Tinha que haver um preço para que todos soubessem o seu nome.
- Falou tudo. É o meu preço, minha pena, meu fardo e, por ironia, minha escolha. - Aquiles olhou para onde os dedos delicados lhe tocavam o braço. - Quando eu era
menino, me foi permitido escolher meu destino. Pediram-me que escolhesse entre a felicidade, o amor e uma vida que seria feliz, mas comum, e a vida de um guerreiro
que pereceria muito cedo, mas cuja glória seria eterna. Eu escolhi a glória. Queria que meu nome fosse louvado por incontáveis gerações. - Sua voz profunda soou
amarga, cheia de autoaversão. - Sabia que vou encontrar a morte aqui, diante das muralhas de Troia?
- Eu... ahn... já ouvi falar algo do tipo.
Claro que ela havia ouvido falar naquilo. Lembrava-se muito bem das aulas de Mitologia. Aquiles, o guerreiro indestrutível, fora morto por uma flecha no calcanhar
- seu único ponto vulnerável - próximo do final da Guerra de Troia.
Kat sentiu uma onda de pânico invadi-la. Por que, diabos, não se dera conta daquilo antes?
- Há quanto tempo está aqui, lutando contra os Troianos?
- Quase uma década inteira - ele contou.
- Merda! - Kat o agarrou pela mão. - Não quero que lute mais.
Ele ergueu uma sobrancelha.
- Pois não acabei de dizer a Agamenon que estou me retirando da luta?
Ela sentiu uma ridícula onda de alívio que, no entanto, durou pouco. Naquela chatice da Ilíada de Homero, Aquiles também não se retirara da batalha? O problema era
que, depois, tinha voltado... e acabara levando uma flechada no calcanhar.
Mas por quê? O que o levara a lutar outra vez?
- Merda! - Tornou a praguejar, virando-se para encher o cálice de novo. - Eu devia ter prestado mais atenção nas aulas da escola.
- Escola?
Kat balançou a cabeça, distraída, ignorando a pergunta enquanto seus pensamentos continuavam num turbilhão. Muito bem. Era óbvio que a razão para ele ter voltado
para a guerra, sendo eventualmente morto, tinha a ver com a Fúria que o acometia. Certo. Então, tudo o que precisava fazer era ajudar Aquiles a romper com os gatilhos
que disparavam aquela ira e... voilà! Ele não estaria mais fora de controle. Na verdade, permaneceria longe da batalha e não seria morto.
- Sim, sim. Ouvi dizer que sucumbiria na Guerra de Troia. Por isso mesmo fui enviada por Atena: para me certificar de que isso não acontecesse - falou, corajosa,
dando de ombros em pensamento. Atena e as outras duas deusas não queriam que Aquiles lutasse. No caso, não lutar e não morrer eram quase a mesma coisa.
A intensidade com que ele a observou com aqueles seus olhos azuis só podia ser um fio de esperança, concluiu Kat.
- Estou fadado a morrer diante dos portões de Troia logo após a morte de seu irmão, Heitor.
Kat sentiu um aperto no estômago. Era aquilo mesmo. Lembrava-se de algo sobre Aquiles matar o filho do Rei de Troia, o irmão do corpo que ela habitava.
- Se é assim, basta nos certificarmos de que não mate Heitor, certo?
- Acredita que o destino traçado por Zeus possa ser mudado?
- Conheço uma deusa que acredita. Na verdade, conheço várias deusas que acreditam, e descobri que as mulheres são mais sensatas sobre assuntos de guerra e morte
violenta do que os homens. Portanto, vamos nos apegar à versão das deusas de que o destino pode ser mudado, está bem?
A expressão de Aquiles continuou séria.
- Eu daria tudo para mudar o meu destino, princesa.
- Ótimo. Então vamos começar já. - Kat sorriu e estendeu o cálice para ele. - Tome uma bebida comigo. Vou lhe ensinar umas coisas sobre relaxamento.
Uma hora e duas taças de vinho mais tarde (principalmente bebidas por Aquiles), Kat tinha vontade de agarrá-lo pelos ombros largos e sacudi-lo. E o teria feito,
se achasse que isso surtiria algum efeito. Aquiles se encontrava deitado de costas agora, olhando para o teto. Continuava com o corpo rígido e nem um pouco relaxado.
- Escute, jamais vai relaxar se não acreditar que pode.
- Eu nunca me permito relaxar - ele volveu, ríspido.
- Pois vai ter que aprender. Muito bem... Tente uma coisa. Pense em cada pedaço dos seus músculos como se estes precisassem ser treinados um a um. E o treino que
dará a eles será o do completo relaxamento. O que vai fazer, portanto, é ordenar a essas partes de seu corpo que façam alguma coisa. Nada muito diferente de comandar
seus braços para que eles empunhem uma espada e oscilem a fim de se proteger.
Aquiles virou um par de incrédulos olhos azuis em sua direção, e Kat suspirou.
- Quando você dorme, fica sempre de costas, assim?
Ele pensou por um momento.
- Não.
- Como costuma se deitar? Que posição mais lhe agrada?
Aquiles hesitou, depois colocou o braço esquerdo sob a cabeça e ergueu o joelho esquerdo, o braço direito descansando, solto, sobre a cintura. Inclinou um pouco
a cabeça, então, parecendo ligeiramente mais confortável.
- Assim é melhor - ela falou com um suspiro, pensando o quanto ele estava sexy deitado ali sem camisa, os cabelos fartos caídos em torno dos ombros, os lindos olhos
azuis voltados para ela, e todos aqueles músculos deliciosos e tonificados, marcados por cicatrizes agora suavizadas pela luz tênue da lamparina.
- Fica difícil relaxar quando olha para mim dessa maneira.
Merda! Ela se endireitou, culpada.
- Tente me ignorar - falou, lembrando-se de que uma mulher, de um dos casais com os quais fazia terapia, costumava segurar a mão do marido durante toda a sessão.
Não. Ela não segurava a mão dele apenas. Costumava esfregá-la com carinho, e o marido, que tinha verdadeiro horror à terapia, sempre relaxava diante do gesto. (Na
verdade, eles haviam se mantido casados; só precisaram de ajuda para melhorar sua comunicação.)
- Muito bem, dê-me uma de suas mãos - pediu de repente.
Aquiles franziu a testa.
- O que quer fazer com a minha mão?
- Eu não vou machucar você! - protestou Kat, erguendo uma sobrancelha, irônica. - Não precisa ter medo de mim.
- Não tenho medo de você.
- Então me dê a mão! - Estendeu a dela num convite.
A carranca se transformou em uma expressão de sarcasmo, entretanto Aquiles lhe deu a mão com que apoiara a parte de trás da cabeça. Kat a segurou entre as suas e,
lentamente, começou a massageá-la com firmeza, trabalhando no bloco calejado.
Observou-o. Ele a fitava com uma expressão velada nos olhos azuis, e o cenho franzido fora substituído por uma máscara inexpressiva.
- Conte-me qual é o seu lugar favorito - ela pediu.
- Por que quer saber isso? - Aquiles indagou após um momento de hesitação.
- Descreva-o. Feche os olhos e finja que está me levando lá.
Ele a observou por mais alguns instantes e, depois, para sua surpresa, fechou os olhos.
- Há uma enseada escondida na costa da Phthia. - Fez uma pausa e abriu os olhos. - Phthia é a minha terra natal.
Kat acenou com a cabeça e continuou lhe esfregando a mão. Aquiles observou o gesto, depois tornou a se voltar para ela.
- Continue - incitou Kat quando ele demorou a prosseguir. - Conte-me como é esse lugar.
- A água lá é calma e límpida.
- Feche os olhos e me leve até lá - ela pediu num sussurro.
Aquiles franziu a testa de novo, mas fechou os olhos.
- A areia da praia é branca, e as rochas que se projetam dela são escuras. A água é de um tom muito diferente de azul.
Como seus olhos, provavelmente, Kat concluiu em pensamento, mas o manteve para si própria. - É uma enseada rasa, e tem um ajuntamento de corais em forma de pata
de animal bem no meio. - A princípio, Aquiles falou com consciência, em frases curtas e objetivas, mas logo pareceu se esquecer de que ela estava ali conforme descrevia
seu lugar favorito.
Enquanto lhe esfregava uma das mãos, depois a outra, Kat percebeu seus ombros largos relaxando e sua respiração se tornando mais profunda.
- Minha mãe, a deusa do mar Tétis, costuma ir muito a essa enseada. Há ostras sob o coral que dão pérolas negras lá, e eu muitas vezes as apanhei para ela. Os peixes
são grandes e preguiçosos, assim como as aves marinhas que ficam empoleiradas nas rochas escuras...
Ele fez nova pausa, e Kat falou na voz calma e firme que costumava induzir o estado hipnótico em seus clientes.
- Imagine-se lá, Aquiles. Deixe que minha voz o leve de volta para a sua enseada. Está deitado na praia... sentindo a areia quente no corpo... As ondas suaves estão
beijando a costa numa batida ritmada... Escute-me... Permita que a minha voz o leve até lá. Está em paz... completamente relaxado. Seus pés estão relaxados, aquecidos
pela areia macia. Não existe raiva na sua enseada... Nenhuma guerra... É quente e protegido lá. Suas pernas estão relaxadas... - Kat continuou, induzindo-o ao relaxamento
por meio do exercício, até que soltou sua mão devagar e constatou de perto como o corpo de seu guerreiro relaxara por fim, e sua respiração se tornara profunda e
regular. Sem mudar o tom de voz, prosseguiu: - Está na sua enseada, Aquiles?
- Sim - ele respondeu, a voz grave agora meio arrastada.
- Muito bem. Quero que saiba que a raiva não pode chegar aí, e nem a você, enquanto estiver nela. Sua mente está em paz. Seu corpo está relaxado. Compreende?
- Sim.
- Muito bem. É noite na sua enseada, o que significa que irá dormir profundamente. Quando eu começar a contar, quero que fique ainda mais relaxado. Seu corpo está
pesado... Dez.. Precisa descansar... Nove... A areia está quente... Oito... e acolhendo o seu peso... Sete... Está seguro... Seis... Relaxado e livre da raiva...
Cinco... Ela não pode atingi-lo aí... Quatro... Esta noite vai dormir na sua enseada... Três... E não vai despertar até o amanhecer... Dois... Até lá, seu corpo
pesado vai descansar em paz... Um... E com segurança... - Kat deixou a voz morrer.
Se ela estivesse certa - e estava -, Aquiles era muito suscetível à hipnose. O que fazia sentido, concluiu. Aquela Fúria que o possuía devia acabar com seu subconsciente e, uma vez que mexia tanto com ele, deixava-o aberto a sugestões.
Sorriu, satisfeita. Aquiles fora hipnotizado, e isso significava que ele se encontrava em transe. Decerto despertaria após o amanhecer, conforme ela havia sugerido, e sentindo-se renovado.
Kat estudou o rosto moreno. Ele parecia diferente agora que se encontrava relaxado. Em geral Aquiles se portava com muita rigidez, deixando claro, ao menos para
ela, que vivia preocupado com o que poderia acontecer caso relaxasse.
E ela não podia culpá-lo após ter tido um vislumbre da Fúria que o acometia.
Naquele momento, entretanto, Aquiles imaginava estar em sua praia, seguro, acolhido, descontraído. Seu rosto perdera aquele eterno ar de tensão. Seus lábios suavizaram,
e se encontravam entreabertos, lembrando-a de como estes se provaram macios contra sua boca. O que Aquiles não tinha em termos de experiência ao beijar, tinha em
entusiasmo e força.
Seu olhar deslizou pelo peito nu. Normalmente não se deixava impressionar por músculos, porém Aquiles não possuía aquele corpo bombado à base de esteroides dos "guerreiros
de academia". Seu corpo era uma ferramenta que ele utilizava muito, e que trazia consigo as provas desse uso.
Quase sem perceber, ela viu a mão se mover de modo que seus dedos pudessem, mais uma vez, descansar sobre a cicatriz enrugada no bíceps volumoso e lhe percorrer
a extensão até o topo. E então estes se desviaram para outra marca, esta plana e fina, que remetia a um corte terrível na parte de cima do ombro largo. Devia ter
sido mais bem tratada do que a outra, concluiu.
Aquiles tinha várias cicatrizes no peito. A pior era uma rosada e irregular, que não parecia muito antiga. Começava na parte de cima do peito esquerdo e descia,
cruzando as costelas, até desaparecer sob a coberta que ele deixara largada sobre a cintura.
Kat deixou os dedos seguirem a marca, descendo pelo peito, passando pelas costelas. Quando avançou um pouco mais, Aquiles gemeu.
Ela congelou, voltando o olhar para o rosto moreno. Seus olhos continuavam fechados, e ele ainda parecia hipnotizado.
- Está profundamente relaxado. Ainda em sua enseada - murmurou, mordendo o lábio. Na certa não deveria perguntar. Sem dúvida, não deveria.
Mas, que diabo, por que não? Aquiles não era um de seus pacientes casados. Deus sabia, podia até ser bom para ele.
Limpou a garganta e indagou em voz baixa, enquanto seus dedos continuavam a percorrer o caminho das cicatrizes:
- O que está sentindo, Aquiles?
- Seu toque - ele respondeu de pronto.
- Está gostando?
- Sim.
- É a sua enseada, Aquiles. Seu lugar predileto. - Kat sentiu os batimentos cardíacos aumentarem à medida que falava, contudo sua voz permaneceu hipnótica, suave
e calma. -Pode fazer o que quiser na sua praia. Portanto diga-me, Aquiles, o que quer?
- Quero que não pare de me tocar.
Capítulo Doze
As palavras de Aquiles fizeram surgir um calor no âmago de Kat, que se espalhou como se ela tivesse acabado de engolir uma dose de uísque vinte e poucos anos. A
pressão entre suas pernas foi tanta que ela precisou pressionar as coxas em busca de alívio.
Mas de nada adiantava aquilo. Não era o tipo de alívio de que ela necessitava.
Seus olhos derivaram para a protuberância que se tornava cada vez mais evidente sob a coberta. Seria possível? Conseguiria fazer amor com Aquiles e mantê-lo hipnotizado?
Sua vadia antiética!, gritou seu "eu" interior.
Mas, por sorte, ela era ótima em silenciá-lo. Além do mais, a verdadeira questão não era se ela conseguiria manter Aquiles hipnotizado, e sim se poderia mantê-lo
calmo o suficiente para que a Fúria não o dominasse.
E estava longe de ter certeza de que seria capaz de manter Aquiles sereno, fazendo sexo selvagem com ele.
Bem, talvez eles não fizessem sexo selvagem. Havia tantos níveis entre o celibato e um amor tresloucado!... Quem sabe pudesse encontrar um meio-termo que desse certo?
Uma vez mais, estendeu o braço para tocá-lo. Desta vez, permitiu que a mão o acariciasse no peito em direção ao abdômen rijo, então seus dedos mergulharam sob a
coberta. Não chegou a tocar seu membro, porém Aquiles tremeu sob seus dedos e respirou fundo enquanto deixava escapar novo gemido.
- Ainda está na sua enseada... relaxado... aquecido... seguro - ela sussurrou, tomando o cuidado de manter a voz hipnótica, o que não estava sendo fácil, uma vez
que sua própria respiração tinha se acelerado. - O que mais vê na praia além do mar, dos corais e da areia?
- Você - ele respondeu, a voz profunda soando relaxada como num sonho, e deliciosamente sexy.
- Sim - sussurrou Kat no mesmo tom, antes que mudasse de ideia e voltasse a ser a profissional maçante (em vez de alguém brincando de praticar a mais antiga das
profissões). - Eu também estou aí. O que estou fazendo?
- Está deitada a meu lado - ele murmurou. E, antes que ela pudesse fazer qualquer outra pergunta, acrescentou: - Não está com medo... Está me tocando.
- Aquiles, não existe medo onde você está. Nem ódio, nem dor.
De repente, Kat sentiu uma vontade enorme de chorar. Quanto tempo se passara sem que ele tivesse sido tocado sem medo ou raiva?
Seguindo um impulso, deitou-se de frente para ele. Descansou a cabeça em seu ombro e a mão no peito largo.
- Está cada vez mais relaxado - falou baixinho. - Meu toque é a sua âncora, e seu desejo o seu guia... O que deseja, Aquiles?
- Você.
Pronto, refletiu Kat. A palavra era a sua ruína.
- Então vai me ter - decidiu, deslizando a mão para baixo devagar, bem devagar, até segurar o membro rijo. Aquiles gemeu quando ela acariciou o comprimento longo
e espesso. - Lembre-se de que isto é um sonho... Apenas um sonho...
Ele gemeu outra vez e ergueu os quadris, indo de encontro à carícia. Kat deslizou as pernas para baixo da coberta e se aproximou dele, sentindo uma onda líquida
de excitação ao constatar que Aquiles se encontrava completamente nu. A toalha de linho com que ele se cobrira havia se soltado, portanto não existia mais nada além
da seda fina de sua própria túnica entre eles.
Que fosse tudo para o inferno!, pensou, puxando a seda delicada de modo a ficar nua até a cintura, e pressionando o corpo contra a coxa firme.
- Por todos os deuses!... - sussurrou Aquiles ao sentir sua umidade contra a pele em conjunto com a carícia insistente de sua mão.
- Está bom? - ela indagou num murmúrio, desejando que ele lhe tomasse os mamilos doloridos na boca.
- Sim! - ele gemeu a palavra. - Mais... Quero mais de você! - Virou-se, lânguido, em sua direção, rolando para o lado num movimento lento, como se estivesse se movendo
através da água. Suas mãos lhe seguraram as nádegas nuas, o membro endurecido pressionando-a com insistência.
- Sim, mais! - Kat estava tão excitada e molhada que pôde escorregar para cima e para baixo ao longo dele, deliciando-se com sua rigidez e calor. Aquiles não a penetrou,
contudo ela continuou a sussurrar palavras para acalmá-lo enquanto deslizava em seu pênis, até que a ponta espessa pulsando contra seu clitóris a fez explodir em
um orgasmo rápido e devastador. - Junto comigo, Aquiles, vamos! - arfou e apertou mais o membro já escorregadio com sua umidade.
Ele deixou escapar um som gutural e, ao mesmo tempo, sua semente jorrou quente entre eles.
- Princesa! - Ele falou num suspiro, enquanto ela terminava de acariciá-lo e desabava em seu ombro.
- Está relaxado... - Kat falou, ofegante.
E estava mesmo, sem dúvida!, concluiu, ao fitá-lo no rosto. Ambos haviam gozado, e Aquiles permanecera hipnotizado o tempo todo!
Puta merda! Essa foi a coisa mais vil que já fiz na vida!
Devia estar corando, pensou, se suas bochechas já não estivessem pegando fogo por conta do delicioso orgasmo que acabara de ter.
E agora, o que eu faço?
Limpou a garganta, suprimindo a sedução na voz e reassumindo seu papel de terapeuta.
- Aquiles... Vai dormir pelo restante da noite e acordar depois do amanhecer, completamente renovado. - No mínimo, acrescentou em silêncio para si mesma. - Está
me entendendo?
- Sim - ele murmurou, sonolento, e ela notou que seus lábios se contorceram num breve sorriso.
Kat se desenroscou de Aquiles devagar e deslizou com cuidado para fora da cama. Olhou para ele. Aquiles se encontrava mesmo relaxado. Sua respiração era profunda
e regular. Tinha o corpo largado, as pernas jogadas sobre a cama, mas, mesmo assim, ainda ostentava uma aparência de ferocidade e poder.
Numa súbita percepção, ela se deu conta de que, mesmo sem que a Fúria o possuísse, ele teria sido um grande guerreiro e líder.
Mordeu o lábio e se perguntou (tarde demais) como aquele guerreiro brutal se sentiria a respeito do que ela lhe fizera naquela noite.
Talvez pudesse sugestioná-lo, de modo que ele não se lembrasse do que tinha acontecido entre eles.
Suspirou. Não. Não era tão baixa. Além do mais, mesmo que seu comportamento fosse o que Jacky chamaria de "renovador", ela não iria se iludir. Queria que Aquiles
se lembrasse; queria que ele soubesse que tinham dado prazer um ao outro sem que a Fúria o tivesse dominado. Por outro lado, e se lembrar de tudo o deixasse enlouquecido?
De acordo com as deusas, Aquiles não fazia sexo havia anos. Talvez ele quisesse estar totalmente consciente para isso.
Ah, sim. E permitir que a Fúria tomasse conta dele, o que não teria sido nem um pouco agradável...?
- Merda - praguejou baixinho. Então teve uma ideia e tornou a erguer a voz, mantendo-a em um nível profissional. - Aquiles, quando acordar, vai se lembrar de tudo
o que aconteceu esta noite, mas apenas se quiser. Durma bem agora, e tenha apenas bons sonhos.
Congratulando a si mesma, Kat tomou um gole do cálice de vinho fresco enquanto usava a água de uma bacia para se lavar. Ao terminar, olhou para Aquiles através da
cortina transparente. Ele continuava dormindo.
Teria gostado de voltar para aquela cama com ele e se aconchegado junto àquele corpo sólido, mas o que aconteceria na manhã seguinte, quando ele despertasse? Seria
saudada por um Aquiles surpreso ou por uma fera sedenta de sangue?
Não muito disposta a correr esse risco, ela se enrolou toda no colchão feito de mantas e adormeceu quase no mesmo momento.
Kat não acordou até que um tumulto vindo do lado de fora da tenda penetrasse em seu sonho, transformando o lindo salva-vidas italiano que massageava seus ombros
em uma feirante esganiçada. Arrancada de sua fantasia, sentou-se bem na hora em que Jacky irrompeu barraca adentro. A loira delicada e enganosamente frágil marchou
até se pôr à sua frente, colocando uma das mãos no quadril magro. A outra, Jacky apontou para o próprio sexo.
- Minha xereca é forrada de pelos loiros! Acredita nisso? Eu nunca vi uma merda dessa! - exclamou, inconformada.
No mesmo instante, Kat lançou um olhar para a cama isolada por cortinas, na parte traseira da tenda, e ficou aliviada - ainda um pouco decepcionada - ao perceber
que esta se encontrava vazia. Esfregou os olhos e colocou os cabelos para trás da orelha.
- E então? - Jacky exigiu, batendo o pé com impaciência contra o tapete grosso.
- E então o quê, Jacky? É uma loira natural agora. O que esperava?
A moça sentou-se na borda da cama improvisada.
- Não sei. Quero dizer, eu nem sequer olhei para ela ontem à noite, enquanto fazia xixi. E, de qualquer maneira, estava escuro. Mas, esta manhã, estava me lavando
e... lá estava. Foi um choque, pode apostar.
Kat se espreguiçou devagar.
- Te adoro, Jacky, mas você é meio idiota.
A outra estreitou os olhos com cuja cor ela ainda não estava familiarizada; entretanto, Kat conhecia bem aquela expressão.
- Não sou idiota! Sou apenas branca agora - Jacky replicou, erguendo as sobrancelhas claras. - Embora algumas pessoas pudessem dizer que é a mesma coisa.
Sem dar a mínima, Kat sorriu e se esticou de novo.
- Só precisa relaxar e deixar as coisas acontecerem. Não vamos ficar aqui por muito tempo e...
- Meu Jesus Cristinho, você transou!
Kat franziu o cenho para a melhor amiga.
- Como pode afirmar isso? Sem dizer que eu não "transei". Pelo menos não tecnicamente.
- Em primeiro lugar, é muito fácil. Está toda amarrotada e alegrinha. E não fica assim, relaxada há... - Jacky fez uma pausa, sem dúvida contando em pensamento -
... há uns três anos e meio, que é o tempo exato que passou sem ter relações sexuais! Em segundo lugar, o que quer dizer com "pelo menos não tecnicamente"? Lembre-se
de que concluímos, vários anos atrás, que sexo oral também é sexo.
Kat se remexeu, pouco à vontade.
- Não faz três anos e meio. Faz três anos e quatro meses.
Jacky bufou.
- E eu não fiz sexo oral! - ela completou depressa.
- Mas...? - incitou a outra.
- Foi mais ou menos sexo.
- Explique-se, Katrina Marie.
Kat respirou fundo e, em seguida, falou de uma vez:
- Eu hipnotizei Aquiles e, enquanto ele estava em transe, nós demos um amasso e acabamos gozando. Pronto.
- Senhor Jesus, você estuprou Aquiles!
- Eu, não! Afinal ele concordou.
- Comece de novo. Desta vez, falando a verdade!
- Seu humor está de lascar agora que virou branca - reclamou Kat.
- Eu sempre fui mal-humorada, como você bem sabe. E pare de me enrolar, Katrina.
Kat suspirou.
- Está bem. Ele meio que disse "sim".
- Sabe que transar com um quarterback da Tulsa Univertity na linha de 50 jardas não é nada comparado a abusar de um cara inconsciente, não é?
- Jacqueline, eu não abusei de Aquiles!
- Katrina... Ele estava em pleno controle de suas faculdades mentais?
O sorriso de Kat foi lento e satisfeito.
- Aparentemente sim.
- Vadia! Como você é vadia! Mas não foi isso o que eu quis dizer. Quero saber se Aquiles estava consciente ou sob sua influência diabólica quando transou com ele.
Kat mordeu o lábio, hesitou, mas depois desistiu. Sempre contava tudo a Jacky. Era melhor acabar com aquilo de uma vez.
- Ontem à noite, um pouco antes de acontecer, encontrei Aquiles na praia, logo depois de uma confusão com Agamenon e... A gente se entendeu bem na tenda do rei,
apesar de eu ter tirado aquele sujeitinho do sério. Deus, Agamenon é tão insuportável como Hera falou! De qualquer forma, o que eu disse não foi nada comparado ao
que Aquiles anunciou: que ele e todos os seus homens que desejassem segui-lo iriam se retirar da batalha.
- Aposto que Agamenon ficou puto.
- Ficou. Ele e Aquiles se estranharam, e Aquiles quase precisou lutar para que pudéssemos sair de lá. Aliás, Briseida não me pareceu flor que se cheire.
- Você a conheceu?
- Na verdade, não fomos apresentadas. Mas ela ficou recostada no joelho real de Agamenon, lançando-me olhares de reprovação o tempo todo.
- Que tipo de olhar ela lançou para Aquiles? - Jacky quis saber.
- Nenhum. A cadela mal olhou na cara dele. Não que o tenha desejado. Parecia mais que não queria que eu estivesse com ele. Mas eu a ignorei e segurei firme no braço
de Aquiles. Isso a tirou do prumo.
- Vê-la segurando o braço dele a desconcertou? O que ela é, afinal? Alguma virgem intocada?
- Não. Meu palpite é que Briseida é como a maioria das mulheres deste tempo. Elas ficam apavoradas ao ver qualquer um tocando Aquiles.
- Por quê?! - Jacky perguntou. - Por causa daquela história de Fúria? Diacho, então não se lembra daquela minha fase rebelde, mas infeliz com Rashod, vulgo "X"?
Ele era uma praga, mas se comportou e até se mostrou mais sensato enquanto ficamos juntos. Verdade que ele agora está cumprindo pena por ter matado o vizinho, LaShawn
Johnson, mas é óbvio que quando paramos de namorar ele também parou de usar o bom-senso.
- Jacky, Rashod, vulgo "X", puxou uma arma nove milímetros em plena luz do dia e assassinou LaShawn e seu cão a tiros. Cinco em cada um, se me lembro bem - completou
Kat. - Não acho que se possa chamar isso de acidente.
- Rashod, vulgo "X", quis apenas atirar no chato do cachorro do LaShawn que não parava de latir. LaShawn perdeu a cabeça e se pôs entre as balas e o cão, o que,
em minha opinião de profissional, não foi lá uma ideia muito brilhante.
- Por que estamos falando de Rashod, vulgo "X", afinal? - Kat indagou, completamente confusa.
- Porque eu queria dizer que, se a florzinha da Briseida e todo esse bando de branquelas por aqui têm tanto medo do seu namoradinho, deveriam mais era ter uma boa
dose dos rapazes que frequentam a zona norte de Tulsa... Aposto que eles iriam dar um jeito nelas rapidinho. Fala sério, Kat, como Aquiles pode ser tão assustador?
- Não é de Aquiles que elas têm medo - Kat explicou devagar. - Ele não é assustador. É sexy, e também meio triste e solitário. É da Fúria que elas temem, e com razão.
Eu tive um vislumbre do que acontece, Jacky. Ela nem tinha dominado Aquiles totalmente, e foi terrível.
- Katrina Marie, ele a machucou? - Jacky se transformou no mesmo instante naquilo que Kat gostava de pensar como a "superenfermeira".
- Não. Eu... saí correndo.
As sobrancelhas loiras de Jacky quase se uniram à base de seus longos cabelos.
- Você saiu correndo. Fugindo dele pela praia, com os peitos balançando?
Kat olhou para os próprios seios.
- Eu não acho que esses peitos balancem muito. Eles são empinados até demais. Mas, sim.
- Então você o estuprou como uma espécie de vingança? Foi quase uma ideia brilhante, mas, mesmo assim, muita sacanagem!
- Escute aqui, eu não abusei de ninguém. Foi tudo um acidente.
- Ah, sim. Igualzinho ao assassinato por acidente daquele infeliz do Rashod, vulgo "X".
- Não foi coisa nenhuma. Eu só estava tentando fazê-lo relaxar. Aquiles não dorme. Ou pelo menos não muito.
- Por isso fez uma bela e relaxante chupeta nele e acabou gozando...? Está mais desesperada do que eu imaginava!
- Não foi nada disso! Não fiz chupeta nenhuma, Jackeline, muito menos estou desesperada! Eu o hipnotizei.
- E depois fez a chupeta?
- Não! Eu apenas o fiz gozar. Mas não sem antes tirar uma casquinha - Kat confessou com um sorriso satisfeito.
- Sentou no rosto de Aquiles enquanto ele estava hipnotizado? Caras conseguem fazer isso quando estão em transe?!
- Eu não sentei no rosto de ninguém! Minha nossa, como você é indecente!
- Ora, por favor. Não sou indecente, sou enfermeira. Isso tudo é clínico para mim. Faça de conta que está em um consultório médico. O que aconteceu?
- Eu me esfreguei no, ahn, bilau dele - contou Kat, sentindo o rosto pegar fogo.
Jacky caiu para trás, de encontro às almofadas, e explodiu numa gargalhada.
- Santo Deus, você disse bilau!
- Quer parar?! - Kat empurrou o ombro da amiga. - Escute, eu não queria que isso acontecesse, mas Aquiles estava lá, todo angustiado, nu e musculoso. Eu o acariciei
nas cicatrizes, e então o pênis dele começou a... - Kat fulminou Jacky com o olhar quando esta tentou, sem sucesso, abafar uma risadinha - ... começou a ficar duro.
Aquiles disse que queria que eu continuasse a tocá-lo, e foi isso o que eu fiz. Não transei com ele porque fiquei com medo que isso despertasse a Fúria. Além do
mais, se quer mesmo saber de todos os detalhes técnicos, Aquiles não estava plenamente de posse de suas capacidades mentais.
- Não estava muito consciente, quer dizer...?
- Que seja. Foi isso o que aconteceu. Fim. Será que dá para mudar de assunto agora?
- Quer saber? Essa história de ter hipnotizado Aquiles para que ele lhe desse um trato foi uma excelente ideia. Você bem que podia me ensinar essa técnica.
- Nem se fosse no inferno!
- Bem, há rumores de que podemos estar no inferno, então... Não quer reconsiderar?
- Não! E agora, para mudar o assunto, como está Pátroclo, e o que fizeram na noite passada?
- Como não sou tão vadia como você, eu dormi. E o meu anjinho vai bem, obrigada. Pelo menos imagino que sim. Ele já tinha saído quando acordei esta manhã - Jacky
franziu a testa muito lisa. - Acho melhor eu ir atrás dele e ver se não está sujando aqueles pontos ou coisa do tipo.
- Em outras palavras, Pátroclo ficou desmaiado a noite toda.
- Completamente.
- Esse "completamente" me soou meio melancólico.
- Kat, está tentando transferir a sua sacanagem para mim. Não estou interessada naquele branquelo.
- Ah, claro. Ele é alto, moço, musculoso e lindo. Credo!... Quem estaria interessada por alguém assim?
- Ele é branco. E brancos acham que eu tenho bunda e atitude demais.
- Jacky, você é uma garota branca e magrinha agora, esqueceu? Portanto, tudo o que tem sobrando agora é atitude.
- Pelo amor de Deus! Eu ainda estou na fase da negação. O que acha de comermos alguma coisa para eu tentar encher esta bunda magra?
- Boa ideia. Estou morrendo de fome.
- Safadeza desenfreada costuma fazer isso com as pessoas.
- Jacqueline, suas madeixas loiras e compridas estão meio desgrenhadas. Se não sabe lidar com elas, eu posso lhe ensinar.
- Ah, sim! - resmungou Jacky enquanto Kat se vestia.
Capítulo Treze
Kat e Jacky mastigavam queijo, azeitonas e uma espécie de carne de porco frita, conversando, de quebra, sobre a ética na hipnose, quando Aetnia, a criada que reconhecera
Kat na noite anterior como sendo a princesa, passou correndo, e depois parou ao vê-la.
- O que aconteceu, Aetnia? Para onde está indo todo o mundo? - Kat perguntou.
- Os homens estão fazendo manobras na praia, princesa. Estou certa de que Aquiles iria gostar se fosse até lá, também - explicou a moça, e bateu em retirada.
- Na noite passada, ele também queria que eu comparecesse - Kat murmurou, maliciosa.
- Sério? Quero dizer, quando ele estava consciente ou depois?
- O tempo todo - Kat mentiu.
- Bem, então, vamos lá. A menos que tenha medo de enfrentá-lo quando ele está de pé e falando - provocou Jacky, levantando-se de um salto e se pondo a caminhar atrás
da serva.
- Ele também estava falando ontem à noite - ela resmungou com uma careta, mas foi atrás da amiga.
- Vou adorar ver se Aquiles continua sob o seu feitiço diabólico!
Três mulheres que caminhavam na mesma direção lançaram olhares temerosos na direção de Kat e começam a cochichar ao ouvirem o comentário de Jacky.
- Não há feitiço nenhum, sua tonta - Kat falou alto o suficiente para que o grupo escutasse. Em seguida, baixou a voz para a amiga. - A hipnose terminou quando ele
acordou esta manhã. Com sorte, relaxado e novinho em folha.
- E do que, exatamente, ele vai se lembrar sobre a noite passada?
Kat sorriu.
- Apenas do que ele quiser.
- Aff!, você é mesmo diabólica! - acusou Jacky.
- Não, sou inventiva - Kat rebateu.
Jacky lançou-lhe um olhar de soslaio, porém ambas se encontravam muito ocupadas em galgar as dunas para discutir com mais entusiasmo.
Os montes de areia e grama deram lugar a uma praia plana e larga que se encontrava repleta com...
- Homens seminus! - vibrou Jacky.
- E com espadas! - Kat ronronou. - Isto é mesmo um romance!
- Ei, lá está o seu namoradinho.
O dedo apontado de Jacky chamou a atenção de Kat para o maior grupo. No centro, avistou Aquiles, sem roupa da cintura para cima. Quatro homens vestindo armadura
completa o cercavam, embora ele estivesse praticamente nu, segurando apenas o escudo e uma estranha espada curta.
- Caraca, Aquiles tem mais músculos sobre os músculos! - comentou Jacky. - Mesmo assim, não sei como, diabos, ele sobreviveu a esses ferimentos. Não é de se admirar
que seja tido como imortal.
- É o que dizem sobre Aquiles? - Kat sussurrou enquanto elas se juntavam a outras mulheres que haviam se acomodado em troncos para observar os homens.
Jacky encolheu os ombros.
- Eu ouvi umas conversas na noite passada. Os Mirmidões falam de Aquiles como se ele fosse um deus.
- Ele não é nenhum deus. É apenas um homem - Kat afirmou, e tentou não estremecer quando dois dos quatro guerreiros investiram contra Aquiles. Não precisava se preocupar
com ele. Suas respostas eram tão rápidas que pareciam desmentir as palavras dela. Aquiles se esquivou de lado, deu um giro e então bateu no traseiro dos dois homens
com a parte plana da espada. Os Mirmidões que os assistiam irromperam em gargalhadas, acompanhadas por comentários grosseiros.
O sorriso que Aquiles deu em resposta foi surpreendentemente bem-humorado, e ele fez um gesto para que os outros dois soldados o atacassem. Eles obedeceram, e Aquiles
se moveu para a lateral, defendendo-se com seu escudo de águia. Os guerreiros recuaram, e Kat percebeu por que a espada dele parecia estranha: era de madeira.
- Ele nem está usando uma espada de verdade! - comentou com Jacky.
Como se Aquiles a escutasse, seus olhos azuis se desviaram dos soldados que o circundavam direto para ela. Kat viu a surpresa neles, e sentiu uma corrente elétrica
de atração crepitar entre eles.
Nesse momento, um dos homens investiu contra Aquiles, e ele demorou a reagir. A lâmina da espada deslizou ligeiramente na parte de baixo de seu peito antes que ele
a rechaçasse com a espada de madeira, deixando uma fina linha escarlate.
Com um grunhido, Aquiles se agachou. Kat notou a mudança na reação dos guerreiros no mesmo momento. O círculo recuou, e os homens que estavam lutando com ele pareceram
prender a respiração. Em suspense, ela observou Aquiles respirar fundo diversas vezes enquanto, sem dúvida, lutava contra o despertar da Fúria.
Em seguida, viu uma figura alta e loira se destacar do círculo que recuara. Desarmado, Pátroclo caminhou até o primo com segurança, fazendo um discreto movimento
para que os outros dois guerreiros recuassem. Quando falou, seu sorriso se refletia em sua voz, como se ele não fizesse ideia de que Aquiles ainda lutava para não
se transformar em um monstro.
- Dizem que ninguém pode vencê-lo em um combate, primo. Isso porque eles não o conhecem como um parente.
Devagar, Aquiles endireitou o corpo, abandonando a posição de ataque, e Kat viu seus lábios se curvarem de leve.
- E o que diria sobre mim, parente?
- Que não passa de uma tartaruga gigante e nervosa. Perigosa e imprevisível, mas impotente quando está de cabeça para baixo.
Aquiles riu, e Pátroclo se lançou sobre o homem mais velho. Do nada, a ameaça da Fúria se desfez, e os homens torceram e gritaram outra vez, enquanto os dois primos
se engalfinhavam sobre a areia.
- Se esse branquelo estúpido abrir meus pontos, vou estrangulá-lo! - Jacky levantou-se de um salto, sem dúvida se preparando para marchar até o grupo de homens e
separar Aquiles e Pátroclo.
Kat agarrou-lhe o pulso e a puxou de volta.
- Não está pensando em ir até lá para gritar com Pátroclo no meio desses monumentos de testosterona com mentalidade "Eu, Tarzan... Você, Jane", está?
Jacky ficou sentada, mas resmungou:
- Eu vou ficar possessa se ele estragar esses pontos.
- Relaxe. Aquiles não vai deixar Pátroclo se machucar - garantiu Kat e, quando continuou a assistir à contenda, percebeu que tinha razão. Eles estavam apenas fazendo
uma boa exibição. Os dois homens investiam um contra o outro e pareciam muito concentrados, porém ela poderia jurar que Aquiles estava definitivamente evitando o
ombro ferido do primo.
- Está bem, eu admito - confessou Jacky. - Tem alguma coisa muito sexy nessa história de assistir a dois machos guerreando. Olhe só para eles! Esses peitos nus,
musculosos e suados... Tão "eu vou bater no peito e matar o dragão para você" que me deixa até com vontade de ser violentada por ele.
- Ele? - Kat perguntou, erguendo as sobrancelhas. - Ele, quem?
- Pátroclo, claro! Não precisa ficar nervosinha.
- E ouvi você dizer "ser violentada"? Desde quando alguém poderia violentá-la?
- Desde que me tornei branca.
Kat ainda estava rindo quando Aetnia e outras duas servas se aproximaram.
- Desculpe-me, princesa - Aetnia falou numa voz baixa e sussurrante enquanto lançava olhares furtivos por sobre o ombro, na direção do grupo de homens. - Queremos
que saiba que estamos dispostas a cumprir nossa promessa a qualquer momento. Basta dar um sinal e nós a ajudaremos a fugir.
- Fugir? - Jacky franziu a testa para elas. - Não pretendemos fugir.
As mulheres olharam para Jacky como se ela tivesse criado asas. Uma delas começou a esfregar algo que parecia um amuleto fálico, o qual pendia de um cordame de cânhamo
que tinha trançado em torno do pescoço, ao mesmo tempo que recuava alguns passos.
- É muita gentileza sua, mas, como eu disse na noite passada, estou bem - garantiu Kat. E, antes que Jacky realmente pudesse pôr as asinhas de fora, emendou: - Estamos
bem. Verdade. Prometo falar se precisarmos de alguma coisa.
- Princesa, eu... - Aetnia começou, confusa.
- Está sendo uma mala sem alça. Era isso o que ia dizer? - Jacky interveio com um sorriso sarcástico. - Porque está, mesmo!
A mulher que ainda segurava o amuleto fálico decidiu se manifestar:
- Não era curandeira no palácio, Melia. Era apenas a ama da princesa!
- Eu mudei - Jacky replicou em seu melhor tom de quem não levava desaforo para casa.
- Melia sempre teve muitos talentos - justificou Kat, dando uma discreta cotovelada na amiga, ao mesmo tempo que uma comoção no grupo dos homens lhe chamava a atenção.
- Falando nisso, parece que a luta acabou. É melhor Melia ir checar os pontos de Pátroclo. Nós nos veremos mais tarde, senhoras. - Agarrou o braço de Jacky e a arrastou
para longe das mulheres. - Jacky, elas a conhecem! - sussurrou, nervosa.
- Claro que não!
- Eles a conhecem do palácio de Troia. - Ela fez um gesto abrangendo o novo corpo da amiga.
- Ah, eu tinha me esquecido. Mas, e daí?
- Daí que não precisamos de uma porção de noivas de guerra enlouquecendo com o fato de você e eu não sermos quem ou o que aparentamos!
- Que diferença isso faz? Como você mesma disse, não vamos ficar aqui por muito tempo. Além do mais, é uma princesa, e elas são criadas. Não podem fazer merda nenhuma
contra você.
- Isso não quer dizer que...
- Pequena Melia! Minha heroína! Chegou bem a tempo de limpar o sangue! - Pátroclo agarrou Jacky, ergueu-a nos braços e a beijou profundamente.
Kat observou, boquiaberta, enquanto Jacky ria, empurrava-o no peito sem muito entusiasmo e corava até a raiz dos cabelos.
- Ponha-me no chão antes que arruíne os meus pontos! E onde, diabos, está sangrando agora?
- Não sou eu quem está sangrando. É ele. - Pátroclo apontou o queixo na direção de Aquiles. - Mas eu ainda quero que enxugue o meu sangue, minha linda noivinha de
guerra. - Ele a pôs no chão, porém não antes de beijá-la novamente.
Jacky recuou um passo para longe de Pátroclo, meio tonta, e ainda corada virou-se para Aquiles.
- Deixe-me olhar esse corte de espada.
- Não foi nada. - Aquiles fez um gesto brusco com a mão, impedindo que ela se aproximasse. - Preocupe-se com os pontos dele. Eu mesmo cuido da minha ferida.
Jacky encolheu os ombros.
- Por mim... - Lançou um olhar para Kat enquanto se virava para examinar os pontos do sorridente Pátroclo. - Melhor cuidar para que ele ao menos a limpe - aconselhou-a.
- Eu não... - Aquiles começou a protestar, porém Kat endireitou os ombros, decidida, e o encarou.
- Precisamos limpar esse corte.
Seus olhos se encontraram, e ela desejou do fundo do coração que o rosto moreno fosse mais fácil de ler. No momento, tudo o que via era aquela máscara que Aquiles
gostava de ostentar em público.
- Pensei que não gostasse de ver sangue - ele comentou.
- Mais uma razão para que limpemos isso - ela rebateu, tentando não ficar muito feliz por ele ter se lembrado do que ela não gostava.
- ... Está bem - Aquiles cedeu.
- Não parece um corte muito profundo - opinou Jacky, espiando por cima do ombro de Pátroclo. - Uma salmoura deve resolver.
- O oceano está bem ali... Talvez devesse nadar um pouco de novo, primo. - Pátroclo abraçou Jacky, sorrindo para Kat.
Kat olhou de Pátroclo para Aquiles e se perguntou o que, exatamente, este havia contado ao primo sobre a noite anterior.
- Não comece! - Jacky se desvencilhou do braço de Pátroclo. - Está coberto de suor, areia e sangue. Também precisa de um banho.
- Então vamos todos! - Pátroclo pegou a mão dela e começou a correr para a praia.
Kat olhou para Aquiles, e ele ergueu uma sobrancelha.
- Também está coberto de suor, areia e sangue...
- Vamos com eles - Aquiles decidiu.
Seguiram Pátroclo e Jacky.
A princípio, nenhum deles falou nada. Em seguida, Kat o encarou.
- Desculpe pelo corte.
Ele pareceu surpreso.
- Por que está pedindo desculpas por algo que não é sua culpa?
- Mas foi minha culpa. Estava olhando para mim e não prestou atenção quando Pátroclo arremeteu com a espada.
Aquiles soltou uma risada seca.
- A culpa não foi sua. Eu é que não devia ter me distraído.
- Você sempre se certifica de que está em pleno controle da situação? - Kat fez a pergunta em um impulso e, quase no mesmo momento, se arrependeu dela. Na noite
anterior, ele não havia estado no controle. Nem na praia, e nem mais tarde, sozinho com ela na tenda.
Os olhos azuis de Aquiles pareceram escurecer ao encontrar os seus.
- Consegui dormir na noite passada - ele comentou, em vez de responder à pergunta.
- Que bom - ela murmurou, e então praguejou baixinho ao tropeçar na barra do quitão.
Imediatamente, Aquiles a amparou com o braço.
Kat segurou-se no bíceps largo, não se importando nem um pouco por este estar escorregadio com o suor.
- Obrigada.
- Já vi que tem dificuldades para andar pela areia sozinha - ele comentou.
- Isso porque vivo tentando alcançá-lo! - Kat se defendeu.
- Eu não estava reclamando - Aquiles replicou baixinho.
- Isso é bom. - Ela sorriu para ele.
- É? - ele perguntou, parecendo meio perplexo.
- É, sim. - Kat limpou a garganta. - Quanto à noite passada...
Os lábios cheios de Aquiles se inclinaram num sorriso.
- Está se referindo ao feitiço para relaxamento que fez para mim?
Desta vez, Kat conseguiu interpretar bem o brilho provocante nos olhos azuis.
- Aquiles... Exatamente quanto do meu feitiço você se lembra?
Os lábios benfeitos se inclinaram ainda mais para cima, num sorriso que quase fez o coração dela parar.
- O suficiente.
Capítulo Catorze
Kat estava tentando descobrir o que Aquiles queria dizer com "o suficiente" quando eles alcançaram Pátroclo e Jacky.
Tudo bem, decidiu. Ela era uma profissional. Iria apenas perguntar a ele.
- Ah, aí está você! - Jacky se voltou para ela com uma expressão de alívio. Diga a Pátroclos que não podemos nadar com eles porque não temos nada para usar na água!
Kat olhou para o rapaz. Ele sorria para Jacky com adoração.
- Ela tem razão. Essa seda é linda... - pegou uma dobra externa da túnica e rodou, fazendo-a flutuar graciosamente em torno do corpo - ... mas não é apropriada para
a água.
- Então é melhor fazerem o que nós vamos fazer. Não é mesmo, primo? - indagou Pátroclo com um olhar malicioso.
Aquiles ergueu um canto dos lábios.
- Sem dúvida. Assim poupam o lindo tecido das suas vestes.
- Vamos? - incitou Pátroclo.
- Agora mesmo, primo - respondeu Aquiles.
E, enquanto Kat e Jacky observavam, os dois guerreiros arrancaram toda a roupa e pularam, gritando, nas ondas turquesa.
- Caraca! - exclamou Kat.
- Santo Deus! - Jacky abanou-se com vigor. - Eu lhe devo um pedido de desculpas, Kat. Apesar dessa confusão a respeito da cor da minha pele, é impossível estarmos
no inferno... Viemos direto para o Céu!
- Alguma vez na vida viu um corpo tão lindo? - Kat perguntou, sonhadora, enquanto olhava para Aquiles, desejando que ele nadasse de volta para águas mais rasas e
se levantasse.
- Kat, diga a verdade... Pátroclo não se parece com o Spike?
Kat desviou os olhos famintos de Aquiles apenas para revirá-los na direção de Jacky.
- Você é uma imbecil. E essa sua paixão por Buffy é patética!
- Mas ele se parece com o Spike! Olhe só esse corpo esbelto e musculoso, esse cabelo loiro-platinado. Tudo o que ele precisa é de uma mudança no corte de cabelo
e um casaco de couro preto e comprido. Meu Jesus Cristinho, olhe só para essa barriga tanquinho!... Eu tenho que transar com Pátroclo. Claro que tenho! Como posso
deixar essa delícia escapar?!
- Ele não é o Spike, sua doida. Pátroclo é um cara legal, e Spike é o vilão da história.
Jacky lançou-lhe um olhar que telegrafava: "Não seja tonta".
- Estou falando do Spike da sétima temporada de Buffy, Kat. Por favor, tente acompanhar o meu raciocínio.
- Desculpe... disse alguma coisa? - Os olhos de Kat continuavam cravados em cada movimento do corpo nu e musculoso de Aquiles.
- Kat, Pátroclo tem o pênis rosa? - Jacky perguntou, protegendo os olhos com a mão, a fim de enxergar melhor, e estreitando-os contra o sol que refletia nas ondas.
- Jacky, nem tente fingir que não teve relações sexuais com um cara branco antes!
- Apenas com Bradley e só umas poucas vezes. Lembra-se de como fiquei irritada com aquela mania que ele tinha de comprar esses bombons de chocolate baratos e ficar
chupando o recheio de licor de cereja?... Coisa nojenta. - Jacky estremeceu dramaticamente. - De qualquer forma, não notei se o pênis dele era cor-de-rosa.
- Pátroclo é bem clarinho... - refletiu Kat, divertida. - Mas, e daí? Se tiver o pênis muito rosado vai combinar com a sua xereca loira.
- Ah, Senhor, preciso me sentar. Ser branca é muito desgastante.
Jacky estava à procura de um tronco de madeira quando Pátroclo correu para fora do mar e a pegou pela mão.
- Nade comigo, minha linda!
Kat tentou manter os olhos longe de Pátroclos, o que era difícil com ele ali, todo molhado e nu. Enquanto Jacky balbuciava algo sobre não ter nada para vestir, desviou
o olhar para o mar (e não para baixo). Aquiles caminhava devagar em sua direção. Tinha a água ainda acima da cintura, as ondas batendo no peito largo, de modo que
ela pôde assistir a cada pedacinho dele emergir aos poucos. Ele era como um deus antigo, dourado, poderoso... e sedutoramente imperfeito.
Kat sentiu o corpo pegar fogo, e seus pensamentos remeteram para a noite anterior. Foi como se um filme erótico estivesse sendo projetado em sua cabeça.
Estava se perguntando como poderia se livrar das roupas e se jogar nos braços dele sem despertar a Fúria quando a postura de Aquiles mudou. Tenso, ele deixou a água
e caminhou direto para o traje que havia jogado no chão.
- Um mensageiro do acampamento grego vem vindo aí - disse a Pátroclo, que parou de brincar de cabo de guerra com Jacky e também vestiu as roupas.
Kat estreitou os olhos para focar a praia. Um soldado carregando uma lança comprida e um escudo, e usando o mesmo tipo de capa escarlate de Ulisses, vinha correndo
em sua direção. Chegou minutos depois, ofegante, porém tomou o cuidado de demostrar respeito a Aquiles, inclinando a cabeça numa saudação.
- Vim a mando de Ulisses, senhor - começou a falar antes mesmo de recuperar o fôlego.
- Ulisses está bem? - Aquiles indagou, preocupado.
- Sim, mas nem todos os Itacenses tiveram a mesma sorte. A batalha de hoje foi difícil. - A voz do guerreiro não continha nenhuma ponta de crítica, tampouco de hostilidade,
porém Kat pôde sentir a tensão que irradiou de Aquiles. - Ulisses enviou-me para lhe perguntar se a curandeira, Melia, teria sua permissão para cuidar dos soldados.
- Kalchas anda ocupado demais bajulando Agamenon para cuidar dos feridos? - Aquiles retrucou com uma voz gelada.
- Kalchas? - Jacky praticamente gritou. - Quer dizer aquele velho idiota e imundo que podia ter feito o braço de Pátroclo cair de tão podre?
- Sim, minha linda, esse mesmo - concordou Pátroclo, envolvendo-a pelos ombros.
- Vamos lá agora mesmo. - Jacky se desvencilhou de Pátroclo e sinalizou para que o mensageiro seguisse adiante.
O rapaz olhou de Jacky para Pátroclo, depois para Aquiles. Jacky olhou do mensageiro para Pátroclo, depois de Aquiles para Kat, e tornou a olhar para Pátroclo.
Kat respirou fundo, preparando-se para mais uma encrenca. Jacky levou as mãos aos quadris, num gesto típico de quando estava louca da vida, e ela pensou como era
estranho que isso fizesse o corpo da amiga parecer ainda mais exuberante.
Antes que esta pudesse explodir com Pátroclo ou com Aquiles, porém, ela interveio, apressada.
- Melia deve ajudar os homens de Ulisses. Vocês sabem que fomos enviadas por Atena, e ela é a deusa padroeira de Ulisses. Atena deve querer que Melia cuide dos soldados
feridos dele.
- Faz sentido - concordou Pátroclo.
- Não gosto da ideia de ela ir sozinha. - Aquiles voltou-se para Kat. - E você não gosta de sangue, portanto não vai acompanhá-la.
- A minha linda não irá sozinha - declarou Pátroclo, passando o braço ao redor de Jacky. - Ela tem a mim. Eu mesmo irei escoltá-la.
Jacky deu-lhe um olhar que era um misto de enfado, divertimento e admiração.
- E vai cuidar para que os homens façam o que eu lhes disser, mesmo que isso signifique que eles tenham de ferver e lavar as coisas?
- Farei isso por você, se me fizer um favor mais tarde. - O sorriso contagiante de Pátroclo foi mais do que malicioso.
- Posso até estar interessada, se isso não envolver nada que lhe estrague esses pontos.
Aquiles fez um aceno quase imperceptível para o mensageiro e, em seguida, com Pátroclo rindo e cochichando com Jacky, os três começaram a descer a praia na direção
do acampamento grego.
- Itacense! Deixe-me sua lança! - Aquiles gritou de repente.
O mensageiro parou e olhou, apavorado, para o guerreiro cheio de cicatrizes.
Os lábios de Aquiles se contraíram ligeiramente.
- Quero apenas pescar um robalo.
Com evidente relutância, o soldado entregou-lhe sua lança.
- Primo, certifique-se de substituir esta lança por uma das nossas depois.
Pátroclo sorriu e acenou com um gesto de cabeça. Em seguida, correu com Jacky atrás do guerreiro que já se afastara.
- Será possível que o homem imaginou que eu fosse espetá-lo com sua própria arma apenas porque ele veio buscar uma curandeira? - Aquiles murmurou, mais para si do
que para Kat.
- Foi o que pareceu.
- E você aqui, sozinha com um guerreiro tão temível... Aposto que muitos a chamariam de louca. - Os olhos turquesa do guerreiro a estudaram.
- Quantas vezes já espetou os homens de Ulisses?
- Nunca!
- Pelo visto, eu sou normal, e homens como esse mensageiro de Ulisses é que estão precisando cair na realidade.
- Não. - A voz profunda de Aquiles ficou grave e fria. - Eles têm o direito de me temer. Não se esqueça nunca de que existe um monstro sempre pronto a me possuir
de corpo e alma.
Kat encontrou seu olhar.
- Vou me lembrar, mas prefiro me concentrar no homem, e não no monstro.
Uma ponta de surpresa brilhou nos olhos de Aquiles.
- Sempre foi tão ilógica?
- Sempre.
Ele soltou uma risada. E ainda estudando-a com cuidado, acrescentou:
- Vou pescar um robalo. Pode vir comigo ou voltar para o acampamento. A decisão é sua.
- Eu gosto de robalo. Na verdade, adoro esse peixe... Vou com você.
Aquiles assentiu de leve, e os dois caminharam lado a lado praia abaixo, para longe dos acampamentos separados dos Gregos e dos Mirmidões. Ele não ofereceu o braço
a Kat, contudo caminhou mais devagar.
Estavam tão próximos da água que Kat tirou as chinelas de modo a afundar os pés na areia molhada. Tocou-o, então, usando o braço de Aquiles como apoio, assim como
tinha feito na noite anterior. Sentiu-o quente e forte, e pensou como era estranho que sua presença pudesse lhe ser tão reconfortante quando a verdade era que existia
um guerreiro perigoso, e um monstro escondido ali, dentro dele. Não chegou a fitá-lo, porém pôde sentir seus olhos sobre ela o tempo todo, e também quando ela caminhou
para mais perto das ondas, mantendo a túnica erguida, permitindo que a água morna brincasse em torno de seus pés.
- Sente falta da sua casa?
A pergunta a surpreendeu, fazendo-a responder com total honestidade.
- Sinto. E das coisas mais simples.
- Como o quê?
Kat percebeu que se pusera em uma encruzilhada e pensou rápido, descartando respostas como Internet e água quente.
Quando finalmente respondeu, foi, outra vez, com uma honestidade que voltou a surpreendê-la.
- Sinto falta da minha liberdade. Estou acostumada a fazer o que quero, sem me preocupar em pedir permissão. Gosto de ser responsável por mim mesma.
Aquiles bufou com cinismo.
- Sempre ouvi dizer que o velho Príamo era muito tolerante com seus filhos.
- Meu pai não é indulgente - Kat contrapôs, pensando no próprio pai, em Oklahoma, que sempre a ensinara a ser independente e valorizar a si própria, mas que não
tolerara nenhuma bobagem, muito menos quando ela ainda era uma adolescente rebelde.
- Então me explique por que ele permitiu que Paris raptasse a esposa do rei de Esparta.
Merda! O marido de Helena era o Rei de Esparta? Como em 300, aquele filme bárbaro sobre os espartanos?...
Kat afundou os dedos na areia molhada e desejou, pela milésima vez, ter prestado mais atenção às aulas de Mitologia na faculdade. Por fim, deu de ombros e disse
o que imaginava estar mais perto da verdade com base nas vagas informações de que se lembrava (que Paris era um filho do meio e que tinha roubado a esposa de alguém).
- Paris vive fazendo bobagens que somos obrigados a consertar depois. - E, antes que Aquiles pudesse perguntar algo mais difícil de responder, elaborou ela mesma
uma pergunta. - Ficou incomodado por não ter se juntado à batalha hoje?
Em vez de responder, Aquiles apontou para um meio círculo de coral a alguns metros da costa. - Os robalos gostam de descansar em pontos mais obscuros como aquele.
- Desta vez, ele não se despiu e entrou até com as sandálias de couro na água, deslocando-se em direção ao recife. Subiu em um dos bancos de corais e se agachou
a fim de estudar a água.
Kat suspirou e apanhou uma concha lisa e redonda, tentando pensar em algo ao qual Aquiles não se incomodasse em responder.
- Não me aborrece não ter participado da luta hoje...
Ela ergueu os olhos da concha para fitá-lo.
- ... Mas me incomoda pensar que a minha ausência pode ter causado a morte de um Grego.
- Não é certo que você e seus homens continuem lutando por um cretino como Agamenon.
- É mais errado do que causar a morte de outros?
Kat queria dizer a Aquiles que sua ausência faria a guerra cessar mais cedo, e que isso iria poupar muitas vidas; mas sabia que não podia. Ele estava do lado dos
Gregos. Não importava o quanto Agamenon o tivesse usado e depois tratado mal; Aquiles ainda não haveria de querer ouvir que seu povo seria derrotado.
Por isso, ela disse a única coisa que podia:
- Eu não sei.
No silêncio que se seguiu, o guerreiro se moveu de repente, com uma rapidez espantosa, e arremessou a lança no mar, logo abaixo dele. Quando a puxou, um enorme robalo
se contorcia, empalado na ponta. Aquiles o tirou da lança, em seguida o arremessou na direção da praia, perto demais dos pés de Kat, o que a fez recuar vários passos
para fugir da pobre criatura que pulava, agonizante.
- Disse que gostava de robalo.
- E gosto. Limpo e assado. De preferência por outra pessoa.
Aquiles se agachou novamente no afloramento de corais e voltou a estudar as águas claras.
- Então vou ter que pedir a uma daquelas servas que adoram cochichar sobre planos de fuga para que o preparem para você.
Kat não ficou surpresa por ele saber de tudo o que se passava em seu próprio acampamento.
- Também lhe contaram qual foi a minha resposta a esses planos de fuga?
Ele ergueu a cabeça para encará-la.
- Não. Qual foi?
- Eu disse "Não, obrigada".
- Por quê? Tem medo do que eu faria com você, caso a pegasse tentando escapar?


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                                                  CONTINUA
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Kat certificou-se de que a voz soasse tão arrogante como a de uma princesa:
- Claro que não. Porque uma deusa me enviou aqui. Só vou embora quando ela me disser para fazer isso.
- Já está querendo me abandonar? - A voz de Aquiles saiu neutra, beirando a indiferença, contudo Kat reconheceu a solidão em seus olhos. A mesma que ela vira na
noite anterior.
- Não. Eu não quero deixar você.
E, conforme disse as palavras, soube que elas eram verdadeiras. Ela não queria deixá-lo. Não ainda. Não até que o ajudasse a controlar a Fúria e a mudar seu destino.
Aquiles não fez nenhum comentário. Simplesmente voltou a atenção para a água, e em pouco tempo havia mais dois peixes enormes somados à pilha que se debatia na praia.


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Quando ele lanceou o quarto, nadou de volta até onde ela se encontrava e atravessou os quatro peixes com a lança. Com a arma sobre um ombro tal como uma bizarra mochila, dirigiu-se com ela de volta ao acampamento.
Caminharam por algum tempo em silêncio, o que, ao menos para Kat, não foi constrangedor. Mas, conforme se aproximaram da tenda de Aquiles no acampamento, e a inevitabilidade de passarem outra noite juntos se apresentou, a porção de perguntas sem resposta se tornou pesada demais para ela.
- Eu o vi combatendo a Fúria quando estava treinando com seus homens esta manhã - revelou de uma vez.
Aquiles a encarou por um instante, em seguida desviou o olhar para longe.
- Não corri nenhum risco de ser dominado pela Fúria hoje. Fiquei apenas surpreso. Mas isso, somado ao arranhão de espada que sofri, já era suficiente para que os homens ficassem em alerta. Mas nem a dor nem a surpresa foram grandes o suficiente para fazer com que o monstro me possuísse.
- Pátroclo não pareceu ter medo de você.
Aquiles abriu um de seus raros sorrisos.
- O tolo do meu primo acredita que eu jamais iria feri-lo. Já agiu com imprudência muitas vezes.
- Mas não iria machucá-lo, iria?
- Eu jamais faria isso. Ele é como um irmão ou um filho para mim, e eu daria a minha vida para proteger a dele. Mas a Fúria não sabe o que é lealdade.
Kat refletiu a respeito, perguntando-se até que ponto aquela afirmação era verdadeira. Ulisses havia lhe contado que aquela ira dominava Aquiles desde os dezesseis anos. A Fúria era um ser à parte, movido pela raiva, pelo ódio, pela paixão e pela morte. Mas será que aquilo o impedia de desenvolver uma relação com alguém que era parte integrante de sua vida?
- Onde habitava essa Fúria antes de ela amaldiçoar a sua vida?
- Em Zeus - respondeu Aquiles. - Ele enviou a Fúria quando fiz a minha escolha. Primeiro me ofereceu uma vida longa e feliz, preenchida com o amor de uma mulher decente e o respeito de...

 

 

                                                                                                    

 

 

                                       

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