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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEUSES AMERICANOS - P.2 / Neil Gaiman
DEUSES AMERICANOS - P.2 / Neil Gaiman

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DEUSES AMERICANOS

 Segunda Parte

 

Hinzelmann entregou a ele uma fotocópia do impresso. A lata velha era um carro com o motor e o tanque de gasolina removidos, que seria estacionado em cima do gelo durante o inverno. Em algum ponto da primavera, o gelo do lago derreteria e, quando estivesse fino demais para agüentar o peso, o carro cairia no lago. A data mais próxima do começo do ano em que a lata velha tinha afundado no lago era 27 de fevereiro ("Foi no inverno de 1998. Acho que nem dá pra chamar aquilo de inverno"), a mais distante era 1a de maio ("Foi em 1950. Naquele ano, parecia que o inverno só ia acabar se alguém cravasse uma estaca no coração dele"). O começo de abril parecia ser a época mais comum para o carro afundar — normalmente, no meio da tarde.

Todos os meios da tarde de abril já tinham sido escolhidos e marcados no caderno pautado de Hinzelmann. Shadow comprou um período de meia hora na manhã do dia 23 de março, das 9h às 9h30. Entregou 30 dólares a Hinzelmann.

— Eu queria que fosse tão fácil vender pra todo mundo nesta cidade quanto é vender pra você — disse Hinzelmann.

— É um agradecimento por aquela carona que me deu na primeira noite que eu estava na cidade.

— Não, Mike. É pras crianças.

Por um instante ele pareceu sério, sem nenhum traço de malícia em seu rosto velho e enrugado.

— Apareça por aqui hoje à tarde, você pode dar uma mão empurrando a lata velha pra cima do lago.

Ele entregou seis cartões azuis para Shadow, cada um com a data e o horário escritos com a caligrafia antiquada de Hinzelmann, depois anotou os detalhes de cada um deles em seu caderno.

— Hinzelmann — perguntou Shadow. — Você já ouviu falar de pedras de águia?

— Ao norte de Rhinelander? Não, lá é o Rio da Águia. Não posso dizer que ouvi.

— E de pássaros-trovão?

— Bom, tinha a Galeria de Molduras Pássaro-Trovão na rua Cinco, mas fechou. Não estou ajudando nada, né?

— Não.

— Sabe, por que você não vai procurar na biblioteca? O pessoal lá é legal, apesar de andar meio distraído, nesta semana, com a liquidação da biblioteca, Eu mostrei onde fica a biblioteca, não mostrei?

Shadow assentiu com a cabeça e deu até logo. Ele preferia ter se lembrado da biblioteca sozinho. Subiu no 4-Runner roxo e pegou o lado sul da rua principal, ladeando a margem do lago até o ponto mais ao sul, até alcançar o prédio em forma de castelo que abrigava a biblioteca da cidade. Entrou. Uma placa apontava para o porão: LIQUIDAÇÃO DA BIBLIOTECA. A biblioteca propriamente dita ficava no térreo, e ele bateu os pés no chão para livrar-se da neve nas botas.

Uma mulher ameaçadora com lábios enrugados cor-de-carmim perguntou a ele acidamente se podia ajudar.

— Acho que preciso de um cartão da biblioteca — respondeu. — E quero saber tudo a respeito de pássaros-trovão.

Os livros sobre tradições e crenças de americanos nativos ficavam numa única prateleira em uma das torres parecidas com as de um castelo. Shadow escolheu alguns e sentou-se no assento próximo à janela. Vários minutos depois, tinha aprendido que pássaros-trovão eram pássaros míticos, gigantes, que viviam no topo das montanhas, que traziam relâmpagos e que batiam as asas para fazer trovões. Existiam algumas tribos, ele leu, que acreditavam que os pássaros-trovão haviam construído o mundo. Mais meia hora de leitura não lhe acrescentou nada de diferente, e ele não conseguiu achar menção às pedras de águia em nenhum dos índices dos livros.

Shadow estava guardando o último dos livros de volta na prateleira quando percebeu que alguém o observava. Alguém pequeno e sério o espionava do outro lado das estantes. Quando se virou para olhar, o rosto havia desaparecido. Ele virou as costas para o menino, então olhou disfarçadamente em volta, só para confirmar que era observado mais uma vez.

O dólar com a efígie da Liberdade estava em seu bolso. Ele o tirou do bolso e o segurou na mão direita, certificando-se de que o menino o enxergava. Escondeu-o na mão esquerda, mostrou as duas mãos vazias, levou a mão esquerda à boca e tossiu uma vez, deixando a moeda cair da mão esquerda para a direita.

O menino olhou para ele com os olhos arregalados e então saiu correndo, voltando alguns instantes mais tarde, arrastando uma Marguerite Olsen enfezada, que olhou para Shadow com suspeita e disse:

— Olá, senhor Ainsel. Leon disse que o senhor estava fazendo mágica pra ele.

— Só um pouquinho de prestidigitação, senhora. Devo dizer que nunca agradeci pelos seus conselhos a respeito de aquecer o apartamento. Agora está quentinho como um ninho.

— Que bom.

A expressão de gelo dela não tinha nem começado a derreter.

— Esta biblioteca é linda — disse Shadow.

— É um prédio muito bonito. Mas a cidade precisa de algo mais eficiente e menos bonito. Você vai à liquidação lá embaixo?

— Não pretendia.

— Bom, deveria. É por uma boa causa.

— Vou dar uma passada, então.

— Vá até a entrada e então desça as escadas. Foi bom encontrá-lo, senhor Ainsel.

— Pode me chamar de Mike.

Ela não disse nada, apenas pegou a mão de Leon e levou o menino até a seção infantil.

— Mas, mãe — Shadow ouviu Leon dizer — não foi essa tal de presta digitação. Não foi. Eu vi a moeda desaparecer e depois sair do nariz dele. Eu vi.

Um retrato a óleo de Abraham Lincoln na parede olhava para ele. Shadow desceu os degraus de mármore e carvalho até o porão da biblioteca, passando por uma porta, entrando em uma sala grande cheia de mesas, cada uma delas coberta por livros de todos os tipos, indiscriminadamente divididos e promiscuamente arrumados: brochuras e livros de capa dura, ficção e não-ficção, jornais e enciclopédias, tudo lado a lado sobre as mesas, com as lombadas viradas para o lado de dentro ou para o lado de fora.

Shadow foi até o fundo da sala, onde havia uma mesa coberta com livros de capa de couro, de aparência antiga, cada um deles com um número de catálogo branco pintado na lombada.

— Você é a primeira pessoa hoje que vai até esse canto — comentou o homem sentado ao lado da pilha de caixas e sacolas vazias e da caixa de coleta pequena de metal, que estava aberta.

— A maioria só pega os policias, os infantis e os romances da editora Harlequin. Jenny Kerton, Danielle Steel, tudo isso.

O homem lia O Assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie.

— Cada livro de cima das mesas custa 50 centavos, ou três por um dólar. Shadow agradeceu a informação e continuou a examinar os livros. Encontrou uma cópia das Histórias, de Heródoto, encadernada com um couro marrom que se abria nas pontas. Fez com que pensasse na cópia em brochura que deixou na prisão. Havia um livro que se chamava ilusões de Salão que Causam Perplexidade, que parecia ter alguns efeitos de moedas. Carregou os dois livros até o homem com a caixa de coleta.

— Compra mais um e pague só um dólar — disse o homem. — E ainda vai fazer um favor pra gente. Estamos precisando de espaço nas prateleiras.

Shadow voltou aos livros antigos encadernados em couro. Resolveu libertar o livro que estivesse menos propenso a ser comprado por alguém e foi incapaz de decidir entre Moléstias Comuns do Trato Urinário com Ilustrações Feitas por um Médico e Minutas do Conselho da Cidade de Lakeside 1872-1884. Olhou as ilustrações no livro médico e resolveu que em algum lugar da cidade havia um adolescente que poderia usar o livro para enojar os amigos. Levou as Minutas até o homem na porta, que pegou seu dólar e colocou todos os livros em um saco de papel pardo, do Dave's Finest Food.

Shadow saiu da biblioteca. Dali, tinha uma vista limpa do lago, por toda sua extensão. Ele conseguia ver seu prédio, como uma casinha de bonecas, do outro lado da ponte. Havia homens sobre o gelo, próximos à ponte, quatro ou cinco deles, empurrando um carro verde escuro até o meio do lago branco.

— Dia 23 de março — Shadow disse baixinho para o lago. — Entre nove e nove e meia da manhã.

Ele ficou imaginando se o lago ou a lata velha conseguiam escutá-lo — e se prestavam alguma atenção nele. Ele duvidava.

O vento batia forte contra seu rosto.

Quando chegou ao apartamento, o delegado Chad Mulligan o esperava do lado de fora. O coração de Shadow começou a bater forte no peito quando viu a viatura de polícia, depois relaxou um pouco quando reparou que o policial fazia seu trabalho burocrático no assento dianteiro.

Caminhou até o carro, carregando seu saco de papel cheio de livros.

Mulligan abaixou o vidro.

— Liquidação da biblioteca?

— Ë.

— Eu comprei três anos atrás uma caixa de livros do Robert Eudium lá. Fico falando que vou ler. Meu primo jura que o cara é ótimo. Hoje em dia acho que só conseguiria colocar minha leitura em dia se fosse abandonado em uma ilha deserta e levasse minha caixa de livros.

— Posso fazer algo em especial pelo senhor, delegado?

— Nada mesmo, amigo. Eu pensei em dar uma passada aqui pra ver como você estava se ajeitando. Lembra daquele ditado chinês: se você salvar a vida de um homem, você é responsável por ele? Bom, não estou dizendo que salvei a sua na semana passada, mas ainda acho que deveria dar uma checada. Como vai o Gunther-móvel roxo?

— Bem — disse Shadow. — Está bem. Anda direito.

— Fico feliz em saber.

— Vi minha vizinha de apartamento na biblioteca — contou Shadow. A senhorita Olsen. Eu estava imaginando...

— O que entrou pelo rabo dela e morreu?

— Se você quiser colocar dessa forma.

— É uma longa história. Se você quiser dar uma volta comprida, eu conto tudo.

Shadow pensou sobre aquilo por um instante.

— Tudo bem — disse.

Entrou no carro, sentou-se no assento do passageiro dianteiro. Mulligan foi em direção ao norte, para fora da cidade. Então apagou o farol e estacionou ao lado da estrada.

— Darren Olsen conheceu a Marge na Universidade do Wisconsin, Stevens Point, e trouxe ela aqui pro norte, em Lakeside. Ela estava se formando em jornalismo. Ele estava estudando, merda, administração hoteleira, alguma coisa assim. Quando eles chegaram aqui, deixaram todo mundo de queixo caído. Isso foi há treze, catorze anos. Ela era tão bonita... aquele cabelo preto...

Fez uma pausa.

— Darren gerenciava o Motel América ali em Camden, 20 milhas a oeste daqui. Só que ninguém queria parar em Camden e o motel acabou fechando. Eles tiveram dois meninos. Naquele tempo, Sandy tinha 11 anos. O pequeno... Leon, e isso mesmo? Era só um bebê de colo. Darren Olsen não era um homem corajoso. Ele tinha sido um bom jogador de futebol americano no colegial, mas aquela foi a última vez que voava alto. Sei lá. Ele não conseguiu encontrar coragem para contar para a Margie que tinha perdido o emprego. Então, durante um mês, talvez dois, saía cedo de manhã e voltava tarde da noite, reclamando do dia que tinha passado no motel.

— E o que ele fazia?

— Hmm. Não posso afirmar nada. Imagino que fosse até Ironwood, talvez até Green Bay. Acho que começou a procurar emprego. Logo, logo ele começou a beber pra passar o tempo, ficava chapado, e provavelmente contratava uma garota de programa pra uma pequena satisfação instantânea. Talvez estivesse envolvido com jogos. O que eu sei, com certeza, é que ele esvaziou a conta conjunta deles em mais ou menos dez semanas. Foi só uma questão de tempo até Margie descobrir tudo... Olha só isso!

Ele saiu com o carro em uma guinada, ligou a sirene e os faróis, e assustou até o último fio de cabelo um homenzinho em um carro com placas de lowa, que tinha acabado de descer a colina a 110 por hora.

Com o vagabundo de lowa multado, Mulligan voltou à sua história.

— Onde eu estava? Ah, tá. Então, Margie expulsou o marido de casa e pediu o divórcio. Virou uma batalha de custódia pesarosa. É assim que falam na revista People. Uma batalha de custódia pesarosa. Ela ficou com as crianças. Darren conseguiu direitos de visita e quase nada mais. Naquele tempo, Leon era bem pequenininho. Sandy era mais velho, um bom garoto, do tipo de menino que idolatra o pai. Não deixava Margie falar nada de mal dele. Perderam a casa... tinham um bom imóvel na rua Daniels. Ela se mudou pró apartamento e ele saiu da cidade. Voltava a cada seis meses pra tornar a vida de todo mundo miserável. Isso continuou durante alguns anos. Voltava, gastava dinheiro com as crianças, deixava Margie às lágrimas. A maior parte de nós começou a torcer pra que nunca mais aparecesse. A mãe e o pai dele se mudaram pra Flórida quando se aposentaram, disseram que não conseguiam agüentar mais nenhum inverno do Wisconsin. Então, no ano passado, ele apareceu, disse que queria levar os meninos pra passar o Natal na Flórida. Margie disse que não tinha a menor chance, mandou que sumisse. Foi bem desagradável... A certa altura, eu tive que ir até lá. Briga doméstica. Quando cheguei, Darren estava parado no pátio da frente gritando coisas, os meninos mal se agüentavam, Margie chorava. Eu disse a Darren que ele estava pedindo pra passar uma noite na cadeia. Por um instante, pensei que ia me bater, mas estava sóbrio o suficiente pra não fazer isso. Eu dei uma carona pra ele até o estacionamento de trailers ao sul da cidade, disse que tomasse jeito. Já tinha prejudicado Margie o bastante... No dia seguinte, ele foi embora da cidade. Duas semanas depois, Sandy desapareceu. Não entrou no ônibus escolar. Disse ao melhor amigo que iria ver o pai logo, logo, que Darren iria trazer um presente especialmente legal pra compensar por não ter ido passar o Natal na Flórida. Ninguém mais viu o menino desde aquele dia. Os seqüestros cometidos por pais que não têm a custódia são os piores. Ë difícil encontrar uma criança que não quer ser encontrada, percebe?

Shadow disse que sim, e percebeu algo mais. O próprio Chad era apaixonado por Marguerite Olsen. Ficou se perguntando se o homem sabia o quão óbvio aquilo era.

O delegado pisou no acelerador mais uma vez, com as luzes piscando, e mandou alguns adolescentes que estavam andando a quase 100 por hora encostarem. Ele não os multou, "só colocou o temor a Deus neles".

Naquela noite, Shadow sentou-se à mesa da cozinha tentando descobrir como transformar um dólar de prata em um centavo. Era um truque que havia lido em Ilusões de Salão que Causam Perplexidade, mas as instruções eram irritantes, inúteis e vagas. Frases como "então faça a moeda de centavo desaparecer da maneira usual" ocorriam mais ou menos a cada período. No contexto, Shadow ficou imaginando o que era "a maneira usual". Deixar cair de uma mão para outra? Esconder na manga? Gritar "Ai meu Deus, cuidado! Um leão da montanha!" e deixar a moeda cair no bolso interno do casaco enquanto a atenção do público era desviada?

Ele jogou o dólar de prata para cima e o agarrou no ar, lembrando-se da lua e da mulher que o havia dado a ele. Então tentou fazer a ilusão. Parecia não funcionar. Foi até o banheiro e tentou fazer na frente do espelho, e confirmou que estava certo. O truque, da maneira como estava escrito, simplesmente não funcionava. Ele suspirou, largou as moedas no bolso e sentou-se no sofá. Jogou a manta barata sobre as pernas e abriu o livro Minutas do Conselho da Cidade de Laizeside 1872-1884. A fonte, em duas colunas, era muito pequena, quase ilegível. Folheou o livro, olhando para as reproduções de fotografias da época, para as várias encarnações do Conselho da Cidade de Lakeside durante aquele período: costeletas longas e cachimbos de barro, chapéus desgastados e chapéus novos brilhantes, usados sobre rostos que eram, muitos deles, peculiarmente familiares. Não ficou surpreso ao descobrir que o distinto secretário do Conselho da Cidade, em 1882, era Patrick Mulligan: sem a barba e dez quilos mais magra seria um sósia perfeito de Chad Mulligan, seu... o quê? Tataratataraneto? Ele se perguntou se o avô pioneiro de Hinzelmann estaria nas fotos, mas parece que ele não tinha sido material para o Conselho da Cidade. Shadow achou que havia visto a referência a um Hinzelmann no texto, quando passava de uma fotografia à outra, mas o texto o iludira e, quando ele voltou algumas páginas para conferir, o tamanho da fonte fez com que sua cabeça doesse.

Pousou o livro sobre o peito e percebeu que sua cabeça estava pesada de tanto sono. Seria tolo dormir no sofá, resolveu solenemente. O quarto ficava a apenas alguns metros de distância. Por outro lado, o quarto e a cama ainda estariam lá em cinco minutos e, de qualquer maneira, ele não iria dormir, só fecharia os olhos por alguns instantes...

A escuridão rugia.

Ele permanecia parado em uma planície aberta. Ao seu lado estava o lugar de onde emergira certa vez, do qual a terra o havia espremido. As estrelas continuavam a cair do céu c cada estrela que tocava a terra vermelha se transformava em um homem ou cm uma mulher. Os homens tinham cabelos longos e negros e ossos salientes acima das bochechas. Todas as mulheres se pareciam com Marguerite Olsen. Essas eram as pessoas das estrelas.

Olharam para ele com olhos escuros e arrogantes.

— Falem sobre os pássaros-trovão pra mim — disse Shadow. — Por favor. Não é pra mim. É pra minha mulher.

Uma por uma, deram as costas a ele; e, conforme se viravam, desapareciam na paisagem. Mas a última delas, com o cabelo com mechas brancas ou de um cinza-escuro, apontou antes de virar-se para o outro lado, apontou para o céu cor-de-vinho.

— Pergunte você mesmo pra eles.

Relâmpagos de verão estouravam no céu, momentaneamente iluminando a paisagem de um horizonte, ao outro.

Havia pedras altas ali perto, picos e espirais de arenito, e Shadow começou a subir no que estava mais próximo. O espiral era da cor de marfim antigo. Ele se agarrou cm uma reentrância e sentiu-a esfarelar-se em sua mão. É osso, pensou Shadow. Não e pedra. É osso velho e seco.

Era um sonho, e em sonhos você não tem escolhas: não há decisões a serem tomadas, ou foram tomadas para você muito tempo antes de o sonho começar. Shadow continuou a escalar. Suas mãos doíam. Ossos estalavam, esmigalhavam-se e fragmentavam-se sob seus pés descalços. O vento o puxava... ele pressionava o corpo contra a espiral e continuava a escalar a torre.

Era feita apenas de um tipo de osso, ele percebeu, repetido vez atrás da outra. Cada um dos ossos era ressecado e arredondado. Imaginou que poderiam ser as cascas dos ovos de algum pássaro enorme. Mas um clarão de relâmpago revelou outra coisa: buracos no lugar dos olhos e dentes que sorriam sem humor.

Em algum lugar, pássaros gritavam. A chuva respingava em seu rosto.

Estava a dezenas de metros do chão, agarrando-se a um dos lados da torre de caveiras... clarões brancos de relâmpagos queimavam nas asas dos pássaros sombrios que rodeavam o espiral — enormes, negros, parecidos com condores, cada um com uma gola de penas brancas ao redor do pescoço. Eram pássaros gigantescos, desajeitados, horríveis, e as batidas de suas asas se colidiam com o ar como trovões na noite.

Eles circundavam a espiral.

Acho que medem uns 5, 6 metros de uma ponta da asa à outra, pensou Shadow.

Então o primeiro dos pássaros saiu de seu deslizamento no ar em sua direção, com relâmpagos azulados crepitando em suas asas. Shadow se enfiou em uma fenda das caveiras. Buracos de olhos vazios o fitavam e uma coleção de dentes cor-de-marfim sorria para ele, mas continuava a escalar, impulsionando-se para cima da montanha de caveiras, cada ponta afiada cortava sua pele... ele sentia repulsa e terror e pavor.

Outro pássaro veio em sua direção, e uma garra do tamanho de uma mão enterrou-se em seu braço.

Ele esticou o braço e tentou arrancar uma pena da asa do bicho — porque, se voltasse para a tribo sem uma pena do pássaro-trovão, cairia em desgraça, nunca seria homem — mas o pássaro deu um impulso para cima e ele não conseguiu. O pássaro-trovão relaxou a pressão da garra no seu ombro e voltou para o vento. Shadow continuou a subir.

Deve haver mil caveiras, pensou Shadow. Mil milhares. E nem todas são humanas. Ele ficou em pé sobre a última, na ponta do espiral, os pássaros enormes, os pássaros-trovão, rodeando-o lentamente, navegando nas rajadas de vento da tempestade com diminutas batidas das asas.

Ele ouviu uma voz, a voz do homem-búfalo, chamando por ele no vento, dizendo a ele que as caveiras pertenciam a...

A torre começou a desmoronar, e o maior pássaro, seus olhos cegos pelos relâmpagos em forma de garfo azul-esbranquiçados, mergulhou em direção a ele em um ataque de trovões, e Shadow caía, desmoronava junto com a torre de caveiras...

O telefone tocava sua campainha estridente. Shadow nem sabia que estava ligado. Grogue, abalado, tirou o fone do gancho.

— Que merda é essa? — gritou Wednesday, mais bravo do que Shadow jamais o vira. — Que porra é essa que você está aprontando? Com que tipo de imbecil você acha que está lidando?

— Eu estava dormindo — disse Shadow no bocal do telefone, de modo estúpido.

— Qual é a porra do sentido de esconder você em um lugar como Lakeside, se você faz um bafafá tão grande que nem um morto pode deixar de reparar?

— Eu sonhei com pássaros— tio vão... — disse Shadow. — E uma torre. Caveiras... Parecia a ele muito importante contar o sonho.

— Eu sei o que você sonhou. Porra, todo mundo sabe bem o que você sonhou. Cristo poderoso. Qual é o sentido de esconder você, se você vai começar a anunciar onde está?

Shadow não disse nada.

Houve uma pausa no outro lado da linha.

— Chego aí de manhã — disse Wednesday. Parecia que a raiva havia diminuído.

— Nós vamos pra São Francisco. As flores no cabelo são opcionais.

E a linha ficou muda.

Shadow colocou o telefone no chão e sentou-se, rígido. Eram 6h da manhã c ainda eslava escuro como a noite do lado de fora. Ele se levantou do sofá, tremendo. Dava para ouvir o vento que uivava por sobre o lago congelado. Conseguia ouvir alguém ali por perto chorando, como se estivesse do outro lado de uma parede. Tinha certeza de que era Marguerite Olsen, e seus soluços eram insistentes e graves, de partir o coração.

Shadow caminhou até o banheiro e mijou, depois entrou no quarto e fechou a porta, bloqueando o som da mulher chorona. Do lado de fora, o vento uivava c se lamentava como se também procurasse uma criança perdida.

São Francisco, cm janeiro, estava quente fora de estação, tão quente que o suor formava gotas na nuca de Shadow. Wednesday usava um terno de azul profundo, e um par de óculos com aros dourados que faziam com que parecesse um advogado do ramo do entretenimento.

Eles percorriam a rua Haight. Os moradores de rua, as prostitutas e os vadios os observavam enquanto se afastavam, e nenhum sacudia um copo de papel na frente deles, ninguém pedia absolutamente nada.

O maxilar de Wednesday estava imóvel. Shadow percebeu imediatamente que o homem ainda estava bravo, pois não fez nenhuma pergunta quando o Lincoln Town Car preto estacionou na frente do prédio naquela manhã. Eles não conversaram no caminho para o aeroporto. Shadow ficou aliviado pelo fato de Wednesday viajar de primeira classe, e ele, de econômica.

Agora já estava quase no fim da tarde. Shadow, que não ia a São Francisco desde garoto, que desde então via a cidade apenas como pano de fundo para filmes, ficou impressionado por a cidade parecer familiar, por as casas de madeira serem únicas e coloridas, por as colinas serem íngremes, por muito daquilo não se parecer com nenhum outro lugar.

— É quase difícil acreditar que isso aqui fica no mesmo país que Lakeside — disse.

Wednesday olhou para ele com ódio. Então, disse:

— Não fica. São Francisco não fica no mesmo país que Lakeside, do mesmo jeito que New Orleans não fica no mesmo país que Nova York, ou que Miami não fica no mesmo país que Minneapolis.

— É mesmo? — disse Shadow, suavemente.

— É. Podem compartilhar algumas explicações culturais... dinheiro, um governo federal, diversão... é a mesma terra, obviamente... mas as únicas coisas que dão a ilusão de que tudo isso seja um país só são as notas verdes, The Tonight Show e o McDonald's.

Eles se aproximavam de um parque no fim da rua.

— Seja simpático com a senhora que vamos conhecer. Mas não demais.

— Vou ficar frio — disse Shadow.

Eles pisaram na grama.

Uma menina, que não tinha mais do que 14 anos, com o cabelo tingido de verde, laranja e pink, olhava para eles à medida que se aproximavam. Ela estava sentada ao lado de um cachorro, um vira-lata, com um pedaço de corda servindo de coleira e uma guia. Ela parecia mais faminta do que o cachorro. O cachorro latiu para eles, depois abanou o rabo.

Shadow deu uma nota de um dólar para a garota. Ela olhou para o dinheiro como se não tivesse muita certeza do que era aquilo.

— Use pra comprar comida de cachorro — Shadow sugeriu. Ela assentiu com a cabeça e sorriu.

— Deixa eu ser bem direto — disse Wednesday. — Você precisa tomar muito cuidado quando estiver perto da senhora que vamos visitar. Ela pode gostar de você, e isso seria muito ruim.

— Ela é a sua namorada ou algo do tipo?

— Nem por todos os brinquedinhos de plástico da China — disse Wednesday, em um tom agradável.

A raiva parecia ter se dissipado, ou talvez estivesse guardada para o futuro. Shadow achou que a raiva era o que impulsionava Wednesday.

Havia uma mulher sentada na grama, embaixo de uma árvore, com uma toalha de mesa de papel estendida na frente dela, e uma variedade de potes Tupperware espalhados por cima da toalha.

Ela era — não gorda, não, longe de gorda: o que ela era, uma palavra que Shadow nunca tinha tido motivo para usar até então, era curvilínea. Seus cabelos eram tão claros que pareciam brancos, com o tipo de cachos louro-platinados que deveriam pertencer a uma atriz de cinema morta há muito tempo. Seus lábios estavam pintados de carmim, e ela parecia ter entre 25 e 50 anos.

Quando se aproximaram, ela selecionava um ovo cozido com recheio de maionese. Olhou para cima quando Wednesday chegou perto, pousou o ovo que havia escolhido na toalha e limpou a mão.

— Olá, sua fraude velha — a mulher disse, mas sorria enquanto falava. Wednesday abaixou-se quase até o chão, pegou sua mão e aproximou-a de seus lábios:

— Você está divina.

— E como é que eu estaria, diabos? — ela perguntou, docemente. — Mas você é mesmo um mentiroso. New Orleans foi um erro tão grande... Eu engordei, o quê? Uns quinze quilos lá? Juro. Percebi que precisava ir embora quando comecei a andar igual a um pato. As minhas coxas roçam até agora uma na outra, acredita?

A última frase foi direcionada a Shadow. Ele não fazia a mínima idéia a respeito do que responder, e sentiu um jato de sangue quente tomar seu rosto. A mulher riu de maneira deliciosa.

— Ele está ficando vermelho! Wednesday, meu querido, você me trouxe um mocinho envergonhado. Que gesto perfeitamente maravilhoso da sua parte. Como é o nome dele?

— Este aqui é Shadow.

Ele parecia apreciar o desconforto do amigo.

— Shadow, cumprimente a Easter.

Shadow disse algo que pode ter sido um oi, e a mulher sorriu para ele mais uma vez. Ele se sentiu como se tivesse sido pego no meio da noite com uma lanterna — do tipo ofuscante, que os caçadores usam para fazer um veado ficar congelado de medo antes de atirarem. Ele sentia o cheiro do perfume dela do lugar onde estava, uma mistura intoxicante de jasmim e de mato, de leite doce e de pele de mulher.

— Então, como vão os seus truques? — perguntou Wednesday. A mulher soltou uma gargalhada profunda e rouca, encorpada e cheia de alegria. Como é que dava para não gostar de alguém que ria daquele jeito?

— Tudo está ótimo — respondeu. — E você, seu lobo velho?

— Eu estava esperando contar com a sua assistência.

— Está perdendo seu tempo.

— Pelo menos me escuta antes de me dispensar.

— Não adianta. Nem perca seu tempo. Ela olhou para Shadow:

— Por favor, sente aqui e se sirva. Pronto, pega um prato e enche de comida. Tudo aqui é bom. Ovos, frango assado, frango ao curry, salada de frango e ali tem coelho, mas coelho frio é uma delícia, e naquela tigela ali tem lebre cozida... Bom, por que eu não faço um prato pra você?

E foi o que ela fez: pegou um prato de plástico, encheu de comida e entregou a ele. Então, olhou para Wednesday:

— Você vai comer?

— Estou à sua disposição, querida.

— Você — ela disse, — tem tanta merda dentro de si que não sei como é que os seus olhos não ficam castanhos.

Ela entregou um prato vazio a ele.

— Sirva-se.

O sol da tarde atrás dela fazia com que seu cabelo se transformasse em uma aura platinada.

— Shadow — ela disse, mastigando uma coxa de frango com gosto. — Que nome bonito. Por que chamam você de Shadow? Shadow lambeu os lábios para umedecê-los.

— Quando eu era criança, morávamos, minha mãe e eu, ela era tipo uma secretária, em um monte de embaixadas americanas, nós íamos mudando de cidade em cidade no norte da Europa. Daí ela ficou doente e teve que se aposentar cedo e nós voltamos prós Estados Unidos. Eu nunca tinha nada pra falar com as outras crianças, então eu escolhia uns adultos e ficava seguindo eles pra todo lado, sem falar nada. Acho que só queria companhia. Sei lá. Eu era uma criancinha.

— Você cresceu — ela disse.

— Ê... cresci.

Ela virou para Wednesday, que se servia com uma colher do que parecia ser sopa de galinha fria:

— Foi o garoto que deixou todo mundo preocupado?

— Você ouviu falar?

— Meus ouvidos estão sempre atentos — respondeu. Olhou para Shadow: — Você, fique fora do caminho deles. Existem muitas sociedades secretas por aí, sem nenhuma lealdade e nenhum amor. Comerciais, independentes, governamentais, todas estão no mesmo barco. Vão desde apenas competentes até profundamente perigosas. Ei, lobo velho, ouvi uma piada outro dia que você vai adorar. Como é que dá pra ter certeza de que a CIA não estava envolvida no assassinato do Kennedy?

— Já ouvi — disse Wednesday.

— Que pena.

Ela voltou a atenção para Shadow.

— Mas a apresentação dos agentes, aqueles que você conheceu, aquilo é outra coisa. Eles existem porque todo mundo sabe que eles têm que existir.

Ela esvaziou um copo de papel cheio de alguma coisa que se parecia com vinho branco, e então ficou em pé.

— Shadow é um bom nome — disse. — Eu quero tomar um mochaccino. Vamos!

Ela começou a se afastar.

— E a comida? — perguntou Wednesday. — Você não pode deixar tudo aqui. Ela sorriu e apontou para a menina sentada ao lado do cachorro, então abriu os braços para agarrar a rua Haight e o mundo.

— Deixe que eles se alimentem — ela disse e continuou andando, com Wednesday e Shadow atrás dela.

— Lembre-se — disse a Wednesday, enquanto caminhavam — eu sou rica. Estou me dando muito bem. Por que eu deveria ajudar você?

— Você é uma de nós. E está tão esquecida, tão mal amada e tão não-lembrada quanto qualquer um de nós. Está bem claro de que lado você deveria ficar.

Chegaram a um café de calçada, entraram e sentaram-se. Só havia uma garçonete, que usava um piercing na sobrancelha para marcar sua casta, e uma mulher fazendo café atrás do balcão. A garçonete avançou na direção deles, sorrindo automaticamente, fez com que se acomodassem e anotou os pedidos.

Easter colocou sua mão fina nas costas da mão quadrada e cinzenta de Wednesday.

— Estou dizendo... estou me dando bem. Nos dias da minha festa eles ainda se refestelam com ovos e coelhos, com doces e com carne, pra representar o renascimento e a cópula. Usam flores nos bonés e dão flores uns prós outros. Fazem tudo isso em meu nome. Mais e mais a cada ano. Em meu nome, lobo velho.

— E você engorda e enriquece com a idolatria e o amor deles? — ele disse, seco.

— Não seja babaca.

De repente, ela pareceu muito cansada. Deu um gole no mochaccino.

— É uma questão séria, querida. Certamente eu concordo que milhões e milhões deles dão lembranças uns prós outros em seu nome, e que ainda praticam todos os rituais da sua festa, até mesmo saem caçando ovos escondidos. Mas quantos sabem quem você é? Hein? Por favor, senhorita. A última frase foi dirigida à garçonete, que perguntou:

— Quer mais um expresso?

— Não, querida. Só queria ver se consegue resolver uma discussãozinha que estamos tendo aqui. Minha amiga e eu discordamos a respeito do significado da palavra "Easter", quer dizer, "Páscoa". Será que você sabe o que quer dizer?

A garota olhava para ele como se sapos verdes saíssem de seus lábios. Então, disse:

— Não sei nada a respeito dessas coisas católicas. Sou pagã. A mulher atrás do balcão disse:

— Acho que é a palavra em Latim, ou qualquer coisa dessas, que significa "Jesus se reergueu".

— É mesmo? — disse Wednesday.

— É, com certeza. Easter. Do mesmo jeito que o sol se levanta ao Leste*, sabe.

— O filho que renasce. Claro... é uma suposição bem lógica. A mulher sorriu e voltou ao seu moedor de café. Wednesday olhou para a garçonete.

— Acho que eu vou aceitar mais um café, se você não se incomodar. Mas, me diz, como pagã, quem é que você admira?

— Admiro?

— Isso mesmo. Imagino que você tenha um campo bem amplo. Então, pra quem você monta o altar da sua casa? Pra quem você se ajoelha e reza ao amanhecer e ao anoitecer?

Seus lábios adquiriram vários formatos sem dizer nada antes que ela falasse:

— O princípio feminino. É uma coisa de poder, sabe?

— De fato. E esse tal princípio feminino seu tem nome?

— Ela é a deusa que está dentro de todos nós — disse a garota, com a cor subindo às suas bochechas. — Ela não precisa de nome.

— Ah — disse Wednesday, com um largo sorriso de macaco. — Então, vocês promovem bacanais poderosos em honra a ela? Bebem vinho de sangue sob a lua cheia, enquanto velas escarlates queimam em castiçais de prata? Entram nuas na espuma do mar, cantando com êxtase à sua deusa sem nome, enquanto as ondas lambem as suas pernas, batendo nas suas coxas igual à língua de mil leopardos?

— Você está tirando sarro de mim — ela disse. — Não fazemos nenhuma dessas coisas que falou.

Ela respirou fundo. Shadow desconfiou que estava contando até.dez.

— Alguém mais quer café aqui? Mais um mochaccino pra senhora? Seu sorriso agora era muito parecido com aquele com que os havia recebido na entrada.

East, em inglês. (N.T.)

Eles sacudiram as cabeças, e a garçonete se virou para cumprimentar outro cliente.

— Aí está — comentou Wednesday. — Alguém "que não tem fé e não se atreve a se divertir", Chesterton. Pagã de fato. Então. Vamos sair na rua, Easter minha cara, e repetir o exercício? Descobrir quantos dos transeuntes sabem que sua festa da Páscoa se chama Easter em inglês por causa de Easter do Amanhecer? Vamos ver... já sei. Vamos perguntar a cem pessoas. Pra cada uma que souber a verdade, você pode cortar um dos meus dedos das mãos, e quando eu ficar sem nenhum, pode cortar os dedos dos meus pés. Pra cada vinte que não souberem, você passa uma noite fazendo amor comigo. E a probabilidade está do seu lado... Isto é São Francisco, apesar de tudo. Aqui, nestas ruas de precipício, está lotado de idólatras, pagãos e wiccas.

Os olhos verdes dela olharam para Wednesday. Eram, observou Shadow, da cor exata de uma folha na primavera trespassada pelo sol. Ela não disse nada.

— Nós poderíamos tentar — continuou Wednesday. — Mas eu iria acabar com dez dedos nas mãos, dez dedos nos pés, e cinco noites na sua cama. Então não vem falar pra mim que eles adoram você e comemoram a sua festa. Eles proferem o seu nome, mas isso não tem significado nenhum. Não quer dizer nada.

Havia lágrimas nos olhos dela.

— Eu sei — ela disse baixinho. — Eu não sou boba.

— Não — assentiu Wednesday. — Você não é. Ele forçou demais a barra, pensou Shadow. Wednesday abaixou os olhos, envergonhado:

— Desculpa.

Shadow conseguia ouvir sinceridade verdadeira na voz dele.

— Precisamos de você, da sua energia. Precisamos do seu poder. Você vai lutar do nosso lado quando a tempestade chegar?

Ela hesitou. Tinha uma corrente de não-me-esqueças azuis tatuados ao redor do pulso.

— Vou — respondeu, depois de um tempo. — Acho que vou.

Acho que é verdade o que se diz por ai, pensou Shadow. Se você conseguir fingir sinceridade, ganha a parada. Então se sentiu culpado por pensar tal coisa.

Wednesday deu um beijo no próprio dedo e o encostou na bochecha de Easter. Chamou a garçonete e pagou os cafés. Contou o dinheiro cuidadosamente, dobrou as notas junto com a conta e apresentou o pagamento a ela.

Quando ela se afastava, Shadow disse:

— Moça, por favor. Acho que você deixou isso cair. Ele pegou uma nota de dez dólares do chão.

— Não — ela disse, olhando para as notas dobradas em sua mão.

— Eu vi cair, moça — insistiu Shadow, educadamente. — Você deveria contar mais uma vez.

Ela contou o dinheiro na mão, pareceu confusa, e disse:

— Jesus. Você tem razão. Desculpa.

Ela pegou a nota de 10 dólares de Shadow e se afastou.

Easter saiu para a calçada com eles. A luz estava apenas começando a diminuir. Ela fez um sinal com a cabeça para Wednesday, então encostou na mão de Shadow:

— O que foi que você sonhou na noite passada?

— Pássaros-trovão. Uma montanha de caveiras. Ela assentiu com a cabeça.

— E você sabe de quem eram aquelas caveiras?

— Tinha uma voz no meu sonho. Ela me falou. Ela assentiu com a cabeça e esperou. Shadow continuou:

— A voz falou que eram minhas. Minhas caveiras antigas. Milhares e milhares delas.

Easter olhou para Wednesday:

— Acho que esse aqui é um guardião.

Ela mostrou seu sorriso luminoso. Então deu uns tapinhas carinhosos no braço de Shadow e saiu caminhando pela calçada. Ele a observou se afastar, tentando — sem conseguir — não pensar nas coxas que roçavam quando ela caminhava.

No táxi a caminho do aeroporto, Wednesday falou para Shadow:

— Que merda foi aquela que você aprontou com a nota de 10 dólares?

— Você deu menos dinheiro do que precisava. E sai do salário dela se receber errado.

— Que porra você tem a ver com isso? Wednesday parecia genuinamente irado. Shadow pensou por um instante. Então disse:

— Bom, eu não ia querer que alguém fizesse isso comigo. Ela não tinha feito nada de errado.

— Não?

Wednesday olhou para o infinito e disse:

— Quando ela tinha 7 anos, trancou um gatinho em um armário. Ficou ouvindo ele miar durante vários dias. Quando parou, ela tirou o bichinho do armário, colocou em uma caixa de sapatos e enterrou no quintal. Ela só queria enterrar alguma coisa. Costuma roubar dinheiro de todos os lugares em que trabalha. Pequenas quantias, habitualmente. No ano passado, foi visitar a avó no asilo em que está confinada. Tirou um relógio de pulso antigo, de ouro, do criado-mudo da avó. Depois começou a rondar vários outros quartos, roubando pequenas quantidades de dinheiro e objetos pessoais dos velhos que mal conseguem enxergar. Quando chegou em casa, não sabia o que fazer com o produto do roubo, ficou com medo de que alguém viesse atrás dela. Então jogou tudo fora, menos o dinheiro.

— Já entendi — disse Shadow.

— Também tem gonorréia assintomática — continuou Wednesday. — Ela suspeita de que pode estar infectada, mas não faz nada a respeito disso. Quando seu último namorado a acusou de ter passado a doença pra ele, ficou magoada, ofendida e se recusou a vê-lo de novo.

— Isso não é necessário. Eu disse que já entendi. Você pode fazer isso com qualquer pessoa, não pode? Ficar me contando coisas ruins sobre elas.

— Claro que sim — concordou Wednesday. — Todo mundo faz as mesmas coisas. Podem pensar que os pecados deles são originais, mas na maior parte das vezes são apenas mesquinhos e repetitivos.

— E por causa disso você se sente no direito de roubar dez paus deles? Wednesday pagou o táxi e os dois homens entraram no aeroporto, indo até o portão designado. O embarque ainda não tinha começado. Wednesday disse:

— Que porra mais eu posso fazer? Eles não sacrificam mais carneiros nem touros para mim. Eles não me mandam mais as almas dos assassinos e dos escravos, enforcados e despedaçados pelos corvos. Eles se esqueceram de mim. Agora, eu dou o troco. Não é justo?

— Minha mãe costumava dizer "a vida não é justa" — disse Shadow.

— Claro que sim. Isso é uma daquelas coisas que as mães dizem, junto com "se todos os seus amigos pularem da ponte, você também pularia?"

— Você roubou 10 dólares daquela garota, eu dei 10 dólares pra ela — insistiu Shadow, teimoso. — Era o certo.

Alguém avisou que o embarque estava começando. Wednesday se levantou.

— Que as suas escolhas sejam sempre tão claras assim — disse.

A frente fria estava enfraquecendo quando Wednesday deixou Shadow em casa, nas primeiras horas da manhã. O frio em Lakeside continua forte, embora tivesse diminuído um pouco. O luminoso, na lateral do banco M&rl, exibia alternadamente 3:30 e -20°C quando atravessaram a cidade.

Eram 9h30 da manhã quando o delegado Chad Mulligan bateu na porta do apartamento e perguntou a Shadow se ele conhecia uma garota chamada Alison McGovern.

— Acho que não — respondeu Shadow, sonolento.

— Aqui está a foto dela — disse Mulligan.

Era uma fotografia de escola. Shadow reconheceu a pessoa na foto imediatamente: a menina com o aparelho azul nos dentes, aquela que tinha aprendido tudo sobre os usos orais do antiácido com a amiga.

— Ah, sim. Eu me lembro. Ela estava no ônibus que eu peguei pra chegar aqui.

— Onde o senhor estava ontem, senhor Ainsel?

Shadow sentiu seu mundo começar a rodopiar para longe dele. Sabia que não tinha nada para se sentir culpado. (Você é um presidiário em liberdade condicional, vivendo com um nome falso, cochichou uma voz calma em sua mente, já não é o bastante?)

— Em São Francisco — respondeu. — Na Califórnia. Ajudando o meu tio a transportar uma cama com cortinado.

— Você tem os recibos dos cartões de embarque, qualquer coisa assim?

— Claro.

Ele estava com os dois canhotos dos cartões de embarque no bolso detrás da calça, e os mostrou.

— O que está acontecendo?

Chad Mulligan examinou os cartões de embarque.

— Alison McGovern desapareceu. Ela era voluntária na Associação para Animais de Lakeside. Dava comida prós bichos, levava os cachorros pra passear... ficava lá durante algumas horas depois da escola. Dolly Knopf, que cuida da Associação para Animais, sempre levava Alison de volta pra casa quando fechava a associação à noite. Mas ontem ela não apareceu.

— Ela sumiu?

— Foi. Os pais dela ligaram pra nós ontem à noite. A garrota tola costumava pegar carona até a associação. Fica na estrada municipal W, bem isolada. Seus pais disseram que ela não podia fazer isso, mas este aqui não é o tipo de lugar onde coisas acontecem... as pessoas aqui não trancam as portas, sabe? E não dá pra mandar nas crianças. Bem, dá mais uma olhada na foto.

Alison McGovern sorria. Os elásticos nos seus dentes, na fotografia, eram vermelhos, não azuis.

— Você pode dizer honestamente que não seqüestrou, nem estuprou, nem assassinou a garota, nada disso?

— Eu estava em São Francisco. E não faria uma merda dessas.

— Foi o que eu achei, amigo. Então, quer vir nos ajudar a procurar por ela?

— Eu?

— Ê. Os cães farejadores chegaram hoje de manhã. Mas ainda não achamos nada.

Ele suspirou.

— Caramba, Mike. Só espero que ela apareça em Twin Cities com algum namorado drogado.

— Você acha que é provável?

— Acho que sim. Você quer se juntar à equipe de busca? Shadow se lembrou de ter visto a menina na loja Hennings Farm and Home Supphes, do brilho de um sorriso de aparelho azul e de como percebeu que ela ficaria linda, um dia.

— Eu vou.

Havia duas dúzias de homens e mulheres esperando na recepção da sede do corpo de bombeiros. Shadow reconheceu Hinzelmann, e vários outros rostos lhe pareciam familiares. Oficiais de polícia e algumas pessoas com o uniforme marrom do departamento do Xerife do condado de Lumber também estavam lá.

Chad disse a eles que roupas Alison estava usando quando desapareceu (um macacão de neve vermelho-escarlate, luvas verdes e um gorro de lã azul, embaixo do capuz do macacão de neve) e dividiu os voluntários em grupos de três. Shadow, Hinzelmann e um homem chamado Brogan compunham um dos grupos. Foram lembrados de como o dia era curto e que se, Deus não permita, encontrassem o corpo de Alison, que não, repetindo, não mexessem "em nada, que só enviassem um aviso pelo rádio pedindo ajuda, mas que, se ela estivesse viva, que a mantivessem aquecida até o socorro chegar.

Foram deixados na estrada municipal W.

Hinzelmann, Brogan e Shadow caminhavam à beira de um riacho congelado. Cada grupo recebeu um pequeno walkie-talkie de mão antes de partir.

As nuvens estavam baixas, e o mundo, cinzento. Não tinha caído nenhuma neve nas últimas 36 horas. Pegadas apareceriam sobre a crosta brilhante do chão.

Brogan parecia um coronel do Exército aposentado, com seu bigode ralo e as têmporas grisalhas. Disse a Shadow que era diretor de escola aposentado.

— Eu estava envelhecendo. Hoje em dia, ainda dou algumas aulas, organizo a peça de teatro da escola, esse sempre foi o ponto alto do ano letivo, de qualquer modo, caço um pouco e tenho uma cabana no lago Pike, onde passo bastante tempo.

Quando partiram, Brogan disse:

— Por um lado, espero que encontremos a menina. Por outro, se ela vai ser encontrada, eu ficaria muito agradecido se fosse outra pessoa que achasse, não eu. Você entende o que eu quero dizer?

Shadow entendia exatamente o que queria dizer.

Os três homens não falavam muito. Caminhavam procurando um macacão de neve vermelho, ou luvas verdes, ou um gorro azul, ou um corpo branco. De vez em quando, Brogan, que carregava o walkie-talkie, comunicava-se com Chad Mulligan.

Na hora do almoço, acomodaram-se com o resto da equipe de busca em um antigo ônibus escolar e comeram cachorros-quentes e tomaram sopa. Um homem apontou um falcão de cauda vermelha em cima de uma árvore desfolhada, e outro disse que parecia mais um falcão comum, mas o pássaro saiu voando e a discussão foi abandonada.

Hinzelmann contou uma história sobre a trombeta do avô, e como ele tentou tocá-la durante uma frente fria... o tempo estava tão frio do lado de fora do celeiro, onde seu avô estava, que não saiu música nenhuma.

— Daí, quando ele voltou pra dentro de casa, colocou a trombeta do lado do fogo pra descongelar. Bom, a família inteira estava na cama naquela noite e, de repente, as músicas descongeladas começaram a sair da trombeta. Assustou tanto a minha vó que ela quase pariu gatinhos.

A tarde foi interminável, infrutífera e deprimente. A luz do dia ia embora lentamente: as distâncias se ocultavam, o mundo ia ficando azulado e o vento soprava tão frio que queimava a pele do rosto. Quando estava escuro demais para continuar, Mulligan passou uma mensagem de rádio para todos eles, para pararem por aquele dia. Foram todos recolhidos e levados até o corpo de bombeiros.

No quarteirão pegado ao corpo de bombeiros ficava a taberna Buck Stops Here, e foi ali que a maior parte da equipe de busca foi parar. Estavam exaustos e desanimados, conversando entre si sobre o frio e como era provável que Alison aparecesse em um ou dois dias sem fazer idéia de quanta preocupação havia causado.

— Você não deve pensar mal da cidade por causa disso — disse Brogan. — Esta é uma cidade boa.

— Lakeside — falou uma mulher enfeitada cujo nome Shadow tinha esquecido, se é que havia sido apresentado a ela — é a melhor cidade das florestas do norte. Sabe quantas pessoas estão desempregadas em Lakeside?

— Não — respondeu Shadow.

— Menos de vinte. Mais de 5 mil pessoas moram aqui e nos arredores. Podemos não ser ricos, mas todo mundo trabalha. Não é como as cidades mineradoras mais a nordeste... A maior parte delas já se transformou em cidades-fantasma. Há cidades próximas a fazendas que faliram por causa da queda do preço do leite, ou pelo preço baixo dos porcos. Sabe qual é a principal causa de morte não-natural entre os fazendeiros do meio-oeste?

— Suicídio? — Shadow chutou. Ela pareceu quase frustrada.

— É. É isso aí. Eles se matam.

E sacudiu a cabeça. Depois, prosseguiu:

— Tem muitas cidades aqui pelas redondezas que só sobrevivem por causa dos caçadores e das pessoas que vêm passar as férias, cidades que só pegam o dinheiro dos turistas e os mandam de volta pra casa com seus troféus e suas picadas de insetos. Depois, tem as cidades corporativas, onde tudo se passa às mil maravilhas até que o Wal-Mart resolva realocar seu centro de distribuição ou até que a 3M pare de fabricar estojos de CD, ou qualquer coisa assim, e de repente tem um monte de caras que não conseguem pagar o financiamento da casa própria. Desculpa, acho que não sei o seu nome.

— Ainsel — disse Shadow. — Mike Ainsel.

A cerveja que ele bebia era feita ali mesmo, feita com água mineral natural. Era boa.

— Eu sou Calhe Knopf— ela disse. — Irmã da Dolly. Seu rosto ainda estava avermelhado por causa do frio — O que eu estou dizendo é que Lakeside ainda tem sorte. Nós temos um pouco de tudo por aqui: fazendas, usina de energia elétrica, turismo, artesanato. Boas escolas.

Shadow olhou para ela, perplexo. Havia algo de vazio no fundo de suas palavras. Era como se ele estivesse escutando um vendedor que acreditava no seu produto, mas, ainda assim, queria assegurar-se de que você iria para casa com todas as escovas ou com a coleção completa de enciclopédias. Talvez ela conseguisse enxergar isso no rosto dele... Ela disse:

— Me desculpe, mas quando se adora alguma coisa, a gente nunca mais pára de falar dela. O que o senhor faz, senhor Ainsel?

— Meu tio compra e vende antiguidades pelo país inteiro. Ele me usa pra transportar coisas grandes e pesadas. É um trabalho bom, mas não é fixo.

Um gato preto, a mascote do bar, enroscou-se nas pernas de Shadow, esfregando a testa na sua bota. Pulou para cima do banco ao lado dele e adormeceu.

— Pelo menos você viaja — disse Brogan. — Você faz alguma outra coisa?

— Você tem oito moedas de 25 centavos? — perguntou Shadow. Brogan remexeu os bolsos em busca de troco. Achou cinco moedas, fez com que deslizassem para o outro lado da mesa, na direção de Shadow. Calhe Knopf arrumou mais três.

Ele ajeitou as moedas em cima da mesa, em duas fileiras de quatro. Então, mal apalpando as moedas, fez o truque de passá-las através do tampo de madeira da mesa, deixando-as cair da mão esquerda para a direita.

Depois disso, pegou as oito moedas na mão direita, um copo de água vazio na esquerda, cobriu o copo com um guardanapo e fingiu fazer as moedas desaparecerem, uma por uma, da mão direita e aparecerem no copo sob o guardanapo com um tilintar audível. Finalmente, abriu a mão direita para mostrar que estava vazia, então retirou o guardanapo para mostrar as moedas dentro do copo.

Devolveu as moedas — três para Calhe, cinco para Brogan — então pegou uma moeda de volta da mão de Brogan, deixando quatro. Assoprou a moeda de 25 centavos e ela se transformou em uma de um centavo, que devolveu ao homem. Ao contar as moedas, ele ficou surpreso ao descobrir que ainda tinha cinco de 25 centavos na mão.

— Você é um Houdini — riu Hinzelmann, deliciado. — É isso mesmo que você é!

— Sou só um amador. Ainda tenho muito que aprender. Ainda assim, sentiu um pouquinho de orgulho. Aquela tinha sido sua primeira platéia adulta.

Parou no mercado, no caminho de casa, para comprar um litro de leite. A menina ruiva na caixa registradora parecia familiar, e seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. O rosto dela parecia uma enorme sarda.

— Eu conheço você — disse Shadow. — Você é... E ele estava prestes a dizer a garota do antiácido, mas engoliu as palavras no último instante e completou:

— Você é a amiga da Alison. Do ônibus. Espero que esteja tudo bem com ela. Ela fungou e assentiu com a cabeça.

— Eu também.

A menina assoou o nariz em um lenço de papel, com força, e o enfiou de volta para dentro da manga.

O broche dela dizia OI! EU SOU A SOPHIE! PERGUNTE PARA MIM COMO VOCÊ PODE PERDER 10 QUILOS EM 30 DIAS!

— Passei o dia inteiro procurando por ela. Ainda não tivemos sorte. Sophie assentiu com a cabeça e piscou os olhos marejados. Ela sacudiu a caixa de leite longa vida na frente de um leitor de código de barras e a máquina fez um bipe e exibiu o preço. Shadow lhe entregou dois dólares.

— Eu vou embora desta porra de cidade — disse a menina, de repente, com a voz engasgada. — Vou morar com a minha mãe em Ashiand. A Alison sumiu. O Sandy Olsen foi no ano passado. A Jo Ming no ano anterior. E se for eu no ano que vem?

— Eu pensei que o Sandy Olsen tinha sido levado pelo pai.

— É — disse a menina, com amargor. — Tenho certeza de que foi. E ajo Ming foi pra Califórnia, e a Sarah Lindquist se perdeu em um passeio de trilha no mato e nunca mais encontraram ela. Sei lá. Eu quero ir pra Ashiand.

Ela respirou fundo e segurou o ar por um instante. Então, inesperadamente, sorriu para ele. Não havia absolutamente nada de falso naquele sorriso. Era só por que, ele imaginou, tinham dito para ela sorrir quando entregasse o troco a alguém. Sophie desejou-lhe um bom dia. Então se virou para a mulher com o carrinho cheio atrás dele e começou a descarregá-lo e a passar os produtos no leitor de código de barras.

Shadow pegou seu leite e foi embora, passou pelo posto de gasolina, pela lata velha sobre o gelo, por cima da ponte e chegou em casa.

 

CHEGANDO À AMÉRICA

1778

Havia uma menina, e seu tio a vendera, escrevia o senhor Ibis com sua caligrafia perfeita para uma placa de condecoração em cobre.

Essa é a história; o resto é detalhe.

Existem relatos que, se abrirmos nossos corações a eles, vão nos ferir muito profundamente. Olhe — aqui está um homem bom, bom de acordo com seu próprio ponto de vista e com o de seus amigos: é fiel e verdadeiro com sua esposa, adora e passa o maior tempo possível com seus filhinhos, preocupa-se com seu país, faz seu trabalho pontualmente, o melhor que pode. Então, com eficiência e boas intenções, extermina judeus: ele aprecia a música de fundo que toca para acalmá-los; adverte os judeus para que não esqueçam seus números de identificação quando vão para o banho — muitas pessoas, ele explica, esquecem seus números e pegam as roupas erradas quando saem do banho. Isso acalma os judeus. Haverá vida, eles se asseguram, depois do banho. Nosso homem supervisiona os detalhes de levar os corpos até os fornos; e, se há alguma coisa que faz com que ele se sinta mal, é ainda permitir que a exterminação da gentalha com gás o afete. Se fosse um homem verdadeiramente bom, ele sabe, não sentiria nada além de alegria por ver a terra livre de suas pestes.

Havia uma menina, e seu tio a vendera. Colocado assim, parece tão simples.

Nenhum homem, proclamou Donne, é uma ilha, e ele estava errado. Se nós não fôssemos ilhas, estaríamos perdidos, afogados nas tragédias dos outros. Nós nos isolamos (uma palavra que significa, literalmente, lembre-se, ser transformado em ilha) da tragédia dos outros por nossa natureza de ilha, e pelo desenho e pela forma repetitiva das histórias. O desenho não muda: havia um ser humano que nasceu, cresceu e então, por causa de uma coisa ou de outra, morreu. Pronto. É possível preencher as lacunas com base em sua própria experiência. Tão sem originalidade como qualquer outro conto, tão único como qualquer outra vida. Vidas são flocos de neve, formando figuras que já vimos antes, tão parecidos uns com os outros quanto ervilhas em uma vagem (e você já olhou para as ervilhas em uma vagem? Eu quero dizer, olhou mesmo para elas? Depois de um minuto de exame atento, não há chance de você confundir uma com a outra), mas, ainda assim, única.

Sem indivíduos, enxergamos apenas números: mil mortos, 100 mil mortos, "o número de vítimas pode chegar a um milhão". Com histórias individuais, as estatísticas se transformam em pessoas — mas até isso é mentira, porque as pessoas continuam a sofrer em números que, por si só, são entorpecentes e sem sentido. Olhe, veja a barriga inchada do menino e as moscas que andam no canto dos olhos dele, seus membros esqueléticos: vai ajudar se você souber seu nome, idade, sonhos e medos? Se enxergá-lo por dentro? E, se ajudar, será que não estaremos prestando um desserviço à irmã dele, que está ali ao lado, estirada na poeira abrasadora, uma caricatura distorcida e inchada de uma criança humana? E daí, se lamentarmos por essas duas crianças, será que elas agora passarão a ser mais importantes para nós do que milhares de outras crianças atingidas pela mesma fome, milhares de outras vidas jovens e contorcidas que logo se transformarão em alimento para os mosquitos?

Nós desenhamos nossos limites ao redor desses momentos de dor... continuamos em nossas ilhas, e eles não podem nos ferir. Ficam escondidos sob uma cobertura nacarada, suave e segura para que escorreguem, como as ervilhas, de nossas almas sem que sintamos dor verdadeira.

A ficção nos permite deslizar para dentro dessas outras cabeças, para esses outros lugares, e olhar através de outros olhos. E então, no conto, paramos antes de morrer, ou morremos de forma indireta ou sem prejuízo e, no mundo além do conto, viramos a página ou fechamos o livro, e terminamos de viver nossa vida.

Uma vida que, como qualquer outra, é diferente de todas.

E a simples verdade é a seguinte: havia uma menina, e seu tio a vendera.

Era o que costumavam dizer, de onde a menina veio: nenhum homem podia ter certeza de quem era o pai de uma criança, mas a mãe, ah, disso você podia ter certeza. Linhagem e propriedades eram coisas que se moviam na linha materna, mas o poder continuava nas mãos dos homens: um homem tinha a posse completa dos filhos de sua irmã.

Havia uma guerra naquele lugar, e era uma guerra pequena, não mais do que um conflito entre os homens de dois vilarejos rivais. Era quase uma discussão. Um vilarejo ganhou a discussão, um vilarejo perdeu.

Vida como mercadoria, pessoas como possessões. A escravidão fazia parte da cultura daquelas partes há milhares de anos. Os traficantes de escravos árabes destruíram os últimos grandes reinos da África Oriental, ao mesmo tempo em que as nações da África Ocidental se destruíam umas às outras.

Não havia nada desconfortável ou raro a respeito de o tio vender os gêmeos, apesar de serem considerados seres mágicos, e o tio tinha medo deles, tanto medo que nem contou a eles que seriam vendidos, para que não ferissem sua sombra nem o matassem. Eles tinham 12 anos de idade. Ela se chamava Wututu, o pássaro mensageiro. Ele se chamava Agasu, o nome de um rei morto. Eram crianças saudáveis e ouviam muitas coisas a respeito dos deuses e, pelo fato de serem gêmeos, menino e menina, escutavam as coisas que lhes contavam e eles se lembravam delas.

O tio era um homem gordo e preguiçoso. Se possuísse mais gado, talvez abrisse mão de uma rés no lugar das crianças, mas não foi o que fez. Ele vendeu os gêmeos. Chega de falar nele: ele não vai mais aparecer nesta narrativa. Vamos seguir os gêmeos.

Foram conduzidos a pé, junto com vários outros escravos tomados ou vendidos na guerra, por quase 20 quilômetros, até um posto pequeno de comércio. Ali foram negociados, e os gêmeos, junto com mais treze, foram comprados por seis homens com lanças e facas que os levaram para o oeste, em direção ao mar, e então percorreram vários quilômetros pela costa. Agora eram 15 escravos, com as mãos presas com cordas folgadas, amarrados uns aos outros pelo pescoço. Wututu perguntou ao irmão, Agasu, o que aconteceria com eles.

— Eu não sei.

Agasu era um menino que sempre sorria: seus dentes eram brancos e perfeitos, e ele os mostrava quando sorria, sempre alegre, e deixava Wututu feliz também. Ele não estava sorrindo agora. Ao contrário, tentava mostrar bravura para a irmã, com a cabeça para trás e os ombros abertos, tão orgulhoso, tão ameaçador, tão cômico quanto um cachorrinho com os pelos da nuca eriçados.

O homem na fila atrás de Wututu, com as bochechas cheias de cicatrizes, disse:

— Vão vender a gente pros demônios brancos, que vão nos levar pra casa deles do outro lado da água.

— E o que vão fazer com a gente lá? — perguntou Wututu. O homem não disse nada.

— Bom? — perguntou Wututu.

Agasu tentou dar uma olhada por cima do ombro. Eles não tinham permissão para conversar ou para cantar enquanto andavam.

— É possível que eles comam a gente — falou o homem. — Foi o que me contaram. É por isso que precisam de tantos escravos. É porque sempre estão com fome.

Wututu começou a chorar enquanto andava. Agasu disse:

— Não chora, minha irmã. Eles não vão comer você. Eu vou proteger você e nossos deuses também.

Mas Wututu continuava a chorar, caminhando com o coração pesado, sentindo dor, raiva e medo como só uma criança pode sentir: crua e devastadoramente. Ela não conseguia explicar a Agasu que não estava preocupada com a idéia de ser comida pelos demônios brancos. Ela sobreviveria, tinha certeza disso. Chorava porque tinha medo de que comessem seu irmão, e ela não sabia ao certo se conseguiria protegê-lo.

Chegaram a um posto de comércio e ficaram lá durante dez dias. Na manhã do décimo dia, foram levados da cabana onde tinham estado presos (estava muito lotada nos dias finais, à medida que chegavam mais homens de longe trazendo suas próprias filas e seus próprios grupos de escravos). Foram levados até o porto, e Wututu viu o navio que os levaria embora.

O primeiro pensamento dela foi como aquele navio era grande e, o segundo, que era pequeno demais para que todos coubessem lá dentro. Parecia leve sobre a água. O bote do navio ia e vinha, levando os prisioneiros para o navio, onde eram algemados e arrumados nos deques mais baixos por marinheiros, alguns com a pele vermelha como tijolo ou bronzeados, com narizes estranhamente pontudos e barbas que faziam os parecer animais. Muitos dos marinheiros lembravam seu próprio povo, os homens que a levavam até a costa. Os homens, as mulheres e as crianças foram separados, empurrados para áreas diferentes do convés dos escravos. Havia escravos demais para o navio conseguir carregar com facilidade, por isso uma outra dúzia de homens foi acorrentada à parte aberta do convés, embaixo dos locais onde a tripulação penduraria suas redes.

Wututu foi colocada com as crianças, não com as mulheres; e ela não foi acorrentada, apenas trancada. Agasu, seu irmão, foi forçado a ir com os homens, acorrentado, jogado como um arenque na salmoura. Fedia embaixo daquele deque, apesar de a tripulação ter esfregado o lugar depois de seu último carregamento. Era um fedor que tinha impregnado a madeira: cheiro de medo e de bile, de diarréia e de morte, de febre e de loucura e de ódio. Wututu ficava no porão quente com as outras crianças. Ela sentia as crianças de cada lado de seu suor. Uma onda fez com que um menininho caísse sobre ela, com tudo, e ele se desculpou em uma língua que Wututu não reconheceu. Ela tentou sorrir para ele na penumbra.

O barco zarpou. Agora, navegava pesado sobre a água.

A menina ficou imaginando o lugar de onde os homens brancos vinham (apesar de nenhum deles ser verdadeiramente branco: eram queimados de mar e de sol). Será que faltava tanta comida lá na terra deles que precisavam mandar buscar pessoas em um lugar tão longe? Ou será que ela seria servida como iguaria, uma delícia rara para um povo que já comera tantas coisas que apenas carne de pele negra nas panelas fazia suas bocas salivarem?

No segundo dia no mar, o barco deparou com uma tempestade de vento, não muito forte, mas os deques sacolejavam e se inclinavam, e o cheiro de vômito se juntou aos cheiros de urina e de fezes líquidas, e de suor de medo misturados. A chuva caía na cabeça deles, como se viesse de baldes esvaziados do céu pela grade de respiração colocada no teto do deque dos escravos.

Depois de uma semana de viagem, sem nenhuma terra à vista, deixaram que os escravos ficassem soltos. Foram avisados de que qualquer desobediência, qualquer confusão seriam castigados de uma maneira que nunca esqueceriam.

De manhã, os prisioneiros eram alimentados com feijões e biscoitos de navio, e com um gole de suco de limão avinagrado para cada um, tão amargo que fazia com que seu rosto se contorcesse. Eles tossiam e cuspiam, e alguns reclamavam e choramingavam, enquanto o suco de limão era distribuído. Não podiam cuspir aquilo, porém: se fossem pegos cuspindo ou babando, eram chicoteados ou espancados.

A noite lhes trazia carne de vaca salgada. Tinha um gosto desagradável, e havia um brilho de arco-íris na superfície cinzenta da carne. Tudo isso aconteceu no começo da viagem. À medida que a viagem continuava, a carne ia ficando cada vez pior.

Quando conseguiam, Wututu e Agasu ficavam abraçados, conversando sobre a mãe e o lar, e sobre os amiguinhos de brincadeiras. As vezes, Wututu contava a Agasu as histórias que sua mãe lhe ensinara, como aquelas sobre o Elegba, o mais traiçoeiro dos deuses, que era os olhos e os ouvidos da Grande Mawu no mundo, que levava mensagens para Mawu e trazia de volta as respostas.

Durante a noite, para espantar a monotonia da viagem, os marinheiros faziam com que os escravos cantassem e dançassem para eles as danças de suas terras nativas.

Wututu teve sorte de ter sido colocada com as crianças. As crianças ficavam amontoadas, sem muito espaço para se mexer, e eram ignoradas; as mulheres nem sempre tinham tanta sorte. Em alguns navios negreiros, as escravas eram estupradas repetidamente pela tripulação, simplesmente como um bônus pela viagem. Esse não era um navio daquele tipo, o que não quer dizer que estupros não aconteciam.

Centenas de homens, mulheres e crianças morreram naquela viagem e foram jogados para o mar por sobre a balaustrada. Alguns dos prisioneiros que foram jogados ainda não haviam morrido, mas o frio esverdeado do oceano esfriou sua última febre e eles afundaram se debatendo, sufocados e perdidos.

Wututu e Agasu viajavam em um barco holandês, mas eles não sabiam disso, e poderia muito bem ser britânico, português, espanhol ou francês.

Os homens negros da tripulação, com a pele ainda mais negra do que a de Wututu, diziam aos prisioneiros aonde ir, o que fazer, quando dançar. Certa manhã, Wututu pegou um dos guardas negros olhando para ela. Enquanto estava comendo, o homem veio até ela e ficou olhando sem dizer nada.

— Por que você faz isso? — ela perguntou. — Por que você serve os demônios brancos?

Ele sorriu para ela como se aquela pergunta fosse a coisa mais engraçada que ouvira na vida. Então se abaixou, quase roçando seus lábios nas orelhas dela e fazendo a respiração quente dele, de repente, parecer enjoada.

— Se fosse mais velha, eu ia fazer você gritar de alegria com o meu pênis. Talvez eu faça isso hoje à noite. Eu vi como dança bem.

Ela olhou para ele com seus olhos castanhos e disse, com firmeza, até com um sorriso:

— Se você colocar isso aí lá embaixo, eu vou arrancar ele com os meus dentes de lá debaixo. Eu sou uma menina-bruxa e tenho dentes bem afiados lá embaixo.

Ela sentiu prazer ao observar sua expressão mudar. Ele não disse nada, e se afastou.

As palavras saíram da sua boca, mas não eram suas: ela não tinha pensado nem organizado isso na mente. Não, ela percebeu, aquelas eram as palavras de Elegba, o traiçoeiro. Mawu tinha feito o mundo e, então, graças às trapaças de Elegba, perdera o interesse nele. Era Elegba das idéias inteligentes e da ereção dura como ferro que falara por meio dela, que a tinha escondido por um instante, e, naquela noite, antes de dormir, ela agradeceu a Elegba.

Vários dos prisioneiros se recusavam a comer. Eram chicoteados até colocarem comida na boca e engolirem, apesar de o chicoteamento ser tão severo que acabou matando dois homens. Mas fez com que ninguém mais no navio tentasse morrer de fome em busca de liberdade. Um homem e uma mulher tentaram se matar, pulando da balaustrada. A mulher conseguiu. O homem foi salvo, amarrado ao mastro e chicoteado durante a maior parte do dia, até que suas costas escorressem de sangue, e foi deixado lá quando o dia se transformou em noite. Não lhe deram nada para comer nem para beber, além de seu próprio mijo. No terceiro dia ele delirava... sua cabeça estava inchada como um melão velho. Quando ele parou de delirar, jogaram-no sobre a balaustrada. Além disso, durante cinco dias depois da tentativa de fuga, os prisioneiros voltaram às suas algemas e às correntes.

Era uma jornada longa e bem ruim para os prisioneiros, mas também não era agradável para a tripulação, apesar de os marinheiros terem aprendido a endurecer seus corações por causa do trabalho, e de fingirem para si mesmos que não passavam de fazendeiros levando seu gado para o mercado.

Aportaram em um dia agradável e suave em Bridgeport, Barbados, e os prisioneiros foram carregados do navio para a orla do mar, em botes baixos mandados das docas, e foram levados até a praça do mercado onde foram, por força de uma certa quantidade de gritos e pancadas com bastões, organizados em fileiras. Um apito soou e a praça do mercado se encheu de homens, cutucando, espetando, homens de rostos vermelhos, gritando, inspecionando, chamando, elogiando, reclamando.

Foi então que Wututu e Agasu foram separados. Aconteceu tão rapidamente — um homem grande abriu a boca de Agasu com as mãos, olhou para os seus dentes, apalpou os músculos do braço, assentiu com a cabeça, e dois homens o levaram embora. Ele não os enfrentou. Olhou para Wututu e gritou: "Seja corajosa". Ela assentiu com a cabeça, e então sua visão ficou borrada e manchada pelas lágrimas. Juntos eram gêmeos, mágicos e poderosos. Separados eram só duas crianças sofrendo.

Ela nunca mais o viu, a não ser uma vez, e sem vida.

Eis o que aconteceu com Agasu. Primeiro, levaram-no para uma fazenda de temperos, onde o chicoteavam todos os dias por causa de coisas que fazia ou deixava de fazer. Ensinaram a ele palavras básicas em inglês e lhe deram o nome de Inky Jack, por causa do tom de sua pele. Quando ele fugiu, caçaram-no com cães e o trouxeram de volta, e cortaram fora um dedo do seu pé com um cinzel, para ensiná-lo uma lição de que não se esqueceria. Ele teria morrido de fome, mas, quando se recusou a comer, seus dentes da frente foram quebrados e enfiaram mingau ralo para dentro de sua boca, até que não tivesse outra escolha além de engolir ou morrer sufocado.

Mesmo naquele tempo, preferiam escravos nascidos no cativeiro àqueles trazidos da África. Os escravos que tinham nascido em liberdade tentavam fugir, ou tentavam morrer: de uma maneira ou de outra, lá se iam os lucros.

Quando Inky Jack estava com 16 anos, foi vendido, junto com vários outros escravos, para uma fazenda de açúcar na ilha de St. Domingue. Chamaram-no de Hyacinth, o escravo grande de dente quebrado. Ele se encontrou com uma senhora de seu próprio vilarejo naquela fazenda — ela tinha sido escrava doméstica antes de seus dedos ficarem retorcidos e cheios de artrite — que disse a ele que os brancos separavam de propósito os prisioneiros das mesmas cidades, vilarejos e regiões, para evitar revoltas e rebeliões. Não gostavam quando escravos conversavam em suas próprias línguas.

Hyacinth aprendeu um pouco de francês e foi doutrinado com alguns dos ensinamentos da Igreja Católica. A cada dia ele cortava cana-de-açúcar desde bem antes de o sol se levantar até depois de o sol se pôr.

Foi pai de várias crianças. Ele ia com os outros escravos para o mato, nas primeiras horas da madrugada, apesar de ser proibido, para dançar a calenda e cantar para Damballa-Wedo, o deus-serpente, na forma de uma cobra preta. Ele cantava para Elegba, para Ogum, para Xangô, para Zaka e para muitos outros, todos os deuses que os prisioneiros trouxeram com eles para a ilha, trazidos em suas mentes e em seus corações secretos.

Os escravos das fazendas de St. Domingue raramente viviam mais do que uma década. O tempo livre que recebiam — duas horas no calor do meio-dia e cinco horas no escuro da noite (das onze até as quatro) — também era o único tempo que tinham para cultivar e cuidar dos alimentos que comeriam (porque não eram alimentados pelos patrões, simplesmente recebiam pequenos pedaços de terra para cultivar e, assim, alimentarem-se), e também era o tempo que tinham para dormir e para sonhar. Mesmo assim, usavam aquele tempo para se reunir e dançar, e cantar e adorar. A terra de St. Domingue era fértil, e os deuses de Dahomey, do Congo e do Niger fincaram ali raízes profundas e floresceram, e prometeram liberdade àqueles que os adorassem à noite, nos bosques.

Hyacinth estava com vinte e cinco anos de idade quando uma aranha picou as costas de sua mão direita. A picada infeccionou e a carne das costas de sua mão acabou necrosando: logo, todo o braço estava inchado e roxo, e a mão fedia. Latejada e queimava.

Deram a ele rum puro para beber e esquentaram a lâmina de um facão no fogo até que brilhasse vermelha e branca. Cortaram o braço fora na altura do ombro com uma serra e cauterizaram com a lâmina em brasa. Ele caiu com febre durante uma semana. Depois, voltou a trabalhar.

O escravo de um braço, chamado Hyacinth, participou da revolta de escravos de 1791.

O próprio Elegba possuiu Hyacinth no bosque, montando-o como um homem branco monta um cavalo, e falando por meio de sua boca. Ele se lembrou de muito pouco do que foi dito, mas os outros contaram que ele prometeu a todos a liberdade. Ele só se lembrava da ereção, concentrada e dolorida, e de levantar as duas mãos para a lua, tanto a que ele tinha como a que não possuía mais.

Um porco foi morto, e os homens e as mulheres daquela fazenda beberam o sangue quente do animal, comprometendo-se com a causa e unindo-se em uma irmandade. Juraram ser um exército libertário, prometeram-se mais uma vez aos deuses de todas as terras de onde foram arrastados como produto de roubo.

— Se morrermos na batalha com os brancos — disseram uns aos outros —, vamos renascer na África, em nossos lares, em nossas próprias tribos.

Havia outro Hyacinth na revolta, por isso passaram a chamar Agasu pelo nome de Big One-Arm. Ele lutou, adorou, sacrificou-se e planejou. Viu seus amigos e suas amantes morrerem, e continuou lutando.

Lutaram durante doze anos, uma batalha sangrenta e enlouquecedora, com os donos das fazendas, com as tropas que vieram da França. Lutaram, e continuaram lutando e, impossivelmente, venceram.

No dia 1a de janeiro de 1804, a independência de St. Domingue, que logo ficaria conhecida no mundo inteiro como República do Haiti, foi declarada. Big One-Arm não viveu para ver. Ele morreu em agosto de 1802, na ponta da baioneta de um soldado francês.

No instante preciso da morte de Big One-Arm (que certa vez fora chamado de Hyacinth e, antes disso, de Inky Jack, e que, para sempre foi, no coração, Agasu), sua irmã (que ele conheceu como Wututu, transformada em Mary, em sua primeira fazenda nas Carolinas, e em Daisy, quando virou escrava doméstica, e em Sukey quando foi vendida para a família Lavere, um pouco mais abaixo do rio a partir de New Orleans), sentiu a baioneta fria deslizar entre as costelas e começou a gritar e a chorar incontrolavelmente. Suas filhas gêmeas acordaram e começaram a choramingar. Os bebes recém-nascidos tinham a pele da cor do café com leite, não eram como as crianças negras a quem havia dado à luz quando estava na fazenda — ela própria não passava de uma menina —, crianças que não via desde que tinham 15 e 10 anos. A menina do meio estava morta havia um ano quando ela foi vendida para longe dos filhos.

Sukey fora chicoteada várias vezes desde que desembarcara — certa vez, esfregaram sal nas feridas; em outra ocasião, foi chicoteada durante tanto tempo que não conseguia mais se sentar ou permitir que algo tocasse suas costas durante vários dias seguidos. Ela também fora estuprada seguidas vezes quando era mais nova: por negros que receberam ordem de dividir a cama de madeira com ela, e por brancos. Ela tinha sido acorrentada. Mas não chorou nenhuma vez. Na verdade, desde que seu irmão fora levado para longe, ela só havia chorado uma vez. Foi na Carolina do Norte, quando viu a comida dos filhos dos escravos e dos cachorros ser despejada no mesmo cocho, e viu seus filhinhos disputando as migalhas com os cães. Ela viu aquilo acontecer certo dia — e já tinha visto antes, todos os dias naquela fazenda, e veria muitas vezes mais antes de ir embora — ela viu aquilo, naquele dia específico, e ficou com o coração partido.

Ela fora bonita durante um período. Então os anos de dor tinham pesado, e ela já não era mais como antes. Seu rosto estava enrugado e havia dor demais naqueles olhos castanhos.

Onze anos antes, quando tinha 25, seu braço direito havia minguado. Nenhuma das pessoas brancas sabia o que fazer em relação àquilo. A carne parecia ter se derretido dos ossos, e agora o braço ficava pendurado ao lado do corpo, não passava de muito mais do que um braço esquelético coberto de pele, e quase sem movimento. Depois disso, ela se tornou escrava doméstica.

A família Casterton, dona da fazenda, se impressionou com suas habilidades de cuidar da casa e de cozinhar, mas a senhora Casterton achava o braço minguado desconcertante, por isso foi vendida para a família Eavere, que era da Louisiana, mas estava lá há um ano: o senhor Eavere era um homem gordo e bonachão que precisava de uma cozinheira e de uma empregada para todo o tipo de serviço e não sentia a menor repulsa pelo braço minguado da escrava Daisy Quando a família voltou para a Louisiana, um ano depois, Sukey foi junto.

Em New Orleans, as mulheres vinham até ela, e os homens também, para comprar remédios e amuletos de amor, pessoas negras, sim, claro, mas pessoas brancas também. A família Lavere fingia que não via. Talvez apreciasse o prestígio de ter uma escrava que era temida e respeitada. No entanto, recusava-se a vender-lhe sua própria liberdade.

Sukey ia para o pântano tarde da noite e dançava a calenda e a bambula. Como os dançarinos de St. Domingue e os de sua terra natal, os dançarinos do pântano tinham uma cobra negra como seu vodum; mesmo assim, os deuses de seu lar e das outras nações africanas não possuíram seu povo como haviam possuído o irmão dela e o povo de St. Domingue. Mas ela continuava a invocá-los e a chamar seus nomes, para pedir favores a eles.

Ouviu quando as pessoas brancas falaram sobre a revolta em St. Domingo (como chamavam o lugar), e como estava destinado a cair — "Pense bem! Uma terra de canibais!" — e, então, reparou que pararam de comentar sobre aquele assunto.

Logo, parecia a ela que fingiam nunca ter existido um lugar chamado St. Domingo e que, em relação ao Haiti, a palavra nunca tinha sido mencionada. Era como se toda a nação norte-americana tivesse resolvido que poderia, por um esforço de fé, determinar que uma ilha caribenha de bom tamanho não existia mais, meramente porque queriam e acabou.

Uma geração de crianças Lavere cresceu sob o olhar atento de Sukey. O mais novo, incapaz de dizer "Sukey" quando pequeno, a chamava de Mama Zouzou, e o nome pegou. Agora o ano era 1821, e Sukey já estava com mais ou menos 55 anos. Ela parecia bem mais velha.

Conhecia mais sobre os segredos do que a velha Sanité Dédé, que vendia doces na frente do Cabildo, e mais do que Marie Saloppé, que se autodenominava a rainha do vodu: ambas eram mulheres livres, de cor, ao passo que Mama Zouzou era escrava, e morreria escrava, de acordo com seu dono.

A moça que veio a ela para descobrir o que havia acontecido ao marido se apresentou como Viúva Paris. Ela andava com o peito inchado e era jovem e orgulhosa. Tinha sangue africano, europeu e índio. Sua pele era avermelhada, os cabelos, pretos e brilhantes. Os olhos eram pretos e desdenhosos. Seu marido, Jacques Paris, estava, talvez, morto. Ele era três quartos branco, como se calculava esse tipo de coisa naquele tempo, e era filho bastardo de uma família rica, um dos muitos imigrantes que haviam fugido de St. Domingo e que tinham nascido livres, assim como sua notável esposa.

— O meu Jacques, ele está morto? — perguntou a Viúva Paris. Ela era uma cabeleireira que ia de casa em casa ajeitando os penteados das senhoras elegantes de New Orleans, antes de seus compromissos sociais tão exigentes.

Mama Zouzou consultou os ossos e então sacudiu a cabeça.

— Ele está com uma branca, em algum lugar ao norte daqui — disse. — Uma mulher branca de cabelos dourados. Ele está vivo.

Isso não era magia. Todo mundo sabia em New Orleans que Jacques Paris havia fugido, e de que cor eram os cabelos da mulher.

Mama Zouzou surpreendeu-se ao perceber que a Viúva não sabia ainda que seu Jacques estava enfiando o pequeno pipi quadrarão toda noite em uma mulher de pele rosada em Colfax. Bom, pelo menos nas noites em que ele não estava tão bêbado para poder utilizá-lo para algo melhor do que mijar. Talvez ela soubesse... ou tinha alguma outra razão para ter vindo.

A Viúva Paris vinha visitar a velha escrava uma ou duas vezes por semana. Depois de um mês, começou a trazer presentes: fitas de cabelo, bolo de sêmola e um galo preto.

— Mama Zouzou — disse a moça —, está na hora da senhora me ensinar o que sabe.

— É — disse Mama Zouzou, que sabia em que direção soprava o vento.

E, além disso, a Viúva confessou que nascera com os dedos dos pés grudados, o que significava que ela era gêmea e que havia matado seu irmão no útero. Que outra escolha Mama Zouzou tinha?

Ela ensinou à moça que duas nozes-moscadas penduradas em um barbante ao redor do pescoço, até o cordão se romper, curavam sopro do coração. Um pombo que nunca voara, cortado no comprimento e colocado sobre a cabeça do paciente, acabava com a febre. Mostrou também como se fazia um patuá, uma bolsinha de couro contendo treze moedas de um centavo, nove sementes de algodão e os pelos de um porco cachaço preto, e como se esfregava a bolsa para fazer com que desejos se realizassem.

A Viúva aprendeu tudo que Mama ensinou a ela. Mas não tinha interesse verdadeiro pelos deuses. Não, mesmo. Seu interesse estava na prática. Ela ficou deliciada ao descobrir o que fazer para segurar um homem... Mergulhe um sapo vivo no mel e depois coloque em um formigueiro. Quando os ossos estiverem limpos e brancos, procure um osso chato, em forma de coração, e outro com um gancho. O osso que tem um gancho deve ser pendurado na roupa daquele que você quer conquistar, enquanto o osso em forma de coração deve ser guardado a salvo (porque, se for perdido, seu amado vai se voltar contra você como um cachorro bravo). Se você fizer isso, aquele que ama será seu.

Ela aprendeu que pó de cobra seca, misturado ao pó facial de uma inimiga, causa cegueira, e que uma inimiga se afoga se você pegar dela uma peça de baixo, virar do avesso e enterrar à meia noite embaixo de um tijolo.

Mama Zouzou mostrou à Viúva Paris a Raiz de Todas as Maravilhas do Mundo, as raízes grandes e pequenas do Conquistador John, mostrou-lhe sangue de dragão, valeriana e grama de cinco pontas. Ensinou como destilar chá da decadência, água siga-me e água de Xangô.

Todas essas coisas e muitas outras. Mama Zouzou ensinou à Viúva. Ainda assim, foi decepcionante para a velha. Ela dava tudo de si para ensinar as verdades escondidas, o conhecimento profundo, para explicar sobre Papa-Legba, Mawu, Aido-Hewdo, a serpente vodum, e sobre todo o resto, mas a senhora (agora devo contar seu nome de nascimento, o mesmo nome que mais tarde a tornou famosa: Marie Laveau. Mas essa não é a grande Marie Laveau, aquela de quem você ouviu falar, essa era a mãe dela, que acabou virando a Viúva Glapion) não tinha interesse nos deuses da terra distante. Se St. Domingue era uma terra negra e fértil, onde os deuses africanos podiam ser cultivados, esta terra, com seu milho e seus melões, seus pitus e seu algodão, era árida e infértil.

 

— Ela não quer saber — Mama Zouzou reclamava para Clémentine, sua confidente.

Clémentine cuidava da lavagem das roupas de muitas das casas naquele distrito, lavando suas cortinas e suas colchas. Tinha uma série de marcas de queimadura na bochecha, e um de seus filhos fora escaldado à morte quando uma panela de cobre virou.

— Então, não ensine nada a ela — diz Clémentine.

— Eu ensino, mas ela não vê o que tem valor... Tudo o que ela vê é o que pode fazer com aquilo. Eu dou diamantes para ela, mas ela só liga para o vidro barato. Eu dou a ela uma meia garrafa do melhor vinho tinto, mas ela só bebe a água do rio. Eu dou codornas, mas ela só quer comer as ratazanas.

— Então, por que você insiste? — pergunta Clémentine. Mama Zouzou dá de ombros, fazendo com que seu braço minguado balance. Ela não sabe responder. Poderia dizer que ensina porque é grata por estar viva, e ela c: viu gente demais morrer. Poderia dizer que sonha que um dia os escravos irão se rebelar, como se rebelaram (e foram derrotados) em LaPlace, mas ela sabe, no fundo do coração, que sem os deuses da África, sem o auxílio de Legba e de Mawu, nunca vencerão seus amos brancos, nunca voltarão para suas terras natais.

Quando ela acordou, no meio daquela noite terrível quase vinte anos antes, e sentiu o aço frio entre as costelas, foi quando a vida de Mama Zouzou acabou. Agora ela era alguém que não vivia, que simplesmente odiava. Se lhe perguntassem a respeito do ódio, ela não seria capaz de falar sobre a menina de 12 anos cm um navio fedorento: aquilo se diluíra em sua mente — chicotadas e espancamentos demais, noites que passara algemada, separações demais, dor demais. No entanto, ela poderia falar sobre o filho, e como cortaram o polegar dele quando o feitor descobriu que o garoto sabia ler e escrever. Poderia ter falado da filha, doze anos e já grávida de oito meses de um fiscal, e como cavaram um buraco no chão para acolher a barriga grávida da filha, e então a chicotearam até que suas costas sangrassem. Apesar do buraco cuidadosamente cavado, sua filha perdeu o bebê e a vida em uma manhã de domingo, quando todo o pessoal branco estava na igreja... Dor demais.

— Adore todos eles — Mama Zouzou dissera à jovem Viúva, no pântano, uma hora depois da meia-noite.

As duas estavam nuas até a cintura, suando na noite úmida... a cor da pele delas acentuada pelo luar branco.

O marido da Viúva Paris (cuja própria morte, três anos depois, teria vários aspectos dignos de nota) falou a Marie um pouco sobre os deuses de St. Domingo, mas ela não ligava. O poder vinha dos rituais, não dos deuses.

Juntas, Mama Zouzou e a Viúva se agacharam, bateram os pés e se lamentaram no pântano. A mulher livre, de cor, e a escrava com o braço minguado cantavam para as cobras negras.

— Existem outras coisas além de você prosperar e seus inimigos caírem — disse Mama Zouzou.

Muitas das palavras das cerimônias, palavras que ela conhecera no passado, palavras que seu irmão também sabia, tinham fugido de sua memória. Ela disse à linda Marie Laveau que as palavras não faziam diferença, só as melodias e as batidas, e lá, cantando e pisando nas cobras negras, no pântano, ela tem uma visão estranha. Ela vê as batidas das canções, a da Calenda, a da Bambula e todos os ritmos da África equatorial se espalhando lentamente pela terra escura até que todo o país treme e balança às batidas dos antigos deuses, cujos reinos ela abandonou. E nem aquilo, ela entende de alguma forma, no pântano, será suficiente.

Ela se volta para a linda Marie e se vê através de seus olhos, uma velha de pele negra, o rosto enrugado, o braço ossudo pendurado rígido ao lado do corpo, os olhos de alguém que viu seus filhos lutarem com os cachorros no cocho para conseguir comida. Ela viu a si mesma, e conheceu ali, pela primeira vez, a repulsa e o medo que a moça tinha por ela.

Então ela riu alto, se abaixou e pegou com a mão boa uma cobra preta tão alta quanto um menininho e tão grossa quanto uma corda de navio.

— Este — ela disse — este aqui vai ser o nosso vodum.

E largou a cobra sem resistência dentro de uma cesta que Marie, amedrontada, carregava.

E então, ao luar, a segunda visão a possuiu por um instante final, e ela viu seu irmão Agasu. Ele não era mais o garoto de doze anos que ela vira no mercado de Bridgeport, mas um homem enorme, careca e sorridente, com seus dentes quebrados, as costas marcadas por cicatrizes profundas. Em uma das mãos ele segurava um facão. Seu braço direito mal era um coto.

Ela esticou sua mão esquerda, a boa.

— Fique, fique aqui um pouco — ela sussurrou. — Eu estou chegando. Vou estar com você logo, logo.

E Marie Paris achou que a velha estivesse falando com ela.

 

Os Estados Unidos têm investido sua religião, assim como sua ética, em sólidas ações lucrativas. O país adotou a posição inexpugnável de ser uma nação abençoada porque merece ser abençoada; e seus filhos, seja quais forem as outras teologias que possam assumir ou desrespeitar apóiam essa crença nacional sem reservas.

Agnes Repplier Times anel Tendencies Shadow dirigia o carro para oeste, cruzou Wisconsin e Minnesota e entrou em Dakota do Norte, onde as colinas cobertas de neve se pareciam com enormes búfalos adormecidos. Ele e Wednesday viam nada além de um monte de nada, quilômetro após quilômetro. Então viraram para o sul, para Dakota do Sul, dirigindo-se para o país das reservas indígenas.

Wednesday tinha trocado o Lincoln Town Car, que Shadow gostava de dirigir, por um Winnebago, um tipo de carro-trailer, pesadão e antigo, que cheirava a gato macho de maneira intensa e inconfundível, e que ele odiava dirigir.

Quando passaram a primeira placa para o Mount Rushmore, ainda a centenas de quilômetros de distância, Wednesday resmungou:

— Isso, sim, é um lugar santo.

Shadow pensou que Wednesday estivesse dormindo.

— Sei que costumava ser sagrado pros índios.

— É um lugar santo — disse Wednesday. — Esse é o "American Way": precisam dar uma desculpa às pessoas para virem e adorarem. Hoje em dia, ninguém pode simplesmente ir até um lugar para olhar uma montanha. O que nos leva aos enormes rostos presidenciais do senhor Gutzon Borgium. Uma vez que foram esculpidos, a licença foi dada, e agora as pessoas vêm em multidões ver ao vivo uma coisa que já viram em milhares de cartões-postais.

— Eu conheci um cara que fazia levantamento de peso lá na Muscle Farm, anos atrás. Ele disse que os índios adolescentes dakota sobem a montanha, formam correntes humanas que desafiam a morte no topo das cabeças, só pró cara da ponta poder mijar no nariz do presidente. Wednesday gargalhou.

— Que maravilha! Muito bom! E algum presidente em especial é o alvo? Shadow deu de ombros.

— Ele não disse.

Os quilômetros desapareciam sob as rodas do Winnebago. Shadow começou a imaginar que estava parado enquanto a paisagem americana se movia ao lado deles a regulares 110 quilômetros por hora. Uma neblina de inverno embaçava as pontas das coisas.

Era meio-dia do segundo dia de viagem, e eles estavam quase chegando. Shadow, pensativo, falou:

— Uma menina desapareceu em Lakeside na semana passada. Quando estávamos em São Francisco.

— Hã?

Wednesday não parecia muito interessado.

— Uma menina chamada Alison McGovern. Ela não é a primeira criança a desaparecer. Elas somem durante o inverno. Wednesday franziu a testa.

— Que tragédia, não é mesmo? As carinhas nas caixas de leite... apesar de eu nem conseguir me lembrar da última vez que vi uma criança em uma caixa de leite... e nas paredes das áreas de descanso das estradas. "Você me viu?", perguntam. Uma questão profundamente existencial na melhor das ocasiões. "Você me viu?" Pegue a próxima saída.

Shadow pensou ter ouvido um helicóptero passar sobre eles, mas as nuvens estavam baixas demais para enxergar alguma coisa.

— Por que você escolheu Lakeside? — perguntou Shadow.

— Já disse. É um lugar legal e calmo pra se esconder. Você é carta fora do baralho lá, fica fora do radar.

— Por quê?

— Porque é assim. Agora, vira à esquerda — disse Wednesday Shadow dobrou à esquerda.

— Tem algo errado — disse Wednesday. — Merda. Puta que o pariu. Diminui, mas não pára.

— Será que dá pra explicar?

— Problema. Você conhece algum caminho alternativo?

— Não. Essa é a primeira vez que eu venho a Dakota do Sul — disse Shadow. — E eu não sei pra onde a gente está indo.

Do outro lado da colina, alguma coisa piscou em vermelho, embaçada por causa da neblina.

— Bloqueio de estrada — disse Wednesday. Ele enfiou a mão bem fundo primeiro em um bolso do terno, depois em outro, procurando alguma coisa.

— Posso parar e dar meia-volta.

— Não dá pra voltar. Eles também estão atrás de nós — disse Wednesday. — Diminua pra uns 20, 30 quilômetros por hora.

Shadow olhou pelo retrovisor. Havia faróis atrás deles, a mais ou menos l quilômetro de distância.

— Tem certeza? — perguntou. Wednesday roncou:

— Tenho tanta certeza quanto ovos são ovos. Como disse o criador de perus quando chocou sua primeira tartaruga. Ah, achei!

E, dizendo isso, tirou do fundo de um bolso um pedacinho de giz branco. Começou a arranhar o painel do carro-trailer com o giz, fazendo marcas como se estivesse resolvendo um problema de álgebra — ou talvez, Shadow pensou, como se fosse um sem-teto, escrevendo longas mensagens para os outros sem-teto em código de sem-teto — cachorro mau aqui, cidade perigosa, mulher boa, cadeia mansa para passar a noite...

— Pronto. Agora aumenta a velocidade para Cinqüenta. E não diminui mais. Um dos carros atrás deles acendeu os faróis e a sirene e acelerou em sua direção.

— Não diminui — Wednesday repetiu. — Eles só querem que a gente diminua antes de chegar no bloqueio.

Tchi. Tchi. Tchi. Fazia o giz contra o painel do carro.

Subiram a colina. O bloqueio estava a menos de 400 metros de distância. Doze carros arrumados sobre a estrada e em um dos lados, viaturas policiais e vários jipes pretos.

— Pronto — disse Wednesday, guardando o giz.

O painel do Winnebago agora estava coberto de rabiscos parecidos com as inscrições de uma runa.

O carro da sirene estava bem atrás deles. Tinha diminuído para ficar na mesma velocidade que eles, e uma voz amplificada gritava: "Encoste!" Shadow olhou para Wednesday.

— Fica à direita — disse Wednesday. — Só sai da estrada.

— Não dá pra dirigir esse negócio no acostamento. Vai capotar.

— Vai ficar tudo bem. Sai pra direita. Agora!

Shadow virou a direção com a mão direita, e o Winnebago deu uma guinada e uma sacolejada. Por um instante, achou que tinha razão, que o carro-trailer capotaria, e foi então que o mundo através do pára-brisa se dissolveu e cintilou, como um reflexo em uma piscina limpa quando o vento roça a superfície da água.

As nuvens, a neblina, a neve e o dia desapareceram.

Agora havia estrelas sobre as cabeças dele, pairando como lanças de luz congeladas, perfurando o céu noturno.

— Estaciona aqui — disse Wednesday. — Podemos andar o resto do caminho. Shadow desligou o motor. Entrou na parte de trás do Winnebago, pegou seu casaco, suas botas e suas luvas. Então desceu do veículo e disse:

— Pronto. Vamos lá.

Wednesday olhou para ele com surpresa e algo mais — talvez irritação. Ou orgulho.

— Por que você não discute comigo? — perguntou Wednesday — Por que você não fala que isso é impossível? Por que diabos você simplesmente faz o que eu mando e aceita tudo com essa porra dessa calma?

— Porque você não me paga pra fazer perguntas — disse Shadow. E então disse, percebendo a verdade à medida que as palavras saíam de sua boca:

— De qualquer maneira, nada mais me surpreende depois da Laura.

— Desde que ela voltou dos mortos?

— Desde que eu soube que ela estava dando pro Robbie. Aquilo doeu. Todo o resto pra mim só é a superfície. Pra onde vamos agora?

Wednesday apontou, e começaram a caminhar. O chão embaixo dos pés deles era de algum tipo de pedra, escorregadia e vulcânica, em algumas partes vitrificada. O ar estava frio, mas não era um frio de inverno. Iam procurando o caminho de maneira desajeitada, montanha abaixo. Havia uma trilha grosseira, c eles a seguiram. Shadow olhou para baixo, para o sopé da montanha.

— Que porra é aquela? — perguntou Shadow.

Mas Wednesday colocou o dedo sobre os lábios e sacudiu a cabeça com severidade. Silêncio.

Parecia uma aranha mecânica, metal azul, luzinhas vermelhas piscando, e era do tamanho de um trator. Estava encolhida no sopé da montanha. Atrás dela tinha uma variedade de ossos, cada um com uma pequena chama ao lado, cintilando um pouco maior do que a de uma vela.

Wednesday fez um gesto para Shadow, para que se mantivesse afastado de tais objetos. Shadow deu um passo extra para o lado, o que foi um erro no caminho vitrificado, porque ele torceu o tornozelo e tropeçou montanha abaixo, rolando, escorregando e se debatendo. Agarrou uma pedra quando passou ao lado dela, e uma protuberância rasgou sua luva de couro como se fosse papel.

Parou no sopé da montanha, entre a aranha mecânica e os ossos.

Apoiou-se no chão para tomar impulso e ficar em pé, e percebeu que havia tocado com a palma da mão em algo que se parecia com um fêmur, e ele estava...

...parado à luz do sol, fumando um cigarro e olhando para o relógio. Havia carros ao redor dele, alguns vazios, outros não. Ele pensava que não deveria ter tomado aquela última xícara de café, porque precisava dar uma mijada com urgência, e aquilo estava começando a ficar desconfortável.

Um dos oficiais da lei local, um homem grande com respiração congelada em seu bigode de morsa, veio até Shadow. Ela já havia esquecido o nome do homem.

— Não sei como perdemos o carro — diz o Oficial de Lei Local, com tom de desculpa e totalmente confuso.

— Foi uma ilusão de ótica — ele responde. — Acontece com condições de tempo malucas como esta. A neblina. Foi uma miragem. Estava passando por alguma outra estrada. Nós pensamos que estava nesta.

O Oficial de Lei Local perece desapontado.

— Ah, eu pensei que talvez fosse uma coisa tipo Arquivo X.

— Temo que não seja nada assim tão excitante.

Ele sofre de hemorróidas ocasionais e seu traseiro acaba de começar a coçar daquele jeito que assinala que uma crise está a caminho. Ele quer voltar para dentro do Beltway. Gostaria que ali tivesse uma árvore para ele ficar atrás: a vontade de mijar está ficando pior. Ele joga o cigarro no chão e pisa em cima.

O Oficial de Lei Local caminha até uma das viaturas policiais e diz alguma coisa para o motorista. Os dois sacodem a cabeça.

Ele tira o telefone do bolso, aperta a tecla menu, troca de tela e encontra o telefone identificado como "Lavanderia", que o divertiu muito quando digitou uma referência a O Agente da Ü.N.C.L.E. Ele olhou e percebeu que não tinha nada a ver, que aquilo era um alfaiate, ele estava pensando em O Agente 86, e ainda se sentia estranho e um pouco envergonhado depois de todos aqueles anos por não ter percebido, quando criança, que aquilo era uma comédia e por ter desejado um sapato-telefone...

Uma voz de mulher no telefone:

— Pois não?

— Aqui é o senhor Town, quero falar com o senhor World.

— Aguarde um momento, por favor. Vou ver se ele pode atender. Silêncio. Town cruza as pernas, puxa o cinto mais para cima da barriga — preciso perder aqueles últimos cinco quilos — e para longe da bexiga. Então, uma voz urbana diz:

— Olá, senhor Town.

— Perdemos o carro.

Ele sente um nó de frustração no estômago: dentro do carro estavam os bastardos, os filhos da puta que mataram Woody e Stone, em nome de Jesus! Bons homens. Ele quer muito comer a senhora Wood, mas sabe que a morte de Woody ainda está muito próxima para fazer uma investida. Por isso ele a leva para jantar fora a cada quinze dias, um investimento no futuro, ela apenas fica grata pela atenção.

— Como?

— Não sei. Montamos um bloqueio na estrada, não tinha nenhum lugar pra eles irem, mas foram pra algum lugar mesmo assim.

— Só mais um pequeno mistério da vida. Não se preocupe. Você acalmou os locais?

— Disse pra eles que tinha sido uma ilusão de ótica.

— E eles acreditaram?

— Provavelmente.

Havia algo muito familiar em relação à voz do senhor World — o que era uma coisa bem estranha de se pensar. Trabalhavam juntos há dois anos, falava com ele todos os dias, claro que havia algo de familiar em sua voz.

— Eles devem estar longe agora.

— Será que devemos mandar gente pra interceptá-los?

— Não vale o incômodo. Tem questões de jurisdição demais, e só posso tirar algumas cartas da manga em uma única manhã. Vamos ter bastante tempo. Só volta pra cá. Estou ocupado tentando organizar o encontro de diretrizes.

— Algum problema?

— É um concurso pra ver quem me irrita mais. Propus que fizéssemos aqui. Os caras da técnica querem que seja em Austin, ou talvez em San José, os jogadores querem em Hollywood, os intangíveis, em Wall Street. Todo mundo quer que seja no seu próprio jardim. Ninguém vai ceder.

— Você quer que eu faça alguma coisa?

— Ainda não. Eu vou rosnar pra alguns caras, dar umas porradas em outros. Você conhece a rotina.

— Sim, senhor.

— Continue com seu trabalho, Town.

A linha cai.

Town pensa que deveria ter contratado um batalhão da S.W.A.T. para pegar aquela porra de Winnebago, ter colocado minas terrestres na estrada, ou uma porra de uma arma nuclear, que teria mostrado que eles realmente estavam com mas intenções. Era como o senhor World dissera certa vez... Estamos escrevendo o futuro cm Letras de Fogo, e o senhor Town pensa que, em nome de Deus, se não mijar agora vai perder um rim, vai simplesmente explodir; era como seu pai dizia quando faziam viagens longas: "Meus dentes de trás estão encharcados"; e o senhor Town podia ouvir aquela voz agora, aquele sotaque forte de ianque dizendo: "Eu preciso dar uma mijada logo. Meus dentes de trás estão encharcados..."

E foi então que Shadow sentiu algo abrindo a sua mão, forçando-a dedo por dedo a largar o fémur que agarrava com força. Ele não precisava mais urinar; aquilo era com outra pessoa. Ele estava parado sob as estrelas em uma planície de pedra vitrificada.

Wednesday fez o sinal de silêncio mais uma vez. Então começou a caminhar, e Shadow o seguiu.

Ouviu-se um rangido vindo da aranha mecânica, e Wednesday congelou seus movimentos. Shadow parou e esperou junto com ele. Luzinhas verdes cintilavam e corriam pelas laterais do animal em fileiras. Shadow tentava não respirar muito alto.

Ele pensou no que acabara de acontecer. Era como olhar através de uma janela na mente de outra pessoa. E então, pensou: O senhor World. Fui eu quem pensou que a voz dele me soava familiar. Aquele foi o meu pensamento, não o de Town. Foi por isso que pareceu estranho. Ele tentou identificar a voz em sua mente, colocá-la na categoria a que pertencia, mas a voz o enganara.

Eu vou me lembrar, pensou Shadow. Mais cedo ou mais tarde, vou me lembrar.

As luzes verdes ficaram azuis, depois vermelhas, depois esmaeceram para um vermelho pálido, e a aranha se ajeitou sobre as ancas metálicas. Wednesday começou a caminhar para a frente, uma figura solitária sob as estrelas, com um chapéu de abas largas, seu casaco escuro, longo e esfarrapado balançando ao sabor do vento de lugar nenhum, seu cajado [ateando o chão vitrificado.

Quando a aranha metálica não passava de um brilho sob a luz das estrelas, bem ao longe, na planície, Wednesday disse:

— Acho que agora é seguro conversar.

— Onde estamos?

— Atrás do palco.

— Perdão?

— Pense como se fosse atrás do palco. Eu acabei de tirar a gente da frente da platéia e agora estamos andando nas coxias. É um atalho.

— Quando encostei naquele osso, eu estava na cabeça de um cara chamado Town. Ele faz parte daquela turma de agentes. Ele odeia a gente.

— Ë.

— Ele tem um chefe chamado senhor World... me lembra alguém, mas não sei quem. Eu estava olhando dentro da cabeça do Town... ou talvez estivesse dentro da cabeça dele. Não tenho certeza.

— Eles sabem pra onde a gente está indo?

— Acho que estão mandando suspender a caça por enquanto. Não querem nos seguir até a reserva. Nós vamos para alguma reserva?

— Talvez.

Wednesday se inclinou sobre seu cajado por um instante, depois continuou a caminhar.

— O que era aquela coisa que parecia uma aranha?

— Uma manifestação de padrão. Um aparelho de busca.

— É perigosa?

— Você só chega à minha idade se sempre esperar pelo pior. Shadow sorriu.

— E que idade é essa?

— Tão velha quanto a minha língua — disse Wednesday. — E alguns meses mais velha do que os meus dentes.

— Você joga com as cartas tão perto do peito — disse Shadow — que eu nem tenho mais certeza se são cartas mesmo.

Wednesday só grunhiu.

Cada montanha que eles alcançavam era mais difícil de escalar.

Shadow começou a sentir uma espécie de dor de cabeça. Aquela luz de estrelas parecia pulsar, de um jeito que ressoava junto com a pulsação em suas têmporas e em seu peito. No sopé da montanha seguinte ele tropeçou, abriu a boca para dizer alguma coisa e, sem aviso, vomitou.

Wednesday colocou a mão em um bolso interno e tirou um pequeno frasco bonito e de linhas modernas.

— Tome um gole disto — disse. — Só um golinho. O líquido era picante, e evaporou na boca como um bom brandy, apesar de não ter gosto de álcool. Wednesday pegou o frasco de volta e guardou no bolso.

— Não é bom pró público ficar andando atrás do palco. É por isso que você está enjoado. Precisamos andar logo e tirar você daqui.

Começaram a andar mais rápido, Wednesday trotava solidamente, Shadow tropeçava de vez em quando, mas se sentia melhor por causa da bebida, que deixou um gosto de casca de laranja, óleo de alecrim, hortelã e cravos em sua boca.

Wednesday pegou no braço dele.

— Pronto — disse, apontando para dois montes idênticos de pedra vitrificada congelada à esquerda deles. — Passe pelo meio daqueles dois montes. Anda do meu lado.

Eles caminharam, e o ar frio e a luz do dia brilhante se abateram sobre o rosto de Shadow ao mesmo tempo.

Estavam a meio caminho de uma montanha baixa. A neblina fora embora, o dia estava ensolarado e frio, o céu, perfeitamente azul. No sopé da montanha havia uma estrada de cascalho, e uma perua vermelha sacolejava por sua extensão como um carro de brinquedo. Uma rajada de fumaça de lenha queimada veio de uma construção próxima. Parecia que alguém tinha pegado uma "casa móvel" e largado ao lado da montanha trinta anos antes. Dava para ver sinais de consertos e de remendos nas paredes e, em alguns lugares, até de extensões.

Quando chegaram à porta, ela se abriu, e um homem de meia-idade com olhos aguçados e uma boca que se parecia com um corte de faca olhou para eles de cima a baixo e disse:

— Ei! Ouvi dizer que dois homens brancos estavam a caminho pra me visitar. Dois brancos em um Winnebago. E ouvi dizer que eles se perderam, como os brancos sempre se perdem, se não tiver placas espalhadas por tudo. E agora olha pra esses dois pobres animais na minha porta. Vocês sabem que estão na terra dos Lakota?

Seu cabelo era cinzento e comprido.

— Desde quando você é Lakota, sua fraude velha? — disse Wednesday. Ele usava um casaco e um boné com protetores de orelha, e já parecia improvável a Shadow que, apenas instantes antes, sob a luz das estrelas, ele vestisse um chapéu afundado na cabeça e uma capa surrada.

— Então, WhiskeyJack, estou morrendo de fome, e meu amigo aqui acabou de vomitar o café da manhã. Você não vai convidar a gente pra entrar?

WhiskeyJack coçou uma das axilas. Usava calças jeans, uma camiseta de baixo cinzenta, como seu cabelo, mocassins e parecia não se incomodar com o frio. Então, disse:

— Gosto daqui. Entre, homem branco que perdeu seu Winnebago. Havia mais fumaça dentro do trailer, e outro homem lá, sentado à mesa. Ele usava uma pele de gamo manchada e estava descalço. Sua pele tinha a cor da cortiça.

Wednesday parecia deliciado.

— Bom — ele disse —, parece que o nosso atraso foi fortuito. WhiskeyJack e Appie Johnny Dois coelhos com uma cajadada só.

O homem sentado à mesa, Appie Johnny, olhou para Wednesday e então colocou uma das mãos no meio das pernas, pegou no saco e disse:

— Errou de novo. Acabei de checar e estou aqui com meu cajado, bem onde deveriam estar.

Ele olhou para Shadow e levantou uma mão, mostrando a parte interna.

— Eu sou John Chapman. Não escuta nada que o seu patrão fala de mim. Ele é um trouxa. Sempre foi. E sempre vai ser. Algumas pessoas só são trouxas, e ponto final.

— Mike Ainsel — disse Shadow. Chapman coçou o queixo sem barbear.

— Ainsel — ele disse. — Isso não é nome. Mas, por enquanto, vou aceitar. Chamam você de quê?

— De Shadow.

— Vou chamar você de Shadow, então. Ei, Whiskey Jack (mas Shadow percebeu que ele não estava falando Whiskey Jack, havia sílabas demais). A comida está saindo?

O homem pegou uma colher de pau e levantou a tampa de uma panela de ferro preta, que fervia na grelha do fogão à lenha.

— Está pronta pra comer — disse.

Pegou quatro tigelas de plástico e, com uma colher, dividiu o conteúdo da panela em cada uma, e as colocou sobre a mesa. Então abriu a porta, deu alguns passos sobre a neve e tirou uma jarra de plástico de um banco de neve. Trouxe o recipiente para dentro e serviu quatro copos grandes de um líquido marrom-amarelado embaçado, que colocou ao lado de cada tigela. Por último, encontrou quatro colheres. Sentou-se à mesa com os outros homens.

Wednesday levantou o copo cheio de suspeita.

— Parece mijo — disse.

— Vocês ainda bebem esse negócio? — perguntou Whiskey Jack. — Vocês, homens brancos, são loucos. Isso aqui é melhor. Então, para Shadow:

— Esse cozido é na maior parte de peru selvagem. O John aqui trouxe o refrigerante de maçã.

— É uma cidra suave — disse John Chapman. — Nunca acreditei em álcool forte. Deixa os homens loucos.

O cozido estava delicioso e a cidra era muito boa. Shadow forçou-se a comer mais devagar, a mastigar a comida, não engoli-la de uma vez, mas estava com mais fome do que podia imaginar. Ele se serviu de mais cozido e de um segundo copo de cidra.

— O Lorde Rumor disse que você anda por aí falando com todo tipo de gente, oferecendo todo tipo de coisas. Diz que você está falando com os velhos do campo de batalha — disse John Chapman.

Shadow e Whiskey Jack lavaram a louça, colocaram os restos do cozido em potes Tupperware. Whiskey Jack colocou os potes nos montes de neve do lado de fora da porta da frente, e colocou uma garrafa de leite vazia em cima do lugar, como referência, para poder encontrá-los novamente.

— Acho que este é um resumo justo e perspicaz dos acontecimentos — disse Wednesday.

— Eles vão vencer — disse Whiskey Jack, na lata. — Já venceram. Você já perdeu. Igual aos brancos com o meu povo. No geral, eles vencem. E quando perdem, fazem acordos. Depois, rompem os acordos. E daí vencem de novo. Não vou lutar por mais uma causa perdida.

— E não adianta nada ficar olhando pra mim — disse John Chapman. — Porque, mesmo se eu lutar pra você, o que não vou fazer, não vou servir pra nada. Os bastardos sarnentos e com rabo de rato tiraram tudo o que podiam de mim e depois me esqueceram.

Ele se calou. Depois disse'.

— Paul Bunyan.

Sacudiu a cabeça lentamente e disse mais uma vez:

— Paul Bunyan.

Shadow nunca havia visto duas palavras tão inócuas soarem tão malditas.

— Paul Bunyan? O que ele fez de tão ruim?

— Ocupou espaço na cabeça — disse WhiskeyJack. Ele catou um cigarro de Wednesday e os dois homens se sentaram juntos para fumar.

— É como aqueles idiotas que concluem que os beija-flores se preocupam com o peso e as cáries ou qualquer besteira dessas, mas talvez só queiram poupar os pássaros dos malefícios do açúcar — explicou Wednesday. — Então enchem as garrafinhas de plástico com uma porra de um adoçante artificial. Os passarinhos vêm e bebem. Depois morrem, porque a comida não contém nenhuma caloria, apesar de as barriguinhas deles estarem cheias. Isso é a mesma coisa que Paul Bunyan é pra você. Ninguém nunca contou nenhuma história a seu respeito. Ninguém nunca acreditou em Paul Bunyan. Ele saiu se sacudindo de uma agência de Nova York, em 1910, e encheu a barriga do país com calorias vazias.

— Eu gosto do Paul Bunyan — disse WhiskeyJack. — Fui no brinquedo dele, no Shopping Center das Américas, alguns anos atrás. Você vê o grande Paul no topo, e daí cai com tudo. Splash! Pra mim, ele é OK. Eu não ligo pro fato de que ele nunca existiu, quer dizer, de que nunca cortou nenhuma árvore. Não é tão bom quanto plantar árvores. Isso seria melhor.

— Você já falou besteira demais — disse Johnny Chapman. Wednesday soprou um anel de fumaça, que ficou flutuando no ar, dissipando-se lentamente em fiapos e voltas.

— Caramba, Whiskey Jack, não é isso que a gente quer dizer, e você sabe muito bem.

— Não vou ajudar. Quando chutarem a sua bunda, você pode voltar e, se eu ainda estiver aqui, vou dar comida de novo pra você. A gente consegue a melhor comida no outono.

Wednesday disse:

— Todas as alternativas são piores.

— Você não faz a mínima idéia de qual sejam as alternativas — falou Whiskey Jack.

Então, olhou para Shadow:

— Vocês estão caçando.

A voz dele tinha endurecido pela fumaça da lenha e pelos cigarros.

— Eu estou trabalhando — disse Shadow. WhiskeyJack sacudiu a cabeça.

— Você também está caçando alguma coisa. Tem uma dívida que quer pagar. Shadow pensou nos lábios azulados de Laura e no sangue em suas mãos, e assentiu com a cabeça.

— Ouça. A raposa estava aqui primeiro e o irmão dela era o lobo. A raposa disse que as pessoas vão viver pra sempre. Se morrerem, não vão ficar mortas por muito tempo. O lobo disse que não, as pessoas vão morrer, as pessoas precisam morrer, elas precisam morrer, ou vão se espalhar e cobrir o mundo, e comer todos os salmões e todos os caribus, e todos os búfalos, vão comer todas as abóboras e todo o milho. Daí um dia o lobo morreu, e disse pra raposa trazê-lo de volta à vida. E a raposa disse que não, os mortos têm que ficar mortos. Você me convenceu disso. E ela chorou quando disse aquilo. Mas ela disse aquilo, e ponto final. Agora o lobo manda no mundo dos mortos e a raposa vive pra sempre sob o sol e sob a lua, e ainda chora pelo irmão. Wednesday disse:

— Se vocês não vão me ajudar, então não ajudem. Nós vamos seguir em frente.

O rosto de WhiskeyJack estava impassível.

— Estou falando com este moço aqui. Você está além da ajuda. Ele, não. Virou-se novamente para Shadow:

— Conta pra mim o seu sonho — disse WhiskeyJack. Shadow disse:

— Eu estava escalando uma montanha de caveiras. Havia uns pássaros enormes voando ao redor com relâmpagos nas asas. Estavam me atacando. A torre caiu.

— Todo mundo sonha — disse Wednesday. — Podemos cair na estrada?

— Nem todo mundo sonha com o Wakinyau, o pássaro-trovão — interveio WhiskeyJack. — Sentimos o eco do sonho aqui.

— Eu disse pra você — falou Wednesday. — Jesus.

— Tem um ninho de pássaros-trovão na Virgínia Ocidental — disse Chapman, como quem não quer nada. — Umas duas fêmeas e pelo menos um macho velho. Também tem um casal aqui nesta terra, costumavam chamar de Estado de Franklin, mas o velho Ben nunca conseguiu o Estado dele, entre o Kentucky e o Tennessee. Claro que nunca existiram muitos, nem no melhor dos tempos.

WhiskeyJack esticou a mão da cor-de-barro vermelho e tocou no rosto de Shadow, suavemente.

— Ei, é verdade. Se você caçar o pássaro-trovão, vai poder trazer sua mulher de volta. Mas ela pertence ao lobo. No lugar dos mortos, não deve ficar andando na terra.

— Como é que vocês sabem? — perguntou Shadow. Os lábios de WhiskeyJack não se moveram.

— O que foi que o búfalo disse pra você?

— Pra acreditar.

— Bom conselho. Você vai seguir?

— Mais ou menos. Acho que sim.

Conversavam sem a boca, sem palavras, sem som. Shadow ficou imaginando se, para os outros dois homens na sala, pareceu que eles estiveram imóveis por um piscar de olhos, ou por uma fração de piscar de olhos.

— Quando você encontrar sua tribo, volte aqui pra falar comigo — disse WhiskeyJack. — Eu posso ajudar.

— Vou voltar.

WhiskeyJack abaixou a mão. Então, voltou-se para Wednesday.

— Você vai pegar seu Ho Chunk?

— Meu o quê?

— Ho Chunk. É assim que os Winnebagos se chamam. Wednesday sacudiu a cabeça.

— É muito arriscado. Recuperar o carro pode ser problemático. Vão estar procurando por ele.

— É roubado?

Wednesday fez ar de afrontado.

— Nem um pouco. Os documentos estão no porta-luvas.

— E as chaves?

— Estão comigo — disse Shadow.

— Meu sobrinho, Harry Bluejay, tem um Buick 81. Por que não me dá as chaves do seu trailer? Você pode ficar com o carro dele. Wednesday se enfureceu:

— Que tipo de troca é essa? Whiskey Jack deu de ombros.

— Você sabe como vai ser difícil recuperar o seu carro naquele lugar? Estou fazendo um favor. É pegar ou largar. Eu não estou nem aí.

E, dizendo isso, fechou a boca de corte de faca.

Wednesday parecia bravo, e então a raiva se transformou em arrependimento, e disse:

— Shadow, dê as chaves do Winnebago pro homem. Shadow entregou as chaves do carro para WhiskeyJack.

— Johnny — disse WhiskeyJack —, você leva esses homens até o Hany Bluejay? Diz a ele que eu mandei entregar o carro pra eles.

— Com prazer — disse John Chapman.

Ele se levantou e caminhou até a porta, pegou um saquinho de lona e saiu. Shadow e Wednesday o seguiram. WhiskeyJack ficou esperando na soleira.

— Ei! — ele disse para Wednesday. — Não volte aqui. Você não é bem-vindo. Wednesday apontou para o próprio sexo.

— Senta aqui e roda — disse, de maneira afável. Desceram a montanha, abrindo caminho através dos montes de neve. Chapman ia na frente, os pés vermelhos contra as camadas de neve branca.

— Você não está com frio? — perguntou Shadow.

— Minha mulher era Choctaw — comentou Chapman.

— E ela ensinou um jeito mágico para você não passar frio?

— Não. Ela pensava que eu era louco. Costumava dizer "Johnny, por que você não calça as botas?"

A descida da montanha ficou mais íngreme, e foram forçados a parar de conversar. Os três homens tropeçavam e escorregavam na neve, usando os troncos das bétulas na encosta para se firmarem no chão e não caírem. Quando o solo ficou um pouco mais nivelado, Chapman disse:

— Ela está morta agora, claro. Quando morreu, acho que fiquei um pouco louco. Poderia ter acontecido com qualquer um. Poderia acontecer com você. Ele bateu no braço de Shadow com a mão:

— Por Jesus e Jeová, você é um cara grande.

— É o que dizem por aí.

Tropeçaram pela encosta por cerca de meia hora, até chegarem à estrada de cascalho que fazia curvas ao sopé da montanha, e os três homens começaram a percorrer a estrada, em direção ao aglomerado de construções que tinham visto de cima da montanha.

Um carro diminuiu a marcha e parou. A mulher que dirigia esticou a mão, abaixou o vidro do passageiro e disse:

— Oi, rapazes, querem uma carona?

— A senhora é muito gentil, moça — comentou Wednesday. — Estamos procurando um tal de senhor Harry Bluejay.

— Ele vai estar no salão de recreação. Shadow supôs que ela tivesse uns 40 anos.

— Entrem.

Eles entraram. Wednesday ocupou o assento do passageiro, John Chapman e Shadow ficaram no banco de trás. As pernas de Shadow eram grandes demais para que ele se acomodasse na traseira com conforto, mas fez o melhor que pôde. O carro precipitou-se para a frente, seguindo na estrada de cascalho.

— Então, de onde é que vocês três estão vindo? — perguntou a motorista.

— Só estávamos visitando um amigo — respondeu Wednesday.

— Ele mora naquela montanha lá atrás — disse Shadow.

— Que montanha? — ela perguntou.

Shadow olhou para trás através do vidro empoeirado, em direção à montanha. Mas não havia nenhuma montanha... nada além de nuvens nas planícies.

— WhiskeyJack — ele disse.

— Ah. A gente chama ele de Inktomi. Acho que é o mesmo cara. Meu avô costumava contar umas histórias ótimas sobre ele. Claro que as melhores eram meio sujas.

Passaram dentro de um buraco e a mulher xingou alto.

— Tudo bem aí atrás?

— Tudo bem, moça — disse Johnny Chapman. Ele se agarrava ao assento com as duas mãos.

— Estradas de reserva. Você acaba se acostumando com elas.

— Todas são assim? — perguntou Shadow.

— A maioria. Todas que ficam por aqui. E nem comece a perguntar a respeito de todo o dinheiro dos cassinos, porque quem é que, em sã consciência, ia vir até aqui pra jogar em um cassino? A gente não vê nem um pouco daquele dinheiro por aqui.

— Sinto muito.

— Não sinta.

Ela trocou de marcha com uma pancada e um ruído.

— Sabia que toda a população branca daqui está sumindo? Você sai por aí, só encontra cidades-fantasma. Como é que você vai querer que eles fiquem na fazenda, depois de terem visto o mundo pela tela da televisão? E não vale a pena pra ninguém querer cultivar essas terras ruins. Pegaram nossas terras, se instalaram aqui, e agora estão indo embora. Eles vão pró sul, vão pró oeste... Talvez, se a gente esperar tempo bastante pra todos eles se mudarem pra Nova York, pra Miami e pra L.A., a gente possa pegar todo o centro de volta sem lutar.

— Boa sorte — disse Shadow.

Encontraram Harry Bluejay no salão de recreação, na mesa de sinuca, dando tacadas de efeito para impressionar um grupo de meninas. Ele tinha um corvo azul tatuado nas costas da mão direita, e diversos piercings na orelha direita.

— Ho hoka, Harry Bluejay — disse John Chapman.

— Vai se foder, seu fantasma branco louco de pé descalço — disse Harry Bluejay, em tom de conversa. — Você me dá arrepios.

Havia homens mais velhos do outro lado da sala, alguns jogando baralho, outros conversando. Outros homens, mais jovens, mais ou menos da idade de Harry Bluejay, esperavam pela sua vez na mesa de sinuca. Era uma mesa de sinuca de tamanho oficial, com um rasgo no feltro verde em uma das laterais, remendado com um pedaço de silver tape.

— Tenho um recado do seu tio — disse Chapman, inabalável. — Ele falou que você tem que dar o seu carro para esses dois homens.

Deveriam ser trinta, talvez até quarenta pessoas naquele salão, e agora cada uma delas olhava intensivamente para suas cartas de baralho, para os seus pés ou para as suas unhas, e fingiam o melhor que podiam não estar escutando nada.

— Ele não é meu tio.

Um cheiro estagnado de fumaça pairava no salão. Chapman sorriu abertamente, mostrando a pior exibição de dentes que Shadow já tinha visto em uma boca humana.

— Você quer ir lá falar isso pró seu tio? Ele diz que você é a única razão que tem pra ficar entre os Lakota.

— O WhiskeyJack fala um monte de coisas — disse Harry Bluejay, com petulância.

Mas ele também não disse Whiskey Jack. Soava quase igual, aos ouvidos de Shadow, mas não muito: Wisahedjack, pensou. Era aquilo que eles diziam. Nada a ver com WhiskeyJack.

Shadow falou:

— Só. E uma das coisas que ele disse é que a gente ia trocar nosso Winnebago pelo seu Buick.

— Não estou vendo Winnebago nenhum.

— Ele vai trazer o Winnebago — disse John Chapman. — Você sabe que ele traz. Harry Bluejay tentou dar uma tacada de efeito e errou. Sua mão não estava suficientemente firme.

— Eu não sou sobrinho daquela raposa velha. E gostaria que ele não ficasse falando isso pra todo mundo.

— Ë melhor uma raposa viva do que um lobo morto — disse Wednesday, com uma voz tão profunda que mais parecia um rugido. — Então, você vai entregar seu carro?

Harry Bluejay tremeu, visível e violentamente:

— Claro, claro. Eu só estava brincando. Eu faço muita piada. Largou o taco de sinuca na mesa e pegou um casaco grosso do meio de um amontoado de jaquetas parecidas penduradas em ganchos, ao lado da porta.

— Deixa eu tirar as minhas porcarias de dentro do carro primeiro. Ele lançava olhares para Wednesday, como se achasse que o homem de mais idade estivesse prestes a explodir.

O carro de Harry estava estacionado a uma centena de metros dali. Quando caminharam na direção dele, passaram na frente de uma igrejinha católica caiada, e um homem com uma camisa com gola de padre ficou olhando para eles à medida que se moviam. Tragava um cigarro como se não gostasse de fumar.

— Bom dia pró senhor! — gritou Johnny Chapman.

Mas o homem não respondeu; esmagou o cigarro sob o salto do sapato, pegou a bituca, jogou na lata ao lado da porta e entrou.

O carro não tinha espelhos retrovisores externos, e os pneus eram os mais carecas que Shadow já vira: borracha preta perfeitamente lisa. Harry disse a eles que o carro bebia óleo, mas era só repor o tempo todo e ele ia andar para sempre, a não ser que parasse.

Harry encheu um saco preto de lixo com porcarias do carro (várias garrafas long-neck de cerveja barata pela metade, um pacote pequeno de maconha prensada enrolado em papel-alumínio e mal escondido no cinzeiro do carro, um rabo de gambá, duas dúzias de fitas de música country e uma cópia barata e surrada de Um Estranho Numa Terra Estranha).

— Desculpa ter tirado um sarro de você — disse Harry a Wednesday, entregando as chaves do carro a ele. — Você sabe quando eu vou pegar o Winnebago?

— Pergunta pró seu tio. Ele é que é a porra do vendedor de carros usados — grunhiu Wednesday.

— Wisakedjak não é meu tio — disse Harry Bluejay.

Ele pegou o saco de lixo preto, entrou na casa mais próxima e fechou a porta atrás de si.

Deixaram Johnny Chapman próximo a Sioux Falis, na frente de uma quitanda.

Wednesday não falou nada durante o trajeto. Estava fechado em uma carranca sombria desde que saíram da casa de WhiskeyJack.

Em um restaurante caseiro nos limites de St. Paul, Shadow pegou um jornal que alguém havia largado. Olhou uma vez, depois mais uma, depois mostrou a Wednesday.

— Olhe isso — disse Shadow.

Wednesday suspirou, olhou para o jornal e disse:

— Fico encantando em saber que a briga por salários dos controladores aéreos foi resolvida sem precisar recorrer à ação industrial.

— Não isso — disse Shadow. — Olha. Diz aqui que hoje é dia 14 de fevereiro.

— Feliz Dia dos Namorados.

— Mas a gente saiu dia o quê? 20? 21 de janeiro? Eu não estava marcando as datas, mas foi na terceira semana de janeiro. Nós passamos três dias na estrada, no total. Então, como hoje é dia 14 de fevereiro?

— Porque nós caminhamos quase durante um mês — disse Wednesday. — Nas terras ruins. Atrás do palco.

— Que atalho bom, esse seu — disse Shadow. Wednesday empurrou o jornal para longe.

— Caralho de Johnny Appieseed, sempre falando do Paul Bunyan. Na vida real o Chapman tinha catorze pomares de maçã. Ele cultivava milhares de acres.

É, ele se mantinha no mesmo ritmo que a fronteira oeste, mas não tem por aí nenhuma história a respeito dele com uma só palavra de verdade, a não ser uma que conta sobre quando ele enlouqueceu. Mas não importa. Como os jornais costumavam dizer, se a verdade não for suficientemente grande, manda imprimir a lenda. Este país precisa de lendas. E nem as próprias lendas acreditam nelas mesmas mais.

— Mas você percebe tudo isso.

— Eu já era. Quem se importa comigo, porra? Shadow disse suavemente:

— Você é um deus.

Wednesday lançou para ele um olhar penetrante. Ele parecia estar prestes a dizer algo, mas então se afundou em sua cadeira, olhou para o cardápio e disse:

— E daí?

— Ë bom ser um deus.

— É mesmo?

Dessa vez, foi Shadow que olhou para o outro lado.

Em um posto de gasolina a 40 quilômetros de Lakeside, na parede próxima aos banheiros, Shadow viu um aviso caseiro em xerox: uma foto em branco-e-preto de Alison McGovern e a pergunta escrita à mão Você me viu? em cima dela. A mesma fotografia de anuário escolar: sorrindo, segura de si, uma menina com aparelho fixo nos dentes de cima que quer trabalhar com bichos quando crescesse.

Você me viu?

Shadow comprou uma barra de chocolate Snickers, uma garrafa de água e um exemplar do jornal Lakeside News. A reportagem da dobra superior, escrita por Marguerite Olsen, nossa repórter de Lakeside, mostrava a foto de um menino e de um homem mais velho, no lago congelado, parados na frente de uma cabana de pescar que mais se parecia com um banheiro externo, segurando um enorme peixe. Eles sorriam. Pai e filho batem o recorde local de pesca. Leia a reportagem completa nesta edição.

Wednesday dirigia. Ele disse:

— Lê pra mim qualquer coisa interessante que achar no jornal.

Shadow olhou com cuidado e virou as páginas lentamente. Mas não conseguiu encontrar nada.

Wednesday deixou-o na entrada da garagem do prédio. Um gato cor-de-fumaça olhava para ele na passagem, então fugiu quando ele tentou acariciá-lo.

Shadow parou na varanda de madeira do lado de fora de seu apartamento e olhou para o lago, salpicado aqui e ali por cabanas de pesca verdes e marrons. Muitas delas tinham carros estacionados ao lado. Sobre o gelo, bem perto da ponte, repousava a lata velha verde, da mesma maneira que aparecia no jornal.

— Dia 23 de março — disse Shadow, encorajando o carro. — Por volta das 9hl5 da manhã. Você consegue.

— Sem chance — disse uma voz de mulher. — Dia 3 de abril. As 3h da tarde. Assim o dia esquenta o gelo.

Shadow sorriu. Marguerite Olsen vestia um macacão de esqui. Ela estava na outra ponta da varanda, enchendo o pote de comida dos pássaros.

— Li a sua reportagem no Lakeside News sobre Recorde da Cidade de Pesca de Perca.

— Excitante, hein?

— Bom, educativo talvez.

— Eu achei que não ia mais voltar pra nós. Você ficou fora um bom tempo, hein?

— Meu tio precisou de mim — disse Shadow. — Perdemos a noção do tempo. Ela colocou o último quadradinho de sebo na gaiola e começou a encher uma meia-calça tipo arrastão cortada com sementes de uma garrafa de leite de plástico. Vários pintassilgos, com penas verde-oliva por causa do inverno, piavam impacientemente, empoleirados em um pinheiro próximo.

— Não vi nada sobre Alison McGovern no jornal.

— Não tinha nada pra escrever. Ela ainda está desaparecida. Houve um rumor de que teria sido vista em Detroit, mas foi só um alarme falso.

— Coitadinha.

Marguerite Olsen atarraxou a tampa da garrafa de leite.

— Espero que esteja morta — disse, secamente. Shadow ficou chocado.

— Por quê?

— Porque as outras alternativas são piores.

Os pintassilgos pulavam freneticamente de um galho para o outro no pinheiro, impacientes para que as pessoas fossem embora logo.

Você não está pensando na Alison, pensou Shadow. Você esta pensando no seu filho. Você está pensando no Sandy.

Ele se lembrou de alguém dizendo Eu sinto saudade ao Sandy. Quem era mesmo?

— Foi bom conversar com você.

— Ë — ela disse. — Foi sim.

Fevereiro passou em uma sucessão de dias curtos e cinzentos. Às vezes a neve caía, mas, na maior parte dos dias, não. O tempo esquentou, e nos dias bons a temperatura ficava acima do grau de congelamento. Shadow ficou dentro do apartamento até que o lugar começasse a se parecer com uma cela de prisão e, então, nos dias em que Wednesday não precisava que ele viajasse, começou a caminhar.

Caminhava durante a maior parte do dia, longas pernadas para longe da cidade. Caminhava, sozinho, até chegar à floresta ao norte e ao oeste, ou até os campos de milho e os pastos de gado ao sul. Ele caminhou pela Trilha Selvagem do Condado de Lumber e pelos antigos trilhos de trem, e andou pelas estradas vicinais. Algumas vezes, caminhou acompanhando a margem do lago, de norte a sul. Eventualmente, via habitantes locais ou turistas de inverno ou gente correndo para se exercitar, e ele acenava e dizia oi. Na maior parte das vezes, não via ninguém, apenas corvos e pintassilgos, ou um falcão se refestelando em um porco do mato ou em um guaxinim morto na estrada. Em uma ocasião memorável, assistiu a uma águia pescar um peixe prateado do meio do rio White Pine, a água congelada nas margens, mas ainda correndo e gorgolejando no centro. O peixe sacudia e se contorcia nas garras da águia, brilhando ao sol do meio-dia;

Shadow imaginou o peixe se libertando e nadando através do céu, e sorriu, de modo assustador.

Quando caminhava, descobriu, não precisava pensar, e era bem assim que ele gostava de ficar; quando pensava, sua mente ia a lugares que não conseguia controlar, a lugares que o incomodavam. A exaustão era a melhor coisa. Quando estava exausto, seus pensamentos não se voltavam para Laura, ou para os sonhos estranhos, ou para coisas que não eram e não podiam ser. Voltava para casa depois da caminhada e dormia sem dificuldade e sem sonhar.

Cruzou com o delegado Chad Muiligan na barbearia do George, na praça central. Shadow sempre esperava muito de cortes de cabelo, mas nunca alcançavam suas expectativas. Depois de cada corte de cabelo, ficava mais ou menos com a mesma cara, só que com o cabelo mais curto. Chad, sentado na cadeira de barbeiro ao lado de Shadow, parecia surpreendentemente preocupado com sua própria aparência. Quando o corte estava pronto, ele olhou sorrindo para o seu próprio reflexo, como se estivesse se preparando para dar uma multa de velocidade.

— Está bom — Shadow disse a ele.

— Seria bom se você fosse uma mulher?

— Acho que sim.

Cruzaram a praça até a Mabel's juntos e pediram canecas de chocolate quente. Chad disse:

— Ei. Mike. Você já pensou em seguir carreira do lado da lei? Shadow deu de ombros.

— Não posso dizer que pensei. Parece que tem um monte de coisas que é preciso saber.

Chad sacudiu a cabeça.

— Sabe, a parte principal do trabalho na polícia, num lugar assim como este, é manter a cabeça no lugar. Uma coisa acontece, alguém vem gritar com você, começa a falar de assassinato, e você simplesmente precisa ser capaz de dizer que aquilo tudo é um engano, e que vai resolver tudo se a pessoa sair calmamente. E tem que ser capaz de falar de coração.

— E daí você resolve?

— Na maior parte das vezes, só quando coloco algemas em alguém. Mas você faz o que pode para resolver. Se quiser um emprego, venha falar comigo. Estamos contratando. E você é o tipo de cara que a gente quer.

— Vou me lembrar disso, se o negócio com o meu tio não der certo. Os dois deram goles em seus chocolates quentes. Mulligan disse:

— Diga, Mike, o que você faria se tivesse uma prima. Tipo uma viúva. E ela começasse a ligar pra você?

— Ligar pra você? Como assim?

— Pelo telefone. DDD. Ela mora em outro Estado. Suas bochechas ficaram vermelhas:

— A gente se viu no ano passado, em um casamento de família. Mas naquele tempo ela estava casada, quer dizer, o marido dela ainda era vivo, e ela é da família. Não é prima-irmã. Bem distante.

— Você sente alguma coisa por ela? Vermelho.

— Não sei.

— Bom, então vamos colocar de outro jeito. Ela sente alguma coisa por você?

— Bem, ela disse umas coisas quando ligou. É uma mulher muito bonita.

— Então... o que você vai fazer a respeito?

— Eu podia pedir pra ela vir aqui. Podia fazer isso, não podia? Ela deu a entender que gostaria de vir.

— Vocês dois são adultos. Eu diria vai fundo.

Chad assentiu com a cabeça, e ficou vermelho, e assentiu com a cabeça de novo.

O telefone no apartamento de Shadow estava silencioso e mudo. Ele pensou em mandar ligá-lo, mas não conseguiu pensar em ninguém para quem quisesse ligar. Certa noite, bem tarde, pegou o fone e ficou escutando, e convenceu-se de que conseguia ouvir um vento soprando e uma conversa distante entre um grupo de pessoas falando tão baixo que não dava para distinguir o que diziam. Ele disse "Alo?" e "Quem está aí?", mas não obteve resposta, só um silêncio repentino e então o som longínquo de risadas, tão fraco que ele não teve certeza se estava imaginando aquilo ou não.

Shadow fez mais algumas viagens com Wednesday nas semanas seguintes.

Ficou esperando na cozinha de um chalé em Rhode Island. Ouviu enquanto Wednesday se acomodava em um quarto escuro e discutia com uma mulher que se recusava a sair da cama e não deixava nem Wednesday nem Shadow olharem para o seu rosto. Na geladeira havia um saco plástico cheio de grilos, e outro cheio de cadáveres de ratos-bebês.

Em uma casa noturna de rock em Seattle, Shadow assistiu Wednesday gritar seu cumprimento, por cima do barulho da banda, para uma jovem com cabelos vermelhos curtos e tatuagens azuis em forma de espiral. Aquela conversa deve ter corrido bem, porque Wednesday saiu de lá sorrindo de prazer.

Cinco dias mais tarde, Shadow esperava no carro alugado enquanto Wednesday saía com a cara amarrada do saguão de um prédio de escritórios em Dálias. Wednesday bateu a porta do carro quando entrou, e sentou-se em silêncio, com o rosto vermelho de raiva.

— Dá a partida. Depois, disse:

— Albaneses do caralho. Como se alguém ligasse.

Três dias depois daquilo, pegaram um avião para Boulder, onde tiveram um almoço agradável com cinco moças japonesas. Foi uma refeição de gracejos e polidez, e Shadow saiu de lá sem ter certeza de que alguma coisa ficara combinada ou resolvida. Wednesday, no entanto, parecia bastante contente.

Shadow começou a ficar ansioso para voltar para Lakeside. Havia paz lá. Ele era bem-vindo e gostava disso.

Toda manhã, quando não estava viajando, pegava o carro e cruzava a ponte até a praça central. Comprava duas empanadas na Mabel's; comia uma delas ali mesmo e tomava café. Se alguém tivesse deixado um jornal por ali, ele o lia. Apesar de nunca ter interesse suficiente em jornais para comprar um.

Guardava a segunda empanada no bolso, embalada em seu saco de papel, e a comia no almoço.

Certo dia ele estava lendo o jornal USA Today quando Mabel disse:

— Ei, Mike. O que você vai fazer hoje?

O céu estava azul-claro. A névoa da manhã tinha deixado as árvores cobertas de geada.

— Não sei. Acho que vou dar um passeio naquela trilha da floresta de novo. Ela encheu sua xícara de café.

— Você já foi pro leste, pro condado Q? Ë muito bonito por lá. É uma estradinha que começa na frente da loja de tapetes, na avenida Vinte.

— Não. Nunca fui.

— Bom, é bem bonito.

Era extremamente bonito. Shadow estacionou o carro nos limites da cidade e andou pelo acostamento da estrada, uma estradinha local cheia de curvas que se enrolava nas montanhas, a leste da cidade. Cada uma das montanhas estava coberta por bordos desfolhados, bétulas que se pareciam com esqueletos brancos, abetos e pinheiros escuros.

A certa altura, um pequeno gato preto começou a acompanhá-lo no acostamento. Tinha cor de sujeira, com as pontas das patas brancas. Ele andou na direção do bicho. O gato não fugiu.

— Ei, gato — disse Shadow, sem vergonha nenhuma.

O gato virou a cabeça para o lado, olhou para ele com olhos cor-de-esmeralda. Então fez aquele barulho parecido com um assobio que os gatos fazem quando estão bravos, mas não foi para ele, e sim para algo do outro lado da estrada, alguma coisa que Shadow não conseguia enxergar.

— Calma — disse Shadow.

O gato se afastou, cruzou a estrada e sumiu no meio de um campo de milho velho sem colher.

Depois da curva seguinte da estrada, Shadow deparou com um cemitério minúsculo. As lápides estavam gastas pelo tempo, apesar de muitas delas estarem enfeitadas com ramalhetes de flores frescas. Não havia muro ao redor do cemitério, nem cerca, apenas árvores baixas de amora, plantadas nos limites do terreno, encurvadas por causa do gelo e da idade. Shadow pisou sobre o gelo amontoado e sobre a neve derretida no acostamento da estrada. Dois postes de pedra marcavam a entrada do cemitério, apesar de não haver portão entre eles. Shadow entrou no cemitério.

Ficou passeando por ali, olhando as lápides. Não havia nenhuma inscrição posterior a 1969. Tirou a neve de um anjo de granito que parecia ser firme e recostou-se nele.

Retirou o saco de papel do bolso e pegou a empanada lá de dentro. Quebrou a pontinha com os dedos: um fraco respiro de vapor saiu para o ar gelado. Cheirava muito bem. Deu uma mordida.

Alguma coisa se moveu atrás dele. Por um instante, achou que fosse o gato, mas então sentiu cheiro de perfume e, sob o perfume, o cheiro de algo podre.

— Por favor, não olhe pra mim — ela disse atrás dele.

— Oi, Laura.

Sua voz estava hesitante, ele pensou, até um pouco assustada.

— Oi, cachorrinho.

Ele quebrou um pedaço da empanada.

— Quer um pouco? — perguntou.

Agora ela estava parada imediatamente atrás dele.

— Não. Come você. Eu não como mais comida. Ele comeu sua empanada. Estava boa.

— Eu quero olhar pra você — ele disse.

— Você não vai gostar.

— Por favor...

Laura deu a volta no anjo de pedra. Shadow olhou para ela, à luz do dia. Algumas coisas estavam diferentes e outras eram iguais. Seus olhos não tinham mudado, nem a esperança distorcida de seu sorriso. E ela estava, obviamente, muito morta. Shadow levantou-se e colocou as migalhas dentro do saco de papel, depois o dobrou e guardou-o de volta no bolso.

A temporada que passara na funerária, no Cairo, de alguma maneira fez com que fosse mais fácil estar na presença dela. Ele não sabia o que dizer.

Sua mão fria procurou a dele, que a apertou suavemente. Sentia o coração batendo no peito. Estava com medo, mas o que o assustava era a normalidade daquele momento. Sentia-se tão confortável com ela ao seu lado que poderia ter ficado ali para sempre.

— Sinto saudades de você — ele confessou.

— Estou aqui.

— É quando eu sinto mais saudade de você. Quando está aqui. Quando não está, quando você é só um fantasma do passado ou um sonho de uma outra vida, é mais fácil.

Ela apertou os dedos dele.

— Então — ele perguntou —, como vai a morte?

— Difícil. Vou tocando.

Laura colocou a mão no seu ombro, e isso quase fez com que ele desmoronasse.

— Quer caminhar um pouco comigo?

— Claro.

Ela sorriu para ele, um sorriso nervoso e torto em um rosto morto. Saíram do pequeno cemitério e percorreram o caminho de volta pela estrada, em direção à cidade, de mãos dadas.

— Por onde você tem andado? — ela perguntou.

— Aqui. Na maior parte do tempo.

— Desde o Natal, eu meio que perdi você de vista. Às vezes sabia onde estava, durante algumas horas ou alguns dias. Você estava lá, inteiro. Depois desaparecia de novo.

— Eu estava nesta cidade. Lakeside. É uma cidadezinha boa.

— Ah!

Ela não estava mais usando o tailleur azul com que foi enterrada. Agora usava vários suéteres, uma saia longa e escura e botas cor-de-vinho de salto alto. Shadow comentou sobre o calçado.

Laura abaixou a cabeça e sorriu.

— Não são botas lindas? Encontrei em uma loja de sapatos ótima em Chicago.

— Então, por que você resolveu vir de Chicago pra cá?

— Ah, faz um bom tempo que não vou a Chicago, cachorrinho. Eu estava indo pró sul. O frio estava me incomodando. Você deve pensar que eu iria gostar de passar frio, mas tem a ver com estar morta, acho. Você não sente assim tanto frio... sente um tipo de nada, e quando se está morta, acho que a única coisa que assusta é nada. Eu estava indo pró Texas. Pensei em passar o inverno em Galveston. Acho que costumava viajar para lá no inverno quando criança.

— Acho que não. Você nunca falou sobre isso antes.

— Não? Talvez então lenha sido alguma outra pessoa. Não sei. Eu me lembro de gaivotas... de jogar pão no ar pra elas, centenas delas, o céu se transformando em um monte de gaivotas à medida que batiam as asas e pegavam o pão.

Ela fez uma pausa.

— Se não fui eu que vi, alguma outra pessoa viu. Um carro fez a curva. O motorista acenou para eles, Shadow devolveu o cumprimento. Parecia maravilhosamente normal passear com sua mulher.

— Isso aqui é muito bom — disse Laura, como se estivesse lendo a mente dele.

— É.

— Quando o chamado veio, eu tive que voltar correndo. Eu mal tinha chegado ao Texas.

— Chamado?

Ela olhou para ele. Em volta do pescoço dela, a corrente de ouro brilhava.

— Parecia um chamado. Eu comecei a pensar em você. Sobre como precisava ver você. Foi como sentir fome.

— Então, você sabia que eu estava aqui?

— Sabia.

Ela parou. Fez uma careta, e seus dentes de cima morderam o lábio de baixo, azulado, bem de leve. Laura deixou a cabeça cair para o lado e disse:

— Eu sabia. De repente, eu soube. Eu achei que estivesse me chamando, mas não era você, então?

— Não.

— Você não queria me ver?

— Não é isso. Ele hesitou.

— Não. Eu não queria ver você. Dói demais.

 

A neve estalava sob os pés deles e brilhava como um monte de diamantes quando refletia a luz do sol.

— Deve ser difícil — ela disse — não estar vivo.

— Você quer dizer que é difícil não estar viva? Olha, eu ainda vou descobrir o que fazer pra trazer você de volta, do jeito certo. Acho que estou no caminho certo...

— Não. Quer dizer, fico agradecida. E espero que você consiga mesmo. Eu fiz um monte de coisa ruim... Ela sacudiu a cabeça.

— Mas eu estava falando de você.

— Estou vivo — disse Shadow. — Eu não estou morto. Lembra?

— Você não está morto, mas também não tenho certeza se está vivo. Não mesmo.

Não é assim que essa conversa deve se desenrolar, pensou Shadow. Nada acontece desse jeito.

— Eu amo você — ela falou, sem paixão. — Você é o meu cachorrinho. Mas quando você estiver morto de verdade, vai poder ver as coisas com mais clareza. Ë como se não tivesse ninguém aí. Sabe? É tipo um buraco no mundo, grande, sólido e em forma de homem.

Ela franziu a testa.

— Mesmo quando a gente está junto. Eu adorava ficar com você. Você me adorava e fazia qualquer coisa por num. Mas às vezes eu entrava em um quarto e achava que não tinha ninguém. E eu acendia a luz, ou apagava, e percebia que você estava lá, sozinho, sem ler, nem assistir à TV, nem fazer nada.

Ela o abraçou então, como se tentasse amenizar o amargor de suas palavras, e disse:

— A melhor coisa em relação ao Robbie era que ele era alguém. Ás vezes era um imbecil e podia ser uma piada. Ele adorava colocar espelhos em volta da cama quando a gente fazia amor, pra poder se ver enquanto me fodia, mas ele estava vivo, cachorrinho. Queria coisas. Ele preenchia o espaço.

Ela parou, olhou para ele, deixou a cabeça cair um pouco para um lado.

— Desculpa. Eu feri seus sentimentos?

Ele não confiava em sua voz, achava que ela o trairia, por isso apenas sacudiu a cabeça.

— Bom — ela disse. — Isso é bom.

Estavam se aproximando da área de descanso onde o carro estava estacionado. Shadow sentiu que precisava dizer algo: eu amo você ou por favor, não vá embora ou desculpa. O tipo de palavras que se usa para remendar uma conversa que se desviou, sem aviso, para os lugares sombrios. Em vez disso, disse:

— Não estou morto.

— Talvez não. Mas você tem certeza de que está vivo?

— Olhe pra mim.

— Isso não é resposta. Quando tiver certeza, você vai saber.

— E agora, o que vai fazer?

— Bom, vou voltar pro sul.

— Pro Texas?

— Qualquer lugar quente. Tanto faz.

— Eu preciso esperar aqui até meu chefe me chamar.

— Isso não é vida — disse Laura.

Ela suspirou e então sorriu, o mesmo sorriso que afetava seu coração toda vez, sem fazer a menor diferença de quantas vezes ele já o havia visto. Cada vez que ela sorria para ele, era como se fosse a primeira.

Shadow fez menção de abraçá-la, mas ela sacudiu a cabeça e se afastou. Sentou em cima de uma mesa de piquenique coberta de neve e assistiu, enquanto ele dava a partida no carro e ia embora.

 

INTERLÚDIO

A guerra havia começado e ninguém viu. A tempestade chegava e ninguém sabia.

Uma viga que caiu em Nova York fechou uma rua durante dois dias. Matou dois pedestres, um taxista árabe e o passageiro dele.

Um caminhoneiro de Denver foi encontrado morto em casa. A arma do crime, um martelo com cabo de borracha e cabeça de arrancar pregos, foi deixada no chão, ao lado do corpo. O rosto do homem estava intocado, mas a parte traseira da cabeça foi completamente destruída, e várias palavras em algum alfabeto estrangeiro foram escritas no espelho do banheiro com batom marrom.

Em uma agência dos correios em Phoenix, Arizona, um homem enlouqueceu e atirou em Terry "O Troll" Evensen, um homem esquisito com obesidade mórbida que morava sozinho em um trailer. Várias outras pessoas foram atingidas, mas apenas Evensen morreu. O homem que disparou os tiros — primeiramente suspeito de ser um carteiro revoltado — não foi preso nem identificado.

— Francamente — disse o supervisor de Terry "O Troll" Evensen no noticiário das cinco —, se alguém por aqui fosse enlouquecer, a gente pensava que seria o Troll. Um trabalhador bom, mas um cara esquisito. Quero dizer, não dá pra saber, né?

Aquela entrevista foi cortada quando o segmento foi reprisado mais tarde da noite.

Uma comunidade de nove eremitas em Montana foi encontrada morta. Repórteres especularam que teria sido um suicídio em massa, mas logo se constatou que a causa mortis fora envenenamento por monóxido de carbono saído de uma caldeira antiga.

Uma cripta foi profanada no cemitério de Key West.

Um trem de passageiros da Amtrak bateu em um caminhão de entregas da UPS em Idaho, matando o motorista do caminhão. Nenhum dos passageiros ficou seriamente ferido.

Nesse estágio, ainda era uma guerra fria, uma guerra falsa, nada que pudesse ser realmente vencido ou perdido.

O vento remexia os galhos da árvore. Faíscas pulavam do fogo. A tempestade estava chegando.

A rainha de Sabá — meio-demônio, como diziam, do lado do pai, mulher-bruxa, sábia e rainha, que governou Sabá quando ainda era a terra mais rica que existia, quando suas especiarias, suas pedras preciosas e suas madeiras perfumadas eram levadas em barcos e em lombos de camelo para todos os cantos da terra, que era adorada mesmo quando estava viva, adorada como deusa pelo mais sábio dos reis — está parada na calçada do Sunset Boulevard às 2h da manhã, olhando para o trânsito sem enxergar, como uma noiva de plástico vagabunda em um bolo de casamento em preto e néon. Ela fica parada como se fosse dona da calçada e da noite que a cerca.

Quando alguém a olha diretamente, os lábios dela se movem, como se estivesse falando consigo mesma. Quando homens passam em carros ao seu lado, ela faz contato visual e sorri.

A noite foi longa.

A semana foi longa, e os 4 mil anos foram longos.

Ela se orgulha de não dever nada a ninguém. As outras garotas da rua têm cafetões, hábitos, filhos e têm gente que pega o que elas ganham. Ela não.

Não há mais nada de sagrado na sua profissão. Não mais.

As chuvas tinham começado em Los Angeles havia uma semana, deixando as ruas escorregadias e causando acidentes de trânsito, fazendo a lama das encostas das montanhas rolar e soterrar as casas no cânions, levando o mundo para dentro das calhas e dos escoadouros de tempestade, afogando os mendigos e os sem-teto acampados no canal de concreto do rio. Quando as chuvas chegam a Los Angeles, sempre pegam as pessoas de surpresa.

Bilquis passou a última semana dentro de casa. Incapaz de ficar na calçada, ela se aninhou na cama do quarto cor-de-fígado cru, ouvindo a chuva tamborilar na caixa de metal do ar-condicionado da janela e colocando anúncios pessoais na internei. Deixou seus convites no adultfriendfinder.com, no LA-escorts.com e no Classyholiywoodbabes.com, com um e-mail anônimo. Ela se orgulhava de negociar nos novos territórios, mas continuava nervosa — passou tempo demais tentando evitar qualquer coisa que se assemelhasse a uma trilha de papel. Bilquis nunca tinha colocado um anúncio pequeno nas últimas páginas do jornal LA Weekly, preferindo escolher seus próprios clientes, para descobrir pelo olhar, pelo cheiro e pelo toque aqueles que vão adorá-la como ela precisa ser adorada, aqueles que vão se deixar ser levados até o fim...

E agora ocorre a ela que, parada e tremendo na esquina da rua (porque as chuvas do final de fevereiro foram embora, mas o frio que trouxeram permaneceu), tem um hábito tão ruim quanto o das prostitutas que cheiram pó ou que usam crack, e isso a aflige, e seus lábios começam a se mover mais uma vez. Se você estivesse bastante perto de seus lábios vermelho-rubi, ouviria as palavras:

— Agora eu vou me erguer e percorrer a cidade pelas ruas, e nos caminhos largos vou encontrar aquele que'amo. — É isso que ela está sussurrando, e continua: — Á noite, na minha cama, eu. procurei aquele que minha alma amará. Deixe que ele me beije com os beijos de sua boca. Meu amado é meu e eu sou dele.

Bilquis espera que o intervalo nas chuvas traga os caras de volta. Na maior parte do ano, ela percorre os mesmos dois ou três quarteirões no Sunset, aproveitando as noites frescas de L.A. Uma vez por mês, paga um oficial da polícia da cidade, que substituiu o último cara para quem ela costumava pagar, que havia desaparecido. O nome dele era Jerry LeBec e seu desaparecimento era um mistério para a polícia. Ele ficou obcecado por Bilquis e começou a segui-la a pç. Certa noite ela acordou, assustada com um barulho, abriu a porta do apartamento e descobriu Jerry LeBec com roupas civis ajoelhando-se e balançando para a frente e para trás em cima do tapete gasto, com a cabeça abaixada em sinal de reverência, esperando ela sair. O barulho que escutou era da cabeça dele batendo contra a porta quando ele balançava o corpo.

Ela afagou seu cabelo e disse para entrar. Mais tarde, colocou as roupas dele em um saco de lixo preto e jogou tudo em um contêiner atrás de um hotel a vários quarteirões de distância. Colocou dentro de um saco de supermercado o revólver e a carteira. Colocou café moído usado e restos de comida por cima, fechou o saco e jogou em uma lata de lixo de um ponto de ônibus.

Ela não guardava recordações.

O céu alaranjado da noite cintila a oeste, com relâmpagos distantes, em algum lugar no meio do mar, e Bilquis sabe que a chuva vai começar logo. Ela suspira. Não quer ser pega pela chuva. Resolve voltar para o apartamento, tomar um banho e raspar as pernas — parece que está sempre raspando as pernas — e dormir.

Começa a caminhar por uma rua secundária, subindo a ladeira que leva até onde seu carro está estacionado.

Faróis aparecem atrás dela, diminuindo a velocidade à medida que se aproximam, e ela vira o rosto em direção à rua e sorri. O sorriso se congela quando vê que o carro é uma limusine branca aumentada. Homens em limusines aumentadas gostam de foder em limusines aumentadas, não na privacidade do altar de Bilquis. Ainda assim, pode ser um investimento. Algo para o futuro.

Uma janela fosca se abaixa e Bilquis caminha até a limusine, sorrindo.

— Ei, querido. Está procurando alguma coisa?

— Doce amor — diz uma voz do fundo do carro.

Ela dá uma olhada lá dentro, o máximo que pode através da janela aberta. Conhece uma moça que entrou em uma limusine com cinco jogadores de futebol americano bêbados e que ficou machucada de verdade, mas ela só consegue ver um cara lá dentro, e parece meio jovem. Ele não tem jeito de adorador, mas o dinheiro, um bom dinheiro que é passado da mão dele para a dela, é uma energia por si só — era chamado de baraka no passado — que ela pode usar e, francamente, hoje em dia, todo pouco ajuda.

— Quanto? — ele pergunta.

— Depende do que você quer e por quanto tempo. E se tem condições de pagar.

Ela sente um cheiro de alguma coisa queimada saindo pela janela da limusine. Cheira a fio queimado e a placas de circuitos superaquecidas. A porta se abre, empurrada por dentro.

— Eu tenho condição de pagar por tudo que eu quiser — diz o cara. Ela se debruça no carro e olha em volta. Não há mais ninguém ali, só o cara, um jovem de rosto inchado que não parece ter idade suficiente para beber.

Ninguém mais, por isso ela entra.

— Garoto rico, hein?

— Mais do que rico — ele diz, deslizando por sobre o estofado de couro na sua direção.

Ele se move desajeitadamente. Ela sorri para ele.

— Humm. Isso me excita, querido. Você deve ser um daqueles caras ponto com sobre quem eu li no jornal.

Ele levanta o peito e, então, solta a fumaça como um sapo-boi.

— Ë. Entre outras coisas. Sou um cara da técnica. O carro sai.

— Diz pra mim, Bilquis, quanto você cobra pra chupar o meu pau?

— Do que você me chamou?

— De Bilquis.

Depois canta, no ritmo da música da Madonna, com uma voz que não foi feita para cantar:

— You are an immaterial girl, living in a material World [1].

Há algo de ensaiado nas palavras dele, como se houvesse praticado o trocadilho na frente de um espelho.

Ela pára de sorrir e seu rosto muda, fica mais sábio, mais penetrante, mais duro.

— O que você quer?

— Já disse. Doce amor.

— Eu dou o que você quiser.

Ela precisa sair da limusine. Agora está andando rápido demais para se jogar do carro, ela conclui, mas é o que vai fazer se conseguir ganhá-lo na conversa. O que quer que esteja acontecendo, ela não gosta nada daquilo.

— O que eu quero. Ë.

Ele faz uma pausa. Sua língua percorre os lábios.

— Quero um mundo limpo. Quero ser dono do amanhã. Quero evolução, devolução e revolução. Eu quero levar o meu pessoal das margens do braço do rio pró meio da correnteza do rio principal. Vocês são o submundo. Está errado. Precisamos tomar as luzes do palco e brilhar. Na frente e no meio. Vocês estão tão no fundo no submundo, há tanto tempo, que nem sabem mais usar os olhos.

— Meu nome é Ayesha. Não sei do que está falando. Tem outra moça naquela esquina, o nome dela é Bilquis. Nós podemos voltar pró Sunset, você pode ficar com nós duas...

— Ah, Bilquis — ele diz e suspira, de maneira teatral. — Só tem um tanto de fé por aí. Estão chegando ao fim do que podem dar pra nós. A falha da credibilidade.

Então ele canta mais uma vez, no mesmo ritmo, com sua voz nasal e fora de tom:

— You are an analog girl, fiving in a digital World. [2]

A limusine dobra uma esquina rápido demais, e ele cai pelo banco na direção dela. O motorista do carro está escondido atrás de um vidro fosco. Uma convicção irracional toma conta dela, de que ninguém está dirigindo o carro, de que a limusine branca está correndo por Beverly Hilis como Herbie, Se o Meu Fusca Falasse, com seu poder próprio.

Então o cara estica a mão e bate no vidro fosco.

O carro diminui e, antes que pare de andar, Bilquis já abriu a porta e se jogou, despencando no asfalto. É uma ladeira. À esquerda há uma montanha íngreme, à direita, uma queda livre. Ela começa a correr pela rua.

A limusine fica lá, imóvel.

Começa a chover, e seu salto alto se torce e escorrega. Ela tira os sapatos com um chute e corre, molhada até os ossos, procurando algum lugar para sair da rua. Está assustada. Tem poder, é verdade, mas é a magia da fome, a magia da boceta. Esse poder a manteve viva nesta terra durante tanto tempo, mas para tudo o mais ela usa seus olhos aguçados e sua cabeça, sua altura e sua presença.

Há uma cerca de metal ao lado da rua, na altura do joelho, à sua direita, para evitar que os carros caiam pela encosta da montanha, e agora a chuva corre pela rua transformando-a em um rio, e suas solas dos pés começaram a sangrar.

As luzes de L.A. se espalham na sua frente, um mapa elétrico cintilante de um reino imaginário, o paraíso colocado aqui mesmo na terra, e ela sabe que tudo que precisa para estar a salvo é sair da rua.

— Eu sou negra, porém bela — murmura para a noite e para a chuva. — Eu sou a rosa de Sharon, e o lírio dos vales. Sustente-me com jarros, conforte-me com maças: porque eu estou enjoada de amor.

Um relâmpago em forma de garfo queima esverdeado no meio do céu da noite. Ela perde o chão, escorrega vários metros, ralando a perna e o cotovelo, e está se levantando quando vê as luzes do carro descendo a ladeira em sua direção. Está vindo rápido demais para ser uma velocidade segura e ela considera se deve se jogar para a direita, onde poderia ser esmagada contra a montanha, ou para a esquerda, onde corre o risco de escorregar pela vala. Ela atravessa a estrada correndo, pensando em escalar a encosta da montanha pela terra molhada, enquanto a limusine aumentada vem rabeando ladeira abaixo, inferno, deve estar a 130 por hora. Talvez até esteja deslizando sobre a água que corre sobre a ladeira, e Bilquis enfia a mão em um monte de mato e de terra, vai subir e fugir, e sobe, quando a terra molhada se esfarela e cai de volta na rua.

O carro bate na mulher com um impacto que entorta a grade e faz com que ela saia voando pelo ar, como uma marionete. Ela aterrissa na rua, atrás da limusine, e o choque despedaça sua pélvis, fratura seu crânio. Água fria de chuva corre pelo seu rosto.

Bilquis começa a amaldiçoar seu assassino, silenciosamente, porque não consegue mexer os lábios. Ela o amaldiçoa quando estiver acordado e quando for dormir, enquanto viver e depois que morrer. Ela o amaldiçoa somente como alguém que é meio-demônio pelo lado do pai poderia amaldiçoar.

A porta do carro bate. Alguém se aproxima dela.

— Vou were an analog girl — ele canta de novo, fora do tom — living in a digital World.

E depois, diz:

— Vocês, porras de madonnas. Todas as porras das madonnas.

E vai embora.

A porta do carro bate.

A limusine dá ré, e passa por cima dela, lentamente, pela primeira vez. Seus ossos estalam sob as rodas. Então o carro desce a montanha de novo em sua direção.

Quando, finalmente, vai embora montanha abaixo, tudo o que deixa para trás na rua é a carne vermelha espalhada de um animal atropelado, dificilmente reconhecível como humana, e logo, logo até isso vai ser levado embora pela chuva.

 

INTERLÚDIO 2

— Oi, Samantha.

— Mags? É você?

— Quem mais poderia ser? O Leon me disse que a titia Sammy ligou quando eu estava no chuveiro.

— Nós conversamos bastante. Ele é um menino tão legal.

— É. Acho que vou ficar com ele.

Um instante de desconforto para as duas, apenas um estalo de sussurro na linha telefônica. Então:

— Sammy, como vai a escola?

— Deram uma semana de férias pra gente. Problemas com as fornalhas. Como vão as coisas aí no seu canto das florestas do norte?

— Bom, eu tenho um vizinho novo. Ele faz truques com moedas. A coluna do Lakeside News atualmente traz um debate ardente a respeito do rezoneamento potencial das propriedades municipais perto do antigo cemitério, na margem sudeste do lago, e tive que escrever um editorial estridente resumindo a posição do jornal sobre esse assunto sem ofender ninguém e, na verdade, sem deixar que o leitor tivesse a mínima idéia de qual era nossa posição.

— Parece divertido.

— Não é. Alison McGovern desapareceu na semana passada... a mais velha dajillye do Stan McGovern. Uma menina bacana. Ela ficou de babá do Leon algumas vezes.

Uma boca se abre para dizer alguma coisa, então se fecha novamente, deixando o que era para ser dito sem dizer e, no lugar daquilo, diz:

— Que horror.

— É.

— Então...

E como não há nada a fazer depois daquilo que não vá ferir, ela diz:

— Ele é bonitinho?

— Quem?

— O vizinho.

— O nome dele é Ainsel, Mike Ainsel. Ele é OK. Muito jovem pra mim. Um cara grande, parece... qual é mesmo a palavra, começa com C.

— Carinhoso? Cínico? Certinho? Casado? Uma risada curta, e então:

— É, acho que ele parece casado. Quer dizer, tem um ar que os homens casados tem, e ele meio que é assim. Mas a palavra que eu estava procurando era cabisbaixo, meio triste. Ele parece cabisbaixo.

— E cheio de segredos?

— Não, particularmente. Quando ele se mudou, parecia meio perdido... nem sabia como vedar as janelas pra aquecer o apartamento. Até hoje parece não saber muito bem o que está fazendo aqui. Fica um tempo, depois vai embora de novo. Eu o vejo caminhando por aí de vez em quando.

— Talvez seja um ladrão de bancos.

— Ã-hã. Era bem isso que eu estava pensando.

— Não estava. A idéia foi minha. Escuta, Mags, e você, como vai? Você está bem?

— Estou.

— Mesmo?

— Não.

Uma longa pausa, e então:

— Eu vou aí visitar você.

— Sammy, não.

— Depois do fim de semana, antes das fornalhas da escola começarem a funcionar de novo. Vai ser divertido. Você pode fazer uma cama no sofá pra mim. E convidar o vizinho cheio de segredos pra jantar um dia.

— Sam, você está querendo arrumar namorado.

— Quem está querendo arrumar namorado? Depois da Claudine-a-vaca-do-inferno, talvez eu esteja pronta pra voltar aos meninos por algum tempo. Eu conheci um menino estranho e legal quando peguei carona até El Paso, no Natal.

— Ah. Olha, Sam, você precisa parar de pegar carona.

— E como é que você acha que eu vou chegar até Lakeside?

— Alison McGovern estava pedindo carona. Até em uma cidadezinha como esta, não ó seguro. Eu mando o dinheiro. Você pode pegar um ônibus.

— Tudo vai dar certo — Sammy.

— Tudo bem, Mags. Me manda o dinheiro se isso ajuda você a dormir em paz.

— Você sabe que eu vou mandar.

— Tudo bem, irmã mais velha mandona. Dá um abraço no Leon e diz pra ele que a titia Sammy está chegando e que não pode esconder os brinquedos na cama dela dessa vez.

— Vou falar pra ele. Mas não prometo que vá adiantar alguma coisa.

— Então, quando é que eu posso esperar você?

— Amanhã à noite. Você não precisa ir me buscar na rodoviária. Vou pedir pró Hinzelmann me levar na Tessie.

— Tarde demais. A Tessie já está na naftalina pra passar o inverno. Mas o Hinzelmann vai te dar uma carona de qualquer jeito. Ele gosta de você. E você escuta as histórias dele.

— Talvez você devesse pedir pró Hinzelmann escrever o editorial pra você. Vamos ver: "Sobre o rezoneamento das terras próximas ao antigo cemitério. Acontece que no inverno de sei lá quando o meu vô matou um veado perto do antigo cemitério ao lado do lago. Ele não tinha mais balas, por isso usou um caroço de cereja do almoço que a minha vó tinha feito pra ele. Furou a cabeça do veado e saiu correndo igual a um morcego fugindo do inferno. Dois anos depois, ele passa por lá e vê um enorme gamo com uma cerejeira florida saindo do meio dos chifres. Bom, ele matou o bicho e a vó fez tantas tortas de cereja que eles ainda estavam comendo os doces quando chegou o Quatro de Julho..."

E as duas riram, então.

 

INTERLÚDIO 3

Jacksonville, Flórida, 2h — A placa diz precisa-se de frentista.

— Estamos sempre precisando de gente.

— Eu só posso trabalhar no turno da noite. Tem algum problema?

— Acho que não. Vou dar uma ficha pra você preencher. Já trabalhou em algum posto de gasolina?

— Não. Mas imagino que não seja muito difícil.

— Bom, não é projetar um foguete, com certeza. Sabe, moça, espero que você não se importe de eu falar, mas a senhora não me parece bem.

— Eu sei. Ë um problema de saúde. Parece pior do que é. Não é nada fatal.

— Tudo bem. Deixa a ficha comigo. Nós estamos precisando de gente no turno da noite agora. Por aqui, a gente chama de turno dos zumbis. Se você fica muito tempo nele, é assim que começa a se sentir. Bom, então... seu nome é Lama?

— Laura.

— Laura. Tudo bem. Bom, espero que não se importe de ter de tratar com gente esquisita. Porque esse pessoal só sai à noite.

— Tenho certeza que sim. Mas eu consigo me virar.

 

Hey, old friend, What do you say, old fnend?

Make it okay, old friend, Give an old friendship a break. Why

so grim? We're going on forever. You, me, he –

Too many lives are ai stake... [3]

Stephen Sondheim, "Old Friends"

 

Era sábado de manhã, Shadow atendeu à porta.

Marguerite Olsen estava lá. Não quis entrar, apenas ficou parada sob o sol, parecendo séria.

— Senhor Ainsel...?

— Mike, por favor.

— Mike, sim. Você gostaria de vir jantar na minha casa hoje à noite? Por volta das seis? Não vai ter nada de muito excitante, só espaguete com almôndega.

— Eu gosto de espaguete com almôndega.

— Obviamente, se você tiver outra coisa pra fazer...

— Não tenho mais nada pra fazer, não.

— Seis horas.

— Devo levar flores?

— Se você quiser. Mas este é um gesto social. Não romântico.Ele tomou banho. Foi dar um passeio curto, atravessou a ponte e voltou. O sol ia alto, uma moeda manchada brilhando no céu, e ele suava dentro do casaco na hora em que chegou em casa. Pegou o 4-Runner e foi até o supermercado Davc's Finest Food comprar uma garrafa de vinho. Custava vinte dólares, o que pareceu a Shadow um tipo de garantia de qualidade. Ele não sabia nada sobre vinhos, então comprou um cabernet californiano, porque viu um adesivo de carro certa vez, no tempo em que ele ainda era jovem e as pessoas ainda colocavam adesivos nos carros, que dizia A VIDA É UM CABERNET, e aquilo fez com que risse.

Comprou uma planta em um vaso para dar de presente. Folhas verdes, sem flores. Não era, nem de longe, romântico.

Comprou uma caixa de leite longa-vida que nunca beberia e uma variedade de frutas que nunca comeria.

Então deu uma passada na Mabel's e comprou uma única empanada de almoço. O rosto de Mabel se iluminou quando o viu.

— O Hinzelmann conseguiu falar com você?

— Eu não sabia que ele queria falar comigo.

— Ele quer levar você pra pescar no gelo. E Chad Mulligan disse que a prima dele de outro Estado está aqui. É de segundo grau, como a gente costumava chamar os primos que se beijam. Tão querida. Você vai adorar a moça.

E colocou a empanada em um saco de papel pardo e torceu a abertura para mantê-la quente.

Shadow pegou o caminho comprido até o apartamento, comendo com a mão, espalhando migalhas de empanada nas calças jeans e no chão do 4-Runner. Passou pela biblioteca na margem sul do lago. Era uma cidadezinha em branco-e-preto no meio do gelo e da neve. A primavera parecia inimaginavelmente longínqua: a lata velha ficaria em cima do gelo para sempre, com as cabanas de pescadores, as caminhonetes picape e as trilhas de snowmobille.

Ele chegou ao prédio, estacionou, percorreu o caminho de entrada e subiu os degraus de madeira até seu apartamento. Os pintassilgos e os pica-paus no pote de comida dos pássaros praticamente o ignoraram. Entrou. Regou a planta e ficou indeciso se colocava ou não o vinho na geladeira.

Havia um monte de tempo para matar até as seis.

Shadow desejou ver televisão confortavelmente mais uma vez. Queria se entreter, não ter que pensar, só sentar-se e deixar que os sons e a luz o banhassem. Quer ver o.s peitos da Lucy? Alguma coisa com a voz de Lucy sussurrava em sua memória, c ele sacudiu a cabeça, apesar de não haver ninguém ali para vê-lo.

Percebeu que estava nervoso. Essa seria a primeira vez que iria interagir com outras pessoas — gente normal, não pessoas na cadeia, nem deuses nem heróis culturais, nem sonhos — desde que fora preso, há mais de três anos. Precisaria conversar, como Mike Ainsel.

Checou o relógio. Eram duas e meia. Marguerite Olsen disse a ele para estar lá às seis. Será que ela queria dizer exatamente às seis? Será que devia chegar um pouco mais cedo? Um pouco mais tarde? Resolveu, finalmente, ir até a porta ao lado às seis e cinco.

O telefone de Shadow tocou.

— Fala.

— Isso não é jeito de atender o telefone — rosnou Wednesday.

— Quando ligarem meu telefone, atenderei com educação — disse Shadow. — Posso ajudar?

— Não sei — disse Wednesday. Fez uma pausa, então continuou:

— Organizar deuses é a mesma coisa que tentar mandar gatos fazerem filas retas. Não faz parte da natureza deles.

Havia um ar de morte e exaustão na voz de Wednesday, que Shadow nunca tinha ouvido antes.

— Qual é o problema?

— Está difícil. Está fodidamente difícil. Não sei se vai funcionar. A gente podia mesmo é cortar nossas próprias gargantas, só isso.

— Você não deve falar assim.

— É. Está certo.

— Bom, se você cortar sua própria garganta — disse Shadow, tentando animar Wednesday e deixá-lo menos sombrio — talvez nem doa.

— Doeria. Mesmo pró meu povo, a dor ainda machuca. Se você se movimenta e atua no mundo material, então o mundo material atua sobre você. A dor machuca, assim como a cobiça intoxica e a luxúria queima. Nós até podemos não morrer facilmente e, com tanta certeza quanto o inferno existe, não morremos bem, mas podemos morrer. Se ainda formos amados e lembrados, alguma coisa que se parece muito conosco chega e toma nosso lugar e a porra começa toda de novo. Mas, se formos esquecidos, é o nosso fim.

Shadow não sabia o que dizer. Falou:

— Então, de onde você está ligando?

— Não é da sua conta, porra.

— Você está bêbado?

— Ainda não. Mas fiquei pensando no Thor. Você não conheceu ele. Um cara grande, igual a você. De bom coração. Não muito inteligente, mas ele entregaria a camisa do próprio corpo se alguém pedisse. E ele se matou. Colocou um revólver na cabeça e estourou os miolos em 1932, na Filadélfia. Que tipo de morte é essa pra um deus?

— Sinto muito.

— Você não dá a merda de dois centavos por isso, filho. Ele era muito parecido com você. Grande e burro.

Wednesday parou de falar. Tossiu.

— Qual é o problema? — disse Shadow, pela segunda vez.

— Eles fizeram contato.

— Quem fez contato?

— A oposição.

— E daí?

— Eles querem discutir uma trégua. Negociações de paz. Viva e deixe a merda viver.

— Então, o que acontece agora?

— Agora vou beber café ruim com os bundões modernos na Associação de Maçonaria de Kansas City.

— Tudo bem. Você vem me buscar ou a gente se encontra em algum lugar?

— Você fica aí e mantém a cabeça baixa. Não se meta em confusão. Ouviu bem?

— Mas...

Ouviu-se um dique e a linha ficou muda e continuou muda. Não se ouvia tom de discar, mas nunca existiu mesmo.

Nada além de tempo para matar. A conversa com Wednesday deixou Shadow com uma sensação de inquietação. Levantou-se, com a intenção de dar uma caminhada, mas a luz já estava indo embora, por isso, sentou-se novamente.

Shadow pegou o livro Minutas do Conselho da Cidade de Lakeside 1872-1884 e virou as páginas, percorrendo as letras minúsculas com os olhos, sem ler o texto realmente, ocasionalmente parando para olhar melhor alguma coisa que chamou sua atenção.

Em julho de 1874, Shadow descobriu, o conselho da cidade estava preocupado com o número de lenhadores estrangeiros itinerantes que chegavam à cidade. Um teatro de ópera deveria ser construído na esquina das ruas Três e Broadway. Esperava-se que a perturbação causada pelo represamento do Riacho do Moinho diminuísse quando a lagoa do moinho se transformasse em um grande lago. O conselho autorizou o pagamento de setenta dólares para o senhor Samuel Samuels e de 85 dólares para o senhor Heikki Salminen, para compensar a perda da terra e as despesas acarretadas pela mudança de domicílio para longe da área a ser inundada.

Nunca ocorreu a Shadow que o lago fosse artificial. Por que então chamar a cidade de Lakeside, se aquele lago era originalmente uma porcaria de uma lagoa de moinho? Ele continuou a ler e descobriu que o senhor Hinzelmann, originalmente de Hüdemuhlen, na Baviera, era o responsável pelo projeto de construção do lago, e que o conselho da cidade concedeu a ele a soma de 370 dólares pelo projeto, e que qualquer pedido de dinheiro extra deveria ser feito por meio de requisição pública. Shadow rasgou um pedaço de uma toalha de papel c colocou no meio do livro como marcador. Ele conseguia imaginar o prazer de Hinzelmann ao ver uma referência ao avô. Perguntou a si mesmo se o velho sabia que a família dele havia sido prestativa na construção do lago. Shadow folheou as páginas posteriores do livro, procurando mais referências ao projeto de construção do lago.

O lago fora consagrado durante uma cerimônia, na primavera de 1876, como precursora das comemorações do centenário da cidade. Um voto de agradecimento ao senhor Hinzelmann fora dado pelo conselho.

Shadow checou o relógio. Eram cinco e meia. Foi até o banheiro, fez a barba, penteou o cabelo. Trocou de roupa. De algum modo, os últimos quinze minutos se passaram. Pegou o vinho e a planta e caminhou até a porta vizinha.

A porta se abriu quando ele bateu. Marguerite Olsen parecia quase tão nervosa quanto ele. Ela pegou o vinho e a planta no vaso e agradeceu. A televisão estava ligada, O Magico de Óz em vídeo. Estava na parte em sépia, e Dorothy ainda estava no Kansas, sentada no vagão do Professor Marwel com os olhos fechados, enquanto a fraude velha fingia ler a mente dela, e o furacão que a separaria de sua vida se aproximava. Leon estava sentado na frente da tela, brincando com um caminhão de bombeiro de brinquedo. Quando viu Shadow, uma expressão de alegria tocou seu rosto; ele se levantou e correu, tropeçando nos pés de tanta excitação, entrou em um quarto dos fundos e reapareceu um instante depois, triunfantemente segurando uma moeda de 25 centavos.

— Olha, Mike Ainsel!

Então, ele fechou as duas mãos e fingiu pegar a moeda na mão direita, que abriu e mostrou que estava vazia.

— Eu fiz desaparecer, Mike Ainsel.

— Você fez mesmo. Depois de comer, e se a sua mãe deixar, eu mostro como fazer de um jeito ainda mais disfarçado do que esse.

— Pode fazer agora, se quiser — disse a mãe. — Ainda estamos esperando a Samantha. Mandei ela comprar creme de leite. Não sei por que está demorando tanto.

E, como se fosse uma deixa, passos ecoaram pela varanda de madeira, e alguém empurrou a porta da frente com o ombro e a abriu. Shadow não a reconheceu logo de início, e então ela disse:

— Eu não sabia se você queria o tipo que tem calorias ou o que tem gosto de cola de papel de parede, então eu escolhi o tipo com calorias.

E foi então que ele soube: era a menina da estrada para Cairo.

— Tudo bem — disse Marguerite. — Sam, este aqui é o meu vizinho, Mike Ainsel. Mike, esta é a Samantha Black Crow, minha irmã.

Eu não conheço você, pensou Shadow, desesperadamente. Você nunca me viu na vida. Somos estranhos completos. Ele tentou se lembrar de como havia pensado neve, e como aquilo tinha sido fácil. Isto aqui era desesperador. Ele esticou a mão e disse:

— Prazer em conhecer você.

Ela piscou, olhou para o rosto dele. Um instante de perplexidade, então o reconhecimento entrou pelos seus olhos e fez com que os cantos da boca se curvassem em um sorriso.

— Oi — ela disse.

— Vou ver como está a comida — falou Marguerite, com a voz tensa de alguém que queima coisas se deixar o fogão sozinho e sem vigilância por um instante que for.

Sam tirou seu casaco inflado e seu gorro.

— Então, você é o vizinho cabisbaixo e cheio de segredos. Quem poderia imaginar?

Ela mantinha a voz baixa.

— E você — ele disse — é a garota Sam. Podemos conversar sobre isso mais tarde?

— Só se me prometer contar o que está acontecendo.

— Peito.

Leon puxou a perna da calça de Shadow.

— Você vai me mostrar agora? — ele perguntou, e mostrou a moeda de 25 centavos na palma da mão.

— Está bem. Mas se eu mostrar, você tem que lembrar que o mestre mágico nunca conta pra ninguém como faz.

— Eu prometo — disse Leon, sério.

Shadow pegou a moeda na mão esquerda, então mexeu na mão de Leon, mostrando a ele como fingir pegar a moeda na mão direita quando, na verdade, ela continuava na mão esquerda de Shadow. Depois, fez com que Leon repetisse os movimentos sozinho.

Depois de várias tentativas, o garoto dominou o movimento.

— Viu, você já sabe a metade — disse Shadow. — Agora se concentre no lugar onde a moeda deveria estar. Olhe pró lugar onde ela deve estar. Se você agir como se a moeda estivesse na sua mão direita, ninguém nem vai olhar pra outra mão, por mais desajeitado que seja.

Sam assistiu a tudo aquilo com a cabeça um pouco inclinada para o lado, sem dizer nada.

— Jantar! — chamou Marguerite, vindo da cozinha com uma tigela fumegante de espaguete nas mãos. — Leon, vá lavar as mãos.

Havia pão de alho crocante, molho vermelho espesso, almôndegas bem temperadas. Shadow elogiou Marguerite.

— Uma receita antiga de família — explicou a ele. — Do lado córsico da família.

— Eu achei que vocês eram americanas nativas.

— Nosso pai é cherokee — disse Sam. — O pai da mãe da Mag veio da Córsega. Sam era a única pessoa na sala que estava bebendo o cabernet.

— Nosso pai abandonou ela quando a Mag tinha 10 anos e se mudou pró outro lado da cidade. Seis meses depois, eu nasci. Meus pais se casaram quando o divórcio saiu. Quando eu tinha dez anos, ele foi embora. Acho que a atenção dele dura um prazo de dez anos.

— Bom, faz dez anos que ele está em Oklahoma — comentou Marguerite.

— Agora, a família da minha mãe era judia da Europa — continuou Sam — , de algum daqueles lugares que costumava ser comunista e que agora é um caos. Acho que ela gostava da idéia de ser casada com um cherokee. Pão frito e fígado moído.

Tomou mais um gole do vinho tinto.

— A mãe da Sam é louca — disse Marguerite, com tom de quase aprovação.

— Você sabe onde ela está agora? — perguntou Sam. Shadow sacudiu a cabeça.

— Na Austrália. Ela conheceu um cara pela Internet que morava em Hobart. Quando se encontraram de verdade, ela achou o cara nojento. Mas ela gostou mesmo da Tasmânia. Então ficou morando lá, com um grupo de mulheres, ensinando como fazer tecidos em batik e coisas assim. Não é legal? Na idade dela?

Shadow concordou que era, e se serviu de mais almôndega. Sam explicou a eles como os aborígines nativos da Tasmânia tinham sido dizimados pelos britânicos, e sobre a corrente humana que formaram cruzando a ilha para encurralá-los, mas que só conseguiu capturar um velho e um menino doente. Explicou como os tilacinos — os tigres da Tasmânia — tinham sido mortos pelos fazendeiros, assustados pelas ovelhas deles, como os políticos da década de 1930 perceberam que os tilacinos deveriam ser protegidos, logo depois de o último deles morrer. Terminou seu segundo copo de vinho e se serviu do terceiro.

— Então, Mike — disse Sam, de repente, com as bochechas avermelhadas. — Fale um pouco da sua família. Que tal os Ainsel? Ela sorria, e havia um ar sacana naquele sorriso.

— Nós somos totalmente sem graça — ele comentou. — Nenhum de nós chegou tão longe quanto a Tasmânia. Então, você estuda em Madison. Que tal?

— Você sabe. Estudo história da arte, feminismo e modelo meus próprios bronzes.

— Quando eu crescer — disse Leon —, vou fazer mágica. Puf. Você me ensina, Mike Ainsel?

— Claro. Se a sua mãe não se importar. Sam disse:

— Depois de comer, enquanto você coloca o Leon na cama, Mags, acho que vou fazer o Mike me levar até o Buck Stops Here e vou ficar lá mais ou menos uma hora.

Marguerite não deu de ombros. A cabeça dela se mexeu, e uma das sobrancelhas se levantou um pouquinho.

— Achei ele interessante — sorriu Sam. — E temos muito sobre o que conversar. Marguerite olhou para Shadow, que se ocupava em limpar com um guardanapo de papel uma mancha de molho imaginária do queixo.

— Bom, vocês são adultos — ela disse em um tom de voz que derrotava quem não eram, mas que, mesmo que fossem, não deveriam ser.

Após o jantar, Shadow enxugou a louça para Sam e depois fez um truque para Leon, contando as moedas de l centavo na palma da mão do garoto: cada vez que Leon abria a mão e contava, tinha uma moeda a menos do que da última vez. E na última moeda:

— Você está apertando? Bem forte?

Quando Leon abriu a mão, descobriu que a moeda de um centavo tinha se transformado em uma de dez. Os gritos de Leon de "Como você/ez isso? Mamãe, como ele fez isso?" seguiram-no até o corredor.

Sam entregou o casaco dele.

— Vamos?

As bochechas dela estavam vermelhas por causa do vinho.

Do lado de fora, fazia frio.

Shadow passou no seu apartamento, enfiou o Minutas do Conselho da Cidade de Lakeside em um saco plástico de supermercado e levou consigo. Hinzelmann poderia estar no Buck, e queria mostrar a ele a menção ao seu avô.

Percorreram o caminho até a rua lado a lado.

Ele abriu a porta da garagem, e ela começou a rir.

— Ai meu Deus — ela disse, ao ver o 4-Runner. — O carro do Paul Gunther. Você comprou o carro do Paul Gunther. Ai meu Deus!

 

Shadow abriu a porta para ela. Depois deu a volta e entrou.

— Você conhece este carro?

— Quando vim pra cá ficar com Mags, dois ou três anos atrás. Fui eu que convenci ele a pintar de roxo.

— Ah — disse Shadow. — É bom ter alguém em quem jogar a culpa. Ele tirou o carro da garagem. Desceu e fechou o portão. Voltou para o carro. Sam olhava para ele de maneira estranha, como se a confiança tivesse ido embora. Shadow colocou o cinto de segurança, e ela disse:

— Tubo bem. Esta é uma coisa bem estúpida pra se fazer, não é? Entrar em um carro com um assassino psicopata.

— Eu levei você pra casa a salvo da última vez.

— Você matou dois homens. Tem agente federal procurando você. E agora eu descubro que está vivendo com um nome falso no apartamento vizinho da minha irmã. A não ser que Mike Ainsel seja o seu nome verdadeiro.

— Não — disse Shadow, e suspirou. — Não é.

Ele odiava dizer aquilo. Era como se estivesse entregando alguma coisa importante, abandonando Mike Ainsel ao negá-lo; como se estivesse abandonando um amigo.

— Você matou aqueles homens?

— Não.

— Vieram até a minha casa e disseram que alguém viu nós dois juntos. E esse cara me mostrou fotos suas. Qual era o nome dele? Senhor Hat? Não. Senhor Town. Era tipo O Fugitivo. Mas eu disse que não conhecia você.

— Obrigado.

— Então me conta o que está acontecendo. Vou guardar os seus segredos se você guardar os meus.

— Eu não sei nenhum segredo seu.

— Bom, você sabe que foi minha idéia pintar esse carro de roxo, transformando Paul Gunther em tal objeto de escárnio e zombaria por tantos condados desta região que foi obrigado a abandonar a cidade inteiramente. A gente estava bem chapado — confessou.

— Duvido que essa informação seja segredo. Todo mundo em Lakeside deve ter imaginado. É um tipo de roxo de gente chapada. E então ela disse, bem baixinho e bem rápido:

— Se você vai me matar, por favor não me machuque. Eu não devia ter saído com você. Eu sou tão burra, porra, porra. Eu posso identificar você. Jesus! Shadow suspirou.

— Eu nunca matei ninguém. Mesmo. Agora vou levar você até o Buck. Vamos tomar uma bebida. Ou, se você quiser, posso dar meia-volta com este carro e levar você pra casa. De qualquer jeito, eu só vou ter que torcer pra não mandar chamar os guardas.

O carro ficou em silêncio, enquanto cruzava a ponte.

— Quem matou aqueles homens? — ela perguntou.

— Você não iria acreditar se eu contasse.

— Eu acreditaria.

Ela parecia brava agora. Ele se perguntou se tinha sido uma idéia sábia levar vinho para o jantar. A vida com certeza não era nenhum cabernet naquele momento.

— Não é fácil acreditar.

— Sou capaz de acreditar em qualquer coisa. Você não faz a mínima idéia das coisas em que eu posso acreditar.

— Mesmo?

— Posso acreditar em coisas que são verdade e posso acreditar em coisas que não são verdade. E posso acreditar em coisas que ninguém sabe se são verdade ou não. Posso acreditar no Papai Noel, no coelhinho da Páscoa, na Marilyn Monroe, nos Beatles, no Elvis e no Mister Ed. Ouça bem... Eu acredito que as pessoas evoluem, que o saber é infinito, que o mundo é comandado por cartéis secretos de banqueiros e que é visitado por alienígenas regularmente — uns legais, que se parecem com lêmures enrugados, e uns maldosos, que mutilam gado e querem nossa água e nossas mulheres. Acredito que o futuro é um saco e que é demais, e acredito que um dia a Mulher Búfalo Branco vai ficar preta e chutar o traseiro de todo mundo. Também acho que todos homens não passam de meninos crescidos com profundos problemas de comunicação e que o declínio da qualidade do sexo nos Estados Unidos coincide com o declínio dos cinemas drive-in de um Estado ao outro. Acredito que todos os políticos são canalhas sem princípios, mas ainda assim melhores do que as outras alternativas. Acho que a Califórnia vai afundar no mar quando o grande terremoto vier, ao mesmo tempo em que a Flórida vai se dissolver em loucura, em jacarés, em lixo tóxico. Acredito que sabonetes antibactericidas estão destruindo nossa resistência à sujeira e às doenças, de modo que algum dia todos seremos dizimados por uma gripe comum, como aconteceu com os marcianos em Guerra dos Mundos. Acredito que os melhores poetas do século passado foram Edith Sitwell e Don Marquis, que o jade é esperma de dragão seco, e que há milhares de anos em uma vida passada eu era uma xamã siberiana de um braço só. Acho que o destino da humanidade está escrito nas estrelas, que o gosto dos doces era mesmo melhor quando eu era criança, que aerodinamicamente é impossível pra uma abelha grande voar, que a luz é uma onda e uma partícula, que tem um gato em uma caixa em algum lugar que está vivo e que está morto ao mesmo tempo (apesar de que, se não abrirem a caixa algum dia e alimentarem o bicho, ele no fim vai ficar só morto de dois jeitos), e que existem estrelas no universo bilhões de anos mais velhas do que o próprio universo. Acredito em um deus pessoal que cuida de mim e se preocupa comigo e que supervisiona tudo que eu faço, em uma deusa impessoal que botou o universo em movimento e saiu fora pra ficar com as amigas dela e nem sabe que estou viva. Eu acredito em um universo vazio e sem deus, um universo com caos causal, um passado tumultuado e pura sorte cega. Acredito que qualquer pessoa que diz que o sexo é supervalorizado nunca fez direito, que qualquer um que diz saber o que está acontecendo pode mentir a respeito de coisas pequenas. Acredito na honestidade absoluta e em mentiras sociais sensatas. Acredito no direito das mulheres à escolha, no direito dos bebês de viver, que, ao mesmo tempo em que toda vida humana é sagrada, não tem nada de errado com a pena de morte se for possível confiar no sistema legal sem restrições, e que ninguém, a não ser um imbecil, confiaria no sistema legal. Acredito que a vida é um jogo, uma piada cruel e que a vida é o que acontece quando se está vivo e o melhor é relaxar e aproveitar.

Ela parou, sem fôlego.

Shadow quase tirou as mãos da direção para aplaudir. No lugar disso, disse:

— Tudo bem. Então, se eu contar o que aprendi, você não vai achar que sou louco.

— Talvez. Experimenta.

— Você acreditaria que todos os deuses que as pessoas imaginaram algum dia ainda estão com a gente hoje?

— Talvez.

— E que existem deuses novos por aí, deuses de computadores e de telefones, e do que quer que seja, e que eles parecem achar que não há espaço prós dois tipos no mundo? E que um tipo de guerra está prestes a estourar?

— E foram esses deuses que mataram aqueles dois homens?

— Não, minha mulher matou aqueles dois homens.

— Eu pensei que você tinha dito que a sua mulher estava morta.

— Ela está.

— Ela cometeu os assassinatos antes de morrer, então?

— Depois. Nem pergunte.

Ela esticou a mão e tirou o cabelo da testa.

Encostaram na rua Principal, na frente do Buck Stops Here. A placa em cima da janela mostrava um gamo com cara de surpresa de pé sobre as duas patas traseiras segurando um copo de cerveja. Shadow pegou o saco com o livro e saiu do carro.

— Por que fariam uma guerra? — perguntou Sam. — Parece meio redundante. O que eles querem ganhar?

— Não sei.

— É mais fácil acreditar em alienígenas do que em deuses — disse Sam. — Talvez o senhor Town e o senhor Sei-lá-o-quê fossem Homens de Preto, mas do tipo alienígena.

Estavam parados na calçada. Sam parou de falar e olhou para Shadow. Sua respiração ficou pairando no ar da noite, como uma nuvem rala. Ela disse:

— Só me diz que você está do lado do bem.

— Não dá. Queria que desse. Mas estou fazendo o melhor que posso.

Ela olhou para ele e mordeu o lábio inferior. Então assentiu com a cabeça:

— Pra mim, está bom. Não vou entregar você. Me paga uma cerveja? Shadow abriu a porta para ela e uma onda de calor e de música veio de encontro a eles. Entraram.

Sam acenou para alguns amigos. Shadow cumprimentou com um aceno da cabeça um punhado de pessoas cujos rostos — mas não dos nomes — ele se lembrava do dia em que procuravam Alison McGovern, ou que havia encontrado na Mabel's pela manhã. Chad Mulligan estava parado ao lado do bar, com o braço em volta dos ombros de uma ruiva baixinha — a prima beijoqueira, Shadow concluiu. Perguntou a si mesmo como seria seu rosto, mas ela estava de costas. A mão de Chad se ergueu em um brinde fictício quando viu Shadow. Ele sorriu e acenou em resposta. Shadow olhou em volta à procura de Hinzelmann, mas o velho não parecia estar lá naquela noite. Detectou uma mesa vazia no fundo e começou a se dirigir para ela.

Então, alguém começou a gritar.

Era um grito bem forte, do fundo da garganta, um grito histérico de alguém que havia visto um fantasma, que silenciou todas as conversas. Shadow olhou em volta, certo de que alguém estava sendo assassinado, e então percebeu que todos os rostos do bar se voltavam em sua direção. Até o gato preto, que dormiu na janela durante o dia, estava em pé em cima da jukebox com o rabo levantado e as costas arqueadas olhando para ele.

O tempo começou a passar em câmera lenta.

— Peguem ele! — gritou uma voz de mulher, à beira da histeria. — Ai, pelo amor de Deus, alguém pega ele! Não deixa ele fugir! Por favor!

Era uma voz que ele conhecia.

Ninguém se moveu. Olhavam para Shadow. Ele olhava de volta para eles.

Chad Mulligan deu um passo à frente, com os olhos arregalados, andando pelo meio das pessoas. A mulher baixinha andava atrás dele, cautelosamente, com os olhos esbugalhados, como se estivesse se preparando para gritar de novo. Shadow a conhecia. Claro que conhecia.

Chad ainda segurava sua cerveja, que colocou em cima de uma mesa próxima.

— Mike.

— Chad.

Audrey Burton segurou na manga de Chad. O rosto dela estava branco, e havia lágrimas em seus olhos.

— Shadow — ela disse. — Seu imbecil. Seu imbecil maléfico e assassino.

— Você tem certeza de que conhece este homem, querida? — disse Chad.

Ele parecia desconfortável.

Audrey Burton olhou para ele, incrédula.

— Você está louco? Ele trabalhou pro Robbie durante anos. A mulher piranha dele era a minha melhor amiga. Ele está sendo procurado por assassinato. Eu tive que responder perguntas. Ele é um condenado foragido.

Ela estava muito fora de si, com a voz tremendo de histeria suprimida, soluçando as palavras como uma atriz de novela disputando um prêmio de atuação na programação diurna. Primos que se beijam, pensou Shadow, sem se impressionar.

Ninguém no bar disse nenhuma palavra. Chad Mulhgan olhou para Shadow.

— Isso é provavelmente um engano. Tenho certeza de que vamos conseguir resolver tudo.

Então, disse para o bar:

— Está tudo bem. Nada com que se preocupar. Nós vamos resolver tudo. Tudo está bem.

— Vamos ali fora, Mike.

Competência tranqüila. Shadow estava impressionado.

— Claro — disse Shadow.

Sentiu alguém tocar sua mão e virou para ver Sam olhando para ele. Sorriu para ela da maneira mais confiante que pôde.

Sam olhou para Shadow, depois olhou em volta do bar, para os rostos que olhavam para eles. Ela falou para Audrey Burton:

— Eu não sei quem você é, mas você é uma puta.

Então ficou na ponta dos pés e puxou Shadow para si. Beijou-o forte nos lábios, empurrando a boca contra a dele, pelo que pareceram a ele vários minutos, e na verdade deve ter durado no máximo cinco segundos.

Era um beijo estranho, Shadow pensava, enquanto os lábios dela faziam pressão contra os dele: não era dirigido a ele, mas sim às pessoas no bar, para fazer com que soubessem de que lado ela estava. Era um beijo para dar bandeira. Mesmo durante aquele beijo, Shadow teve certeza de que ela nem mesmo gostava dele — bom, não daquele jeito.

E lembrou-se de um conto que lera certa vez, fazia muito tempo, quando era criança. Era a história de um viajante que escorregou e caiu montanha abaixo, com tigres que comiam gente em cima e um abismo letal embaixo, e que conseguiu frear a queda no meio da montanha, apegando-se à vida. Havia um arbusto de morangos ao lado dele, e morte certa acima e abaixo. O que ele deveria fazer? era a pergunta.

E a resposta era, Comer os morangos.

A história nunca fizera sentido para ele quando menino. Agora, fazia. Então, fechou os olhos, jogou-se no beijo e não sentiu nada além dos lábios de Sam e a maciez de sua pele contra a dele, doce como um morango selvagem.

— Vamos lá, Mike — disse Chad Mulhgan, com firmeza. — Por favor. Vamos resolver isso lá fora.

Sam se afastou. Lambeu os lábios e sorriu, um sorriso que quase alcançou os olhos dela.

— Nada mal. Você beija bem pra um menino. Tudo bem, vai brincar lá fora. Então, virou-se para Audrey Burton:

— Mas você ainda é uma puta.

Shadow jogou as chaves do carro para Sam. Ela as pegou no ar, com uma das mãos. Ele atravessou o bar e saiu, seguido por Chad Mulligan. Uma neve suave começou a cair, os flocos caiam em espiral, iluminados pela luz néon da placa do bar.

— Você quer falar sobre isso? — perguntou Chad. Audrey também foi até a calçada. Parecia estar pronta para começar a gritar novamente, e disse:

— Ele matou dois homens, Chad. O FBI veio bater na minha porta. Ele é um psicopata. Eu vou até a delegacia com você, se quiser.

— Você já causou confusão demais, moça — disse Shadow. Ele pareceu cansado, até para si mesmo.

— Por favor, vá embora.

— Chad? Você ouviu isso? Ele me ameaçou!

— Volte pra dentro, Audrey — disse Chad Mulhgan. Ela parecia estar prestes a discutir, então apertou os lábios com tanta força que ficaram brancos, e voltou para o bar.

— Você gostaria de fazer algum comentário a respeito do que ela disse? — perguntou Chad Mulligan.

— Eu nunca matei ninguém. Chad assentiu com a cabeça.

— Acredito em você. Tenho certeza de que vamos conseguir esclarecer todas essas alegações com muita facilidade. Você não vai causar nenhum problema, vai, Mike?

— Sem problemas — disse Shadow. — Isso tudo é um engano.

— Exatamente. Então, entendo que devemos ir até o meu gabinete e esclarecer tudo lá?

— Eu estou preso?

— Não. A não ser que você queira. Eu achei que você poderia me acompanhar por puro senso de dever cívico, e a gente esclarece tudo isso.

Chad revistou Shadow, mas não encontrou nenhuma arma. Entraram no carro de Mulligan. De novo, Shadow sentou-se no banco traseiro, olhando através da gaiola de metal. Ele pensou: S.O.S. Mayday. Socorro. Tentou afastar Mulligan com o pensamento, da mesma maneira que fez com um guarda certa vez em Chicago — Este aqui é o seu velho amigo Mike Ainsel. Você salvou a vida dele. Não vê como tudo isso é uma besteira? Por que simplesmente não esquece tudo?

— Acho que foi bom termos saído de lá — disse Chad. — Tudo o que precisava era de um boca-grande tirando a conclusão de que você era o assassino da Alison McGovern e a gente ia ter que lidar com uma multidão querendo promover um linchamento.

— Você tem razão.

Ficaram em silêncio durante o resto do trajeto até o prédio da polícia de Lakeside, que, como Chad disse quando estacionaram em frente, na verdade pertencia ao departamento do xerife do condado. A polícia local se virava com algumas salas lá dentro. Logo, logo o condado construiria algo mais moderno. Por enquanto, tinham que se virar com aquilo.

Entraram.

— Devo chamar um advogado? — perguntou Shadow.

— Você não foi acusado de nada — disse Mulligan. Atravessaram algumas portas de vaivém.

— Senta ali.

Shadow acomodou-se na cadeira de madeira com marcas de cigarro nas laterais. Sentia-se estúpido e entorpecido. Viu um pequeno pôster no quadro de avisos, ao lado de uma enorme placa de NÃO FUME que dizia: PROVÁVEL DESAPARECIDA. A fotografia era de Alison McGovern.

Havia uma mesa de madeira com edições antigas das revistas 5ports Illustrated e Newsweef?. A iluminação era ruim. A cor da parede era amarela, mas deveria ter sido branca algum dia.

Depois de dez minutos, Chad trouxe a ele uma xícara de chocolate quente aguado, de máquina.

— O que você carrega nesse saco? — perguntou. Foi só então que Shadow percebeu que ainda segurava o saco com o livro Minutas do Conselho da Cidade de Lakeside.

— Um livro velho. A foto do seu avô está aqui. Ou talvez seja o seu bisavô.

— É mesmo?

Shadow folheou o livro até achar a foto do conselho da cidade, e apontou para o homem chamado Mulligan. Chad riu.

— Isso não é o máximo?

Minutos se passaram, e horas, naquela sala. Shadow leu duas das Sports Illustrated e começou a folhear uma Newsweefe. De vez em quando, Chad entrava na sala, uma vez para perguntar se Shadow precisava usar o banheiro, outra para oferecer a ele um enroladinho de presunto e um pacote pequeno de batatas fritas.

— Obrigado — disse Shadow, aceitando. — Já estou preso? Chad chupou o ar por entre os dentes da frente.

— Bom, ainda não. Parece que você não nasceu legalmente sob o nome de Mike Ainsel. Por outro lado, aqui neste Estado você pode se chamar como quiser, se não for por razões fraudulentas. Espera mais um pouco.

— Posso dar um telefonema?

— Local?

— DDD.

— Você vai economizar se usar meu cartão de telefone, senão vai precisar colocar uns 10 dólares em moedas naquela coisa do corredor.

Claro, pensou Shadow. E assim você vai saber o número que eu disquei e, provavelmente, vai ficar ouvindo na extensão.

— Seria ótimo — disse Shadow.

Entraram em um escritório vazio. O número que Shadow deu a Chad para discar era da funerária em Cairo, Illinois. Chad discou e entregou o fone para Shadow — Vou deixar você aqui — disse, e saiu.

O telefone tocou várias vezes antes de ser atendido.

— Jacquel e Ibis? Posso ajudá-lo?

— Oi. Senhor Ibis, aqui é Mike Ainsel. Eu dei uma força aí na época do Natal. Um momento de hesitação, e então:

— Claro. Mike. Como vá; você?

— Não muito bem, senhor Ibis. Estou com uns problemas. Vou ser preso daqui a pouco. Espero que tenha visto o meu tio, ou que talvez possa dar um recado pra ele.

— Certamente posso descobrir por onde ele anda. Espere um pouco... humm, Mike, tem alguém aqui que quer dar uma palavrinha com você.

O telefone foi passado para alguém, e então uma voz rouca de mulher disse:

— Oi, querido. Estou com saudade de você. Ele tinha certeza de que nunca ouvira aquela voz. Mas ele a conhecia. Tinha certeza de que a conhecia...

Deixa rolar, a voz rouca sussurrava em sua mente, em um sonho. Deixa rolar.

— Quem era aquela garota que você estava beijando, querido? Você estava tentando me deixar com ciúme?

— Nós somos só amigos — disse Shadow. — Acho que ela estava tentando provar alguma coisa. Como você sabe que ela me beijou?

— Eu tenho olhos onde o meu povo anda. Agora cuide-se, querido... Houve um instante de silêncio, então o senhor Ibis voltou à linha e disse:

— Mike?

— Pois não.

— Estou tendo problemas pra achar o seu tio. Parece que ele está meio ocupado. Mas vou tentar dar o recado pra sua tia Nancy. Boa sorte.

A linha ficou muda.

Shadow sentou-se, esperando Chad voltar. Ficou sentado no escritório vazio, pensando que gostaria de ter algo com que se distrair. Com relutância, pegou as Minutas mais uma vez, abriu em algum lugar no meio do livro e começou a ler.

Uma ordenança proibindo expectorar nas calçadas e no chão dos edifícios públicos ou jogar tabaco nos mesmos lugares foi apresentada e aprovada, eu um dia útil de dezembro de 1876.

Lemmi Hautala tinha doze anos de idade e tinha "ido embora, caminhando a esmo, em um ataque de delírio" no dia 13 de dezembro de 1876. "Uma busca foi imediatamente organizada, mas impedida pelas neves, que eram ofuscantes." O conselho votou com unanimidade que fossem mandadas condolências para a família Hautala.

O fogo nos estábulos de cavalos dos Olsen, na semana seguinte, foi apagado sem feridos nem perda de vida, humana ou eqüina.

Shadow passava os olhos pelas colunas de escrita apertada. Não encontrou mais nenhuma menção a Lemmi Hautala.

E então, por um capricho, Shadow virou as páginas em direção ao inverno de 1877. Achou o que estava procurando em um aparte nas minutas de janeiro:

Jessie Lovat, idade não determinada, "uma criança negra" desaparecera na noite do dia 28 de dezembro. Acreditava-se que teria sido "seqüestrada por pretensos caixeiros-viajantes". Condolências não foram enviadas para a família Lovat.

Shadow percorria as minutas do inverno de 1878 quando Chad Mulligan bateu na porta e entrou, parecendo envergonhado, como se fosse uma criança levando para casa um boletim com notas baixas.

— Senhor Ainsel, Mike, sinto muito por tudo isso, de verdade. Pessoalmente, eu gosto de você. Mas isso não muda nada, sabe? Shadow disse que sabia.

— Eu não tenho escolha, a não ser prender você por violação de liberdade condicional.

Então Mulligan leu para Shadow os seus direitos. Preencheu uma papelada. Recolheu as impressões digitais de Shadow Conduziu-o pelo corredor ate a cadeia do condado, do outro lado do prédio.

Havia um balcão comprido e várias portas de um dos lados da sala, duas celas de prisão envidraçadas e uma porta do outro lado. Uma das celas estava ocupada — um homem dormia em uma cama de cimento embaixo de um cobertor fino. A outra estava vazia.

Uma mulher de aparência sonolenta vestida com um uniforme marrom, assistindo ao talk-show de Jay Leno em uma televisão portátil branca atrás do balcão, pegou os papéis de Chad e fez um sinal para Shadow. Chad ficou por ali, preencheu mais papéis. A mulher deu a volta no balcão, revistou Shadow, tirou todos os seus pertences — carteira, moedas, chave da porta da frente, livro, relógio — e colocou tudo no balcão, então lhe entregou um saco plástico com roupas cor-de-laranja dentro e mandou que fosse até a cela aberta e se trocasse. Podia ficar com suas próprias cuecas e meias. Ele entrou e vestiu as roupas e os chinelos. O fedor lá dentro era infernal. A camisa que vestiu tinha escrito nas costas, em letras grandes e pretas, CADEIA DO CONDADO DE LUMBER.

A privada de metal da cela estava entupida, e cheia até a tampa com uma mistura marrom de fezes líquidas e urina de cerveja amarga.

Shadow voltou, entregou suas roupas à mulher, que colocou no saco plástico junto com o resto dos pertences. Ele conferiu o conteúdo da carteira antes de entregá-la.

— Cuide bem disso — disse à mulher. — Minha vida inteira está aí dentro. A mulher pegou a carteira dele e garantiu que estaria a salvo. Perguntou a Chad se era verdade, e ele confirmou, dizendo que até hoje não haviam perdido os pertences de nenhum prisioneiro.

Enquanto se trocava, Shadow escondeu nas meias as quatro notas de 100 dólares que tirou disfarçadamente da carteira, junto com o dólar de prata com a efígie da Liberdade que escondeu na palma da mão, enquanto esvaziava os bolsos.

— Me diz uma coisa... Será que eu poderia terminar de ler o meu livro?

— Desculpa, Mike. Regras são regras.

Liz colocou os pertences de Shadow em uma sacola na sala dos fundos. Chad avisou que deixaria Shadow nas mãos hábeis da Oficial Bute. Liz parecia cansada e indiferente. Chad foi embora. O telefone tocou, e Liz — Oficial Bute — atendeu:

— Sim... Tudo bem... Certo... Sem problemas... Ela colocou o fone no gancho e fez uma careta.

— Algum problema? — perguntou Shadow.

— É. Na verdade, não. Mais ou menos. Estão mandando alguém de Milwaukee pra pegar você.

— Por que isso seria um problema?

— Porque vai ficar aqui comigo durante três horas — ela disse. — E aquela cela ali — apontou para a cela perto da porta, com o homem adormecido dentro dela — está ocupada. Ele está em vigília de suicídio, não posso colocar você junto com ele. E não vale a pena fazer toda a burocracia da sua detenção no condado pra depois fazer a liberação.

Ela sacudiu a cabeça.

— E você não vai querer ficar ali — apontou para a cela vazia onde tinha se trocado — porque a privada está entupida. Está fedendo lá dentro, não está?

— É. Está nojento.

— É humanidade comum, só isso. Quanto mais rápido a gente se mudar para as novas instalações, não vai ser rápido demais para mim. Uma das mulheres que ficou aqui ontem deve ter jogado um absorvente interno na privada. Eu sempre falo pra não fazerem essa porcaria. Temos latas de lixo pra isso. Entopem os canos. Cada absorvente jogado naquela privada custa cem paus em honorários de encanadores pro condado. Então, posso deixar você ficar aqui fora, algemado ou lá na cela. Ela olhou para ele:

— Você decide — disse.

— Não gosto muito delas, mas vou ficar com as algemas. Ela pegou um par de seu cinto de utilidades, então deu alguns tapinhas na pistola semi-automática no coldre, como se fosse para lembrá-lo de que estava lá.

— Mãos para trás — ela disse.

As algemas quase não serviram: os pulsos dele eram grossos. Então ela prendeu as pernas dele com algemas de tornozelo e mandou que sentasse em um banco na outra ponta do balcão, encostado na parede.

— Agora — ela disse —, se não me incomoda, não vou incomodar você. E virou a televisão de maneira que ele pudesse enxergar.

— Obrigado.

— Quando recebermos o prédio novo, essas loucuras não vão mais acontecer.

O Tonight Show de Jay Leno acabou. Um episódio do seriado Cheers começou. Shadow nunca assista Cheers. Viu uma vez um episódio da série — no qual a filha do Coach vai até o bar — , apesar de já ter visto aquele várias vezes. Shadow percebeu que você sempre pega o mesmo episódio das séries que não assiste, repetidas vezes, com anos de distância; achou que deveria ser algum tipo de lei cósmica.

A oficial Liz Bute recostou-se em sua cadeira. Ela não estava, obviamente, deixando os olhos se fecharem de sono, mas de jeito nenhum estava desperta, por isso não percebeu quando a turma do Cheers parou de falar e de fazer piadas e simplesmente ficou olhando através da tela para Shadow.

Diane, a garçonete loira que se achava intelectual, foi a primeira a falar:

— Shadow, estávamos tão preocupados. Você tinha desaparecido do mundo. É tão bom te ver de novo... apesar das suas amarras e do costume cor-de-laranja...

— Acho que a melhor coisa a fazer — opinou o chato do bar, Cliff — é fugir durante a temporada de caça, quando todo mundo veste cor-de-laranja. Shadow não disse nada.

— Ah, vejo que o gato comeu a sua língua — disse Diane. — Bom, você nos levou a uma perseguição alegre!

Shadow olhou para o outro lado. A oficial Liz começou a roncar suavemente. Carla, a garçonete baixinha, mandou:

— Ei! Trouxão! A gente vai interromper esta transmissão pra mostrar uma coisa que vai fazer você mijar nas calças. Está pronto?

A tela tremelicou e ficou escura. As palavras TRANSMISSÃO AO VIVO pulsavam em branco no canto inferior esquerdo da tela. Uma voz contida de mulher narrava:

— Certamente não é tarde demais pra passar pro lado vencedor. Mas, você sabe, você também tem a liberdade de ficar exatamente onde está. Isso é o que significa ser americano. Este é o milagre dos Estados Unidos. Liberdade pra acreditar significa ter liberdade pra acreditar na coisa errada, apesar de tudo. Assim como a liberdade de expressão dá a você o direito de ficar em silêncio.

A tela agora mostrava uma cena na rua. A imagem tremia, do jeito que acontece quando se filma algo com uma câmera de mão em documentários de vida real.

Um homem bronzeado, com cabelo ralo e com uma cara quase de cachorro abandonado preenchia a tela. Estava parado na frente de uma parede, bebericando seu café em um copo de plástico. Olhou para a câmera e disse:

— Terroristas se escondem atrás de palavras de duplo sentido, como "lutador da liberdade". Você e eu sabemos que eles são uma escória assassina, pura e simplesmente. Estamos arriscando nossas vidas pra fazer diferença.

Shadow reconheceu a voz. Ele esteve dentro da cabeça daquele homem certa vez. O senhor Town soava de forma diferente de seu interior — a voz era mais profunda, mais ressonante — mas não havia a menor dúvida de que era ele.

As câmeras se afastaram para mostrar que o senhor Town estava na frente de um prédio de tijolinhos em uma rua americana. Sobre a porta, havia um compasso e um esquadro enquadrando a letra G.

— Em posição — disse alguém fora da cena.

— Vamos ver se as câmeras dentro do prédio estão filmando — disse a narradora.

As palavras TRANSMISSÃO AO VIVO continuavam piscando no canto inferior esquerdo da tela. Agora a televisão mostrava o interior de um pequeno salão: a sala estava mal iluminada. Dois homens estavam sentados em uma mesa no fundo da sala. Um deles estava de costas para a câmera. A imagem se aproximou de maneira estranha. Por um instante, ficaram fora de foco, e então ficaram nítidos mais uma vez. O homem de frente para a câmera levantou-se e começou a andar, como um urso acorrentado. Era Wednesday. Parecia que, até certo ponto, estava gostando daquilo. Quando a imagem entrou em foco, o som veio com um estalo.

O homem de costas para a tela dizia:

— Estamos oferecendo pra você a oportunidade de acabar com tudo isso, aqui e agora, sem mais derramamento de sangue, sem mais agressão, sem mais dor, sem mais perda de vida. Será que não vale a pena ceder um pouco?

Wednesday parou de andar e virou-se. Suas narinas se abriram.

— Em primeiro lugar — ele rosnou — você tem que entender que está me pedindo pra falar em nome de todos nós. O que é uma loucura manifestada. Segundo, o que o faz pensar que eu acredito que vão cumprir a palavra?

O homem de costas para a câmera mexeu a cabeça.

— Isso é uma injustiça a si mesmo. Obviamente, o seu pessoal não tem líder nenhum. Mas você é o único que eles escutam. Eles prestam atenção. E, em relação a cumprir a minha palavra, bom, essas conversas preliminares estão sendo filmadas e transmitidas ao vivo.

Ele fez um gesto em direção à câmera e prosseguiu:

— Algumas pessoas da sua turma estão assistindo, enquanto conversamos. Outros vão ver videoteipes. A câmera não mente.

— Todo mundo mente — disse Wednesday.

Shadow reconheceu a voz do homem de costas para a câmera. Era o senhor World, aquele que havia conversado com Town pelo celular enquanto Shadow estava na cabeça dele.

— Você não acredita — perguntou o senhor World — que vamos cumprir nossa palavra?

— Eu acho que as suas promessas foram feitas pra serem quebradas, e os seus juramentos, pra serem abjurados. Mas eu vou cumprir a minha palavra.

— Salvo conduto é salvo conduto — disse o senhor World. — E nós concordamos a respeito da bandeira de trégua. Em todo caso, devo dizer que o seu protege mais uma vez está sob nossa custódia.

Wednesday roncou.

— Não — ele disse. — Não está.

— Discutíamos maneiras de lidar com a próxima mudança de paradigma. Nós não precisamos ser inimigos, precisamos? Wednesday parecia abalado e disse:

— Farei tudo que está ao meu alcance...

Shadow percebeu algo de estranho na imagem de Wednesday na tela. Um brilho vermelho queimava em seu olho esquerdo, o de vidro. O ponto luminoso deixava um rastro quando se mexia. Ele parecia não se dar conta disso.

— Esse país é muito grande — disse Wednesday, organizando suas idéias. Ele mexeu a cabeça e o ponto parecido com o feixe de uma caneta de laser se moveu para sua bochecha. Então parou sobre o olho de vidro mais uma vez.

— Tem lugar pra...

Ouviu-se um estouro, abafado pelos alto-falantes da televisão, e a parte lateral da cabeça de Wednesday explodiu. Seu corpo caiu para trás.

O senhor Wood ficou de pé, ainda de costas para a câmera, e saiu do campo visual da câmera.

— Vamos ver mais uma vez, agora em câmera lenta — disse a voz da narradora, de maneira tranqüilizadora.

As palavras TRANSMISSÃO AO VIVO se transformaram em REPRISE. Agora, lentamente, o ponto de laser vermelho retraçou seu caminho para o meio do olho de vidro de Wednesday, e mais uma vez a lateral de sua cabeça se dissolveu em uma nuvem de sangue. Imagem congelada.

— Sim, este é o país de Deus — disse a narradora, uma repórter de noticiário dando o arremate em sua reportagem. — A questão que fica no ar é... de que deus?

Outra voz — Shadow pensou que era do senhor World, tinha aquele mesmo aspecto quase familiar — disse:

— Agora, voltamos à nossa programação normal.

Em Cheers, Coach assegurava a sua filha de que ela era realmente bonita, exatamente como sua mãe.

O telefone tocou, e a Oficial Liz se aprumou na cadeira com um pulo. Ela tirou o fone do gancho e disse:

— Tudo bem, tudo bem. Sim. Tudo bem.

Colocou o fone no gancho e saiu de trás do balcão.

— Vou precisar colocar você na cela, mas não use a privada. O pessoal do departamento do xerife de Lafayette deve chegar logo pra levar você embora.

Ela removeu as algemas dos pulsos e dos tornozelos e o trancou na cela. O cheiro ficava ainda pior com a porta fechada.

Shadow sentou-se na cama de concreto, tirou o dólar com a efígie da Liberdade e começou a passá-la dos dedos para a palma da mão, de uma posição à outra, de uma mão à outra, com o propósito único de fazer com que qualquer pessoa que olhasse para ele não visse a moeda. Estava fazendo o tempo passar. Sentia-se entorpecido.

Então, sentiu saudades de Wednesday, de repente e de maneira profunda. Sentiu falta da segurança do homem, de sua atitude. De sua convicção.

Abriu a mão e olhou para a Lady Liberdade, um perfil de prata. Fechou os dedos ao redor da moeda e apertando firme. Ficou perguntando a si mesmo se seria um daqueles caras que recebem pena de prisão perpétua por alguma coisa que não fizeram. Se é que ele iria conseguir chegar tão longe. Pelo que viu a respeito do senhor World e do senhor Town, eles teriam poucos problemas para remove-lo do sistema. Talvez ele sofresse um acidente infeliz no caminho até a próxima cadeia. Alguém poderia atirar nele quando fizessem uma parada. Não parecia totalmente impossível.

Percebeu uma agitação na sala do outro lado do vidro. A Oficial Liz entrou de novo. Apertou um botão, uma porta se abriu, e um representante de xerife negro com um uniforme marrom entrou e caminhou rapidamente até a mesa.

Shadow voltou a esconder a moeda de um dólar na meia.

O novo representante entregou alguns papéis, Liz deu uma olhada e assinou. Chad Mulligan entrou, disse algumas palavras para o novo homem, depois destrancou a porta e entrou.

— Tudo bem. Esse cara está aqui pra levar você embora. Parece que você é um caso de segurança nacional. Você sabia disso?

— Vai dar uma bela notícia de primeira página no Lakeside News — disse Shadow.

Chad olhou para ele sem expressão.

— Que um vagabundo foi pego por violar a condicional? Acho que não é uma notícia muito importante.

— Então, é assim que vai ser?

— Foi o que me disseram — disse Chad Mulligan.

Shadow colocou as mãos para a frente dessa vez e Chad o algemou. Trancou as algemas das canelas e uma corrente que ia das algemas dos pulsos até as das canelas.

Shadow pensou: Eles vão me levar lá para fora. Talvez eu consiga escapar — usando algemas nas mãos e nos pés com roupas leves cor-de-laranja, para o meio da neve, e mesmo enquanto pensava, percebeu como aquela idéia era estúpida e desesperada.

Chad conduziu-o até o escritório. Liz desligou a TV O representante negro olhou-o de cima a baixo.

— Ele é um cara grande — disse para Chad.

Liz entregou ao novo representante a sacola de papel com os pertences de Shadow dentro, e ele assinou o recebimento.

Chad olhou para Shadow e depois para o representante. Disse ao representante, em voz baixa, mas alto o suficiente para que Shadow escutasse:

— Olha, eu só queria dizer que não me sinto nem um pouco confortável pela maneira com que tudo isso está acontecendo. O representante assentiu com a cabeça.

— Você vai ter que resolver esse assunto com as autoridades competentes, senhor. Nosso trabalho é simplesmente prendê-lo.

Chad fez uma expressão amarga e virou-se para Shadow:

— Tudo bem — disse. — Passe por aquela porta, pro ponto de partida.

— O quê?

— Por ali. Onde está o carro. Liz destrancou as portas.

— Assegure-se de que esse uniforme cor-de-laranja volte direto pra cá — ela disse ao representante. — O último criminoso que mandamos pra Lafayette, nunca mais vimos o uniforme. Isso custa caro pro condado.

Conduziram Shadow até o ponto de partida, onde um carro estava estacionado. Não era um carro de departamento de xerife. Era um carro de passeio preto. Outro representante, um cara branco e grisalho, de bigode, estava parado ao lado do carro, fumando um cigarro. Esmagou-o com o pé quando eles chegaram perto, e abriu a porta de trás para Shadow.

Ele se sentou desajeitadamente, com os movimentos restritos por causa das algemas e das correntes. Não tinha grade entre a parte da frente e o banco detrás do carro.

Os dois representantes se acomodaram na frente do carro. O representante negro deu a partida. Esperaram até que a porta se abrisse.

— Anda logo, anda logo — disse o negro, com os dedos tamborilando na direção.

Chad Mulligan deu uma batidinha no vidro lateral. O representante branco deu uma olhada para o motorista, então abriu a janela.

— Isso está errado — disse Chad. — Eu só queria dizer isso.

— Seus comentários foram anotados, e serão encaminhados às autoridades competentes.

As portas para o mundo exterior se abriram. A neve ainda caía, vertiginosamente, na frente dos faróis do carro. O motorista pisou no acelerador, e eles se dirigiram para a rua Principal.

— Você soube do Wednesday? — disse o motorista.

A voz dele parecia diferente, agora, mais velha, e familiar.

— Ele morreu.

— Ë. Eu sei — disse Shadow. — Eu vi na TV — Aqueles filhos da puta — xingou o oficial branco. Foi a primeira coisa que disse, e a voz dele era áspera, com sotaque e, como a voz do motorista, também era conhecida.

— Vou falar, são uns filhos da puta mesmo!

— Obrigada por virem me buscar — agradeceu Shadow.

— Nem fale — disse o motorista.

Iluminado por um carro que vinha na direção contrária, o rosto dele já parecia mais velho. Ele também parecia menor. Da última vez que Shadow o vira, usava luvas amarelo-limão e uma jaqueta xadrez.

— Estávamos em Milwaukee. Tivemos que dirigir como demônios quando Ibis ligou.

— Você acha que vou deixar prenderem e mandarem você pra cadeira elétrica, quando ainda estou esperando pra dar uma porrada na sua cabeça com a minha marreta? — perguntou o representante branco de maneira soturna, remexendo nos bolsos à procura de um maço de cigarros.

O sotaque dele era do Leste Europeu.

— A merda de verdade vai bater no ventilador daqui a uma hora ou menos — disse o senhor Nancy, parecendo mais consigo mesmo a cada instante. — Quando vierem mesmo buscar você. Vamos sair da estrada antes de chegar na auto-estrada 53, tirar essas algemas e colocar suas roupas de volta.

Czernobog segurava uma chave de algema e sorria.

— Gostei do bigode — disse Shadow. — Combina com você. Czernobog acariciou o bigode com um dedo amarelado.

— Obrigado.

— Wednesday, ele está mesmo morto? Não é algum tipo de truque, é? Ele percebeu que se prendia a alguma espécie de esperança, por mais que a idéia fosse tola. Mas a expressão do rosto de Nancy explicou tudo que ele queria saber, e a esperança se foi.

 

CHEGANDO À AMÉRICA 14000 a.C.

Estava frio, e escuro, quando a visão veio a ela, porque a luz do sol das terras longínquas do norte era um momento cinzento e turvo no meio do dia que vinha, e ia, e vinha de novo: um interlúdio entre escuridões.

Não fazia parte de uma grande tribo, em relação à maneira como esse tipo de coisa era contada naquele tempo: eram nômades das Planícies do Norte. Eles tinham um deus, que era a caveira de um mamute, cuja pele fora transformada em uma capa tosca. Chamavam-no de Nunyunnini. Quando não estavam viajando, ele repousava em uma armação de madeira, da altura de um homem.

Ela era a mulher sagrada da tribo, a guardiã dos segredos, e seu nome era Atsula, a raposa. Atsula andava atrás dos dois homens da tribo que carregavam o deus em cima de varas compridas, enrolado em peles de ursos, porque não deveria ser visto por olhos profanos, nem em épocas que não eram sagradas.

Eles vagavam pela tundra, carregando suas tendas. A melhor das tendas era feita de couro de caribu, e era a tenda sagrada, e havia quatro deles lá dentro:

Atsula, a sacerdotisa, Gugwei, o ancião da tribo, Yanu, o líder da guerra, e Kalanu, a batedora. Ela os reuniu ali, no dia seguinte à sua visão.

Atsula ralou um pouco de líquen e jogou no fogo, depois jogou algumas folhas secas com seu braço esquerdo debilitado: produziram fumaça, uma fumaça cinzenta que fazia os olhos arderem, e soltavam um odor picante e estranho. Então pegou uma xícara de madeira da plataforma e entregou a Gugwei. A xícara estava cheia até a metade com um líquido amarelo-escuro.

Atsula encontrou os cogumelos pungh — cada um com sete manchas, e só uma mulher verdadeiramente sagrada conseguia encontrar cogumelos com sete manchas — e os colheu na escuridão da lua, para secá-los sobre uma tira de cartilagem de rena.

Ontem, antes de dormir, ela comeu as três partes de cima secas dos cogumelos. Seus sonhos foram sobre coisas confusas e assustadoras, sobre luzes brilhantes que se moviam rapidamente, sobre montanhas de pedra, cheias de luzes se projetando para cima como estalagmites. No meio da noite ela acordou, suando, e precisando fazer água. Agachou-se em cima da xícara de madeira e a encheu com sua urina. Então a colocou do lado de fora da tenda, na neve, e voltou a dormir.

Quando acordou, tirou os torrões de gelo da xícara, deixando um líquido mais escuro e mais concentrado no fundo.

Foi esse líquido que distribuiu, primeiro para Gugwei, depois para Yanu e para Kalanu. Cada um deles tomou um grande gole do líquido, então Atsula tomou o último trago. Ela engoliu, e despejou o que sobrou no chão na frente do deus deles, uma libação para Nunyunnini.

Ficaram sentados dentro da tenda enfumaçada, esperando o deus falar. Do lado de fora, na escuridão, o vento uivava e resfolegava.

Kalanu, a batedora, era uma mulher que se vestia e andava como um homem: até tinha pegado Dalani, uma virgem de 14 anos, para ser sua esposa. Kalanu piscou os olhos com força, então se levantou e andou até a caveira de mamute. Colocou a capa de pele de mamute sobre si e ficou em pé, de maneira que sua cabeça ficasse dentro da caveira de mamute.

— Há maldade na terra — disse Nunyunnini na voz de Kalanu. — Maldade tal que, se vós permanecerdes aqui, na terra de vossas mães e das mães de vossas mães, todos vós perecereis.

Os três ouvintes gemeram.

— Ë por causa das pessoas que nos escravizam? Ou por causa dos grandes lobos? — perguntou Gugwei, de cabelos longos e brancos, e cujo rosto era tão enrugado quanto a casca cinzenta de uma árvore espinhenta.

— Não são as pessoas que vos escravizam — disse Nunyunnini. — Não são os grandes lobos.

— É uma onda de fome? Haverá escassez de alimento? — perguntou Gugwei. Nunyunnini ficou em silêncio. Kalanu saiu da caveira e esperou junto com os outros.

Era a vez de Gugwei vestir a capa de pele de mamute e colocar a cabeça dentro da caveira.

— Não uma escassez de alimento como as que vós conheceis — disse Nunyunnini, através da boca de Gugwei. — Apesar de uma onda de fome vir a seguir.

— Então, o que é? — perguntou Yanu. — Eu não tenho medo. Vou me colocar contra essa coisa. Nós temos lanças e pedras de arremessar. Deixe que uma centena de guerreiros poderosos venha contra nós, ainda assim vamos prevalecer. Levaremos todos até os pântanos e lá abriremos seus crânios com nossas pedras.

— Não c uma coisa humana — disse Nunyunnini na voz velha de Gugwei, — Vai vir dos céus. Eu ouvi um barulho mais alto do que dez trovões, e nenhuma das vossas lanças ou das vossas pedras poderá proteger-vos.

— Como podemos nos proteger? — perguntou Atsula. — Eu vi chamas nos céus. Eu ouvi um barulho mais alto do que dez trovões. Eu vi florestas derrubadas e rios ferventes.

— Ai... — disse Nunyunnini, mas não disse nada mais.

Gugwei saiu da caveira, curvando-se de maneira rígida, porque era um homem velho e suas juntas estavam inchadas e cheias de nós.

Silêncio. Atsula jogou mais folhas no fogo, e a fumaça fez com que os olhos deles lacrimejassem.

Então Yanu caminhou até a cabeça de mamute, colocou a capa em volta dos ombros largos e encaixou a cabeça dentro da caveira. A voz dele ribombou:

— Vós deveis viajar na direção do sol, para onde o sol se levanta. Lá encontrareis uma nova terra, onde estareis a salvo. Será uma longa jornada: a lua se inchará e se esvaziará, morrerá e nascerá, duas vezes, e haverá escravizadores e bestas, mas eu vos guiarei e vos manterei a salvo, se viajardes na direção do nascer do sol.

Atsula cuspiu na lama do chão e disse:

— Não.

Ela podia sentir o deus olhando para ela.

— Não. Vós sois um deus maldoso por nos dizer tal coisa. Morreremos. Todos nós morreremos, e então, quem sobrará para carregá-lo de um lugar ao outro, para levantar sua tenda, para untar vossas magníficas presas com gordura?

O deus não falou nada. Atsula e Yanu trocaram de lugar. O rosto de Atsula olhava através dos ossos amarelados do mamute.

— Atsula não tem fé — disse Nunyunnini na voz de Atsula. — Deve morrer antes que o restante da tribo chegue à nova terra, mas o resto deve sobreviver. Acreditai em mim: há uma terra a leste despovoada. Essa terra deve ser vossa terra, e a terra de vossos filhos, e a terra dos filhos de vossos filhos, durante várias gerações, e sete setes. Mas, se fosse pela falta de fé de Atsula, vós ficaríeis aqui para sempre. De manhã, desmontai vossas tendas e guardai vossos pertences, e caminhai em direção ao sol nascente.

E Gugwei e Yanu e Kalanu inclinaram as cabeças e louvaram o poder e a sabedoria de Nunyunnini.

A lua encheu e minguou e encheu e minguou mais uma vez. O povo da tribo caminhava para o leste, em direção ao nascer do sol, exaurindo-se através dos ventos gelados que entorpeciam a pele exposta. Nunyunnini fez uma promessa verdadeira a eles: não perderiam ninguém da tribo na viagem, a não ser uma mulher durante o trabalho de parto; e mulheres em trabalho de parto pertencem à lua, não a Nunyunnini.

Cruzaram a ponte entre as terras.

Kalanu tinha saído à primeira luz da manhã para abrir caminho. Agora o céu estava escuro, e ela ainda não havia retornado, mas o céu noturno estava vívido com suas luzes, fazendo nós, cintilando e rodopiando, fluindo e pulsando, branca e verde e violeta e vermelha. Atsula e seu povo já tinham visto as luzes do norte antes, mas ainda se assustavam com elas, e esse era um espetáculo como nunca viram antes.

Kalanu retornou a eles quando as luzes desenhavam formas e corriam pelo céu.

— Às vezes — ela disse a Atsula —, parece que eu poderia simplesmente abrir os braços e cair no céu.

— Isso é porque você é batedora — disse Atsula, a sacerdotisa. — Quando você morrer, cairá no céu e se transformará em uma estrela, para nos guiar como nos guiou em vida.

— Há uma cadeia de montanhas de gelo a leste, montanhas altas — disse Kalanu, com seus cabelos pretos como as penas dos corvos, compridos como um homem usaria. — Podemos escalá-las, mas vai demorar vários dias.

— Você nos guiará com segurança — disse Atsula. — Eu morrerei ao sopé da montanha, e esse será o sacrifício que os levará até as novas terras.

A oeste dali, nas terras de onde vieram, onde o sol tinha se posto horas antes, enxergava-se um clarão de luz amarelada e doentia, mais clara do que um relâmpago, mais clara do que a luz do dia. Era uma explosão de brilho puro que obrigou o povo sobre a ponte entre as terras a cobrir os olhos e a vomitar e a gritar. As crianças começaram a choramingar.

— Esta é a maldição sobre a qual Nunyunnini nos avisou — disse Gugwei, o ancião. — Certamente ele é um deus sábio, além de poderoso.

— Ele é o melhor de todos os deuses — disse Kalanu. — Em nossa nova terra, deveremos erguê-lo bem alto, e deveremos polir suas presas com óleo de peixe e gordura de animal, e contar aos nossos filhos, e aos filhos dos nossos filhos e à sétima geração de filhos dos nossos filhos, que Nunyunnini é o deus mais poderoso de todos, e que nunca deverá ser esquecido.

— Deuses são maravilhosos — disse Atsula, lentamente, como se estivesse revelando um grande segredo. — Mas o coração é mais. Porque eles vêm dos nossos corações, e para os nossos corações, um dia, voltarão...

E nem dá para dizer quanto tempo mais ela continuaria nessa blasfêmia, se não tivesse sido interrompida de modo a não haver espaço para nenhuma discussão.

O rugido que vinha do oeste era tão forte que fez com que ouvidos sangrassem, e as pessoas ficassem incapacitadas de escutar qualquer coisa durante algum tempo, que ficassem temporariamente cegas e surdas, mas vivas, sabendo que tinham mais sorte do que as tribos alojadas mais a oeste do que eles.

— Está bem — disse Atsula, mas não conseguia ouvir as palavras dentro de sua cabeça.

Atsula morreu aos pés da cadeia de montanhas, quando o sol da primavera estava em seu ápice. Ela não viveu para ver o Novo Mundo, e a tribo caminhou por aquelas terras sem a sua mulher sagrada.

Escalaram as montanhas, e foram em direção ao sudoeste, até encontrarem um vale com água fresca, e rios que transbordavam de peixes prateados, e cervos que nunca tinham visto homens e eram tão mansos que era necessário cuspir e pedir desculpas aos espíritos antes de matá-los.

Dalani deu à luz três meninos. Alguns diziam que Kalanu executou a magia final e que conseguiu fazer a coisa de homem com a noiva dela, enquanto outros diziam que o velho Gugwei não era tão velho a ponto de não poder fazer companhia a uma jovem noiva, enquanto o marido estava fora e, certamente, depois que Gugwei morreu, Dalani não teve mais filhos.

E as épocas de gelo vieram e foram embora. As pessoas se espalharam por toda aquela terra, formaram novas tribos e escolheram novos totens: corvos e raposas, preguiças e grandes gatos e búfalos, cada animal para marcar a identidade de uma tribo, cada animal para representar um deus.

Os mamutes das novas terras eram maiores, mais lentos e mais tolos do que os mamutes das planícies siberianas, e os cogumelos pungh, com suas sete manchas, não eram encontrados nas novas terras, e Nunyunnini não falava mais com a tribo.

E na época dos netos dos netos de Dalani e Kalanu, um bando de guerreiros, membros de uma tribo grande e próspera, voltando de uma expedição escravista no norte para seus lares no sul, descobriu o vale do primeiro povo:

mataram a maior parte dos homens e levaram presas as mulheres e muitas das crianças.

Uma dessas crianças, na esperança de obter clemência, levou-os até uma caverna onde encontraram uma caveira de mamute, os restos esfarrapados de uma capa de pele de mamute, uma xícara de madeira, e a cabeça conservada de Atsula, o oráculo.

Ao mesmo tempo em que alguns dos guerreiros na nova tribo queriam levar os objetos sagrados consigo, roubando os deuses do primeiro povo e tomando seu poder, outros foram contra a idéia, dizendo que não levariam nada além de má sorte e da hostilidade de seu próprio deus (porque essas pessoas eram de uma tribo de corvo, e os corvos são deuses invejosos).

Então jogaram os objetos montanha abaixo, para dentro de uma ravina profunda, e levaram os sobreviventes do primeiro povo com eles em sua longa viagem para o sul. E as tribos de corvos, e as tribos de raposas, ficaram cada vez mais poderosas naquela terra, e logo Nunyunnini foi totalmente esquecido.

 

People are in lhe dark, lhey don't know what to do I had a little lantern, oh but it gol blown out too. l'm reaching out my hand. I hope you are too. I just wani to be in thc dark with you. [4]

Greg Brown, "In The Dark With You"

 

Trocaram de carro às 5h da manhã, em Minneapolis, no estacionamento do aeroporto. Foram até o andar mais alto, onde as vagas ficavam a céu aberto.

Shadow pegou o uniforme cor-de-laranja e as algemas e colocou no saco de papel pardo que tinha guardado seus pertences durante um curto período, dobrou tudo e jogou em uma lata de lixo. Estavam esperando há dez minutos quando um homem com o corpo em forma de barril saiu de uma das portas do aeroporto e veio caminhando na direção deles. Ele estava comendo um pacote de batatas fritas do Burger King. Shadow o reconheceu imediatamente: linha sentado na traseira do carro dele quando deixaram a Casa na Pedra e cantarolado tão profundamente que fizera o carro vibrar. Agora ele exibia uma barba de inverno com mechas esbranquiçadas que não tinha antes. Fazia com que parecesse mais velho.

O homem limpou a gordura das mãos nas calças jeans e estendeu uma mão enorme para Shadow:

— Ouvi falar sobre a morte do Pai de Todos. Eles vão pagar por isso, e caro.

— O Wednesday era seu pai? — perguntou Shadow.

— Ele era o Pai de Todos — disse o homem. Sua voz profunda pegava na garganta.

— Diz pra eles, diz pra todos eles que, quando for preciso, meu povo vai estar lá.

Czcrnobog tirou um pedaço de tabaco do meio dos dentes e cuspiu sobre a neve que já tinha derretido e congelado de novo.

— E quantos são? Dez? Vinte?

A barba do homem, com corpo de barril, se eriçou.

— E você não acha que dez de nós valem cem deles? Quem é que ia ficar contra um representante do meu povo em uma batalha? Mas existem mais que isso, nas periferias das cidades, nas montanhas, no Catskills e alguns morando nas cidades carnavalescas da Flórida. Eles mantêm seus machados sempre bem-afiados. Virão se eu chamar.

— Faça isso, Elvis — disse o senhor Nancy.

Shadow pensou ter ouvido Elvis. Nancy havia trocado o uniforme de representante por um cardigã grosso, marrom, calças de veludo e sapatos de camurça marrons.

— Mande chamar todo mundo. É o que o velho bastardo iria querer que a gente fizesse.

— Ele foi traído. Ele foi assassinado. Eu ri do Wednesday, mas eu estava errado. Mais nenhum de nós está a salvo — disse o homem cujo nome soava como Elvis. — Mas você pode confiar em nós.

Deu um tapinha suave nas costas de Shadow e quase o derrubou de quatro no chão. Era como levar um golpe suave de uma bola de ferro de demolição nas costas.

Czcrnobog deu uma volta pelo estacionamento. Então, disse:

— Perdoe a minha pergunta, mas qual seria o nosso novo veículo? O homem com corpo de barril apontou:

— Ali está ela. Czcrnobog deu um ronco:

— Aquilo?

Era uma perua Kombi 1970. Tinha um adesivo de arco-íris no vidro detrás.

— É um ótimo veículo. E é a última coisa que vão esperar que vocês dirijam. Czernobog deu uma volta no veículo. Então começou a tossir, uma tosse do fundo do pulmão, das cinco da manhã, de um velho fumante. Ele puxou catarro da garganta c escarrou, e colocou a mão no peito fazendo uma massagem para espantar a dor.

— É. É o último carro de que vão suspeitar. Então, o que vai acontecer quando a polícia mandar a gente encostar pra procurar os hippies e a droga? Hein? Nós não vamos andar na Kombi mágica. Não combinamos com ela.

O homem de barba abriu a porta da Kombi.

— Eles vão dar uma olhada em vocês, vão perceber que vocês não são hippies e vão dar tchauzinho. É o disfarce perfeito. E foi o máximo que eu consegui encontrar em tão pouco tempo.

Czcrnobog parecia pronto para levar a discussão ainda mais longe, mas o senhor Nancy interveio suavemente:

— Elvis, você cumpriu seu dever. Nós agradecemos muito. Agora, aquele carro precisa voltar pra Chicago.

— Vamos deixar em Bloomington — disse o homem barbado. — Os lobos vão tomar conta dele. Não se preocupe mais com isso. E olhou para Shadow:

— Mais uma vez, gostaria de dizer que você pode contar comigo e que eu compartilho da sua dor. Boa sorte. E se a vigília começar pra você, minha admiração e minha solidariedade.

Ele esmagou a mão de Shadow com seu punho em forma de luva de apanhador de beisebol. Machucou.

— Diga ao corpo dele quando o vir. Diga que Alviss, filho de Vindalf, vai manter a fé.

A perua Kombi cheirara a patchuli, incenso antigo e tabaco a granel. Suas paredes e o chão eram forrados com um tapete cor-de-rosa desbotado.

— Quem era aquele? — perguntou Shadow, enquanto dirigia a Kombi rampa abaixo, arranhando as marchas.

— Como ele mesmo disse, Alviss, filho de Vindalf. É o rei dos anões. O maior, o mais forte, o mais poderoso entre todos.

— Mas ele não é anão — ressaltou Shadow. — Ele tem o quê? Um metro e setenta? Um metro e setenta e cinco?

— O que faz com que seja um gigante entre os anões — disse Czernobog, atrás dele. — É o anão mais alto dos Estados Unidos.

— Que história foi aquela de vigília?

Os dois velhos não disseram nada. Shadow deu uma olhada de canto de olho para o senhor Nancy, que estava olhando para o lado de fora pela janela.

— E então? Ele falou sobre uma vigília. Vocês escutaram. Czernobog falou do banco detrás:

— Você não vai precisar fazer isso.

— Fazer o quê?

— A vigília. Ele fala demais. Todos os anões só falam e falam. Não é nada pra se preocupar. Melhor tirar isso da sua cabeça.

Dirigir a caminho do sul era a mesma coisa que dirigir para o futuro. As neves foram sumindo lentamente e desapareceram por completo na manhã seguinte, quando a Kombi alcançou o Estado do Kentucky. O inverno tinha terminado no Kentucky, e a primavera estava chegando. Shadow começou a imaginar se por acaso existiria algum tipo de equação para explicar aquilo — talvez, a cada 80 quilômetros que percorria em direção ao sul, era um dia no futuro.

Ele teria mencionado sua idéia a alguém, mas o senhor Nancy estava dormindo no assento do passageiro, enquanto Czernobog roncava incessantemente no banco de trás.

O tempo parecia uma construção flexível naquele momento, uma ilusão que ele tinha à medida que percorria a estrada. Percebeu que estava prestando uma atenção dolorosa aos pássaros e aos animais: viu corvos no acostamento da estrada, comendo restos de outros bichos mortos por carros; bandos de pássaros deslizavam pelo céu, formando desenhos que quase faziam sentido; gatos olhavam para eles a partir de gramados de casas e de mourões de cercas. Czernobog deu um ronco e acordou, sentando-se lentamente.

— Sonhei uma coisa estranha... que eu era Bielebog, na verdade. Que o mundo sempre pensou que havia dois de nós, o deus claro e o escuro, mas, agora que nós dois éramos velhos, descobri que era só eu o tempo todo, dando presentes às pessoas, levando os presentes embora.

Tirou o filtro de um Lucky Strike, colocou o cigarro entre os lábios e acendeu.

Shadow abaixou a janela.

— Você não se preocupa com câncer de pulmão?

— Eu sou o câncer. Não me preocupo comigo mesmo. Nancy falou:

— Gente como nós não pega câncer. Não pegamos arteriosclerose, nem Mal de Parkinson, nem sífilis. Somos meio duros de matar.

— Mataram Wednesday — disse Shadow.

Ele saiu da estrada para encher o tanque, depois estacionou no restaurante ao lado do posto para tomar café da manhã. Quando entraram, o telefone na entrada começou a tocar de maneira estridente.

Fizeram seus pedidos para uma mulher de idade com um sorriso preocupado, que antes de eles entrarem estava sentada lendo uma edição em brochura de O que o Meu Coração Queria Dizer, de Jenny Kerton. A mulher suspirou, então foi até onde ficava o telefone, tirou o fone do gancho e disse:

— Pois não?

Então olhou para o salão e disse:

— É. Parece que estão. Espere um momento na linha. E dirigiu-se para o senhor Nancy.

— É para você.

— Tudo bem. Agora, moça, tenha certeza de que essas batatas estejam bem crocantes. Quase queimadas.

Ele caminhou até o telefone público:

— Sou eu... E o que faz você achar que eu sou tão burro assim?... Posso achar. Sei onde fica... Queremos. Claro que queremos. Você sabe que queremos. E eu sei que você quer se livrar dele. Então não vem falar merda pra mim.

Colocou telefone no gancho e voltou para a mesa.

— Quem era? — perguntou Shadow.

— A pessoa não disse.

— O que ela queria?

— Estão oferecendo uma trégua, enquanto entregam o corpo.

— E mentira — disse Czernobog. — Eles querem enganar a gente, e daí vão nos matar. A mesma coisa que fizeram com Wednesday. É o que eu costumava fazer — completou, com um orgulho sombrio.

— Será em território neutro — disse Nancy. — Neutro mesmo. Czernobog deu risada. O barulho parecia o de uma bola de metal rolando dentro de uma caveira seca.

— Eu também costumava dizer isso. Vamos pra um lugar neutro, daí acordava no meio da noite e matava todos. Aqueles eram os bons tempos.

O senhor Nancy deu de ombros. Esmigalhou suas batatas fritas marrom-escuras e sorriu em aprovação.

— Ã-hã. Essas batatas estão ótimas.

— Não podemos confiar naquela gente.

— Olha, eu sou mais velho do que você, mais inteligente e mais bonito — disse o senhor Nancy, batendo os dedos no fundo da garrafa de ketchup, espalhando o molho por cima de suas batatas queimadas. — Eu consigo comer mais mulher em uma tarde do que você em um ano. Eu consigo dançar igual a um anjo, lutar igual a um urso encurralado, planejar melhor do que uma raposa, cantar igual a um rouxinol...

— E o que você quer dizer com tudo isso é...?

Os olhos castanhos de Nancy olharam dentro dos olhos de Shadow:

— Que eles precisam se livrar do corpo tanto quanto nós precisamos recuperá-lo.

— Esse lugar neutro não existe — contestou Czernobog.

— Existe um — disse o senhor Nancy. — É o centro.

Determinar o centro de alguma coisa é, no mínimo, problemático. Em coisas vivas — pessoas, por exemplo, ou continentes — o problema se transforma em uma coisa intangível: Qual é o centro de um homem? Qual é o centro de um sonho? No caso da parte continental dos Estados Unidos, deve-se levar em conta o Alasca para encontrar o centro? E o Havaí?

Quando o século XX começou, montaram um enorme modelo dos Estados Unidos, os 48 estados de baixo, em papelão, e, para descobrir o centro, colocaram a estrutura sobre um alfinete, até encontrarem o lugar único em que ficava em equilíbrio.

Como era de se esperar, o centro exato da porção continental dos Estados Unidos ficava a vários quilômetros de Lebanon, no Estado do Kansas, na fazenda de porcos de Johnny Grib. Na década de 1930, os habitantes de Lebanon estavam prontos para colocar um monumento no meio da fazenda de porcos, mas Johnny Grib disse que não queria milhões de turistas chegando para pisotear tudo e incomodar os porcos, por isso, colocaram o monumento no centro geográfico dos Estados Unidos, 3 quilômetros ao norte da cidade. Construíram um parque, e um monumento de pedra para enfeitar o parque, e uma placa de latão para enfeitar o monumento. Asfaltaram a estrada desde a cidade e, certos da afluência de turistas prestes a chegar, até construíram um hotel próximo ao monumento. Então, ficaram esperando.

Os turistas não vieram. Ninguém veio.

Hoje é um parquezinho triste, com uma capela móvel que não conseguiria abrigar um velório com pouca gente e um hotel cujas janelas se parecem com olhos mortos.

— Ou seja — concluiu o senhor Nancy, enquanto passavam por Humansville, Missouri (população 1.084) —, o centro exato dos Estados Unidos é um parque minúsculo e devastado, uma igreja vazia, uma pilha de pedras, e um hotel abandonado.

— Fazenda de porcos — disse Czernobog. — Você acabou de dizer que o centro verdadeiro dos Estados Unidos era uma fazenda de porcos.

— Isso não é o que é — disse o senhor Nancy. — É o que as pessoas pensam que c. De qualquer jeito, é tudo imaginação. Por isso que é importante. As pessoas só brigam por causa de coisas imaginárias.

— O meu tipo de gente, você quer dizer? — perguntou Shadow. — Ou o seu tipo de gente?

Nancy não disse nada. Czernobog fez um barulho que pode ter sido uma risada, que pode ter sido um grunhido.

Shadow tentou acomodar-se na traseira na Kombi. Ele só tinha dormido um pouco. Estava com uma sensação ruim na boca do estômago. Pior do que a que teve na prisão, pior do que a que havia tido antes, quando Laura veio até ele e contou a respeito do assalto. Isso era ruim. Sua nuca estava arrepiada, ele se sentia enjoado e, várias vezes, sentia ondas de medo.

O senhor Nancy parou em Humansville, estacionou na frente de um supermercado. Entrou e Shadow o seguiu. Czernobog ficou esperando no estacionamento, fumando seu cigarro.

Havia um rapaz de cabelos claros, pouco mais velho do que um menino, reabastecendo as prateleiras de cereais matinais.

— Ei — disse o senhor Nancy.

— Ei — disse o rapaz. — É verdade, não é? Mataram ele?

— É. Mataram.

O rapaz bateu várias caixas de cereal matinal infantil Cap'n Crunch contra a prateleira.

— Acham que podem pisar na gente como se fosse um monte de baratas. Ele tinha uma pulseira de prata escurecida em volta do pulso.

— Nós não podemos ser pisoteados assim com tanta facilidade, podemos?

— Não — disse o senhor Nancy — Não podemos.

— Eu vou estar lá, senhor — falou o rapaz, com os olhos azul-pálidos soltando faíscas.

— Eu sei que vai, Gwydion.

O senhor Nancy comprou várias garrafas de um refrigerante que imita a Coca-cola, um pacote de seis rolos de papel higiênico, um maço de cigarrilhas de segunda, um cacho de bananas e um pacotinho de chicletes de menta.

— Ele é um bom garoto. Chegou aqui no século XVII. É galês. A Kombi serpenteou primeiro em direção ao oeste, depois, para o norte. A primavera se dissolveu mais uma vez para o beco sem saída do inverno. O Kansas era cinza como nuvens solitárias, janelas vazias e corações perdidos. "Shadow se transformou em um ávido caçador de estações de rádio, negociando com o senhor Nancy, que gostava de programas de entrevistas com participação dos ouvintes e de música para dançar, e com Czernobog, que preferia música clássica, quanto mais triste melhor, influenciada pelas estações evangélicas mais radicais. Shadow preferia flashbacks.

Quase no fim da tarde, pararam, a pedido de Czernobog, na periferia de Cherryvale, Kansas (população 2.464). Czernobog conduziu-os por uma campina fora da cidade. Ainda havia traços de neve nas sombras das árvores, e a grama era cor-de-sujeira. Ele caminhou, sozinho, até o meio da campina. Ficou parado lã, sujeito aos ventos do final de fevereiro, durante algum tempo. Primeiro, deixou a cabeça cair para a frente; depois começou a gesticular.

— Parece que ele está conversando com alguém — arriscou Shadow.

— Fantasmas — disse o senhor Nancy. — Costumavam adorá-lo aqui, há mais de cem anos. Faziam sacrifícios pra ele, libações derramadas com a marreta. Depois de um tempo, os habitantes da cidade perceberam por que muitos dos estranhos que passavam pela cidade não voltavam nunca mais. Aqui era onde escondiam alguns dos corpos.

Czernobog voltou do meio do campo. O bigode dele parecia mais escuro agora e tinha mechas pretas no meio de seus cabelos grisalhos. Ele sorriu, mostrando seu dente cinzento.

— Eu me sinto bem agora. Ahh. Algumas coisas demoram pra ir embora... e o sangue é o que mais demora.

Atravessaram a campina até o local onde estacionaram a Kombi. Czernobog acendeu um cigarro, mas não tossiu.

— Usavam uma marreta. Votan falava de forca e de lança, mas pra mim é outra coisa...

Ele esticou um dedo cor-de-nicotina e bateu forte no meio da testa de Shadow.

— Por favor, não faça isso — disse Shadow, com educação.

— Por favor, não faça isso — imitou Czernobog. — Um dia desses vou pegar minha marreta e fazer muito pior do que isso com você, meu amigo, está lembrado?

— Estou, mas se você bater na minha cabeça de novo, eu quebro a sua mão. Czernobog soltou um grunhido. Então, disse:

— O pessoal daqui deveria ficar agradecido. Tanto poder se levantou. Mesmo trinta anos depois daquilo, forçaram o meu povo a se esconder, esta terra mesmo nos deu a maior estrela de cinema de todos os tempos. Ela foi a melhor que já existiu.

— Judy Garland? — perguntou Shadow Czernobog sacudiu a cabeça de maneira irritada.

— Ele está falando de Louise Brooks — disse Nancy. Shadow preferiu não perguntar quem era Louise Brooks e mudou de assunto.

— Então, veja bem, quando Wednesday foi falar com eles, estava cm trégua.

— Sim.

— E agora nós vamos recolher o corpo dele, em trégua.

— Sim.

— E vocês sabem que me querem morto ou fora do caminho.

— Eles querem todos nós mortos — disse Nancy.

— Então, o que eu não entendo, é por que acreditamos que vão jogar limpo dessa vez se não jogaram com Wednesday.

— Ë por isso — disse Czernobog — que vamos nos encontrar no centro. Esse lugar é...

Ele fez uma careta:

— Qual é mesmo a palavra? O contrário de sagrado?

— Profano — disse Shadow, sem pensar.

— Não — disse Czernobog. — O que eu quero dizer é um lugar menos sagrado do que qualquer outro. De sacralidade negativa. Lugares em que não se pode construir um templo, aonde as pessoas não vão, e de onde vão embora assim que podem. Lugares em que deuses só vão se forem forçados.

— Não sei — disse Shadow. — Acho que não existe uma palavra pra isso.

— Os Estados Unidos inteiros têm um pouco disso — disse Czernobog. — Por isso não somos bem-vindos aqui. Mas o centro, o centro é pior. Igual a um campo minado. Todos nós andamos prestando tanta atenção por lá que ninguém ousa romper a trégua.

Chegaram à Kombi. Czernobog deu um tapinha amistoso no antebraço de Shadow.

— Não se preocupe. Ninguém mais vai matar você. Ninguém além de mim.

Shadow descobriu o centro dos Estados Unidos na noite daquele mesmo dia, antes de estar totalmente escuro. Ficava em uma pequena colina a noroeste de Lebanon. Ele deu a volta pelo pequeno estacionamento ao lado da colina, passando pela minúscula capela móvel e pelo monumento de pedra, e, quando Shadow viu o hotel térreo da década de 1950 no fim do parque, seu coração ficou pequeno. Tinha um Humvee preto estacionado na frente — um jipe do tipo usado em guerras — que parecia um veículo refletido em um espelho torto, daqueles que distorcem as imagens, retorcido e sem sentido, e tão feio quanto um carro blindado. Não viram luzes acesas dentro do prédio.

Estacionaram ao lado do hotel e, assim que pararam, um homem com uniforme e quepe de chofer saiu do hotel e foi iluminado pelos faróis da Kombi. Ele os cumprimentou educadamente, levando a mão até a aba do quepe, entrou no Humvee e foi embora.

— Carro grande, pau pequeno — disse o senhor Nancy.

— Você acha que tem camas aqui? — perguntou Shadow. — Faz dias que eu não durmo em uma cama. Este lugar parece estar só esperando para ser demolido.

— Os donos são uns caçadores do Texas — explicou Nancy. — Eles vêm aqui uma vez por ano. Não faço a mínima idéia do que vêm caçar. Mas isso impede que o lugar seja condenado e destruído.

Desceram da Kombi. Esperando por eles na frente do hotel, havia uma mulher que Shadow não reconheceu. Estava perfeitamente arrumada, perfeitamente penteada. Ela o fez pensar em todas as apresentadoras de telejornais matutinos que eleja vira, sentadas em um estúdio que não se parecia nada com uma sala de visitas.

— Que bom ver os senhores — ela disse. — Então o senhor deve ser Czernobog. Ouvi muito falar do senhor. E o senhor, Anansi, sempre pronto pra uma sacanagem, hein? Seu velho engraçadinho. E o senhor... deve ser Shadow. O senhor certamente nos levou a uma perseguição divertida, não foi mesmo?

Uma das mãos pegou na dele, apertou-a com firmeza e ela olhou-o diretamente nos olhos:

— Eu sou Media. Prazer em conhecê-los. Espero que consigamos resolver os assuntos desta noite da maneira mais agradável possível. As portas principais se abriram.

— De algum jeito, Totó — disse o jovem gordo que Shadow vira pela última vez sentado na traseira de uma limusine —, acho que não estamos mais no Kansas.

— Estamos no Kansas — disse o senhor Nancy. — Acho que devemos ter percorrido a maior parte do Estado hoje. Caramba, como este país é plano!

— Este lugar não tem luz, não tem gerador, nem água quente — disse o jovem gordo. — E, sem ofender, vocês aí precisam mesmo de água quente. Fedem como se estivessem naquela Kombi há uma semana.

— Acho que não tem necessidade nenhuma de ir até lá — disse a mulher, com suavidade. — Somos todos amigos aqui. Entrem. Vamos mostrar os seus quartos. Nós pegamos os primeiros quatro quartos. Seu amigo falecido está no quinto. Todos os quartos depois do quinto estão vazios... vocês podem escolher. Temo que aqui não seja o Four Seasons, mas e daí? Nenhum lugar é.

Ela abriu a porta do saguão do hotel para eles. Cheirava a mofo, a umidade e a podridão.

Havia um homem sentado ali, na semi-escuridão.

— Vocês aí estão com fome? — perguntou.

— Eu sempre posso comer alguma coisa — respondeu Nancy.

— O motorista saiu pra buscar um saco de hambúrgueres. Ele volta logo. Olhou para cima. Estava muito escuro para distinguir os rostos, mas disse.

— Ei, grandão. Você é o Shadow, hein? O babaca que matou o Woody e o Stone?

— Não. Foi outra pessoa. E eu sei quem você é. Ele sabia. Ele esteve dentro da cabeça do homem.

— Você é Town. Já dormiu com a mulher do Wood? O senhor Town caiu da cadeira. Em um filme, teria sido engraçado; na vida real só era patético. Ele se levantou rapidamente, veio na direção de Shadow.

— Não começa nada que você não está preparado pra terminar. O senhor Nancy colocou a mão no antebraço de Shadow:

— Trégua, lembra? Estamos no centro.

O senhor Town virou-se para o outro lado, debruçou-se sobre o balcão e pegou três chaves.

— Vocês ficam no fim do corredor. Toma.

Entregou as chaves para o senhor Nancy e se afastou para dentro das sombras do corredor. Ouviram uma porta se abrir e depois bater com força.

O senhor Nancy entregou uma chave para Shadow, outra para Czernobog.

— Será que tem uma lanterna na Kombi? — perguntou Shadow.

— Não. Mas só está escuro. Você não precisa ter medo do escuro.

— Não tenho, Nancy. Tenho medo é das pessoas.

— O escuro é bom — disse Czernobog.

Ele parecia não ter dificuldade nenhuma para enxergar aonde ia, conduzindo-os pelo corredor escuro, colocando as chaves nas fechaduras sem errar a mira.

— Eu vou ficar no quarto dez — disse a eles. Depois, completou:

— Media. Acho que ouvi falar dela. Não foi ela que matou os filhos?

— Outra mulher — disse o senhor Nancy. — A mesma história. Nancy ficou no quarto 8, e Shadow na frente dos dois, no quarto 9. O quarto tinha um cheiro úmido, poeirento e abandonado. Havia um estrado de cama com um colchão por cima, mas sem lençol. Um pouco de luz do crepúsculo entrava no quarto pela janela. Shadow sentou-se no colchão, tirou os sapatos e se esticou ali cm cima por inteiro. Estava cansado de dirigir nos últimos dias. Talvez tenha dormido.

Ele estava caminhando.

Um vento frio puxava suas roupas. Os minúsculos flocos de neve eram pouco mais do que uma poeira cristalina que esvoaçava e ia de um lado para o outro no vento.

Havia árvores desfolhadas por causa do inverno, com aparência de mortas, c montanhas altas por todos os lados. Era o fim de uma tarde de inverno: o céu e a neve atingiram o mesmo tom escuro de púrpura. Em algum lugar à frente dele — sob aquela luz, as distâncias eram impossíveis de avaliar— as chamas de uma fogueira ardiam, cm amarelo c em cor-de-laranja.

Um lobo cinzento passeava na neve à sua frente.

Shadow parou. O lobo também parou, virou-se e esperou. Um dos olhos dele brilhou cm uma cor verde-amarelada. Shadow deu de ombros e continuou a caminhar em direção às chamas e o lobo marchou à frente.

A fogueira queimava no meio de uma alameda de árvores. Devia ter uma centena de árvores, plantadas em duas fileiras, com formas penduradas nos galhos. Ne final das fileiras havia uma construção que se parecia um pouco com um barco de ponta-cabeça. Era esculpida em madeira, e coberta de criaturas e de rostos de madeira — dragões, grifos, trolls e javalis — todos eles dançando à luz cintilante do fogo.

A fogueira era tão alta que Shadow mal podia se aproximar dela. O lobo andava devagar ao redor do fogo que estalava.

No lugar do lobo, um homem saiu do outro lado do fogo. Ele se apoiava em uma vara alta.

— Você está em Uppsala, na Suécia — disse o homem, com uma voz familiar e empedrada. — Cerca de mil anos atrás.

— Wednesday? — disse Shadow.

O homem continuou a falar, como se Shadow não estivesse lá.

— Primeiro, todo ano, depois, mais tarde, quando a podridão se instalou, e eles ficaram relaxados, a cada nove anos, faziam um sacrifício aqui. Um sacrifício de noves. A cada dia, durante nove dias, enforcavam nove animais nas árvores da alameda. Um desses animais era sempre um homem.

Ele saiu andando para longe do fogo, na direção das árvores, e Shadow o seguiu. Quando se aproximou das árvores, as formas que estavam penduradas se definiram: pernas, olhos, línguas e cabeças. Shadow sacudiu a cabeça: havia algo obscuramente triste em ver um boi pendurado pelo pescoço em uma árvore e, ao mesmo tempo, era tão surrealista que chegava a ser engraçado. Shadow passou por um gamo, um cachorro do mato, um urso pardo e um cavalo castanho com crina branca, um pouco maior do que um pônei. O cachorro ainda estava vivo: com intervalos de segundos, dava chutes espasmódicos no ar, e fazia um barulho de choramingo tenso enquanto balançava de um lado para o outro na corda.

O homem que ele seguia pegou sua longa vara, que Shadow percebia agora, a medida que se movia, ser uma lança, e rasgou o estômago do cão com ela, em um corte parecido com o de uma faca, do alto do peito para baixo. Entranhas fumegantes caíram na neve.

— Eu dedico esta morte a Odin — disse o homem, com formalidade.

— É apenas um gesto — disse, olhando para Shadow. — Mas os gestos significam tudo. A morte de um cachorro simboliza a morte de todos os cachorros. Nove homens deram a mim, mas representavam todos os homens, todo o sangue, todo o poder. Só que não foi suficiente. Um dia, o sangue parou de correr. Fé sem sangue só nos leva a uma certa distância. O sangue precisa correr.

— Eu vi você morrer — disse Shadow.

— No negócio dos deuses — disse afigura (e agora Shadow unha certeza de que era Wednesday, ninguém mais tinha aquela aspereza, aquela profunda alegria cínica nas palavras) —, não é a morte que importa. Ê a oportunidade da ressurreição. E quando o sangue corre...

Ele apontou para os animais e para as pessoas penduradas nas árvores. Shadow não conseguia saber se os humanos mortos pelos quais eles passavam eram mais ou menos horripilantes do que os animais: peio menos os humanos conheciam o destino que estava reservado a eles. Havia um profundo cheiro de bebida no corpo dos homens, o que sugeria que eles podiam se anestesiar no trajeto até a forca, ao passo que os animais deveriam ter sido simplesmente linchados, içados com vida e com medo. Aqueles rostos pareciam ser de homens (ao jovens: nenhum deles tinha mais de vinte anos.

— Quem sou eu? — perguntou Shadow.

— Você? — disse o homem. — Você foi uma oportunidade... fez parte de uma grande tradição. Apesar de nos dois estarmos tão comprometidos com o assunto a ponto de morrer por ele. Hein?

— Quem é você?

— A parte mais difícil é simplesmente sobreviver — disse o homem. A fogueira — e Shadow percebeu com horror estranho que, na verdade, era uma fogueira de ossos: gaiolas de costelas e caveiras com olhos vermelhos repousavam e se misturavam no meio das chamas, cuspindo cores elementares para o meio da noite, verdes, amarelas e azuis — brilhava, estalava e emitia muito calor.

— Três dias na árvore, três dias no submundo, três dias pra encontrar o caminho de volta.

As chamas eram tão aftas e brilhantes que Shadow mal conseguia olhá-las diretamente. Ele olhava para a escuridão embaixo das árvores.

Uma batida na porta — e agora o luar entrava pela janela. Shadow sentou-se com um pulo.

— O jantar está servido — avisou Media.

Shadow calçou de novo os sapatos, caminhou até a porta, saiu para o corredor. Alguém encontrou algumas velas, e uma luz amarelada e fraca iluminava a recepção. O motorista do Humvee entrou segurando uma bandeja de papelão e um saco de papel. Ele usava um casaco preto comprido e um quepe de chofer pontudo.

— Desculpem pela demora — disse, com voz áspera. — Trouxe a mesma coisa pra todo mundo: dois hambúrgueres, batatas fritas grandes, Coca grande e uma torta de maçã. Vou comer o meu no carro.

Deixou a comida e voltou para fora do prédio. O cheiro de fast-food encheu o saguão. Shadow pegou o saco de papel e distribuiu a comida, os guardanapos e os saches de ketchup.

Comeram em silêncio, enquanto as velas tremeluziam e a cera estalava ao queimar.

Shadow percebeu que Town olhava para ele. Virou a cadeira um pouco, de modo a ficar com as costas voltadas para a parede. Media comia seu hambúrguer com um guardanapo sob os lábios para acolher as migalhas.

— Ah, que maravilha. Estes hambúrgueres estão quase congelados — disse o garoto gordo.

Ele ainda usava seus óculos escuros, o que Shadow achou inútil e tolo, dada a escuridão da sala.

— Desculpe, mas o McDonald's mais próximo fica no Nebraska. Terminaram de comer seus hambúrgueres tépidos e suas batatas fritas frias. O garoto gordo deu uma mordida em sua torta de maçã e o recheio escorreu pelo seu queixo. De maneira inesperada, o recheio ainda estava quente.

— Ai! — ele disse.

Limpou a sujeira com a mão, lambendo os dedos para tirar o doce.

— Isso queima! Essas tortas são uma caixinha de surpresas, porra. Shadow teve vontade de bater no garoto. Estava com vontade de fazer isso desde que seus capangas o haviam ferido na limusine, depois do enterro de Laura. Tirou esta idéia da cabeça.

— Será que a gente não pode pegar logo o corpo do Wednesday e se mandar? — perguntou.

— A meia-noite — disseram Nancy e o garoto gordo ao mesmo tempo.

— Esse tipo de coisa precisa seguir certas regras — disse Czernobog.

— É — afirmou Shadow. — Mas ninguém fala quais são. Vocês vivem falando dessas porras de regras, mas eu nem sei qual é o jogo que estão jogando.

— É a mesma coisa que desrespeitar a data de lançamento — disse Media, em uma sacada inteligente. — Você sabe. Quando um produto pode começar a ser vendido.

Town disse:

— Acho que isso tudo é um monte de merda. Mas se as regras deixam eles contentes, então minha agência fica contente e todo mundo fica contente também.

Ele sugou a Coca pelo canudinho.

— Esperem até a meia-noite. Vocês pegam o corpo e vão embora. Nós fazemos uma carinha de alegria e damos tchauzinho pra vocês. E daí podemos voltar a caçar vocês como as ratazanas que são.

— Ei — disse o garoto gordo para Shadow. — Acabei de me lembrar. Eu tinha dito pra você dizer pro seu chefe que ele era passado. Você fez o que eu mandei?

— Fiz — respondeu Shadow. — E sabe o que ele disse pra mim? Que se eu visse aquele merdinha de novo era pra fazer ele se lembrar de que o futuro de hoje é o ontem do amanhã.

Wednesday nunca dissera tal coisa. Ainda assim, aquela gente parecia gostar de clichês. Os óculos escuros pretos refletiram as chamas cintilantes das velas de volta para ele, como olhos.

O garoto gordo disse:

— Esse lugar é uma porra de um lixão. Não tem luz. Fica fora do alcance dos cabos de força. Quer dizer, quando você precisa estar ao alcance de um cabo, está de volta à idade da pedra.

Ele sorveu o resto da Coca pelo canudinho, jogou o copo na mesa e saiu pelo corredor.

Shadow esticou os braços e colocou o lixo do garoto gordo no saco de papel.

— Vou ver o centro dos Estados Unidos — anunciou.

Levantou-se e saiu para o pátio, para o meio da noite. O senhor Nancy o seguiu. Passearam juntos pelo parque, sem dizer nada até chegarem ao monumento de pedra. Um vento soprava em rajadas fortes, primeiro vindas de uma direção, depois de outra.

— Então, o que acontece agora?

A meia-lua pairava pálida no céu escuro.

— Agora — disse Nancy — você deve voltar pró seu quarto. Tranque a porta. Tente dormir. À meia-noite eles nos entregam o corpo. E daí a gente sai logo daqui. O centro não é um lugar estável pra ninguém.

— Se você está dizendo...

O senhor Nancy tragou sua cigarrilha.

— Isso nunca deveria ter acontecido. Nada disso. Nosso tipo de gente, nós... Ele começou a sacudir a cigarrilha, como se a usasse para procurar uma palavra, e então, fazendo um gesto de punhalada com ela:

— Nós não somos sociáveis. Nem mesmo eu. Nem o Baco. Não por muito tempo. Andamos por aí sozinhos ou nos fechamos em nossos grupinhos. Não jogamos bem com outras pessoas. Gostamos de ser adorados, respeitados e cultuados... eu, eu gosto que contem histórias a meu respeito, histórias que mostrem a minha inteligência. É um defeito, eu sei, mas é assim que sou. Gostamos de ser grandes. Agora, nestes tempos parcos, nós somos pequenos. Os novos deuses se erguem, entram em decadência e se erguem mais uma vez. Mas este não é um país que tolera seus deuses durante muito tempo. Brahma cria, Vishnu preserva, Shiva destrói, e o terreno fica limpo pra Brahma criar mais uma vez.

— Então, o que você está querendo dizer? — perguntou Shadow. — A luta acabou, agora? A batalha chegou ao fim? O senhor Nancy soltou um grunhido.

— Você está louco? Mataram Wednesday. Mataram e ainda ficaram se gabando por aí. Mandaram recado pra todos os cantos do país. Mostraram em todos os canais visíveis pra quem tem olhos pra ver. Não, Shadow. Acabou de começar.

Ele se agachou aos pés do monumento, apagou a cigarrilha na terra, e deixou lá, como uma oferenda.

— Você costumava contar piadas — disse Shadow. — Agora você não conta mais.

— É difícil encontrar piadas hoje em dia. Wednesday morreu. Você vai entrar?

— Daqui a pouco.

Nancy se afastou na direção do hotel. Shadow esticou a mão e tocou nas pedras do monumento. Arrastou seus dedos longos pela placa de latão. Então caminhou até a minúscula capela branca, atravessou a porta aberta, para dentro da escuridão. Sentou-se no banco de madeira mais próximo, fechou os olhos, abaixou a cabeça e pensou em Laura, em Wednesday e no fato de estar vivo.

Ouviu-se um dique atrás dele, e um sapato raspando na terra. Shadow sentou-se e se virou. Alguém estava parado do lado de fora da porta, uma silhueta negra contra as estrelas. O luar refletia em alguma coisa de metal.

— Você vai me matar? — perguntou Shadow — Por Jesus... bem que eu queria — disse o senhor Town. — Mas é só pra me defender. Então, você está rezando? Eles convenceram você de que são deuses? Eles não são deuses.

— Eu não estava rezando. Só estava pensando.

— Da maneira que eu entendo — disse Town — eles são só mutações. Experiências evolucionárias. Um pouco de habilidade hipnótica, um pouco de hocus-pocus, e podem fazer com que as pessoas acreditem em qualquer coisa. Nada sobre o que valha a pena escrever uma carta. Só isso. Além de tudo, eles morrem igual aos homens.

— Sempre morreram — disse Shadow.

Ele se levantou, e Town deu um passo para trás. Shadow saiu da pequena capela e o senhor Town manteve uma certa distância dele.

— Ei — disse Shadow. — Você sabe quem foi Louise Brooks?

— Amiga sua?

— Não. Ela era uma estrela de cinema de um lugar ao sul daqui. Town fez uma pausa.

— Talvez ela tenha mudado de nome e se transformado em Liz Taylor ou em Sharon Stone ou em alguém assim — ele sugeriu, solícito.

— Talvez.

Shadow começou a voltar para o hotel. Town o acompanhou.

— Você deveria voltar pra prisão — disse o senhor Town. — Deveria estar na porra do corredor da morte.

— Eu não matei seus associados — disse Shadow. — Mas vou dizer uma coisa que um cara me disse certa vez, quando eu estava na prisão. Uma coisa que eu nunca esqueci.

— E o que é?

— Tinha só um cara na Bíblia inteira pra quem Jesus prometeu pessoalmente um lugar no Paraíso do lado dele. Não foi pra Pedro, nem pra Paulo, nem pra nenhum daqueles caras. Ele era um ladrão condenado, que estava sendo executado. Então, não fica tirando uma dos caras no corredor da morte. Talvez eles saibam de alguma coisa que você não sabe.

O motorista estava parado ao lado do Humvee.

— Boa noite, cavalheiros.

— Boa noite — respondeu o senhor Town. E então, disse, para Shadow:

— Eu, pessoalmente, estou cagando pra tudo isso. Eu faço o que senhor World manda. Ë mais fácil assim.

Shadow andou pelo corredor até o quarto 9. Abriu a porta e entrou.

— Desculpe, achei que este fosse o meu quarto.

— E é — disse Media. — Eu estava esperando você. Ele conseguia ver seus cabelos à luz do luar e seu rosto pálido. Estava sentada sobre a cama dele, de maneira ostensiva.

— Vou procurar outro quarto.

— Não vou ficar muito. Só achei que seria a hora apropriada pra fazer uma oferta.

— Tudo bem. Faça.

— Relaxa — ela disse.

Havia um sorriso em sua voz.

— Tem uma vara tão grande enfiada no seu eu. Olha, Wednesday está morto. Você não deve nada a ninguém. Junte-se a nós. "Ë hora de passar para o time vencedor".

Shadow não disse nada.

— Podemos fazer você famoso, Shadow. Podemos dar a você poder de decisão sobre o que as pessoas acreditam, dizem, vestem e sonham. Você quer ser o próximo Cary Grant? Podemos fazer isso acontecer. Podemos transformar você nos próximos Beatles.

— Acho que preferia quando você oferecia os peitos da Lucy pra eu ver — disse Shadow. — Se é que era você.

— Ah — ela disse.

— Preciso do meu quarto de volta. Boa noite.

— E também, é claro — continuou, como se ele não tivesse dito nada —, podemos distorcer tudo. Podemos deixar as coisas bem ruins pra você. Você pode virar uma piada de mau gosto pra sempre, Shadow. Ou pode ser lembrado como um monstro. Você pode ser lembrado pra sempre, mas como Manson, Hitler... O que acha dessa idéia?

— Desculpa, moça, mas eu estou meio cansado. Ficaria agradecido se você fosse embora agora.

— Eu ofereci o mundo pra você. Quando estiver morrendo na sarjeta, lembre-se bem disso.

— Vou anotar.

Depois que ela foi embora, seu perfume ficou no ar. Ele se deitou, nu, sobre o colchão e pensou em Laura, mas qualquer coisa em que ele pensasse — Laura jogando frisbee, Laura comendo vaca preta com uma colher, Laura rindo, exibindo a lingerie exótica que comprou quando foi a um congresso de agentes de viagem em Anaheim — sempre se transformava, em sua mente, em Laura chupando o pau de Robbie quando um caminhão os mandou para fora da estrada e para o esquecimento. E daí ele ouvia as palavras dela, e cada vez doía mais.

Você não está morto, dizia Laura com sua voz calma, na cabeça dele. Mas eu também não tenho certeza se você está vivo.

Ouviu-se uma batida na porta. Shadow levantou-se e abriu a porta. Era o garoto gordo.

— Aqueles hambúrgueres estavam nojentos. Dá pra acreditar? Até o McDonalds eram 80 quilômetros. Achei que não tinha nenhum lugar do mundo que ficasse tão distante de um McDonald's.

— Este lugar está se transformando em uma estação de trem movimentada — disse Shadow. — Tudo bem, então aposto que você está aqui pra me oferecer a liberdade da internei se eu passar pró seu lado da cerca, certo?

O garoto gordo tremia.

— Não, você já virou carniça — disse. — Você... você é uma porra de um manuscrito iluminista, escrito em gótico, com capa de couro preta. Não poderia se transformar em hipertexto nem se quisesse. Eu... eu sou sináptico, enquanto você é sinóptico...

Shadow percebeu que ele tinha um cheiro estranho. De repente lembrou-se de um cara na cela do outro lado do corredor, da época da prisão, de quem Shadow nunca tinha ouvido falar. Ele tirou todas as roupas em plena luz do dia e disse que tinha sido enviado para levar todos embora, aqueles que fossem bons de verdade, como ele, em uma espaçonave prateada para um lugar perfeito. Aquela foi a última vez que Shadow o havia visto. O garoto gordo tinha o mesmo cheiro que aquele cara.

— Você está aqui por algum motivo?

— Só queria conversar — disse o garoto gordo. Havia um tom de choramingo em sua voz.

— O meu quarto me dá arrepios. Só isso. Me dá arrepios. Até o McDonald's são 80 quilômetros, dá pra acreditar? Talvez eu pudesse ficar aqui com você.

— E os seus amigos da limusine? Aqueles que bateram em mim? Você deveria pedir pra eles ficarem no seu quarto.

— As crianças não operariam aqui. Estamos em uma zona morta.

— Ainda falta um tempinho até a meia-noite, e mais ainda até o amanhecer. Acho que você deve estar precisando descansar. Eu sei que eu preciso.

O garoto gordo não disse nada durante um instante, então assentiu com a cabeça e saiu do quarto.

Shadow fechou a porta, e trancou com a chave. Deitou-se no colchão.

Depois de alguns instantes, o barulho começou. Demorou alguns minutos até ele entender o que era aquilo, então destrancou a porta e saiu para o corredor. Era o garoto gordo, agora de volta ao seu próprio quarto. Parecia que ele estava jogando algo enorme contra as paredes. Pelo barulho, Shadow imaginou que ele estava se jogando nas paredes. "Sou só eu mesmo", soluçava. Ou talvez fosse "Sou só uma merda". Shadow não sabia o que dizer.

— Fica quieto! — veio o grito do quarto de Czernobog, no fundo do corredor Shadow atravessou o saguão e saiu do hotel. Ele estava cansado. O motorista ainda estava parado ao lado do Humvee, uma silhueta escura com um quepe pontudo.

— Não conseguiu dormir, senhor?

— Não — disse Shadow.

— Aceita um cigarro, senhor?

— Não, obrigado.

— Não se importa se eu fumar?

— Vai fundo.

O motorista usou um isqueiro descartável Bic, e foi à luz amarela da chama que Shadow viu o rosto do homem, na verdade, o viu pela primeira vez, o reconheceu e começou a entender.

Shadow conhecia aquele rosto magro. Ele sabia que haveria cabelos ruivo-alaranjados bem aparados sob o quepe preto de motorista, bem rentes à cabeça. Ele sabia que, quando os lábios do homem sorrissem, iriam se desdobrar em uma rede de cicatrizes duras.

— Você parece bem, grandão — disse o motorista.

— Eow Key?

Shadow olhava para o seu ex-companheiro de cela com precaução. As amizades na prisão são uma coisa boa: fazem com que você agüente lugares ruins e períodos escuros. Mas uma amizade de prisão acaba nos portões da prisão, e um amigo da prisão que reaparece na sua vida é, na melhor das hipóteses, uma bênção mista.

— Meu Deus, Eow Key Eyesmith — disse Shadow. E foi então que ouviu o que dizia e compreendeu.

— Loki. Loki Lie-Smith.

— Você é lerdo, mas chega lá.

E os lábios dele se contorceram em um sorriso e lembranças dançaram nas sombras de seus olhos.

Ficaram no quarto de Shadow, no hotel abandonado, sentados sobre a cama, cada um em uma ponta do colchão. Os sons vindos do quarto do garoto gordo tinham diminuído bastante.

— Você tem muita sorte de nós termos ficado presos juntos — disse Loki. — Nunca teria sobrevivido ao primeiro ano se eu não estivesse lá.

— Você não poderia ter saído de lá se quisesse?

— É mais fácil cumprir a pena. Ele fez uma pausa. Então, disse:

— Você precisa entender essa coisa de ser deus. Não é magia. E só ser você, mas aquele você em que as pessoas acreditam. É ser a essência concentrada e aumentada de si mesmo. É se transformar em trovão, ou no poder de um cavalo galopante, ou em sabedoria. Você absorve toda a f é e fica maior, mais legal, mais do que humano. Você cristaliza.

Ele fez uma pausa.

— Então, um dia esquecem que existe, não acreditam mais em você e não fazem mais sacrifícios... não se importam, e quando você percebe, está misturando cartas pra confundir quem passa na esquina da Broadway com a Rua 43.

— Por que você foi parar na minha cela?

— Coincidência. Pura e simplesmente.

— E agora você é o motorista da oposição.

— Se é assim que você quer classificar, tudo bem. Depende do lado em que você está. Do jeito que eu enxergo as coisas, sou o motorista do time vencedor.

— Mas você e o Wednesday, vocês eram do mesmo, vocês dois são...

— Do panteão nórdico. Nós dois somos do panteão nórdico. E isso que você está tentando dizer?

— É.

— E daí? Shadow hesitou.

— Vocês devem ter sido amigos algum dia.

— Não. Nunca fomos amigos. Não me sinto mal por ele estar morto. Ele só estava segurando todo o resto de nós. Já que não está mais aqui, o resto de nós vai precisar encarar os fatos: é mudar ou morrer, evoluir ou perecer. Ele se foi. A guerra acabou.

Shadow olhou para ele, confuso:

— Você não é tão estúpido assim. Você sempre foi tão perspicaz. A morte do Wednesday não vai fazer nada acabar. Só serviu pra empurrar todos que estavam em cima do muro pro lado dele.

— Mistura de metáforas, Shadow. Mau hábito.

— Sei lá — disse Shadow. — Continua sendo verdade. Jesus. A morte dele fez em um instante o que ele passou os últimos meses tentando fazer. Fez com que se unissem. Deu a eles algo em que acreditar.

— Talvez — Loki deu de ombros. — Até onde eu sei, o pensamento desse lado do muro é que, com o encrenqueiro fora do caminho, os problemas também foram embora. Mas isso não é da minha conta. Eu só dirijo.

— Então, me fala — disse Shadow, — porque todo mundo está preocupado comigo? Agem como se eu fosse importante. Por que o que faço importa pra eles?

— Bem que eu queria saber. Você era importante pra nós porque era importante pra Wednesday. O porquê disso... acho que é só mais um dos pequenos mistérios da vida.

— Estou cansado de mistérios.

— É? Acho que eles dão um toque especial pro mundo. Igual ao sal em um cozido.

— Então você é o motorista deles. Você trabalha pra todos eles?

— Pra quem precisar de mim. É um ganha-pão.

Levantou o relógio de pulso à altura dos olhos, apertou um botão: o mostrador brilhou em um azul suave, que iluminou o rosto dele, conferindo-lhe uma aparência assombrosa, assombrada.

— Cinco pra meia-noite. Está na hora — disse Loki. — Você vem? Shadow respirou fundo.

— Vou.

Percorreram o corredor escuro do hotel até chegar ao quarto 5.

Loki tirou uma caixa de fósforos do bolso e acendeu um palito com a unha do indicador. O clarão momentâneo feriu os olhos de Shadow. Um pavio de vela cintilou e pegou fogo. Depois, outro. Loki acendeu mais um fósforo e continuou a acender os tocos de vela: estavam sobre os peitoris das janelas, sobre a cabeceira da cama e sobre a pia do canto do quarto.

A cama fora deslocada de sua posição original, contra a parede, para o meio do quarto, deixando um espaço menor do que um metro entre a cama e a parede de cada lado. Havia lençóis velhos de hotel estendidos sobre a cama, cheios de buracos de traças e de manchas. Em cima dos lençóis repousava Wednesday, perfeitamente imóvel.

Usava o terno claro que vestia quando fora morto. O lado direito do rosto dele estava intocado, perfeito, sem nenhuma lesão sanguinolenta. Já o lado esquerdo era uma confusão irregular, e o ombro esquerdo e a parte da frente do terno estavam respingados de manchas escuras. As mãos estavam acomodadas ao lado do corpo. A expressão naquele destroço de um rosto estava longe de tranqüila: parecia magoada — uma mágoa do fundo da alma, profunda, cheia de ódio, de raiva e de loucura crua. E, em certo nível, parecia satisfeita.

Shadow imaginou as mãos habilidosas do senhor Jacquel suavizando aquela raiva e aquele ódio, reconstruindo um rosto para Wednesday com cera e maquiagem de necrotério, dando a ele uma paz e uma dignidade final que até mesmo a morte tinha lhe negado.

Ainda assim, o corpo não parecia menor na morte. E ainda tinha um cheiro fraco de Jack Daniel's.

O vento das planícies se levantava: ele o ouvia uivando ao redor do velho hotel no centro imaginário dos Estados Unidos. As velas sobre o peitoril da janela pingavam e tremeluziam.

Ele não ouviu passos pelo corredor. Alguém bateu na porta e pediu:

— Anda logo, por favor, está na hora.

E começaram a entrar no quarto arrastando os pés, com as cabeças abaixadas.

Town entrou primeiro, seguido por Media, pelo senhor Nancy e por Czernobog. Por último veio o garoto gordo: ele tinha arranhões frescos e vermelhos no rosto, e seus lábios se moviam o tempo todo, como se estivesse recitando algumas palavras para si mesmo, mas não emitia som nenhum. Shadow sentiu pena dele.

Informalmente, sem que nenhuma palavra fosse proferida, enfileiraram-se em volta do corpo, cada um à distância de um braço estendido do outro. A atmosfera do quarto era religiosa — profundamente religiosa, como Shadow nunca tinha experimentado antes. Não havia som nenhum a não ser o vento uivante e o estalar das velas.

— Estamos reunidos, aqui neste lugar sem deus — disse Loki —, pra entregar o corpo deste indivíduo pra aqueles que vão dispor dele da maneira adequada, de acordo com os rituais. Se alguém deseja dizer alguma coisa, que diga agora.

— Eu não — disse Town. — Nunca conheci o cara direito. E essa coisa toda me deixa desconfortável. Czernobog disse:

— Essas ações vão ter conseqüências. Vocês sabiam disso? Isso aqui só pode ser o começo de tudo.

O garoto gordo começou a rir, um barulho agudo, meio de menina. Ele disse:

— Tudo bem. Tudo bem, entendi. E então, em uma nota só, recitou:

 

           Turning and tuming In the widening gyre 

         The falcon cannot hear the falconer;

           Thingsfall apart; the center cannot hold... [5]

 

E então parou de repente, com o cenho franzido. Disse:

— Merda. Eu costumava saber tudo. Esfregou a mão nas têmporas, fez uma careta e ficou quieto. E então todos olhavam para Shadow. O vento agora gritava. Ele não sabia o que dizer.

— Essa coisa toda é de dar dó. Metade de vocês o mataram e tem participação nisso. Agora estão nos entregando o corpo dele. Ótimo. Ele era uma porra de um velho irascível, mas eu bebi o mulso dele e ainda trabalho pra ele. Só isso.

Media disse:

— Em um mundo onde as pessoas morrem todos os dias, acho que a coisa mais importante a ser lembrada é que, pra cada momento de aflição que temos quando uma pessoa deixa este mundo, há um momento correspondente de alegria quando um bebê chega a este mundo. Esse primeiro lamento é... bom, é magia, não é? Talvez seja uma coisa difícil de se dizer, mas alegria e aflição são como arroz e feijão. Isso serve pra descrever como se dão bem juntas. Penso que todos nós devemos reservar um momento pra meditar sobre isso.

E o senhor Nancy limpou a garganta e disse:

— Então. Eu que preciso dizer isso, porque ninguém mais vai dizer. Nós estamos no centro deste lugar: uma terra que não tem tempo pros deuses e, aqui no centro, tem menos tempo pra nós do que em qualquer outro lugar. Essa é uma terra-de-ninguém, um local de trégua, e nós observamos nossas tréguas aqui. Não temos outra escolha. Então. Vocês nos entregam o corpo do nosso amigo. Nós aceitamos. Vocês vão pagar por isso, assassinato por assassinato, sangue por sangue. Town disse:

— Que seja. Vocês poderiam economizar muito tempo e esforço se fossem pra casa e se matassem com um tiro na cabeça. Eliminariam o intermediário.

— Vai se foder — disse Czernobog. — Vai se foder e vai foder a sua mãe e vai foder a porra do cavalo fodido que você montava. Você não vai nem morrer em batalha. Nenhum guerreiro vai experimentar o seu sangue. Ninguém que está vivo vai tirar a sua vida. Você vai morrer uma morte suave e pobre... Vai morrer com um beijo nos lábios e uma mentira no coração.

— Deixe estar, velho — disse Town.

— The blood-dimmed tide is loose [6] — disse o garoto gordo. — Acho que era isso que vinha depois. O vento uivava.

— Tudo bem — disse Loki. — Ele é de vocês. Nós terminamos nossa parte. Eeva o velho bastardo embora.

Ele fez um gesto com os dedos, e Town, Media e o garoto gordo deixaram o quarto. Ele sorriu para Shadow.

— Não diga que nenhum homem é feliz, hein, garoto? — disse. E então ele também foi embora.

— O que acontece agora? — perguntou Shadow.

— Agora a gente embrulha ele e leva embora daqui.

Enrolaram o corpo com os lençóis do hotel, embrulhando-o bem em sua mortalha improvisada, de maneira que não fosse visto e que fossem capazes de carregá-lo. Os dois velhos se posicionaram, um em cada ponta do corpo, mas Shadow disse:

— Deixa eu ver uma coisa.

Dobrou os joelhos e colocou os braços ao redor da figura envolta em lençóis, deu um impulso para cima e colocou o pacote em cima do ombro. Esticou os joelhos, até ficar em pé, com facilidade relativa.

— Pronto. Peguei. Vamos colocar na traseira do carro.

Czernobog parecia pronto para discutir, mas fechou a boca. Molhou de saliva o polegar e o indicador e começou a apagar as velas com as pontas dos dedos. Shadow ouvia os chiados à medida que saía do quarto que ficava cada vez mais escuro.

Wednesday era pesado, mas Shadow conseguia agüentar se andasse sem parar. Ele não tinha outra escolha. As palavras de Wednesday se repetiam em sua cabeça a cada passo que dava pelo corredor, e ele quase podia sentir o gosto agridoce do mulso no fundo da garganta. Você me protege. Você me transporta de um lugar para outro. Você leva recados. Em uma emergência, mas só em uma emergência, você machuca pessoas que precisam ser machucadas. No evento improvável da minha morte, você conduz minha vigília...

O senhor Nancy abriu a porta do saguão do hotel para ele, depois correu e abriu a porta traseira da Kombi. Os outros quatro estavam esperando próximos ao Humvee, observando, como seja não pudessem mais esperar para ir embora. Loki colocou o quepe de motorista de volta na cabeça. O vento fazia as roupas de Shadow esvoaçarem, enquanto ele andava, e remexera os lençóis.

Ele colocou Wednesday da maneira mais suave que conseguiu na traseira da Kombi.

Alguém deu um tapinha no seu ombro. Shadow se virou. Town estava ali parado com a mão esticada. Ele segurava alguma coisa.

— Toma. O senhor World queria que você ficasse com isto. Era um olho de vidro. Havia uma rachadura fina no meio dele, e uma lasquinha minúscula faltando no meio.

— Achamos no salão da maçonaria quando fizemos a limpeza. Guarde pra ter sorte. Deus sabe que você vai precisar.

Shadow fechou a mão em volta do olho. Gostaria de ter dado alguma resposta ferina c esperta, mas Town já tinha voltado para o Humvee, e já havia entrado no carro. E Shadow não conseguiu pensar em nada inteligente para dizer.

Dirigiram-se para o leste. O amanhecer os encontrou em Princeton, Missouri. Shadow ainda não tinha dormido. Nancy disse:

— A gente pode deixar você em algum lugar? Se eu fosse você, arrumava uma identidade falsa e fugia pro Canadá ou pro México.

— Vou ficar com vocês, caras — disse Shadow. — Seria o que o Wednesday ia querer que eu fizesse.

— Você não trabalha mais pra ele. Ele morreu. Assim que entregarmos o corpo, você está liberado.

— Pra fazer o quê?

— Ficar fora do caminho, enquanto a guerra se desenrola — disse Nancy. Ele acionou o pisca-pisca e virou à esquerda.

— Fica escondido durante algum tempo — disse Czernobog. — Depois, quando tudo isso terminar, você volta pra mim, e eu termino o serviço.

— Pra onde vamos levar o corpo?

— Pra Virgínia. Lá tem uma árvore — disse Nancy.

— Uma árvore do mundo — falou Czernobog, com uma certa satisfação sombria. — Tinha uma dessas no meu pedaço do mundo. Mas a nossa crescia embaixo do mundo, não em cima.

— Colocamos ele aos pés da árvore — disse Nancy — e deixamos lá. Você vai embora. Pegamos o caminho pro sul. Há um batalha. Sangue é derramado. Muitos morrem. O mundo muda, um pouco.

— Vocês não me querem na sua batalha? Eu sou bem grande. E sou bom de briga.

Nancy voltou a cabeça para Shadow e sorriu — o primeiro sorriso verdadeiro que Shadow viu no rosto do senhor Nancy, desde que resgatou Shadow da cadeia do condado de Lumber.

— A maior parte desta batalha vai ser travada em um lugar inatingível e intocável pra você.

— Nos corações e nas mentes das pessoas — disse Czernobog. — Do mesmo jeito que aconteceu no grande carrossel.

— Hã?

— Lá na Casa na Pedra.

— Ah — disse Shadow. — Atrás do palco. Entendi. Igual ao deserto com os ossos.

O senhor Nancy levantou a cabeça.

— Cada vez que acho que não tem juízo suficiente, a ponto de oferecer suas entranhas pra um urso, você me surpreende. É, é lá mesmo que a batalha de verdade vai acontecer. O resto só vai ser um monte de relâmpagos e de trovões.

— Me fala como é a vigília — disse Shadow.

— Alguém tem que ficar com o corpo. É uma tradição. Vamos achar alguém.

— Ele queria que eu fizesse isso.

— Não — disse Czernobog. — Vai matar você. Idéia ruim, ruim, ruim.

— É? Vou morrer? De ficar com o corpo dele?

— Não é o que eu ia querer pró meu enterro — disse o senhor Nancy. — Quando eu morrer, só quero que me plantem em algum lugar quente. E depois, quando as mulheres bonitas passarem em cima do meu túmulo, eu agarro a canela delas, igual àquele filme.

— Eu nunca vi aquele filme — disse Czernobog.

— Claro que viu. É bem no fim. É o filme da escola. Com aquelas crianças indo pro baile de formatura.

Czernobog sacudiu a cabeça. Shadow disse:

— O filme se chama Carrie, a estranha, senhor Czernobog. Tudo bem, um de vocês me explica como é a vigília. Nancy disse:

— Você explica. Eu estou dirigindo.

— Eu nunca ouvi falar de nenhum filme chamado Carrie, a estranha. Você explica.

Nancy disse:

— A pessoa encarregada da vigília fica amarrada na árvore. Do mesmo jeito que Wednesday ficou. E então fica lá esperando nove dias e nove noites. Sem comida, sem água. Sozinha. No fim, soltam a pessoa, e, se ela sobreviver... bom, pode acontecer. E o Wednesday vai ter tido a vigília dele.

Czernobog disse:

— Talvez o Alviss possa mandar alguém do pessoal dele. Um anão conseguiria sobreviver.

— Eu vou fazer a vigília — disse Shadow.

— Não — disse o senhor Nancy.

— Vou.

Os dois velhos ficaram em silêncio. Finalmente, Nancy disse:

— Por quê?

— Porque é o tipo de coisa que uma pessoa viva faria — disse Shadow.

— Você é louco — disse Czernobog.

— Talvez. Mas eu vou fazer a vigília de Wednesday.

Quando pararam para encher o tanque, Czernobog anunciou que estava enjoado e que queria ir na frente. Shadow não se importava em mudar para a traseira da Kombi. Ele poderia se esticar mais e dormir.

Seguiram o caminho em silêncio. Shadow sentia que tinha tomado uma decisão; algo importante e estranho.

— Ei, Czernobog — disse o senhor Nancy, depois de um tempo. — Você reparou no garoto da técnica lá no hotel? Ele não estava feliz. Estava mexendo com alguma coisa que deu o troco pra ele. Esse é o maior problema dos garotos novos... acham que sabem tudo e não aprendem nada, a não ser pela maneira mais difícil.

— Que bom — disse Czernobog.

Shadow estava totalmente esticado no banco detrás. Ele se sentia como se fosse duas pessoas, ou mais de duas. Uma parte dele se sentia suavemente exultante: ele linha realizado alguma coisa... tinha se mexido. Não importava se não quisesse viver, mas ele queria viver, sim, e aquilo fazia toda a diferença. Ele esperava sobreviver àquilo, mas estava pronto para morrer, se fosse necessário. E, por um instante, pensou que a coisa toda era engraçada, era a coisa mais engraçada do mundo; e ficou imaginando se Laura apreciaria a piada.

Havia outra parte dele — talvez fosse Mike Ainsel, ele pensou, transformado em nada com o pressionar de um botão no Departamento de Polícia de Lakeside — que ainda estava tentando entender aquilo tudo, tentando enxergar o todo.

— Índios escondidos — ele disse em voz alta.

— O quê? — veio o coaxar irritado de Czernobog do banco da frente.

— Aqueles desenhos que dão pra gente colorir quando se é criança. "Você consegue ver os índios escondidos? Tem dez indiozinhos nesse desenho, você consegue achar todos eles?" E, à primeira vista, você só conseguia ver a cachoeira, as pedras e as árvores, depois você percebe que, se virar um pouco o desenho, a sombra é um índio...

Ele bocejou.

— Dorme — sugeriu Czernobog.

— Mas o todo... — disse Shadow.

Então ele dormiu, e sonhou com índios escondidos.

A árvore ficava na Virgínia. Ficava muito longe de qualquer lugar, nos limites de uma antiga fazenda. Para chegar até a fazenda, precisaram rodar quase uma hora ao sul de Blacksburg, passando por estradas com nomes como Pennywinkle Branch e Rooster Spur. Eles se enganaram de caminho duas vezes e o senhor Nancy e Czernobog perderam a paciência com Shadow e um com o outro.

Pararam para pedir informações em um armazém minúsculo, no sopé de uma montanha, onde a estrada bifurcava. Um velho saiu dos fundos da loja e olhou para eles: vestia um macacão jeans da Oshkosh B'Gosh e mais nada, nem sapatos. Czernobog escolheu uma pata de porco em conserva de um pote no balcão e saiu para comer no terraço, enquanto o homem de macacão desenhava mapas para o senhor Nancy em guardanapos, assinalando viradas e pontos de referência locais.

Colocaram-se a caminho mais uma vez, com o senhor Nancy dirigindo, e chegaram lá em dez minutos. Uma placa no portão dizia FREIXO.

Shadow saiu da Kombi e abriu o portão. A Kombi passou, sacolejando através da estrada de terra no meio do descampado. Ele fechou o portão e andou um pouco atrás da Kombi, esticando as pernas, correndo enquanto a Kombi se distanciava um pouco, apreciando a sensação de mexer o corpo.

Havia perdido toda a noção do tempo na viagem desde o Kansas. Será que eles estavam viajando há dois dias? Três dias? Ele não sabia.

O corpo na traseira da Kombi não parecia apodrecer. Ele podia sentir o cheiro dele — um odor fraco de Jack Daniel's, coberto por algo que poderia ser mel azedo. Mas o cheiro não era desagradável. De vez em quando, tirava o olho de vidro do bolso e olhava para ele: estava quebrado bem no fundo, fraturado pelo que ele imaginava ser o impacto de uma bala de revólver mas, além de uma lasca na íris, a parte da frente estava intacta. Shadow ficava rolando o objeto nas mãos, passando da direita para a esquerda, pegando cada vez com um dedo diferente. Era um suvenir medonho, mas estranhamente reconfortante: e ele suspeitava que Wednesday teria se divertido com a idéia de saber que seu olho acabaria no bolso de Shadow.

A sede da fazenda estava escura e fechada. Os pastos estavam cheios de mato e pareciam abandonados. O telhado da casa estava caindo no fundo e era coberto com um plástico preto. Chegaram ao topo de uma subida e Shadow enxergou a árvore.

Era cinzenta-prateada e mais alta do que a sede da fazenda. Era a árvore mais bonita que Shadow já tinha visto: espectral e ainda assim completamente real e quase perfeitamente simétrica. Também lhe pareceu familiar no mesmo instante: perguntou a si mesmo se não tinha sonhado com ela, depois percebeu que não, que já havia visto uma representação dela antes, muitas vezes. Era o alfinete prateado da gravata de Wednesday.

A Kombi sacolejava e dava solavancos pelo meio do descampado, e parou a cerca de 6 metros do tronco da árvore.

Havia três mulheres paradas ao lado da árvore. À primeira vista, Shadow pensou que fossem as Zoryas, mas, não, eram três mulheres que ele não conhecia. Pareciam cansadas e entediadas, como se estivessem ali há muito tempo. Cada uma segurava uma escada de madeira. A maior delas também carregava um saco marrom. Pareciam um conjunto de bonecas russas: uma alta — da altura de Shadow, ou talvez até mais —, uma de tamanho médio e uma tão baixinha e encurvada que, à primeira vista, Shadow a tomara erroneamente por uma criança. Elas se pareciam tanto uma com a outra que Shadow teve certeza de que as mulheres eram irmãs.

A menor das mulheres fez uma reverência quando a Kombi apareceu. As outras duas só olharam. Estavam dividindo um cigarro, e fumaram até alcançar o filtro antes que uma delas apagasse a bituca na raiz da árvore.

Czernobog abriu a traseira da Kombi. A mulher maior o empurrou para o lado e, com tanta facilidade como se fosse um saco de farinha, colocou o corpo de Wednesday nas costas e o carregou, deitando-o no chão a uns 3 metros da árvore. As três desembrulharam o corpo de Wednesday. A aparência dele era bem pior à luz do dia do que à luz de velas no quarto do hotel e, depois de uma olhadela rápida, Shadow virou para o outro lado. As mulheres arrumaram as roupas dele, alisaram seu terno, então o colocaram na ponta do lençol e o enrolaram mais uma vez.

Então, dirigiram-se para Shadow:

— É você? — a maior delas perguntou.

— Aquele que vai velar o Pai de Todos? — perguntou a do meio.

— Ê de sua escolha assumir a vigília? — perguntou a menor. Shadow assentiu com a cabeça. Depois, não foi capaz de se lembrar se havia mesmo escutado as vozes. Talvez tivesse entendido o que elas queriam dizer apenas por sua aparência e seus olhares.

O senhor Nancy, que tinha ido até a casa para usar o banheiro, voltou caminhando até a árvore. Estava fumando uma cigarrilha. Parecia pensativo.

— Shadow, você não precisa mesmo fazer isso. Podemos achar alguém mais apropriado.

— Vou fazer — disse Shadow, simplesmente.

— E se você morrer? — perguntou o senhor Nancy. — E se isso matar você?

— Então, matou.

O senhor Nancy jogou a cigarrilha no pasto, com raiva.

— Eu achei que você tinha merda na cabeça, mas estou vendo que a coisa é pior. Não consegue ver quando alguém está dando uma deixa?

— Desculpe — disse Shadow.

Ele não falou mais nada. Nancy voltou para a Kombi.

Czernobog foi até o lugar onde Shadow estava. Ele não parecia contente.

— Você precisa sair desta vivo — disse. — Saia vivo por mim.

Então bateu com os nós dos dedos gentilmente na testa de Shadow e disse:

— Bom.' Apertou o ombro de Shadow, deu tapinhas amigáveis no seu braço e foi juntar-se ao senhor Nancy.

A mulher maior, cujo nome parecia ser Urtha ou Urder — Shadow não conseguira repetir, para a satisfação dela — disse a ele, com uma pantomima, que tirasse as roupas.

— Todas elas?

A mulher grande deu de ombros. Shadow ficou só de cueca e camiseta. As mulheres apoiaram as escadas contra a árvore. Uma das escadas — pintada à mão, com pequenas flores e folhas rodeando os suportes — foi apontada para ele.

Shadow subiu os nove degraus. Então, a pedido delas, passou para um galho baixo.

A mulher do meio despejou o conteúdo do saco na grama do pasto. Estava cheio de um emaranhado de cordas finas, marrons por causa da idade e da sujeira, e a mulher começou a separá-las pelo comprimento, e a arrumá-las cuidadosamente ao lado do corpo de Wednesday.

Cada uma subiu então sua própria escada e começaram a tecer as cordas, em nós intrincados e elegantes. Enrolaram as cordas primeiro ao redor da árvore, depois em volta de Shadow. Com destreza, como parteiras ou enfermeiras ou pessoas que preparam cadáveres, removeram a camiseta e a cueca dele, então o amarraram, nunca apertando, mas sempre com firmeza. Ele ficou impressionado pela maneira confortável com que as cordas e os nós agüentavam seu peso. As cordas passavam por debaixo de seus braços, pelo meio de suas pernas, em volta de sua cintura, de seus tornozelos e de seu peito, prendendo-o à árvore.

A última corda foi amarrada, frouxa, em volta de seu pescoço. Inicialmente pareceu desconfortável, mas o peso dele estava bem distribuído, e nenhuma das cordas cortava a pele.

Seus pés estavam a 1,5 metro do chão. A árvore era enorme e sem folhas, com os galhos pretos contra o céu cinzento, e casca de uma cor cinzenta-prateada.

E levaram as escadas embora. Houve um momento de pânico quando todo o peso ficou apoiado nas cordas, e ele desceu alguns centímetros. Ainda assim, não emitiu nenhuma palavra ou lamento.

As mulheres acomodaram o corpo, enrolado em sua mortalha de lençol de hotel, aos pés da árvore, e o deixaram ali.

Deixaram-no ali sozinho.

 

Hang me, O hang me, and I'll be dead and gone, Hang me, O hang me, and I'll be dead and gone, l wouldn't mind lhe hangin, it's bem gone só long, íts lyin' in lhe grave só long.[7]

Canção antiga

 

No primeiro dia em que Shadow ficou pendurado na árvore, experimentou só um desconforto, que lentamente se transformou em dor, e em medo, e, ocasionalmente, em uma emoção que estava em algum lugar entre o tédio e a apatia: uma aceitação cinzenta, uma espera.

Ele ficou lá pendurado.

O ar estava parado.

Depois de várias horas, estouros ligeiros de cor começaram a explodir na frente de seus olhos, em botões de carmim e dourado, latejando e pulsando com vida própria.

A dor nos braços e nas pernas se tornou, gradativamente, intolerável. Se ele relaxasse os membros e deixasse o corpo frouxo balançar, se ele se inclinasse para a frente, então a corda ao redor de seu pescoço ficaria mais apertada e o mundo iria tremer e flutuar. Por isso, ele se apoiava contra o tronco da árvore. Conseguia sentir o coração batendo com dificuldade no peito, uma tatuagem latejante e fora de ritmo à medida que bombeava o sangue através do corpo...

Esmeraldas, safiras e rubis se cristalizavam e explodiam na frente de seus olhos. Sua respiração vinha em goles superficiais. A casca da árvore era áspera contra suas costas. O frio da tarde sobre sua pele nua fazia com que ele tremesse, fazia com que sua pele ficasse arrepiada e doída, como se estivesse sendo espetado por mil espinhos.

É fácil, alguém disse no fundo da sua mente. Existe um truque para agüentar. Ou você descobre, ou morre.

Ele ficou contente com aquela idéia, e a repetiu uma vez depois da outra no fundo da mente, em parte como um mantra, em parte como um verso infantil, acompanhando o ritmo das batidas de seu coração.

É fácil, existe um truque para agüentar, ou você descobre, ou morre. É fácil, existe um truque para agüentar, ou você descobre, ou morre. É fácil, existe um truque para agüentar, ou você descobre, ou morre. É fácil, existe um truque para agüentar, ou você descobre, ou morre.

O tempo passava. O cântico continuava. Ele conseguia ouvi-lo. Alguém repetia as palavras, só parou quando a língua de Shadow ficou seca, com a mesma textura da pele. Ele deu um impulso para cima e para longe da árvore com os pés, tentando apoiar seu peso de maneira que ainda conseguisse encher os pulmões.

Respirou até não agüentar mais ficar naquela posição, então voltou a largar o peso sobre as amarras, e ficou pendurado na árvore.

Quando o rangido começou — um rangido bravo, engraçado — fechou a boca; preocupado que fosse ele mesmo a fazer aquele barulho; mas o barulho continuou. Então, é o mundo rindo de mim, pensou. Sua cabeça pendeu para um lado. Alguma coisa correu tronco abaixo ao lado dele e parou ao lado da sua cabeça. Falou bem alto em seu ouvido, uma palavra que soava muito como "ratatosk". Shadow tentou repelir, mas a língua colou no céu da boca. Ele se virou, lentamente, e olhou para um rosto marrom-acinzentado e para as orelhas pontudas de um esquilo.

Cara-a-cara, ele descobriu, um esquilo parece bem menos fofo do que a distância. A criatura parecia um rato perigoso, não era doce nem sedutora. E seus dentes pareciam afiados. Shadow torceu para não ser tomado como ameaça, ou como fonte de alimento. Ele não achava que esquilos fossem carnívoros... mas e daí? Tantas coisas que ele achava que não eram se revelaram ser...

Ele dormiu.

A dor o acordou várias vezes nas horas que se seguiram. Tirou-o de um sonho sombrio em que crianças mortas se levantavam e vinham a ele, com os olhos descamando, como pérolas inchadas, e o repreendiam por tê-las decepcionado. Uma aranha andou por seu rosto, e ele acordou. Sacudiu a cabeça, assustando ou desalojando o animal, e voltou aos seus sonhos — e agora um homem com cabeça de elefante, barrigudo, com uma das presas quebradas, estava indo em sua direção, montado em um rato enorme. O homem com cabeça de elefante curvou o tronco na direção de Shadow e disse:

— Se você tivesse me invocado antes de começar essa jornada, talvez alguns de seus problemas teriam sido evitados.

Então o elefante pegou o rato que, de algum modo, tinha ficado pequenininho ao mesmo tempo em que não havia mudado de tamanho, e o passou de uma mão para a outra, com os dedos se fechando quando a criatura pulava de uma palma para a outra, e Shadow não se surpreendeu nem um pouco quando o deus com cabeça de elefante finalmente abriu todas as quatro mãos que possuía para revelá-las perfeitamente vazias. Ele deu de ombros com um par de ombros e depois com o outro, em um movimento peculiarmente fluido, e olhou para Shadow, com o rosto indecifrável.

— Está no baú — Shadow disse ao homem-elefante.

Ele prestou atenção quando o rabo tremelicante desapareceu.

O homem-elefante assentiu com sua enorme cabeça, e disse:

— Sim. No baú. Você vai se esquecer de muitas coisas... Vai abrir mão de muitas coisas... Vai perder muitas coisas. Mas não vai perder isso.

E foi então que a chuva começou, e Shadow foi levado, tremendo e molhado, de um sono profundo ã total vigília. O tremor de seu corpo se intensificou até ficar assustado: ele tremia com mais violência do que pensava ser possível, uma série de tremores convulsivos que se acumulavam um sobre o outro. Ele quis que tudo aquilo parasse, mas continuava a tremer, com os dentes batendo forte, com os membros se contorcendo e sacudindo além de seu controle. Também havia dor real ali, profunda, como uma faca entrando na pele, que cobria o corpo dele com feridas minúsculas e imperceptíveis, íntimas e insuportáveis.

Ele abriu a boca para recolher a chuva que caía, umedecendo os lábios rachados e a língua seca, molhando as cordas que o amarravam ao tronco da árvore. Houve um clarão de relâmpago tão vívido que pareceu um golpe nos olhos dele, transformando o mundo em um panorama intenso de imagem e pós-imagem. Depois o trovão, um estalo, um estrondo e um ruído prolongado. À medida que o trovão ecoava, a chuva dobrava sua intensidade. No meio da chuva e no meio da noite, o tremor acalmou. As lâminas das facas foram guardadas. Shadow não sentia mais o frio, ou melhor, só sentia o frio, mas agora o frio tinha se transformado em uma parte dele.

Shadow pendia da árvore, enquanto os relâmpagos reluziam e formavam garfos de luz através do céu, e o trovão se transformava em um rugido constante, com estalos e estampidos ocasionais, como bombas distantes explodindo no meio da noite. O vento puxava Shadow, tentando afastá-lo da árvore, esfolando sua pele, cortando a carne até o osso; e Shadow entendeu no fundo da alma que a tempestade havia começado de verdade.

Uma alegria estranha despertou dentro dele e começou a rir, enquanto a chuva lavava sua pele nua, os relâmpagos brilhavam e os trovões rugiam tão alto que ele mal podia ouvir a própria risada. Ele estava exultante.

Estava vivo. Nunca havia se sentido assim. Jamais.

Se ele morresse, pensou, se ele morresse agora mesmo, ali na arvore, teria valido a pena viver aquele momento perfeito e maluco.

— Ei! — ele gritou para a tempestade. — Ei! Sou eu! Eu estou aqui! Prendeu um pouco de água entre o ombro nu e o tronco da árvore, torceu a cabeça para o lado e bebeu, chupando e lambendo, e bebeu mais e riu, riu com alegria e satisfação, não com loucura, até que não conseguisse mais rir, até que apenas ficasse lá, pendurado, exausto demais para se mexer.

No pé da árvore, no chão, a chuva deixou o lençol em parte transparente, levantado e puxado para a frente de maneira que Shadow conseguia enxergar a mão morta de Wednesday, que parecia de cera, pálida, e o contorno de sua cabeça. Pensou no Santo Sudário e se lembrou da menina aberta na mesa de Jacquel, em Cairo, e então, como se quisesse contrariar o frio, percebeu que se sentia aquecido e confortável, e que a casca da árvore parecia macia. Ele dormiu mais uma vez e, se sonhou algum sonho dessa vez, não conseguiu se lembrar.

Na manhã seguinte a dor já não era mais local, já não estava mais confinada aos locais em que as cordas cortavam a carne, ou aos locais onde a casca da árvore arranhava a pele. Agora a dor estava espalhada por todo o corpo.

E ele tinha fome, com dores profundas e vazias, no lugar mais fundo de seu ser. Sua cabeça latejava. Às vezes, imaginava que tinha parado de respirar, que seu coração parara de bater. Então prendia o fôlego até ouvir o coração bombear um oceano para seus ouvidos e até ser forçado a engolir o ar como um mergulhador que chegava à superfície das profundezas do mar.

Parecia que a árvore ia do inferno até o paraíso, e que ele estava pendurado nela desde sempre. Um falcão marrom rodeou a árvore, então pousou em um galho quebrado próximo a ele, depois bateu as asas, voando em direção ao oeste.

A tempestade, que tinha acalmado ao amanhecer, começou a voltar à medida que o tempo passava. Nuvens cinzentas e turvas esticavam-se de um horizonte ao outro. Uma garoa lenta começou a cair. O corpo na base da árvore parecia ter ficado menor, em seu lençol de motel manchado e esvoaçante, encolhendo-se em si mesmo como um bolo de açúcar deixado na chuva.

Às vezes Shadow ardia, às vezes congelava.

Quando os trovões recomeçaram, ele imaginou que estava ouvindo tambores batendo, atabaques no meio das trovoadas e das batidas de seu coração, dentro ou fora da cabeça dele, não fazia diferença.

Ele discernia a dor em cores: o vermelho de um aviso de bar em néon, o verde de um farol de trânsito em uma noite úmida, o azul de uma tela de vídeo vazia.

O esquilo pulou da casca do tronco para o ombro de Shadow, com suas garras afiadas enterrando-se na pele dele. "Ratatosk!", tagarelava. A ponta do nariz do esquilo encostava nos lábios dele. "Ratatosk." Deu um pulo e voltou para a árvore.

Sua pele pegava fogo com alfinetes e agulhas, uma comichão que cobria todo o seu corpo. A sensação era intolerável.

Sua vida estava exposta abaixo dele, na mortalha de lençol de hotel: literalmente exposta, como os itens de algum piquenique dadaísta, um quadro surrealista: ele conseguia enxergar o olhar surpreso da mãe, a embaixada americana na Noruega, os olhos de Laura no dia do casamento...

Ele riu através dos lábios ressecados.

— O que é tão engraçado, cachorrinho? — perguntou Laura.

— O dia do nosso casamento. Você subornou a organista pra tocar a música-tema do Scooby Doo no lugar da Marcha Nupcial quando entrou na igreja. Você lembra?

— Claro que lembro, querido. "Eu teria feito a mesma coisa, se não fosse por aqueles garotos bisbilhoteiros."

— Eu amava tanto você...

Ele parecia sentir os lábios dela sobre os dele, e eram quentes, úmidos e vivos, não frios e mortos, por isso soube que era só mais uma alucinação.

— Você não está aqui, está?

— Não, mas você está me chamando pela última vez. E eu estou chegando. Respirar estava mais difícil agora. As cordas que cortavam sua pele eram um conceito abstraio, como o livre-arbítrio ou a eternidade.

— Durma, cachorrinho.

Apesar de ele pensar que poderia ter ouvido a própria voz, dormiu.

O sol parecia uma moeda de estanho em um céu de chumbo. Shadow estava, percebeu lentamente, acordado, e tinha frio. Mas a sua parte que compreendia aquilo parecia muito distante do resto dele. Em algum lugar, à distância, ele tinha consciência de que sua boca e sua garganta queimavam, dolorosamente, e que estavam rachadas. Às vezes, à luz do dia, via estrelas caírem; outras vezes, via pássaros enormes, do tamanho de um caminhão de entregas, voando em sua direção. Nada o alcançava, nada o tocava.

— Ratatosk. Ratatosk. — A tagarelice tinha se transformado em bronca.

O esquilo aterrissou no ombro dele, pesadamente, com suas garras afiadas, e olhou diretamente para seu rosto. Ele se perguntou se aquilo não seria uma alucinação: o animal segurava uma casca de avelã, como uma xícara de casa de boneca, com as patas da frente. O esquilo apertou a casca contra os lábios de Shadow, que sentiu a água escorrer e, involuntariamente, sugou-a para dentro da boca, bebendo da xícara diminuta. Espalhou a água por seus lábios rachados, por sua língua seca. Molhou a boca com o líquido e engoliu o que sobrou, que não era muito.

O esquilo pulou de volta para a árvore e correu tronco abaixo, em direção às raízes, e então, em segundos, ou em minutos, ou em horas, Shadow não sabia dizer qual medida de tempo (todos os relógios de sua mente estavam quebrados, pensou, e suas engrenagens, porcas e molas não passavam de uma confusão ali embaixo, na grama retorcida), o esquilo voltou com sua xícara de casca de avelã, escalando cuidadosamente, e Shadow bebeu a água que o animal trouxera até ele.

O gosto de lama e de ferro da água encheu sua boca, esfriou sua garganta ressecada. Amenizou seu cansaço e sua loucura.

Na terceira casca de avelã, eleja não tinha mais sede.

Começou então a se debater, puxando as cordas, flagelando o próprio corpo, tentando descer, libertar-se, ir embora.

As cordas eram fortes, e agüentaram firme, e logo ele se exauriu mais uma vez.

Em seu delírio, Shadow transformou-se na árvore. As raízes afundavam-se na argila da terra, para dentro do tempo, para as fontes escondidas. Ele sentiu a fonte da mulher chamada Urd, que quer dizer Passado. Ela era enorme, uma giganta, um montanha subterrânea de mulher, e as águas que guardava eram as águas do tempo. Outras raízes iam para outros lugares. Alguns, secretos. Agora, quando tinha sede, ele puxava água de suas raízes, puxava até o corpo de seu ser.

Ele tinha uma centena de braços que se dividiam em uma centena de milhares de dedos, e todos os seus dedos apontavam para o céu. O peso do céu era grande sobre seus ombros.

Não que o desconforto tivesse sido amenizado, mas a dor pertencia à figura pendurada na árvore, não à árvore em si. Shadow, em sua loucura, era agora muito mais do que o homem na árvore, era o vento que chacoalhava os galhos nus da árvore do mundo, era o céu cinzento e as nuvens turvas, era o esquilo Ratatosk que corria da raiz mais profunda ao galho mais alto, era o falcão de olhos enlouquecidos que pousava sobre um galho quebrado no topo da árvore analisando o mundo, era o verme no coração da árvore.

As estrelas rodavam, e ele passava suas cem mãos nas estrelas cintilantes, escondendo-as na palma da mão, trocando-as de lugar, fazendo com que desaparecessem...

Um momento de clareza, no meio da dor e da loucura: Shadow sentiu-se chegando à superfície. Ele sabia que não seria por muito tempo. O sol da manhã o ofuscava. Ele fechou os olhos, na esperança de ficar no escuro. Não faltava muito para acabar. Ele também sabia aquilo. Quando abriu os olhos, Shadow viu que havia um jovem na árvore com ele. Sua pele era marrom-escura. A testa era alta e os cabelos escuros eram bem enroladinhos. Ele estava sentado em um galho acima da altura da cabeça de Shadow. Shadow conseguiria enxergá-lo perfeitamente se suspendesse a cabeça. E o homem era louco. Pôde perceber isso com uma olhadela.

— Você está pelado — disse o louco, como quem conta um segredo, com uma voz esganiçada. — Eu também estou pelado.

— Eu percebi — resmungou Shadow.

O louco olhou para ele, então assentiu e virou a cabeça para baixo e para o lado, como se estivesse tentando acabar com uma cãibra no pescoço. Finalmente, disse:

— Você me conhece?

— Não — disse Shadow.

— Eu conheço você. Eu observei você em Cairo. E observei depois. Minha irmã gosta de você.

— Você é...

O nome fugiu de sua mente. Come animais vítimas de acidentes em estradas. Isso mesmo.

— Você é o Hórus.

O louco assentiu com a cabeça.

— Hórus. Eu sou o falcão da manhã, o abutre da tarde. Eu sou o sol, assim como você também é. E sei o nome verdadeiro de Rã. Minha mãe me disse.

— Que bom — disse Shadow, educadamente.

O louco olhava para o chão abaixo deles com atenção, sem dizer nada. Então se deixou cair da árvore.

Um falcão caiu como uma pedra no chão, deu um rodopio, saiu de seu mergulho, batendo as asas pesadamente, e voou de volta para a árvore, com um filhote de coelho nas garras. Pousou em um galho mais próximo a Shadow.

— Você está com fome? — perguntou o louco.

— Não. Acho que deveria, mas não estou.

— Eu estou com fome.

Comeu o coelho rapidamente, separando a carne do osso, chupando o sangue, cortando a pele, arrancando o couro. Quando terminou, deixou os ossos roídos e a pele macia caírem no chão. Percorreu o galho até estar a um braço de distância de Shadow. Então olhou para ele sem o menor pudor, inspecionando-o com cuidado e com cautela, dos pés à cabeça. Tinha sangue de coelho em seu queixo e em seu peito, e ele limpou a sujeira com as costas da mão.

Shadow sentiu que precisava falar alguma coisa.

— Ei — foi o que disse.

— Ei — disse o louco.

Ele ficou em pé sobre o galho, virou-se para o outro lado e deixou um arco de urina escura cair no descampado, lá embaixo. Demorou muito tempo. Quando terminou, acocorou-se mais uma vez sobre o galho.

— Como é que você se chama? — perguntou Hórus.

— Shadow.

O louco assentiu com a cabeça.

— Você é a sombra. Eu sou a luz. Tudo que existe faz sombra. Então, disse:

~ Vão lutar em breve. Eu estava olhando quando começaram a chegar. E então, o louco disse:

— Você está morrendo, não está?

Mas Shadow não conseguia mais falar. Um falcão bateu as asas, e foi subindo em círculos, planando nas correntes ascendentes de vento para dentro da manhã.

Luar.

Uma tosse sacudiu o esqueleto de Shadow, uma tosse atormentadora e dolorosa que apunhalou seu peito e sua garganta. Ele sentia ânsia de vômito cada vez que respirava.

— Ei, cachorrinho — chamou uma voz que ele conhecia.

Ele olhou para baixo.

O luar queimava branco através dos galhos da árvore, tão claro quanto o dia, e havia uma mulher parada ao luar, no chão abaixo dele, com rosto pálido e oval. O vento chacoalhava os galhos da árvore.

— Oi, cachorrinho.

Ele tentou falar, mas só tossiu, do fundo do peito, durante muito tempo.

— Sabe — ela disse, solícita — isso aí não está me soando muito bem, Ele grasnou:

— Oi, Laura.

Ela olhou para cima com olhos mortos, e sorriu.

— Como foi que você me achou?

Ela ficou em silêncio, por um instante, no luar. Então, disse:

— Você é a coisa mais próxima que eu tenho da vida. Você é a única coisa que me sobrou, a única coisa que não está gélida nem sem gosto nem cinzenta. Podiam colocar uma venda em mim e me jogar no oceano mais profundo que, ainda assim, eu ia saber onde encontrar você. Podiam me enterrar a 200 quilômetros de profundidade que eu ia saber onde você estava.

Ele olhou para baixo, para a mulher ao luar, e seus olhos arderam com as lágrimas.

— Vou cortar as cordas — ela disse, depois de um tempo. — Passo tempo demais salvando a sua vida, não passo? Ele tossiu de novo.

— Não, me deixe aqui. Eu preciso fazer isso. Ela olhou para ele e sacudiu a cabeça.

— Você c louco. Está morrendo aí em cima. Ou vai ficar aleijado, se é que já não está.

— Talvez esteja, mas estou vivo.

— Ë... Acho que está.

— Você me disse no cemitério.

— Parece que foi há tanto tempo, cachorrinho. Então, disse:

— Eu me sinto melhor aqui. Não dói tanto. Sabe o que quero dizer? Mas estou tão seca...

O vento deu uma rajada para cima, e ele pôde sentir o cheiro dela: um feder de carne podre, de doença e de decomposição, penetrante e desagradável.

— Eu perdi o emprego. Era um trabalho noturno, mas disseram que os clientes tinham reclamado. Eu disse a eles que estava doente, mas não ligaram. Estou com tanta sede...

— As mulheres — ele explicou. — Elas têm água. Na casa.

— Cachorrinho... — ela parecia assustada.

— Diz pra elas... diz para elas que eu pedi pra darem água pra você... O rosto branco inclinado para cima olhava para ele.

— Eu preciso ir — ela disse.

Então ela se contorceu, e fez uma careta, e cuspiu alguma coisa branca em cima da grama. A coisa se quebrou quando bateu no chão e fugiu se sacudindo.

Era quase impossível respirar. O peito dele perecia pesado, e sua cabeça oscilava.

— Fica — ele disse, em um sopro que era quase um sussurro, sem ter certeza se ela conseguia ou não escutá-lo. — Por favor, não vá embora.

Ele começou a tossir.

— Passa a noite aqui comigo.

— Vou ficar um pouco.

E então, da mesma maneira que uma mãe fala com um filho, disse:

— Nada vai fazer mal a você, enquanto eu estiver aqui. Sabia? Shadow tossiu mais uma vez. Fechou os olhos — só por um instante, pensou. Mas, quando os abriu novamente, a lua tinha se posto e ele estava sozinho.

Um estrondo e um latejamento em sua cabeça, muito além da dor da enxaqueca, muito além de qualquer tipo de dor. Tudo se dissolvia em borboletinhas minúsculas que o rodeavam como a poeira multicolorida de uma tempestade que havia evaporado para dentro da noite.

O lençol branco enrolado no corpo na base da árvore esvoaçava com barulho ao vento da manhã.

O latejamento cessou. Tudo ficou mais lento. Não havia nada que o fizesse continuar a respirar. Seu coração parou de bater no peito.

A escuridão em que ele entrou desta vez era profunda, iluminada por uma única estrela, e era final.

 

Eu sei que tem trapaça aqui. Mas é o único jogo que existe nesta cidade.

Canada Bill Jones

 

A árvore não estava mais lá, o mundo não estava mais lá, e o céu cinzento da manhã sobre ele não estava mais lá. Agora o céu tinha a cor da meia-noite. Havia uma única estrela fria brilhando lá em cima, sobre sua cabeça, e nada mais. Ele deu um único passo e quase tropeçou.

Shadow olhou para baixo. Havia degraus escavados na pedra, degraus tão grandes que ele imaginou que gigantes os tivessem escavado e descido há muito tempo.

Desceu os degraus, meio pulando, meio saltando de um para o outro. Seu corpo doía, mas era a dor da falta de uso, não a dor torturante de um corpo que ficara pendurado em uma árvore até morrer.

Ele percebeu, sem surpresa, que agora estava totalmente vestido, com calças jeans e uma camiseta branca. Estava descalço. Experimentou um profundo momento de déjà vu: era isso que ele vestia quando esteve no apartamento de Czernobog na noite em que Zorya Polunochnaya contou a ele sobre a constelação chamada Carruagem de Odin. Ela tirou a lua do céu e deu a ele.

Ele soube, de repente, o que aconteceria a seguir. Zorya Polunochnaya estaria lá.

Zorya esperava por ele no fim dos degraus. Não havia lua no céu, mas, mesmo assim, ela estava banhada em luar: seus cabelos brancos eram da cor pálida da lua, e usava a mesma camisola de renda de algodão que vestia naquela noite em Chicago.

Ela sorriu quando o viu, e olhou para baixo, como se estivesse envergonhada.

— Olá — ela disse.

— Oi.

— Tudo bem com você?

— Não sei. Acho que isto talvez seja mais um sonho estranho na árvore. Eu tenho tido uns sonhos bem loucos desde que saí da prisão.

O rosto dela ficou prateado pelo luar (mas não havia lua pairando naquele céu ameixa-escuro, e ali, no fim dos degraus, nem mesmo a estrela solitária era visível), e parecia tanto solene quanto vulnerável. Ela disse:

— Todas as suas perguntas podem ser respondidas, se é isso que você quer. Mas, uma vez obtidas as respostas, nunca mais poderá esquecê-las.

Atrás dela, o caminho bifurcava. Ele precisaria resolver qual caminho tomar, sabia disso, mas havia uma coisa que precisava fazer antes. Colocou a mão no bolso e ficou aliviado quando sentiu o peso conhecido da moeda. Tirou-a dali e segurou-a entre o polegar e o indicador: um dólar com a efígie da Liberdade, de 1922.

— Isto c seu.

Ele se lembrou de que, na verdade, suas roupas estavam aos pés da árvore. As mulheres colocaram as roupas dele no saco de lona de onde tinham tirado as cordas e amarraram a ponta do saco. A maior das mulheres tinha colocado uma pedra pesada em cima, para impedir que saísse voando. E ele também entendeu que, na realidade, o dólar com a efígie da Liberdade estava naquele saco, sob a pedra. Mas, ainda assim, parecia pesado em sua mão, na entrada para o submundo.

Ela pegou a moeda da palma da mão de Shadow com seus dedos finos.

— Obrigada. Ela comprou sua liberdade duas vezes, e agora vai tornar o seu caminho no meio dos lugares escuros mais leve.

Ela fechou a mão em volta do dólar e esticou o braço para cima, o mais alto que conseguiu. Então, soltou a moeda. Ao invés de cair, a moeda flutuou para cima até ficar mais ou menos 30 centímetros acima da cabeça de Shadow. Mas já não era mais uma moeda de prata. Lady Liberdade e sua coroa de pontas não estavam mais lá. O rosto que ele viu na moeda era o rosto indeterminado da lua no céu de verão.

Shadow não conseguia decidir se estava olhando para a lua do tamanho de uma moeda, a 30 centímetros de sua cabeça, ou se estava olhando para uma lua do tamanho do Oceano Pacífico, a milhares de quilômetros de distância. Nem se havia alguma diferença entre as duas idéias. Talvez tudo fosse uma questão de como encarar o assunto.

Ele olhou para o caminho bifurcado à sua frente.

— Que caminho devo escolher? Qual deles é seguro?

— Escolha um, e você não vai poder escolher o outro. Mas nenhum deles é seguro. Que caminho você percorreria... o das verdades duras ou o das boas mentiras?

— O das verdades. Eu já cheguei longe demais pra querer mais mentiras. Ela parecia triste.

— Você vai ter que pagar um preço, então.

— Eu pago. O preço que for.

— Seu nome — ela disse. — Seu nome verdadeiro. Vai ter que entregar pra mim.

— Como?

— Assim — ela disse.

Esticou uma das mãos em direção à sua cabeça. Ele sentiu seus dedos acariciarem sua pele, depois os sentiu penetrar seu corpo, sua caveira, sentiu-os entrando bem no fundo da cabeça. Sentiu cócegas dentro da cabeça e pela espinha. Ela tirou a mão. Uma chama, como a chama de uma vela, mas queimando com um branco de magnésio claro, cintilava na ponta do seu indicador.

— Isso aí é o meu nome? — ele perguntou. Ela fechou a mão, e a luz se apagou.

— Era.

Ela esticou a mão e apontou para o caminho da direita.

— Por ali. Por enquanto.

Sem nome, Shadow caminhou pela estrada da direita, iluminado pelo luar. Quando se virou para agradecer, não viu nada além de escuridão. Parecia que estava bem no fundo da terra, mas quando olhou para cima, ainda conseguiu ver a lua minúscula.

Virou uma esquina.

Se isso era o que acontecia depois da morte, ele pensou, se parecia bastante com a Casa na Pedra: parte montagem, parte pesadelo.

Ele olhava para si com as roupas azuis da prisão, no escritório do diretor, quando contaram a ele que Laura tinha morrido em um acidente de carro. Viu a expressão em seu próprio rosto — se parecia com um homem que foi abandonado pelo mundo. Ver aquilo o magoou, a impotência e o medo. Ele continuou o caminho, passou pelo meio do escritório cinzento do diretor, e se pegou olhando para a loja de conserto de videocassetes, na periferia de Eagle Point. Três anos antes. É isso aí.

Dentro da loja, ele sabia, estava espancando Larry Powers e B. J. West à morte, machucando seu próprio punho: logo ele sairia dali, carregando um saco pardo de supermercado cheio de notas de 20 dólares, o dinheiro que nunca conseguiram provar que ele havia pegado: sua parte do roubo, e um pouco mais, porque eles não deveriam ter tentado sacanear ele e Laura daquela maneira. Ele só era o motorista, mas tinha feito sua parte, feito tudo que ela tinha lhe pedido...

No julgamento, ninguém mencionou o assalto ao banco, apesar de todos terem vontade de fazê-lo. Não conseguiram provar nada, já que ninguém dizia nada. E ninguém dizia nada mesmo. O promotor, ao contrário, foi forçado a se ater às lesões corporais que Shadow tinha causado em Powers e em West. Ele mostrou fotografias dos dois homens quando chegaram ao hospital local. Shadow mal se defendeu no tribunal; era mais fácil assim. Nem Powers nem West pareciam conseguir se lembrar do'motivo da briga, mas cada um deles admitiu que Shadow era seu agressor.

Ninguém mencionou o dinheiro.

Ninguém nem mencionou Laura, e era só isso que Shadow queria, Shadow se perguntou se o caminho das mentiras reconfortantes não teria sido mais fácil de percorrer. Ele se afastou daquele lugar, e seguiu o caminho de pedra para dentro do que parecia ser um quarto de hospital, um hospital público de Chicago, e sentiu o amargor da bile subir à garganta. Ele não queria olhar. Não queria continuar a caminhar.

Na cama do hospital, sua mãe morria de novo. Ela morreu quando ele tinha 16 anos, e, sim, lá estava ele, um adolescente grande e desajeitado, com acne despontando em sua pele cor de café com leite, sentado ao lado da cama, incapaz de olhar para ela, lendo um livro grosso em brochura. Shadow ficou imaginando que livro seria aquele, e deu a volta na cama de hospital para examinar mais de perto. Ficou parado entre a cama e a cadeira, olhando de uma para a outra, o menino grande encolhido em sua cadeira, com o nariz enterrado em O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon, tentando fugir da morte de sua mãe para Londres durante a blitz, a loucura fictícia do livro, sem escape e sem desculpa.

Os olhos de sua mãe estavam fechados em uma paz de morfina: o que ela pensou ser só mais uma crise de células falciformes, mais um episódio de dor a ser suportado, se revelou, como descobriram, tarde demais, ser um linfoma. Sua pele adquirira uma cor amarelo-limão. Ela tinha trinta e poucos anos, mas parecia bem mais velha.

Shadow queria sacudir a si mesmo, o garoto desajeitado que fora uma vez, fazer com eme ele pegasse na mão dela, conversasse, fizesse alguma coisa antes que ela se fosse, como sabia que iria. Mas ele não conseguia tocar em si mesmo e o outro Shadow continuava a ler. Assim sua mãe morreu enquanto ele estava sentado ao lado dela, lendo um livro grosso.

Depois daquilo, ele quase parou de ler. Não dá para acreditar em ficção. Para que serviam os livros, se não podiam proteger você de algo assim?

Shadow saiu do quarto de hospital, pelo corredor cheio de curvas, para dentro das entranhas da terra.

Primeiro, vê sua mãe e não consegue acreditar em como ela é jovem, nem tem ainda 25 anos, ele calcula, antes de sua dispensa médica. Estão na casa deles, mais um apartamento alugado pela embaixada em algum lugar da Europa do Norte. Ele olha em volta para achar alguma coisa que traga uma pista, e ele se vê:

um garoto parecido com um camarão, com grandes olhos cinza-pálidos e cabelos escuros. Estão brigando. Shadow sabe, sem ouvir as palavras, sobre o que estão discutindo: era a única coisa a respeito da qual brigavam, apesar de tudo.

— Quero saber do meu pai.

— Ele já morreu. Não faça perguntas sobre ele.

— Mas quem ele era?

— Esquece. Ele está morto, e você não perdeu nada.

— Eu quero ver uma foto.

— Eu não tenho foto dele.

Era o que ela dizia, e sua voz ficava pesada e aguda. Ele sabia que se continuasse a fazer perguntas, ela começaria a gritar ou até bateria nele. Sabia que não pararia de perguntar, então se virou e caminhou pelo túnel.

A trilha que ele seguia se contorcia, fazia curvas e circulava de volta para si mesma, e fez com que ele pensasse em peles de cobras, em intestinos e em raízes de árvores muito, muito profundas. Havia um lago à esquerda, ele ouvia o pinga-pinga da água em algum lugar no fundo do túnel, a água que caía mal perturbava a superfície espelhada do lago. Ele se ajoelhou e bebeu, usando as mãos para levar a água aos lábios. Então caminhou até encontrar-se no meio de diversos globos espelhados da era disco, que flutuavam no ar. Era como estar no centro exato do universo com todas as estrelas e todos os planetas ao seu redor. Ele não conseguia ouvir nada, nem a música, nem as conversas gritadas por sobre a musica. Agora Shadow olhava para uma mulher que se parecia exatamente com o que sua mãe nunca pareceu durante todos os anos que ele a conheceu, ela não passa de pouco mais de uma criança, apesar de tudo...

E ela está dançando.

Shadow descobriu que não se impressionou nem um pouco quando reconheceu o homem que dançava com ela. Ele não tinha mudado muito em 33 anos.

Ela está bêbada: Shadow pôde perceber à primeira olhada. Ela não está muito bêbada, mas não costuma beber e, dali a mais ou menos uma semana, vai embarcar para a Noruega. Eles beberam margaritas, e ela tinha sal nos lábios e sal nas costas da mão.

Wednesday não usa terno nem gravata, mas o broche em forma de árvore que usa no bolso da camisa brilha e cintila quando a luz do globo espelhado bate nele. Eles formam um casal bonito, considerando-se a diferença de idade. Há uma graça selvagem nos movimentos dele.

Uma música lenta. Ele a puxa com a mão em forma de pata, curvando-se no assento da saia dela de maneira possessiva, e a traz para mais perto. Com a outra mão, pega o queixo dela, empurra-o na direção de seu rosto, e os dois se beijam, lá na pista de dança, enquanto as bolas cintilantes os envolvem para o centro do universo.

Logo depois, eles vão embora. Ela cai para cima dele, que a conduz para fora da casa noturna.

Shadow enfia a cabeça nas mãos, e não os segue, incapaz ou indisposto a presenciar sua própria concepção.

Os globos espelhados não estavam mais lá, e agora a única iluminação vinha da lua minúscula que queimava sobre sua cabeça.

Ele continuou o caminho. Em uma curva da trilha, parou por um instante para tomar fôlego.

Sentiu alguém acariciar suas costas suavemente, de baixo para cima, e dedos suaves fizeram um cafuné nos cabelos da parte de trás de sua cabeça.

— Olá — sussurrou uma voz felina e rouca, por sobre seus ombros.

— Olá — ele disse, virando-se para encará-la. Ela tinha cabelos castanhos, pele castanha e olhos âmbar-dourados, da cor de mel bom. Suas pupilas eram fendas verticais.

— Eu conheço você? — perguntou, confuso.

— Intimamente — ela respondeu, sorrindo. — Eu costumava dormir na sua cama. E o meu pessoal tem mantido os olhos em você, por mim.

Ela se virou para a trilha à frente dele e apontou para os três caminhos que poderia tomar.

— Tudo bem — ela disse. — Um desses caminhos vai trazer sabedoria. Outro vai completar a sua vida. E o outro vai matar você.

— Eu acho que já estou morto. Morri na árvore. Ela fez um muxoxo.

— Tem morto, tem morto e tem morto. Ë relativo. Então, ela sorriu mais uma vez.

— Eu poderia fazer uma piada sobre isso, sabe. Alguma coisa sobre os parentes mortos.

— Não. Tudo bem.

— Então — ela disse. — Que caminho você quer seguir?

— Não sei — confessou.

Ela deixou a cabeça cair para um lado, um gesto perfeitamente felino. De repente, Shadow lembrou-se das marcas de garras em seu ombro. Sentiu que começava a corar.

— Sc você confiar em mim — disse Bast — posso escolher pra você.

— Eu confio em você — ele disse, sem hesitar.

— Você quer saber o que vai custar?

— Eu já perdi meu nome — ele explicou.

— Nomes vêm e vão. Valeu a pena?

— Valeu. Talvez. Não foi fácil. Como as revelações costumam ser, foi meio que pessoal.

— Todas as revelações são pessoais. Ë por isso que são suspeitas.

— Não entendo.

— Não. Você não entende. Eu vou ficar com o seu coração. Vamos precisar dele mais tarde.

Ela esticou a mão, enfiou no fundo do peito dele e puxou para fora alguma coisa cor de rubi pulsando, presa entre suas unhas afiadas. Era cor-de-sangue de pomba e feita de luz pura. De maneira rítmica, expandia e se contraía.

Ela fechou a mão, e a coisa não estava mais lá.

— Pegue o caminho do meio — ela disse.

Shadow assentiu com a cabeça e continuou seu trajeto.

O chão estava ficando escorregadio agora. Havia gelo na pedra. A lua em cima de sua cabeça brilhava através de cristais de gelo no ar: havia um halo em volta que deixava a luz difusa. Era bonito, mas tornava a caminhada mais difícil. A trilha não era confiável.

Ele chegou ao lugar onde o caminho se dividia.

Olhou para o primeiro caminho com uma sensação de reconhecimento. Abria-se para uma câmara vasta, ou para um conjunto de câmaras, como um museu escuro. Eleja conhecia aquele lugar. Conseguia ouvir o eco prolongado de barulhinhos minúsculos. Conseguia ouvir o barulho que a poeira faz quando assenta.

Era o lugar com que ele havia sonhado, naquela primeira noite em que Laura fora até ele, no hotel, há tanto tempo. O salão infinito, dedicado aos deuses esquecidos e àqueles cuja própria existência se perdera.

Deu um passo para trás.

Caminhou até a trilha mais distante e olhou para a frente. Havia um ar de Disneylândia naquele corredor: paredes pretas de fibra de vidro com luzes encaixadas nelas. As luzes coloridas piscavam e reluziam dando a ilusão de uma certa ordem, sem razão particular, como as luzinhas de um console de nave espacial da televisão.

Ele também conseguia ouvir algo ali: um zumbido grave, profundo c vibrante, que sentia na boca do estômago.

Parou e olhou para os lados. Nenhum dos caminhos parecia certo. Não mais. Ele estava cheio de caminhos. O caminho do meio, o caminho que a mulher-gato dissera para seguir, aquela era a estrada. Ele se moveu na direção dela.

A lua começava a esmaecer: suas bordas estavam ficando rosadas, um eclipse começava. O caminho estava emoldurado por um enorme portal.

Shadow atravessou o arco, na escuridão. O ar estava quente, e cheirava a pó úmido, como uma rua urbana depois da primeira chuva de verão.

Ele não estava com medo.

Não mais. O medo tinha morrido na árvore, da mesma maneira que ele morrera. Não havia mais medo, nem ódio, nem dor. Nada mais além da essência.

Alguma coisa grande caiu na água, calmamente, à distância, e o barulho ecoou na vastidão. Ele apertou os olhos para tentar enxergar melhor, mas não conseguiu ver nada. Estava escuro demais. E então, da mesma direção que vinham os barulhos de água, uma luz fantasmagórica bruxuleou e o mundo ganhou forma: ele estava em uma caverna e, à sua frente, suave como um espelho, havia água.

Os barulhos ficaram mais próximos e a luz ficou mais clara, e Shadow ficou esperando à margem da água. Logo um barco baixo e de fundo chato apareceu no campo de visão, com uma lamparina branca e cintilante, queimando à medida que a proa se levantava. Outra igual se refletia na água negra e espelhada, poucos metros abaixo da original. O barco era propelido por uma figura alta, e o barulho de água que Shadow ouvira era o som da vara sendo levantada e empurrada, fazendo a embarcação se mover pelas águas do lago subterrâneo.

— Ei, você aí! — gritou Shadow.

Ecos de suas palavras de repente o rodearam: dava para imaginar que todo um coral de pessoas dava as boas-vindas a ele e o chamavam, e cada uma delas tinha a voz dele.

A pessoa que propelia o barco não respondeu.

O piloto do barco era alto, muito magro. Ele — se é que era um ser masculino — usava uma veste branca sem enfeites, e a cabeça pálida que estava em cima da roupa era tão completamente não-humana que Shadow teve certeza de que era algum tipo de máscara: era a cabeça de um pássaro, pequena em cima de um pescoço comprido, com o bico longo e alto. Shadow tinha certeza de já ter visto aquilo antes, aquela figura fantasmagórica, parecida com um pássaro. Ele puxou pela memória e então, decepcionado, percebeu que estava pensando no mecanismo que funcionava com moedas na Casa na Pedra e na figura pálida, parecida com um pássaro que não se via por inteiro e que deslizava detrás do túmulo da alma do bêbado.

Pingos d'água caíam da proa e da popa e ecoavam, e o rastro da embarcação fazia ondas nas águas envidraçadas. O barco era feito de junco, unido e amarrado.

O barco chegou perto da margem. O piloto debruçou-se sobre sua vara. Sua cabeça voltou-se lentamente, até encarar Shadow.

— Olá — disse, sem mexer seu longo bico.

A voz era masculina e, como tudo mais na vida após a morte de Shadow até agora, familiar.

— Suba a bordo. Temo que você vá molhar os pés, mas não posso fazer nada. Estes barcos são velhos e, se eu chegar mais perto, posso cortar o fundo.

Shadow tirou os sapatos e pisou na água. Chegava até o meio das panturrilhas, e era, depois do choque inicial da umidade, surpreendentemente quente. Ele alcançou o barco e o piloto estendeu a mão e o puxou para bordo. O barco de junco balançou e um pouco de água entrou pelas laterais. Depois, nivelou-se.

O piloto usou sua vara para se afastar da margem. Shadow ficou lá em pé observando, com as barras das calças pingando.

— Eu conheço você — disse à criatura na proa.

— Conhece mesmo — confirmou o marinheiro. A lamparina pendurada na frente do barco queimava com mais irregularidade, c a fumaça que soltava fez com que Shadow tossisse.

— Você trabalhou para mim. Parece que foi necessário enterrar Lila Goodchild sem você.

A voz era exigente e precisa.

A fumaça fazia os olhos de Shadow arderem. Ele enxugou as lágrimas com a mão c, através da fumaça, pensou ver um homem alto de terno, com óculos de aros dourados. A fumaça diminuiu e o marinheiro era mais uma vez uma criatura semi-humana com a cabeça de um pássaro aquático.

— Senhor Ibis?

— É bom ver você — disse a criatura, com a voz do senhor Ibis. — Você sabe o que é um psicopompo?

Shadow achou que conhecia a palavra, mas já fazia muito tempo. Sacudiu a cabeça.

— É um termo chique para escolta. Nós todos temos tantas funções, tantas maneiras de existir. Na minha visão de mim mesmo, eu sou um catedrático que vive calmamente, e anota seus pequenos contos, e sonha com um passado que pode ou não ter existido. E que é verdade, até onde sei. Mas eu também sou, em uma das minhas habilidades, como muitas das pessoas com quem você resolveu se associar, um psicopompo. Eu escolto os vivos para o mundo dos mortos.

— Eu pensei que este aqui fosse o mundo dos mortos — disse Shadow.

— Não. Não per se. É mais uma preliminar, O barco escorregava e deslizava pela superfície espelhada do lago subterrâneo. E então o senhor Ibis falou, sem mexer o bico:

— Vocês falam sobre os vivos e sobre os mortos como se fossem duas categorias mutuamente excludentes. Como se um rio também não pudesse ser uma estrada, ou como se uma música não pudesse ser uma cor.

— Não pode — disse Shadow. — Pode?

Os ecos sussurravam suas palavras de volta para ele do outro lado do lago.

— O que você precisa lembrar — disse o senhor Ibis, impaciente — é que a vida e a morte são lados diferentes da mesma moeda. Como cara e coroa.

— E se eu tiver uma moeda com duas caras?

— Você não tem.

Shadow então sentiu um arrepio, enquanto cruzavam a água escura. Ele imaginou que via rostos de crianças debaixo da superfície espelhada da água, olhando para ele com reprovação: os rostos estavam encharcados e inchados, com olhos cegos turvos. Não havia vento naquela caverna subterrânea para perturbar a superfície negra do lago.

— Então eu morri — disse Shadow.

Ele estava se acostumando com a idéia.

— Ou vou morrer.

— Estamos a caminho do Salão dos Mortos. Eu pedi pra levar você até lá.

— Por quê?

— Você foi um bom trabalhador. Por que não?

— Porque... — Shadow colocava os pensamentos em ordem. — porque eu nunca acreditei em vocês. Porque eu não esperava isso. O que aconteceu com São Pedro e os portões do Paraíso?

A cabeça branca de bico comprido sacudiu de um lado para o outro, com gravidade.

— Não faz a mínima diferença se você acreditava em nós ou não... Nós acreditávamos em você.

O fundo do barco encostou no fundo do lago. O marinheiro desceu pela lateral, para dentro da água, e disse a Shadow que fizesse o mesmo. O senhor Ibis pegou uma corda da proa do barco e entregou a lamparina para Shadow carregar. Tinha o formato da lua crescente. Saíram da água, e o senhor Ibis amarrou o barco em uma argola de metal no chão rochoso. Então pegou a lamparina e caminhou rapidamente para a frente, segurando a lâmpada no alto à medida que andava, jogando vastas sombras pelo chão de pedra e pelas paredes altas de pedra.

— Você está com medo? — perguntou o senhor Ibis.

— Não mesmo.

— Bom, tente cultivar emoções de pavor verdadeiro e de terror espiritual enquanto caminhamos. São os sentimentos apropriados para a situação que está por vir.

Shadow não estava assustado. Estava interessado e apreensivo, nada mais. Não tinha medo da escuridão desviada, nem de estar morto, nem mesmo da criatura com cabeça de cachorro, ou do tamanho de um silo de grãos que olhava para eles à medida que se aproximavam. O bicho rugiu, do fundo da garganta, e Shadow sentiu os pelos da nuca se arrepiarem.

— Shadow, agora é a hora do julgamento. Shadow olhou para cima, para a criatura:

— Senhor Jacquel?

As mãos de Anubis se abaixaram, mãos enormes e escuras, pegaram Shadow e o trouxeram mais para perto.

A cabeça de chacal o examinou com olhos brilhantes e reluzentes; examinaram-no tão desinteressadamente quanto o senhor Jacquel examinara a garota morta no necrotério. Shadow sabia que todas as suas falhas, seus defeitos e suas fraquezas estavam sendo tiradas, pesadas e medidas. Que, de certa maneira, ele estava sendo dissecado, fatiado, experimentado.

Nem sempre nos lembramos das coisas que depõem contra nós. Justificamos, nós as cobrimos com mentiras claras ou com a poeira espessa do esquecimento. Todas as coisas que Shadow havia feito na vida e de que não se orgulhava, todas as coisas que ele preferiria ter feito de outro jeito ou deixado por fazer, voltavam para ele em uma tempestade em redemoinho de culpa, de arrependimento e de vergonha... Ele não tinha nenhum lugar para se esconder. Ele estava tão nu e tão aberto quanto um cadáver na mesa, e o escuro Anubis, o deus-chacal, era seu dissecador, seu acusador e seu perseguidor.

— Por favor — disse Shadow. — Por favor, pare.

Mas o exame não parou. Cada mentira que ele contou, cada objeto que roubou, cada ferida que causou a outra pessoa, todos os crimes pequenos e os assassinatos minúsculos que compõem um dia, cada uma dessas coisas e mais ainda foram extraídas e trazidas à luz pelo juiz dos mortos com cabeça de chacal.

Shadow começou a chorar, dolorosamente, na palma da mão do deus. Ele era novamente uma criancinha, mais indefeso e mais impotente do que jamais fora.

E então, sem aviso, tudo havia terminado. Shadow ofegava, e soluçava, e seu nariz escorria; ele ainda se sentia indefeso, mas as mãos o colocaram com cuidado, quase com ternura, no chão de pedra.

— Quem está com o coração dele? — rugiu Anubis.

— Eu — ronronou uma voz de mulher.

Shadow olhou para cima. Bast estava parada ali, ao lado da coisa que não era mais o senhor Ibis, e segurava o coração de Shadow na mão direita. Fazia com que o rosto dela se acendesse com uma luz cor-de-rubi.

— Entregue-o para mim — disse Thoth, o deus com cabeça de Íbis. Pegou o coração nas mãos, que não eram mãos humanas, e deslizou para a frente. Anubis colocou uma balança de ouro na frente dele.

— Então, é aqui que a gente vai descobrir o que eu vou receber? — Shadow sussurrou para Bast. — O céu? O inferno? O purgatório?

— Se a pena se equilibrar — ela disse — você escolhe seu próprio destino.

— E se não?

Ela deu de ombros, como se o assunto a deixasse sem jeito. Então, disse:

— Daí nós damos o seu coração e a sua alma para Ammet, o Comedor de Almas...

— Talvez — ele disse. — Talvez eu consiga algum tipo de final feliz.

— Não só não existem finais felizes — ela explicou a ele — como também não existe final nenhum.

Em um dos pratos da balança, com cuidado e reverência, Anubis colocou uma pena.

Anubis colocou o coração de Shadow no outro prato da balança. Algo se moveu nas sombras sob a balança, algo que deixou Shadow desconfortável demais para olhar muito de perto.

Era uma pena pesada, mas Shadow tinha um coração pesado, e a balança pendia de um lado para o outro de maneira preocupante.

Mas os pratos se equilibraram no final, e a criatura nas sombras desapareceu, insatisfeita.

— Então, é isso — disse Bast, com melancolia. — Só mais uma caveira para a pilha. Que pena. Eu tive esperança de que você serviria para alguma coisa, na confusão atual. É como assistir a um acidente de carro em câmera lenta e não ser capaz de impedi-lo.

— Você não vai estar lá? Ela sacudiu a cabeça.

— Não gosto que outras pessoas escolham as minhas batalhas. Houve silêncio, então, no vasto salão da morte, que ecoava de água e de escuridão.

Shadow disse:

— Então, agora eu escolho pra onde eu vou?

— Escolha — disse Thoth. — Ou nós podemos escolher pra você.

— Não — disse Shadow. — Tudo bem. É a minha chance!

— Bom? — urrou Anubis — Eu quero descansar agora. Ë isso o que eu quero. Não quero nada. Nem céu, nem inferno, nem nada. Só quero que acabe.

— Tem certeza? — perguntou Thoth.

— Tenho.

O senhor Jacquel abriu a última porta para Shadow, e atrás daquela porta não havia nada. Não havia escuridão. Nem mesmo esquecimento. Só nada.

Shadow aceitou aquilo, completamente e sem reservas, e atravessou a porta para dentro do nada com um deleite estranho e cruel.

 

Tudo neste continente vem em grande escala. Os rios são imensos, o frio e o calor do clima são violentos, as perspectivas são magníficas, os relâmpagos e os trovões são tremendos. As desordens incidentes no pais fazem com que todas as constituições tremam. Aqui, nossas próprias tolices, nossos delitos, nossas perdas, nossas desgraças e nossa ruína vêm em grande escala.

Lord Carlisle, para George Selwyn, 1778

 

O lugar mais importante do sudeste dos Estados Unidos está anunciado em centenas de telhados de celeiros envelhecidos, espalhados pela Georgia, pelo Tennessee e até pelo Kentucky. Em uma estrada cheia de curvas que atravessa a floresta, um motorista passa por um celeiro vermelho apodrecido e vê, pintado no telhado, o aviso:

VISITE A CIDADE DE PEDRA, A OITAVA MARAVILHA DO MUNDO.

e, no telhado de um barracão de ordenha de vacas em ruínas ali perto, pintado em letras de forma brancas:

VEJA SETE ESTADOS A PARTIR DA CIDADE DE PEDRA, A MARAVILHA DO MUNDO.

Com isso, o motorista é levado a acreditar que a Cidade de Pedra fica certamente depois da próxima esquina, em vez de estar a um dia de viagem de distância, na montanha Lookout, bem na divisa com a Georgia, logo ao sudoeste de Chattanooga, no Tennessee.

A montanha Lookout não é bem uma montanha. Parece mais com uma colina impossivelmente alta e controladora. Os índios chickamauga, uma ramificação dos cherokee, viviam lá quando o homem branco chegou; chamavam a montanha de Chattotonoogee, que foi traduzido como a montanha que sobe até certo ponto.

Na década de 1830, a emenda de relocação indígena de Andrew Jackson exilou-os de suas terras— todos os choctaw, chickamauga, e cherokee e chickasaw — e tropas americanas forçaram cada um dos índios que conseguiram pegar a andar quase 2 mil quilômetros até os novos Territórios Indígenas no lugar que um dia seria Oklahoma, pela trilha de lágrimas: um ato de genocídio por negligência. Milhares de homens, mulheres e crianças morreram no caminho. Quando você venceu, venceu, e ninguém pode discutir.

Porque quem quer que controlasse a montanha Lookout, controlava também a terra; era aquela a lenda. Era um lugar sagrado, apesar de tudo, e era um lugar alto. Na Guerra Civil, a Guerra Entre os Estados, houve uma batalha ali: a Batalha Sobre as Nuvens, que foi o primeiro dia de luta, e então as forças da União fizeram o impossível e, sem receber ordens, passaram por cima de Missionary Ridge e o tomaram. O Norte tomou a montanha Lookout e venceu a guerra.

Existem túneis e cavernas, algumas muito antigas, sob a montanha Lookout. A maior parte está fechada hoje em dia, apesar de um empresário local ter escavado uma cachoeira subterrânea, que ele chamou de Queda Rubi. Pode ser visitada de elevador. É uma atração turística, apesar de a maior atração turística de todas estar no topo da montanha Lookout. É a Cidade de Pedra.

A Cidade de Pedra começa como um jardim ornamental na encosta da montanha: seus visitantes caminham por uma trilha que os leva por meio de pedras, por cima de pedras, entre pedras. Jogam milho em um cercado de cervos, cruzam uma ponte suspensa e olham através de binóculos que funcionam com uma moeda de 25 centavos para uma paisagem que promete sete Estados nos raros dias ensolarados quando o ar está perfeitamente limpo. E, a partir dali, como uma queda para um inferno estranho, a trilha leva os visitantes, milhões e milhões deles a cada ano, para dentro das cavernas, onde olham para bonecos iluminados com luz negra e arranjados em montagens de histórias infantis e de contos de fadas. Quando vão embora, saem confusos, incertos do motivo por que vieram, do que viram, sem saber se haviam se divertido ou não.

Eles vieram até a montanha Lookout de todos os cantos dos Estados Unidos. Não eram turistas. Vieram de carro, de avião, de ônibus, de trem e até a pé. Alguns voaram — voaram baixo, e só voaram no escuro da noite. Vários viajaram por seus próprios meios por debaixo da terra. Muitos deles vieram de carona, mendigando um lugar em carros de motoristas nervosos e em caminhões. Aqueles que possuíam carros ou caminhões e que viam os que não possuíam caminhando no acostamento das estradas ou esperando em áreas de descanso e em lanchonetes pelo caminho, e reconhecendo-os pelo que eram, ofereciam carona.

Chegaram cobertos de pó e cansados aos pés da montanha Lookout. Olhando para o alto da encosta coberta de árvores conseguiam ver, ou imaginavam as trilhas, os jardins e a cachoeira da Cidade de Pedra.

Começaram a chegar nas primeiras horas da madrugada. Uma segunda leva chegou ao amanhecer. E, durante vários dias, simplesmente continuavam a chegar.

Um caminhão de mudança velho e batido estacionou, despejando várias vilas e rusalkas cansadas de viajar, com a maquiagem borrada, com as meias-calças desfiadas, com olhos que mal conseguiam ficar abertos, e exaustas.

Em uma moita de arvorezinhas no sopé da montanha, um wampyr idoso oferecia um Mariboro para uma criatura nua, parecida com um macaco, coberta por pelos alaranjados e emaranhados. A criatura aceitou educadamente, e os dois fumaram em silêncio, lado a lado.

Um Toyota Previa estacionou ao lado da estrada, e sete chineses, homens e mulheres, desceram. Pareciam, acima de tudo, limpos, e usavam os tipos de ternos escuros que, em alguns países, são usados por oficiais menores do governo. Um deles carregava uma prancheta, e conferia o inventário à medida que descarregavam enormes sacolas de golfe da traseira do carro, com espadas ornamentadas e empunhaduras esmaltadas, bengalas esculpidas e espelhos. As armas foram distribuídas, entregues, assinadas.

Um comediante antigamente famoso, que se acreditava ter morrido na década de 1920, desceu de seu carro enferrujado e começou a tirar a roupa: suas pernas eram pernas de bode, e sua cauda era curta e caprina.

Quatro mexicanos chegaram, todos sorridentes, com os cabelos pretos e muito brilhantes: passaram entre si uma garrafa que mantinham escondida em um saco de papel pardo, com uma mistura amarga de chocolate em pó, licor e sangue.

Um homem pequeno com uma barba escura e um chapéu preto empoeirado, parecido com uma cartola na cabeça, com payess encaracoladas pendendo das têmporas, e um manto de oração com franjas, esfarrapado, veio até eles caminhando através dos campos. Ele vinha vários metros à frente de seu companheiro, que era duas vezes mais alto do que ele e tinha a cor cinzenta vazia da boa argila polonesa: a palavra escrita na testa dele queria dizer vida.

Continuavam a chegar. Um táxi encostou e vários Rakshasas, os demônios do subcontinente indiano, desceram e começaram a correr de um lado para o outro, olhando para as pessoas no sopé da montanha sem falar, até encontrarem Mama-ji, com os olhos fechados e os lábios se movendo em uma oração. Ela era a única coisa ali que parecia familiar a eles, mas, ainda assim, hesitavam em aproximar-se, lembrando-se das antigas batalhas. Suas mãos esfregavam o colar de caveiras em volta de seu pescoço. A pele parda dele lentamente ficou preta, da cor preta vidrada do azeviche, da obsidiana: os lábios dela se curvaram e seus dentes longos e brancos eram muito afiados. Ela abriu todos os olhos, chamou os Rakshasas para perto de si, e os cumprimentou como cumprimentaria os próprios filhos.

As tempestades dos últimos dias, a norte e a leste, não conseguiram amainar a sensação de pressão e de desconforto no ar. Meteorologistas locais começaram a prevenir as pessoas de ventos que podiam se transformar em tornados, e de áreas de muita pressão atmosférica que ficariam assim durante vários dias. Ali era quente durante o dia, mas as noites eram frias.

 

Eles se agrupavam em companhias informais, unindo-se às vezes pela nacionalidade, pela raça, pelo temperamento, até mesmo pela espécie. Pareciam apreensivos. Pareciam cansados.

Alguns deles conversavam. Ouvia-se uma risada, ocasionalmente, mas era sempre abafada e esporádica. Pacotes de seis latas de cerveja circulavam.

Vários homens e mulheres locais chegaram caminhando pelas campinas, seu corpos se moviam de maneira estranha: sua vozes, quando falavam, eram as vozes dos Loas que os possuíam: um negro alto falou com a voz de Papa Legba que abre os portões; enquanto Baron Samedi, o senhor Vodum da morte, tomou o corpo de uma adolescente gótica de Chattanooga, possivelmente porque ela possuía sua própria cartola de seda preta, que se acomodava sobre os seus cabelos escuros em um ângulo garboso. Ela falava com a própria voz profunda de Baron, fumava um charuto enorme, e dava ordens a três dos Gédé, os Loa dos mortos. Os Gédé habitavam os corpos de três irmãos de meia-idade. Carregavam revólveres c contavam piadas de imundice tão espantosa que só eles mesmos estavam dispostos a rir delas, o que faziam, de maneira áspera.

Duas mulheres chickamauga de idade indefinida, vestidas com calças jeans manchadas de óleo e jaquetas de couro surradas, andavam por ali, observando as pessoas e as preparações para a batalha. Às vezes, apontavam os dedos e sacudiam as cabeças. Não pretendiam tomar parte do conflito que estava por vir.

A lua inchou e nasceu ao leste, a um dia de estar cheia. Quando se levantou, imediatamente acima das colinas, de um vermelho alaranjado profundo, parecia do tamanho da metade do céu. Á medida que cruzava o firmamento, parecia encolher e empalidecer até pairar no céu como uma lamparina.

Havia tantos deles esperando ali, ao luar, no sopé da montanha Lookout.

Laura tinha sede.

Às vezes pessoas vivas queimavam constantemente em sua mente, como velas, c às vezes pegavam fogo, como tochas. Isso fazia com que fosse fácil evitá-los e, ocasionalmente, com que fosse fácil encontrá-los. Shadow queimou de maneira tão estranha, com sua própria luz, de cima daquela árvore.

Ela havia ralhado com ele certa vez, quando caminharam de mãos dadas, por não estar vivo. Ela havia torcido para ver, naquela ocasião, uma fagulha de emoção pura. Para ver qualquer coisa.

Ela se lembrava de caminhar ao lado dele, desejando que ele conseguisse entender o que tentava dizer.

Mas, ao morrer na árvore, Shadow havia estado completamente vivo. Ela o observara à medida que a vida se esvaía, e ele era concentrado e verdadeiro. Ele tinha pedido a ela que ficasse ali a noite inteira. Ele a tinha perdoado... talvez a tivesse perdoado. Não fazia diferença. Ele havia mudado; era tudo o que ela sabia.

Shadow dissera a ela que fosse até a sede da fazenda, que ali dariam água para que bebesse. Não havia luzes acesas na casa, e ela não conseguia pressentir ninguém lá dentro. Mas ele falou que cuidariam dela. Ela empurrou a porta da casa de fazenda e a abriu, as dobradiças enferrujadas reclamaram o tempo todo.

Algo se moveu dentro do seu pulmão esquerdo, alguma coisa que se debatia e se contorcia e que fazia com que ela tossisse.

Ela se viu em um corredor estreito, com a passagem quase totalmente bloqueada por um piano alto, empoeirado. O interior da construção cheirava à umidade antiga. Ela encolheu a barriga e passou pelo piano, abriu uma porta e entrou em uma sala de estar dilapidada, cheia de mobília jogada. Uma lamparina a óleo queimava sobre a lareira. Havia um fogo de carvão queimando, apesar de ela não ter visto nem sentido o cheiro da fumaça do lado de fora da casa. O fogo não surtia o mínimo efeito sobre o frio que ela sentia naquela sala, apesar de talvez não ser culpa da sala, Laura estava pronta a admitir.

A morte fazia Laura sofrer, apesar de a mágoa se constituir principalmente de coisas que não estavam ali: uma sede ressecada que drenava cada célula dela, uma ausência de calor em seus ossos que era absoluta. Às vezes, ela se pegava pensando se as chamas ardentes e estalantes de uma pira ou o cobertor macio e marrom da terra poderiam aquecê-la; se o mar frio acabaria com sua sede...

Ela percebeu que a sala não estava vazia.

Três mulheres estavam sentadas sobre um sofá velho, como se fizessem parte de um conjunto combinado em alguma exposição de arte esquisita. O sofá era estofado com um veludo surrado marrom desbotado que certa vez, cem anos atrás, poderia ter sido um amarelo-canário forte. Seguiram-na com os olhos quando ela entrou na sala, mas não disseram nada.

Laura não sabia que elas estariam lá.

Alguma coisa se contorceu e caiu em sua fossa nasal. Laura remexeu na manga do casaco, à procura de um lenço de papel, e assoou o nariz. Ela amassou o lenço e jogou o papel e seu conteúdo nos carvões do fogo. Observou, enquanto o embrulho se contraía e escurecia, até formar uma espécie de renda alaranjada. Viu as larvas enrugarem, tostarem e queimarem.

Feito isso, olhou para as mulheres no sofá. Elas não se mexeram desde que ela entrara, nem um músculo, nem um fio de cabelo. Olhavam para ela.

— Olá. Esta fazenda é de vocês? — perguntou. A maior das mulheres assentiu com a cabeça. As mãos dela eram muito vermelhas, e sua expressão estava impassível.

— Shadow... o cara pendurando na árvore. Ele é meu marido... disse pra eu falar pra vocês que ele quer que me dêem água.

Alguma coisa grande se mexeu em seu intestino. Contorceu-se, e então ficou imóvel.

A menor das mulheres desceu do sofá. Antes disso, os pés dela não tinham tocado o chão. Ela saiu apressada da sala.

Laura ouvia portas abrindo e fechando na casa de fazenda. Então, vindos do lado de fora, ouviu vários rangidos altos. Cada um seguido por um jorro de água.

Logo, a mulher pequena voltou. Ela carregava uma jarra de barro cozido cheia de água. Ela a colocou, com cuidado, sobre a mesa, e voltou para o sofá. Deu impulso para cima, com um rodopio e um tremor, e se sentou mais uma vez ao lado das irmãs.

— Obrigada.

Laura caminhou até a mesa, olhou em volta à procura de uma caneca ou de um copo, mas não havia nada do tipo à vista. Pegou a jarra. Era mais pesada do que parecia. A água era perfeitamente límpida.

Ela levou a jarra até os lábios e começou a beber.

A água era mais fria do que ela imaginava que água líquida poderia ser. Congelou sua língua, seus dentes e sua garganta. Ainda assim ela bebeu, incapaz de parar, sentindo a água congelar todo o trajeto até o estômago, intestino, coração e veias.

A água corria dentro dela. Era como gelo líquido.

Ela percebeu que a jarra estava vazia e, surpresa, colocou-a de volta em cima da mesa.

As mulheres a observavam, sem interesse. Desde que morrera, Laura não pensava em metáforas: as coisas eram ou não eram. Mas agora, enquanto olhava para as mulheres no sofá, descobriu-se pensando em um corpo de jurados, em cientistas observando um animal de laboratório.

Ela começou a tremer, de repente e de maneira convulsiva. Esticou uma das mãos até a mesa para se equilibrar, mas a mesa estava bamba e escorregava, e quase se esquivou dela. Quando encostou a mão na mesa, começou a vomitar. Regurgitou bile e formalina, centopéias e larvas. E então se sentiu começando a evacuar c a mijar: coisas eram expelidas de maneira violenta e úmida do corpo dela. Ela teria gritado se pudesse, mas as tábuas de madeira do chão vieram ao seu encontro tão rápido e com tanta força que, se ela respirasse, teriam tirado-lhe o fôlego.

O tempo passou sobre ela e através dela, rodopiando como um demônio de poeira. Mil memórias começaram a espocar de uma vez só: estava perdida em uma loja de departamentos na semana antes do Natal e seu pai não estava à vista; e agora estava sentada no bar do Chi-Chi, pedindo um daiquiri de morango e analisando o cara que sua amiga arrumara para ela, o homem grande com cara de criança séria, e imaginava como ele beijava; e ela estava no carro que, deixando-a enjoada, capotava e sacudia, e Robbie gritava com ela até que o poste de metal finalmente fez com que o carro parasse de se mover, mas não seu conteúdo...

A água do tempo, que vem da fonte do destino, do Poço de Urd, não é a água da vida. Não mesmo. Alimenta as raízes da árvore do mundo. E não existe nenhuma água como aquela.

Quando despertou na sala vazia da casa de fazenda, Laura tremia e sua respiração de fato fazia nuvens de vapor no ar da manhã. Tinha um arranhão nas costas da mão, e uma coisa úmida sobre o arranhão, o vermelho vívido de sangue fresco.

E ela sabia aonde precisava ir. Ela tinha bebido a água do tempo, que vem da fonte do destino. Ela conseguia ver a montanha em sua mente.

Laura lambeu o sangue das costas da mão, maravilhada com a película de saliva, e começou a caminhar.

Era um dia úmido de março, e estava absurdamente frio. As tempestades dos dias anteriores tinham se deslocado até os Estados do Sul, o que significava que havia poucos turistas na Cidade de Pedra, na montanha Lookout. As luzinhas de Natal tinham sido recolhidas, os visitantes do verão ainda estavam para começar a chegar.

Ainda assim, havia gente lá... até mesmo um ônibus de excursão que encostara ali pela manhã e despejara uma dúzia de homens e mulheres bronzeados, com um sorriso brilhante e encorajador nos lábios. Pareciam âncoras de telejornais, e quase dava para imaginar que eles eram compostos de pontos brilhantes de fosfato: sua imagem parecia sair suavemente de foco quando se moviam. Um Humvee preto estava estacionado no pátio da frente da Cidade de Pedra.

O pessoal da TV andava intensamente pela Cidade de Pedra, estacionando perto da pedra equilibrada. Conversavam entre si com vozes agradáveis e sábias.

Não eram as únicas pessoas nessa onda de visitantes. Se você percorresse as trilhas da Cidade de Pedra naquele dia, teria reparado em pessoas que se pareciam com astros de cinema, em pessoas que se pareciam com alienígenas, e em um grande número de pessoas que se pareciam com a idéia de uma pessoa e que não tinham nada a ver com a realidade. Você poderia tê-las visto, mas o mais provável é que nem teria reparado nelas.

Chegavam em limusines compridas, em carros esportivos pequenos e em jipes de tamanho descomunal. Muitas delas de óculos escuros, daqueles que usam habitualmente em ambientes fechados e abertos, e que não os removem por vontade própria nem sem preocupação. Havia bronzeados, e ternos, e óculos escuros, e sorrisos e carrancas. Vinham em todos os tamanhos e formatos, em todas as idades e em todos os estilos.

O que todas essas pessoas tinham em comum era um certo ar, um ar bem específico. O jeito delas dizia você me conhece; ou, talvez, você deveria me conhecer. Uma familiaridade instantânea que também era uma distância, uma aparência, ou uma atitude — a confiança de que o mundo existia para elas, e que as acolhia, e que eram adoradas.

O garoto gordo andava no meio dessas pessoas com o arrastar de pés de quem, apesar de não ter nenhum traquejo social, ainda assim tinha ficado mais famoso do que jamais sonhara. Seu casaco preto esvoaçava ao vento.

Alguma coisa parada ao lado da barraquinha de refrescos no display da Corte da Mamãe Ganso tossiu para atrair sua atenção. Era maciça, e lâminas de bisturi se projetavam a partir de seu rosto e de seus dedos. Seu rosto era canceroso.

— Vai ser uma batalha poderosa — disse a ele, com voz pegajosa.

— Não vai ter batalha nenhuma — retrucou o garoto gordo. — O que a gente vai ter que enfrentar aqui é uma porra de mudança de paradigma. É uma extorsão. Modalidades do tipo batalha são uma coisa tão Lao Tzu...

A coisa cancerosa piscou para ele.

— Espera pra ver.

— Tanto faz — disse o garoto gordo. Depois, completou:

— Estou procurando o senhor World. Você viu ele por aí? A coisa se coçou com uma lâmina de bisturi, um lábio inferior cheio de tumores fez um bico de concentração.

— Por ali — disse.

O garoto gordo se afastou, sem agradecer, na direção indicada. A coisa cancerosa esperou sem dizer nada, até que o garoto saísse de seu campo de visão.

— Vai ser uma batalha — disse a coisa para uma mulher com o rosto borrado de pontos de fosfato.

Ela assentiu com a cabeça, e se inclinou para perto da coisa:

— Então, como é que você se sente? — ela perguntou, com voz amigável. A coisa sorriu e começou a explicar.

O Ford Explorer de Town tinha um GPS, um global positioning system, que consiste de uma tela pequena que ouvia os satélites e mostrava ao carro sua localização, mas, ainda assim, continuava perdido ao sul de Blacksburg, nas estradinhas de terra: as estradas que ele percorria pareciam ter pouca relação com o emaranhado de linhas no mapa da tela. Finalmente, Town parou o carro em uma travessa empoeirada, abaixou a janela e perguntou a uma mulher gorda e branca, que era puxada por um pastor-alemão em seu passeio matutino, se sabia onde ficava a fazenda do Freixo.

Ela assentiu com a cabeça, apontou e disse alguma coisa. Ele não entendeu o que ela disse, mas deu um milhão de obrigados, fechou a janela e se encaminhou para a direção genérica que ela tinha apontado.

Continuou o caminho por mais quarenta minutos, percorrendo uma estradinha atrás da outra, nenhuma delas a que ele procurava. Town começou a morder o lábio inferior.

— Estou velho demais pra essa merda — disse alto, saboreando o tom de filme e de reconhecimento global do chavão.

Ele estava chegando aos 50. A maior parte de sua vida produtiva tinha sido gasta em um setor do governo que só atendia pelas iniciais, e Town ainda não tinha certeza se ele havia largado seu emprego público por causa de uma colocação no mercado particular há doze anos: às vezes pensava de um jeito, às vezes de outro. De qualquer modo, eram só os zés manes que acreditavam existir alguma diferença.

Estava prestes a desistir da fazenda quando subiu uma colina e viu a placa, pintada à mão, no portão. Dizia simplesmente, como disseram a ele que diria, FREIXO. Encostou o Ford Explorer, desceu, e destorceu o arame que mantinha o portão fechado. Voltou para o carro e atravessou o portão.

Era como cozinhar um sapo, ele pensou. Você coloca o sapo na água, depois liga o fogo. E quando o sapo percebe que há alguma coisa errada, já está cozido. O mundo em que ele trabalhava era esquisito demais. Não havia um chão sólido sob os seus pés; a água na panela borbulhava violentamente.

Quando fora transferido para a Agência, tudo parecia muito simples. Agora tudo era tão... não era complexo, era simplesmente bizarro. Às duas da manhã, naquele dia, ele esteve no escritório do senhor World, e falaram a ele o que fazer:

— Entendeu? — disse o senhor Wyld, entregando-lhe a faca em seu estojo de couro escuro. — Corta um pedaço pra mim. Não precisa ser maior do que meio metro.

— Afirmativo — respondeu. Depois, disse:

— Por que eu preciso fazer isso, senhor?

— Porque eu estou mandando — disse o senhor World, secamente. — Encontre a árvore. Faça o serviço. Vá me encontrar em Chattanooga. Não perca tempo.

— E o bundão?

— Shadow? Se você encontrar com ele, simplesmente evite. Não toque nele. Nem pense em sacanear com ele. Não quero que você transforme o cara em um mártir. Não tem lugar pra mártir nenhum na estratégia de jogo atual.

Ele sorriu então, um sorriso de cicatriz. O senhor World se alegrava com facilidade. O senhor Town já tinha reparado nisso em diversas oportunidades. Além do mais, ele se divertira ao brincar de chofer no Kansas.

— Olha...

— Sem mártires, Town.

E Town assentiu com a cabeça, pegou a faca em seu estojo e empurrou para longe a raiva que se acumulava no fundo de sua alma.

A raiva do senhor Town por Shadow fazia parte do seu ser. Quando adormecia, ele via o rosto solene de Shadow, via aquele sorriso que não era um sorriso, aquele jeito que tinha de sorrir sem sorrir, que fazia Town ter vontade de enfiar os dedos nas entranhas do homem e, mesmo quando caía no sono, sentia sua mandíbula se fechar com força, sua têmporas tensas, sua garganta queimando.

Ele atravessou o descampado com o Ford Explorer, passando por uma sede de fazenda abandonada. Subiu uma ladeira e viu a árvore. Estacionou o carro um pouco depois de passar por ela, e desligou o motor. O relógio no painel dizia que eram 6h38. Deixou as chaves no contato e caminhou em direção à árvore.

A árvore era grande; parecia existir segundo seu próprio senso de escala. Town não sabia dizer se tinha 15 ou 60 metros de altura. Sua casca era da cor cinzenta de uma echarpe de seda fina.

Havia um homem nu amarrado ao tronco, um pouco acima do chão, por uma rede emaranhada de cordas, e algo enrolado em um lençol no pé da árvore. Town percebeu o que era quando passou por ali. Remexeu no lençol com o pé. O rosto meio destruído de Wednesday olhou para ele.

Town alcançou a árvore. Andou ao redor do tronco grosso, para fora da vista da casa da fazenda, então abriu o zíper e mijou contra o tronco da árvore. Fechou o zíper. Caminhou até a casa, encontrou uma escada de madeira retrátil e a carregou até a árvore. Apoiou-a cuidadosamente contra o tronco. Então subiu.

O corpo de Shadow pairava, frouxo, pendurado nas cordas que o prendiam à árvore. Town se perguntou se o homem ainda estaria vivo: seu peito não subia nem descia. Morto ou quase morto, não fazia diferença.

— Oi, seu bundão — Town falou alto.

Shadow não se mexeu.

Town chegou ao topo da escada e tirou a faca do bolso. Encontrou um galho pequeno que parecia satisfazer às especificações do senhor World, e deu golpes em sua base com a lâmina da faca, cortando a metade da grossura, depois quebrando o resto com a mão. Tinha uns 75 centímetros de comprimento.

Guardou a faca de volta no estojo. Então começou a descer os degraus da escada. Quando estava de frente para Shadow, fez uma pausa.

— Meu Deus, eu odeio você.

Gostaria de poder pegar um revólver e atirar nele, e sabia que não podia fazer isso. Então brandiu o galho no ar, na direção do homem pendurado, como se o quisesse apunhalar. Era um gesto instintivo, que continha toda a frustração e a raiva de Town. Imaginou que estava segurando uma lança e remexendo nas entranhas de Shadow.

— Vamos lá. É hora de se mexer.

Então pensou: Primeiro sinal de loucura. Conversar consigo mesmo. Desceu mais alguns degraus, então deu um salto até o chão. Olhou para o galho que segurava e se sentiu como um garotinho, segurando seu pedaço de pau como se fosse uma espada ou uma lança. Eu poderia ter cortado um galho de qualquer árvore, pensou. Não precisava ser esta arvore. Quem é que iria saber, porra?

E pensou: O senhor World saberia.

Carregou a escada de volta até a casa. Com o canto do olho, pensou ter visto algo se mover, e olhou através da janela, para a sala escura cheia de mobília quebrada, com a argamassa descascando das paredes e, por um momento, como se fosse um sonho, imaginou que viu três mulheres sentadas na sala de visitas escura.

Uma delas tricotava, outra olhava diretamente para ele e outra parecia dormir. A mulher que olhava para ele começou a sorrir, um sorriso enorme que parecia dividir seu rosto em dois, um sorriso que cruzava o rosto de uma orelha à outra. Então ela levantou o dedo e o encostou no pescoço, e correu-o lentamente de um lado até o outro.

Foi aquilo que ele pensou ter visto, tudo em um instante, naquele quarto vazio que continha, como vira ao olhar novamente, nada mais do que mobília velha e podre e quadros manchados pelo tempo e sujeira seca. Não havia absolutamente ninguém ali.

Esfregou os olhos.

Town caminhou de volta até o carro marrom e entrou. Jogou o galho sobre o couro branco do assento do passageiro. Virou a chave no contato. O relógio do painel marcava 6h37. Town franziu a testa e checou o relógio de pulso, que piscava mostrando 13h58.

Ótimo, pensou. Ou eu fiquei em cima daquela árvore durante oito horas, ou durante menos de um minuto. Foi aquilo que ele pensou, mas o que ele acreditava era que ambos os relógios, coincidentemente, tinham começado a se portar mal.

Na árvore, o corpo de Shadow começou a sangrar. A ferida estava na lateral do corpo dele. O sangue que saía dali era lento, grosso e escuro como melado.

Nuvens cobriam o topo da montanha Lookout.

Easter se acomodou a alguma distância da multidão, no sopé da montanha, observando o amanhecer por sobre as colinas a leste. Ela tinha uma corrente de não-me-esqueças azuis tatuada ao redor do pulso esquerdo e esfregava o desenho, com o polegar direito, sem ter consciência de seu ato.

Outra noite chegara e tinha passado, e nada. O pessoal continuava a chegar, gente sozinha e em dupla. A noite anterior trouxera várias criaturas do sudeste, incluindo dois menininhos, cada um do tamanho de uma macieira, e algo que ela só vira de relance, mas que se parecia com uma cabeça sem corpo, do tamanho de um Fusca. Desapareceram no meio das árvores, no sopé da montanha.

Ninguém os incomodava. Ninguém do mundo exterior nem sequer parecia ter notado que eles estavam ali: ela imaginava que os turistas na Cidade de Pedra que olhavam para eles através de seus binóculos que funcionavam com moedas, olhando diretamente para um acampamento de coisas e de pessoas no sopé da montanha, não viam nada além de árvores, arbustos e pedras.

Ela sentia o cheiro de comida sendo feita no fogo, um cheiro de bacon queimado no vento frio do amanhecer. Alguém na outra ponta do acampamento começou a tocar gaita, o que fez com que ela, involuntariamente, sorrisse e tremesse. Easter trazia um livro em sua mochila, e esperava o céu se iluminar o suficiente para poder ler.

Havia dois pontos no céu, imediatamente abaixo das nuvens: um pequeno e um grande. Um respingo de chuva bateu em seu rosto com o vento da manhã.

Uma menina descalça veio do acampamento, caminhando na direção dela. Parou ao lado de uma árvore, levantou as saias e se agachou. Quando terminou, Easter acenou para ela. A garota caminhou até onde ela estava.

— Bom dia, senhora. A batalha deve começar logo.

A pontinha de sua língua cor-de-rosa encostava nos lábios vermelho-escarlate. Ela trazia uma asa de corvo preto presa ao ombro com tiras de couro e uma pata de corvo em uma corrente ao redor do pescoço. Seus braços tinham tatuagens azuis de linhas e padrões e nós intrincados.

— Como é que você sabe? A garota sorriu.

— Eu sou Macha, das Morrigan. Quando a guerra chega, eu consigo sentir o cheiro no ar. Sou uma deusa da guerra e digo, sangue vai ser derramado neste dia.

— Ah — disse Easter. — Bom. Aí está.

Ela observava o menor ponto no céu à medida que caía na direção delas, como uma pedra.

— E nós vamos lutar contra eles e matar um por um. Vamos levar as cabeças como troféus, e os corvos ficarão com os olhos e os cadáveres.

O ponto se transformou em um pássaro com as asas abertas, planando nas rajadas de vento da manhã acima de suas cabeças.

Easter tombou a cabeça para o lado.

— Isso aí é algum tipo de conhecimento oculto de uma deusa da guerra? — perguntou. — Essa coisa aí de quem-é-que-vai-vencer? Quem fica com a cabeça de quem?

— Não. Posso sentir o cheiro da batalha, e é tudo. Mas nós vamos vencer. Não vamos? Nós precisamos vencer. Eu vi o que eles fizeram com o Pai de Todos. São eles ou nós.

— É — disse Easter. — Suponho que sim.

A garota sorriu de novo, à meia-luz, e retraçou seu caminho até o acampamento. Easter abaixou a mão e tocou em um ramo verde que saía da terra como uma lâmina de faca. Quando tocou na planta, ela cresceu, se abriu, se contorceu e se modificou, até que sua mão estivesse apoiada em uma cabeça de tulipa verde. Quando o sol estivesse alto, a flor se abriria.

Easter olhou para cima, para o falcão.

— Posso ajudar?

O pássaro voou em círculos, cerca de 5 metros acima da cabeça de Easter, lentamente, então deslizou em sua direção, e pousou no chão ali perto. Olhou para ela com olhos loucos.

— Oi, fofura, qual é a sua aparência verdadeira, hein? O falcão deu alguns pulinhos incertos na direção dela e não era mais um falcão, mas um rapaz. Olhou para ela e depois, para a grama no chão.

— Você? — disse.

Seu olhar se dirigia para todo lugar. Para a grama, para o céu, para os arbustos. Não para ela.

— Eu — ela disse. — O que é que tem?

— Você.

Ele parou. Parecia estar tentando organizar os pensamentos; expressões estranhas passavam e flutuavam pelo rosto dele. Ele passou tempo demais como pássaro, ela pensou. Ele se esqueceu de como ser homem. Ela esperou pacientemente. Afinal, ele disse:

— Você me acompanha?

— Talvez. Aonde você quer que eu vá?

— O homem na árvore. Ele precisa de você. Um fantasma machucou, do lado. O sangue escorreu, depois parou. Acho que ele está morto.

— Está acontecendo uma guerra. Eu não posso simplesmente sair correndo. O homem nu não disse nada, só trocou o apoio de um pé para o outro, como se não tivesse muita certeza do seu peso, como se estivesse habituado a descansar no ar ou em algum galho balançante, não na terra firme. Então, disse:

— Se ele se for para sempre, então tudo está acabado.

— Mas a batalha...

— Se ele se perder, não vai fazer diferença quem vencer. Ele parecia precisar de um cobertor, de uma xícara de café doce e de alguém que o pudesse levar a algum lugar onde pudesse apenas tremer e balbuciar até recuperar a consciência. Ele segurava os braços rigidamente ao lado do corpo.

— Onde fica isso? Aqui perto?

Ele olhou para a tulipa, e sacudiu a cabeça.

— Bem longe.

— Bom — ela disse. — Precisam de mim por aqui. E eu não posso simplesmente ir embora. Como é que você acha que eu vou chegar até lá? Eu não posso voar como você, você sabe.

— Não — disse Hórus. — Não pode.

Então, olhou para cima, sério, e apontou para o outro ponto que os rodeava, enquanto caía das nuvens que iam ficando cada vez mais escuras e aumentando de tamanho.

— Ele pode.

Mais várias horas de viagem inútil, e agora Town odiava o GPS quase tanto quanto odiava Shadow. Mas não tinha paixão naquele ódio. Ele achou que encontrar o caminho até a fazenda, até o enorme freixo cinzento, tinha sido difícil;

encontrar o caminho para sair da fazenda era muito mais difícil. Parecia não fazer diferença que estrada pegasse, que direção seguisse através das estradinhas estreitas — as estradas vicinais tortas da Virgínia devem ter começado, ele pensou, como trilhas de veados e de vacas — logo ele passaria mais uma vez pela fazenda, e pela placa pintada à mão, FREIXO.

Isso era louco, não era? Ele simplesmente tinha que retraçar seu caminho, virar à esquerda na volta toda vez que tinha virado à direita na ida, uma curva à direita para cada esquerda.

Só que foi exatamente isso que fizera na última vez, e lá estava ele, de volta à fazenda mais uma vez. Havia nuvens de chuva pesadas se aproximando, estava escurecendo rápido, parecia noite, não manhã, e ele tinha uma longa viagem à sua frente: nunca chegaria a Chattanooga antes do entardecer nesse passo.

Seu telefone celular dava apenas a mensagem de Sem Serviço. O mapa dobrável no porta-luvas do carro só mostrava as estradas principais, todas as interestaduais e as auto-estradas de verdade, mas até onde sabia, nada mais existia.

Nem havia ninguém ali para quem pudesse pedir informações. As casas eram afastadas das estradas; não existia nenhuma luz convidativa. Agora o ponteiro do combustível estava chegando perto de vazio. Ouviu um barulho distante de trovão, e uma única gota de chuva caiu pesadamente sobre o pára-brisa.

Então, quando Town viu a mulher, andando ao lado da estrada, pegou-se sorrindo, involuntariamente.

— Graças a Deus — disse alto, e encostou ao lado dela. Abaixou a janela.

— Moça? Desculpe. Estou meio perdido. Você pode me explicar como eu faço pra chegar à Estrada 81?

Ela olhou para ele através da janela aberta do lado do passageiro e disse:

— Acho que eu não consigo explicar, mas posso mostrar, se você quiser. Ela era pálida, e seu cabelo molhado era comprido e escuro.

— Sobe aqui. — Ele nem hesitou.

— Primeiro, precisamos colocar um pouco de gasolina.

— Obrigada — ela disse. — Estava precisando de uma carona. Ela entrou. Seus olhos eram espantosamente azuis.

— Tem um galho aqui, no assento — disse, surpresa.

— Joga ali atrás. Pra onde você está indo? — ele perguntou. — Moça, se você conseguir me guiar até um posto de gasolina e de volta pra uma estrada asfaltada, eu deixo você na porta da sua casa.

Ela disse:

— Obrigada, mas acho que vou mais longe do que você. Se puder me deixar na estrada, está ótimo. Talvez um caminhoneiro me dê uma carona.

E ela sorriu, um sorriso sacana e determinado. Foi o sorriso que o conquistou.

— Eu posso oferecer uma carona melhor do que qualquer caminhoneiro. Ele sentia o cheiro do seu perfume. Era forte e pesado, um odor enjoativo, parecido com magnólias ou lilases, mas ele não se importava.

— Estou indo pra Georgia. Fica muito longe.

— Eu estou indo para Chattanooga. Levo você até onde puder.

— Humm. Como se chama?

— Me chamam de Mack — disse o senhor Town.

Quando conversava com mulheres em bares, ele às vezes completava com "E quem me conhece bem mesmo me chama de Big Mãe". Aquilo podia esperar. Com uma longa viagem à frente, teriam muitas horas na companhia um do outro para se conhecer.

— Qual é o seu?

— Laura — ela respondeu.

— Bom, Laura — ele disse. — Tenho certeza de que vamos ser grandes amigos.

O garoto gordo encontrou o senhor World na sala do Arco-Íris — uma porção murada da trilha, com as janelas de vidro cobertas por folhas transparentes de plástico verde, vermelho e amarelo. Ele andava, impaciente, de uma janela à outra, olhando para um mundo dourado, um mundo vermelho, um mundo verde, um de cada vez. Seu cabelo era laranja-avermelhado e cortado bem rente ao crânio. Ele usava uma capa de chuva de tecido da Burberry. O garoto gordo tossiu. O senhor World levantou a cabeça.

— Dá licença? Senhor World?

— Sim? Está tudo andando conforme o previsto?

A boca do garoto gordo estava seca. Ele lambeu os lábios e disse:

— Eu arrumei tudo. Mas ainda não recebi confirmação dos helicópteros.

— Os helicópteros vão estar aqui quando a gente precisar deles.

— Bom — disse o garoto gordo. — Bom.

Ele ficou lá parado, sem dizer nada, sem ir embora. Havia um arranhão na testa dele.

Depois de um momento, o senhor World perguntou:

— Posso ajudar em algo?

Uma pausa. O garoto engoliu em seco e assentiu com a cabeça:

— Tem mais uma coisa...

— Você gostaria de discutir o assunto em particular? O garoto assentiu com a cabeça mais uma vez. O senhor World acompanhou-o até o centro de operações: uma caverna úmida que continha uma montagem de fadinhas bêbadas fabricando bebida em um alambique. Uma placa do lado de fora avisava aos turistas que não deveriam entrar ali durante a reforma. Os dois homens se sentaram em cadeiras de plástico.

— O que eu posso fazer por você? — perguntou o senhor World.

— Está bem. Tudo bem. Neste instante, duas coisas. Tudo bem. Um: o que a gente está esperando? E dois. O dois é mais difícil. Nós temos revólveres. Certo. Nós temos o poder da pólvora. Eles têm umas porras de umas facas, umas espadas, umas marretas e uns machados de pedra. E, tipo, pneus de ferro. Nós temos as porras das bombas inteligentes.

— Que nós não vamos usar — apontou o outro homem.

— Eu sei. Você já disse. Eu sei. E é possível. Mas, olha, desde que eu acabei com aquela puta em E.A., eu...

Ele parou, fez uma careta, pareceu não querer prosseguir.

— Você tem andado perturbado?

— É. Boa palavra. Perturbado. É. Igual a um internato pra adolescentes perturbados. Engraçado. É.

— E o que exatamente está perturbando você?

— Bom, a gente luta, a gente ganha.

— E isso é fonte de perturbação? Eu, pessoalmente, acho que é uma questão de triunfo e de deleite.

— Mas eles vão morrer de qualquer jeito. Eles são pombos passageiros e tilacinos, não são? Quem liga pra eles? Assim, vai ser um banho de sangue.

— Ah.

O senhor World assentiu com a cabeça.

Ele estava acompanhando o raciocínio. Aquilo era bom. O garoto gordo disse:

— Olha, eu não sou o único que se sente assim. Eu chequei com o pessoal na Rádio Moderna, e todos eles concordam que preferem entrar em acordo de maneira pacífica, e os intangíveis estão bem a favor de deixar as forças de mercado darem conta do recado. Estou sendo, você sabe, a voz da razão aqui.

— De fato, você é. Infelizmente, existe informação que você não tem. O sorriso que se seguiu àquilo era distorcido e cheio de cicatrizes. O garoto piscou.

— Senhor World? O que aconteceu com os seus lábios? World suspirou.

— A verdade sobre o assunto é que alguém, certa vez, costurou os dois juntos. Há muito tempo.

— Uau. Fala sério. Caralho, omertà de verdade!

— É. Você quer saber o que a gente está esperando? Por que a gente não atacou na noite passada?

O garoto gordo assentiu com a cabeça. Ele suava, mas era um suor frio.

— A gente ainda não atacou porque eu estou esperando um galho.

— Um galho?

— É isso aí. Um galho. E você sabe o que é que eu vou fazer com um galho? Uma sacudidela da cabeça.

— Tudo bem. Eu passo. O quê?

— Eu poderia contar pra você — disse o senhor World, cheio de bom senso.

— Mas depois eu teria que matá-lo.

Ele piscou com um olho, e a tensão se evaporou da sala. O garoto gordo começou a rir, uma risada grave e nasalada, que saía do fundo da sua garganta e do seu nariz.

— Tudo bem — disse. Ha, ha. Tudo bem. Ha. Entendi. Mensagem recebida no Planeta da Técnica. Em alto e bom som. Ixnay no Estionsquay.

O senhor World sacudiu a cabeça. Colocou a mão no ombro do garoto.

— Ei, você quer mesmo saber?

— Claro.

— Bom — disse o senhor World —, tendo em vista que somos amigos, aqui está a resposta: eu vou pegar o galho e vou jogar em cima dos exércitos quando se reunirem. Quando eu jogar, vai se transformar em uma lança. E então, quando a lança estiver sobrevoando o campo de batalha, vou gritar "Dedico esta batalha a Odin".

— Hã? Por quê?

— Poder... Coçou o queixo:

— ...e alimento. Uma combinação dos dois. Sabe, o desfecho da batalha não é importante. O que importa é o caos, e a carnificina.

— Não entendo.

— Deixa eu mostrar pra você. Vai ser assim, observe.

Ele tirou a faca de caçador com lâmina de madeira do bolso da capa e, com um movimento fluido, deslizou a lâmina sob a pele macia do queixo do garoto gordo e empurrou para cima com força, em direção ao cérebro.

— Eu dedico esta morte a Odin — disse enquanto a faca afundava. Alguma coisa que não era sangue de verdade começou a vazar sobre a mão dele c se ouviu um barulho faiscante atrás dos olhos do garoto. O cheiro no ar era de malha de isolamento térmico queimada.

A mão do garoto gordo se contorceu em espasmos, e então caiu. A expressão em seu rosto era de surpresa e de tristeza.

— Olhe pra ele — disse o senhor World em tom de conversa, falando com o ar. — Parece que acabou de ver uma seqüência de zeros e uns se transformar em um bando de pássaros bem coloridos e sair voando.

Não houve resposta do corredor de pedra vazio.

O senhor World colocou o corpo por cima do ombro, como se pesasse muito pouco, abriu a montagem das fadas e largou o corpo ao lado do alambique, cobrindo-o com sua capa de chuva preta e comprida. Decidiu que se livraria dele naquela noite, e mostrou seu sorriso cheio de cicatrizes: esconder um corpo em um campo de batalha era quase fácil demais. Ninguém "nunca iria reparar. Ninguém iria se importar.

Por um breve momento aquele lugar ficou em silêncio. E então uma voz grosseira, que não era do senhor World, limpou a garganta nas sombras e disse:

— Belo começo.

 

Tentaram ficar longe dos soldados, mas os homens atiraram e mataram ambos. Então, a música está errada no que diz respeito à prisão, mas aquilo foi colocado ali por causa da poesia. Nem sempre dá para descrever as coisas como são na poesia. Poesia não é o que se chama de verdade. Não há espaço suficiente nos versos.

Comentário de um cantor a respeito de "The Ballad of Sam Bass", em A Treasury of American Folklore

 

Nada disso pode estar acontecendo de verdade. Se você se sentir mais confortável assim, poderia pensar no acontecimento simplesmente como uma metáfora. Religiões são, por definição, metáforas, apesar de tudo: Deus é um sonho, uma esperança, uma mulher, um escritor irônico, um pai, uma cidade, uma casa com muitos quartos, um relojoeiro que deixou seu cronômetro premiado no deserto, alguém que ama você — talvez até, contra todas as evidências, um ente celestial cujo único interesse é assegurar-se de que o seu time de futebol, o seu exército, o seu negócio ou o seu casamento floresça, prospere e triunfe sobre qualquer oposição.

Religiões são lugares para ficar, olhar e agir, pontos vantajosos a partir dos quais se observa o mundo.

Então, nada disso está acontecendo. Tais coisas não poderiam ocorrer. Nunca nenhuma palavra sobre isso é literalmente verdadeira. Ainda assim, a coisa que aconteceu a seguir aconteceu assim:

Ao sopé da montanha Lookout, homens e mulheres se juntavam ao redor de uma pequena fogueira, sob a chuva. Estavam parados debaixo das árvores, que proviam uma cobertura parca, e eles discutiam.

Lady Kali, com sua pele escura como tinta preta e seus dentes brancos e afiados, disse:

— Está na hora.

Anansi, com suas luvas amarelo-limão e seu cabelo que ia ficando grisalho, sacudiu a cabeça.

— Podemos esperar. Enquanto pudermos esperar, devemos esperar. Ouviu-se um murmúrio discordante no meio do povo.

— Não, ouçam. Ele está certo — disse um velho de cabelo cinzento, cor-de-ferro: Czernobog.

Ele segurava uma marreta pequena, com a cabeça da ferramenta apoiada no ombro.

— Eles estão por cima. O clima está contra nós. Começar tudo agora é loucura.

Alguma coisa que se parecia um pouco com um lobo e um pouco mais com um homem rosnou e cuspiu no chão da floresta.

— Quando é melhor atacar, dedushkal Devemos esperar até o tempo limpar, quando já estarão esperando que a gente ataque? Digo que devemos ir agora. Vamos nos mexer.

— Existem nuvens entre eles e nós — ressaltou Isten, dos húngaros.

Ele usava um bigode delicado e preto, um grande chapéu empoeirado e o sorriso de um homem que ganha a vida vendendo suportes de parede de alumínio c telhados e calhas novas a cidadãos idosos, mas que sempre vai embora da cidade no dia seguinte à liberação dos cheques, estando o trabalho pronto ou não.

Um homem vestido com um terno elegante, que até então não tinha dito nada, juntou as mãos, deu um passo à frente, para onde a luz da fogueira o iluminava, e deu sua opinião de maneira sucinta e clara. No meio da multidão, houve movimentos de assentir com a cabeça e murmúrios de concordância.

Uma voz veio de uma das três mulheres guerreiras, as Morrigan, tão juntas no meio das sombras, que haviam se transformado em um arranjo de membros tatuados de azul e asas de corvo, que balançava de um lado para o outro. Ela disse:

— Não faz diferença se esta é uma hora boa ou ruim. Esta é a hora. Eles têm matado muitos de nós ultimamente. Ë melhor morrer juntos, no ataque, como deuses, do que morrer fugidos e solitários, como ratos em um celeiro.

Outro murmúrio, dessa vez, de concordância profunda. Ela falou para todos eles. Aquela era a hora.

— A primeira cabeça é minha — disse um chinês muito alto, com uma corrente de caveiras minúsculas em volta do pescoço.

E começou a caminhar, lenta e intensamente, para o alto da montanha, levando no ombro um cajado com uma lâmina curvada na ponta, como se fosse uma lua de prata.

Nem o nada consegue durar para sempre.

Ele podia estar lá, ali Em Lugar Nenhum, há dez minutos ou há dez mil anos. Não fazia diferença: tempo era uma coisa da qual não sentia mais nenhuma necessidade.

Ele não conseguia mais se lembrar de seu nome verdadeiro. Ele se sentia vazio e limpo, naquele lugar que não era um lugar.

Ele não tinha forma, era vazio.

 

Ele não era nada. E dentro daquele nada, uma voz disse:

— Ho-hoka, primo. Precisamos conversar.

E alguma coisa que uma vez deve ter sido Shadow, disse:

— Whiskey Jack?

— É — disse Whiskey Jack, na escuridão. — Você é um homem difícil de caçar, quando está morto. Você não foi a nenhum dos lugares que eu achei que iria. Eu tive que procurar por todos os lados antes de chegar aqui. Diz pra mim, você conseguiu achar a sua tribo?

Shadow lembrava-se do homem e da garota na discoteca sob a luz do globo espelhado.

— Acho que encontrei minha família. Mas não, não achei minha tribo.

— Desculpe precisar incomodar.

— Me deixa em paz. Eu consegui o que queria. Já resolvi tudo.

— Estão vindo buscar você. Vão fazer você reviver.

— Mas eu já resolvi tudo. Está tudo acabado e terminado.

— Nada disso. Nunca diga algo assim. Quer uma cerveja? Ele imaginou que sim, gostaria de tomar uma cerveja.

— Claro.

— Pega uma pra mim também. Tem uma geladeira do lado de fora da porta — disse Whiskey Jack, apontando.

Estavam na cabana dele.

Shadow abriu a porta da cabana com mãos que não possuía instantes antes. Havia uma caixa térmica de plástico cheia de pedaços de gelo do rio lá fora e, no gelo, uma dúzia de latinhas de Budweiser. Ele pegou duas latas, sentou-se na soleira da porta e olhou para o vale.

Estavam no topo de uma montanha, perto de uma cachoeira, desfigurada pela neve derretida e pela enxurrada. Caía em estágios, talvez a 20 metros abaixo deles, talvez a trinta. O sol refletia no gelo que cobria as árvores que rodeavam a bacia da cachoeira.

— Onde estamos? — perguntou Shadow.

— No mesmo lugar que você esteve da última vez... Na minha casa. Você está pensando em ficar segurando a minha Bud até ela esquentar? Shadow se levantou e entregou a lata de cerveja para ele.

— Não tinha nenhuma cachoeira do lado de fora da sua casa na última vez que eu estive aqui.

Whiskey Jack não disse nada. Abriu a lata com um estalo e bebeu metade da cerveja com um gole longo e lento. Então, disse:

— Você se lembra do meu sobrinho? Henry Bluejay? O poeta? Ele trocou o Buick pelo seu Winnebago. Lembra?

— Claro. Eu não sabia que ele era poeta. Whiskey Jack levantou o queixo com ar orgulhoso.

— O melhor poeta dos Estados Unidos.

Virou o resto da cerveja, arrotou e pegou outra lata, enquanto Shadow abria a sua. Os dois se sentaram do lado de fora da cabana, em cima de uma pedra, ao lado das samambaias verdejantes, ao sol da manhã, e ficaram observando a queda-d'água e bebendo. Ainda havia neve no chão, nos lugares que a sombra nunca abandonava.

A terra estava lamacenta e úmida.

— Henry era diabético — prosseguiu Whiskeyjack. — Acontece. Demais. O seu povo vem pra América, pega nossa cana-de-açúcar, nossas batatas e nosso milho, e depois vende batata frita e pipoca caramelada pra gente, e somos nós que ficamos doentes.

Deu um gole na cerveja, reflexivo.

— Ele poderia ter ganhado uns prêmios aí com as poesias. Tinha um pessoal cm Minnesota que queria fazer um livro. Ele estava indo pra Minnesota em um carro esporte pra falar com eles. Tinha trocado o seu 'Bago por um Miata amarelo. Os médicos falaram que ele entrou em coma, enquanto dirigia, saiu da estrada, passou por cima de uma das placas de sinalização. Sua gente é muito preguiçosa pra ver onde está, pra ler as montanhas e as nuvens, sua gente precisa de placas de sinalização em todo lugar. E assim Henry Bluejay se foi pra sempre, foi morar com o irmão Lobo. Então eu disse que nada mais me prendia lá. Vim pró norte. A pescaria é boa por aqui.

— Sinto muito pelo seu sobrinho.

— Eu também. Então, agora vivo aqui no norte. Bem longe dessas coisas de homem branco... doenças, estradas, placas de sinalização, Miatas amarelos e pipoca caramelada.

— Da cerveja do homem branco? Whiskey Jack olhou para a lata.

— Quando a sua gente finalmente desistir e voltar pra casa, vocês podem deixar suas cervejarias Budweiser pra gente.

— Onde a gente está? — perguntou Shadow. — Estou na árvore? Estou morto? Estou aqui? Eu pensei que tudo tinha terminado. O que é real?

— Sim.

— Sim? Que tipo de resposta é "Sim"?

— É uma boa resposta. E também é uma resposta verdadeira. Shadow disse:

— Você também é um deus? Whiskey Jack sacudiu a cabeça.

— Eu sou um herói cultural. Fazemos as mesmas porcarias que os deuses fazem, mas ninguém adora a gente. Contam histórias sobre nós, mas contam aquelas que fazem a gente parecer ruim junto com aquelas em que nos saímos mais ou menos bem.

— Entendo — disse Shadow.

E ele entendia, mais ou menos.

— Olha, este país não é bom pra deuses. A minha gente percebeu isso bem cedo. Existem espíritos criadores que acharam, ou cagaram ou fizeram a terra, mas pense bem: quem é que vai adorar Coiote? Ele fez amor com a Mulher Porco-Espinho e ficou com mais espinhos espetados no pau do que uma almofada de agulhas. Ele discutia com as pedras e as pedras ganhavam a discussão.Então é isso aí, a minha gente percebeu que talvez existisse alguém por trás daquilo tudo, um criador, um espírito maravilhoso, e então agradecemos por isso, porque é sempre bom agradecer. Mas nunca construímos igrejas. Não precisávamos. A terra era a igreja. A terra era a religião. A terra era mais velha e mais sábia do que as pessoas que andavam sobre ela. Nos deu salmões, milho, búfalos e pombos. Nos deu arroz selvagem e peixes de olhos grandes. Nos deu melões, melancias e perus. E nós éramos os filhos da terra, igualzinho ao porco-espinho, ao gambá e ao pássaro azul.

Ele terminou de beber a segunda cerveja e gesticulou na direção do rio, aos pés da cachoeira.

— Segue aquele rio um pouco, e você vai chegar até os lagos onde o arroz selvagem brota. Na época do arroz selvagem, você vai com o seu amigo em uma canoa, colhe o arroz e coloca dentro da canoa, cozinha e guarda. O alimento vai manter você durante um bom tempo. Lugares diferentes dão alimentos diferentes. Vá a uma distância suficiente pro sul e você vai encontrar laranjeiras, limoeiros, e tem aquelas coisas verdes suculentas, que parecem pêras...

— Abacates.

— Isso. Abacates. Eles mesmos. Não brotam aqui. Esse é o país do arroz selvagem. O país do alce. O que eu estou tentando dizer é que os Estados Unidos são assim. Não é um país bom prós deuses brotarem. Eles não amadurecem bem aqui. São como abacates tentando brotar no país do arroz selvagem.

— Pode ser que não amadureçam direito — disse Shadow, lembrando-se —, mas estão partindo pra guerra.

Aquela foi a única vez que ele viu Whiskey Jack rir. Era quase um latido, e carregava pouco humor.

— Ei, Shadow, se todos os seus amigos pulassem de um penhasco, você também pularia?

— Talvez.

Shadow se sentia bem. Ele não achava que fosse só a cerveja. Ele não conseguia se lembrar da última vez que havia se sentido tão vivo, e tão coeso.

— Não vai ter guerra nenhuma.

— Então, o que é que está acontecendo?

Whiskey Jack amassou a lata de cerveja entre as mãos, pressionando-a até ficar chata.

— Olha — ele disse, apontando para a cachoeira.

O sol ia alto o bastante para bater contra as gotas de água que espirravam da cachoeira: um arco-íris de chuva pairava no ar. Shadow pensou que era a coisa mais linda que eleja vira.

— Vai ser um banho de sangue — disse Whiskey Jack, sem interesse aparente. Foi então que Shadow percebeu. Entendeu tudo, completamente em sua simplicidade. Sacudiu a cabeça, então começou a rir, e sacudiu a cabeça um pouco mais, e a risada se transformou em uma gargalhada do fundo da garganta.

— Tudo bem com você?

— Tudo bem. Acabei de ver os índios escondidos. Não todos. Mas vi mesmo assim.

— Então deve ter sido provavelmente os hochunk. Aqueles caras nunca conseguiram se esconder direito. Ele olhou para o sol:

— Hora de voltar — disse e levantou-se.

— É um golpe de dois homens — disse Shadow. — Não tem nada a ver com guerra, não é mesmo?

Whiskey Jack deu alguns tapinhas leves no braço de Shadow.

— Você não é tão burro — disse.

Caminharam de volta para a cabana de Whiskey Jack. Ele abriu a porta. Shadow hesitou.

— Eu gostaria de poder ficar aqui com você. Este lugar parece ser bom.

— Existe um monte de lugares bons, e isso é meio que o objetivo. Ouça, deuses morrem quando são esquecidos. Pessoas também. Mas a terra continua aí. Os lugares bons e os lugares ruins. A terra não vai a lugar nenhum. E eu também não.

Shadow fechou a porta. Algo o puxava. Ele estava sozinho na escuridão mais uma vez, mas a escuridão ia ficando cada vez mais clara, até queimar como sol.

E foi então que a dor começou.

Easter caminhava pela campina, e flores primaveris desabrochavam nos lugares por onde havia passado.

Ela atravessava um lugar onde, muito tempo atrás, existira uma casa de fazenda. Até hoje várias paredes ainda estavam de pé, projetando-se para fora das ervas daninhas e da grama da campina como dentes cariados. Uma garoa fina caía. As nuvens estavam escuras e baixas, e fazia frio.

Um pouco além do lugar onde a casa de fazenda fora erguida, havia uma árvore, uma enorme árvore cinza-prateada, com a aparência de uma planta que espera o inverno acabar, desfolhada, e, na frente da árvore, na grama, pedaços de tecido desbotado e esfiapado. A mulher parou perto do tecido, abaixou-se e pegou alguma coisa marrom-esbranquiçada: era um fragmento de osso bem roído que poderia ter feito parte de uma caveira humana no passado. Jogou o fragmento de volta à grama.

Então olhou para o homem pendurado na árvore e sorriu com ironia.

— Nus, não são assim tão interessantes. Abrir o embrulho é metade da diversão. Igual aos presentes e aos ovos.

O homem com cabeça de falcão que caminhava ao lado dela olhou para baixo, para o seu pênis, e pareceu, pela primeira vez, ciente de sua nudez. Ele disse:

— Eu consigo olhar pro sol sem piscar.

— Muito inteligente de sua parte — Easter disse a ele, de maneira tranqüilizadora. — Agora vamos tirá-lo da árvore.

As cordas molhadas que prendiam Shadow à árvore há muito estavam gastas e apodrecidas pelo tempo, e se desfizeram facilmente quando os dois as puxaram. O corpo na árvore escorregou e deslizou em direção às raízes. Eles o seguraram à medida que ia caindo, e o levantaram, carregando-o com facilidade, apesar de ser um homem muito grande, e o acomodaram na campina cinzenta.

O corpo sobre a grama estava frio e não respirava. Havia uma mancha de sangue seco e enegrecido na lateral, como se tivesse sido espetado por uma lança.

— E agora?

— Agora — ela disse — a gente esquenta ele. Você sabe o que precisa fazer.

— Eu sei, mas não consigo.

— Se você não estava a fim de ajudar, não deveria ter me chamado pra vir até aqui.

Ela esticou uma das mãos para Hórus e tocou nos cabelos pretos dele. Ele piscou para ela, atentamente. Então brilhou, como se estivesse dentro de uma nuvem de calor.

O olho de falcão que olhava para ela tinha um brilho alaranjado, como se uma chama acabasse de ter sido acesa lá dentro; uma chama que há tempo tinha sido apagada.

O falcão levantou vôo e se desviou para cima, voando em círculos e subindo em um giro levante, circulando o lugar nas nuvens cinzentas onde o sol deveria estar e, à medida que o falcão subia, se transformava em uma mancha e depois em um ponto, e então, para o olho nu, em absolutamente nada, algo que só poderia ser imaginado. As nuvens começaram a se diluir e evaporar, criando um buraco de céu azul através do qual o sol brilhava. O único raio de sol brilhante que penetrava as nuvens e banhava a campina era bonito, mas a imagem se desfez quando mais nuvens desapareceram. Logo o sol da manhã inundava aquela campina como um sol de verão ao meio-dia, transformando o vapor da chuva matutina em névoa e transformando a névoa em absolutamente nada.

O sol dourado banhava o corpo no chão da campina com sua irradiação e seu calor. Tons de cor-de-rosa e de um marrom quente tocavam a coisa morta.

A mulher passou os dedos da mão direita levemente pelo peito do corpo. Ela imaginou que podia sentir um estremecimento no peito — algo que não era uma batida de coração, mas ainda assim... Deixou a mão lá, sobre o peito dele, bem em cima do coração.

Ela abaixou seus lábios até os lábios de Shadow, e soprou ar para dentro de seus pulmões, um para-dentro-e-para-fora suave, e então a respiração se transformou em um beijo. O beijo dela era suave, e tinha gosto de chuvas primaveris e de flores do campo.

A ferida na lateral do corpo começou a escorrer sangue mais uma vez — um sangue escarlate, que gotejava como rubis líquidos à luz do sol. E então o sangramento parou.

Ela beijou a bochecha e a testa dele.

— Vamos lá... Hora de levantar. Está acontecendo. Você não vai querer perder. Os olhos de Shadow se agitaram, e então se abriram, dois olhos tão cinzentos quanto o anoitecer, e ele olhou para ela. Ela sorriu e removeu a mão de seu peito.

— Você me chamou de volta.

Ele falou lentamente, como se tivesse se esquecido de como falar. Tinha mágoa na voz dele, além de surpresa.

— Foi.

— Eu já tinha ido. Eu tinha sido julgado. Tudo tinha terminado. Você me chamou de volta. Você ousou.

— Sinto muito.

— É bom mesmo.

Ele se sentou, lentamente. Retraiu-se, e tocou a lateral do corpo. Então pareceu confuso: havia uma cobertura de sangue úmido ali, mas nenhuma ferida por baixo.

Ele esticou a mão, e ela colocou o braço ao seu redor e o ajudou a ficar em pé. Ele olhou através da campina como se tentasse se lembrar do nome das coisas que via: as flores na grama comprida, as ruínas da casa de fazenda, o nevoeiro de brotos verdes que nublava os galhos da enorme árvore prateada.

— Você se lembra? — ela perguntou. — Você se lembra do que você aprendeu?

— Eu perdi meu nome e perdi meu coração. E você me trouxe de volta.

— Sinto muito. Vão começar a lutar. Os deuses antigos e os novos.

— Quer que eu lute pra você? Perdeu seu tempo.

— Eu trouxe você de volta porque era isso que eu precisava fazer — ela disse. — O que você vai fazer agora é o que você quiser fazer. Você decide. Eu fiz minha parte.

De repente, ela tomou consciência da nudez dele e seu rosto corou de um vermelho-escarlate. Easter olhou para baixo e para o outro lado.

No meio da chuva e das nuvens, sombras se moviam na encosta da montanha, subindo as trilhas de pedra.

Raposas brancas andavam em direção ao topo da montanha, acompanhadas por homens ruivos usando jaquetas verdes. Havia um minotauro com cabeça de touro caminhando ao lado de um dáctilo com dedos de ferro. Um porco, um macaco e um demônio de dentes afiados escalavam a encosta da montanha acompanhados de um homem de pele azul que segurava uma tigela flamejante, um urso com flores entrelaçadas no pêlo e um homem vestido com uma malha de metal dourada segurando sua espada de olhos.

A linda Antinous, que era amante de Hadrian, subia a encosta da montanha encabeçando uma comitiva de rainhas sadomasoquistas, com braços e peitos esculpidos em formas perfeitas por esteróides.

Um homem de pele cinzenta, com um único olho ciclópico em forma de um cabochão de esmeralda, caminhava rapidamente montanha acima, à frente de vários homens corpulentos e de pele morena, com os rostos impossivelmente tão regulares quanto entalhes astecas: conheciam os segredos que as selvas haviam engolido.

Um franco atirador no topo da montanha fez mira, com cuidado, na raposa branca, e atirou. Ouviu-se uma explosão e uma nuvem de cordite se formou no ar úmido, espalhando cheiro de pólvora. O cadáver era uma jovem japonesa com o estômago estourado e o rosto ensangüentado. Lentamente, o cadáver começou a esmaecer.

As pessoas prosseguiram seu caminho montanha acima, sobre duas pernas, sobre quatro pernas, sem perna nenhuma.

O caminho através da região montanhosa do Tennessee era lindo, de tirar o fôlego, sempre que a chuva dava uma trégua, e extremamente irritante sempre que a chuva caía com força. Town e Laura haviam conversado, conversado e conversado durante todo o caminho. Ele estava muito contente de tê-la encontrado. Era como reencontrar uma velha amiga, uma ótima velha amiga que você simplesmente ainda não tinha conhecido. Falaram sobre história, filmes e música, e ela se revelou ser a única pessoa, a única outra pessoa que ele havia conhecido a ver um filme estrangeiro (o senhor Town estava certo de que era espanhol, ao passo que Laura tinha certeza de ser polonês) da década de 1960, chamado O Manuscrito Encontrado em Zaragoza, um filme que ele começou a acreditar que era uma alucinação.

Quando Laura apontou o primeiro celeiro VISITE A CIDADE DE PEDRA, ele riu e confessou que era para lá que ia. Ela disse que aquilo era muito legal. Sempre quisera visitar lugares como aquele, mas nunca encontrava tempo, e sempre se arrependia depois. Era por isso que estava na estrada agora. Estava vivendo uma aventura.

Ela era agente de viagens, explicou a ele. Separada do marido. Admitiu que não achava que eles iriam voltar a ficar juntos, e disse que era culpa dela.

— Não posso acreditar. Ela suspirou.

— É verdade, Mack. Eu simplesmente não sou mais a mulher com quem ele se casou.

Bom, ele disse a ela, as pessoas mudam, e antes que pudesse se dar conta de que estava narrando tudo que era possível a respeito de sua vida, contou a ela até mesmo a respeito de Wood e de Stone, como os três eram os três mosqueteiros, como os dois foram assassinados... Você acha que vai ficar insensível a esse tipo de coisa por causa do trabalho no governo, mas nunca fica.

E ela esticou a mão — tão fria que fez com que ele ligasse o aquecimento do carro — e apertou a mão dele com força.

No almoço, comeram em um restaurante japonês, enquanto uma tempestade baixava sobre Knoxville, e Town não se importou com o fato de a comida demorar, de o missoshiro estar frio ou de o sushi estar quente.

Ele adorava o fato de ela estar ali, com ele, vivendo uma aventura.

— Bom — confessou Laura — eu odiava a idéia de envelhecer. Eu estava simplesmente apodrecendo no lugar onde estava. Então fui embora sem meu carro nem meus cartões de crédito. Estou só dependendo da bondade de estranhos.

— Você não está com medo? Quer dizer, você poderia ser abandonada, agredida... poderia morrer de fome.

Ela sacudiu a cabeça. Então disse, com um sorriso hesitante:

— Eu encontrei você, não encontrei?

E ele não conseguiu achar nada para dizer.

Quando a refeição terminou, eles correram através da tempestade até o carro segurando jornais escritos em japonês para proteger a cabeça, e riam enquanto corriam, como crianças na chuva.

— Até onde eu posso levar você? — ele perguntou, quando entraram no carro mais uma vez.

 

— Vou até onde você for, Mack — disse a ele, acanhada.

Ele ficou contente por não ter usado o trocadilho do Big Mãe. Essa mulher não era uma ficada de boteco, ele sentia aquilo do fundo da alma. Pode ter demorado Cinqüenta anos até que ele a conhecesse, mas finalmente era ela, ela era a certa, essa mulher de cabelos escuros e compridos, selvagem e louca.

Isso era amor.

— Olha — ele disse, quando se aproximavam de Chattanooga. Os limpadores de pára-brisa mandavam a chuva embora por sobre o vidro, borrando a cor cinzenta da cidade.

— E se eu achar um hotel pra você passar esta noite? Eu pago. E depois que eu fizer minha entrega, podemos... Bom, podemos tomar um banho comprido juntos, pra começar. Pra você ficar quente.

— Isso me parece maravilhoso. O que você precisa entregar?

— Aquele galho — ele explicou a ela, e riu. — Aquele ali, no banco detrás.

— Tudo bem — ela disse, debochando dele. — Então nem me fale, senhor Misterioso.

Ele explicou a ela que seria melhor esperar no estacionamento da Cidade de Pedra enquanto ele fazia sua entrega. Ele conduziu o carro encosta acima na montanha Lookout sob chuva forte, nunca ultrapassando 50 quilômetros por hora, com os faróis acesos.

Parou o carro no fundo do estacionamento. Desligou o motor.

— Ei, Mack. Antes de você descer do carro, será que eu não mereço um abraço? — perguntou Laura, com um sorriso.

— Claro que sim.

E colocou s braços em volta dela, e ela se aninhou nele, enquanto a chuva desenhava uma tatuagem no teto do Ford Explorer. Ele sentia o cheiro do cabelo dela, havia um cheiro fraco e desagradável por baixo do cheiro do perfume. Ele percebeu que o banho era uma necessidade real para ambos. Ficou imaginando se poderia encontrar em algum lugar em Chattanooga as pastilhas de lavanda para banheira de que sua primeira mulher gostava tanto. Laura ergueu sua cabeça de encontro à dele, e sua mão percorreu a linha de seu pescoço, como quem não quer nada.

— Mack... eu não consigo parar de pensar. Você deve querer muito saber o que aconteceu de verdade com aqueles seus amigos, não? Woody e Stone. Quer saber?

— Quero — ele disse, movendo os lábios na direção dos dela, para o primeiro beijo dos dois. — Claro que quero. Então, ela mostrou.

Shadow caminhava pela campina, traçando círculos lentos ao redor do tronco da árvore, ampliando a circunferência gradativamente. Às vezes ele parava e pegava alguma coisa do chão: uma flor, uma folha, uma pedrinha, um graveto ou uma folha de grama. E examinava o achado minuciosamente, como se estivesse se concentrando na gravetice do graveto, na folhice da folha.

Easter percebeu que aquilo fizera com que ela pensasse no olhar de um bebê, no ponto em que aprende a se concentrar.

Ela não ousava falar com ele. Naquele momento, teria sido um sacrilégio. Ela o observava, exausta como estava, e ficava imaginando.

A cerca de 6 metros da base da árvore, meio escondida por longas folhas de grama da campina e trepadeiras mortas, ele encontrou um saco de lona. Shadow o recolheu, desatou os nós na abertura do saco, soltou o cadarço que o mantinha fechado.

As roupas que tirou dali eram as dele. Eram velhas, mas ainda usáveis. Revirou os sapatos nas mãos. Passou a mão sobre o tecido da camisa, a lã do suéter, olhou para eles como se não os visse havia um milhão de anos.

Peça por peça, ele vestiu a roupa. , Colocou as mãos nos bolsos e pareceu surpreso quando tirou uma das mãos, segurando o que parecia a Easter uma bolinha de gude branca e cinza.

Ele disse:

— Nenhuma moeda.

Era a primeira coisa que ele dizia depois de várias horas.

— Nenhuma moeda? Ele sacudiu a cabeça.

— Me deram alguma coisa pra fazer com as mãos.

Ele se abaixou para calçar os sapatos.

Uma vez vestido, ele parecia mais normal. Apesar de sério. Ela ficou imaginando até onde ele tinha viajado, e quanto custou para retornar. Ele não era o primeiro cujo retorno ela havia induzido. Ela sabia que, logo, logo, o olhar de um milhão de anos iria esmaecer, e que as memórias e os sonhos que ele havia trazido da árvore seriam suprimidos pelo mundo de coisas em que se podia tocar. Era sempre assim que acontecia.

Ela abriu caminho até o fundo da campina. A condução deles esperava nas árvores.

— Ele não vai conseguir carregar nós dois — ela explicou. — Eu vou sozinha pra casa.

Shadow assentiu com a cabeça. Parecia tentar se lembrar de alguma coisa. Então abriu a boca, e esganiçou um grito de boas-vindas e de alegria.

O pássaro-trovão abriu seu bico cruel, e esganiçou boas-vindas para ele também.

Superficialmente, pelo menos, se parecia com um condor. Suas penas eram pretas, com um reflexo arroxeado, e seu pescoço era rodeado de branco. Seu bico era preto e cruel: um bico de ave de rapina, feito para cortar. Em estado de descanso, no chão, com as asas recolhidas, era do tamanho de um urso preto, e sua cabeça ficava da mesma altura que a de Shadow.

Hórus disse, com orgulho:

— Fui eu que o trouxe. Eles moram nas montanhas. Shadow assentiu com a cabeça.

— Uma vez eu sonhei com pássaros-trovão... O sonho mais amaldiçoado que já tive.

O pássaro-trovão abriu o bico e fez um barulho surpreendentemente suave: crawroo?

— Você também ouviu o meu sonho? — perguntou Shadow. Esticou a mão e a esfregou suavemente na cabeça do pássaro. O pássaro-trovão empurrou a cabeça contra ele como um pônei afetuoso e receber um carinho da base do pescoço até o topo da cabeça. Shadow falou para Easter:

— Você veio ate aqui montada nele?

— Vim. Você pode montar nele pra voltar, se ele deixar.

— Como é que se monta nele?

— É fácil... é só não cair. É como montar em relâmpagos.

— Eu vou encontrar você lá? Ela sacudiu a cabeça.

— Eu já fiz o que tinha que fazer, querido. Você vai lá e faz o que precisa fazer. Eu estou cansada. Boa sorte. Shadow assentiu com a cabeça.

— Whiskey Jack. Eu me encontrei com ele. Depois que eu faleci. Ele veio e me achou. Nós bebemos cerveja juntos.

— É — ela disse. — Tenho certeza que sim.

— Eu vou ver você de novo algum dia? — perguntou Shadow. Ela olhou para ele com olhos verdes como milho que ainda amadurecia. Não disse nada. Então, abruptamente, sacudiu a cabeça.

— Duvido muito.

Shadow subiu nas costas do pássaro de maneira desajeitada. Ele se sentia como um ralo nas costas de um falcão. Sua boca tinha um gosto de ozônio, metálico e azul. Alguma coisa estalou. O pássaro-trovão abriu as asas e começou a batê-las, com força.

À medida que o chão se distanciava embaixo deles, Shadow se segurava, com o coração batendo no peito como uma coisa selvagem.

Era exatamente como montar em relâmpagos.

Laura pegou o galho do assento traseiro do carro. Deixou o senhor Town no assento da frente, desceu e andou pela chuva até a Cidade de Pedra. A bilheteria estava fechada. A porta para a loja de lembranças não estava trancada e ela a atravessou, passando pelos doces em forma de pedra e a vitrina de casinhas de passarinho com o dizer VISITE A CIDADE DE PEDRA, para dentro da Oitava Maravilha do Mundo.

Ninguém a desafiou, apesar de ela passar por vários homens e por várias mulheres na trilha, sob a chuva. Muitas daquelas pessoas pareciam levemente artificiais; várias delas eram translúcidas. Ela atravessou uma ponte de corda que balançava de um lado para o outro. Passou pelos jardins dos gamos brancos e fez força para passar por dentro do Aperto do Homem Gordo, onde a trilha se esgueirava entre duas paredes de pedra.

E, no fim, passou por cima de uma corrente com uma placa explicando que aquela parte da atração estava fechada, entrou em uma caverna e viu um homem sentado em uma cadeira de plástico, em frente de uma montagem de gnomos bêbados. Ele lia o jornal Washington Post à luz de uma pequena lanterna elétrica. Quando a viu, dobrou o jornal e guardou-o sob a cadeira. Levantou-se, um homem alto com cabelos alaranjados bem aparados, vestindo uma capa de chuva cara, e fez uma mesura curta para ela.

— Devo concluir que o senhor Town está morto. Bem-vinda, portadora da lança.

— Obrigada. Sinto muito por Mack. Vocês eram amigos?

— De jeito nenhum. Ele deveria ter ficado vivo, se quisesse manter o emprego. Mas você trouxe o galho.

Ele olhou para ela de cima a baixo com olhos que brilhavam como as brasas de um fogo em extinção.

— Temo que você esteja em vantagem sobre mim. Me chamam de senhor World, aqui no topo da montanha.

— Eu sou a mulher do Shadow.

— Claro. A doce Laura. Eu deveria ter reconhecido. Ele tinha várias fotos suas em cima da cama, na cela que nós dividimos certa vez. E, se você não se importar por eu dizer, você parece mais doce do que deveria. Você já não deveria estar mais avançada naquele negócio de apodrecimento-e-ruína?

— Eu estava — ela disse, simplesmente. — Mas aquelas mulheres, na fazenda, me deram água do poço delas. Uma sobrancelha se ergueu.

— Do poço de Urd? Certamente não.

Ela apontou para si mesma. Sua pele estava pálida, e a pele ao redor dos olhos, escura, mas ela estava evidentemente inteira: se fosse mesmo um cadáver ambulante, havia acabado de morrer.

— Não vai durar — disse o senhor World. — Elas deram pra você um gostinho do passado. Vai se dissolver no presente logo, logo, e daí esses lindos olhos azuis vão pular do rosto e cair sobre essas bochechinhas lindas, que não serão, àquela altura, tão lindas assim. Falando nisso, você está com o meu galho. Será que dá pra me entregar?

Ele tirou do bolso um maço de Lucky Strike, pegou um cigarro, acendeu com um isqueiro Bic descartável.

— Me dá um?

— Claro. Dou um cigarro pra você se me der o meu galho.

— Se você quiser mesmo, vale mais do que só um cigarro. Ele não disse nada.

— Eu quero respostas. Eu quero saber umas coisas.

Ele acendeu um cigarro e entregou a ela. Ela o pegou e tragou. Então, piscou.

— Quase consigo sentir o gosto deste aqui — disse, sorrindo. — Acho que talvez consiga.

— Humm, nicotina.

— É. Por que você foi falar com as mulheres na casa da fazenda?

— Shadow me disse pra ir. Ele falou pra eu pedir água pra elas.

— Fico imaginando se ele conhecia o efeito. Provavelmente, não. Ainda assim, essa é a parte boa a respeito de estar morto na árvore. Assim eu sei onde ele está o tempo todo. Está fora do tabuleiro.

— Vocês armaram pro meu marido. Estavam armando desde o começo. Ele tem um bom coração, sabia?

— Eu sei. Quando tudo isso terminar, acho que vou afiar um galho de visco e vou até o freixo, enfiar no olho dele. Pronto. Meu galho, por favor.

— Por que você quer esse pedaço de pau?

— É uma lembrança de toda essa confusão. Não se preocupe, não é visco. Um sorriso passou pelo rosto dele.

— Simboliza uma lança, e nesse mundo miserável, o símbolo é o que importa. Os barulhos vindos do lado de fora ficaram mais altos.

— De que lado você está?

— Não tem a ver com lados. Mas, já que perguntou, estou do lado vencedor. Sempre.

Ela assentiu com a cabeça, e não largou o galho.

Virou-se para o outro lado, e olhou para fora, na porta da caverna. Lá embaixo, nas pedras, via alguma coisa que brilhava e pulsava. Estava enrolado em volta de um homem magro com o rosto cor-de-malva barbado, que batia nele com um cabo de rodinho, do tipo de rodinho se usa para limpar pára-brisas em sinais de tráfego. Ouviu-se um grito e os dois desapareceram da vista.

— Tudo bem. Eu entrego o seu galho.

A voz do senhor World vinha detrás dela.

— Que boa menina — disse, de maneira reconfortante, de modo que pareceu a ela tanto paternalista quanto indefinivelmente masculino.

Aquilo fez a pele dela se arrepiar.

Ela ficou esperando na porta de pedra até ouvir a respiração dele na orelha. Precisava esperar até ele chegar perto o suficiente. Aquilo ela havia calculado.

O passeio era mais do que regozijador; era elétrico.

Eles dançavam através da tempestade como relâmpagos retorcidos, brilhando de uma nuvem à outra, moviam-se como o rugido do trovão, como a intumescência c o corte do furacão. Era uma viagem crepitante, impossível. Não havia medo: só o poder da tempestade, inevitável e completamente desgastante, e a alegria do voo.

Shadow enfiou os dedos nas penas do pássaro-trovão, sentindo a estática espetar sua pele. Faíscas azuis retorciam-se por suas mãos como cobras minúsculas. A chuva lavava seu rosto.

— Isso é bom demais! — ele gritava, por cima do rugido da tempestade. Como se entendesse o que ele dizia, o pássaro começou a subir mais, cada batida de asa um estrondo de trovão, e a ave se lançava para baixo, mergulhava e escorregava através das nuvens escuras.

— No meu sonho, eu estava caçando você — disse Shadow, suas palavras entrecortadas pelo vento. — No meu sonho, eu precisava pegar uma pena.

5im. A palavra era um estalo de estática no rádio da mente dele. Eles vinham até nós em busca de penas, para provar que eram homens; e vinham até nós para cortar as pedras das nossas cabeças, para presentear os mortos com nossas vidas.

Uma imagem, então, tomou a mente dele: de um pássaro-trovão — uma fêmea, ele concluiu, porque a plumagem dela era marrom, não preta — caída logo depois de morrer na encosta de uma montanha. Ao lado dela havia uma mulher. Ela quebrou a cabeça da ave com uma pedra de sílex. Remexeu as lascas de osso úmidas e o cérebro esmigalhado até encontrar uma pedra lisa e clara, da cor marrom-amarelada da granada, com chamas opalescentes cintilando em suas profundezas. Pedras de águia, pensou Shadow. Ela levaria aquilo para seu filho-bebê, morto havia três noites, e acomodaria a pedra sobre seu peito frio. Antes do próximo nascer do sol, o menino estaria vivo e sorridente, e a pedra preciosa estaria cinzenta, embaçada e tão morta quanto o pássaro de que havia sido roubada.

— Compreendo — ele disse ao pássaro.

O pássaro jogou a cabeça para trás e piou, e seu grito era o trovão.

O mundo embaixo deles passava em clarões, em um sonho estranho.

Laura ajeitou a mão em volta do galho, e esperou o homem que conhecia como senhor World vir a ela. Ela olhava para o outro lado, para a tempestade, e para as montanhas verde-escuras abaixo dela.

 

Nesse mundo miserável, ela pensou, o símbolo é o que importa. É isso aí. Ela sentiu a mão dele se fechar suavemente sobre o ombro direito dela. Bom, ela pensou. Ele não quer me alarmar. Está com medo que eu jogue o galho no melo da tempestade, que saia rolando pela encosta da montanha, e que ele a perca.

Ela deixou o corpo cair um pouquinho para trás, até tocar o peito dele com as costas. O braço esquerdo dele se curvava ao seu redor. Era um gesto íntimo.

A mão esquerda dele estava aberta na sua frente. Ela fechou ambas as mãos ao redor da ponta do galho, exalante, concentrada.

— Por favor. Meu galho — disse, na orelha dela.

— Ë... É seu.

E então, sem saber se iria ter algum significado, disse:

— Eu dedico esta morte a Shadow.

E enfiou o galho no próprio corpo, bem abaixo do esterno. Sentiu-o contorcer-se e se transformar, em suas mãos, em uma lança.

O limite entre sensação e dor havia ficado difuso desde que morrera. Ela sentiu a ponta da lança penetrar seu peito, sentiu-a sair pelas costas. Um instante de resistência — ela empurrou com mais força — e a lança entrou no senhor World. Ela sentia a respiração quente dele sobre a sua pele fria do pescoço, enquanto ele urrava de dor e de surpresa, empatado na lança.

Ela não reconhecia as palavras que ele falava, nem a língua em que ele as proferia. Empurrou o cabo da lança ainda mais fundo, forçando-o através do seu corpo e do dele.

Laura sentia o sangue dele jorrando em suas costas.

— Cadela — ele disse, na língua dela. — Sua puta cadela. Sua voz tinha um aspecto gorgolejante e úmido. Ela supôs que a lâmina da lança tivesse perfurado um pulmão. O senhor World se movia agora, ou tentava se mover, e cada movimento que fazia balançava o corpo dela também: estavam unidos pelo mastro, empatados juntos, como dois peixes em uma única lança. Ele tinha agora uma faca em uma das mãos, ela viu, e esfaqueava o peito e os seios dela ao acaso e com selvageria, incapaz de enxergar o que estava fazendo.

Ela não ligava. O que eram golpes de faca para um cadáver?

Ela desceu o punho, com força, sobre o punho agitado dele, e a faca saiu voando pelo chão da caverna. Ela a chutou para longe.

E agora ele chorava e urrava. Ela sentia que ele empurrava seu corpo contra o dela, que suas mãos apalpavam as costas dela, o sangue escorrendo pela parte traseira de suas pernas.

— Isso aqui deve parecer tão indigno — ela disse, em um sussurro morto, não sem uma certa diversão obscura.

Laura sentiu o senhor World cair atrás dela, e ela caiu também, e então escorregou no sangue — lodo dele — que formava poças no chão da caverna, e os dois sucumbiram.

O pássaro-trovão pousou no estacionamento da Cidade de Pedra. A chuva caía cm lâminas. Shadow mal podia enxergar 3 metros à frente do rosto. Ele largou as penas do pássaro-trovão e escorregou, quase caindo sobre o asfalto molhado.

Relâmpagos brilharam e o pássaro não estava mais lá.

Shadow ficou em pé.

O estacionamento estava quase vazio. Shadow olhou em direção à entrada. Passou por um Ford Explorer marrom, estacionado contra uma parede de pedra. Havia algo profundamente familiar naquele carro, e olhou para ele com curiosidade, reparando no homem dentro do carro, caído sobre a direção como se estivesse dormindo.

Shadow abriu a porta do lado do motorista.

A última vez que vira o senhor Town tinha sido do lado de fora do hotel, no centro dos Estados Unidos. A expressão em seu rosto era de surpresa. O pescoço dele fora quebrado com destreza. Shadow tocou o rosto do homem. Ainda estava quente.

Shadow podia sentir um cheiro no ar do carro; era fraco, como o perfume de alguém que havia deixado uma sala, mas Shadow o reconheceria em qualquer lugar. Bateu com força a porta do carro e percorreu seu caminho pelo estacionamento.

Enquanto andava, sentiu um puxão na lateral do corpo, uma dor aguda e lancinante que só durou um segundo, ou menos, e então desapareceu.

Não havia ninguém vendendo entradas. Ele caminhou pelo prédio e saiu para os jardins da Cidade de Pedra.

Trovões estrondeavam, agitavam os galhos das árvores e sacudiam bem no fundo das enormes pedras, e a chuva caía com violência fria. Era fim de tarde, mas já estava escuro como se fosse noite.

Um rastro de relâmpago se espalhou através das nuvens, e Shadow ficou imaginando se seria o pássaro-trovão voltando para o penhasco, ou se era só uma descarga atmosférica, ou se as duas idéias eram, de alguma maneira, a mesma coisa.

E claro que eram. Aquele era o objetivo, afinal.

Em algum lugar, uma voz de homem gritou. Shadow ouviu. As únicas palavras que ele reconheceu ou pensou que reconheceu foram "...para Odin!"

Shadow correu pelo Pátio das Bandeiras dos Sete Estados, os ladrilhos estavam cobertos pela água da chuva que escorria com força. Ele escorregou uma vez sobre a pedra molhada. Tinha uma grossa camada de nuvens envolvendo a montanha, e, através das trevas e da tempestade além do pátio, não conseguia enxergar Estado nenhum.

Não se ouvia nenhum som. O lugar parecia completamente abandonado.

Ele gritou, e imaginou que havia escutado algo respondendo. Caminhou em direção ao lugar de onde pensou que o som vinha.

Ninguém. Nada. Só a corrente marcando a entrada como proibida aos visitantes.

Shadow passou por cima da corrente.

Ele olhou em volta, espreitando a escuridão.

Sua pele ficou arrepiada.

Uma voz detrás dele, nas sombras, disse, com muita calma:

— Você nunca me decepcionou. Shadow não se virou.

— Que estranho. Eu me decepcionei comigo mesmo durante todo o percurso. Todas as vezes.

— Não mesmo — disse a voz. — Você fez tudo que deveria fazer, e mais ainda. Prendeu a atenção de todo mundo, de modo que nunca olharam pra mão que segurava a moeda. Isso é o que se chama desvio de atenção. E há poder no sacrifício de um filho... bastante poder, e mais do que bastante, pra fazer a bola rolar. Pra dizer a verdade, estou orgulhoso de você.

— Tinha trapaça. Em tudo. Nada era de verdade. Era só uma encenação pra um massacre.

— Exatamente — disse a voz de Wednesday, no meio das sombras. — Tinha trapaça. Mas era o único jogo disponível na cidade.

— Eu quero a Laura, eu quero o Loki. Onde eles estão?

Só silêncio. Um golpe de vento jogou chuva em cima dele. Trovões rugiam em algum lugar muito próximo, ao alcance da mão.

Ele entrou mais para o fundo da caverna.

Loki Lie-Smith estava sentado no chão com as costas apoiadas em uma jaula de metal. Dentro da jaula, fadinhas bêbadas mantinham sua cena. Ele estava coberto com uma manta. Só seu rosto aparecia, além das mãos, brancas e longas, segurando a manta. Uma lanterna elétrica repousava em uma cadeira ao seu lado. As pilhas da lanterna estavam prestes a falhar, e a luz que emitia era fraca e amarela.

Sua aparência era pálida e rude.

Os olhos dele, no entanto, ainda estavam aguçados, e brilhavam para Shadow à medida que caminhava pela caverna.

Quando Shadow estava a vários passos de distância de Loki, parou.

— Você chegou tarde demais — disse Loki, com a voz áspera e úmida. — Eu atirei a lança. Dediquei a batalha. Começou.

— Sem sacanagem — disse Shadow.

— Sem sacanagem — disse Loki. — Então, o que você fizer agora não importa mais.

Shadow parou e refletiu. Então, disse:

— A lança que você atirou para dar início à batalha... igual àquela coisa de Uppsala. É essa batalha que você vai usar pra se alimentar. Estou certo?

Silêncio. Ele podia ouvir a respiração de Loki, uma inalação medonha, tremida.

— Eu tirei essa conclusão — disse Shadow. — Mais ou menos. Não tenho certeza de quando percebi tudo. Talvez enquanto estava pendurado na árvore. Talvez antes. Foi a partir de uma coisa que o Wednesday me disse no Natal.

Loki, no chão, só olhava para ele, sem dizer nada.

— Não passa de um golpe de dois homens. Igual ao bispo com o colar de diamantes e o guarda que prende ele. Igual ao cara com o violino, e o cara que quer comprar o violino. Dois homens, que parecem estar de lados opostos, jogando o mesmo jogo.

Loki sussurrou:

— Você é ridículo.

— Por quê? Eu gostei do que fez no hotel. Aquilo foi inteligente. Você precisa estar lá, para se assegurar de que tudo correria de acordo com o plano. Eu vi você. Eu até percebi quem era. E ainda assim eu nunca notei que você era o senhor World deles.

Shadow levantou a voz:

— Você, trata de aparecer — disse, para a caverna. — Onde quer que esteja. Mostra a cara.

O vento uivava na entrada da caverna, e jogava um monte de água na direção deles. Shadow tremia.

— Estou de saco cheio de ser tratado igual a um babaca. Apareça. Deixa eu ver você.

Percebeu-se uma mudança nas sombras do fundo da caverna. Alguma coisa lá ficou mais sólida; alguma coisa se transformou.

— Você sabe demais, meu garoto — disse o rugido familiar de Wednesday.

— Então, não mataram você.

— Mataram, sim. Nada disso teria funcionado se não tivessem me matado. A voz dele estava fraca — não abafada de fato, mas havia alguma coisa nela que lembrava um rádio velho não muito bem sintonizado em uma estação distante.

— Se eu não tivesse morrido de verdade, nunca teríamos conseguido trazer todos até aqui. Kali, as Morrigan e as porras dos albaneses e... bom, você viu todos eles. Foi a minha morte que os uniu. Eu fui o cordeiro do sacrifício.

— Não — disse Shadow. — Você foi o Bode do Judas.

A forma de espectro nas sombras serpenteou e mudou.

— Não, mesmo. Isso implica que eu traí os deuses antigos pelos novos. O que não era o que a gente estava fazendo.

— Não, mesmo — sussurrou Loki.

— Isso dá pra ver. Vocês não estavam traindo nenhum dos dois lados. Estavam traindo ambos.

— Acho que sim — concordou Wednesday. Ele parecia satisfeito consigo mesmo.

— Vocês queriam um massacre. Precisavam de um sacrifício de sangue. Um sacrifício de deuses.

O vento ficou mais forte. O uivo através da entrada da caverna se transformou em um guincho, como se fosse algo imensuravelmente enorme sofrendo de dor.

— E por que diabos não? Eu estou preso nesta terra faz quase 1.200 anos Meu sangue está ralo. Tenho fome.

— E vocês se alimentam da morte — disse Shadow.

Ele achou que conseguia enxergar Wednesday agora. Era uma forma feita de escuridão, que só ficava mais real quando Shadow olhava para o outro lado, observando a forma apenas com a visão periférica.

— Eu me alimento de mortes que são dedicadas a mim.

— Como a minha morte na árvore.

— Aquilo foi especial.

— E você, também se alimenta de morte? — perguntou Shadow, olhando para Loki.

Loki sacudiu a cabeça, demonstrando cansaço.

— Não, claro que não... Você se alimenta do caos.

Loki sorriu ao ouvir aquilo, um sorriso breve e dolorido, e chamas alaranjadas dançaram em seus olhos, e brilharam como renda pegando fogo sob a pele clara.

— Não poderíamos ter feito tudo isso sem você — disse Wednesday, no canto do olho de Shadow. — Eu fiquei com tantas mulheres...

— Você precisava de um filho.

A voz fantasmagórica de Wednesday ecoou.

— Eu precisava de você, meu garoto. É. Meu próprio garoto. Eu sabia que tinha sido concebido, mas a sua mãe deixou o país. Demorou um tempão pra gente encontrar você. E, quando achamos, estava na prisão. A gente precisava descobrir o que mexia com você. Que botões precisávamos apertar pra fazer você se mexer. Quem você era.

Loki pareceu, momentaneamente, satisfeito consigo mesmo.

— E você tinha uma mulher pra quem voltar. Um fato azarado, mas não insuperável.

— Ela não era boa pra você — sussurrou Loki. — Está melhor sem ela.

— Se pudesse ter sido de outro jeito... — disse Wednesday e, desta vez, Shadow sabia o que ele queria dizer.

— E se ela tivesse tido... a elegância de permanecer morta — arfou Loki. — Wood e Stone... eram bons homens. Seria permitido... que vocês escapassem quando o trem cruzasse os Dakotas...

— Onde ela está?

Loki esticou um braço pálido e apontou para o fundo da caverna.

 

— Ela foi por ali.

Então, sem avisar, tombou para a frente, e seu corpo bateu forte contra o chão.

Shadow viu o que a manta escondera dele; o sangue empoçado, o furo através das costas de Eoki, a capa amarelada transformada em preta, de tão ensopada de sangue.

— O que aconteceu?

Eoki não disse nada.

Shadow achou que ele não falaria mais.

— Sua mulher cruzou o caminho dele, meu garoto — disse a voz distante de Wednesday.

Estava ficando mais difícil enxergá-lo, como se ele estivesse esmaecendo de volta para o éter.

— Mas a batalha vai trazê-lo de volta. Assim como a batalha vai me trazer de volta pra sempre. Eu sou um fantasma, e ele é um cadáver, mas a gente venceu mesmo assim. O jogo foi armado.

— Jogos armados — lembrou-se Shadow — são os mais fáceis de vencer. Não houve resposta. Nada se mexia nas sombras. Shadow disse:

— Adeus...

E então completou:

— Pai.

Mas àquela altura já não havia vestígio de ninguém na caverna. Ninguém mesmo.

Shadow voltou até o Pátio das Bandeiras dos Sete Estados, mas não viu ninguém, e não ouviu nada além do desfraldar das bandeiras no meio do vento da tempestade. Não havia ninguém brandindo espadas na Pedra Equilibrada de Mil Toneladas, nenhum defensor na Ponte do Balanço. Ele estava sozinho.

Não havia nada para ver. O lugar estava deserto. Era um campo de batalha vazio.

Não. Não estava deserto. Não, exatamente.

Aquilo ali era a Cidade de Pedra. Era um lugar de veneração e adoração há milhares de anos. Hoje, milhões de turistas que percorriam os caminhos através dos jardins e serpenteavam pela Ponte do Balanço exerciam o mesmo efeito da água fazendo um milhão de rodas de oração girar. A realidade era rala ali. E Shadow sabia onde a batalha deveria estar acontecendo.

Com aquela idéia na cabeça, ele começou a caminhar. Lembrou-se de como havia se sentido no carrossel, e tentou sentir-se da mesma maneira... de quando virou a direção do Winnebago e de como o veículo se curvou formando ângulos retos com tudo. Tentou recapturar aquela sensação...

E então, fácil e perfeitamente, aconteceu.

Era como passar através de uma membrana, como vir à tona depois de um mergulho profundo. Com um passo, ele havia passado da trilha turística da montanha para...

Para algum lugar real. Ele estava atrás do palco.

Ainda estava no topo de uma montanha, aquilo continuava igual. Mas era muito mais do que aquilo. O topo dessa montanha era a quintessência, o coração das coisas como eram. Na comparação, a montanha Lookout que ele havia deixado para trás era uma pintura de cenário, ou um modelo de papiê-machê visto pela tela de uma televisão — uma mera representação da coisa, não a coisa em si.

Aquele era o lugar verdadeiro.

As paredes de pedra formavam um anfiteatro natural. Caminhos de pedregulhos serpenteavam em volta e através dele, formando pontes naturais distorcidas que se assemelhavam a uma gravura de Escher, subindo e descendo pelas paredes de pedra.

E o céu...

O céu estava escuro. Estava aceso, e o mundo abaixo dele se iluminava com um facho branco-esverdeado, mais brilhante do que o sol, que formava garfos pelo céu de maneira maluca, de uma ponta à outra, como um rasgão branco no céu escurecido.

Shadow percebeu que eram relâmpagos. Relâmpagos pegos em um instante congelado que se esticava para sempre. A luz que irradiavam era implacável e sem misericórdia: lavava os rostos e deixava os olhos ocos, como fossas escuras.

Aquele era o instante da tempestade.

Os paradigmas estavam se transformando. Ele podia sentir aquilo. O mundo antigo, um mundo de infinita vastidão e de recursos ilimitados e de futuro, estava sendo confrontado por algo mais — uma rede de energia, opiniões e abismos.

As pessoas acreditavam, Shadow pensou. É isso que as pessoas fazem. Acreditam. E depois não se responsabilizam por suas crenças; fazem coisas aparecer e depois não acreditam nas aparições. As pessoas povoam a escuridão com fantasmas, deuses, elétrons e histórias. As pessoas imaginam e acreditam, e é essa crença, essa crença sólida como a pedra, que faz as coisas acontecerem.

O topo da montanha era uma arena; isso ele percebeu imediatamente. E em cada lado da arena, ele via que se formavam fileiras.

Eles eram grandes demais. Tudo era grande demais naquele lugar.

Deuses antigos estavam ali... deuses com a pele marrom como cogumelos velhos, cor-de-rosa como um frango depenado, amarela como as folhas do outono. Alguns eram loucos e, outros, sãos. Shadow reconhecia todos. Ele já os havia encontrado, ou havia se encontrado com outros como eles. Havia ifrits e piskies, gigantes e anões. Ele viu a mulher que conhecera no quarto escuro de Rhode Island, viu os cachos verdes cor-de-cobra de seus cabelos. Viu Mama-ji, do carrossel, e havia sangue em suas mãos e um sorriso em seu rosto. Ele conhecia todos eles.

E também reconhecia os novos.

Havia alguém que fora um barão das estradas de ferro, usando um terno antigo, com a corrente do relógio de bolso esticada sobre o colete. Ele tinha o ar de alguém que já passara por dias melhores. A testa dele se contorcia.

Havia os enormes deuses cinzentos dos aviões, herdeiros de todos os sonhos de vôo dos mais-pesados-do-que-o-ar.

Havia deuses automobilísticos ali: um contingente poderoso, de expressão séria, com sangue nas luvas pretas e nos dentes cromados: recipientes de sacrifícios humanos em uma escala jamais imaginada desde os astecas. Até eles pareciam desconfortáveis. Os mundos mudam.

Outros tinham rostos de fosfato borrado: brilhavam suavemente, como se existissem a partir de sua própria luz.

Shadow sentiu pena de todos eles.

Havia um ar de arrogância nos novos. Shadow podia ver aquilo. Mas também havia medo.

Tinham medo de que, a não ser que acompanhassem o ritmo de um mundo mutante, a não ser que refizessem, redesenhassem e reconstruíssem o mundo à sua imagem, sua época já teria chegado ao fim.

Cada lado encarava o outro com bravura. Para cada um dos lados, a oposição representava os demônios, os monstros, os condenados.

Shadow percebeu que o combate inicial havia começado. Já existia sangue nas pedras.

Estavam se preparando para a batalha verdadeira, para a guerra verdadeira. Era agora ou nunca, ele pensou. Se ele não tomasse uma atitude, seria tarde demais.

Nos Estados Unidos, tudo dura para sempre, dizia uma voz no fundo da cabeça dele. A década de 1950 durou mil anos. Você tem todo o tempo do mundo.

Shadow andou com passos que eram como um passeio, um tropeço meio controlado, até o centro da arena.

Ele sentia olhos sobre si, olhos e coisas que não eram olhos. Ele tremia.

A voz de búfalo disse: Você está se saindo bem.

Shadow pensou: É isso aí. Eu voltei dos mortos hoje de manhã. Depois disso, tudo o mais deve ficar bem fácil.

— Sabe — disse Shadow, para o ar, em tom de conversa. — Isto não é uma guerra. Isto nunca teve a pretensão de ser uma guerra. E se algum de vocês pensa que isto é uma guerra, está se iludindo.

Ouviram-se resmungos de ambos os lados. Ele não havia impressionado ninguém.

— Estamos lutando pela nossa sobrevivência — mugiu um minotauro de um dos lados da arena.

— Estamos lutando pela nossa existência — gritou uma boca em uma coluna de fumaça cintilante, do outro lado.

— Esta é uma terra ruim pra deuses — disse Shadow Como linha introdutória, não era exatamente Amigos, romanos e compatriotas, mas dava para o gasto.

— Você todos provavelmente descobriram isso, a seu modo. Os antigos deuses são ignorados. Os novos são tão rapidamente elevados quanto descartados, colocados de lado em nome da próxima moda. Ou vocês foram esquecidos, ou estão com medo de se tornar obsoletos... talvez estejam apenas cansados de existir somente na excentricidade das pessoas.

Havia menos resmungo agora. Ele dissera algo com que concordavam. Agora, enquanto eles estavam ouvindo, ele precisava contar a história.

— Existiu um deus que veio pra cá de uma terra distante, e cujo poder e cuja influência declinaram à medida que a crença nele esmaeceu. Era um deus que tirava seu poder do sacrifício, da morte e, especialmente, da guerra. As mortes daqueles que sucumbiam na guerra eram dedicadas a ele... Campos de batalha inteiros que haviam dado a ele poder e sustento no Velho Continente. Mas daí ele ficou velho. Ganhava a vida como golpista, trabalhando junto com um outro deus do seu panteão, um deus de caos e de fraude. Juntos, eles enganavam as pessoas ingênuas. Juntos, tiravam das pessoas tudo que possuíam. A certa altura dos acontecimentos... talvez Cinqüenta anos atrás, talvez cem, eles colocaram um plano em prática, um plano pra criar uma reserva de poder de que os dois poderiam desfrutar. Algo que faria com que ficassem mais fortes do que jamais tinham sido. Afinal, o que poderia conter mais poder do que um campo de batalha coberto de deuses mortos? O jogo que praticavam se chamava "Vamos Você e Ele Lutar". Compreendem? A batalha que vocês vieram travar aqui é algo que ninguém pode vencer ou perder. A vitória e a derrota não têm a menor importância pra ele, pra eles. O que importa é quantos de vocês vão morrer. Cada um de vocês que cai na batalha dá poder a ele. Cada um de vocês que morre, o alimenta. Vocês compreendem?

O rumor, como um grito de guerra de alguma coisa pegando fogo, ecoava pela arena. Shadow olhou para o local de onde vinha o barulho. Um homem enorme, com a pele cor-de-mogno, com o peito nu, usando uma cartola, com um cigarro largado na boca, falou com uma voz tão profunda quanto uma cova. Baron Samedi disse:

— Tudo bem. Mas Odin. Ele morreu. Nas negociações de paz. Os filhos da puta mataram ele. Ele morreu. Eu conheço a morte. Ninguém vai me enganar em relação a isso.

Shadow disse:

— Obviamente. Ele precisava morrer de verdade. Ele sacrificou seu corpo físico pra fazer esta guerra acontecer. Depois da batalha ele ficaria mais poderoso do que nunca.

Alguém gritou:

— E você, quem é?

— Eu sou... eu era... filho dele.

Um dos deuses novos — Shadow desconfiou que fosse uma droga, pelo jeito como sorria e como estava vestido — disse:

— Mas o senhor World disse...

— Nunca existiu um senhor World. Essa pessoa nunca existiu. Ele era só mais um entre vocês, seus bastardos, tentando se alimentar do caos que criou. Eles acreditaram nele, e dava para ver a decepção naqueles olhos. Shadow sacudiu a cabeça.

— Sabem, acho que prefiro ser homem do que deus. A gente não precisa de ninguém pra acreditar na gente. A gente vai seguindo em frente de qualquer jeito. É o que fazemos.

Houve silêncio, ali no lugar elevado.

E então, com um estalo chocante, o relâmpago congelado no céu caiu sobre o pico da montanha, e a arena ficou inteiramente escura.

Muitas daquelas presenças brilhavam na escuridão.

Shadow ficou imaginando se iriam discutir com ele, atacá-lo ou tentar matá-lo. Esperou por algum tipo de resposta.

E então Shadow percebeu que as luzes estavam indo embora. Os deuses estavam deixando aquele lugar, primeiro aos punhados, depois em fileiras, e finalmente às centenas.

Uma aranha do tamanho de um cachorro rottweiler veio correndo pesadamente na direção dele, sobre sete patas, com seu aglomerado de olhos brilhando fracamente.

Shadow se manteve de pé, apesar de sentir-se levemente enjoado.

Quando a aranha chegou suficientemente perto, disse, com a voz do senhor Nancy:

— Que trabalho bem-feito. Estou orgulhoso de você. Você fez bem, garoto.

— Obrigado.

— Vamos levá-lo de volta. Passar muito tempo neste lugar vai acabar com você.

E, dizendo isso, colocou uma pata peluda de aranha no ombro de Shadow...

...E, de volta ao Pátio das Bandeiras dos Sete Estados, o senhor Nancy tossiu. A mão direita dele repousava sobre o ombro de Shadow. A chuva tinha cessado. O senhor Nancy apoiava o canto da mão na cintura, como se estivesse machucada. Shadow perguntou se ele estava bem.

— Eu sou tão duro quanto unhas velhas. Mais duro, eu acho.

Ele não parecia feliz. Parecia um velho sofrendo de dor.

Havia dúzias deles, em pé ou sentados no chão ou nos bancos. Alguns pareciam bastante machucados.

Shadow ouvia um barulho de chocalho no céu, vindo do sul. Ele olhou para o senhor Nancy:

— Helicópteros?

O senhor Nancy assentiu com a cabeça.

— Não se preocupe com eles. Não mais. Só vieram limpar a bagunça, depois vão embora.

— Entendi.

Shadow sabia que havia uma parte da bagunça que ele queria ver por si mesmo, antes que fosse limpa. Emprestou uma lanterna de um homem de cabelos cinzentos, que se parecia com um âncora de telejornal aposentado, e começou a caçar.

Encontrou Laura estendida no chão em uma caverna lateral, ao lado de um diorama de gnomos mineradores vindos diretamente da Branca de Neve. O chão sob ela estava pegajoso de tanto sangue. Ela estava apoiada de lado, da maneira como Loki deve tê-la abandonado depois de tirar a lança do corpo dos dois.

Uma das mãos de Laura agarrava o peito. Ela parecia horrivelmente vulnerável. Parecia morta, mas Shadow já estava quase acostumado com aquilo.

Ele se agachou ao lado dela, encostou a mão em sua bochecha e falou seu nome. Os olhos dela se abriram, e ela levantou a cabeça e a virou até olhar para ele.

— Oi, cachorrinho.

Sua voz estava fraquinha.

— Oi, Laura. O que aconteceu aqui?

— Nada. Umas coisas aí. Eles venceram?

— Eu parei com a batalha quando estavam tentando começar.

— Meu cachorrinho inteligente. Aquele homem, o senhor World, disse que ia enfiar um pau no seu olho. Eu não gostei nem um pouco dele.

— Ele está morto. Você o matou, querida. Ela assentiu com a cabeça, e disse:

— Que bom.

Seus olhos se fecharam. Shadow encontrou sua mão fria e a segurou. Depois de um tempo, ela abriu os olhos novamente.

— Você conseguiu descobrir o que precisa fazer pra me trazer de volta dos mortos?

— Acho que sim. Eu conheço um jeito, pelo menos.

— Que bom.

Ela apertou a mão dele com sua mão fria. E então, disse:

— E o contrário? Você sabe alguma coisa?

— O contrário?

— É. Acho que mereci.

— Não quero fazer isso.

Ela não disse nada. Simplesmente, aguardou.

Shadow disse:

— Tudo bem.

Então, soltou a mão e colocou no pescoço dela.

Ela disse:

— Esse é o meu marido. Disse aquilo com orgulho.

— Eu amo você, querida.

— Amo você, cachorrinho.

Ele fechou a mão em volta da moeda de ouro pendurada no pescoço dela. Puxou a corrente com força e a quebrou com facilidade. Então, segurou a moeda entre o polegar e o indicador, assoprou e abriu a mão.

A moeda não estava mais lá.

Os olhos dela ainda estavam abertos, porém não se mexiam.

Ele então inclinou o corpo, e a beijou, suavemente, na bochecha fria, mas ela não respondeu. Ele não esperava que respondesse. Então se levantou e caminhou para fora da caverna, para olhar a noite.

As tempestades haviam limpado. O ar estava fresco, limpo e novo mais uma vez.

Amanhã, ele não tinha dúvida, seria um dia lindo de morrer.

 

Um conto pode ser mais bem descrito ao se narrar o conto. Compreende? A maneira como alguém descreve uma história, para si ou para o mundo, é narrando a história. É um ato de equilíbrio e é um sonho.

Quanto mais preciso for o mapa, mais se assemelha ao território. O mapa mais preciso possível seria o território e, assim, seria perfeitamente preciso e perfeitamente inútil.

O conto é o mapa que é o território. É preciso lembrar-se disso.

Dos cadernos de anotação do senhor Íbis

 

Os dois estavam a bordo da perua Kombi, dirigindo-se para a Flórida pela estrada 1-75. Estavam na estrada desde o amanhecer; ou melhor, Shadow dirigia e o senhor Nancy, sentado no banco do passageiro, de vez em quando, com uma expressão de dor no rosto, oferecia-se para dirigir. Shadow sempre dizia não.

— Você está feliz? — perguntou o senhor Nancy, de repente. Ele observou Shadow durante várias horas. Cada vez que Shadow olhava para a direita, lá estava ele olhando com seus olhos marrons cor-de-terra.

— Não muito — respondeu Shadow. — Mas ainda não estou morto.

— Hein?

— "Não diga que um homem é feliz até que esteja morto." Heródoto. O senhor Nancy levantou uma sobrancelha branca e disse:

— Eu ainda não estou morto e, principalmente porque ainda não estou morto, estou feliz igual a um marisquinho.

— Essa coisa do Heródoto... não quer dizer que os mortos são felizes. Quer dizer que não se pode julgar a vida de alguém até que esteja terminada.

— Eu não julgo ninguém — disse Nancy. — E, no que diz respeito à felicidade, existem vários tipos de felicidade, assim como existe um montão de tipos diferentes de morte. Eu, eu aproveito o que recebo quando posso.

Shadow mudou de assunto.

Aqueles helicópteros... Aqueles que levaram embora os mortos e os feridos.

— O que é que tem?

— Quem enviou? De onde eles vieram?

— Você não deveria se preocupar com isso. Eles são iguais a valquírias montadas em falcões. Eles vêm porque têm que vir.

— Se você está dizendo...

— Os mortos e os feridos serão bem cuidados. Se você quiser saber a minha opinião, o velho Jacquel vai estar muito ocupado no próximo mês. Me fala uma coisa, garoto Shadow.

— Sim?

— Você aprendeu alguma coisa com tudo isso?

— Não sei. A maior parte do que aprendi na árvore, já esqueci. Acho que conheci algumas pessoas, mas não tenho mais certeza de nada. É igual a um daqueles sonhos que provoca transformações. Você guarda um pouco do sonho pra sempre, e sabe algumas coisas lá no fundo da alma, porque aconteceram, mas, quando vai procurar os detalhes, eles fogem da mente.

— É — disse o senhor Nancy, cheio de raiva. — Você não é tão burro assim.

— Talvez não, mas eu gostaria de ter ficado com mais coisas que passaram pela minha mão, desde que saí da prisão. Recebi tantas coisas, e perdi tudo de novo.

— Você pode ter ficado com mais do que pensa.

— Não — disse Shadow.

Cruzaram a divisa da Flórida, e Shadow viu sua primeira palmeira. Ele ficou imaginando se tinha sido plantada ali na divisa de propósito, só para os viajantes saberem que agora estavam na Flórida.

O senhor Nancy começou a roncar, e Shadow deu uma olhada nele. Ainda parecia muito cinzento, e sua respiração chiava. Shadow se perguntou, não pela primeira vez, se ele teria sofrido algum tipo de ferimento pulmonar durante a briga. Nancy recusou qualquer cuidado médico.

A Flórida se estendia mais do que Shadow imaginava, e já era tarde quando encostou na frente de uma casa de madeira pequena e térrea, com as janelas bem tapadas, na periferia de Fort Pierce. Nancy, que havia indicado o caminho nos últimos 8 quilômetros, convidou-o para passar a noite.

— Posso pegar um quarto de hotel. Não é problema.

— Você poderia fazer isso, e eu ficaria magoado. Claro que eu não diria nada, mas ficaria magoado de verdade — disse o velho. — Então, é melhor você ficar aqui, e eu faço uma cama no sofá.

O senhor Nancy destrancou as persianas contra furacão e abriu as janelas. A casa tinha cheiro de mofo e de umidade, e de alguma coisa doce, como se fosse assombrada há muito tempo pelos fantasmas de biscoitos.

Shadow concordou, com relutância, em passar a noite ali, assim como concordou, com mais relutância ainda, em acompanhar o senhor Nancy até o bar no fim da rua, só para tomar um drinque, enquanto a casa arejava.

— Você viu o Czernobog? — perguntou o velho, enquanto passeavam pela noite úmida e quente da Flórida.

O ar enchia-se de mosquitos de palmeira que zumbiam, o chão estava lotado de criaturas que corriam para se esconder e faziam barulhos de estalos. O senhor Nancy acendeu uma cigarrilha, tossiu e engasgou. Ainda assim, continuou a tragar.

— Ele tinha sumido quando eu saí da caverna.

— Deve ter voltado pra casa. Você sabe que ele vai estar esperando por você lá.

— Sei.

Caminharam em silêncio até o fim da rua. Não era bem um bar, mas estava aberto.

— Eu pago as primeiras cervejas.

— A gente só vai tomar uma cerveja, lembra?

— O que você é? — perguntou o senhor Nancy. — Algum tipo de muquirana? O velho pagou as primeiras cervejas, e Shadow pagou a segunda rodada. Olhou com horror quando o senhor Nancy convenceu o barman a ligar o aparelho de karaokê e observou, com um acanhamento fascinado, enquanto o velho entoava "What's New, Pussycat?" antes de cantar uma versão emocionante e afinada de "The Way You Look Tonight". Ele tinha uma voz ótima e, no fim da canção, um punhado de pessoas que ainda estava no bar o aplaudiu e o aclamou.

Quando voltou ao bar, onde Shadow estava, parecia mais brilhante. As partes brancas de seus olhos estavam limpas, e a palidez cinzenta que tocava sua pele não estava mais lá.

— Sua vez.

— De jeito nenhum — disse Shadow.

Mas o senhor Nancy havia pedido mais cerveja, e entregava a Shadow um impresso manchado com o nome das músicas.

— Escolhe uma música que você conhece a letra.

— Isso não tem graça.

O mundo começava a rodar um pouco, mas ele não conseguiu reunir argumentos para discutir, e então Nancy já estava colocando a fita "Don't Let me Be Misunderstood" e empurrava — literalmente empurrava — Shadow para cima do palco improvisado no fundo do bar.

Shadow segurou o microfone como se estivesse provavelmente vivo, e então a música de fundo começou e ele entoou o "Baby..." inicial. Ninguém no bar jogou nada em sua direção. E aquela sensação era boa. "Can you understand me now?" A voz dele era áspera, mas melódica, e a aspereza combinava com a canção. "Sometimes I feel a littie mad. Don't you know that no one ative can always be an angel..."

E ele ainda cantava, enquanto caminhavam de volta para casa pela noite atarefada da Flórida, o velho e o moço, tropeçando pela rua, alegres.

"I'm just a soul whose intentions are good", ele cantava para os caranguejos, as aranhas, os besouros e as lagartixas da noite. "Oh Lord, please don't let me be misunderstood."

O senhor Nancy mostrou o sofá a ele. Era muito menor do que Shadow, que então resolveu dormir no chão. Quando terminou de tomar essa decisão, já estava em um sono profundo, meio sentado, meio deitado no sofá minúsculo.

A princípio, ele não sonhou. Havia somente a escuridão reconfortante. E então viu um fogo queimando na escuridão e andou em sua direção.

— Você se saiu bem — sussurrou o homem-búfalo, sem mexer os lábios.

— Eu não sei o que fiz.

— Você estabeleceu a paz. Pegou nossas palavras e as transformou nas suas próprias. Eles nunca entenderam que estavam aqui e que as pessoas que os adoravam também... porque eles estarem aqui nos satisfaz. Mas dá pra mudar de idéia. E talvez mudemos.

— Você c um deus?

O homem-búfalo sacudiu a cabeça. Parecia, por um instante, que a criatura se divertia.

— Eu sou a terra.

E, se aconteceu alguma coisa mais naquele sonho, Shadow não conseguiu se lembrar.

Ele ouviu alguma coisa chiar. Sua cabeça doía e havia uma pulsação atrás de seus olhos.

O velho já preparava o café da manhã: uma pilha alta de panquecas, bacon crocante, ovos perfeitos e café. Parecia no ápice de sua saúde.

— Estou com dor de cabeça — disse Shadow.

— Tome um bom café da manhã e você vai se sentir um novo homem.

— Eu preferia me sentir o mesmo homem, só que com uma cabeça diferente.

— Come aí. Shadow comeu.

— Como se sente agora?

— Como se tivesse uma dor de cabeça, só que agora tem um pouco de comida no meu estômago e eu acho que vou vomitar.

— Vem comigo.

Ao lado do sofá sobre o qual Shadow passara a noite, coberto com uma manta africana, havia um baú, feito de algum tipo de madeira escura, como uma arca de pirata de tamanho diminuto. O senhor Nancy destrancou a fechadura e abriu a tampa. Dentro havia diversas caixas. Nancy remexeu todas.

— É um remédio de ervas antigo da África. É feito da casca de chorão que cai no chão e outras coisas do tipo.

— Igual a uma aspirina?

— É. Igualzinho.

Do fundo do baú, ele tirou um pote gigante de aspirina genérica em tamanho econômico. Desatarraxou a tampa e deixou cair duas pílulas.  — Aqui está.

— Gostei do seu baú.

Pegou as pílulas amargas, engoliu-as com um copo de água.

— Meu filho mandou pra mim. Ele é um bom garoto. Não o vejo tanto quanto gostaria.

— Estou com saudade do Wednesday — disse Shadow. — Apesar de tudo que ele fez. Eu fico achando que ainda vou encontrar com ele por aí. Mas olho prós lados e ele não está.

Continuou olhando para o baú de pirata, tentando descobrir de que aquilo o lembrava.

Você vai perder muitas coisas. Mas não vai perder isso. Quem é que havia dito aquilo?

— Tem saudades dele? Depois de tudo o que fez você passar? Depois de tudo que ele fez pra todos nós?

— Tenho — disse Shadow. — Acho que tenho. Você acha que ele vai voltar?

— Acho que, em qualquer lugar em que dois homens estejam reunidos pra vender um violino de 20 dólares por 10 mil dólares, ele vai estar lá em espírito.

— É, mas...

— Vamos voltar pra cozinha — disse o velho, endurecendo a expressão. — Aquelas panelas não vão se lavar sozinhas.

O senhor Nancy lavou as panelas e a louça. Shadow enxugou tudo e guardou. A certa altura, a dor de cabeça começou a passar. Voltaram para a sala.

Shadow observou o baú antigo um pouco mais, fazendo força para lembrar.

— Se eu não for ver o Czernobog, o que vai acontecer?

— Ah, você vai vê-lo sim. Talvez ele ache você. Ou talvez faça com que você vá até ele. Mas, de um jeito ou de outro, você vai vê-lo sim.

Shadow assentiu com a cabeça. Alguma coisa começou a se encaixar. Dm sonho, na árvore.

— Ei, existe algum deus com cabeça de elefante?

— Ganesh? É um deus hindu. Ele remove obstáculos e torna as jornadas mais fáceis. Também é um bom cozinheiro. Shadow olhou para cima.

— Está no baú — disse. — Eu sabia que era importante, mas não sabia por quê. Pensei que estivesse falando de alguma coisa relacionada à árvore. Mas não estava falando nada disso, estava?

O senhor Nancy franziu a testa.

— Agora eu me perdi.

— Está no baú — disse Shadow.

Ele sabia que era verdade. Ele não sabia por que deveria ser verdade, não muito. Mas tinha certeza absoluta. Levantou-se.

— Preciso ir. Sinto muito.

Nancy levantou uma sobrancelha.

— Pra que tanta pressa?

— Porque o gelo está derretendo.

 

It’s spring and the goat-footed balloonMan whistles

far and wee [8]

  1. E. Cummings

 

Shadow deixou a floresta com o carro alugado mais ou menos às 8h30 da manhã, desceu a colina a menos de 70 quilômetros por hora, e entrou na cidade de Lakeside três semanas depois de, segundo o que acreditava na época, tê-la deixado para sempre.

Ele atravessou a cidade, surpreso com a pouca mudança nas últimas semanas, que eram uma vida inteira, e parou a meio caminho da trilha que levava até o lago. Então, saiu do carro.

Já não havia mais cabanas de pesca no gelo sobre o lago congelado, nenhum jipe, nenhum homem sentado à beira de um buraco de pescaria no gelo com uma vara e um pacote de uma dúzia de cervejas. O lago estava escuro: já não estava mais coberto por uma camada de branco ofuscante de neve. Agora havia pedaços reflexivos de água na superfície do gelo, e a água que estava embaixo era preta, e o gelo propriamente dito estava transparente o bastante para que a escuridão por baixo dele aparecesse. O céu estava cinzento, mas o lago gélido estava triste e vazio.

Quase vazio.

Um carro continuava sobre o gelo, estacionado, quase embaixo da ponte, de modo que qualquer um que passasse pela cidade, não podia deixar de vê-lo. Era de uma cor verde sujo; o tipo de carro que as pessoas abandonam em estacionamentos. Não tinha motor. Era o símbolo de uma aposta, esperando que o gelo ficasse podre, frágil e perigoso o bastante para permitir que o lago o levasse para sempre.

Havia uma corrente fechando a trilha curta que levava até o lago, e uma placa de aviso proibindo a entrada a pessoas ou a veículos. GELO FINO, dizia. Embaixo das palavras havia uma série de pictogramas acompanhada de frases:

PROIBIDO PARA CARROS, PEDESTRES, SNOWMOBILES. PERIGO.

Shadow ignorou os avisos e desceu a encosta do lago. Estava escorregadio — a neve já tinha derretido, transformando a terra em lama sob os pés dele, e a grama marrom mal oferecia resistência. Ele deslizou, escorregou até o lago e caminhou, com cuidado, sobre um pequeno cais de madeira, e dali passou para o gelo.

A camada de água sobre o gelo, feita de gelo e de neve derretidos, era mais profunda do que parecia de cima, mais escorregadia e mais lisa do que qualquer rinque de patinação, e Shadow foi obrigado a lutar para conseguir se manter em pé. Ele chafurdava sobre a água, que cobria suas botas até os cadarços e molhava seus pés. Água gelada. Anestesiava tudo que tocava. Ele se sentia estranhamente distante à medida que tropeçava pelo lago congelado, como se estivesse assistindo a si mesmo em uma tela de cinema — em um filme em que ele era o herói: um detetive, talvez.

Ele caminhou em direção à lata velha, dolorosamente ciente de que o gelo estava frágil demais para aquilo, e de que a água embaixo do gelo estava tão fria quanto poderia estar sem que congelasse. Shadow continuou a caminhar, escorregando e deslizando. Várias vezes, caiu.

Passou por garrafas de cerveja vazias e latas que sujavam o gelo e ao largo de buracos cortados no gelo, para pescar, buracos que não tinham congelado depois de abandonados, cheios de água preta.

A lata velha estava mais longe da estrada do que parecia. Ouviu um estalo alto vindo da parte sul do lago, como um galho se partindo, seguido do som de uma enorme vibração, como se uma corda grossa de um instrumento do tamanho do lago estivesse vibrando. De maneira geral, o gelo rangia e gemia, como uma porta antiga reclamando de ser aberta. Shadow continuou caminhando, com tanta firmeza quanto era possível.

Isso é suicídio, sussurrava uma voz consciente no fundo de sua mente. Você não pode simplesmente deixar isso pra lá?

— Não — ele disse alto. — Eu preciso saber.

E continuou caminhando para a frente.

Chegou à lata velha, e mesmo antes de alcançá-la, soube que estava com a razão. Tinha uma espécie de miasma pairando ao redor do carro, algo que era ao mesmo tempo um cheiro fraco de sujeira e um gosto ruim no fundo da garganta. Ele andou em volta do carro, olhando para dentro. Os assentos estavam manchados e rasgados. O carro estava obviamente vazio. Tentou abrir as portas. Estavam trancadas. Tentou abrir o porta-malas. Também trancado.

Pensou que gostaria de ter trazido um pé-de-cabra.

Fechou a mão enluvada. Contou até três e então deu um soco forte no vidro da janela do lado do motorista.

Sua mão doeu, mas a janela lateral continuou intacta.

Pensou em correr em direção ao carro — conseguiria estilhaçar a janela com um chute, tinha certeza, se não escorregasse e caísse no gelo molhado. Mas a última coisa que ele queria fazer era incomodar a lata velha o suficiente para que o gelo sob ela rachasse.

Shadow olhou para o carro. Então esticou a mão na direção da antena do rádio — era do tipo que ia para cima e para baixo, mas que estava entalada na posição esticada havia décadas — e, sacudindo-a de um lado para o outro algumas vezes, quebrou o metal na base. Pegou a ponta mais fina — que serviu de base para uma esfera de metal perdida com o tempo — e, com dedos fortes, encurvou até formar um tipo de gancho improvisado.

Então, enfiou a antena entre a borracha e o vidro da janela do assento da frente, bem no fundo do mecanismo da porta. Pescou, torceu, mexeu, retorceu e empurrou até achar o que procurava. Então, puxou.

Sentiu o gancho improvisado soltar a fechadura, de maneira inútil.

Suspirou. Tentou mais uma vez, mais devagar, com mais cuidado. Ele imaginava o gelo sucumbindo aos seus pés à medida que passava o peso do corpo de um pé para o outro. E lentamente...

Ele conseguiu. Puxou o gaúcho e o mecanismo da porta da frente se levantou. Shadow esticou a mão enluvada para baixo e alcançou a maçaneta, apertou o botão e puxou. A porta não abriu.

Está emperrada, pensou, congelada. Só isso.

Ele puxou com força, escorregando no gelo, e de repente a porta da lata velha se abriu, e gelo se espalhou por todos os lados.

O miasma era pior dentro do carro, um fedor de podridão e de doença. Shadow ficou enjoado.

Enfiou a mão embaixo do painel, encontrou a alavanca preta de plástico que abria o porta-malas e a puxou, com força.

Ouviu-se um estampido vindo de trás dele quando a tampa do porta-malas se soltou.

Shadow caminhou por sobre o gelo, escorregando e espalhando água ao redor do carro, segurando na lataria à medida que avançava.

Está no porta-malas, pensou.

O porta-malas tinha uma abertura de 2,5 centímetros. Ele esticou as mãos e abriu a tampa por inteiro, puxando-a para cima.

O cheiro era ruim, mas poderia ser muito pior: o fundo do porta-malas estava coberto por alguns centímetros de gelo meio derretido. Havia uma menina no porta-malas. Ela usava um macacão de neve vermelho-escarlate, agora manchado, e o cabelo desgrenhado era comprido, e a boca estava fechada, de maneira que Shadow não conseguia ver o aparelho de dentes azul, mas ele sabia que estava lá. O frio a havia conservado, a havia mantido tão fresca como se tivesse sido colocada em um freezer.

Seus olhos estavam arregalados, parecia que tinha morrido chorando, e as lágrimas congeladas sobre sua bochecha ainda não haviam derretido.

— Você estava aqui o tempo todo — disse Shadow para o cadáver de Alison McGovern. — Cada pessoa que passou por cima daquela ponte viu você. Todo mundo que passou pela cidade viu você. Os pescadores do gelo passaram por você todos os dias. E ninguém sabia.

E então ele percebeu como tudo aquilo era tolo.

Alguém sabia. Alguém a havia colocado ali.

Ele enfiou a mão no porta-malas, para ver se conseguia retirá-la. Apoiou o peso de seu corpo no carro quando se inclinou para a frente. Provavelmente aquilo causou tudo o que se seguiu.

O gelo sob as rodas da frente cedeu naquele momento, talvez por causa dos movimentos dele, talvez não. A frente do carro afundou vários centímetros na água escura do lago. A água começou a invadir o carro pela porta aberta do motorista. A água do lago chegou às canelas de Shadow, apesar de o gelo em que ele se apoiava ainda estar sólido. Ele olhou em volta desesperadamente, imaginando como sairia dali — e então já era tarde demais, e o gelo caía como se desabasse em um precipício, jogando-o contra o carro e em cima da menina morta no porta-malas. A traseira do carro afundou, e Shadow afundou com ele, para dentro das águas frias do lago. Eram 9hl0 da manhã do dia 23 de março.

Ele tomou um fôlego profundo antes de afundar, fechando os olhos, mas o frio da água do lago acertou-o como uma parede, levando embora o ar de seu corpo.

Afundou na água gelada e turva, puxado pelo carro.

Estava sob o lago, no meio da escuridão e do frio, sem poder subir à tona por causa do peso das roupas, das luvas e das botas, encurralado e amarrado por seu casaco, que parecia ter ficado mais pesado e mais volumoso do que se podia imaginar.

Shadow continuava a cair. Tentou se afastar do carro, mas o peso dele o puxava, e então houve um estrondo que ele pôde ouvir com o corpo inteiro, não com os ouvidos, e seu pé esquerdo foi agarrado pela canela, torcido e preso embaixo do carro quando este se acomodava no fundo do lago. O pânico tomou conta dele.

Ele abriu os olhos.

Sabia que era escuro ali embaixo: racionalmente, sabia que era escuro demais para enxergar alguma coisa, mas, ainda assim, ele conseguia enxergar... enxergava tudo. Via o rosto pálido de Alison McGovem olhando para ele de dentro do porta-malas aberto. Via bem os outros carros — as latas velhas de anos passados, formas de lataria podres na escuridão, meio enterradas na lama do lago. E o que será que eles arrastavam pra dentro do lago, Shadow ficou imaginando, antes de existirem carros?

Cada um deles, sem sombra de dúvida, tinha uma criança morta no porta-malas. E eram muitos... cada um ficava em cima do gelo, na frente dos olhos do mundo, durante todo o inverno gelado. Cada um afundava nas águas geladas do lago quando o inverno terminava.

Era ali que eles repousavam: Lemmi Hautala,Jessie Lovat, Sandy Olsen, Jo Ming, Sarah Lindquist e todos os outros. Ali onde era silencioso e frio...

Tentou puxar o pé. Estava preso firmemente, e a pressão em seus pulmões estava ficando insuportável. Havia uma dor aguda e terrível em seus ouvidos. Ele expirou lentamente, e o ar fez bolhas à sua volta.

Logo, pensou, logo vou ter que respirar. Ou vou morrer afogado.

Esticou os braços para baixo, colocou as duas mãos em volta do pára-choque da lata velha e empurrou, com toda a força que tinha, dobrando o corpo por cima do carro. Não aconteceu nada.

É só a carcaça do carro, disse a si mesmo. Tiraram o motor, que é a parte mais pesada do carro. Você consegue Continua empurrando.

Ele empurrou.

De maneira agonizante e lenta, uma fração de centímetro de cada vez, o carro escorregou para a frente na lama, e Shadow puxou o pé embaixo do carro, chutou e tentou impulsionar seu corpo para fora da água gelada do lago. Ele não se mexeu. O casaco, ele disse a si mesmo. £ o casaco. Está emperrado ou preso em alguma coisa. Tirou os braços do casaco, mexeu no zíper congelado com os dedos entorpecidos, sentiu o casaco ceder e rasgar. Afobado, desvencilhou-se do tecido e impulsionou o corpo para cima, para longe do carro.

Ele sentia uma sensação de urgência, mas não sabia para onde ficava o em cima, nem o embaixo. Estava sufocando e a dor no peito e na cabeça era grande demais para agüentar, e ele tinha certeza de que iria precisar respirar, tomar fôlego, ou morrer. E então sua cabeça bateu em algo sólido.

Gelo. Ele estava batendo contra o gelo da superfície do lago. Bateu com os punhos na camada congelada, mas não tinha mais força em seus braços, nada em que se segurar, nada contra o que se apoiar para dar impulso. O mundo se dissolveu no pretume frio embaixo do lago. Não havia nada ali além de frio.

Isso é ridículo, ele pensou. E se lembrou de um filme de Tony Curtis que vira quando era garoto, eu deveria ficar de bruços e empurrar o gelo para cima, pressionar meu rosto contra a superfície e achar um pouco de ar. Eu iria conseguir respirar novamente, existe ar aí em algum lugar, mas ele só boiava, congelava e não conseguia mais mexer um músculo, nem se sua vida dependesse daquilo, e dependia.

O frio se tornou suportável. Tornou-se quente. E ele pensou: estou morrendo. Desta vez tinha raiva, uma fúria profunda, e juntou aquela dor a aquela raiva e usou para esticar os braços, para se debater, para forçar a mover os músculos que estavam prontos para nunca mais se mexerem.

Fez força para cima com a mão e sentiu atravessar o gelo por cima do lago e se mexer no ar. Ele fez movimentos rápidos, procurando alguma coisa em que se segurar, e sentiu outra mão pegar a sua, e puxar.

Sua cabeça bateu contra o gelo, seu rosto atravessou a parte de baixo, e então sua cabeça estava no ar, e ele conseguiu ver que estava saindo de um buraco no gelo. Por um instante, tudo o que conseguia fazer era respirar, e deixar a água preta do lago escorrer pelo nariz e pela boca, e piscar os olhos, que não conseguiam ver nada além da luz do dia ofuscante, e formas. Alguém que o puxava, agora, forçando o corpo dele para fora da água, dizia alguma coisa a respeito de como ele quase tinha congelado até a morte, então vamos lá, homem, força, e Shadow se contorceu e se sacudiu como um boi marinho saindo da água, tremendo, tossindo e cheio de calafrios.

Respirando profundas golfadas de ar, estava totalmente estendido sobre o gelo que estalava, e que não iria agüentar por muito tempo, ele sabia, mas não adiantava. Suas idéias vinham com dificuldade, como um líquido espesso saindo pelo bocal de uma garrafa.

— Me deixa aqui — tentou dizer. — Eu vou ficar bem.

Suas palavras eram distorcidas, e tudo se direcionava para uma parada total.

Ele só precisava descansar um instante, só isso, só descansar, e daí se levantaria e continuaria seu caminho. Obviamente, não poderia ficar ali, estirado para sempre.

Sentiu um safanão; água espalhou-se em seu rosto. A cabeça dele foi erguida. Shadow sentiu-se sendo arrastado pelo gelo, escorregando sobre as costas, pela superfície lisa, e quis reclamar, explicar que só precisava de um pouco de descanso — talvez um pouco de sono, era pedir demais? — e que ele ficaria bem. Se o deixassem em paz.

Ele não acreditava que tinha caído no sono, mas estava de pé sobre uma vasta planície, e lá havia um homem com a cabeça e os ombros de um búfalo, e uma mulher com a cabeça de um condor enorme, e lá estava também Whiskey Jack, parado no meio deles, olhando para ele com tristeza, sacudindo a cabeça.

Whiskey Jack se virou e caminhou lentamente para longe de Shadow. O homem búfalo foi embora atrás dele. A mulher-pássaro-trovão também caminhou, e então se abaixou, deu um chute para trás e saiu deslizando pelos céus.

Shadow teve uma sensação de perda. Ele queria gritar para eles, implorar para que voltassem, para que não o abandonassem, mas tudo estava ficando sem forma e sem definição: eles foram embora e a planície estava desaparecendo, tudo ficou vazio.

A dor era intensa: era como se cada célula de seu corpo, cada nervo, estivesse derretendo, acordando e avisando sobre sua presença por meio de uma sensação de queimação e de dor.

Havia uma mão atrás de sua cabeça, segurando-a pelos cabelos, e outra embaixo de seu queixo. Ele abriu os olhos, achando que estava em algum tipo de hospital.

Seus pés estavam descalços. Ele usava calças jeans. Estava nu da cintura para cima. Havia vapor no ar. Ele conseguia ver um espelho de barbear na parede à sua frente, uma pia pequena e uma escova de dentes azul, em um copo manchado de pasta de dente.

As informações eram processadas lentamente, um dado de cada vez.

Seus dedos das mãos queimavam. Seus dedos dos pés queimavam.

Ele começou a reclamar de dor.

— Calma agora, Mike. Calma aí — dizia uma voz que ele conhecia.

— O quê? — disse, ou tentou dizer. — O que está acontecendo? As palavras pareceram tensas e estranha aos seus ouvidos. Ele estava em uma banheira. A água era quente. Achou que a água era quente, apesar de não ter certeza. A água chegava até o pescoço dele.

— A coisa mais burra que se pode fazer com um camarada congelado até a morte é colocá-lo na frente do fogo. A segunda coisa mais burra que se pode fazer é enrolar o cara em um monte de cobertores... especialmente se ele já estiver usando roupas molhadas e frias. Os cobertores isolam... guardam o frio. A terceira coisa mais burra, que é a minha opinião pessoal, é tirar o sangue do camarada, esquentar e devolver. É o que os médicos fazem hoje em dia. Complicado, caro. Burro.

A voz vinha de cima e de trás da cabeça dele.

— A coisa mais fácil e mais rápida que se pode fazer é o que os marinheiros têm feito há centenas de anos com homens que caem do navio. Você coloca o camarada na água quente. Não muito quente. Só quente. Agora, só pra informar, você estava basicamente morto quando eu o encontrei ali no gelo. Como é que está se sentindo agora, Houdini?

— Dói muito. Tudo dói. Você salvou a minha vida.

— Acho que sim, digamos. Você consegue segurar a cabeça sozinho agora?

— Talvez.

— Eu vou soltar. Se você começar a afundar na água, eu puxo a sua cabeça pra fora de novo.

As mãos o soltaram.

Sentiu-se escorregar para dentro da banheira. Esticou as mãos, apoiou-as nas laterais da banheira, e se inclinou para trás. O banheiro era pequeno. A banheira era de metal, e o esmalte estava manchado e arranhado.

Um velho se movia em seu campo de visão. Parecia preocupado.

— Está se sentindo melhor? — perguntou Hinzelmann. — Fica aí e relaxa. Eu deixei a sala bem quentinha e arrumada. Me diz quando estiver pronto, eu tenho um robe que pode usar, e posso jogar seus jeans na secadora junto com o resto das roupas. Tudo bem pra você, Mike?

— Esse aí não é o meu nome.

— Se você está dizendo.

O rosto de duende do velho se contorceu em uma expressão de desconforto.

Shadow não tinha idéia real de tempo: ficou deitado na banheira até a queimação passar e até que seus dedos conseguissem se flexionar sem causar desconforto real. Hinzelmann ajudou-o a se levantar e a sair da água morna. Shadow sentou-se na lateral da banheira e, juntos, tiraram seus jeans.

Ele se apertou, sem muita dificuldade, para dentro de um robe atoalhado que era pequeno demais para ele e, apoiando-se no velho, entrou na sala e desabou sobre um sofá antigo. Estava cansado e fraco: profundamente exausto, porém vivo. Um fogo de lenha queimava na lareira. Um punhado de cabeças de gamo com expressão de surpresa protuberavam empoeiradas das paredes ao redor dele, onde lutavam para achar espaço entre diversos peixes envernizados.

 

Hinzelmann saiu com os jeans de Shadow e, da sala ao lado, Shadow pôde ouvir uma breve pausa no barulho de uma secadora de roupas antes de ser religada. O velho voltou com uma caneca fumegante.

— É café — disse — que é estimulante. E eu coloquei um pouquinho de licor dentro dele. Só um pouquinho. Era assim que a gente fazia antigamente. O médico não recomendaria.

Shadow pegou o café com as duas mãos. Do lado de fora da caneca havia um desenho de um mosquito e a mensagem: DOE SANGUE — VISITE O W1SCONSIN!

— Obrigado.

— É pra isso que servem os amigos. Um dia, você pode salvar a minha vida. Por enquanto, esquece.

Shadow deu um gole no café.

— Eu pensei que estivesse morto.

— Você teve sorte. Eu estava na ponte... eu meio que percebi que hoje seria o grande dia, você tem uma sensação a respeito disso, quando chega à minha idade... então fui até lá com o meu velho relógio de bolso, e vi você andando em cima do lago. Eu gritei, mas tenho certeza absoluta de que você não poderia me ouvir. Vi o carro afundar e você afundando junto, e pensei que tinha perdido você, por isso saí correndo pelo gelo. Fiquei arrepiado de medo. Você deve ter ficado embaixo daquela água por uns dois minutos. Então, vi a sua mão aparecer através do lugar onde o carro afundou... era como ver um fantasma.

Sua voz foi ficando mais baixa.

— Nós dois tivemos muita sorte do gelo ter agüentado nosso peso enquanto puxei você pra margem.

Shadow assentiu com a cabeça.

— Você fez uma coisa boa — disse a Hinzelmann, e o rosto do velho ficou radiante.

Em algum lugar na casa, Shadow ouviu uma porta se fechar. Deu mais um gole no café.

Agora que ele era capaz de pensar com clareza, estava começando a se fazer perguntas.

Ficou imaginando como um velho, um homem com a metade da altura dele e talvez um terço do seu peso, havia conseguido arrastá-lo, inconsciente, por cima do gelo, ou colocá-lo em cima do banco de um carro. Ficou imaginando como é que Hinzelmann conseguiu colocar Shadow para dentro de casa e da banheira.

Hinzelmann caminhou até o fogo, pegou a tenaz e colocou um pedaço de lenha fino, cuidadosamente, no fogo resplandecente.

— Você quer saber o que eu estava fazendo lá no gelo? Hinzelmann deu de ombros.

— Não é da minha conta.

— Sabe o que eu não entendo... — disse Shadow. Hesitou, para dar tempo de ordenar as idéias.

— Eu não entendo como é que você salvou a minha vida.

— Bom, do jeito que eu fui criado, se você vê outro camarada com problemas...

— Não — disse Shadow. — Não foi isso que eu quis dizer. Você matou todas aquelas crianças. A cada inverno. E eu fui o único que percebeu. Deve ter me visto abrir o porta-malas. Por que simplesmente não deixou eu me afogar?

Hinzelmann deixou a cabeça cair para o lado. Coçou o nariz, pensativo, balançou o corpo para a frente e para trás, como se estivesse refletindo.

— Bom, essa é uma boa pergunta. Acho que é porque eu devia alguma coisa pra alguém. E eu sou bom com as minhas dívidas.

— Wednesday?

— É esse camarada aí.

— Tinha uma razão pra ele me esconder em Lakeside, não tinha? Existia uma razão pra ninguém ser capaz de me achar aqui.

Hinzelmann não disse nada. Pegou uma vara de ferro preta e pesada, pendurada na parede, e remexeu o fogo com ela, produzindo uma nuvem de fumaça e de faíscas alaranjadas.

— Este é o meu lar — disse, com petulância. —, é uma cidade boa. Shadow terminou de tomar seu café. Colocou a xícara no chão. O esforço foi exaustivo.

— Há quanto tempo você está aqui?

— Há bastante tempo.

— E foi você quem fez o lago? Hinzelmann observou-o, surpreso.

— Foi. Construí o lago. Chamavam de lago quando cheguei aqui, mas não passava de uma fonte e de uma lagoa de moinho e de um riacho. Fez uma pausa.

— Percebi que este país é o inferno pró meu tipo de gente. Ele nos come. Eu não queria ser comido. Então fiz um acordo. Eu dei um lago, trouxe prosperidade pra eles... e pra cidade.

— E tudo que eles precisavam dar em troca era uma criança por ano.

— Crianças boas — disse Hinzelmann, sacudindo sua cabeça velha, lentamente. — Eram todas crianças boas. Eu só pegava aquelas de quem gostava. Com exceção de Charlie Nelligan. Ele era uma maçã podre. Foi quando? 1924? 1925? É. Esse era o acordo.

— O pessoal da cidade... Mabel, Marguerite, Chad Mulligan: eles sabem? Hinzelmann não disse nada. Tirou a vara do fogo: os primeiros 15 centímetros da ponta brilhavam em um alaranjado sombrio. Shadow sabia que o cabo da vara deveria estar quente demais para ser segurado, mas parecia não incomodar Hinzelmann, que remexeu o fogo mais uma vez. Colocou a vara de volta no fogo, a ponta primeiro, e deitou lá. Então, disse:

— Eles sabem que moram em um lugar bom. Enquanto todas as outras cidadezinhas nesse condado, que diabos, nessa parte do Estado, estão se esfarelando pra nada. Eles sabem disso.

— E isso é por sua causa?

— Esta cidade — disse Hinzelmann —, eu cuido dela. Não acontece nada aqui que eu não queira que aconteça. Você entende isso? Ninguém que eu não queira pra cá. Foi por isso que o seu pai mandou você. Ele não queria você solto por aí no mundo, chamando atenção. Só isso.

— E você traiu ele?

— Eu não fiz nada disso. Ele era um sacana. Mas eu sempre pago as minhas dívidas.

— Eu não acredito em você — disse Shadow. Hinzelmann parecia ofendido. Uma de suas mãos coçou o chumaço de cabelo branco em suas têmporas.

— Eu cumpro a minha palavra.

— Não. Você não cumpre. A Laura veio aqui. Ela disse que tinha alguma coisa chamando. E o que você tem a dizer a respeito da coincidência que trouxe Sam Black Crow e Audrey Burton até aqui, na mesma noite? Acho que não acredito mais em coincidências. Sam e Audrey... Duas pessoas que sabiam quem eu era de verdade, e que sabiam que tinha gente por aí me procurando. Acho que, se uma delas falhasse, você ainda teria a outra. E se as duas tivessem falhado, quem mais estava a caminho de Lakeside, Hinzelmann? Meu antigo carcereiro, pra uma pescaria de fim de semana? A mãe da Laura?

Shadow percebeu que estava bravo. Continuou:

— Você queria que eu fosse embora da sua cidade. Você só não queria ter que contar pró Wednesday que era isso que estava fazendo.

À luz do fogo, Hinzelmann mais se parecia com uma gárgula do que com um demônio.

— Esta é uma cidade boa — disse.

Sem o sorriso, ele parecia feito de cera, ou um cadáver.

— Você teria atraído atenção demais. Não é bom pra cidade.

— Deveria ter me largado lá no gelo. Devia ter me deixado lá no lago. Eu abri o porta-malas da lata velha. Agora a Alison ainda está congelada no carro, mas o gelo vai derreter, e o corpo vai flutuar até a superfície. E então eles vão mergulhar e ver o que mais conseguem achar. Vão achar toda a sua reserva de crianças. Acho que alguns daqueles corpos devem estar bem-conservados.

Hinzelmann esticou a mão para baixo e pegou a vara. Não fingiu mais que iria remexer o fogo com ela; segurou-a como uma espada, ou um bastão, com a ponta alaranjada brilhante brandindo no ar. Saía fumaça dali. Shadow tinha consciência de que estava quase nu, e que ainda estava cansado, e atrapalhado, e longe de poder se defender.

— Você quer me matar? Vai em frente. Mata. Eu já estou morto, de qualquer forma. Eu sei que você possui esta cidade... é o seu mundinho. Mas se acha que ninguém vai vir me procurar, está vivendo em um mundo de sonho. Acabou, Hinzelmann. De um jeito ou de outro, acabou.

Hinzelmann deu um impulso e ficou em pé, usando a vara como bengala. O carpete chamuscava e fumegava nos lugares em que ele encostava a ponta incandescente, enquanto se levantava. Ele olhou para Shadow e havia lágrimas em seus olhos azul-claros.

— Eu amo esta cidade. Eu gosto mesmo de ser um velho ranzinza, e de contar as minhas histórias, de dirigir a Tessie e de pescar no gelo. Você se lembra do que eu contei? Não tem a ver com o peixe que você traz pra casa depois de uma pescaria. É a paz de espírito.

Ele esticou a ponta da vara na direção de Shadow, que podia sentir o calor que emanava a 30 centímetros de distância.

— Eu podia matar você — disse Hinzelmann. — Podia dar um sumiço. Já fiz isso antes. Você não foi o primeiro a perceber tudo. O pai de Chad Mulligan percebeu. Eu dei um jeito nele, e posso dar um jeito em você também.

— Talvez, mas, por quanto tempo, Hinzelmann? Mais um ano? Mais uma década? Hoje em dia existem computadores... que não são burros, que se baseiam em padrões. A cada ano uma criança desaparece. Cedo ou tarde vão vir fuçar aqui. Do mesmo jeito que vão vir me procurar. Me diz: quantos anos você tem?

Ele apertou os dedos em volta de uma almofada do sofá, e se preparou para colocá-la sobre a cabeça: aquilo faria com que o primeiro golpe se desviasse.

O rosto de Hinzelmann estava sem expressão.

— Já entregavam crianças pra mim antes dos romanos chegarem à Floresta Negra. Eu era um deus antes mesmo de ser um kobold.

— Talvez seja hora de prosseguir. Ele não fazia a mínima idéia do que seria um kobold. Hinzelmann olhava para ele. Então pegou a vara e enfiou a ponta de volta para o meio das brasas ardentes.

— Não é tão simples assim. O que faz você pensar que eu posso ir embora desta cidade, mesmo que eu queira, Shadow? Eu faço parte desta cidade. Você vai me obrigar a ir embora? Está pronto pra me matar? E assim eu posso ir embora?

Shadow olhou para o chão. Ainda havia brilhos e faíscas nos lugares em que a vara tinha encostado. Hinzelmann seguiu o olhar dele com o seu próprio e pisou nas brasas com o pé, virando-se de um lado para o outro. Espontaneamente, apareceram na mente de Shadow mais de uma centena de crianças, olhando para ele com olhos vazios, com os cabelos caindo pelo rosto e balançando lentamente como algas frondosas. Olhavam para ele com ar de reprovação.

Ele sabia que as estava decepcionando. Ele só não sabia mais o que fazer.

— Eu não posso te matar. Você salvou a minha vida.

Ele sacudiu a cabeça. Sentia-se uma merda, em todos os aspectos em que alguém pode se sentir uma merda. Não se sentia mais como um herói ou como um detetive — só mais um porra de um vendido, sacudindo um dedo ereto para a escuridão antes de dar as costas para ela.

— Você quer saber um segredo? — perguntou Hinzelmann.

— Claro — disse Shadow, com o coração pesado.

Ele estava pronto para não querer saber mais segredo nenhum.

— Olha isso.

Onde Hinzelmann estava apareceu um menino, com mais ou menos cinco anos. Seus cabelos eram castanho-escuros e compridos. Ele estava perfeitamente nu, a não ser por uma faixa de couro surrada em volta do pescoço. Duas espadas transpassavam seu corpo, uma atravessando o peito e a outra entrando pelo ombro, com a ponta saindo embaixo da caixa torácica. O sangue jorrava sem parar das feridas e corria pelo corpo da criança para se acumular aos seus pés, formando uma poça no chão. As espadas pareciam inimaginavelmente antigas.

O menininho olhava para Shadow com olhos que só traziam dor.

E ele pensou consigo mesmo, claro. Essa é uma maneira tão boa quanto qualquer outra de fazer um deus tribal. Ninguém precisava explicar para ele. Ele sabia.

Você pega um bebê e o cria na escuridão, sem permitir que ele veja ou toque em alguém, e o alimenta bem à medida que os anos passam, alimenta-o melhor do que qualquer outra criança da tribo, e então, cinco invernos depois, quando a noite é mais longa, você arrasta a criança apavorada de sua cabana para dentro do círculo de fogueiras e a perfura com lâminas de ferro e de bronze. Então você defuma o corpinho sobre fogo de carvão até ficar propriamente seco, enrola-o em peles e o carrega de acampamento para acampamento, no fundo da Floresta Negra, sacrificando animais e crianças para ele, transformando-o no amuleto da sorte da tribo. Quando, eventualmente, a coisa se despedaça com o tempo, você coloca seus ossos frágeis em uma caixa, e adora a caixa, até que um dia os ossos se espalham e são esquecidos, e as tribos que adoravam a criança-deus já deixaram de existir há muito tempo. A criança-deus, o amuleto da sorte da tribo, mal será lembrada, a não ser como um fantasma ou um duende: um kobold.

Shadow ficou imaginando qual das pessoas que tinham vindo para a parte norte do Wisconsin, 150 anos atrás, um lenhador, talvez, ou um cartógrafo, tinha cruzado o Atlântico com Hinzelmann na cabeça.

E então a criança ensangüentada desapareceu, e o sangue também. Ali só havia um velho com um chumaço de cabelo branco e um sorriso de duende, com as mangas do suéter ainda encharcadas por ter colocado Shadow na banheira que salvara sua vida.

— Hinzelmann?

A voz vinha da porta da cabana.

Hinzelmann se virou. Shadow também.

— Eu vim aqui falar — disse Chad Mulligan, e a voz dele estava tensa, — que a lata velha afundou. Eu vi afundar quando passei de carro por ali, e pensei em vir avisar, no caso de você não ter visto.

Ele estava segurando o revólver, apontando-o para o chão.

— Ei, Chad — disse Shadow.

— Oi, cara — disse Chad. — Mandaram um recado avisando que você tinha morrido na prisão. De ataque do coração.

— Que coisa! Parece que eu estou morrendo por todos os lugares.

— Ele veio aqui, Chad — disse Hinzelmann —, e me ameaçou.

— Não — disse Chad Mulligan. — Ele não veio. Estou aqui há dez minutos, Hinzelmann. Eu ouvi tudo o que você disse. A respeito do meu velho. A respeito do lago.

Ele caminhou mais para o fundo da sala. Não levantou o revólver.

— Por Deus, Hinzelmann. Não dá pra passar por esta cidade sem ver a porra do lago. Fica no meio de tudo. Então, que diabos eu devo fazer?

— Você tem que prender Shadow. Ele falou que ia me matar — disse Hinzelmann, um velho amedrontado em uma sala empoeirada. — Chad, estou contente por você está aqui.

— Não — disse Chad Mulligan. — Você não está. Hinzelmann suspirou. Ele se inclinou para baixo, como se se rendesse, e tirou a vara do fogo. A ponta dela brilhava de um alaranjado vivo.

— Abaixa isso aí, Hinzelmann. Abaixa bem devagar, fica com as mãos pra cima, onde eu possa ver, e vira pra parede.

Havia uma expressão de puro medo no rosto do velho, e Shadow teria sentido pena dele, mas se lembrou das lágrimas congeladas nas bochechas de Alison McGovern. Hinzelmann não se mexeu. Ele não largou a vara e não se virou para a parede. Shadow estava prestes a esticar a mão na direção de Hinzelmann, para tentar tirar a vara dele, quando o velho jogou a vara incandescente na direção de Mulligan.

Hinzelmann a jogou de maneira desajeitada — a vara traçou um arco pela sala, como se apenas quisesse formar uma figura bonita no ar — e, quando a soltou, já corria em direção à porta.

A vara pegou de raspão o braço esquerdo de Mullligan.

O barulho do tiro, nos aposentos fechados da cabana do velho, foi ensurdecedor.

Um tiro através da cabeça, só isso.

Mulligan disse:

— Ë melhor você colocar as suas roupas.

A voz dele estava fria e morta.

Shadow assentiu com a cabeça. Caminhou até a sala ao lado, abriu a porta da secadora e tirou suas roupas. O jeans ainda estava úmido, mas ele vestiu mesmo assim. Quando voltou à sala principal, totalmente vestido — a não ser pelo casaco, que estava em algum lugar bem no fundo da lama gelada do lago, e as botas, que não conseguia encontrar — Mulligan, que já havia espalhado diversos pedaços de lenha fumegantes pelo chão, disse:

— Um dia ruim pra um guarda é quando ele tem que provocar um incêndio só pra encobrir um assassinato. Então, olhou para Shadow:

— Você precisa de botas.

— Não sei onde ele colocou.

— Que merda!

— Desculpe por isso, Hinzelmann.

E pegou o velho pelo colarinho e pela fivela do cinto, e balançou-o para a frente, jogando o corpo com a cabeça dentro da lareira em chamas. O cabelo branco estalou e se acendeu, e o quarto começou a se encher com cheiro de carne grelhada.

— Não foi assassinato, foi legítima defesa — disse Shadow.

— Eu sei o que foi — disse Mulligan, com indiferença. Eleja tinha desviado sua atenção para os pedaços de lenha fumegantes que espalhara pela sala. Empurrou um deles até a ponta do sofá, pegou um exemplar do Lakeside News, abriu na página do meio, amassou e jogou em cima da madeira. As páginas de jornal ficaram marrons e então pegaram fogo.

— Sai da cabana — disse Chad Mulligan.

Ele ia abrindo as janelas enquanto saíam da casa, e soltou a fechadura da porta da frente para trancá-la antes de fechá-la.

Shadow o seguiu até a viatura de polícia com seus pés descalços. Mulligan abriu a porta da frente, do lado do passageiro, e Shadow entrou e limpou os pés no tapete de borracha. Só então vestiu as meias, que a essa altura já estavam quase secas.

— Podemos pegar umas botas pra você lá na Hennings Farm and Home.

— Você ouviu muito do que aconteceu lá dentro? — perguntou Shadow.

— Bastante — disse Mulligan. Depois, completou:

— Ouvi demais.

Foram até a loja em silêncio.

— Quanto você calça? Shadow disse a ele.

Mulligan entrou na loja. Voltou com um par de meias de lã grossas e um par de botas de couro de trabalhar na roça.

— Só tinha isso do seu tamanho. A não ser que você quisesse botas de borracha. Eu achei que você não iria querer.

Shadow calçou as meias e as botas. Serviram direitinho.

— Obrigado.

— Você está de carro?

— Está parado na estrada que vai até o lago. Perto da ponte.

Mulligan deu a partida no carro e saiu do estacionamento da Hennings.

— O que aconteceu com a Audrey? — perguntou Shadow.

— Um dia depois de você ter ido embora, ela disse que gostava de mim como amigo, mas nunca teria dado certo com a gente, por sermos da mesma família e tudo o mais, e voltou pra Eagie Point. Deixou a porcaria do meu coração partido.

— Faz sentido — disse Shadow. — E não era nada pessoal. Hinzelmann não precisava mais dela aqui.

Passaram de novo na frente da casa de Hinzelmann. Uma camada espessa de fumaça branca saía da chaminé.

— Ela só veio pra cá porque ele queria. Ela o ajudou a me tirar da cidade. Eu estava chamando uma atenção de que ele não precisava.

— Eu achei que ela gostava de mim.

Pararam ao lado do carro alugado de Shadow.

— O que você vai fazer agora? — perguntou Shadow.

— Não sei.

Seu rosto normalmente perturbado estava começando a parecer mais vivo, desde que tinham deixado a cabana de Hinzelmann. Também parecia mais perturbado.

— Acho que tenho algumas opções. Posso (imitou um revólver com os dois dedos da mão direita, colocou as pontas dos dedos dentro da boca aberta e os tirou) enfiar uma bala no cérebro, ou esperar mais uns dois dias até que não tenha mais gelo, amarrar um bloco de concreto nas pernas e pular da ponte. Talvez usar uns comprimidos. Xiii... posso pegar o carro, sair por aí e entrar bem no fundo da floresta. Aí engulo os comprimidos. Não quero obrigar um dos meus rapazes a fazer a limpeza. Vou deixar a bagunça pró condado. Ele suspirou e sacudiu a cabeça.

— Você não matou o Hinzelmann, Chad. Ele morreu há muito tempo, em um lugar muito longe daqui.

— Obrigada por dizer isso, Mike. Mas eu o matei, sim. Eu atirei em um homem a sangue frio, e escondi meu ato. E se você me perguntasse por que fiz isso, por que fiz isso de verdade, eu ia amaldiçoar a mim mesmo por ter contado a você.

Shadow esticou a mão e tocou o braço de Mulligan.

— O Hinzelmann era dono desta cidade. Acho que você não tinha muita escolha... Ele fez você ir até lá. Queria que você escutasse o que escutou. Ele armou uma armadilha... acho que era único jeito pra ele conseguir fugir.

A expressão miserável de Mulligan não se alterou. Shadow percebeu que o delegado de polícia mal escutou o que ele dissera. Ele tinha matado Hinzelmann, e construíra uma pira para ele e, agora, obedecendo ao último dos desejos de Hinzelmann, cometeria suicídio.

Shadow fechou os olhos, lembrando-se do lugar aonde tinha ido na imaginação, quando Wednesday pedira que ele fizesse neve, aquele lugar que forçava a mente. Mostrou um sorriso que não sentia e disse:

— Chad, deixa pra lá.

Havia uma nuvem na mente do homem, uma nuvem escura e opressiva, e Shadow quase conseguia enxergá-la, concentrando-se nela, imaginando que se dissiparia como a neblina da manhã.

— Chad — ele disse, com violência, tentando penetrar na nuvem — essa cidade vai mudar agora. Não vai mais ser a única cidade boa em uma região decadente. Vai se parecer bem mais com o resto desta parte do mundo. Vai ter bem mais confusão, pessoas desempregadas, pessoas que perdem a cabeça. Mais pessoas se machucando. Mais merda rolando. Vai precisar de um delegado com experiência. A cidade precisa de você.

E então disse:

— A Marguerite precisa de você.

Alguma coisa mudou na nuvem de tempestade que enchia a cabeça do homem. Shadow conseguia sentir a mudança. Ele fez força então, visualizou as mãos hábeis e pardas de Marguerite, seus olhos escuros e seus cabelos muito longos e negros. Ele retratou mentalmente a maneira como deixava a cabeça pender para o lado e dava um meio-sorriso, quando estava se divertindo.

— Ela está esperando você — disse Shadow, sabendo que era verdade.

— Margie? — disse Chad Mulligan.

E, naquele momento, apesar de ele não saber como havia feito, e de duvidar que conseguiria fazer novamente, Shadow atingiu a mente de Chad Mulligan, tão facilmente como dar um passo, e removeu os acontecimentos daquela tarde de uma maneira tão precisa e tão desapaixonada como um corvo que remove o olho de um animal morto à beira de uma estrada.

As rugas na testa de Chad Mulligan se abrandaram e ele piscou, sonolento.

— Vai falar com a Margie — disse Shadow. — Foi bom ver você, Chad. Cuide-se.

— Claro — bocejou Chad Mulligan.

Uma mensagem estalou no rádio da polícia, e Chad esticou a mão para pegar o receptor. Shadow saiu do carro e caminhou até seu carro de aluguel. Ele enxergava a superfície plana e cinzenta do lago no centro da cidade. Pensou nas crianças mortas que esperavam no fundo da água.

Logo, logo, Alison flutuaria até a superfície...

Quando Shadow passou perto da casa de Hinzelmann, pôde ver que a camada de fumaça já tinha se transformado em enormes labaredas. Ouviu uma sirene tocando.

Ele foi em direção ao sul, para a auto-estrada 51. Estava a caminho de seu último compromisso. Mas, antes, pensou, daria uma parada em Madison, para se despedir.

Mais do que tudo, Samantha Black Crow gostava de fechar o Café à noite. Era uma coisa perfeitamente tranqüila para se fazer: dava a ela a sensação de estar devolvendo a ordem ao mundo. Colocava um CD das índigo Giris para tocar e cumpria as últimas tarefas da noite em seu próprio ritmo e do seu próprio modo. Primeiro, ela limpava a máquina de café expresso. Depois, fazia uma checagem final, para assegurar-se de que todas as xícaras e todos os pratos esquecidos estavam guardados na cozinha, e que os jornais que sempre ficavam espalhados pelo Café, no fim do dia estavam organizados em uma pilha ao lado da porta de entrada, prontinhos para ser reciclados.

Ela adorava o Café. Consistia de uma série de salas em caracol cheias de poltronas, sofás e mesas baixas, em uma rua onde os sebos de livros se enfileiravam uns ao lado dos outros.

Ela cobriu as fatias de cheesecake que sobraram e as colocou na enorme geladeira para que se conservassem durante a noite, então pegou um pano e limpou as últimas migalhas. Ela gostava de ficar sozinha.

Um barulhinho na janela desviou sua atenção dos afazeres de volta para o mundo real. Ela foi até a porta e a abriu para deixar entrar uma mulher que tinha mais ou menos sua idade, usando marias-chiquinhas em seus cabelos cor-de-magenta. Seu nome era Natalie.

— Oi.

Ficou nas pontas dos pés e beijou Sam, com um beijo estalado entre a bochecha e o canto da boca. Pode se tirar muitas conclusões de um beijo desses.

— Você já acabou?

— Quase.

— Quer ir ao cinema?

— Claro. Adoraria. Mas ainda vou demorar uns bons cinco minutos. Por que você não se senta e lê o Onion?

— Eu já vi a edição desta semana.

 

Ela se sentou em uma cadeira próxima à porta, examinou a pilha de jornais separados para reciclagem até encontrar alguma coisa, e ficou lendo enquanto Sam recolhia o resto de dinheiro na caixa registradora e guardava no cofre.

Fazia uma semana que as duas estavam dormindo juntas. Sam se perguntava se aquilo era o relacionamento que ela havia esperado por toda a vida. Ela disse a si mesma que eram apenas os produtos químicos do cérebro e os feromônios que a deixavam feliz quando via Natalie, e que talvez aquilo fosse isso mesmo. Ainda assim, tudo o que ela sabia era que sorria quando via Natalie e que, sempre que estavam juntas, sentia-se confortável e reconfortada.

— Este jornal — disse Natalie — tem outro artigo daqueles. "Os Estados Unidos estão mudando?"

— Bom, estão, não estão?

— Não dizem. Dizem que talvez estejam, mas não sabem como e nem por quê, e talvez nada disso esteja acontecendo e tudo o mais. Sam abriu um sorriso largo.

— Bom, isso aí cobre todas as opções, né?

— Acho que sim.

O cenho de Natalie se franziu e ela voltou para o seu jornal.

Sam lavou o pano da pia e o dobrou.

— Acho que é só isso, apesar do governo e de tudo o mais, tudo de repente parece estar no lugar certo. Talvez seja porque a primavera está chegando um pouco mais cedo. Foi um longo inverno, e eu estou contente por ter terminado.

— Eu também. Uma pausa.

— Fala aqui no artigo que um monte de gente tem dito que teve uns sonhos esquisitos. Eu não tive nenhum sonho esquisito. Nada mais esquisito do que o normal.

Sam deu uma olhada geral para ver se não havia esquecido nada. Não. Era um trabalho bem-feito. Ela tirou o avental, pendurou-o na cozinha. Então foi para o salão principal e começou a apagar as luzes.

— Eu tive uns sonhos esquisitos recentemente. Ficaram tão esquisitos que eu comecei a fazer um diário de sonhos. Escrevo o que sonhei quando acordo. Mas, quando leio depois, não querem dizer absolutamente nada.

Ela vestiu seu casaco grosso e suas luvas de tamanho único.

— Eu estudei um pouco de sonhos.

Natalie estudara um pouco de tudo, de disciplinas de autodefesa secreta e maçonaria até feng shui e jazz.

— Conta o que você sonhou. E eu digo o que quer dizer.

— Tudo bem.

Sam destrancou a porta e apagou as luzes que faltavam. Deixou Natalie sair, e ela mesma saiu para a rua e trancou a porta do Café com firmeza atrás de si.

— As vezes, sonhava com gente que caía do céu. Já sonhei que estou embaixo da terra, conversando com uma mulher com cabeça de búfalo. E, às vezes, sonho com um cara que beijei em um bar há um mês.

Natalie fez um barulho.

 

— Alguma coisa que você deveria ter me contado?

— Talvez. Mas não por isso. Foi um beijo de vão-se-foder.

— Você estava mandando ele se foder?

— Não, estava dizendo pra todo mundo que estava lá que eles podiam ir se foder. Mas você tinha que estar lá pra entender, acho.

Os sapatos de Natalie estalavam contra a calçada. Sam caminhava ao lado dela.

— Ele é o dono do meu carro — disse Sam.

— Aquela coisa roxa que você arrumou na casa da sua irmã?

— Só.

— O que aconteceu com ele? Por que ele não quer o carro de volta?

— Não sei. Talvez esteja preso. Talvez esteja morto.

— Morto?

— Acho que sim — Sam hesitou. Há algumas semanas, tive a certeza de que ele estava morto. Foi um pressentimento. Ou sei lá o quê. Tipo eu sabia. Mas daí comecei a pensar que talvez não estivesse. Acho que minha intuição não está tão boa assim.

— Quanto tempo você vai ficar com o carro dele?

— Até alguém vir buscar. Acho que é o que ele gostaria que eu fizesse. Natalie olhou para Sam, e então olhou novamente.

— Onde foi que você arrumou isso aí?

— O quê?

— Essas flores. As que você está segurando. De onde elas vieram? Você estava carregando elas quando a gente saiu do Café? Eu teria visto. Sam olhou para baixo. Então sorriu.

— Você é tão doce. Eu devia ter dito alguma coisa quando me entregou, né? São lindas. Muito obrigada. Mas será que vermelho não seria mais apropriado? Eram seis rosas brancas, com os cabos embrulhados em papel.

— Eu não dei isso pra você — disse Natalie, apertando os lábios. E nenhuma das duas disse mais nada até chegarem ao cinema. Quando chegou em casa naquela noite, Sam colocou as rosas em um vaso improvisado. Mais tarde, banhou as rosas em bronze, e guardou para si a história de como as recebera, apesar de ter contado para Caroline, que veio depois de Natalie, a história das rosas-fantasma em uma noite em que estiveram muito bêbadas, e Caroline concordou com Sam que era uma história muito, muito estranha e assombrada e, lá no fundo, não acreditou em nenhuma palavra daquilo, então ficou tudo bem.

Shadow havia parado o carro ao lado de um orelhão. Ligou para o telefone de informações, e deram o número certo a ele.

Não, disseram a ele. Ela não está. Ainda deve estar no Café.

Parou no caminho para comprar flores.

Achou o café, atravessou a rua e parou na porta de um sebo, esperando e observando.

O lugar fechava às 8h, e às 8hl0 Shadow viu Sam Black Crow sair caminhando do Café na companhia de uma mulher mais baixa, cujos cabelos arrumados em marias-chiquinhas eram de um tom de vermelho peculiar. Davam as mãos apertadas, como se o simples fato de dar as mãos pudesse manter o mundo à distância, e as duas conversavam — ou melhor, Sam falava, enquanto a amiga escutava. Shadow ficou imaginando o que Sam estaria dizendo. Ela sorria enquanto falava.

As duas mulheres atravessaram a rua, e passaram pelo lugar onde Shadow estava. A garota de marias-chiquinhas passou a 30 centímetros dele. Ele poderia ter esticado o braço e tocado a moça, mas não o viram de jeito nenhum.

Ele observou, enquanto as duas iam em direção à outra ponta da esquina, para longe dele, e sentiu uma pontada de dor, como se um acorde menor estivesse sendo tocado dentro dele.

Foi um beijo bom, Shadow refletiu, mas Sam nunca olhou para ele da maneira como olhava para a garota de marias-chiquinhas, e nunca olharia.

— Que inferno. Nós sempre vamos ter o Peru — ele disse, de um fôlego só, enquanto Sam se afastava dele. — E El Paso. Isso sempre vai ser nosso.

Ele correu e colocou as flores nas mãos de Sam. Ele saiu correndo, para que ela não pudesse devolvê-las.

Então subiu a ladeira até o carro e seguiu as placas até Chicago. Ia na velocidade permitida, ou um pouco abaixo dela.

Era a última coisa que precisava fazer.

Ele não estava com pressa.

Passou a noite em um hotel barato. Levantou-se na manhã seguinte e percebeu que suas roupas ainda cheiravam igual ao fundo do lago. Vestiu-as mesmo assim. Imaginou que não fosse precisar mais delas por muito tempo.

Shadow pagou a conta. Pegou o carro e foi até o prédio discreto de tijolinhos aparentes. Encontrou-o sem nenhuma dificuldade. Era menor do que se lembrava.

Subiu as escadas com passos firmes — não rápidos, porque isso quereria dizer que ele estava ansioso para morrer, e não vagarosos, porque isso quereria dizer que ele estava com medo. Alguém limpara os degraus: os sacos de lixo pretos não estavam mais lá. O lugar tinha cheiro de cloro e de água sanitária, não mais de legumes podres.

A porta vermelha no topo das escadas estava escancarada: o cheiro de refeições antigas pairava no ar. Shadow hesitou, então apertou a campainha.

— Estou indo!

Gritou uma voz de mulher, e uma loura platinada, do tamanho de um anão, Zorya Utrennyaya, saiu da cozinha e veio em sua direção apressada, enxugando as mãos no avental. Shadow percebeu que ela parecia diferente. Parecia feliz. Suas bochechas estavam vermelhas, e havia um brilho em seus olhos velhos. Quando ela o viu, sua boca se transformou em um O e ela gritou:

— Shadow? Você voltou pra nós?

E correu na direção dele com os braços abertos. Ele se abaixou e a abraçou, e ela beijou a bochecha dele.

— Que bom ver você! — ela disse. — Agora você precisa ir embora.

Shadow entrou no apartamento. Todas as portas do apartamento (à exceção da de Zorya Polunochnaya, sem surpresa nenhuma) estavam escancaradas, e todas as janelas que ele conseguia ver também estavam abertas. Uma brisa suave soprava intermitentemente pelo corredor.

— Vocês estão fazendo a faxina da primavera — ele disse para Zorya Utrennyaya.

— Vamos receber visita — ela explicou. — Agora você precisa ir embora. Primeiro, quer café?

— Eu vim ver Czernobog. Chegou a hora.

Zorya Ütrennyaya sacudiu a cabeça com violência.

— Não, não. Você não quer vê-lo, não. Não é uma boa idéia.

— Eu sei, mas você sabe, a única coisa que eu aprendi na minha convivência com os deuses é que, se você faz um acordo, deve cumprir. Eles rompem todas as regras que querem. Nós, não. Mesmo se eu tentasse ir embora daqui, meus pés me trariam de volta.

Ela fez um bico com o lábio inferior.

— É verdade. Mas vai embora hoje. Volta amanhã. Ele não vai mais estar aqui.

— Quem está aí? — gritou uma voz de mulher do fundo do corredor. — Zorya Ütrennyaya, com quem você está conversando? Esse colchão aqui, eu não consigo virar sozinha, e você sabe muito bem disso.

Shadow caminhou pelo corredor.

— Bom dia, Zorya Vechernyaya. Posso ajudar?

O que fez com que a mulher no quarto guinchasse de surpresa e largasse seu canto do colchão.

O quarto parecia espesso de tanta poeira: o pó cobria tudo, a madeira e o vidro, e grãos flutuavam e dançavam através dos fachos de sol que entravam pela janela aberta, perturbados por brisas ocasionais e pelo movimento das cortinas de renda amareladas.

Ele se lembrava daquele quarto. Era o quarto que tinham dado para Wednesday naquela noite. O quarto de Bielebog.

Zorya Vechernyaya olhava para ele com incerteza.

— O colchão. Precisa virar.

— Sem problema — disse Shadow.

Ele esticou os braços e pegou o colchão, levantou-o com facilidade, e o virou. Era uma cama velha de madeira, e o colchão de plumas pesava quase tanto quanto um homem. Poeira voou e rodopiou no ar quando o colchão caiu de volta sobre o estrado.

— O que você está fazendo aqui? — perguntou Zorya Vechernyaya. Não pareceu muito simpática.

— Estou aqui porque em dezembro passado um moço jogou uma partida de damas com um deus velho e perdeu.

O cabelo cinzento da mulher estava amarrado em cima da cabeça em um coque firme. Ela apertou os lábios:

— Volta amanhã — disse Zorya Vechernyaya.

— Não posso.

— É o seu enterro. Agora, vai lá e senta. A Zorya Utrennyaya vai trazer café pra você. O Czernobog deve voltar logo.

Shadow percorreu o corredor até a sala de estar. Estava exatamente como ele se lembrava dela, apesar de agora a janela estar aberta. O gato cinzento dormia sobre o braço do sofá. Abriu um olho quando Shadow entrou e então, sem se impressionar, voltou a dormir.

Foi ali que jogara damas com Czernobog. Foi ali que apostara sua vida para fazer com que o velho se juntasse a eles na última trapaça amaldiçoada de Wednesday. O ar fresco entrava pela janela, expulsando o ar estagnado.

Zorya Utrennyaya entrou com uma bandeja de madeira vermelha. Uma pequena xícara esmaltada de café preto fumegante repousava na bandeja, ao lado de um pires cheio de pequenas bolachas com pedaços de chocolate. Ela colocou tudo sobre a mesa à sua frente.

— Eu me encontrei com a Zorya Polunochnaya de novo. Ela veio me encontrar embaixo do mundo, me deu a lua pra iluminar o meu caminho e tirou algo de mim. Mas eu não me lembro o quê.

— Ela gosta de você — disse Zorya Utrennyaya. — Ela sonha muito, protege todos nós. Ela é tão corajosa...

— Cadê o Czernobog?

— Ele fala que a limpeza da primavera o deixa incomodado e sai pra comprar jornal e passear no parque. Pra comprar cigarro. Talvez nem volte hoje. Você não precisa esperar. Por que não vai embora? Volta amanhã.

— Eu vou esperar.

Não havia magia nenhuma que o forçasse a esperar, ele sabia. Era ele. Era a última coisa que precisava acontecer, e se fosse a última coisa que tinha de acontecer, bom, ele iria ao seu encontro por sua própria vontade. Depois disso, não haveria mais obrigação alguma, mais mistério algum, mais fantasma algum.

Ele deu um gole no café quente, tão preto e tão doce quanto lembrava.

Ouviu uma voz masculina profunda no corredor e aprumou-se no sofá. Ficou contente ao constatar que suas mãos não tremiam. A porta se abriu.

— Shadow?

— Oi.

Ele continuou sentado.

Czernobog entrou na sala. Carregava um exemplar dobrado do jornal Chicago Sun-Times, que colocou sobre a mesinha de centro. Olhou para Shadow, então esticou a mão, para ver a reação dele. Os dois homens apertaram as mãos.

— Eu vim. Nosso trato. Você cumpriu a sua parte e esta é a minha. Czernobog assentiu com a cabeça. Seu cenho se franziu. A luz do sol refletia nos cabelos e no bigode cinzento dele, fazendo com que parecesse quase dourados.

— Não... — ele franziu mais a testa. — Não é... Ele falou de supetão:

— Acho que você deveria ir embora. Este não é um bom momento.

— Pode demorar quanto você quiser. Estou pronto.

Czernobog suspirou.

— Você é um rapaz muito estúpido, sabia?

— Acho que sim.

— Você é um rapaz estúpido. E, lá no topo da montanha, você fez uma coisa muito boa.

— Eu fiz o que tinha que fazer.

— Talvez.

Czernobog caminhou até o aparador e, abaixando-se, tirou um estojo encaixado embaixo do móvel. Fez com que as fechaduras do estojo se abrissem. Cada uma delas pulou para cima com um estampido agradável. Ele abriu o estojo. Tirou dali um martelo e experimentou brandi-lo no ar. O martelo parecia uma marreta em miniatura; o cabo estava todo manchado.

Então ficou em pé e falou:

— Eu devo tanto a você. Mais do que você pensa. Por sua causa, as coisas estão mudando. Estamos na primavera. Na primavera de verdade.

— Eu sei o que fiz — disse Shadow. — Eu não tinha muita escolha. Czernobog assentiu com a cabeça. Havia uma expressão nos olhos dele que Shadow não se lembrava de ter visto antes.

— Eu já falei sobre o meu irmão pra você?

— Bielebog?

Shadow caminhou até o centro do tapete manchado de cinzas. Ajoelhou-se.

— Você disse que não o vê há um tempão.

— É — disse o velho, erguendo o martelo. — Faz um inverno bem comprido, rapaz. Um inverno muito comprido. Mas o inverno está acabando agora.

E sacudiu a cabeça, lentamente, como se estivesse se lembrando de alguma coisa.

— Fecha os olhos.

Shadow fechou os olhos, levantou a cabeça e esperou. A cabeça do martelo era fria, fria como gelo, e encostou na testa dele de maneira tão suave quanto um beijo.

— Pock! Pronto — disse Czernobog. — Terminei.

Havia um sorriso em seu rosto que Shadow nunca vira, um sorriso fácil e confortável, como o sol brilhando em um dia de verão. O velho caminhou até o estojo, guardou o martelo, fechou o estojo e o guardou de volta embaixo do aparador.

— Czernobog? E logo:

— Você é o Czernobog?

— Sou. Por hoje — disse o velho. — Amanhã, só vai ser o Bielebog. Mas hoje, ainda é o Czernobog.

— Então, por quê? Por que não me matou quando teve oportunidade? O velho pegou um cigarro sem filtro de um maço no bolso. Pegou uma enorme caixa de fósforos da prateleira em cima da lareira e acendeu o cigarro. Ele parecia estar profundamente envolvido em pensamentos.

— Porque — disse o velho, depois de algum tempo — tem sangue. Mas também tem gratidão. E esse inverno foi muito, muito comprido.

Shadow ficou em pé. Havia marcas de poeira no seu jeans, nos lugares onde ele tinha se apoiado ao ajoelhar, e ele tirou a poeira com as mãos.

— Obrigado.

— De nada. Da próxima vez que você quiser jogar damas, sabe onde me encontrar. Dessa vez, eu vou jogar com as brancas.

— Obrigado. Talvez eu apareça, mas vai demorar um pouco. Ele olhou dentro dos olhos cintilantes do velho, e imaginou se sempre teriam sido daquele tom azul da cor da flor de milho. Apertaram as mãos e nenhum deles disse adeus.

Shadow beijou Zorya Utrennyaya na bochecha, beijou Zorya Vechernyaya nas costas da mão, e desceu as escadas para fora daquele lugar, pulando dois degraus de cada vez.

 

Reykjavík, na Islândia, é uma cidade estranha, mesmo para quem já viu muitas cidades estranhas. É uma cidade vulcânica — o aquecimento para a cidade vem das profundezas da terra.

Há turistas, mas não tantos quanto seria de se esperar, nem mesmo no começo de julho. O sol brilhava, como brilhava há semanas: parava de brilhar durante uma ou duas horas nas primeiras horas da madrugada. Havia uma espécie de alvorada escura entre as duas e as três da manhã, e então o dia começava de novo.

O turista grande percorreu a pé a maior parte de Reykjavík naquela manhã, ouvindo as pessoas conversarem em uma língua que pouco havia mudado nos últimos mil anos. Os nativos dali conseguiam ler as sagas antigas com tanta facilidade quanto liam um jornal. Havia uma sensação de continuidade naquela ilha que o assustava, e que lhe dava segurança de maneira desesperadora. Estava muito cansado: o dia sem fim fazia com que o sono fosse quase impossível, e ficou no quarto do hotel durante toda a longa noite, sem noite, alternando a leitura de um guia turístico e de um romance chamado A Casa Triste, que comprara em um aeroporto há algumas semanas, mas em qual aeroporto especificamente ele já não se lembrava. Às vezes, olhava para fora da janela.

Finalmente, o relógio, assim como o sol, proclamou que era de manhã.

Ele comprou uma barra de chocolate em uma das muitas lojas de doces e caminhou pela calçada, ocasionalmente lembrando-se da natureza vulcânica da Islândia: dobrava uma esquina e reparava, por um instante, uma característica sulfurosa no ar. O que vinha à sua mente não era Hades, mas, sim, ovos podres.

Diversas mulheres por quem ele passava eram muito bonitas: esguias e pálidas. O tipo de mulher de que Wednesday havia gostado. Shadow ficou imaginando o que haveria chamado a atenção de Wednesday em sua mãe, que era bonita, mas que não tinha nada daquilo.

Shadow sorria para as mulheres bonitas, porque elas faziam com que ele se sentisse agradavelmente macho, e ele sorria para as outras mulheres também, porque estava se divertindo ali.

Ele não sabia dizer exatamente quando percebera que estava sendo observado. A certa altura de sua caminhada por Reykjavik, teve certeza de que alguém o observava. De vez em quando, virava-se para trás, para tentar ver quem era, e olhava para dentro das vitrinas das lojas e para a rua refletida atrás dele, mas não enxergava ninguém fora do comum, ninguém que parecesse observá-lo.

Entrou em um restaurante pequeno, onde comeu papagaio-do-mar defumado, frutinhas silvestres, truta do Ártico e batatas cozidas, e bebeu Coca-cola, que tinha gosto mais doce, mais açucarado do que ele se lembrava de como era nos Estados Unidos.

Quando o garçom trouxe sua conta, disse:

— Com licença. Você é americano?

— Sou.

— Então, feliz 4 de Julho pra você — disse o garçom.

Ele parecia contente consigo mesmo.

Shadow nem tinha percebido que era dia quatro. O Dia da Independência. É. Ele gostava da idéia de independência. Deixou o dinheiro e uma gorjeta na mesa, e saiu para a rua. Havia uma brisa fria vinda do Atlântico, e ele fechou o casaco até em cima.

Sentou-se em um morrinho gramado e olhou para a cidade que o rodeava, e pensou que um dia precisaria voltar para casa. Mas, primeiro, ele precisaria fazer uma casa para onde voltar. Ficou imaginando se o que se entende como "casa" era a coisa em que um lugar se transformava depois de um certo tempo ou se era uma coisa que se encontrava no final, se você simplesmente caminhasse, esperasse e desejasse aquilo por tempo bastante.

Um velho veio descendo a colina na direção dele: vestia uma capa cinza-escura, esfarrapada na barra, como se tivesse viajado muito, e um chapéu azul de abas largas, com uma pena de gaivota enfiada na faixa em um ângulo garboso. Parecia um hippie velho, pensou Shadow. Ou um pistoleiro aposentado há muito tempo. O velho era ridiculamente alto.

O homem se agachou ao lado de Shadow na encosta e fez um cumprimento breve com a cabeça. Ele tinha um tapa-olho de pirata em cima de um dos olhos e um cavanhaque branco espetado. Shadow imaginou que o homem fosse pedir um cigarro.

— Hvernig gengur? Manst pú eftir mér? — disse o velho.

— Desculpa, mas não falo islandês.

Então disse, de maneira desajeitada, a frase que havia aprendido em seu guia turístico nas primeiras horas iluminadas daquela madrugada:

— Êg tala bara enshu.

Eu só falo inglês. E depois:

— Americano.

O velho assentiu com a cabeça lentamente e disse:

— O meu povo foi daqui prós Estados Unidos muito tempo atrás. Foram pra lá e voltaram pra Islândia. Falaram que era um bom lugar prós homens, mas um lugar ruim prós deuses. E sem os seus deuses eles se sentiam muito... solitários.

O inglês dele era fluente, mas as pausas e o ritmo das frases eram estranhos. Shadow olhou para ele: de perto, o homem parecia mais velho do que imaginava ser possível. Sua pele era marcada por rugas e fendas minúsculas, como rachaduras no granito.

O velho disse:

— Eu conheço você, rapaz.

— Conhece?

— Você e eu, nós percorremos o mesmo caminho. Eu também fiquei pendurado na árvore durante nove dias, um sacrifício meu pra mim mesmo. Eu sou o senhor dos Aes. Eu sou o deus da Forca.

— Você é Odin — disse Shadow.

O homem assentiu com a cabeça, pensativo, como se sentisse o peso do nome.

— Me chamam de muitas coisas, mas, é, eu sou Odin, filho de Bor.

— Eu vi você morrer. Fiz a vigília do seu corpo. Você tentou destruir tanta coisa por causa de poder. Sacrificou tantas coisas por você mesmo. Você fez tudo isso.

— Eu não fiz nada disso.

— O Wednesday fez. Ele era você.

— É, ele era eu. Mas eu não sou ele.

O homem coçou a lateral do nariz. Sua pena de gaivota sacudiu.

— Você vai voltar? — perguntou o Senhor da Forca. — Para os Estados Unidos?

— Não tenho nada pra que voltar — disse Shadow e, enquanto proferia as palavras, sabia que eram mentirosas.

— Existe algo a sua espera lá. Mas vai esperar até a sua volta. Uma borboleta passou à sua frente em um vôo torto. Shadow não disse nada. Ele estava farto dos deuses e da maneira como agiam, tão farto que poderia viver várias encarnações sem ter que tratar desses assuntos novamente. Resolveu que iria até o aeroporto e trocaria sua passagem. Pegaria um avião para algum lugar onde nunca estivera antes. Continuaria seguindo em frente.

— Ei — disse Shadow. — Tenho uma coisa aqui pra você.

Enfiou a mão no bolso e pegou o objeto de que precisava.

— Estende a mão.

Odin olhou para ele de maneira estranha e séria. Então deu de ombros e estendeu a mão direita, com a palma virada para baixo. Shadow esticou sua própria mão e virou a mão do velho, de modo que a palma ficasse para cima.

Abriu suas mãos e mostrou as duas, uma depois da outra, que estavam completamente vazias. Então colocou o olho de vidro na palma da mão ressecada do velho e o deixou lá.

— Como você fez isso?

— Magia — disse Shadow, sem sorrir.

O velho sorriu, deu gargalhadas e bateu palmas. Olhou para o olho, segurando-o entre o polegar e o indicador, e assentiu com a cabeça, como se soubesse exatamente o que era aquilo. Então guardou o objeto em uma bolsa de couro amarrada na cintura.

— Takk koerlega. Eu vou tomar conta disto.

— Está bem — disse Shadow.

Ele se levantou, tirou a grama dos jeans.

— Mais uma vez — disse o senhor de Asgard, com um movimento imperioso da cabeça, com a voz profunda e em tom de dar ordem. — Faz de novo.

— Vocês nunca ficam satisfeitos. Tudo bem. Este eu aprendi com um cara que já morreu.

Esticou a mão para o nada e pegou uma moeda de ouro do ar. Era um tipo normal de moeda de ouro. Não podia trazer os mortos à vida nem curar os doentes, mas com certeza era uma moeda bem boa.

— E isso é tudo — disse, exibindo-a entre o polegar e o indicador. — Foi tudo que ela escreveu.

Ele jogou a moeda no ar, dando um peteleco com o dedão. Rodopiou dourada na parte mais alta de sua trajetória, à luz do sol, e brilhou, faiscou e pairou ali no céu de verão como se nunca mais fosse cair. Talvez nunca mais caísse. Shadow não esperou para ver. Ele se afastou dali e seguiu seu caminho.

 

 

[1] Tradução livre: Você é uma garota etérea, vivendo em um mundo material. (N.T.)

[2] Tradução livre: Você é uma garota analógica, vivendo em um mundo digital. (N.T.)

[3] Tradução livre: Ei, velho amigo, / O que você diz, velho amigo? / Faça com que tudo fique bem, velho amigo, / Dê um tempo a uma velha amizade. / Por que tanto pesar? / Nós vamos ficar juntos pra sempre. / Você, eu, ele — / Vidas demais estão em risco... (N.T.)

[4] Tradução livre: As pessoas estão no escuro, não sabem o que fazer/ Eu linha uma lanterninha, que também se apagou. / Estou estendendo a minha mão. Espero que você também esteja / Eu só quero ficar no escuro com você. (N.T.)

[5] Tradução livre: Girando e girando na volta que sempre aumenta / O falcão não consegue ouvir seu falcoeiro / As coisas desmoronam; o centro não consegue agüentar... (N.T.)

[6] Tradução livre: A maré de sangue turvo está à solta. (N.T.)

[7] Tradução livre: Enforque-me, Oh enforque-me, e eu estarei morto e não mais aqui,/Enforque-me, Oh enforque-me, e eu estarei morto e não mais aqui, / Eu não me importaria com o enforcamento, o problema é estar longe por tanto tempo, / É ficar na sepultura por tanto tempo. (N.T.)

[8] Tradução livre: é / primavera / e / o / Homem-balão / com pés de bode assobia / ao longe / e / bem pouquinho. (N.T.)

                                                                                Neil Gaiman  

 

 

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